Promessas Quebradas David Mack Tradução: Vinícius Fernandes Helena Padim Visite: http://brenooficial.wordpress.com/
Todos esses morreram na fé, sem terem recebido as promessas, mas tendo visto-as distanciarem-se, e foram induzidos a elas, agarram-nas, e confessaram que eram estranhos e peregrinos na Terra. -Hebreu 11:13 PARTE UM ESTRANHOS E PEREGRINOS UM TRÊS DE ABRIL DE 2008 NU E TREMENDO, Roger Keegan acordou amarrado à uma cadeira. Estava sentado no centro de uma poça de uma desagradável luz incandescente, mas a sala ao seu redor estava mergulhada no breu. Algemas de metal mordiam seus pulsos, que estavam presos atrás de si. A única coisa que conseguia cheirar era amônia. Parece um porão, pensou. Ainda estou no cassino? Ele viera para Las Vegas para alguns dias de bem-merecidas férias: algumas cartas, algumas strippers, quem sabe um pouco de sexo. Talvez em algum momento entre seus seis copos de bebida no Mirage alguma coisa dera muito, muito errada. Uma porta se abriu na escuridão, mas não houve luz que atraiu os olhos de Roger. Os passos foram respondidos por ecos apressados enquanto se aproximavam. Roger engoliu em uma tentativa inútil de diminuir o gosto de álcool metabolizado em sua língua, que estava coberta por uma pasta repugnante. Piscando os olhos, o gerente de quarenta e dois anos viu três figuras sombrias pisarem no anel de sombra além de seu círculo de luz. Duas pareciam-se com homens, a outra tinha as curvas atraentes de uma mulher. O homem à esquerda acendeu um cigarro, iluminando seu rosto moreno com uma luz laranja. Então ele fechou o isqueiro, e tudo o que restou foi uma rodilha de luz na ponta do cigarro. Roger tremeu diante do cheiro forte de tabaco. O que quer que aquele homem estivesse fumando, era mais forte e mais amargo. — Então? — disse o homem no centro. — É ele?
— Sim — respondeu a mulher. — Ele foi preparado. Lançando olhares assustado a cada membro do trio, Roger disse: — Espere um pouco, deve ter havido algum erro! Sou apenas um representante de vendas! Meu nome é Roger Keegan, eu não… — O estalo de algo girando numa semiautomática o cortou. — Devíamos começar — disse o homem no meio. Ele e seus dois companheiros pisaram na luz. Estavam vestidos com roupas de trabalho casuais – ternos sem gravatas para os homens, um conjunto de saia e jaqueta cinza para a mulher. Ela era pálida e loira, e segurava um aparelho estranho com uma seringa e uma agulha. Roger não a reconheceu o negro com o cigarro. Parado no meio deles, no entanto, estava um homem de barba grisalha que parecia familiar. Demorou um momento até que Roger puxasse o nome do homem de sua memória. Então ocorreu a ele. — Puta merda! — exclamou, os olhos arregalados em descrença. — Você é o George Sterling! Isso é um filme? O famoso produtor-diretor de Hollywood ignorou Roger e estendeu uma mão ao seu colega masculino. — Vamos logo com isso. O homem negro estendeu a pistola a Sterling. Então o produtor de filmes levantou a arma, encostou o cano em sua própria têmpora e puxou o gatilho. O som ecoou através do chão e das paredes quando o lado esquerdo da cabeça de Sterling explodiu num suculento espirro vermelho. Seu corpo amoleceu, caiu com o rosto para os pés de Roger e pousou com um barulho abafado. A pistola escapou de sua mão e espatifou-se no chão. O sangue se espalhou numa rápida maré ao redor dos pés descalços de Roger. Tremendo de medo e adrenalina agora, ele gritou para a loira e para o negro: — Mas que inferno está acontecendo? Eles não responderam. A mulher deu um passo à frente, ajoelhou-se ao lado titã morto de Hollywood e enfiou a agulha de seu dispositivo em seu crânio, na sua medula espinhal. Ela mexeu em um teclado ao lado do aparelho. Um momento depois, um fluido prata brilhante começou a encher a seringa atrás da agulha, saindo do pescoço de Sterling.
Roger berrou: — Quem são vocês? O que é isso? — Logo você vai descobrir — disse o negro indo para o lado da cadeira de Roger. A loira removeu a seringa do pescoço de Sterling, levantou-se e caminhou na direção de Roger. — Segure-o — disse ela. Seu comparsa enrodilhou um braço musculoso na garganta e mandíbula de Roger. Com precisão e força, ele virou o queixo de Roger e o imobilizou. — Pare! — implorou Roger. — Por favor, não faça isso! A mulher recebeu seu apelo com um sorriso frio e olhos azuis sem piedade. — O que você acha que nós vamos fazer? — Eu… eu não sei — disse Roger, tão assustado que não consegui nem pensar. Golpeando-o no rosto, ela perguntou: — Então por que ter medo? Enquanto ele pensava em uma resposta, ela enfiou a agulha em sua nuca. Uma dor perfurante percorreu sua espinha abaixo como um solavanco elétrico. Então o calor o invadiu, embaçando sua visão e deixando-o com vertigens. Ele sentiu-se gritando, mas só o que ouviu foi o silêncio. Jakes não sentira medo algum ao puxar o gatilho. Essa morte seria apenas um interlúdio. E um muito breve, por sinal. No entanto, meter uma bala no cérebro o machucara assim mesmo. Ele inalou bruscamente enquanto sentia sua consciência se enraizar em uma nova forma. Os sentidos desse corpo eram aguçados. Ele sentiu as fragrâncias opostas de uma colônia fajuta e um perfume caro. Seus olhos abriram-se e ele viu seus companheiros Marcados. — Estou bem, Wells — disse ao seu colega homem.
Eles haviam sido removidos dos corpos de quem tinham sido no futuro, antes de terem suas identidades convertidas em nanodispositivos para sua arriscada missão no passado. Na primeira vez que assumiram outros corpos, haviam concordado em se chamarem pelos novos nomes, para manterem a farsa e evitar confusão. Com tão pouco deles restando, entretanto, não havia razão para não usarem seus nomes reais. Satisfeito com sua nova voz, ele perguntou: — Quanto tempo demorou? — Menos que dois minutos — disse Wells. Ele olhou para Kuroda, que afastou o aparelho transferidor de nanodispositos. — As atualizações no processo de vinculação funcionaram melhor do que esperávamos. Jakes acenou com a cabeça. — Ótimo. Então você não se importaria em me desamarrar. — Já que somos obrigados — brincou Wells. Ele postou-se do lado da cadeira e retirou as algemas dos pulsos de Jakes. Enquanto seu amigo desamarrava o resto de suas amarras, Jakes massageou seus novos pulsos, apertou os olhos contra o brilho intenso da luz acima de sua cabeça e torceu o nariz para o cheiro de enxofre no ar. Olhou para o corpo ensanguentado de George Sterling. Tinha pena em ter que se livrar de uma identidade que lhe provera uma vasta riqueza e influência, mas fora para o melhor. Os Marcados recentemente haviam sofrido contratempos em sua guerra contra os 4400 – pessoas abduzidas de diferentes partes do mundo durante quase seis décadas no final do século XX e começo do XXI, levadas por agentes do futuro determinados a mudar o que estava para acontecer. Injetados com a promicina neurotransmissora, o que os presenteou com extraordinárias habilidades sobrenaturais, os 4400 haviam voltado todos ao mesmo tempo no dia 14 de agosto de 2004, para impedir uma catástrofe que destruiria o mundo que conheciam. Em outras palavras, os retornados haviam sido modificados e mandados de volta para apagar o passado e mudar o último bastião de uma civilização estável, que os Marcados estavam determinados a defender. Infelizmente, a guerra se virara contra os Marcados. Um esquadrão de assassinos – mandado por Jordan Collier, o líder carismático do movimento de promicina que se espalhava rapidamente, e comandado pelo ex-militar e retornado telecinético Richard Tyler – matara seis dos colegas agentes de Jakes. Era uma questão de sorte Jakes ter escapado do ataque de Tyler ao Castelo Wyngate, o baluarte opulente que George Sterling construíra com sua fortuna da indústria cinematográfica. Se não fosse por uma passagem secreta que Sterling tivesse adicionado à
propriedade, ele, Wells e Kuroda provavelmente estariam mortos. Agora eram os últimos agentes dos Marcados. Somente eles restavam para salvar o futuro de Collier e seu movimento promicina quase-religioso. Quando todas as amarras caíram, Jakes levantou-se. — Assim está melhor — disse ele. Kuroda o entregou suas roupas. Ele se vestiu rapidamente, então caminhou na direção da saída. Wells e Kuroda o seguiram. — Eu juntei o que sobrou da fortuna de Sterling com a dos Cayman e nossas posses. — disse Jakes. — Podemos usar isso como um capital inicial. Kuroda pegou sua maleta, na qual ela carregava seu novo aparelho transmissor de nanodispositivos. — Ainda não vejo como vamos fazer algumas coisas possuindo esses zé manés — disse ela. — Personificar pessoas importantes funcionou o quanto podia — disse Jakes. — Agora devemos agir às escondidas. Wells consternou-se. — Como isso nos ajuda? Já perdemos nossa oportunidade contra o Collier. — Talvez sim — disse Jakes. — Talvez não. Ele abriu a porta para a escadaria mal-iluminada, onde o ar estava quente e abafado comparado aos confins do subsolo. — É por isso que devemos fazer um novo amigo – um que quer detê-lo tanto quanto nós. Sob seus passos arrastados, Kuroda disse: — Você já falou com esse “novo amigo”, não falou? — Sim, já falei — disse Jakes. Embora seu novo corpo fosse relativamente jovem e saudável, o calor na escadaria fazia o suor descer por suas costas enquanto ele subia um lance atrás do outro voltando ao andar principal. Subindo os degraus atrás dele, Wells protestou: — Ainda assim é muito tarde. A data da calamidade veio e já se foi. — Eu sei — disse Jakes. Abrindo a porta para o andar térreo do hotel em construção,
ele encolheu-se sob o brilho do sol do meio dia. Uma rajada quente de vento açoitou seus cabelos castanhos de seu rosto. — Mas isso tudo significa que Collier se preveniu do desastre que sabia. — Ele se permitiu um sorrisinho malévolo. — É hora de mostrá-lo um que ele não irá prever.
DOIS VINTE E UM JUNHO DE 2008 HARBOR ISLAND ESTAVA pegando fogo. Chamas avermelhadas preenchiam o céu do fim de tarde com fumaça negra e cheiro forte de óleo. O enorme triângulo de terra construído na foz do rio Duwamish era um labirinto industrial de refinarias de combustível, fundições e estaleiros. Também abrigava as maiores reservas de gasolina e combustível de aviação de Seattle, e era uma das partes da cidade que não havia caído no controle de Jordan Collier nos meses que se seguiram à renomeação de Terra Prometida, o porto seguro dos positivos de promicina no mundo. Naquela noite era um campo de batalha. Descendo uma rua flanqueada por abrasadoras paredes de fogo, o agente Tom Baldwin da NTAC segurava sua Glock 26 firmemente, com os dedos tão apertados que seus nós estavam embranquecidos, enquanto avançava através da contenda. Ao seu lado estava sua parceira, Diana Skouris. À frente deles e indicando o caminho estava uma equipe tática da NTAC, guarnecida por um completo equipamento de combate e rifles M4A1. Luz de holofotes vinda de um helicóptero que pairava sobre eles varria o caminho à frente. O sargento da equipe tática ergueu um braço, sinalizando para que os dois agentes à paisana aguardassem. Tom e Diana se ajoelharam, mas mantiveram suas pistolas semiautomáticas de prontidão, enquanto a equipe tática se espalhava por um cruzamento bloqueado por escombros ardentes e carros destroçados. Com uma mão suada, Tom ajeitou seu colete à prova de balas, que estava um pouco apertado nas axilas. Relâmpagos brilharam no céu. Linhas brancas ofuscantes atingiram três membros da equipe da NTAC, que caíram ao solo, fumegantes. Seus companheiros abriram fogo, enchendo o ar com a gagueira nervosa do bombardeio automático. Tom duvidava de que eles tivessem alguma ideia daquilo em que estavam atirando. Todos atingiam o deque quando um brilho de detonação encheu a rua, à distância: outro tanque de combustível explodia. A onda de choque quase arrancou as obturações dos dentes de Tom. Uma bola de fogo vermelho-alaranjada rasgou a noite. Tom esticou o braço e colocou a mão no ombro de Diana. Ele gritou, em meio à algazarra das metralhadoras: — Você está bem? A morena esguia concordou com a cabeça, e então gritou de volta: — Somos alvos fáceis aqui!
Ele concordou, e então apontou para um caminho claro através de um estacionamento. — Por ali! Eles se arrastaram pela Rua Lander, cruzaram a Décima Terceira Avenida, e correram para o leste pelo terreno à margem da Décima Primeira Avenida. Um grupo de homens e mulheres corria bem à frente, no mesmo caminho que Tom e Diana. No tremeluzir da luz do fogo, Tom conseguiu ver que eles vestiam uniformes de Oficiais da Paz da Terra Prometida, uma entidade oficial recém-criada, composta por ex-policiais de Seattle que eram p-positivos, bem como voluntários civis. Eles respondiam apenas a Jordan Collier, o que deixava Tom contrariado, mas eram a melhor defesa de Seattle contra os ppositivos perigosos. Uma figura de fumaça apareceu dentre os Oficiais da Paz. Ela se solidificou, formando um jovem vestido de preto, que enterrou uma faca no dorso de um dos oficiais. Enquanto os companheiros do oficial assassinado se voltavam para encarar o atacante, este se transformou novamente em fumaça e evaporou. Mais relâmpagos foram lançados do céu nublado, martelando os Oficiais da Paz. Tom ergueu o braço para proteger os olhos do brilho doloroso. Um trovão rugiu em seu rastro. Quando ele abaixou o braço, viu que Diana havia feito o mesmo. Eles retomaram a corrida em direção aos policiais sitiados da Terra Prometida. Motores de motocicleta rosnaram. Uma onda de força cinética que tremulou como radiação térmica derrubou os poucos oficiais restantes. Momentos depois, três motos Suzuki roncaram rua abaixo, em direção ao sul, afastando-se da região dos tanques de combustível em erupção. Tom parou e ergueu sua Glock. Diana fez o mesmo. Eles miraram e dispararam vários tiros contra os motociclistas fugitivos. O piloto do meio e o último vacilaram e caíram das motos, que tombaram e derraparam, enquanto os terroristas feridos deslizavam, arrastando-se pelo asfalto. Os últimos tiros não acertaram o primeiro piloto, que acelerou em direção ao desfiladeiro de contêineres multicoloridos e empilhados, que dominavam as partes sul e leste da ilha. — Vamos lá! — gritou Tom, recolocando sua Glock no coldre e correndo em disparada até as motos caídas. Diana o acompanhou, indo em seu encalço a toda. Eles alcançaram a moto mais próxima, cujo motor havia apagado. — Ajude-me — disse Tom, enfiando suas mãos por baixo da moto. Juntos colocaram-na de pé. Tom subiu nela e rapidamente religou o motor, enquanto Diana pulava para o assento atrás dele. Ele engrenou a marcha e torceu o acelerador. O motor rugiu, e a moto deixou marcas
de pneu no solo quando Tom disparou com ela. O vento batia contra seu rosto e o forçava a semicerrar os olhos conforme acelerava. Diana envolveu a cintura de Tom com seu braço esquerdo e usou a mão direita para ativar o walkie-talkie. — NTAC-cinco para NTAC-um — ela gritou por sobre o barulho do vento. — Um hostil em uma motoca rumando para o sul pela Décima Primeira! Agentes em perseguição! Câmbio! O comando da equipe de campo chiou em resposta. — Entendido, NTAC-cinco. Estamos de olho no prêmio. Câmbio. Tom mantinha seus olhos na figura distante à frente deles. O piloto fugitivo se movia em direção à Ponte Oeste de Seattle, que passava sobre Harbor Island sem conceder acesso ao local. Viaturas de polícia haviam fechado os dois lados da ponte, e suas luzes azuis e vermelhas piscavam, brilhantes, contra o céu obscuro. Atiradores de elite da NTAC estavam posicionados na ponte com suas armas apontadas sobre a mureta, enquanto observavam Harbor Island e esperavam que seus alvos aparecessem. Outra ondulação perturbou o ar acima do suspeito fugitivo e fez a ponte parecer ondular, como uma miragem. Então o efeito abalou meia dúzia de suportes de concreto do elevado, que se espatifaram como se fossem feitos de casca de ovo. Metal partido e pedras desabaram em escombros poeirentos, e o elevado entortou-se e desmoronou com um lamento profundo de aço distorcido, num estrondo de impacto ensurdecedor. O suspeito desviou para a Rua Spokane e desapareceu por entre a crescente nuvem cinza de fumaça e névoa. Gritando por cima do ombro de Tom, Diana perguntou: — Aonde diabos ele vai? — Quem sabe? — respondeu Tom, enquanto contornava a beirada da nuvem que se expandia, procurando por algum sinal do suspeito. Acionando novamente o walkie-talkie, Diana disparou: — NTAC-cinco para NTAC-sete! Desça já aqui e sopre esta droga de poeira! Câmbio! — Entendido, NTAC-cinco. Câmbio — respondeu o piloto do helicóptero. Segundos depois, o helicóptero negro desceu bem baixo, à frente de Tom e Diana. Seus rotores geraram vento o bastante para dissipar a névoa suja e fizeram barulho suficiente para abafar o motor de sua motocicleta, enquanto Tom torcia o acelerador ao máximo. Do outro lado da agora bifurcada Ponte Oeste de Seattle, o suspeito estava correndo em direção à marina de Harbor
Island. — NTAC-sete – gritou Diana pelo rádio —, o suspeito está na marina! Repito, o suspeito está na marina! Jogue luz nele, mas mantenha distância! Câmbio! — Já o vimos, NTAC-cinco — respondeu o piloto. A luz branca implacável do holofote iluminou de vez o suspeito fugitivo, enquanto ele embarcava em uma lancha atracada na marina. O jovem voltou-se e lançou um olhar furioso para o feixe de luz. Então uma onda concentrada de distorção seguiu o feixe até o helicóptero, e o estraçalhou em pleno voo. Este caiu do céu, numa chuva de fogo, metal partido e corpos carbonizados. Tom desviou para a esquerda e por pouco evitou ser esmagado pela aeronave destroçada, quando esta se chocou com o chão e rolou por sobre uma dúzia de carros no estacionamento da marina, atrás dele. Um veículo após o outro explodiu em chamas, transformando o local em um flamejante cemitério automotivo. Projéteis tamborilaram o chão em ambos os lados de Tom e Diana, enquanto corriam para fora do estacionamento e desciam a rampa de embarque da marina. O motor da lancha acordou rosnando, e o suspeito soltou as amarras do ancoradouro com um pequeno estouro causado por seu poder de rompimento. Tom apertou os freios, e a motocicleta patinou e derrapou pela doca. Diana já estava fora da moto antes que esta parasse de se mover, sua Glock já em punho enquanto ela se posicionava para atirar. Assim que a moto parou, ela abriu fogo contra o barco, mas os tiros perfuraram apenas as águas escuras do Duwamish. Tom pegou sua Glock e juntou-se ao tiroteio inútil de sua parceira. A arma de Diana clicou, sem munição. A pistola de Tom se esvaziou um segundo depois. Então uma branca e fina camada de gelo paralisou a superfície turbulenta do rio, e o rastro de espuma do barco parou em meia onda. A transformação gelada ultrapassou a lancha, que se esforçou por um momento contra o lodo espesso, depois parou com um estalo agudo de fibra de vidro se estilhaçando, conforme a superfície do Duwamish congelou-se por mais meia milha em cada direção. O jovem no barco voltou-se e olhou, alarmado, e então cambaleou para trás e desabou. Olhando por sobre seu ombro, Tom viu um par de Oficiais da Paz da Terra Prometida uniformizados na margem. Um tinha colocado a mão na agora congelada superfície da água. O outro ainda olhava através da mira de seu rifle de precisão. A boca larga da arma havia sido modificada para atirar dardos. Tom deduziu que os dardos deveriam estar carregados com a mistura de sedativo concentrado e inibidor de promicina que podia tornar p-positivos inconscientes e temporariamente suprimir suas habilidades extra-humanas. Diana notou os Oficiais da Paz e guardou sua arma. — Acho que temos que ir lá agradecer — disse ela, não parecendo muito
entusiasmada com a ideia. — Acho que sim — respondeu Tom. Ele guardou sua Glock enquanto eles voltavam pela doca para a margem. Nos dois minutos que Tom e Diana levaram para andar até os Oficiais da Paz, os reforços chegaram. Um pelotão de forças de ataque da NTAC, dúzias de policiais de Seattle e Oficiais da Paz da Terra Prometida, e seis agentes da NTAC, liderados por ambas as encarnações de Jed Garrity, cujos dois egos eram distinguidos pelas cores de suas gravatas, uma vermelha, a outra azul, corriam através da lâmina de gelo, todos competindo para ver quem iria efetuar as prisões. As únicas pessoas que não tinham pressa de alcançar o barco, ao que parecia, eram Tom, Diana e os dois Oficiais da Paz que tinham sido os verdadeiros responsáveis por impedir a fuga do suspeito. — Belo trabalho — disse Tom, com um aceno de cabeça amigável para a dupla. — Eu sou Tom Baldwin, e esta é… — Sabemos quem são vocês — disse a mulher de cabelos negros e lustrosos, com um sotaque britânico seco. Ela encarou Tom com seus impressionantes olhos verdes. Tom e Diana trocaram olhares apreensivos. Nos anos seguintes ao retorno dos 4400, a NTAC havia sido a principal responsável por vigiá-los, e Tom e Diana tinham estado no centro de muitos dos mais tumultuados eventos envolvendo os retornados. Consequentemente, ambos os agentes tinham conquistado certa notoriedade; ou, em alguns círculos, infâmia. Como de costume, Diana permaneceu calma face à hostilidade. — Nós só queríamos agradecer, é isso. O homem musculoso e de cabelo cortado ao estilo militar ofereceu a mão a ela. — Estamos às ordens — ele disse. — Sou Jim Myers. E esta é minha parceira, Eva Lynd. — É um prazer — respondeu Diana, apertando brevemente a mão dele. Tom disse: — Se me permitem perguntar, como vocês conseguiram chegar aqui antes de nós? Eu pensei que Jordan havia concordado em deixar a NTAC defender as reservas de combustível da cidade. — E vocês fizeram um trabalho brilhante — disse Eva, lançando um olhar irritado na direção do inferno que ardia na extremidade norte da ilha.
