Opção Lacaniana online nova série Ano 5 • Número Núme ro 15 • novembro nove mbro 2014 2 014 • ISSN 2177-26 2 177-2673 73
A criança entre a mulher mulher e a mãe 1 JACQUES-ALAIN MILLER
Escolhido por François Ansermet em uma lista em que eu desdobrava uma variedade diante dele, a partir de uma de suas sugestões, no decurso de uma entrevista, mais uma 2 que seu
entusiasmo
justifica-se
no
sabe
suscitar,
Seminário
o de
4
título Lacan,
deste cujo
Colóquio título
se
destaca na sequência dos ditos seminários, já que, pareceme, é o único a enunciar um conceito, a relação de objeto, retirada de um conjunto de doutrinas dos alunos de Freud, que se pode designar como a “Vulgata pós-freudiana”, e uma expressão que é, de maneira formal, recusada por Lacan, apesar de ele fazer dela o título do Seminário. Contudo
o
título
desse
Colóquio
diz
respeito,
fundamentalmente, à demonstração que Lacan persegue em seu Seminário.
Essa demonstração - o centro da demonstração de
Lacan - é a de que o objeto só encontra seu justo lugar na psicanálise ao dispor-se à função de castração. E é essa dimensão que é desconhecida tanto na Vulgata pós-freudiana como na observação da criança, por exemplo, no registro das interações
mãe/criança,
que
é
muito
praticada,
creio,
atualmente, em Lausanne. Assim,
a
demonstração
de
Lacan
compreende,
sucessivamente, três tempos, desdobra-se em três escansões no Seminário. A demonstração de que o objeto só encontra seu justo lugar ao dispor-se à função de castração, passa, inicialmente, pela homossexualidade feminina, em que as consequências do incômodo da decepção, devido à falta do dom paterno no objeto criança, como substituto da falta fálica, podem até levar o sujeito a fazer da mulher o objeto eletivo de um amor com o qual censura o pai. Esta é a demonstração de Lacan: o amor da jovem homossexual pela Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
1
mulher é um amor com o qual ela censura o pai, é um amor que mostra ao pai como se pode, como se deveria amar uma mulher. Em
primeiro
lugar,
portanto,
a
homossexualidade
feminina; em segundo, a perversão masculina, na qual o objeto fetiche é apresentado debatendo-se sobre a tela que vela o falo que falta à mulher. Terceiro
tempo
da
demonstração
de
Lacan,
a
fobia
infantil é ilustrada pelo caso princeps de Freud, o caso do pequeno Hans. Sobre esse terceiro tempo da demonstração clínica, convergem os dois primeiros: a substituição da criança ao falo, evidenciada na psicogênese freudiana da homossexualidade feminina, e a identificação do menino ao objeto imaginário do desejo feminino. A meu ver, a lição do Seminário 4 é a de que aquilo que permanece desconhecido, quando se concentra a atenção na relação mãe/criança - concebida de uma forma dual, recíproca, se assim o desejarem, como se a mãe e a criança estivessem fechadas numa esfera -, não é somente a função do pai. Sabe-se que Lacan contribuiu muito mais do que seria necessário em relação ao pai. Éric Laurent e eu estivemos na Tavistock Clinic, há uns dez anos atrás, e acolheram-nos dizendo: “Ah! os lacanianos. Vocês vão nos falar do pai”; e apresentaram-nos como “aqueles que iam falar do pai”. Ora, penso que a lição do Seminário é a de que aquilo que permanece desconhecido, quando se atenta na relação mãe/criança, não é somente a função do pai, cuja incidência sobre o desejo da mãe é, sem dúvida, necessária para permitir ao sujeito um acesso normativo à sua posição sexual. É, também, o fato de a mãe não ser “suficientemente boa” - retomando a expressão de Winnicott - quando apenas veicula a autoridade do Nome-do-Pai. É preciso, ainda, que a criança não sature, para a mãe, a falta em que se apoia o seu
desejo.
O
que
isso
quer
Opção Lacaniana Online
dizer?
Que
a
mãe
só
é
A criança entre a mulher e a mãe
2
suficientemente boa se não o é em demasia, se os cuidados que
ela
dispensa
enquanto
mulher.