Tentando atenuar o golpe verbal de Eva, seu parceiro, Jim, respondeu: — Recebemos uma dica sobre o ataque. — De quem? — perguntou Diana. Jim ergueu os ombros e sacudiu a cabeça, incitando Eva a franzir a testa e rolar os olhos de indignação. — Conte logo — disse Eva. — Ela vai descobrir mesmo, quando verificar as nossas ligações telefônicas — Jim lançou-lhe um olhar incisivo, mas ela o ignorou e continuou. — Foi a sua filha vidente, Maia — disse ela a Diana. — Ela nos preveniu sobre o ataque há uma hora. — Fazendo uma careta para o rastro de destruição, ela acrescentou: — Não que isto tenha feito muita diferença. Eva e Jim viraram-se e caminharam em direção ao norte, afastando-se da margem e de Tom e Diana, que ficaram e observaram-nos irem embora. Tom sentiu a tensão no silêncio de sua parceira e soube que Diana estava fervilhando com a revelação de Eva. Ele esperou que ela explodisse. Não demorou muito. — Quantas vezes eu disse a Maia que não falasse com o pessoal de Jordan? — ela perguntou retoricamente, sua voz pontuada de raiva. — Eu sei — Tom respondeu, tentando soar compreensivo. — Quantas vezes, Tom? Como poderia ser mais clara? Eu disse a ela para não falar com Jordan, ou com qualquer um do povo dele na Terra Prometida, nem mesmo aquela garota, Lindsey, com quem ela andava. Ele sabia que bancar o advogado do diabo seria arriscado, mas tentou mesmo assim. — Olhe, não é como se ela fosse uma traidora, Diana. Ela só estava tentando ajudar — ele ergueu seu queixo na direção do barco preso ao gelo. — E talvez ela estivesse certa. Se o pessoal de Jordan não tivesse estado aqui, aquele cara teria escapado. Diana respirou fundo. Fechou os olhos. Expirou devagar. Abriu os olhos. Quando ela falou, sua voz era calma; o que fez com que a fúria por trás de suas palavras fosse o mais assustador. — Tom, eu sei que o que você está dizendo faz sentido. Você está certo: sem o pessoal de Jordan, nós teríamos perdido o suspeito. Mas neste momento, eu não estou nem aí para isto. O que me interessa é que minha filha fez exatamente o que eu disse para ela nunca fazer. — Ela respirou fundo novamente, e depois acrescentou: — Eu vou para casa
agora, Tom. E quando eu chegar lá, terei uma conversa bem longa com Maia.
TRÊS JORDAN COLLIER ESTAVA de pé diante da janela em seu escritório no sétimo sexto andar. Ele olhava para sudoeste, além da Baía Elliot, para o inferno furioso que engolfara Harbor Island. As chamas duravam por quase uma hora, brilhando cada vez mais alto no céu que escurecia. O incêndio era refletido nas águas ondulantes. Houve uma batida na porta de seu escritório. — Entre — disse ele. A porta abriu-se e fechou-se. Em seguinte, houve passos. Refletido na janela estava Kyle Baldwin, um dos mais importantes assessores de Jordan, caminhando em sua direção. — Queria me ver? — Queria — respondeu Jordan. Seus lábios apertados mal escondiam sua fúria quando ele virou-se para encarar o rapaz de cabelos amarelados. — O que aconteceu lá embaixo? Kyle parou diante da mesa Jordan e curvou a cabeça. — Você está chateado por causa de Harbor Island. — Sim, eu estou — disse Jordan. — Pessoas morreram lá fora hoje, e não houve razão para isso. — Ele pegou um relatório de uma página e o sacudiu nervosamente. — Você nem ao menos me consultou antes de mandar nosso pessoal à territórios da NTAC. Você sabia que a ilha estava sob a jurisdição deles, Kyle. O que estava tentando fazer? — Salvar a vida deles — disse Kyle. — Tivemos uma informação de que um bando de cinquenta/cinquenta furioso estava indo para os tanques de combustível. Achei que se nos movêssemos rápido o suficiente, poderíamos impedir o ataque. — Ele fez uma pausa quando Jordan girou e olhou o espetáculo flamejante de cima a baixo através da janela. Virando os olhos, Kyle acrescentou: — Eu sei que falhamos. Jordan jogou o papel em sua mesa e então se sentou em sua cadeira. Ele passou a mão pela sua barba escura enquanto recuperava a compostura. — A maioria doa agentes da NTAC são p-positivos, Kyle, assim como nós, e são treinados para situações como essa. — Consternado, ele apertou o pulso. — A verdadeira tragédia é que todas essas pessoas morreram por nada. E se eles explodissem os tanques? Temos pessoas que podem transformar líquido no que quiserem: água potável, gasolina… — Promicina — interrompeu Kyle.
Jordan franziu as sobrancelhas. Levantando um dedo, ele continuou: — Não vamos falar sobre isso, Kyle. Não é o momento apropriado. Estamos cercados pelas forças armadas americana, e temos p-positivos experientes pela cidade inteira. A última coisa que quero agora é começar uma guerra contra o governo. — Você já está em guerra com o governo — retrucou Kyle. — Uma que eles começaram. Exasperado, Jordan levantou-se e caminhou até um armário de madeira que abrigava bebidas e alguns copos pequenos. — Acho que você e eu temos definições diferentes sobre guerra. Eu chamaria nossa situação atual de impasse. — Jordan abriu a porta do armário, que abaixou-se para dar lugar a uma prateleira. — Claro, Jordan, mas por quanto tempo? Você acha que o Exército vai esperar muito tempo enquanto preparamos nosso próximo passo? — Provocá-los não nos dará mais tempo. — O peculiar líder do Movimento Promicina Positiva abriu uma garrafa de whisky Glenmorangie Quinta Ruban e serviu-se uma dose generosa. Um dos privilégios de transformar a exilada antiga sede da Haspelcorp (que antigamente era conhecido como Centro Columbia, o prédio mais alto de Seattle) na Fundação Collier era que a nova base de operações de Jordan fora completamente mobiliada e generosamente estocada com luxúrias. Colocando a rolha novamente na garrafa, Jordan continuou: — De qualquer modo, já passamos das táticas de guerra. A diplomacia é nossa verdadeira mostra de força. Somente de uma posição de poder alguém tem a opção de negociar. — Ele sorveu o líquido âmbar e saboreou cada gota. Kyle aproximou-se de Jordan enquanto respondia: — Ótimo. Enquanto você está ocupado negociando, as Forças Armadas estão se preparando para nos mandar pro espaço. Precisamos começar a pensar em termos de “dividir e conquistar”. Se colocarmos promicina na água de seis ou sete cidades grandes, os forçaríamos a dividir o alvo deles. — E provavelmente mataríamos quarenta ou cinquenta milhões de pessoas — disse Jordan, imaginando quando seu jovem xamã se tornara tão agressivo em sua visão de mundo. Ele colocou sua bebida na mesa novamente. — Não é exatamente a receita para se ganhar corações e mentes.
— E daí? Você sabia antes mesmo de começar a distribuir que a promicina mataria metade das pessoas que a tomassem. Quando nove mil pessoas morreram no ano passado, você chamou isso de “O Grande Passo Adiante”. Então qual é o problema? Cinco milhões é um número muito grande? — O problema — replicou Jordan, seu tom afiado e indignado. — é que ninguém nunca foi forçado a tomar promicina. A habilidade viral de seu primo Danny foi um acidente, não parte do plano. — Ele pegou seu copo. — Já ocorreu a você que poderíamos construir um futuro onde aqueles que foram presenteados com promicina possam viver em paz com aqueles que não foram? Kyle virou-se e começou a caminhar em frente à mesa de Jordan, balançando a cabeça em uma negação amarga. — Sonhe à vontade, Jordan. Pessoas normais nos odeiam. Eles têm pavor de nós. Querem-nos mortos. — Alguns sim — admitiu Jordan. — Mas só porque as pessoas tendem a odiar o que têm medo, e ter medo do que não entendem. — Sentando-se novamente em sua cadeira, ele acrescentou: — Eu me recuso a aceitar que assassinato em massa seja a solução para o problema. Nossa guerra não é contra as pessoas do mundo, Kyle, ou contra seu governo. A guerra que temos que lutar é contra o preconceito. O jovem fungou pelo nariz. — Se você diz. — Sim, eu digo mesmo. E espero que você entenda. Um olhar carrancudo mostrou a rendição forçada de Kyle. — Você pode ir — disse Jordan, gesticulando na direção da saída. Kyle caminhou rapidamente, claramente ansioso para ficar longe de Jordan. Ele abriu abruptamente a porta do escritório. Ela bateu na com um baque surdo enquanto Kyle saía malhumorado. Enquanto a porta fechava-se lentamente, Jordan acomodou-se em sua cadeira e sorveu sua bebida. Ele imaginou, não pela primeira nos últimos meses, que Kyle poderia passar a ser um problema ao invés de ajuda. Quando o jovem viera procurá-lo no ano anterior, ele provara seu valor como um visionário. Kyle e sua invisível e inaudível guia espiritual feminino, Cassie, haviam ajudado Collier e seus seguidores a andar pelo difícil caminho em direção ao seu objetivo de transformar o mundo e cumprir a profecia de um melhor futuro para a humanidade. Porém, nos meses desde que haviam transformado Seattle no reduto de promicina conhecido como a Terra Prometida, Kyle ignorara os planos diplomáticos de Jordan e aprovara
táticas pesadas e às vezes até mesmo violentas. Jordan imaginava o quanto dessa mudança era vontade Kyle, e o quanto era de Cassie – se é que havia alguma distinção a ser feita entre eles. Até agora, Jordan fora capaz de manter seu irritado assessor mais velho sob controle, mas ele temia que esse tênue período de graça terminasse em breve. A porta começava a fechar-se quando foi aberta com um estalo. Depois uma batida rápida e baixa, seu assistente Jaime Costas colocou a cabeça para dentro da sala. — O senhor tem uma visita, Sr. Collier. Uma das pessoas da sua lista para o conselho de liderança. Acenando, ele disse: — Tudo bem. Jaime abriu a porta. Seu visitante adentrou a sala. Jordan ficou boquiaberto. Ele piscou os olhos de tanta surpresa. Abaixou sua bebida. Levantou-se e cumprimentou o hóspede com um aceno gentil. — Por favor, entre — disse ele, seu coração enchendo-se de esperança. — É uma honra.
QUATRO Diana Skouris abriu a porta de seu apartamento e retirou a chave da fechadura. Demonstrando seu estado de espírito, bateu a porta atrás de si e explodiu enquanto atravessava a sala. — Maia! — ela gritou, sua voz reverberando pelas paredes. — Venha já aqui! Ela estava mais do que aborrecida, mais do que zangada, e mergulhada em fúria irracional quando despiu a jaqueta e arremessou-a ao sofá. Havia tantas coisas que queria gritar para sua filha adotiva que não sabia por onde começar. Depois de todos os anos em que estiveram juntas, e todos os riscos que Diana correra, todos os sacrifícios que fizera para proteger Maia, ela sentia como se tivesse o direito de esperar da menina mais respeito do que esta demonstrava. Droga, eu já disse a ela mais de cem vezes para ficar longe de Jordan e do povo dele, bufava Diana, enquanto retirava seu coldre de ombro e depositava a arma no balcão da cozinha. Tudo o que os 4400 haviam feito por ela fora colocá-la em perigo – então porque ela é mais leal a eles do que a mim? Aquela questão retórica a perturbava quando abriu a geladeira e tomou nota das sobras disponíveis para o jantar daquela noite – do qual Maia poderia ou não ser autorizada a participar. O apartamento estava silencioso, exceto pelo murmúrio da geladeira. Diana não ouviu qualquer som de movimentação vindo do quarto de Maia. Não era surpresa para ela que Maia não estivesse com pressa de sair de lá e encarar os fatos, mas depois de todo o grito, todo o escândalo e mau humor que se seguiu ao decreto de Diana determinando que Maia cessasse todo e qualquer contato com Lindsey Hammond, sua amiga e companheira no Centro 4400, ela ao menos esperava ouvir Maia desafiar suas ordens com a música de Frank Sinatra. Ela provavelmente está assustada ou aborrecida, pensou Diana. Fechou a porta da geladeira e caminhou em direção ao quarto de Maia. — Maia? Estou falando sério: você tem que vir até aqui falar comigo. Não houve resposta. Diana passou pela porta e entrou no quarto da filha. Maia não estava lá. A cama estava feita, e pela porta aberta do closet deduzia-se que várias das roupas preferidas da menina não estavam mais lá. Também não se via o diário de Maia, que continha suas precisas e alarmantes visões do futuro. Oh, meu Deus. O medo tomou conta de Diana como se água gelada percorresse suas veias. Embora sua menininha tivesse agora treze anos de idade e não precisasse mais de uma
babá com ela em casa, Diana ainda tinha medo de que alguém tentasse levá-la. Qualquer um, desde os 4400 até alguém do governo, ou mesmo um maníaco qualquer, pareciam ter em pauta “a garota que conseguia ver o futuro”. Seu coração se acelerou, sua respiração se tornou curta e ofegante, enquanto procurava pistas pelo quarto de Maia. Não havia sinais de luta, nenhum bilhete. Aquilo era bom sinal, mas Diana ainda estava em pânico. Ela sentia a pulsação forte em suas têmporas. Travava uma batalha para manter a mente quieta, enquanto mil pensamentos terríveis surgiam ao mesmo tempo dos cantos mais obscuros de sua imaginação. Imagens de Maia amarrada, amordaçada, ou drogada e inconsciente na parte de trás de uma van. Ela se sentiu zonza, quase com vertigem, enquanto saía do quarto de Maia e zanzava pela casa como uma bola prateada de uma máquina de pinball, ricocheteando nos batentes e nas paredes, indo de seu quarto para o banheiro e voltando para o corredor, para a cozinha e depois a sala de estar. Então ela viu, no chão, em frente à televisão. Uma câmera de vídeo portátil. Havia um bilhete adesivo cor-de-rosa grudado nesta. Um fio ligava o aparelho à entrada lateral da TV plana digital de alta definição. Diana correu para a câmera e a pegou. O post-it tinha uma mensagem de duas palavras apenas, rabiscadas nas letras de forma características de Maia: ME ASSISTA. Deixando de lado a sensação torturante que vinha de seu estômago, Diana pegou o controle remoto da mesinha de centro e ligou a TV. Assim que a tela se acendeu, percebeu que o aparelho já estava ajustado para a entrada auxiliar. Ela ligou a câmera digital; a tela ficou azul e mostrou um contador zerado. Diana respirou fundo e apertou o botão do play. Uma imagem borrada tremulou na tela, depois ajustou o foco. Era Maia, sentada no sofá da sala de estar, exatamente onde Diana estava sentada assistindo à gravação. — Oi, mamãe — disse Maia na gravação. Ela afastou um cacho de seus cabelos cor de mel do rosto e continuou. — Se você estiver assistindo isto, provavelmente já descobriu que eu não estou em casa. Eu resolvi ir embora e ir ficar com Lindsey na Fundação Collier — Diana praguejou, murmurando entre dentes, enquanto o vídeo rodava. — Eu sei que você sabe que eu avisei o pessoal de Jordan sobre Harbor Island, e eu sei que você vai voltar para casa e gritar mais um pouco comigo, eu sinto muito, mas… – a menina rolou seus olhos azuis. — Eu estou cheia disso, tá bom? Então eu estou indo embora, o que sei que também vai te deixar furiosa. Mas não se preocupe em ficar zangada com Lindsey, porque isto não foi ideia dela, foi minha. — Ela desviou o olhar da câmera por vários segundos, quando um ar de culpa tomou conta de seu rosto inocente. Então tornou a encarar a câmera com uma expressão de remorso. — Eu te amo, mamãe, mas é lá que eu devo estar. Me desculpe. Tchau. Maia se inclinou para frente e estendeu o braço para a câmera. Um momento depois, a gravação terminou. Houve um momento de estática e chuvisco na TV, seguido pela tela azul
com o aviso de “sem sinal”. Diana apertou o botão “parar” e desligou a TV, e então sentou-se com o rosto entre as mãos por alguns minutos que pareceram horas. Emoções conflitantes cresciam dentro dela, competindo por espaço: sua raiva diante do desafio declarado de Maia contra seu medo pela segurança da filha; sua falha em controlar o comportamento voluntarioso de Maia enchia Diana de vergonha; e a sensação de que ela havia perdido o respeito da filha a deixava frustrada e amarga. O mais irritante de tudo é que não havia muito a ser feito no sentido de ajudá-la a trazer Maia de volta contra a vontade dela. Apesar de a menina ser menor de idade, não havia como Jordan permitir que Diana ou qualquer outra pessoa retirasse contra a vontade qualquer um dos 4400 de seu refúgio na Fundação Collier. A não ser que conseguisse convencer Maia a vir para casa por vontade própria, Diana teria de aceitar que a havia perdido para Jordan e sua quixotesca missão de disseminar a promicina ao redor do globo. Seu rosto parecia em brasa, corado pela raiva de sua própria impotência. Ela se levantou, andou até a cozinha e abriu a água fria na pia. Colocando as mãos em concha sob o jato fresco, ela as encheu e jogou no próprio rosto, depois bateu algumas vezes as palmas molhadas em sua nuca. Ela estava apenas começando a recobrar um resquício de calma, quando o telefone tocou. Depois de enxugar as mãos e o rosto com um pano de prato limpo, ela o atendeu. — Alô? — Diana? É o Tom. A Meghan quer nos mandar ao Centro 4400 imediatamente. Passo aí para te pegar em mais ou menos dez minutos. — Por quê? O que está acontecendo? — É o Jordan. — Tom disse, parecendo preocupado. — Ele acabou de marcar uma reunião.
CINCO METADE DA ATENÇÃO de Tom estava no volante, e a outra metade na falação de Diana. — É sério, Tom, estou farta das atitudes da Maia — disse ela parecendo ainda mais furiosa do que estava apenas uma hora atrás em Harbor Island. — Fugir é uma coisa, mas ir direto para o alvo? Ela ficou louca? Ele levantou a cabeça e deu um sorriso fraco. — Às vezes acho que somos todos loucos por ficarmos aqui. Diana não disse nada; apenas ficou olhando pela janela para a agitada vida noturna de Capitol Hill. Era uma noite quente de verão, e as calçadas fervilhavam de gente. Uma leve brisa trazia o cheiro fraco de fumaça de cigarro e café fresco até o carro. O bairro — uma mistura de condomínios baratos no estilo de apartamentos e algumas das mais elegantes mansões — há muito tempo vinha sendo o centro de contracultura de Seattle. Nos anos 90, alguns diziam que sua abundância de lanchonetes e bares fora a razão do nascimento da música e da moda grunge¹. Até mesmo agora, depois que Jordan tomara a cidade, quase nada mudara. Tom nunca se sentira confortável andando por aqueles lados de Seattle, mas ele admirava sua resiliência. Tom virou o Sedan da NTAC à esquerda na rua Easter Galer, passou pela esquina sudoeste do Parque Interlaken, pela estrada Crescent de três pistas, e pelo caminho para o Centro 4400. Quatro anos antes, o prédio pré-modernista branco fora o Museu Collier, um modesto, porém de grande importância, repositório de arte moderna. Depois da volta dos 4400, Jordan o convertera em um abrigo seguro e ponto de encontro para os retornados. Com jardins meticulosamente enfeitados no fundo e flanqueados nos três outros lados pelo estacionamento, o lugar era um oásis necessário na cidade. Durante a usurpação de Jordan do governo local, o Centro também servia como um “território neutro” onde ele e representantes da NTAC podiam se encontrar. Outro Sedan de quatro portas comum estava estacionado na fachada do prédio. Uma das duas encarnações de Jed Garrity estava em pé ao lado de Meghan Doyle, a diretora da sede em Seattle da NTAC, que desde que chegara tornara-se a namorada “não-tão-secreta “de Tom. A loira aproximou-se da lateral do carro de Tom enquanto ele estacionava em uma vaga e desligava o motor. Enquanto ele e Diana saíam do carro, o comportamento de Meghan era estritamente profissional. — Collier ainda não disse sobre o que isso se trata. — Que surpresa — disse Tom sarcasticamente. Enquanto os quatro integrantes da
NTAC caminhavam uma calçada de cimento até a entrada co Centro, Tom acenou para Jed, seu colega de longa data. — E aí, JV? As iniciais eram a abreviação do apelido de Jed, “Jed Vermelho”. Depois que a epidemia de promicina no ano anterior o infectara, ele manifestara uma habilidade 4400 incomum: uma cópia de si mesmo. A princípio, ninguém o que fazer com a réplica de Jed; alguns o aceitavam como um simples clone. Mas depois que um dos Jeds morrera em uma batalha, uma duplicada exatamente igual do Garrity assassinado aparecera a quilômetros de distância, levando o poço de pensamentos da NTAC, Marco Pacella, à hipótese de que a habilidade Jed era uma cópia segura de ele mesmo. Se algo acontecesse a ele, uma nova cópia aparecia em algum lugar seguro. Jed a chamava de “uma habilidade estranhamente inútil”. Marco a chamava de “apólice de seguro final”. Atualmente o único jeito de distinguir as duas cópias idênticas, mas separadas, de Jed era a cor de suas gravatas: um usava somente gravatas vermelhas, e o outro somente azuis. Mas ninguém na NTAC gosta de dizer Jed Vermelho por causa da sonoridade, e Jed Azul trouxera muitas piadinhas com Jedzul. Então agora eles eram JV e JA. Quando a porta de entrada do Centro se abriu diante deles, liberando uma lufada de cheiro de limpeza e ar fresco do interior do prédio, Tom notou pela primeira vez o quão mal ele cheirava. Entre o massacre em Harbor Island e a papelada que se seguira, ele não tivera tempo para tomar banho ou trocar suas roupas, que estavam imundas e fedendo a suor. O chefe executivo do Centro, Shawn Farrel, saiu para recebê-los. — Obrigado por virem mesmo com o aviso de última hora — disse o jovem de cabelo loiro curto a Meghan. Apertando a mão de Tom, ele acrescentou: — É bom vê-lo, também, tio Tommy. — Você também, Shawn — disse Tom. — Vamos entrar — disse Shawn, acenando para que eles o seguissem para o interior do Centro. — O Jordan e o pessoal dele estão aguardando. Do lado de dentro, seus passos ecoavam no chão encerado do pátio principal. Enquanto seguiam Shawn para a sala de reuniões do primeiro andar, Tom ficou surpreso pelo fato de que seu sobrinho, que fisicamente tinha vinte e um anos (vinte e quatro, se se contasse os anos que ele ficara desaparecido durante sua abdução), o guiava com a confiança e a magnificência de um homem mais velho. Apenas alguns anos antes, seria impossível encontrar Shawn usando outra coisa senão jeans, camisetas e tênis; agora ele sentia-se confortável em um terno Armani e sapatos italianos feitos à mão. A responsabilidade forçada o forjara um verdadeiro líder da comunidade 4400. Susan se orgulharia dele, refletiu Tom, antes que a lembrança da morte prematura de sua irmã durante o 50/50 estragasse o momento de orgulho do seu filho.
Shawn abriu a porta dupla da sala de reuniões. Uma longa mesa de madeira escura estendia-se diante dele e dos agentes da NTAC. À direita de Tom, de pé ao centro da mesa, estava Jordan Collier vestido casualmente. Ao lado dele estavam dois conselheiros: o filho de Tom, Kyle, e para a surpresa de Tom, o telepático Gary Navarro. Com a ajuda de Tom, o exjogador negro de baseball se exilara alguns anos antes, para fugir de uma vida de servidão forçada à Agência de Segurança Nacional. Essa era a primeira vez que Tom via Gary desde a noite que ele fugira. De pé atrás de Jordan estava a sua nova assistente executiva, uma mulher pequenina na casa dos vinte anos chamada Jaime Costas. À esquerda de Jordan estava um rosto que Tom não esperava ver essa semana: Maia Skouris. A garota de treze anos sussurrou algo a Jordan enquanto a equipe da NTAC entrava e se posicionava do lado oposto a eles, no outro lado da mesa. Um minuto depois, enquanto todos ainda se olhavam, Jordan acenou para que Shawn se aproximasse, passou outro sussurro confidencial, e então Shawn contornou a mesa com uma expressão envergonhada no rosto. Tom ouviu quando ele se inclinou na direção de Diana e disse suavemente: — Sinto muito por isso, mas receio que tenha de pedi-la para esperar do lado de fora. Diana lançou um olhar furioso a Shawn, que levantou as mãos e se afastou dela, arrependido. Então ela virou-se para Maia, que evitou seu olhar, carrancuda. Era arduamente óbvio que tal momento constrangedor era coisa da garota. — Tudo bem — disse Diana, não mais contendo sua raiva. Quando ela se virava, Tom a parou com um toque gentil no braço. Ele baixou a voz: — Falarei com ela por você. — Não se preocupe com isso — respondeu Diana. Ela saiu da sala a passos rápidos e furiosos e deixou a porta bater às suas costas. O impacto ecoou pela sala de reuniões, um resquício da memória de fúria. Meghan se concentrou em Jordan. — O que você quer? — Primeiramente, me desculpar por Harbor Island — disse ele. Tom cruzou os braços e acenou com a cabeça na direção da porta por onde saíra Diana. — Não começou muito bem.
Jordan continuou, embaraçado. — Os policiais da paz da Terra Prometida foram lembrados de que a NTAC tem jurisdição sobre Harbor Island… — Sobre o que sobrou dela — interrompeu J.V. Jordan fez uma pausa, depois continuou: — O fogo cruzado de hoje a noite foi resultado de uma falta de comunicação pela qual eu assumo a responsabilidade. — Que engraçado — disse Tom, fixando o olhar em Maia, que o olhava sem piscar. — Pensei que fosse o resultado de alguém te dando um aviso sem autorização. Kyle entrou na conversa: — Não importa de onde veio o aviso, pai. O que importa é que estávamos tentando salvar vidas. — Tudo bem — disse JV. — É por isso que você e o seu pessoal estavam usando força mortal lá fora? Para salvar pessoas matando elas? — Nunca mandei alguém usar força mortal — disse Kyle. — Só falei que eles deviam se proteger. Tom jogou sua ira no filho: — Isso foi decisão sua? — Não estamos aqui para jogar as culpas — disse Jordan, levantando uma mão para amenizar a discussão ascendente. — O que importa agora é que trabalhemos juntos para manter o povo da Terra Prometida a salvo e prevenir que eventos como esse aconteçam novamente. Meghan balançou a cabeça, mas franziu o cenho suspeita: — E como propõe que façamos isso? — Os russos chamam de glasnost — disse Jordan. — Abertura. Dividiremos as visões da Maia em troca de uma discussão aberta sobre das intenções do governo americano acerca da Terra Prometida, e sobre as identidades promicina-positiva pelo mundo. Virando os olhos e soltando um pesado suspiro, Meghan disse: — Isso não vai virar em Washington, você sabe disso.
Olhando para Meghan, mas falando com Jordan, Gary interrompeu: — O que ela quer dizer é que a NTAC de Seattle está sendo cortada. Washington está deixando-os no escuro, eles não têm nada a oferecer. Tom segurou-se para não xingar o telepata. Ao invés de fazê-lo, ele fechou a mão esquerda atrás de suas costas. Meghan virou-se e caminhou na direção da porta. — Terminamos por aqui — disse a Jordan. — Da próxima vez que quiser uma reunião, deixe o leitor de mentes em casa. JV seguiu-a na direção da saída. Jordan e o sua equipe foram na direção oposta, na direção de uma porta diferente que levava a outra parte do Centro. — Me espere lá fora — disse Tom a Meghan, então passou por ela e por Jed para contornar a mesa e alcançar Maia. Ele parou a adolescente antes que ela chegasse à porta. — Maia, espere um pouco — disse ele, tentando parecer diplomático. Maia parou na soleira da porta e virou-se para encará-lo. Seu olhar era severo, e seu rosto começara a substituir as feições rechonchudas de uma criança pela fisionomia fina de uma mulher atraente. Atrás dela, Jordan, Kyle e Gary estavam olhando e ouvindo. Tom esforçou-se para ignorá-los. — Eu sei que você e sua mãe estão com problemas no momento, mas acho que fugir não vai ajudar em nada. Você acha? — Sim, acho — disse ela e começou a virar-se. Ele apertou o ombro dela gentilmente. — Espere — disse. Então ele viu os três homens olhando fixamente e soltou-a. Maia olhou para trás e esperou-o falar. — Qual é? — disse ele. — Sua mãe está preocupada com você. E, sim, ela está furiosa, e eu entendo se você talvez não quiser ir para casa hoje… mas será que não poderiam ao menos conversar antes que ela vá embora? Maia pareceu considerar a ideia por um momento. Então seus olhos se tornaram frios e sem misericórdia. Com um desprezo maior do que sua idade, ela disse: — Não há o que conversar. — Então saiu pela porta sem se desculpar ao batê-la na cara de Tom.
Poderia ter sido melhor, repreendeu-se ele. Baixou a cabeça, soltou um suspiro desanimado e imaginou o que ia contar à sua parceira. Olha, não se sinta mal, Diana — agora nós dois temos filhos que trabalham para Jordan Collier. Notas: ¹Grunge (às vezes chamado de Seattle Sound, ou Som de Seattle) é um estilo musical independente que se tornou bem-sucedido comercialmente no início da década de 1990. O grunge é uma ramificação do hardcore, heavy metal e rock alternativo do final dos anos 1980 e começo da década de 1990.
SEIS 22 DE JULHO DE 2008 Dennis Ryland, Vice-Presidente Executivo da Corporação Haspelcorp, desceu de seu jato particular para a claridade ofuscante do sol da manhã nas salinas brancas. As turbinas gêmeas do Gulfstream G650 profanavam o silêncio do deserto de Nevada com seu lamento intermitente. Apenas alguns meses antes de seu sexagésimo sexto aniversário, Dennis sentia como se o sol estivesse consumindo preciosos anos de sua vida nos segundos que levou para descer os degraus da escada para a pista de decolagem. A temperatura havia atingido 45 graus Celsius, e o calor árido evaporava o suor de seu rosto antes que pudesse escapar dos poros. Inalando o causticante ar do deserto profundo, ele se recordou de um dos seus diálogos favoritos do cinema clássico, do épico “Lawrence da Arábia, de David Lean.” Inquirido sobre o porquê de ele gostar tanto do deserto, Peter O’Toole havia respondido com sua secura característica: “Porque é limpo”. O asfalto irradiava calor através das solas dos sapatos de Dennis. Ele apressou o passo e amaldiçoou o protocolo que determinava que usasse paletó e gravata, mesmo naquele círculo do inferno. Uma brisa sufocante desgrenhou seu cabelo ainda escuro, mas quase grisalho, quando ele alcançou a porta de uma cabana de madeira castigada pela areia, de telhado de folha de estanho corrugado enferrujada. Para um observador casual, a pequena construção caindo aos pedaços parecia estar prestes a ser carregada pela próxima tempestade de areia. Aquela impressão era inteiramente proposital. Ele abriu a frágil porta de madeira e adentrou a sombra abafada de um vestíbulo onde mal caberiam duas pessoas em pé. A porta externa fechou-se atrás dele. Por um momento houve apenas a débil iluminação da luz do dia, que espreitava através das frestas ao redor da porta. Então um painel deslizou de dentro da parede em frente a Dennis, revelando a face brilhante e verde do leitor de mão — o primeiro de três dispositivos de segurança biométricos que ele deveria satisfazer para conseguir entrar no laboratório secreto e não-oficial de pesquisa de armamentos da Haspelcorp. Ele colocou a mão no painel e esperou. O aparelho zumbia enquanto um feixe luminoso passava de um lado a outro, lendo a palma de sua mão. Uma voz sintética vagamente feminina, mas essencialmente neutra, declarou através de um alto-falante oculto:
— Prepare-se para a leitura de retina. Esta era a parte menos agradável do procedimento; a luz verde esmeralda sempre o deixava vendo pontinhos pretos por alguns minutos após a leitura. Ele respirou fundo, encarou o leitor de retina para sua necessária semi-cegueira, e se esforçou para não piscar. Quando acabou, a voz sintética disse: — Declare seu nome e código de autorização para autenticação por leitura de voz. — Ryland, Dennis. Código de autorização Whisky-Tango-Foxtrote, três, um, seis, sete, seis. Ele mesmo havia escolhido seu código. As palavras eram uma jovial demonstração de desprezo velado por seus superiores; os números eram a data de nascimento de sua filha Nancy. — Leitura de voz e código de autorização autenticados. O painel de segurança escureceu. Uma sequência de travas magnéticas por detrás deste foi desabilitada com ruídos e cliques tediosos. Então a parede moveu-se, afastando-se dele, permitindo acesso a um curto corredor que levava a um pequeno elevador. Assim que ele adentrou o corredor climatizado, seu rosto ficou ensopado de suor. Agora que o ar ao seu redor estava agradavelmente fresco, ele percebeu o quão acalorado se sentia. Dennis pegou um lenço do bolso e limpou o suor brilhante de seu rosto e de sua nuca. Ele entrou no elevador e apertão o botão para o subterrâneo protegido. As portas se fecharam, e a cabine desceu com um murmúrio suave e quase nenhuma vibração. Levou meio minuto para completar a descida. O laboratório ficava a quase cem metros abaixo do solo e protegido pelos mais modernos dispositivos de segurança e tecnologia antiespionagem. Finalmente, o elevador reduziu e parou com um baque suave. As portas se abriram. Dennis adentrou um espaço amplo. Brilhantemente iluminado e imaculadamente limpo, suas áreas de trabalho eram divididas em densos paineis de 10 centímetros de espessura, feitos de AION – oxinitreto de alumínio, um polímero claro de cerâmica, oticamente equivalente ao vidro, mas forte o suficiente para ser usado pelos militares como uma espécie de armadura transparente para janelas de tanques e aeronaves. Ocupavam a maior parte do espaço do laboratório os mais avançados equipamentos automáticos de pesquisa e fabricação já inventados. A Haspelcorp havia comprado uma série de patentes promissoras de inventores desconhecidos e depois segregado os frutos daqueles trabalhos em lugares como aquele. Onde quer que se olhasse havia máquinas em operação. Flashes de luz brancaazulada e chuvas de faíscas dançavam até onde a vista alcançava. Motores zumbiam,
dispositivos hidráulicos arfavam e geradores rugiam, vagarosa e continuamente. Braços robóticos moviam peças de um lado para outro, lapidando minúsculos componentes até a especificação exata, e modelando os detalhes microscópicos de novos microchips. Telas cheias de dados rolavam ininterruptamente em enormes monitores de computador. Odores de ozônio e metal aquecido preenchiam o ar. E pensar, meditou Dennis, com um leve sorriso, que três meses atrás este laboratório estava vazio. A Haspelcorp tinha estado a ponto de desmanchar o laboratório antes de Dennis intervir. Na esteira do escândalo que eclodiu depois que a Haspelcorp foi revelada como a verdadeira fonte da promicina que Jordan Collier roubara e distribuíra ilegalmente pelo mundo, o Departamento de Defesa revogara muitos dos contratos de pesquisa de defesa mais lucrativos da companhia. Sem eles, este laboratório parecia não ter mais razão de ser; sua manutenção tinha se tornado apenas mais uma dívida no balancete da empresa. Oficialmente, o laboratório ainda se encontrava inativo. As únicas pessoas que sabiam que estava de volta à ativa eram Dennis e o trio de cientistas que agora tinha acesso exclusivo ao mesmo. Eles haviam procurado Dennis dois meses antes, com uma proposta tão surpreendente e tentadora que, se ele tivesse recusado, jamais teria perdoado a si mesmo. Eles haviam dito que poderiam livrar o mundo da promicina. Quarenta e oito horas depois, após um turbilhão de reuniões clandestinas e memorandos confidenciais, Dennis os havia instalado ali, naquele laboratório, com todos os recursos da Haspelcorp secretamente à disposição deles. Hoje ele pretendia descobrir o que, precisamente, sua generosidade havia comprado. No centro do amplo espaço subterrâneo, os três pesquisadores, em seus jalecos brancos, estavam reunidos em torno de uma grande mesa de trabalho de cerâmica, na qual repousava um dispositivo cilíndrico. A metade superior de seu invólucro havia sido removida, revelando um complexo amálgama de fios, circuitos impressos e componentes blindados. Uma miríade de peças minúsculas e ferramentas de precisão bagunçava a mesa. O cientista-chefe levantou o olhar quando Dennis se aproximou. Ele interceptou Dennis e estendeu-lhe a mão. — Senhor Ryland! Obrigado por vir. Trouxe as amostras do LHC1? Ele apertou a mão do homem. — Sim, Doutor Jakes, eu trouxe. Notando que Dennis havia chegado de mãos vazias, Jakes arqueou uma sobrancelha e esboçou um sorriso irônico e travesso. — O senhor as está escondendo em algum lugar sobre o qual eu não quero saber?