à
criança
Quer
dizer
não -
a
desviam
de
empregando
desejar
os
termos
utilizados por Lacan em seu escrito “A significação do falo”3 - que a função do pai não é suficiente; é preciso, ainda, que a mãe não esteja dissuadida de encontrar o significante de seu desejo no corpo de um homem. A metáfora paterna, com a qual Lacan transcreveu o Édipo freudiano, não significa somente que o Nome-do-Pai deve reprimir o desejo da mãe, submetendo-a ao cabresto da lei. A metáfora paterna remete, a meu ver, a uma divisão do desejo a qual impõe, nessa ordem do desejo, que o objeto criança não seja tudo para o sujeito materno. Quer dizer que há uma condição de não-todo, que o objeto criança não deve ser tudo para o sujeito materno, mas que o desejo da mãe deve se dirigir para um homem e ser atraído por ele. Portanto isso exige que o pai seja, também, um homem. Da mesma maneira, não hesitarei em parodiar a réplica imortal do Tartuffe, de Molière, voltando-me para o sujeito da enunciação hipócrita, que se esconde no anonimato de um “alguém”,
e
devolverei
a
esse
sujeito
da
enunciação
hipócrita sua marca pessoal, dizendo: “Para ser mãe, não deixo de ser mulher”. Por isso, é uma divisão do desejo que, levada ao extremo, justifica o ato de Medeia, um ato próprio para ilustrar, certamente pelo horror, que o amor materno não se sustenta na reverência pura à lei do desejo, ou que só se sustenta nele se uma mulher, enquanto mãe, permanecer, para um homem, a causa de seu desejo. Nesse caso, portanto, quando
Jasão
vai
embora,
Medeia
deixa
de
estar
nessa
posição. Isso
quer
dizer
que
a
ênfase
dada
ao
valor
de
substituto fálico da criança - ao seu valor de Ersatz, como diz Freud - se perde quando promove, de maneira unilateral, Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
3
a função de preenchimento da criança e faz esquecer que esta criança não deixa de dividir, no sujeito feminino que está tendo acesso à função materna, a mãe e a mulher; a criança divide, no sujeito feminino, a mãe e a mulher. O objeto criança não somente preenche, como também divide, e digamos que é isso que o título deste colóquio ressalta. É essencial que ele divida. Como já se assinalou, é fundamental que a mãe deseje outras coisas além dele. Se o objeto criança não divide, ou ele sucumbe como dejeto do par genitor, ou, então, entra com a mãe numa relação dual que o alicia - para empregar o termo de Lacan - o alicia com fantasia paterna. Há, assim, uma divisão bastante simples: a criança preenche ou a criança divide. As consequências clínicas dessa
divisão
lembramos,
são
nas
cuidadosamente
patentes.
por
isso
que,
como
Jenny
Aubry” 4,
Lacan
sintomatologia
infantil
segundo
“Notas a
É
a
já
divide sua
emergência a partir do par familiar ou de sua inscrição, de maneira prevalente, na relação dual mãe/criança. Tal como Lacan o apresenta, há dois grandes tipos de sintomas: os que dizem respeito, verdadeiramente, ao par familiar e os que se atêm, antes de tudo, à relação dual da criança e da mãe. Em
primeiro
lugar,
o
sintoma
da
criança
é
mais
complexo caso resulte do par familiar, caso traduza a articulação sintomática desse par familiar. No entanto, por isso mesmo, ele também é mais sensível à dialética que a intervenção do analista pode introduzir no caso. Quando o sintoma
da
pai/mãe, plenamente
criança
ele
já
diz
está
articulado
respeito articulado
à
metáfora
à
vinculação
à
metáfora
paterna,
do
par
paterna, plenamente
envolvido nas substituições e, portanto, as intervenções do analista podem prolongar o circuito e fazer com que essas substituições prossigam. Em segundo lugar, ao contrário, o sintoma da criança é Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
4
bem mais simples se ele diz respeito, essencialmente, à fantasia da mãe; mas, nesse caso, ele também é maciço e, no limite, apresenta-se como um real indiferente ao esforço para mobilizá-lo pelo simbólico, pois, então precisamente, não se tem a articulação do caso precedente. E quando o sintoma é, assim, maciço, lê-se nele, sem dificuldade, o que é o caso do desejo do próprio sujeito. Lacan toma, a propósito, o exemplo do sintoma somático nessas duas notas. Alexandre Stevens lembrou-me que eu tinha evocado esse texto no seminário da D.E.A., e devo dizer que é necessário, realmente, que eu o republique, pois as duas notas... são uma só. Quando Jenny Aubry, de quem saúdo a lembrança, me trouxe esses papéis, eram dois papéis... Não belas folhas bem escritas, eram pedaços de papel que Lacan havia rasgado. Ela os trouxe para mim e disse: “Ele deu-me esses dois papéis”. Talvez eu tenha ficado um pouco sugestionado; olhei e estudei aquilo como duas notas. É evidente que se trata de um único texto e que, efetivamente, o texto começa na nota dois e prossegue no
texto
da
nota
um.