— Elas ainda estão no avião – disse Dennis, largando a mão do homem mais novo. — Antes de entregá-las, acho que precisamos conversar um pouco mais sobre este seu projeto. Começando por como você conseguiu ensinar à equipe do Grande Colisor de Hadrons a fazer um elemento que até ontem era apenas teoria. — Esta teoria tem sido a base de toda a minha carreira, senhor Ryland — disse Jakes. Ele retornou à mesa de trabalho e acenou com a cabeça para Dennis segui-lo. — E uma geração de cientistas antes de mim dedicou suas vidas a desvendar seus segredos. A maior parte do trabalho foi feita antes do meu envolvimento. Metaforicamente falando, eu apenas tive sorte de subir nos ombros dos gigantes. Em pé diante da mesa com os três cientistas, Dennis olhou desconfiado para a geringonça high-tech murmurante que eles estavam construindo. — Muito bem — disse ele. — Mas eu não acho que vocês gostam da posição em que me colocaram. Uma descoberta como esta não pode ser mantida debaixo do tapete. Os camaradas do CERN vão enlouquecer com isto, e isto já está no radar da Segurança Nacional. Trazer aquela amostra de antimatéria da Suíça custou quase um bilhão de dólares à Haspelcorp. Mantê-la em segredo vai custar outro bilhão. Então, antes de entregá-la a vocês, preciso saber por que a querem. Sacudindo a mão por sobre a semi-finalizada invenção na mesa, Jakes respondeu: — Para fazer isto funcionar. — Explique-me. Em palavras simples. Jakes acenou com a cabeça para sua colega loira, Doutora Kuroda. Dennis supôs que “Kuroda” seria seu sobrenome de casada, mesmo nunca tendo visto uma aliança em sua mão, o que não era incomum para pessoas que trabalhavam em laboratórios de artefatos de precisão como aquele. Kuroda pousou suas mãos no aparelho. — Nós precisamos daquele elemento porque, quando bombardeado com radiação bariogência, emite partículas alfa de alta energia. Por ser um elemento superdenso e estável, tanto com capas de prótons fechados como com capas de nêutrons fechados, pode servir a estas funções por vários meses. A radiação que emite vai destruir os laços monoaminicos da promicina, sem afetar outros tecidos orgânicos. Dennis massageou a testa para evitar a iminente dor decabeça. — Eu pedi termos simples — reclamou ele. O terceiro cientista, um homem afro-americano chamado Wells, respondeu:
— Isto é uma bomba de nêutron para promicina. Ela tira os poderes, mas deixa as pessoas ilesas. — Isto eu entendi — disse Dennis. — Qual é o alcance e a área de efeito? Wells trocou olhares com Jakes e Kuroda, e então disse: — De uma plataforma aérea a um limite de vinte milhas, você pode atacar uma cidade grande com duas rajadas em cerca de cinco minutos. — Bom — aprovou Dennis. — Isto é muito bom. As pessoas no solo sentirão alguma coisa? — Nada mesmo — declarou Jakes, voltando à conversa. — Eles não saberão o que aconteceu até tentarem usar seus poderes de promicina; então descobrirão que eles não existem mais. Dennis imaginou o sorrisinho orgulhoso de Jordan Collier transformando-se em uma expressão de horror. Tal pensamento fez surgir um sorriso em seu rosto. — Quanto tempo falta para termos um protótipo funcionando? Jakes deu de ombros. — Do momento em que você nos entregar as amostras? Talvez dois ou três dias, salvo contratempos ou interferências. — Excelente — vibrou Dennis. Ele pegou o telefone. — Vou mandar a minha equipe trazê-las. — Digitou um número da Haspelcorp que o ligaria diretamente à equipe no avião. Enquanto esperava atenderem, ele disse para os cientistas: — Trabalhem rápido. Talvez precisemos disto mais cedo do que esperávamos. — Não se preocupe, senhor Ryland — disse Jakes, com um sorriso beatífico. — Logo o mundo estará completamente de volta ao normal. Nota: 1 LHC – Sigla de Large Hadron Collider, o Grande Colisor de Hadrons, o maior acelerador de partículas e o de maior energia da atualidade, hospedado no CERN (Organização Européia para Investigação Nuclear), na fronteira franco-suíça.
SETE — NÃO LIGO QUE tenham sido feitos com uma habilidade 4400 — disse Tom Baldwin enquanto adentrava o escritório que dividia com Diana na NTAC. — Estes são os melhores donuts de baixa caloria que já comi. Ele colocou dois donuts enrolados em guardanapos e um copo do café feito no escritório em sua mesa, então abriu uma gaveta e tirou um pequeno frasco de pílulas ubiquinonas. As “U-pills”, como eram comumente conhecidas, eram um suplemento dietético que conseguia repelir o vírus da versão aérea de promicina. Embora não tivesse ocorrido nenhuma denúncia de casos 50/50 desde o incidente com Danny Farrel no ano anterior, Tom não arriscava, especialmente depois que a cientista da NTAC Abigail Hannicut tentara replicar os vírus alguns meses antes, como um prelúdio para uma nova pandemia. Ele jogou uma pílula na boca e a engoliu com um gole do café. Na mesa da frente, Diana sentava-se desleixada em sua cadeira — coisa que ela raramente fazia desde quando ela e Tom começaram a trabalhar juntos. Ela olhava para a parede do fundo da sala, carrancuda. Tom sabia o que a estava incomodando, mas ele esperava que conseguisse mudar de assunto. — Quer um donut? Sua voz não era mais do que um resmungo: — To sem fome. — Que tal um copo de café? Já tomou cafeína hoje? Ela chutou seu balde de lixo de plástico pelo espaço vazio entre as mesas deles. O objeto parou diante da perna de Tom. Ele olhou para baixo e viu quatro copos de papel vazios manchados de café. Um aroma suave de café queimado emanava do balde. — Acho que sim — disse Tom. Vendo que ficar em silêncio talvez fosse a coisa mais sensata a fazer, ele recostou-se à sua cadeira, ligou seu computador e deu uma mordida em seu donut. Mastigou três vezes antes que Diana falasse. — Mas que droga, Tom, como a Maia pôde fazer isso comigo? Ele fez força para engolir a comida parcialmente mastigada, tomou um gole do café quente e suspirou. — Eu não… — Quero dizer, ela sempre foi uma boa filha, entende? Meiga, educada, sensata, obediente. — Diana balançou a cabeça confusa, então Tom fez o mesmo com a sua por simpatia. — E madura! Houve vezes em que ela parecia mais crescida do que a minha irmã
April. Ele teve que rolar os olhos. — Grande parte das pessoas é mais crescida do que April. Ela concordou com uma leve inclinação de cabeça. — É verdade. Mas eu esperava coisas melhores da Maia. E do nada ela ficou toda irritada e reservada o tempo inteiro. Ela não falava comigo. Ficou teimosa, também. Cheia de vontade. Rebelde. E agora isso? Juntando-se com Jordan contra mim? Fugindo para a Terra Prometida? Eu simplesmente não entendo, Tom. Que diabo aconteceu? Todo parecia tão familiar que ele teve que sorrir. — Isso se chama adolescência, Diana. Você agora é a mãe orgulhosa de uma garota de treze anos. Minhas condolências. — Ele estendeu um de seus doces entre seus monitores, pelo espaço vazio entre suas mesas adjacentes. — Pega um donut. O gesto simples, mas sincero, teve um efeito sentimental em Diana, e um sorriso torto de alegria iluminou seu rosto enquanto ela aceitava o donut. — Obrigada — disse ela. — Faz parte do serviço — respondeu Tom. Ele deu mais uma mordida em seu donut, determinado a aproveitá-lo dessa vez. Um alerta piscou na tela de seu computador. Um alarme gutural chiou das caixinhas de som. Era um aviso de que sinais importantes e de alta prioridade para a segurança doméstica tinham acabado de ser interceptados pelos novos filtros de dados online da NTAC. Á sua frente, barulhos e luzes semelhantes indicavam que Diana estava vendo a mesma coisa. Do lado de fora do escritório, ecos do alarme enchiam os cubículos dos agentes juniores. Mas que droga, pensou Tom, engolindo sem saborear outro pedaço de seu café da manhã. Ele e Diana entraram em ação, tentando captar os sinais para análise. Não havia nada lá. — Diana, tem alguma intercepção na sua tela? — Não, nada. — A cada tecla que batia no teclado e a cada clicada no mouse, ela enrugava a testa preocupada. — Pensei que tinha algo nos canais internos, mas quando tentei seguir apareceu “Não Encontrado”. — Aconteceu a mesma coisa comigo — disse Tom. Sua frustração só aumentava enquanto ele seguia fantasmas digitais pelo sistema de vigilância da NTAC.
Um dos Jeds inclinou-se por entre a porta do escritório, sua gravata azul balançando como um pêndulo sob sua cabeça. — Vocês pegaram o alerta de intercepção? — O alerta, sim — disse Tom, seus dedos voando pelo teclado. — A intercepção nem tanto. — A mesma coisa aqui fora — disse J.A. Meghan apareceu por trás dos ombros dele e apertou-se para entrar na sala. — Desculpe — disse ela, e ele acenou aceitando a desculpa breve da moça. Para Tom e Diana ela disse: — O que está acontecendo? Com os olhos abertos de frustração, Diana levantou o olhar de sua tela para responder a Meghan: — Alguma coisa fincou um monte de bandeiras vermelhas nos servidores da Segurança Doméstica, mas não tem nada nos logs¹. É a maior falha que o sistema já teve ou algo muito estranho acabou de acontecer. — E os nossos backups automáticos? — perguntou Meghan. Tom balançou a cabeça. — Nada chegou assim tão longe. O que quer que tenha ativado o alarme conseguiu fugir antes que nosso sistema visse. Olhando por sobre o ombro de Meghan, J.A. perguntou: — E agora? Um olhar divergente trespassou pelo rosto de Meghan. — Talvez não tenhamos um arquivo desse dado, mas aposto que a NSA tem. Vou cobrar um favor de um velho conhecido, ver se conseguimos colocar as mãos no original. — Ela bateu no batente de madeira da porta para ter sorte e então saiu para o seu escritório. Tom, Diana e J.A. trocaram olhares desconfiados momentos depois da saída de Meghan. Diana quebrou o silêncio. — Não é ilegal a NSA trocar informações internas conosco?
— De volta ao trabalho — disse J.A., inteligente demais por tentar não responder aquela pergunta. Ele saiu andando e voltou para o seu próprio escritório. Ainda esperando uma resposta, Diana olhou por sobre as mesas adjacentes para Tom, que pegou seu donut e seu café. — Nem olhe para mim — disse ele. Mordeu seu donut e acrescentou com a boca cheia de chocolate. — Eu só trabalho aqui. Notas: ¹Em computação, Log de dados é o termo utilizado para descrever o processo de registro de eventos relevantes num sistema computacional. Esse registro pode ser utilizado para restabelecer o estado original de um sistema ou para que um administrador conheça o seu comportamento no passado. Um arquivo de log pode ser utilizado para auditoria e diagnóstico de problemas em sistemas computacionais.
OITO Maia Skouris estava achando difícil se concentrar no que sua tutora dizia, porque se distraía com visões da moça ensanguentada e morrendo nos braços de alguém. — Desculpe — disse Maia. — Qual era a pergunta? A tutora, Heather Tobey, franziu a testa em suave reprovação e então repetiu a questão. — Qual é a Nona Emenda da Constituição dos Estados Unidos? Professora formada, Heather era uma dos 4400 originais. Ela havia sido agraciada com a habilidade de estimular o talento inato de outras pessoas até seu potencial máximo. Às vezes era um processo lento. Quando Maia viu a nota que havia recebido em seu teste de ciências humanas, entretanto, ela havia concluído que não tinha nenhum talento oculto para entender História Americana. — A Nona Emenda — começou Maia, e então deixou a própria voz falhar, tentando ganhar tempo. — É… Ahn… A que diz que o álcool é ilegal? A testa franzida de Heather transformou-se em uma expressão de mau humor. — Não — respondeu ela. — Essa é a Décima Oitava Emenda. Nós ainda estamos na Declaração dos Direitos. — Suavizando seu semblante, ela explicou com tom profissional. — Mesmo os revisores da Constituição sabiam que não poderiam pensar em tudo. E não queriam que ela fosse usada contra as pessoas. Então eles se precaveram contra o quê? Vasculhando sua memória, Maia achou a primeira metade da resposta, que ela desembuchou na esperança de se livrar do resto desta. Citando o texto, ela disse: — A enumeração de certos direitos, na Constituição, não deve ser utilizada para… Quando ela parou para desencavar o resto da sentença, outro quadro terrível preencheu sua visão momentaneamente. Sombras dançam em um quarto escuro, iluminado apenas por chamas escarlates. O chão brilha de cacos de vidro e está pegajoso de sangue. A fumaça toma conta do lugar, densa e fatalmente. Um rugido sombrio abafa vozes distantes, cheias de medo e tristeza. Então vem um som lancinante: o pranto de um jovem. Heather jaz em seus braços; a luz em seus olhos se extingue, sangue escorre de sua boca e pinga de grandes ferimentos em seu peito e estômago… — Vamos lá — disse Heather. — Você consegue terminar isto.
Era assustadora a sensação de conversar com alguém a quem havia acabado de ver às portas da morte, mas Maia já havia passado por aquilo tantas vezes que conseguia disfarçar. Forçando um semblante calmo, ela simplesmente disse: — … não deve ser utilizada para destruir ou desmerecer outros direitos pertencentes ao povo. — Excelente — aprovou Heather. Ela começou a juntar seus livros e papeis. — Nosso tempo acabou por hoje, mas se esta questão tivesse caído no seu teste, você teria tirado um B-menos, ao invés de um C-mais — guardando suas coisas em uma mochila, ela continuou. — Mas vou te dizer uma coisa. Se você puder escrever um texto de duzentas palavras sobre a importância da Nona Emenda e me entregar amanhã, vou aumentar sua nota para B. — Heather pendurou a mochila no ombro. — Combinado? Maia concordou com a cabeça. — Combinado. — Ótimo — aprovou Heather. Ela caminhou até a porta da suíte de Maia, e a menina a acompanhou, parando alguns passos atrás dela. A tutora abriu a porta, e enquanto saía do quarto sorriu e se despediu. — Até amanhã! — acenou simpática e então se foi. Acenando em resposta, Maia forçou um sorriso, depois fechou a porta do quarto e a trancou. Escorando as costas na porta, ela soltou um suspiro de alívio. Não era nada fácil prever a morte de alguém de quem gostava, e ela já havia testemunhado isto muitas vezes. Mais do que já havia contado, mais do que jamais admitiria. Tinha apenas treze anos de idade, e já sentia como se tivesse toda uma vida de segredos. Ela cambaleou, com passos pesados, através da suíte residencial que Jordan tinha colocado à sua disposição. Localizada num andar alto do Edifício Collier, seu apartamento era bem maior do que aquele em que havia morado com Diana, e decorado com mais requinte. Havia várias mesas de vidro, estofados de couro claro, aço inoxidável e granito polido. Tudo era reluzente e perfeito. Havia até uma cama king size só para ela. O luxo de suas acomodações não se resumia à suíte em si. Havia um serviço de quarto vinte e quatro horas que se podia chamar pelo telefone, uma equipe de tarefas domésticas para lavar sua louça e sua roupa, e até se mudar para lá ela jamais havia sabido quantos canais de televisão via satélite existiam de fato. Tudo o que Jordan pedia em troca era que ela aceitasse o monitoramento acadêmico de Heather, para que seus estudos não ficassem parados. Maia havia reclamado que estavam no verão e que a escola podia esperar até o outono, mas Jordan fizera pé firme e colocara aquilo como condição imprescindível para que ela residisse em seu quartel-general.
Maia se arrastou até a cozinha e abriu a geladeira, movida em parte pelo leve apetite e em parte pelo tédio. Uma suculenta maçã verde chamou sua atenção e ela apanhou a fruta da prateleira. Dando uma boa dentada na fruta firme e levemente ácida, ela deixou a porta da geladeira se fechar com um barulho surdo. Voltou para a sala de estar e deixou-se cair no sofá com seu lanchinho. Um sentimento incômodo a aborrecia. Quando pensou em Diana, seu coração se encheu de ressentimento. Depois de tudo o que Maia fizera para demonstrar seu próprio valor para sua mãe adotiva e todos os outros, morrera de raiva ao se ver tratada como qualquer outra criança. Ao menos Jordan e seu pessoal me tratam de igual para igual, pensou ela, amargamente. Mas não podia negar que sentia falta de seu lar. Mais do que tudo, sentia saudades de sua mãe. Ser tratada de igual para igual era uma mudança agradável, com certeza – mas não era o mesmo que ser amada. Um pensamento fútil lhe causou uma dolorosa pontada de culpa: quem poderia tê-la amado mais do que seus pais verdadeiros? Ethan e Mary Rutledge já estavam mortos há décadas, mas para Maia haviam se passado apenas quatro anos, desde a última vez em que segurara as mãos de sua mãe e sentira a segurança cálida do abraço de seu pai. A amiga e colega retornada de Maia, Lindsey Hammond, a havia apresentado a outros 4400, cujas habilidades haviam possibilitado que ela visse e tocasse seus falecidos pais novamente. Nem o fato de que eles eram apenas uma ilusão, um tipo de truque físico ou mental, fez com que a experiência fosse menos poderosa ou tocante. O fato de vê-los havia levado Maia às lágrimas. Deixá-los para voltar para casa e para Diana, a havia pressionado além de seus limites. Ela voltara para casa, após aquele encontro, sentindo-se assolada pela culpa. Depois de todo o amor e a devoção que Diana havia dedicado a ela, seria justo compará-la a pessoas que já estavam mortas e ausentes? Era certo desejar tanto outra tarde na companhia de ilusões, quando ela havia abandonado Diana em um lar vazio? Sua solidão e suas saudades do que havia perdido eram poderosas demais para resistir. Maia levantou-se do sofá e foi até o telefone, que estava sobre uma mesa, perto da janela. Ela ligaria para Lindsey e lhe pediria que arranjasse outro encontro com os 4400 que invocavam as sombras dos mortos. Quando ela tirou o fone da base, outra visão tomou conta de seus sentidos. Um navio de guerra na água, mas próximo à terra, dispara um míssil. Fumaça branca desabrocha como uma flor, e então mancha o céu enquanto o foguete o cruza ruidosamente, um borrão voando baixo. Ele mergulha e serpenteia entre os edifícios de uma paisagem urbana familiar. E então encontra seu alvo, atingindo o topo de um prédio. Impacto.
Fogo e trovão. Gritos. Corpos. Jordan desaparece em uma muralha de chamas brancas. A visão acabou, fazendo Maia suar frio. Seus dedos tremiam acima do teclado do telefone. Ela havia sido instruída sobre como proceder se um momento como aquele viesse a acontecer. Ela apertou o botão vermelho de emergência no meio do teclado e desejou que seu aviso pudesse chegar a tempo.
NOVE KYLE BALDWIN ADENTROU o de fato “centro de crise” da Fundação Collier, uma sala de reuniões num subnível protegido, seguido por Cassie — sua habilidade promicina personificada como uma mulher ruiva de seu subconsciente, uma conselheira que somente ele podia ver ou ouvir. Limpando o suor de sua testa e do seu cabelo loiro curto e sujo, ele anunciou sua presença às quatro pessoas que haviam atendido ao seu chamado urgente. — Escutem. — Os outros viraram para olhá-lo. Ele recitou o que Cassie lhe mandara dizer: — Maia diz que temos um míssil vindo na direção do porto. Está vindo da água, então provavelmente foi lançado de um navio. O primeiro trabalho é parar aquele míssil. Então vamos nos juntar. Ele sentiu Cassie assomando-se às suas costas enquanto jogava o braço esquerdo por sobre os ombros de Lucas Sanchez, um telepata gestáltico¹ de cabelos e bigodes negros que tinha por volta de quarenta anos, e apoiava o seu braço direito nas costas de Renata Gaetano, uma italiana de cabelo loiro tingido e de cintura larga. Ela, que adquirira sua habilidade há alguns meses durante aquilo que Jordan chamava de “O Grande Passo Adiante” e o resto da cidade chamava de epidemia 50/50, era uma eletrocinética com ênfase em destruir e controlar equipamentos e sistemas eletrônicos. Ao lado direito dela estava Hal Corcoran, mais um voluntário que tomara promicina. Com sessenta anos recém-completados, ele era um homem pesado que tivera sua visão roubada pela diabetes. No que parecia a Kyle uma espécie de justiça de carma, o homem cujos olhos estavam escondidos por óculos escuros de lentes opacas adquirira a habilidade de visão remota; sua habilidade em particular permitia que ele visualizasse grandes áreas e depois se aproximasse dos alvos de interesse, até mesmo daqueles movendo-se a grandes velocidades. Completando o círculo estava Kemraj Singh, um homem magro do Paquistão. Um dos 4400 originais, Kemraj era um poderoso hidrocinético. Enquanto ele fechava sua mão escura sobre a de Lucas, fechou os olhos. Kyle fez o mesmo, e Lucas ativou seu dom. Participar da telepatia gestáltica era uma das mais estranhas sensações que Kyle já sentira. Todos os que estavam no círculo tornaram-se parte de uma pequena mente, ligada pela habilidade de Lucas. O primeiro sentimento da conexão era físico. Cada membro do círculo sentia a respiração do outro. Em poucos segundos, suas respirações estavam sincronizadas. Cinco mentes tornaram-se uma. Os pensamentos passaram instantaneamente de uma pessoa a outra. Mas ainda que estivessem unidos mentalmente, suas vozes continuaram distintas. — Encontrem o míssil — sussurrou Kyle, sabendo que seria ouvido mesmo se não falasse em voz alta. Hal foi o primeiro a se distanciar, espalhando sua visão especial por sobre a Terra
Prometida. Virando para oeste, o céu cheio de nuvens refletia-se nas águas de cobalto de Elliot Bay. Lançando-se para frente, eles distanciaram-se da cidade, por cima de West Seattle, e por cima da espumante e bonita Puget Sound². Contra a superfície curvilínea da água, Hal avistou um veloz rastro branco vindo do sentido contrário. Ele concentrou-se na ponta do míssil que vinha na direção deles. — Ali — disse. — Deixa comigo — disse Renata. Kyle sentiu a mente dela aproximar-se do míssil e fazer contato com seu sofisticado sistema eletrônico. Enquanto ela preparava-se para lançá-lo na direção de um espaço vazio em Elliot Bay, a respiração de Cassie ficou quente na nuca de Kyle quando ela sussurrou para ele: — Impeça ela. — Pare — disse Kyle. Por causa de experiências passadas ele sabia que nenhum dos outros podia ver ou ouvir Cassie, mesmo com a ligação gestalt. Como que seduzindo-o, Cassie continuou: — Não estrague essa oportunidade, Kyle. — Ele virou a cabeça para vê-la sorrindo, o que o fez imaginar que plano sinistro ela matutava. Através da visão remota de Hal, a linha do horizonte estendeu-se em vista, ficando maior a cada segundo. — Kyle…? — perguntou ele. Renata acrescentou: — O que quer que eu faça, Kyle? No momento seguinte ele ouviu sua voz falando em sincronia com a dela, como se tivesse se tornado sua marionete. — Deixe o míssil pairar pela cidade — disseram em uníssono. — Então jogue-o de volta para o navio que o disparou. Ele não conseguia acreditar nas palavras que saíam de sua boca. Seus sentimentos de choque e hesitação refletiam-se nos rostos dos outros no círculo. — Faça logo — ele e Cassie disseram. Concentrando-se em seus pensamentos, Renata tomou controle do míssil. Kyle sentiuo vacilar sob o comando da moça e ela guiou-o por uma curva aberta da cidade que era perigosamente perto dos prédios mais altos do centro. Então ele estava em uma trajetória
contrária, arremessado por sobre Elliot Bay, voando tão baixo que Hal podia ver seu reflexo na superfície da água. Kyle falou mais palavras quando Cassie as colocou em sua boca. — Renata, mantenha o míssil em movimento. Hal, encontre o navio de onde ele veio. — Na velocidade de um pensamento, Hal projetou sua vista por cima de Puget Sound, seguindo o rastro que se dissipava do míssil até um navio de guerra do Exército Americano. — Kemraj — disse Kyle/Cassie. —, afaste toda a água das hélices… e segure firme. Cassie direcionou a concentração de Kyle em uma parte específica do casco do navio e disse-lho o que fazer. — Atinja o convés perto da arma que disparou — ele disse a Renata. — E ferre com a defesa deles. — Tudo bem — disse Renata com uma relutância óbvia. Todos obedeciam às ordens de Kyle. Não havia nada que ele pudesse fazer a não ser ficar assistindo — e ouvindo, horrorizado, Cassie sorrindo com uma alegria maliciosa. Notas: ¹ A palavra Gestalt tem origem alemã e surgiu em 1523 de uma tradução da Bíblia, significando “o que é colocado diante dos olhos, exposto aos olhares”. ²Puget Sound é um sistema de caminhos aquáticos que dão na Costa Pacifica.
DEZ Havia cerca de trinta pessoas, dentre oficiais e pessoal alistado, no Centro de Informação de Combate do destróier de mísseis teleguiados U.S.S. Momsen, da Marinha Americana, e o oficial executivo, Comandante Alim Gafar, estava convencido de que nenhum deles sabia o que diabos estava acontecendo – ele próprio, inclusive. — Alguém me dê um relatório da situação, pelo amor de Deus! — ele disse, elevando sua voz acima do falatório que preenchia o compartimento fracamente iluminado. Rostos confusos ergueram-se de mesas iluminadas e bancadas de monitores de computador sinistramente brilhantes. A Tenente Carrie Wright, que era o oficial de ação tática, hesitou em seu nervoso vaivém entre a mesa de comunicação da bateria de artilharia e o supervisor de radar. — Nós perdemos controle do Tomahawk1, senhor — disse ela. — Ainda está ativo, mas não conseguimos corrigir sua posição. — Se ainda está ativo, não atingiu o alvo — respondeu Gafar. — Use o controle manual e coloque-o em posição. Wright sacudiu a cabeça. — O controle manual falhou, senhor. Não houve resposta. Por detrás de Gafar, o supervisor de radar gritou: — Achamos nosso pássaro, senhor! Mantendo nove-seis, CBDR2 e abraçando as ondas! A notícia causou um arrepio em Gafar: CBDR era um acrônimo para mantendo estabilidade, diminuindo distância. Uma rota de colisão. — Alerta de colisão! — gritou Gafar. — Controle de fogo, aborte esse míssil já! — Não há resposta, senhor! — rebateu um soldado da linha de frente. Uma pesada onda de ansiedade inundou o Centro de Informação de Combate. Gafar sabia que tinha apenas alguns segundos para agir. — Arme o CWIS3 — ele disse, pronunciando o acrônimo “Diabo do Mar”4. O Sistema de Aproximação de Armas5 era um canhão automático de convés, projetado para explodir e destroçar mísseis ou aeronaves que se aproximassem. Ele jamais
pensara que um dia usaria aquilo contra um dos próprios mísseis cruzadores Tomahawk de seu navio. — Está na mira — relatou o operador de comunicações da artilharia antiaérea, um oficial menor a quem Gafar só conhecia pelo apelido Kiwi. — Seis segundos para atingir o alvo… Gafar parou e aguardou, depositando sua confiança na equipe do centro de informações. Disparar o míssil não havia sido uma decisão sua; a ordem tinha vindo direto do Presidente para o Oficial Comandante do Momsen, Capitão McIntee, que por sua vez a repassara para Gafar. Sabendo quem era o alvo, ele não esperava que nada de bom resultasse daquela decisão, mas certamente jamais esperara aquilo. Inesperadamente ele se viu em completa escuridão, escutando apenas o longo lamento dos discos rígidos dos computadores parando de funcionar. — Alguém acenda uma luz! — ele gritou. — Oficial Monroy, me passe o telefone sem fio e me ligue com o comando. Lanternas criaram um brilho sepulcral, quebrando a escuridão. O oficial de comunicações ajustou o equipamento de comunicação de emergência e passou o telefone sem fio para Gafar, que disse: — Passadiço, Combate. O Capitão McIntee respondeu: — Combate, real. Prossiga. — Capitão, temos queda geral de energia. O Controle de Fogo Auxiliar precisa posicionar a mira do CWIS. — Negativo – respondeu o capitão. — Todos os setores estão no escuro, e estamos à deriva. Nós… Pelo telefone, Gafar ouviu outro oficial gritar: — Contato visual! Colisão iminente! — Preparar para impacto! — berrou Gafar pelo Centro de Informações. — Equipe de Comunicações e de Artilharia! Fechamento hermético! Movam-se! Todos o seguiram quando ele correu para a saída e voou pelo corredor para lacrar as escotilhas e avisar a equipe de manutenção e a brigada de incêndio para se prepararem para o pior.
A explosão da bomba rugiu através de cada convés e compartimento do Momsen. O navio sacudiu violentamente sob os pés de Gafar, e então girou para estibordo. Em segundos, ele sentiu o forte odor sulfúrico de cordite6, e o fedor picante de óleo vazando e combustível queimado. Ele gritava ordens, mas ninguém o ouvia. Homens estavam em chamas, e os corredores fediam a carne queimada. Fumaça tóxica ardia em seus olhos, e uma sequência de detonações confirmou seu temor de que o míssil tivesse atingido o suprimento de munição do navio. Movimentando-se aos tropeções, ele se esforçou para enxergar por cima da nuvem negra que o cobria. Tripulantes em pânico trombavam com ele e seguiam em frente, ignorando seu aviso de que eles estavam correndo para labaredas letais. Outra explosão fez tudo ficar branco por um momento, depois deu novamente lugar às sombras produzidas pelas chamas. O Momsen gemeu como um leviatã7 de aço ferido e o convés se ergueu bem perto de Gafar, que procurou algo em que se agarrar. Suas mãos acharam o corrimão de uma escada, e ele se agarrou enquanto escombros e objetos pessoais dos marinheiros rolavam como dados pelo convés agora vertical. Uma lanterna acesa foi arremessada por uma escotilha aberta acima dele e quase o atingiu na cabeça, quando passou por ele. Um momento depois, atingia destroços flutuantes na torrente de água quase congelada que ia inundando a embarcação a pique. A anestesiante água gelada levou apenas alguns segundos para alcançar os pés de Gafar. Em menos de um minuto o engolia até o pescoço. Ele lutou para continuar flutuando, para tentar escapar no embalo da crista da onda, mas tudo o que achou foram escotilhas lacradas e passagens bloqueadas por destroços. E então não havia mais para onde ir. Ele não tentou prender a respiração. Sabia que congelaria mesmo antes de se afogar. De toda forma já estava morto. Notas: 1 Tomahawk – tipo de míssil americano. 2 CBDR – em inglês: Constant Bearing, Decreasing Range. 3 CWIS – em inglês, Close-In Weapon System. 4 “Diabo do Mar” – em inglês, Sea Whiz , que é como soa a pronúncia de CWIS.
5 Sistema de Aproximação de Armas – em inglês, Close-In Weapon System, ou CWIS. 6 Cordite – pólvora à base de nitrocelulose. 7 Leviatã – criatura imaginária, geralmente de grandes proporções, bastante comum no imaginário dos navegantes europeus da Idade Moderna.
ONZE TODOS OS TELEFONES estavam tocando no escritório da NTAC. Ninguém estava atendendo. Tom Baldwin concentrava-se em seu computador e em sintonizar o som estridente de diversos toques telefônicos, incluindo o de seu próprio. Cada luzinha de extensão estava piscando. Do lado de fora, Diana, os dois Jeds, o analista sênior Marco Pacella e quase todos os outros agentes juntavam-se para assistirem as últimas notícias nas várias televisões do escritório. De onde Tom estava sentado, as vozes chegavam até ele em zumbidos sem nexo algum. Um canal mostrava ao vivo, da vista aérea de um helicóptero, uma mancha de óleo em Puget Sound — o único traço restante do contratorpedeiro Momsen do Exército americano afundado. Outra tela mostrava uma montagem de vídeos amadores do míssil, que passara em velocidade supersônica sobre a cidade antes virar-se para o mar. Um terceiro canal mostrava imagens de pânico nas ruas. Como se eu precisasse do noticiário para saber disso, matutou Tom. Ajudar a organizar ocorrências era sua tarefa primária no momento. A maioria delas era sobre engarrafamentos nos postos que cercavam a benigna cidade usurpada de Jordan. Havia caos quase o suficiente para distrair Tom do pensamento que seu filho estava dentro do prédio de Collier. Quase — não o suficiente. Meghan se inclinou pela porta de seu escritório. — Acabei de falar com o chefe do Departamento Policial se Seattle — disse ela. — Ele falou que seu pessoal tem Beacon Hill sobre o controle, então você pode relaxar um pouco se quiser. — Graças a Deus — disse Tom, passando as mãos no rosto para afastar o cansaço. — Você viu o que está passando no canal cinco? Foi um Tomahawk. Ela fez uma careta. — Eu vi. — Não acho que o Exército nos deu um aviso antes de jogar um míssil em nosso quintal. — De acordo com a Secretaria de Defesa, o ataque era direcionado a um ponto específico — disse Meghan. — Era de se esperar que estivéssemos dentro dessa área.
— Grande surpresa — disse Tom, dividindo suas frustrações. — O que dizem sobre isso? — Não acho que eles saibam ainda. Da sala principal atrás de Meghan, Tom ouviu o som de vozes furiosas crescendo. — e uma delas era a de Diana. Ele levantou-se da cadeira e dirigiu-se na direção da porta. Meghan saiu do caminho e o seguiu enquanto ele se apressava para ver o que estava acontecendo. Diana andava como um tigre enjaulado, xingando enquanto lançava olhares assustados e furiosos à uma tela de TV que mostrava imagens do ataque próximo ao prédio da Fundação Collier. Vários outros agentes estavam ao redor dela, inclusive Marco e os dois Jeds. J.A. estava com as mãos levantadas e tentava acalmar Diana. — Escute, Diana — disse ele. — Pode ser um erro. Ele se encolheu quando ela respondeu. — O Departamento de Defesa acabou de confirmar o alvo! Não foi um erro! — Você tem que se acalmar — disse J.A., pousando uma mão no ombro de Diana. Ela afastou sua tentativa de consolo. — Não me mande ficar calma! — gritou, sua raiva transbordando em forma de lágrimas. — A Maia estava lá! O Exército acabou de lançar uma porra de um míssil na minha filha! Tom se postou entre Diana e J.A. antes que o homem pudesse dizer algo que piorasse ainda mais a situação. — J.A., sai fora — disse Tom. — E leve seu gêmeo com você. — Os dois Jeds se afastaram carregando expressões mal-humoradas. Tom virou-se para Diana, que escondia seus olhos vermelhos de lágrimas em uma mão e colocava a outra no peito. Sem mexer as mãos, Tom disse gentilmente: — Ele não tem filhos. Não entende como é. A voz dela tremia com o medo e a raiva mal contida: — Eles podiam tê-la matado, Tom. E ao Kyle também. — Eu sei — disse Tom, sentindo a própria fúria crescendo. Meghan aproximou-se dos dois com uma precaução visível. — Diana — disse. — Já mandei ligarem para o pessoal do Jordan. Quer que eu tente colocar a Maia na linha para você? — Diana acenou, aparentemente tomada pelas emoções para conseguir responder em voz alta. Meghan indicou seu escritório com a cabeça. — Vem.
Se conseguirmos falar com ela, você pode usar minha sala. — Acenando novamente, Diana sorriu tristemente para Meghan e tocou o braço de Tom num gesto de gratidão. Então as duas mulheres se afastaram na direção do escritório executivo de Meghan. Virando sua atenção para outra imagem ao vivo da mancha de óleo em chamas no Puget Sound, Tom sentiu sua mandíbula apertando-se e seus pulsos fechando-se. Ele temia esse dia desde quando Jordan desafiara o governo ao declarar um pedaço de Seattle como seu território e ao nomeá-lo “Terra Prometida”. Marco apareceu ao lado de Tom e fixou o olhar na tela. — Isso é ruim — disse o jovem diretor da Sala de Teorias, arrumando seus óculos de aros de plástico grossos e pretos. Tom olhou para o homem mais baixo. Usando uma jaqueta de tweed, camisa de linha, jeans e tênis de sola plana, Marco parecia mais um estudante universitário do que o profissional teorista científico e analista inteligente que ele era. — É ainda pior do que parece — disse Tom. Levantando uma sobrancelha, Marco perguntou: — Como sabe? — Esqueça das conseqüências do primeiro ataque à Terra Prometida — disse Tom, lutando para manter a calma e manter seu temperamento razoável. — Você e eu sabemos como o pessoal do Jordan é poderoso. Eles podiam ter impedido isso de vários outros modos. Podiam ter feito o míssil se autodestruir, ou feito estragar-se no mar, ou tê-lo transformado em confete. Mas eles escolheram usarem-no como uma arma. — Incapaz de segurar sua ira, Tom arremessou o pulso contra uma mesa. — Eles mataram quase quatrocentos homens e mulheres naquele navio! — Não querendo bancar o advogado do diabo — disse Marco. —, mas talvez afundar o navio tenha sido um acidente. Fitando a cena da destruição esfumaçada na TV, Tom balançou a cabeça. — Não, não houve acidente algum. Aquele navio tinha um sistema de defesa contra mísseis. O único jeito que ele poderia ser atingido seria se alguém tivesse comprometido essas defesas. Jordan e o pessoal dele afundaram aquele navio de propósito. — Ele virou-se e encarou Marco. — O que significa que Jordan Collier acha que está pronto para entrar em guerra contra os Estados Unidos.