É
um
único
texto,
que
tem
sua
coerência. O sintoma somático é, portanto, o exemplo de Lacan, que
mostra,
criança
primeiramente,
alimenta,
na
que
mãe
o
sintoma
neurótica,
somático
da
motivo
da
o
culpabilidade; que a perversidade, pela qual o seu desejo pode estar marcado, se traduz na fetichização do sintoma infantil; e, em terceiro lugar, que, nos casos de psicose da mãe se vê o sintoma somático da criança encarnar sua foraclusão. Eu
dizia:
“Ou
a
criança
preenche,
ou
a
criança
divide”. Quanto mais a criança preenche a mãe, mais ela a angústia, de acordo com a fórmula segundo a qual é a falta da falta que angustia. A mãe angustiada é, inicialmente, aquela que não deseja, ou deseja pouco, ou mal, enquanto mulher. Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
5
Nega-se a perversão às mulheres porque a clínica reserva para os homens a possibilidade de alienar seu desejo ou encarnar a causa desse desejo em um objeto fetiche. Isso, porém, significa não ver que a perversão é, de certa forma, normal do lado mulher e é aquilo que se chama de amor materno que pode chegar até a fetichização do objeto infantil. Ele conforma-se à estrutura que a criança, como objeto do amor, só demanda se exercer a função de velar o nada, que é, cito, “o falo enquanto ele falta à mulher”. Sem dúvida, a criança, mesmo fetichizada, distingue-se do objeto pequeno
a
da fantasia pelo fato de ela ser
animada, enquanto o objeto pequeno
a
da fantasia é, por
excelência, inanimado. Contudo a expressão “marionete da mãe”,
que
faz
a
ladainha
de
uma
mulher
neurótica
em
análise, essa expressão - “marionete da mãe” - mostra bem em que sentido a animação da criança é compatível com sua fetichização, porque é por ter sido uma espécie de criança fetiche para sua mãe que essa mulher sofre, ainda, muitos anos mais tarde. Sem dúvida, se é um fetiche, é um fetiche normal, e a relação do amor materno, se é marcada de ilusões que, naturalmente, servem de motivo de deboche para os mais chegados, distingue-se por uma estabilidade inteiramente marcada
por
vacilações
imaginárias
da
perversão
propriamente dita. A criança, no entanto, só é o “fetiche normal”, entre aspas, como eu disse, se o desejo materno se inscreve na sua norma masculina, que não é distinta... Para que ele seja um fetiche normal, é preciso, ainda, que o desejo materno responda à sua norma masculina, que não é diferente da estrutura própria à sexuação feminina, que Lacan designou como o não-todo. O fetiche é normal apenas quando a criança não é tudo para o desejo da mãe. Bastaria fazer-se referência à estrutura de série que engendra
o
não-todo
para
Opção Lacaniana Online
compreender-se
a
razão
A criança entre a mulher e a mãe
6
fundamentalmente que dá à posição de filho único aquilo que
eu
chamaria
Moderemos
de
isso,
seu
caráter
porém,
aleatório
dizendo
ou
que
difícil. acontece,
frequentemente, que a unicidade do filho único é apenas aparente e que o pai se qualifica para o título de filho da esposa. Entretanto essa posição de filho único é, talvez, menos problemática do que aquela de ser, no seio de uma fraternidade afeição
numerosa,
materna.