DOZE — Não estou preparado para entrar em guerra com os Estados Unidos! Apontando para as cenas de destruição no mar na televisão de seu escritório, Jordan continuou. — Havia quase quatrocentas pessoas naquele navio! O que diabos você estava pensando? Kyle permaneceu de pé, em silêncio, diante da mesa de Jordan, olhando fixamente para o céu avermelhado através da janela do escritório, onde um sol vermelho-sangue mergulhava lentamente no horizonte. — Eu fiz o que Cassie me disse para fazer. Ela nunca errou antes. Jordan massageou as têmporas. Ele geralmente era uma figura calma e contemplativa, não dado a explosões, mas os últimos dias pareciam estar testando sua paciência. — Não quero saber o que Cassie falou. Eu te disse claramente para não usar de força sem me consultar. Você se esqueceu do que conversamos? — Não, não me esqueci — respondeu Kyle. — Era uma emergência. Fizemos o que devia ser feito para nos proteger. Recobrando sua postura zen, Jordan reclinou a cadeira. Ele mantinha a atenção em Kyle, que evitava olhá-lo nos olhos, preferindo observar a paisagem atrás dele. O líder da Terra Prometida levantou-se e passou por Kyle, parando em frente à televisão. — Nós sempre temos opções não-violentas, mesmo em uma crise — disse Jordan. — Dessa forma conseguimos manter elevada a moral da Terra Prometida. Derramar sangue desnecessariamente apenas gera mais violência e suja o nome do Movimento. Entre os dois, mas vista apenas por Kyle, Cassie, sua conselheira fantasma, disse com desprezo: — Diga que ele é um hipócrita. Propenso ao confronto, Kyle disparou para Jordan: — Você não parecia preocupado ao derramar sangue no seu Grande Passo Adiante. Estava pronto para aceitar cinquenta por cento de fatalidades mundiais com a promicina. Isto seria o quê? Três bilhões de pessoas mortas? E você quer que eu me sinta culpado por
eliminar algumas centenas de militares que tentaram nos matar? — Aquilo foi diferente — rebateu Jordan. — Na época, eu achava que o potencial risco fatal da promicina era um dos preços que tínhamos que pagar para progredir como espécie. Agora vejo que eu estava errado. Não é preciso matar metade do mundo para salvar a outra metade. O que você fez hoje foi um crime. — O que fizemos foi legítima defesa — disse Kyle, aproximando-se de Jordan. Jordan manteve-se firme, sem se abalar com o tom desafiador de Kyle. — Legítima defesa não é sinônimo de vingança, Kyle. Não é este o propósito do Movimento. — Não, o Movimento aparentemente está enrolando e se fingindo de morto — rebateu Kyle. Cassie apoiou as mãos nos ombros dele, encorajando-o. — Os federais lá em Washington não vão nem desconfiar, e nem nos recompensar por nosso comedimento. Eles não respeitam quem leva facas para brigas com armas de fogo. A única linguagem que eles entendem é a da destruição mútua. — Eu me recuso a aceitar isto — respondeu Jordan, afastando-se de Kyle, que o seguiu. Jordan voltou para sua mesa e sentou-se. — Há caminhos melhores a seguir. Apoiando os punhos cerrados na mesa de Jordan e se inclinando para frente, Kyle perguntou: — Então por que você tem pessoal de prontidão no mundo todo, apenas esperando uma ordem sua para agir nas maiores cidades? — Isto é uma apólice de seguro. Um último recurso, não a primeira opção. Kyle endireitou e rejeitou o argumento de Jordan com um movimento das mãos. — Chame como quiser, Jordan. Mas Cassie e eu jogamos pesado. Se a Marinha Americana dispara um míssil contra nós, eles levam um míssil de volta. Não vamos atirar a primeira pedra, mas com certeza atiraremos a última. Momentos depois a porta se abriu, e a espevitada e jovem secretária de Jordan entrou, carregando um gravador digital do tamanho de um dedo. Ela se colocou à frente da mesa de Jordan, ao lado de Kyle, ativou o gravador e fez um sinal positivo com a cabeça. — Por favor, faça um comunicado oficial para a imprensa e o governo dos Estados Unidos — disse Jordan. — Ofereça nossas sinceras e profundas condolências às famílias daqueles que pereceram neste exercício de treinamento que terminou de maneira tão trágica. Se nosso pessoal puder prestar qualquer assistência à Marinha no sentido de descobrir por que o míssil tomahawk apresentou defeito, ou de recuperar qualquer parte do navio, estamos prontos para estender as mãos. — Ele acenou para a secretária sair, enquanto finalizava. —
Coloque as assinaturas de praxe. Obrigado, Jaime. A atraente jovem saiu, fechando a porta atrás de si. Kyle voltou-se na direção de Jordan, que mais uma vez havia recuperado o semblante que era o modelo da mais beatífica calma. — Você quer aprender como lutar em uma guerra, Kyle? Então aprenda isto: às vezes a arma mais letal de todas é um comunicado para a imprensa.
TREZE DENNIS RYLAND ESTAVA sentado em seu escritório na Haspelcorp e balançava a cabeça sem acreditar no que via na televisão, que mostrava a cobertura ao vivo de um porta-voz da Terra Prometida lendo uma declaração de imprensa sobre o incidente Momsen. — Estão vendo isso? — bufou ele. — Uma falha? Um acidente? Durante um treinamento? Eles estão de brincadeira? Uma janela no monitor de seu computador oferecia a ele um vídeo-link em tempo real dos três cientistas trabalhando no laboratório secreto em Nevada. — Você tem que dar crédito ao Jordan — disse o Dr. Jakes, cuja voz chiava devido ao sinal difícil. — Ele é modesto. — Ele é um filho-da-mãe mentiroso — disse Dennis, rodando sua cadeira para desviar da TV e olhar pela janela para uma sombria Tacoma, em Washington, e, mais ao longe, o majestoso topo cheio de neve do Monte Rainier. — Quem acreditará nessas besteiras? A Dra. Kuroda respondeu: — Não é sobre no que as pessoas acreditam, Sr. Ryland. É sobre o que elas ouvem. Até agora, tudo o que ou viram foi o lado de Jordan da história. — Isso porque ninguém em D.C. sabe o que estão fazendo. O presidente está lançando mísseis, mas ninguém avisa o Departamento de Defesa ou a Segurança Doméstica. Os Keystones Kops¹ estão correndo pelo país. — Devia estar mais preocupado sobre o papel do Collier na situação — disse o Dr. Wells. O cientista afro-americano continuou: — Ele tem se saído muito bem com o público. Caracterizando o incidente como um treinamento e como um acidente, ele fechou a narrativa. E oferecendo sua ajuda e condolências o faz parecer caridoso enquanto ele deixa os Estados Unidos fora de controle por causa de um ataque mal feito. Dennis sentiu a pressão por detrás de seus olhos, como uma dor de cabeça. Ele abriu a gaveta de sua mesa e pegou um maço de cigarros enquanto os cientistas continuavam falando. — Agora o governo está com sérios problemas — disse o Dr. Jakes. —, pois o Jordan liberou sua história para a mídia antes. Se o governo quiser contradizê-lo, eles terão que se colocar ou como agressores ou como incompetentes. — Ou os dois — interpôs a Dra. Kuroda. Ouvindo distraidamente, Ryland tirou um palitinho cancerígeno de seu maço de Camels e o colocou entre seus lábios partidos e ressecados enquanto procurava por seu isqueiro.
— De qualquer jeito — continuou o Dr. Jakes. — Se o governo deixar a versão dos acontecimentos de Collier prevalecer, ainda parecerão incompetentes, e ele ainda parecerá generoso. De qualquer modo, a simpatia do público tende a voltar-se para Collier e seu movimento. Com o isqueiro em mãos, Dennis ignorava todas as leis de Washington sobre fumar dentro de prédios públicos e lugares de trabalho. Esse era o escritório dele. Se quisessem vir e pegá-lo por fumar, que viessem. Um movimento de seu polegar acendeu uma chama laranja, que ele levou à ponta de seu cigarro. Inalou e saboreou a estranha e satisfatória irritação em sua garganta, o gosto acre, e do macio, quase inaudível som do papel do cigarro chamuscando. Então ele soltou dois longos jatos de fumaça de suas narinas. Fazia muito tempo que não fumava, mas isso era como andar de bicicleta. E com o mundo se desfazendo cada dia mais, ele não via razão se negar tal prazer proibido. Contemplando o pedaço chamejante de papel e o tabaco seco em seus dedos, ele se indulgenciou com um sorriso apertado. — Tudo o que vocês disseram é verdade — admitiu. — Mas tem pelo menos um brilho de esperança nisso tudo: o simples fato de que não importa como o Collier conte ao público, ele e suas aberrações de promicina acabaram de afundar um navio do Exército Americano de propósito – e o governo sabe disso. — Isso é verdade — disse o Dr. Jakes. — Não deve demorar muito para levá-lo á um conflito aberto. E quando esse dia chegar, o nosso neutralizador de promicina será a arma secreta que fará com que ele e seu povo se ajoelhem sem que um tiro seja disparado. — Abrindo um sorriso tenso e malicioso, ele acrescentou: — Pressione-o, Sr. Ryland. Pressioneo até ele não aguentar mais. Notas: ¹ Os “Keystone Kops” era um grupo de policiais independentes que protagonizaram uma série de filmes de comédia.
QUATORZE A maior parte dos ambientes da vida diária de Marco Pacella poderia ser denominada solitária, mas nenhum o era tanto quanto a Sala de Teorias da NTAC. Isolado no porão, por detrás de uma porta decorada com uma placa onde se lia ONDE A BORRACHA ENCONTRA A ESTRADA, o pequeno grupo de cabeças pensantes sempre havia sido parcamente composto. Em seu auge, o plantão contara com três integrantes: Marco e seus colegas P.J. e Brady. Então, no intervalo de apenas alguns meses, P.J. havia sido preso por usar uma habilidade que ele havia adquirido ao injetar promicina ilegalmente, e Brady havia morrido ao ser exposto com a versão aérea do vírus da promicina espalhado pelo falecido Danny Farrell. O sucessor de P.J. na Sala de Teorias havia sido uma atraente jovem chamada Abigail Hunnicut. Seu período na NTAC terminara de forma abrupta alguns meses antes, quando se descobriu que ela estava criando ilegalmente clones de Danny Farrell, no intuito de replicar seu vírus de promicina cinquenta por cento letal. Fanática convicta, ele esperava usar sua própria habilidade proveniente da promicina para rearrumar o DNA e completar a missão, agora abandonada, que Jordan Collier iniciara a fim de espalhar a versão aérea do vírus por todo o globo, matando bilhões em nome do “progresso”. Ao invés disso, ela conseguira apenas ser morta quando mantinha Tom e Diana reféns, e aquilo deixara Marco em um amargo dilema. Ele havia se apaixonado profundamente por Abby, o que o cegara diante das falcatruas dela. Agora ele queria desesperadamente odiá-la por trair a ele e à NTAC, em nome de uma ideologia apocalíptica, mas sentia uma necessidade ainda maior de lamentar a morte da jovem. Dois companheiros mortos, um na prisão, espantou-se Marco. E agora só resta a mim. Ele deu um gole em sua Coca Diet morna e estudou a enxurrada de números projetada em alta definição na parede dos fundos da sala. Isto sairia muito mais rápido se Brady ainda estivesse aqui. Marco ouviu a maçaneta girar atrás dele, e o ruído suave das dobradiças da porta sendo aberta. Olhando de relance por cima de seu ombro, ele ergueu o queixo para saudar Tom e Diana. — Oi, gente. Obrigado por virem. — Com certeza — respondeu Tom. Ele e Diana circularam pela sala através do labirinto de computadores e outros equipamentos de alta tecnologia. Diana inclinou-se por sobre o ombro esquerdo de Marco. Tom apareceu por sobre o direito e perguntou: — O que temos aqui? — Más notícias, muitas delas — respondeu Marco. Ele levantou-se de sua cadeira e dirigiu-se à projeção na parede. — A Agência de Segurança Nacional enviou uma montanha de dados ontem. Eu rodei um filtro de comparação para ver o que eles têm que nós não temos. — Ele pegou um controle remoto de cima de uma mesa e apertou um botão para avançar a
apresentação. — Vejam o que encontrei. Uma nova tela de dados surgiu contra a parede. Marco apontou os detalhes, linha por linha, enquanto continuava. — A maior parte do que foi apagado de nossos servidores tinha a ver com transferência de componentes de alta tecnologia, materiais e compostos de última geração e, o melhor de tudo, uma amostra radioativa do CERN. Aquele detalhe fez Diana erguer as sobrancelhas. — CERN? Onde fica o Grande Colisor de Hadrons? Aquele traço de entusiasmo nos olhos dela fez Marco lembrar-se dos dias, não tão longínquos, em que Diana parecia estar interessada nele. Terminar o breve relacionamento romântico dos dois havia sido uma decisão dela. Ele sempre havia respeitado aquilo, embora na verdade nunca tivesse se conformado, muito menos agora. — Sim, aquele CERN — disse Marco, separando firmemente seus sentimentos pessoais dos encargos profissionais. — Os protocolos usados para transportar tal amostra tinham o símbolo de carga nuclear. Tom franziu a testa, confuso. — Espere um segundo – disse ele, apontando para a tela. — Por que alguém importaria uma carga nuclear da Europa para os Estados Unidos, quando se pode obter a nossa própria em Livermore e Los Alamos1? Antes que Marco pudesse responder, Diana explicou: — Se vem do Grande Colisor de Hadrons pode ser antimatéria, ou um novo elemento transurânico, algo mais pesado do que o que nós podemos produzir. Um entendimento horripilante transpareceu dos olhos arregalados de Tom. — Neste caso, estamos falando de algo que coloca uma enorme pressão em um pequeno pacote. — Exatamente — concluiu Marco. Diana contornou a cadeira de Marco e caminhou até a projeção na parede. Mudando de lado para minimizar sua sombra, ela traçou linhas com seus dedos, como se aquilo pudesse ajudála a achar o significado de cada detalhe naquele quebra-cabeça de dados. — Marco — disse Diana —, eu já vi listas de itens para fabricação caseira de bombas nucleares, mas nunca vi nada como isto.
— É porque isto não é para uma bomba simples. Você não precisaria de tantos quilos de composto supercondutivo, ou um invólucro magneticamente dividido. Estes são os ingredientes de algo completamente diferente. Cruzando os braços, Tom pediu: — Você poderia ser mais específico? Marco hesitou em responder, porque o tipo de dispositivo que poderia utilizar tais tecnologias era, até onde ele sabia naquela manhã, pura teoria. Mas, uma vez que Tom havia perguntado… Ele encolheu os ombros e respondeu: — Se eu fosse chutar, diria que alguém descobriu como construir uma bomba de antimatéria. Tom olhou para os dados projetados na parede e murmurou: — Não estou gostando nada disso. Diana virou-se novamente na direção de Marco e fixou o olhar na luz do projetor. — Onde isto está sendo transportado? — Não faço ideia — disse Marco. — Esta é toda a informação que a Agência de Segurança Nacional foi capaz de armazenar, antes que sua própria memória fosse apagada. Quem quer que tenha destruído aqueles dados, o fez como um profissional. — Então estamos falando de alguém com acesso governamental de alto nível — concluiu Diana. — Ou uma habilidade provinda da promicina — sugeriu Marco. Tom suspirou. — Eu realmente não estou gostando disto. Notas: 1 Livermore e Los Alamos – cidades californianas, onde estão situados, respectivamente, o Laboratório Nacional Lawrence Livermore e o Laboratório Nacional de Los Alamos, dois grandes órgãos americanos ligados à Segurança Nacional, capazes de produzirem armas nucleares.
QUINZE — PERDOE-ME POR INTERROMPÊ-LO, Dennis. Preciso de um minuto de seu tempo. O almoço de Dennis tinha acabado de ser servido. Ele levantou o olhar de seu prato de macarrão com lagosta para ver seu visitante. Miles Enright, o vice-presidente executivo da Haspelcorp no comando de pesquisa e desenvolvimento, estava de pé tão casualmente quanto sua expressão era severa. O homem tinha por volta de cinquenta e cinco anos, era magro e branco. Ele mantinha seu crânio redondo perfeitamente raspado e usava impenetráveis óculos escuros opacos o tempo todo, até mesmo entre quatro paredes. Apontando com o garfo para a outra sala particular, vazia e com as paredes de tijolos do Pacific Grill¹, Dennis disse: — Não acho que seja uma coincidência encontrá-lo aqui. — Não, não é — disse Enright. Ele puxou a cadeira em frente a Dennis e sentou-se. Dobrando as mãos sobre a mesa, continuou: — Percebi que você tem usado alguns orçamentos interessantes do departamento de pesquisa e desenvolvimento ultimamente. Escondendo a raiva com um sorriso apertado, Dennis manteve o olhar sem piscar. — Tenho, é? — Sim. Eu admito que a contabilidade pode se confundir um pouco de vez em quando, mas até mesmo um sujeito letárgico percebe quando dois bilhões de dólares são gastos em menos de dois meses e não se vêem resultados disso. Para ganhar tempo e irritar Enright, Dennis levou um garfo com seu macarrão gourmet até a boca. Pedaços da macia carne das lagostas do Maine e o camarão crocante se misturavam com a sutil riqueza de tomares assados, abobrinha picada e pimenta vermelha amassada em molho de limão com manjericão fresco. Ele saboreou lentamente enquanto mastigava. Então engoliu e pegou seu copo para um gole de seu Bonterra Vigonier, um forte vinho branco feito de uvas organicamente crescidas. Enright permaneceu tão imóvel quanto uma pedra enquanto observava Dennis mastigar, beber e engolir. — Coma alguma coisa, Miles — disse Dennis. — Ouvi dizer que a salada de carne é fantástica. — Você ainda não respondeu minha pergunta — disse Enright. — Você não perguntou — disse Dennis. Uma garçonete aproximou-se da mesa. A jovem asiática movia-se com passos leves, quase
inaudíveis, por seu espaço determinado. Ela colocou um prato e um copo em frente a Enright, então entregou-lhe um guardanapo de pano branco e pousou vários utensílios em seus devidos lugares dos dois lados do prato. — Gostaria de ver o cardápio, senhor? — perguntou. Enright balançou a cabeça. — Por enquanto não, obrigado. — Ela afastou-se e deixou os dois homens sozinhos na sala de jantar. Enrugando o rosto, Enright disse: — Muito bem, Dennis. — Ele juntou as mãos. — O que você está tramando? Dennis sorriu enquanto enrolava mais macarrão em espiral em volta de seu garfo. — Negócios. — Mas não como o normal — retrucou Enright. — O que acha exatamente que vou te contar, Miles? Inclinando-se, mesmo que pouco, sobre a mesa, Enright projetou um pouco de ameaça por cima dela. — Você vai me contar porque gastou dois milhões de dólares do departamento de pesquisa e desenvolvimento da Haspelcorp sem nem ao menos consultar-me antes. Depois de mais um gole de vinho, Dennis disse: — Porque eu posso, Miles. Essa é uma das belezas em ser promovido a vice-presidente de toda a empresa. Não tenho que dar satisfações a pessoas como você. — Todos devem satisfações a alguém, Dennis. Mesmo que seja apenas a Deus, ou à sua própria consciência. — Felizmente, não tenho nenhum dos dois — disse Dennis. Ele perfurou alguns pedaços de lagosta e os esfregou na poça de manteiga derretida no fundo de seu prato. — Não, mas você deve satisfações ao presidente — disse Enright. — E à bancada de diretores – da qual por acaso eu faço parte. — Ele encarou o sorriso sarcástico de Dennis com o seu próprio. — Imagino que o resto da bancada gostaria de saber o que você fez para que a NTAC e a NSA² fuçassem por nossos servidores hoje de manhã. Fingindo indiferença, Dennis engoliu a lagosta amanteigada em sua boca, então limpou os lábios com a ponta do seu guardanapo de papel. — E quem disse que o interesse deles tem algo a ver comigo?
— A busca deles era toda focada em transações criptografadas com as suas credenciais de acesso, Dennis. E eu admito que a curiosidade deles despertou um pouco da minha. — Ele inclinou-se para o balde de gelo ao lado da mesa, pegou a garrafa de Viognier e despejou uma pequena quantidade em seu copo. Então recolocou a garrafa em seu recipiente gelado. — Eu já vi algumas tecnologias exóticas nesses tempos, Dennis, mas esse seu projeto… é outra coisa. — Ele engoliu o vinho, franziu os lábios e acenou. — É bom. — Fico feliz que tenha gostado — disse Dennis. — Chega de conversa fiada — disse Enright. — O que quer que você esteja construindo, envolve um combustível nuclear de grande energia que só poder se conseguido com a CERN³. Você está indo longe demais e sabe disso. Baixando o garfo, Dennis disse: — O que eu sei, Miles, é que existem dois tipos de empresa nesse mundo: o tipo que inova, e o tipo que foge do trabalho. Nosso trabalho é a segurança nacional – e às vezes isso significa pesquisas confidenciais. — Eu sei disso — disse Enright. — Eu mesmo já tive meus projetos ultra-secretos. Mas sempre mantive meus colegas e superiores cientes das minhas ações. Você está agindo como se essa empresa fosse seu próprio laboratório secreto. Quem autorizou esse seu projeto? Se é um contrato com o Departamento de Defesa, porque você não foi ao meu escritório? Se é um trabalho grande, porque não avisou a bancada? Aquelas eram boas perguntas. Até aquele momento, não havia ocorrido a Dennis como seus cientistas visionários desenvolviam sua tecnologia de ponta sem atrair a atenção do governo. Ele se inclinou para trás e pegou um maço de cigarros do bolso. Abriu-o, pegou um e guardou o maço com uma mão enquanto pegava o isqueiro com a outra. Enquanto Dennis se preparava para acender o cigarro, Enright disse: — Não pode fumar aqui. — Posso fumar onde eu bem quiser — disse Dennis. — Quanto ao meu projeto, e à identidade meu cliente, tudo está sendo feito em um local secreto – e, na minha opinião, é melhor que você não saiba. — Com um escorregão de seu dedo, ele acendeu o cigarro. Inalou e então soltou um cone de fumaça cinza-azulada na direção do teto. — Além do que — acrescentou. —, se funcionar como eu espero, estaremos feitos na vida. Enright afastou sua cadeira da mesa e pôs-se de pé. — Assim como se seguir para o sul, você desaparece pelo resto da vida. — Ele pegou seu garfo, deu a volta na mesa, espetou o maior pedaço de lagosta no prato de Dennis e comeu. Jogou o garfo na mesa. — Bom apetite — disse, com um sorriso malicioso.
¹Pacific Grill é um restaurante localizado no centro de Tacoma. ²Agência de Segurança Nacional. Em inglê, NSA (National Security Agency) ³ A Organização Europeia para a Investigação Nuclear, conhecido como CERN, é o maior laboratório de física de partículas do mundo. A principal função do CERN é fornecer aceleradores de partículas e outras infraestruturas necessárias para a pesquisa de alta energia física.
DEZESSEIS Tom foi o último a comparecer à reunião no gabinete de Meghan. Ela, Diana e Marco o esperavam. Apesar de haver cadeiras suficientes para se sentarem, estavam todos de pé. Marco estava encostado na parede de vidro que separava o gabinete da sala dos agentes. Diana havia se posicionado em frente à mesa de Meghan, e esta fingia admirar os pôsteres de filmes clássicos com os quais havia decorado a parede do escritório. — O que eu perdi? — perguntou Tom, sem ter certeza se queria realmente saber o que havia de errado. Meghan virou-se para encará-lo. — Acabamos ter a resposta, da Segurança Nacional, sobre aquele relatório que arquivamos nos interceptadores de dados. — Ela caminhou até sua mesa e entregou uma pasta a Diana, que a repassou para Tom. Enquanto ele abria e examinava os papeis dentro desta, Meghan continuou. — Eles compartilharam nossos dados com o Departamento de Defesa, a CIA, o FBI e a Agência de Segurança Nacional. Sorrindo, irônico, Tom disse: — Eles o fizeram imediatamente, no menor tempo possível? – Seu sarcasmo foi acolhido por olhares silenciosos e amargos. — Memória barra pesada. Diana respondeu: — Não se sinta mal. Meu arquivo “sopa de letrinhas” teve a mesma resposta. — É porque estão de brincadeira conosco — disse Meghan. — Vá para a última página. Ele fez o que ela pediu. Na última folha do relatório de trinta páginas, uma análise sumária exibia as conclusões oficiais da Segurança Nacional na Ordem do Dia do Presidente. Enquanto Tom lia o relatório da Inteligência, Marco aproximou-se dele. — Ninguém mais tem qualquer pista das remessas desaparecidas de combustível nuclear, mas a DARPA1 concorda com nossa conclusão sobre o que está sendo construído. Dando um rápido passeio pelo texto, os olhos de Tom se arregalaram quando leram os dois últimos parágrafos. — Eles estão falando sério? Acham que isto é evidência de que Jordan Collier está montando um dispositivo nuclear?
— Não um dispositivo qualquer — corrigiu Diana. — Um míssil de antimatéria de última geração. Marco acrescentou: — Não importa que a ideia seja louca. Um míssil comum tem que ser liberado de maneira perfeitamente correta para conseguir ser detonado. Um errinho qualquer e tudo acaba em um grande fracasso. Mas uma arma de antimatéria seria exatamente o contrário. Seria quase impossível impedi-la de explodir. Um só erro e bum! — E é por isso que o pessoal do Pentágono está dizendo que só a equipe de Collier poderia fazê-lo — disse Meghan. — Acham que algum dos seus positivos superespertos está construindo uma arma apocalíptica. Tom sacudiu a cabeça, descrente. — Eles só podem estar brincando. Isto não faz o menor sentido! — Notando os olhares curiosos de seus colegas, ele continuou. — Não estou dizendo que confio em Jordan Collier, mas com todos os poderes malucos que seus seguidores têm, não vejo por que ele precisaria de algo desse tipo. Diana respondeu: — Eu não vejo por que ele quereria isto. Seu movimento tem se dedicado totalmente a prevenir uma catástrofe global e não a causar uma. Quem quer que tenha escrito esse relatório não faz a menor ideia de como funciona a cabeça do Jordan. Meghan lançou um olhar encorajador para Marco, que olhou para os próprios sapatos por um momento, antes de dizer: — Há outra explicação possível para as conclusões do relatório: alguém fez planos, e este relatório foi preparado com o intuito de realizá-los plenamente. A suspeita tornou a face de Diana sombria. — O que você quer dizer com isso? — Que o governo quer uma desculpa para lançar um ataque militar de máxima amplitude sobre a Terra Prometida – respondeu Marco. — E nós acabamos de ajudá-los a formulá-la — concluiu Tom, sua voz tensa de raiva. Ele fechou a pasta e a jogou sobre a mesa de Meghan. — Maravilha… Temos que impedir que isto aconteça. — Ele lançou um olhar zangado para Marco. – Quando essa Ordem do Dia vai ser entregue ao presidente? Marco repassou a pergunta para Meghan com um olhar.
Ela soltou um suspiro de derrota e olhou para Tom. — Foi encaminhado para a Casa Branca uma hora atrás. Notas: 1 DARPA – Defense Advanced Research Projects Agency – A Agência de Pesquisa em Projetos de Defesa Avançados é um órgão oficial americano cujo objetivo é manter a superioridade tecnológica dos Estados Unidos e alertar contra possíveis avanços tecnológicos de adversários potenciais. Foi criado em 1957, em reação à vitória tecnológica da então União Soviética por ter lançado o primeiro satélite artificial da história, o Sputnik.
DEZESSETE ERA TARDE, muito havia se passado desde o pôr-do-sol e as janelas das casas e dos prédios estavam escuras enquanto Diana dirigia para sua casa em Queen Anne. O ar perfumado de verão entrava pelas janelas abertas de seu Toyota híbrido. Ela imaginava o porquê de ir para casa afinal de contas. Não havia nada a esperando lá exceto comida congelada, uma garrafa de cerveja vazia que já perdera o gosto, e algumas embalagens de comida chinesa que começara a criar alguns flocos verde-cinzentos. Mais do que mereço, pensou ela sombriamente, enquanto o farol logo à frente trocava do amarelo para o vermelho. Ela pisou no freio e parou o carro sob a luz de um poste. Ouvir o motor do híbrido ficar silencioso quando o carro parava ainda a surpreendia. Depois de uma vida inteira ouvindo motores barulhentos, cada vez que ele parava assustava-a. Em volta dela, Seattle parecia uma cidade fantasma. Eram tantas as pessoas haviam ido embora depois do surto 50/50 que cada quarteirão em Queen Anne tinha pelo menos uma casa abandonada. Depois do agravamento das tensões entre a Terra Prometida e o governo dos EUA nos últimos meses, ainda mais pessoas haviam ido. Agora ruas inteiras ficavam desertas. Ela quase esperava ver uma bola de feno rolando enquanto estava parada sob a luz do farol e ouvia ao vento. Parques que costumavam ser cheios de crianças e ambulantes que vendiam desde hot-dogs e rosquinhas à garrafas de água e balões agora parecia um parque de esculturas de balanços, escorregadores e carrosséis. Diana podia contar nos dedos as vezes que vira alguma criança usando o parque perto de sua casa nos últimos meses. É como sobreviver depois de um apocalipse, pensou ela. Um som estridente a fez pular. No silêncio sepulcral de seu carro elétrico parado em uma rua vazia, seu celular soou ainda mais agudo do que o normal. Atrapalhando-se com as duas mãos, ela o tirou do bolso de sua jaqueta e olhou para e tela. Não reconheceu o número, mas atendeu assim mesmo. — Alô? — Oi, mãe — disse Maia. Ouvir a voz de sua filha fez os olhos de Diana marejarem de emoção. Raiva, alívio e alegria enevoavam seus pensamentos. Apertando uma mão contra o peito para se manter calma, ela respondeu: — Oi, Maia. Como você está, querida?
Depois de uma pequena pausa, Maia disse: — Estou bem, acho. Era uma pontada de medo que ouvia na voz de Maia? Ela imaginava se o ataque quase bem sucedido à Fundação Collier abalara a decisão da garota de ficar longe de casa. Naquele momento, Diana teria que tentar ser cautelosa. — Você tem tudo o que precisa? Comida, lugar para dormir…? — Sim — disse Maia. — O Jordan deu um apartamento só para mim. E eu posso pedir comida, como em um hotel. — Parece legal — disse Diana. — Eles lavam a louça também? — Acho que sim. Eles levam tudo depois que eu termino. — Ela calou-se por alguns segundos, mas antes que Diana pudesse pensar numa resposta, Maia acrescentou: — Só queria que você soubesse que eu estou bem. Sabe… por causa do que aconteceu ontem. Sob o sussurro do vento quente por entre as árvores, Diana ouviu o cantarolar solitário de um pássaro. Uma única lágrima rolou pelo canto de seu olho. Ela enxugou-a de sua bochecha. “Obrigada” era tudo o que podia dizer. Fungando para limpar o nariz, acrescentou com uma serenidade forçada: — O que me conta de novidade? — O Jordan me faz ter aulas mesmo sendo verão — disse Maia. — É ruim. Eu deveria estar de férias. Realmente interessada, Diana perguntou: — Ele te contratou uma professora particular? — Ela é voluntária — disse Maia. — É a Heather Tobey, do Centro 4400. Aquelas novidades deram a Diana uma pontada de preocupação. Embora Heather fosse uma professora treinada, ela era uma dos 4400 originais; sua única habilidade era despontar os talentos inatos de outras pessoas e fazê-las usar e dominar tais dons. Desconfiança passou pelos pensamentos de Diana. Imagino se o Jordan não a escolheu para aperfeiçoar os dons precognitivos de Maia. Tentando ser diplomática, ela disse: — Bem, me sinto melhor sabendo que há adultos por perto. O tom de voz de Maia tornou-se áspero e defensivo. — O que quer dizer com isso?
— Nada, querida — disse Diana rapidamente, tentando encobrir sua gafe antes que fugisse de seu controle. Infelizmente Maia parecia não ter vontade de deixar isso de lado. — Está dizendo que não consigo cuidar de mim mesma? Que preciso de “gente grande” para segurar minha mão? — Não, não foi isso que quis… — Ouvindo a si mesma, Diana percebeu que estava mostrando fraqueza. — Na verdade, sim. É exatamente o que estou dizendo. Você é muito jovem para ficar sozinha, Maia. Só tem treze anos de idade, pelo amor de Deus. — Isso não significa que sou criança! — a garota soltou um grunhido de exasperação. — Você sempre faz isso! Age como se eu fosse muito jovem para usar minha habilidade, mas não sou, e você sabe disso. Raiva e frustração fizeram o rosto de Diana enrubescer, e sua pulsação martelar em suas têmporas. — Não há nada de errado em usar sua habilidade, Maia, mas usá-la para ajudar Jordan Collier te põe em perigo. Pronunciando claramente cada palavra, Maia rebateu: — E. Daí. Eu a amo e quero esganá-la, irritou-se Diana. — E daí? Você é jovem de mais para se meter em uma guerra, Maia. — Todos estamos no meio dessa guerra, mãe, quer você goste ou não. Eu só decidi escolher um lado. — E o que te faz pensar que você é grande o suficiente para fazer tal decisão? Há uma razão para crianças não servirem como soldados. Maia gritou de volta: — Pare de querer me proteger o tempo todo! Eu não sou um bebê; posso cuidar de mim mesma! Aumentando o tom de voz para nivelar-se com o de Maia, Diana rebateu: — Eu nunca vou parar de te proteger, Maia. Você é minha filha, e preocupar-se com você e tentar protegê-la é o que eu faço! É o que sempre farei, porque é isso que é ser uma mãe… quer você goste ou não.
Um silêncio de ódio reinou dos dois lados da linha. Alguma coisa no retrovisor do carro chamou a atenção de Diana. Quarteirão por quarteirão, as luzes dos postes estavam se apagando. As poucas casas que ainda cintilavam com luz e vida tornaram-se escuras. Uma escuridão medonha caiu sobre Queen Anne Hill. O poste acima do carro de Diana apagou-se, e o semáforo – que havia dado duas voltas durante a conversa dela com Maia – desligou-se do mesmo jeito. Maia simplesmente disse: — Tenho que ir. Ela desligou antes que Diana pudesse dizer “eu te amo”. Sentada sozinha no carro, que era a única fonte de luz na rua, Diana ficou imaginando o que havia acontecido agora.
DEZOITO JORDAN COLLIER estava no telhado de seu quartel-general e observava as luzes se apagarem na Terra Prometida. Um bairro após o outro era engolido pela noite: as ruas residenciais de Queen Anne e Magnolia Bluff; o gueto boêmio de Capitol Hil; os arranha-céus de Beltown; as comunidadesdormitório de Broadmorr e Madrona; o amontoado industrial de Georgetown e os quarteirões de Beacon Hill. Ruas que haviam brilhado com seus lampiões agora mergulhavam nas sombras. Mil pés acima daquilo tudo, observando como um senhor da noite, Jordan não conseguia evitar o sorriso. A porta do terraço se abriu com um ruído alto. Ele se voltou e segurou as mãos atrás de si, enquanto observava os integrantes de seu conselho de liderança chegando ao telhado pelas escadas, que eram iluminadas pelo débil brilho verde das luzes de emergência. Liderando a equipe de conselheiros estava Kyle, cujo cabelo louro curto ainda conseguia ser desgrenhado pela brisa que nunca cessava de soprar naquelas alturas. Atrás dele vinham Gary e Maia, parecendo um ensaio de opostos: um jovem negro musculoso, usando um alinhado terno cinza escuro e uma camisa de seda cor de areia, caminhando ao lado de uma miúda adolescente loura de jeans azuis e top cor-de-rosa. Kyle abriu a boca para falar. Jordan o impediu. — Deixe-me adivinhar: o exército cortou nossa energia elétrica. — Assim como a nossa água potável e o serviço de recolhimento de esgoto. — Kyle completou de imediato. Era quase o suficiente para fazer Jordan rir. — Naturalmente, era apenas uma questão de tempo. — Ele sorriu. — Felizmente, nós nos preparamos para isto desde o primeiro dia. Cruzando os braços e franzindo a testa de modo interrogativo, Gary respondeu: — Preparados para prover serviços básicos, talvez. Mas você sabe que este não é o objetivo. Jordan concordou com a cabeça. — Este é exatamente o objetivo. Provar que podemos não só garantir o básico para a sobrevivência, mas fazê-lo gratuitamente é nossa maior vitória pública. Kyle olhou além de Jordan, através da paisagem escura.
— Desligar as luzes não é só um tapa de luva de pelica — argumentou ele. — É uma preparação para um ataque militar. E desta vez não vai ser só um míssil apontado para você. Eles virão atrás de todos nós. — Concordo — disse Gary. — Eles provavelmente estão encaminhando as tropas para cá agora mesmo. Reparando o olhar fixo de Maia, Jordan arqueou uma sobrancelha e perguntou: — Algo mais? — Vai haver tiroteio nas ruas — disse ela, em seu tom linear e sinistro de profecia. — Pessoas morrerão. Não havia “a menos que” ou “se” após sua proclamação. A finalização daquilo foi como um balde de água fria em Jordan. Ele concordou com a cabeça. — Sim — disse. — Eu sei. — Voltou-se em direção ao oeste e respirou o leve aroma do ar marítimo. — Os Estados Unidos jamais entregarão uma cidade sem lutar. Mas é como o nascimento de uma criança: o momento da separação será doloroso e sangrento — Ele olhou para trás, para seus três conselheiros. — Mas também completamente necessário. Visivelmente embaraçado por ver Jordan cair na real sobre a situação, Gary manifestou-se soltando um suspiro pesado. — Talvez. Mas se for assim, nós não deveríamos estar nos preparando para a batalha? Desta vez Kyle respondeu por Jordan. — Nós já estamos. Sentinelas estão posicionadas por toda a cidade. Quando o exército fizer o movimento dele, nós faremos o nosso. — Não é meio arriscado? — perguntou Gary. — E se o exército vier com algo que nós não estamos esperando? Apontando com o queixo na direção de Maia, Kyle disse: — É para prever algo desse tipo que temos você aqui, não é? Ela reagiu com um olhar gelado para Kyle. — Mesmo eu não vejo tudo. O futuro está sempre mudando. — É disto que estou falando — argumentou Gary, claramente assustado pelo modo como
Maia expusera seu ponto de vista. — Nós não deveríamos ficar tão autoconfiantes. Basta um erro para que tudo desabe sobre nossas cabeças — acrescentou para Jordan. — Se o governo realmente decidir jogar pesado, não parará até nos ver mortos e enterrados. Eles varrerão a Terra Prometida do mapa antes de nos dar chance de defendê-la. Você sabe disso. — Sim, eu sei — confessou Jordan, com um sorriso. — Na verdade, estou contando com isto — Abriu completamente os braços, como que imitando uma crucificação. — Eu sei que vocês devem achar isto difícil de acreditar, mas é tudo parte do plano.