As
o
único
filho
devastações
que
é
subjetivas
objeto que
da
podem
decorrer dessa dileção materna exclusiva sobre uma criança repercutem muito mais do que a negligência da mulher que trabalha, que alguns políticos, na França e em outros lugares, dizem ser uma grave ameaça para a família. Quanto ao caso da mulher adúltera é, de regra, sobre o filho
homem
que
reflete
o
sintoma
do
par
familiar,
enquanto, como pude observar, para a menina, isso é bem mais leve de carregar. Para terminar, um breve retorno ao Seminário 4. Lacan começou a captar a posição da criança situando-a em relação ao falo, que ele ainda qualifica de objeto nesse Seminário, antes
de
tomá-lo
como
o
significante
do
desejo.
Nada
interdita: tudo convida, ao contrário, a transcrever a equivalência freudiana da criança e do falo em termos de metáfora. (Eu abrevio) A metáfora infantil, como se pode chamá-la, pode inscrever-se como a consequência da metáfora paterna. E vê-se bem o quanto ela ameaça, primeiro, fazer sumir do mapa o desejo do falo no lado mulher e, segundo, fixar o sujeito a uma identificação fálica, a ponto de Lacan ter podido fazer do desejo de ser o falo a fórmula constante do desejo neurótico. O que é preciso dizer, em consequência, é que a metáfora infantil do falo, ou seja, o fato de que a criança seja o equivalente do falo, ou que o desejo, o Wunsch de um filho, o Wunsch de pênis, diz Freud, pode ser satisfeito Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
7
pela substituição do desejo de um filho. O que é preciso dizer é que a metáfora infantil do falo só é bem sucedida ao falhar. Ela só é bem sucedida se não fixa o sujeito à identificação fálica e se, ao contrário, lhe dá acesso à significação fálica, na modalidade da castração simbólica, o que torna necessário que seja preservado o não-todo do desejo feminino. O Nome-do-Pai e o respeito pelo Nome-doPai não bastam; é preciso, ainda, que seja resguardado o não-todo do desejo feminino e que, portanto, a metáfora infantil não recalque, na mãe, seu ser mulher. É sobre esse ponto que é preciso, com Lacan, completar Lacan. No seu célebre artigo “A significação do falo” 5, em que transcreve os estudos de Freud sobre a vida amorosa, Lacan atribui à função masculina a divergência entre o amor e o desejo e, ao lado mulher, a convergência do amor com o desejo.
No
entanto,
ele
assinala,
igualmente,
que
a
convergência feminina é compatível com um desdobramento do objeto, um desdobramento do ser homem, que ela afasta da sua posição de falóforo, suscitando ou exigindo seu amor, o que implica, como efeito, fazer o homem faltar, exigir que ele dê alguma coisa que não tem. Como não completar, aqui, essa construção de Lacan acrescentando, que a divergência... Acrescentando, no que seria a convergência do desejo feminino, em que Lacan admite, contudo, uma espécie de desdobramento interno à posição do homem... Como não acrescentar a divergência que, precisamente, o amor do homem nela introduz quando ele se opõe à intrusão da criança no par conjugal? A divergência do desejo feminino sobre a criança. Portanto, é preciso completar o que Lacan diz em “A significação do falo”, pela consideração da criança que introduz, que torna presente, uma divergência flagrante do desejo feminino. Essa divergência do desejo feminino sobre a criança é, nesse caso, motivo de angústia para o pai, desta vez, segundo
a
outra
fórmula
da
Opção Lacaniana Online
angústia,
que
relaciona
o
A criança entre a mulher e a mãe
8
incômodo da angústia à emergência do desejo do Outro como enigma
do
ser.
Nessa
circunstância,
portanto,
é
o
nascimento da criança que provoca o retorno de angústia ao pai: “Que quer ela então? Quem sou eu, pois, para ela?”. Um homem, eu diria, só se torna pai se aceitar o não-todo que constitui a estrutura do desejo feminino. Quer dizer, nesse sentido, que a função viril apenas se realiza na paternidade quando essa paternidade significa um consentimento para que essa outra seja outra, ou seja, desejo fora de si mesmo. A
falsa
observamo-la
paternidade, no
pai
do
a
paternidade
presidente
patogênica
Schreber
-
a
-
falsa
paternidade é aquela que vê o sujeito identificar-se ao Nome-do-Pai como universal do pai, para tentar constituirse o vetor de um desejo anônimo, para encarnar o absoluto e o abstrato da ordem. A função feliz da paternidade é ao contrário, a de realizar uma mediação entre as exigências abstratas da ordem, o desejo anônimo do discurso universal, de um lado, e o que decorre, para a criança, do particular do desejo da mãe. É o que Lacan chegou a nomear com uma expressão que tentei,
sem
conseguir,
até
o
presente,
apreender
exatamente, mas, que, agora, penso ter conseguido: é o que ocorreu a Lacan chamar de “humanizar o desejo”. Ele dizia que é preciso que o pai humanize o desejo, e creio ter compreendido
e
desenvolvido
o
que
quer
dizer
essa
expressão, cujo peso me parece evidente. Na impossibilidade de admitir o particular do desejo no outro sexo, o pai destrói, na criança, o sujeito sob o outro do saber. Daí, o pai, o falso pai, pressiona essa criança, cada vez mais, a encontrar refúgio na fantasia materna, a fantasia de uma mãe negada como mulher. Concluo. Pude verificar, ontem, que o que se retinha das intervenções apresentadas permanecia numa impressão global,
em
que
sobrenadavam
Opção Lacaniana Online
um
ou
dois
enunciados
A criança entre a mulher e a mãe
9
naufragados. Bem, era uma impressão de coquetel, e os amigos com quem falei não me desmentirão. Que quero então, que se retenha da minha exposição? Que é bom que o desejo seja dividido, que o objeto não seja único, que só se celebrem os olhos de Elsa para que eles não os vejam tramar, à parte, com os jovens rapazes, que só se faz de um homem um deus para castrá-lo melhor e que isso não é amar como seria conveniente. Em
segundo
lugar,
que
o
desejo
não
saberia
ser
anônimo, nem universal, nem puro, nem saberia ser o desejo de “alguém”, nem o de um deus, nem o do povo, se o assunto deve ser transmitido através das gerações. Que o desejo do analista, igualmente, por mais normatizado que seja, não saberia ser um desejo anônimo, universal e puro. Obrigado. Lausanne,
2
de
junho
de
1996.
Segue
uma
intervenção
de
Leslie Pons, que não foi transcrita, e a Discussão.
Discussão: François
Ansermet:
Bem.
Muito
rapidamente,
eu
queria
colocar uma questão a Jacques-Alain Miller a respeito de sua exposição centrada no fato de que a criança preenche e divide. Na realidade eu estou me perguntando, ao ouvi-lo, nesse desenvolvimento, o que acaba por fazer que o objeto não seja único, que o desejo não seja universal, que o desejo seja dividido, que a mãe não seja a mãe ideal, pois é ela, justamente, que causa problema. O pai ideal? Todas essas figuras ideais? O que o leva, portanto, a fazer da criança um não-todo para o desejo da mãe e a assumir essa posição, essa questão, esse desenvolvimento sobre a criança que preenche e divide? Eu estou me perguntando, finalmente, se isso não levaria a se considerar que seria possível atribuir à criança uma certa função paterna, em todo o caso, à ocorrência inesperada de uma criança na história de um homem e de uma mulher? Aliás, isso seria uma maneira de Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
10
revisitar a frase do poeta romântico inglês Wordsworth, citada por Freud e retomada por Lacan no Seminário 17 e, mesmo, em muitos outros momentos: “A criança é o pai do homem”.
Então,
o
que
você
pensa
dessa
questão
e,
fundamentalmente, dessa função paterna? É assim que se pode compreender,
também,
a
maneira
como
você
desenvolve
a
metáfora infantil do falo, que só tem sucesso ao fracassar? Encontra-se,
pois,
nesse
fracasso,
uma
certa
função
paterna? Uma segunda observação. Você disse que “um homem só se torna pai se aceitar o não-todo do desejo feminino”. Isso leva, efetivamente, ao Édipo, e eu gostaria de lhe propor uma questão sobre ele. Como dizia Lacan, no Seminário “A lógica da fantasia”: “O navio de Édipo mantém-se flutuando sobre um oceano de gozo feminino”. Foi Marie-Jean Sauret, com quem trabalho num cartel, que - a propósito deste colóquio, e eu lhe retribuo, já que ele não pôde vir, mas, enfim, discutimos a respeito - me enviou esta citação de Lacan. Cito: “Que oceano de gozo feminino - eu o pergunto não foi preciso para que o navio de Édipo flutuasse sem afundar, até que a peste veio lhe mostrar, finalmente, de que era feito o mar de sua felicidade?”. Daí, uma questão sobre o Édipo, em relação ao que foi discutido[...]. Eu mesmo fazia referência a seu texto “Além do Édipo”, em que você, a partir do texto de Lacan “A significação do falo” ele parece dar-se conta do primado do falo sem referência ao Édipo -, se propõe a questão de saber se a castração procede do pai ou da própria linguagem. Após essa exposição que você fez, ela procede da divisão entre a criança que preenche e a criança que divide? Da própria criança? Da criança como função paterna? Jacques-Alain
desta
vez,
Miller:
apresentei
Sim, bem rapidamente. Com efeito, a
criança
como
introduzindo
uma
barra, introduzindo a divisão, separando - se posso assim Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
11
dizer! Estamos entre nós. Você traduz isso, condensa-o dizendo
“função
paterna
da
criança”
e
jogando
com
o
equívoco da fórmula “a criança é o pai do homem”. Eu o aceito de bom grado. É uma maneira de concentrar essas diferentes funções. Evidentemente, é um pouco provocante dizer “função paterna da criança”; mas por que não? De início, poder-se-ia afirmar que é justamente ela que faz o pai
e
a
mãe.
Com
efeito,
ela
tem
o
papel
de...
Eventualmente ela os separa. Enfim, ela os une, de um lado, e os separa, de outro; ela divide cada um, portanto. Muito bem, tentemos fazer funcionar sua fórmula; mas isso me convém inteiramente. Observações de Ansermet a Leslie Pons Jacques-Alain
Sim,
Miller:
eu
gostaria
de
fazer
uma
observação sobre a exposição de Leslie Pons, a de que, em um dado momento, seria necessário repetir exatamente sua fórmula; mas, enfim, você evoca um gozo do qual se fala pouco na psicanálise, que é um pouco o gozo da criança nos braços da mãe e, mesmo, nos cavalos-de-pau, o gozo nos cavalos-de-pau do carrossel. Então, eu gostaria de dizer alguma
coisa
sobre
esses
dois...,
sobre
o
que
você
distingue aí. Você sabe, quanto o gozo nos braços da mãe, que é preciso ver em que idade se observa isso. Tive, porém, a oportunidade de observá-lo de perto nestes últimos tempos. Penso então, que o gozo nos braços da mãe não é, necessariamente, da ordem do contentamento, porque tal fato pode provocar, nos braços da mãe, uma fúria... Vejamos, por exemplo,
um
episódio
em
que,
verdadeiramente,
há
contentamento. Num dado momento, dirijo-me a um par formado pela mãe e a criança, para a menininha; esta, que dois meses antes, só queria passar de braço em braço, agora, ao contrário, com um sorriso, esconde um pouco o rosto no ombro, na clavícula da mãe, com um pequeno sorriso. E, depois, isso se repete durante todo um tempo. Assim sendo, Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
12
constato, inicialmente, que esse procedimento obedece a um movimento de alternância, que é, na verdade, a estrutura do
fort-da,
perfeitamente
que
está
presente
articulada.
Isso,
e
com
é
uma
estrutura
certeza,
já
é
uma
aprendizagem; não se pode dizer aprendizagem da linguagem, mas já é a forma principal de aparição e desaparição. E chego a suspeitar - como vim para cá, não pude terminar minhas
observações
-
que
esteja
mesmo
muito
ligado
à
diferença sexual, quer dizer, à constatação de que essa retenção ocorre não somente com a mãe, mas também com a avó, enquanto o avô é colocado do outro lado. Portanto seria necessário observar o que se passa com o pai ou com outros..., com amigos, para saber se é de fato, uma opção por aquelas que se ocupam dos cuidados materno-infantis. Vejo
nisso,
pois,
ao
mesmo
tempo,
uma
alternância
significante, no mínimo um esboço de diferenciação dos sexos, e isso muito bem articulado. Esse é o primeiro ponto. Agora, o segundo ponto concerne ao gozo nos cavalosde-pau
do
carrossel.
Eu
mesmo
tenho
lembranças
disso.
Gostei muito dos cavalos-de-pau e lembro-me, com efeito, em que consistia essa brincadeira. Montávamos nos cavalinhosde-pau e, num dado momento, enquanto rodávamos, pequenos anéis redondos caíam; com um bastãozinho que nos davam deveríamos, ao passar, fisgar o anel e conservá-lo. Em seguida, um segundo anel caía, e assim por diante. Bom, não vou desenvolver isso! Leslie Pons:
Só uma palavrinha a respeito de seu último
exemplo.
diria
Eu
que,
nesse
momento
em
que
se
deve
introduzir anel - com efeito, você não fala isso, mas eu compreendi bem -, isso significa que existia o aleatório, ou seja, que não dava certo todas as vezes. No entanto não é desse movimento que eu falava e, sim, do movimento repetitivo. Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
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Jacques-Alain
Miller:
Existem,
também,
os
manejos
ou
cavalos-de-pau sem essa brincadeira, mas eu os achava muito menos interessantes. Pergunta da plateia:
Miller, você fala de humanizar o desejo. Será que entendi bem que você opõe essa humanização à universalidade e à idealidade? Jacques-Alain Miller:
Lacan emprega a expressão “humanizar o desejo” num texto sobre Gide, se não me falha a memória (“Faltou a palavra que humaniza o desejo”). É, sem dúvida, uma linguagem que Lacan não emprega mais nos anos seguintes, porque ele não tem mais este vocabulário. Na realidade, porém, dei-lhe um certo peso, procurando um pouco a significação que se poderia dar a essa expressão. E pareceu-me, como lhes dizia esta
manhã,
que
se
poderia
dar
a
ela
a
seguinte
significação, relativamente satisfatória: fundamentalmente, o pai tem uma função de mediação entre aquilo que, digamos, é o desejo anônimo da cultura - O que isso quer de nós? Isso que se quer transmitir? Por exemplo, o saber. Há, nesse caso, a pressão de um Outro anônimo que, quando cai de uma só vez ou sem mediação sobre um sujeito, ou o esmaga, ou o faz fugir, chegando mesmo a levá-lo a... E se o
pai
se
identifica
com
essas
exigências
anônimas
da
cultura, pode-se dizer, eu proporia, que a criança se refugia, consequentemente, na fantasia da mãe, ou se vê esmagada por esse peso. E
que
a
função
feliz
da
paternidade
é
a
de
particularizar esse universal. É a de se permitir que se escolha, que se tome e que se deixe, que se mantenha distância...
e
que
isso
se
particularize.
É
a
de
possibilitar que isso se particularize. Como o presidente Opção Lacaniana Online
A criança entre a mulher e a mãe
14
acabou de dizer, fui sintético e por isso, não pude apresentar todas as nuances e variações. Penso que, com efeito, o universal nu e cru é inteiramente alienante: aliena a verdade sempre particular do sujeito. Ao mesmo tempo, não se pode viver no particular; por isso há uma manobra... É sumário utilizar os conceitos de universal e particular, mas eles são, de algum modo, conceitos que, todo mundo pode compreender, via uma formação clássica, e, numa apresentação rápida, é o mais cômodo... É por isso que os empreguei, e, também, porque não é muito fácil elaborar outros. Texto traduzido por Cristiana P. de Mattos, Cristina Vidigal, Inês Seabra e Suzana Barroso. Revisão: Ana Lydia B. Santiago. 1
Título do Colóquio organizado, nos dias 01 e 02 de junho de 1996, em Lausanne, pelo Grupo de Estudos de Genebra. Traduzido ao português e publicado originalmente no Brasil In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 21. São Paulo: Edições Eólia. 2 N.T.: É possível que J.-A. Miller esteja fazendo referência à entrevista realizada por F. Ansermet sobre o Seminário “Jacques-Alain Miller conversa sobre o Seminário com François Ansermet” -, publicado pela Navarin. Disponível em: . 3 LACAN, J. (1998/1958). “A significação do falo. Die Bedeutung des Phallus”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 4 IDEM. (1969/abr. 1998). “Duas notas sobre a criança”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Psicanálise, nº 21. São Paulo: Edições Eólia.
Internacional
IDEM. (1998/1958). “A significação do falo. Phallus”. Op. cit.
Die Bedeutung des
5
Opção Lacaniana Online
de
A criança entre a mulher e a mãe
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