DEZENOVE OS ESCRITÓRIOS DA NTAC estavam quase todos vazios. Somente uma equipe de agentes noturnos competentes monitorava as estações de ações de emergência, e um esquadrão de guardas uniformizados tripulavam a entrada principal e patrulhavam os corredores silenciosos como uma cidade fantasma. Os monitores dos computadores em estado de espera enchiam os cubículos minúsculos desertos com um brilho azul pálido. Tom Baldwin abriu o botão no topo de sua camisa e limpou o suor da testa. Para economizar energia, os ar-condicionado do prédio havia desligado-se automaticamente às 8 horas da noite em ponto. Mais de uma hora já havia se passado, e a atmosfera dentro da instalação tornarase morna e pesada. As medidas para economizar energia haviam sido implantadas depois que o Exército desligara a grade elétrica da cidade. Em acordo com os protocolos de desastres do Departamento de Segurança Doméstica, a NTAC recorrera aos seus geradores de emergência à diesel e às baterias de lítio de reserva, que eram alimentadas por uma linha dura para uma matriz de painéis solares e um suporte de seis turbinas de vento escondidas a milhas de distância na Ilha Bainbridge, além da Baía Elliot. Os passos de Tom ecoavam pelos degraus e pelas paredes de concreto da escadaria enquanto ele descia ao nível subterrâneo onde ficava a Sala de Teoria. O elevador teria sido mais rápido, mas a necessidade de reduzir o uso de energia significava que cada indivíduo devia usar as escadas sempre que possível. Como o esperado, a Sala de Teoria iluminava-se com o brilho de uma gravação sendo reproduzida. Ele bateu uma vez na porta, abriu-a e entrou. O débil cheiro de pizza espalhavase pelo ar. Calabresa, se conheço o Marco, pensou. Do outro lado da sala, Marco rodou sua cadeira para o lado da tela de projeção do tamanho da parede. — E aí — disse ele, levantando o queixo para Tom como cumprimento, e então se voltando para o vídeo. — E aí — respondeu Tom, enquanto passava por várias telas de computadores que rolavam enquanto pegavam informações de incontáveis fontes. — Eu estava indo para casa quando vi seu carro no estacionamento. Já é tarde. O que ainda faz aqui? — Vendo o mundo se acabar aos poucos — disse Marco, olhando a parede de vídeo enquanto Tom postava-se ao seu lado. O teorista de óculos pegou um controle remoto, apertou alguns botões e subdividiu a tela em oito imagens menores, cada uma mostrando um vídeo diferente. — São filmagens do mundo todo — disse ele. — Imagens arrancadas de satélites, transmissões piratas. Algumas delas sendo enviadas por p-positivos que podem transmitir o que eles vêem e ouvem em alta definição. Cinema real. Imagens de violência e destruição enchiam a tela. Cada sub-janela mudava sua imagens em segundos, criando um mosaico mutável de caos e desespero. Mudavam tão rapidamente que
Tom teve dificuldade assimilar tudo. — Para o que estou olhando? — ele perguntou. — O abastecimento de promicina crescendo ao redor do planeta — disse Marco. Ele começou a apontar para as imagens enquanto elas passavam. — Monges no Tibet. Refugiados no Sudão. Mulheres no Oriente Médio. Colonos em Gaza. Trabalhadores na Venezuela. Rebeldes em Caxemira. — Ele balançou a cabeça e olhou para Tom. — A droga está se espalhando mais rápido do que podemos perceber. Poderíamos ter dez milhões de p-positivos em poucas semanas. — Jesus Cristo — murmurou Tom, sua voz cheia de terror. — Isso significa que também poderíamos ter dez milhões de mortes por promicina. — Ele imaginou terras distantes repletas de corpos sangrentos afundados em agonia. — Eles são malucos? Será que não sabem o que essa coisa faz? Marco acenou com a cabeça. — Eles sabem. E não se importam. — Em resposta ao olhar descrente de Tom, ele continuou. — As pessoas no Terceiro Mundo vêem a promicina de um modo muito diferente de nós. Eles vivem todos os dias com doenças, fome, genocídios… — Ele deu de ombros. — Alguns deles acham que é melhor morrer, de qualquer modo. Não têm o que perder, então apostam a sorte na promicina. Tom franziu o cenho. — Faz sentido. A maioria das pessoas que tomaram promicina era deslocada. Pessoas que perderam a fé, ou que sentiam como se tivessem no fim, ou que o sistema tinha desistido delas. — Exatamente — disse Marco. — Agora multiplique isso por dez milhões. A maioria das pessoas na América do Norte, Europa, Austrália e Japão estão bem, mesmo na pior das épocas. Por que eles jogariam roleta russa com uma chance de apenas cinquenta por cento de sobreviver? Mas se você vive num lugar pobre como o Chade ou o Sudão, uma chance de cinquenta por cento de ganhar uma hablidade extra-humana parece um risco bom. — Com um clique no controle remoto, ele alterou a rotação das imagens na parede. — E está dando certo. Nos últimos quatro dias, novos p-positivos derrotaram senhores de guerra na Somália, expulsaram talibãs de doze vilas no Afeganistão e Paquistão, e declararam a Caxemira uma cidade-estado independente. — Um sorriso hesitante puxou seus lábios. — Os fracos estão herdando a terra… Como o Super-Homem. Olhando as imagens, maravilhado e com medo, um pensamento preocupando ocorreu a Tom: — Se está se espalhando rápido assim pelo Oriente Médio, não demorará muito para que grupos como o Al-Qaeda, Hamas e Hezbollah participem. Poderíamos passar a enfrentar terroristas militantes islâmicos com superpoderes. Eles poderiam fazer o onze de setembro parecer amadorismo.
— Possivelmente — disse Marco abrindo uma lata de refrigerante. — Mas não seria com isso que me preocuparia se eu fosse você. — Como assim? Marco tomou um gole de seu refrigerante, engoliu e então apontou para a tela. — A maioria das pessoas que estão tentadas a tomar promicina são as que mais necessitam: os pobres, os oprimidos, os escravizados. Aqueles que sobrevivem glorificam Jordan Collier como se ele fosse o Messias. O que mais preocupa é que eles estão se tornando a nova elite do mundo, e pode acreditar que alguns deles decidirão quando será a hora da revanche. E não somente questões pessoais. Estou falando de uma agitação na balança de poder entre as nações – uma mudança global na organização da sociedade humana. Tom olhou novamente para o quadro de imagens: a mulheres magras africanas telecineticamente amassando caminhões e derrubando helicópteros em Serra Leoa; um garotinho derretendo tanques de guerra chineses em Shingatse; um grupo de civis cercando a capital de Mianmar. Depois ele olhou para Marco. — Isso é tão ruim quanto eu acho que é? — Pior — disse Marco. — Governos não desistem do poder sem luta… É assim que guerras mundiais começam.
PARTE DOIS TODOS ESTES MORRERAM NA FÉ VINTE 24 DE JULHO DE 2008 2:00 A.M. – HORÁRIO DA COSTA DO PACÍFICO JAKES ENCOLHEU OS OMBROS por causa da noite gélida do deserto de Nevada. Ele deu um rápido trago no cigarro e ergueu a cabeça quando expirou, para admirar o domo estrelado do céu. As estrelas há muito haviam se escondido no mundo futuro que o mandara ali para redesenhar o passado. Admirar as constelações, que pareciam furinhos brilhantes na cortina da noite, quase o fez se arrepender de sua missão. Mas ele tinha ordens a cumprir. Não havia para onde ir, a não ser adiante. Ele olhou de relance para Kuroda por cima do ombro. Seu corpo estava coberto por um macacão cinza mesclado, suas mãos escondidas em pesadas luvas grossas, e uma máscara de soldador encobria suas feições. Uma trança de cabelos louros muito bem feita destacavase por baixo da parte de trás de seu equipamento de cabeça. Pequenos flashes azuis de luz de acetileno delinearam sua silhueta, e faíscas brancas incandescentes saltaram de seu trabalho para o chão firme antes de se desfazerem, efêmeras como estrelas cadentes. Wells emergiu da entrada do laboratório subterrâneo e estremeceu ao sair para o ar gelado. Erguendo uma das mãos para proteger os olhos do brilho ofuscante da solda de Kuroda, ele perguntou a Jakes: — Tem certeza de que ela sabe o que está fazendo? — Melhor do que nós dois faríamos — respondeu Jakes. Ele sabia por que Wells estava nervoso. Mesmo um erro mínimo poderia ativar o gatilho da ogiva de antimatéria que Kuroda estava afixando na caçamba de um utilitário esportivo branco. — Deixe-a — ele advertiu o colega. — Ela está indo bem. — Se você diz — replicou Wells. Ele caminhou até a frente da picape e balançou a cabeça, para Jakes segui-lo. — Vamos repassar tudo mais uma vez. Jakes virou os olhos nas órbitas. O plano era o mesmo havia semanas, mas ainda assim Wells insistia em repassá-lo exaustivamente. Ainda assim, Jakes pensava consigo mesmo, é melhor não relevar nada, especialmente quando estamos tão perto do final. Ele seguiu Wells, que tirou um mapa rodoviário de dentro de sua jaqueta e o abriu sobre o capô da caminhonete. — A boa notícia — começou Wells — é a crise entre Jordan Collier e o governo dos Estados
Unidos, e o foco dos militares na Terra Prometida. — Lançando um olhar desgostoso para o mapa, ele acrescentou: — Mas eu ainda estou preocupado por você se expor tanto, por tanto tempo. Voar seria mais rápido. — Absolutamente não — replicou Jakes. O vento gelado tentou roubar o mapa, que sacudiu e bateu sob as mãos dele e de Wells. — O tráfego aéreo nesta parte de Nevada é monitorado muito de perto para nos arriscarmos. Eu não percorreria nem duzentos quilômetros até ser baleado. Wells franziu a testa. — Então o que acha de uma rota mais indireta? Algo que o mantenha fora das rodovias principais? — Você está ficando paranóico — observou Jakes. – Desde que eu respeite o limite de velocidade e as normas da estrada, não haverá problemas. — Não tenha tanta certeza. Você pegou emprestado seu corpo há alguns meses. Alguém já deve ter notado que ele está desaparecido. — Notar que está desaparecido e efetivamente procurar por ele são duas coisas bem diferentes — argumentou Jakes. Inclinando a cabeça para o lado, Wells respondeu: — Seja lá como for, quanto menos você for visto, melhor — ele traçou a rota de viagem de Jakes com o dedo. — São mais de mil e duzentos quilômetros de estrada aberta. — Mil duzentos e noventa e três, para ser mais preciso — interrompeu Jakes, ganhando de Wells um olhar atravessado de reprovação. Ele prosseguiu. — Estamos falando de, no máximo, quatorze horas de estrada daqui até o alvo. Nestas circunstâncias, não é uma janela de risco muito grande. E o tráfego nas rodovias principais flui com relativa liberdade. — Ótimo — disse Wells, desistindo da discussão. — Passa um pouco das duas horas, agora. Quatorze horas de estrada farão com que a sua chegada seja prevista para mais ou menos quatro horas da tarde, pelo horário da costa do Pacífico? — Sim, parece que é isto mesmo. — Um ligeiro sopro de ar da noite agitou o cabelo castanho e curto de Jakes, deixando-o despenteado. — Você e Kuroda precisam estar bem longe daqui, de preferência no ar e rumando para o Oeste, antes que eu engatilhe a ogiva. Concordando com a cabeça, Wells disse: — Já cuidamos disto. Pegaremos um voo para Tóquio em McCarran às sete da manhã. Quando chegarmos ao Japão, procuraremos por novos corpos para nos estabelecermos. — Um sorriso diabólico iluminou suas feições. — Quando você acha que Ryland vai descobrir que nós o ferramos?
— Mais ou menos uma hora depois que o mundo se acabar — disse Jakes e soltou uma gargalhada, enquanto dava um tapinha nas costas de seu compatriota. Wells fechou o mapa e o entregou para Jakes, que agradeceu com a cabeça e o guardou em sua jaqueta. Os ruídos de atividade atrás da van cessaram. Kuroda apareceu e levantou o visor da máscara. — Tudo pronto — disse ela fechando a porta de trás da picape com um barulho surdo. — Tente não passar em buracos, OK? — Farei o possível — respondeu Jakes, esperando que a ex-asiática, que agora ocupava o corpo de uma loura, estivesse apenas brincando. Abriu a porta do motorista e começou a entrar, mas parou quando Wells lhe estendeu a mão. Ele esticou o braço e a apertou. — Obrigado — agradeceu Wells. — Não sei se conseguiria ir adiante com isto se eu estivesse no seu lugar. — Claro que conseguiria – Jakes respondeu, certo de que dizia a verdade. — É a minha vez, só isso. Kuroda tirou as luvas de trabalho e apertou a mão de Jakes também. — Se você achar melhor, podemos trocar… — Não, nem sonhando — cortou ele. — Além do mais, só você pode usar seu bilhete aéreo. A decisão está tomada. É hora de partir. Ele soltou a mão dela e sentou-se no banco do motorista. Seus dois colegas se afastaram quando fechou a porta e virou a chave na ignição. O motor ligou com um ruído baixo de combustão. Pelo retrovisor da caminhonete ele viu uma nuvem cinzenta de vapor se levantar do cano do escapamento e se dissipar na escuridão da noite. Por um momento, ele sentiu uma pontinha de hesitação. Mas depois se recordou de que isto era exatamente o porquê de haver se apresentado como voluntário. Fora para uma missão como esta que concordara em transferir sua consciência para nanodispositivos e se exilar definitivamente no passado. Este era o momento para o qual ele havia vindo. — O relógio está andando — disse, com um sorriso, para seus camaradas. — Não percam o vôo. — Ele então passou a marcha e saiu em direção ao seu encontro marcado com o armagedon.
VINTE E UM 7:04 A.M. UM SOM PENETRANTE acordou Jordan Collier de um sono profundo. Ele rolou, ainda meio zonzo, e procurou pelo telefone. Seus dedos pareciam pesados e espalhafatosos, como se estivesse bêbado. Tateou a mesinha de canto por algum tempo antes que encontrasse o telefone o tirasse-o do gancho. E pensar, matutou ele pesarosamente, que eu era uma pessoa matinal. Esfregando os olhos, ele pressionou o telefone contra o ouvido e resmungou: — Alô? Jaime, sua assistente pessoal, respondeu: — Desculpe acordá-lo, Sr. Collier. Aguarde um pouco para falar com o secretário estadual. Houve um clique na linha, seguido por uma voz masculina: — Sr. Collier. Aqui é o Secretário Greisman. — Sua voz parecia distante e o eco de alguém falando por um megafone podia ser ouvido ao fundo. — Não tenho tempo para brincadeira, senhor, então vou direto ao ponto: foram você e o seu pessoal quem causou esse desastre? Arriscando soar como um idiota ou como alguém tentando negar-se pateticamente, Collier perguntou com uma confusão genuinamente sincera: — Que desastre, senhor Secretário? — Está falando sério? Ligue a porra da sua televisão. Jordan grunhiu suavemente enquanto levantava-se e procurava pelo controle remoto de sua TV de tela plana pendurada à parede. — Que canal? — Todos eles — disse Greisman. — Ande logo. Ele apontou o controle para a TV e apertou o botão “ligar”. Enquanto a televisão saía de seu estado de standby, houve uma batida na porta do quarto. Apertou o botão “mudo” no telefone e disse numa voz matinal rouca: — Entre.
A porta abriu. Jaime entrou segurando a maçaneta e Kyle passou por ela parando aos pés da cama, fora da linha de visão da TV de Jordan. Uma imagem de destruição apareceu na tela. Por trás da manchete FURACÃO DEVASTA O SUL DA CALIFÓRNIA havia uma cidade massacrada, seus arranha-céus reduzidos a destroços no chão e substituídos por incontáveis torres de fumaça subindo ao céu das pedras e destruição. — Meu Deus — murmurou Jordan enquanto tirava o telefone do modo mudo. — Foi um terremoto com magnitude de 9.4 — disse Greisman, obviamente deduzindo o que Jordan via no noticiário. — Aconteceu por volta de trinta minutos atrás. Atingiu Frisco, Los Angeles e San Diego. Mudando de canal, os olhos de Jordan arregalaram-se com a imagem da Golden Gate Bridge¹ destruída. Tudo o que sobrava da construção icônica eram seus dois arcos colossais. O que havia entre eles não estava mais lá, fora destruído e havia sumido na baía. — Há tsunamis indo na direção do Chile, Havaí e Japão — continuou Greisman. — Ainda nem começamos a calcular o número de mortes na Califórnia, então não dá pra dizer o que essas ondas vão fazer. Mas as previsões não são nada boas. — Cuidaremos do tsunami antes que ele chegue à terra firme. — Ele cobriu o bocal do telefone e disse a Kyle: — Acorde Raj. — Voltando a falar com o secretário, falou: — Se tem algo que possamos fazer pelo resgate e pelas buscas… Greisman soltou um riso breve e amargo. — Como ajudou em Seattle? Não, obrigado. — Endurecendo o tom de voz, ele continuou: — Vou perguntar mais uma vez, Collier: vocês fizeram isso? Lançando um olhar ameaçador a Kyle, Jordan disse ao secretário: — Não, senhor. Eu não ordenei um ataque, não autorizei, e o meu povo não fez isso. Kyle devolveu o olhar de Jordan sem rendição, sem demonstrar coisa alguma. Concluindo seu argumento, Jordan disse: — Por mais trágico que isso seja, temo que seja um ato de Deus. — Para o seu bem é melhor que seja. Adeus, senhor Collier. — Um clique agudo, e depois silêncio, quando o secretário desligou. Jordan colocou o telefone de volta no gancho ao lado da cama. Depois o pegou de novo e apertou o botão que o ligaria com a linha interna de sua assistente. Ela atendeu ao primeiro toque.
— Sim, senhor? — Jaime. Acorde Hal e Lucas. Preciso deles para ajudar a neutralizar o tsunami causado pelo terremoto na Califórnia. Jaime escutou suas instruções e então desligou para obedecê-las. Colocando o telefone no gancho novamente, Jordan suspirou e lançou um olhar exausto na direção de Kyle. — Eu não acabei de mentir para o Secretário do Estado, menti, Kyle? — Não sei — respondeu ele. — Mentiu? — Não se faça de bobo. Nós tivemos ou não tivemos algo a ver com a causa do terremoto hoje de manhã? — Sentindo a relutância do jovem para responder, Jordan pressionou: — Kyle, estamos à beira de uma guerra e isso pode ser o que nos empurrará a ela. Preciso saber: fizemos isso? Você e Cassie nos empurraram? Kyle virou-se de costas, mas seu rosto permaneceu visível no espelho sobre a penteadeira de Jordan. O jovem parecia estar lutando por uma resposta, mas Jordan achava que Kyle estava escutando os argumentos de Cassie. A princípio, um pano de culpa cobriu o rosto de Kyle. Em segundos, foi posto de lado por uma máscara de medo. Então seu semblante tornou-se vazio; seus olhos relaxaram e sua expressão tomou a forma da de um sociopata. Ele virou-se de novo para encarar Jordan. — É impossível dizer com certeza — declarou Kyle. — Há vários p-positivos revoltados por aí. Muitos deles têm problemas como o governo. Seria preciso apenas um deles para fazer algo assim. Era uma desculpa esfarrapada, na opinião de Jordan. Kyle era bom em muitas coisas, mas mentir com persuasão não era uma delas. — Não foi isso que perguntei, Kyle, e você sabe disso. Mas já que parece disposto a me interpretar mal, deixe-me reformular minha pergunta: você – ou a Cassie através de você – planejou, ordenou, ou aprovou, pessoalmente, ou por um representante, a iniciação ou exacerbação do terremoto de hoje de manhã por qualquer grupo p-positivo ou alguém sozinho? O fantasma de um sorriso assombrou o rosto de Kyle. — Boa pergunta — disse ele caminhando na direção da porta do quarto. Enquanto saía, disse por cima dos ombros: — Vou procurar saber e te aviso. Ele fechou a porta atrás de si. Ela fechou-se com um baque seco e pesado. Jordan ficou parado olhando-a pasmado, incerto sobre o que o preocupava mais: o fato de que Kyle estava obviamente mentindo para ele ou de que o jovem e sua musa tinham acabado de dar a desculpa perfeita para o governo dos Estados Unidos declarar guerra à Terra Prometida.
¹A Golden Gate Bridge (tradução em português, Ponte do Portão Dourado) é a ponte localizada no estado da Califórnia, que liga a cidade de São Francisco a Sausalito, na região metropolitana de São Francisco. A ponte é o principal cartão postal da cidade, uma das mais conhecidas construções dos Estados Unidos, e é considerada uma das Sete maravilhas do Mundo Moderno pela Sociedade Americana de Engenheiros Civis.
VINTE E DOIS 8:05 A.M. TOM ACABARA de se acomodar em sua mesa, em frente à de Diana, quando um ruído abafado de frustração, vindo de fora do gabinete deles, os fez sair de lá novamente. Eles quase trombaram ao chegar à porta, quando olharam através do salão da NTAC, onde uma dúzia de agentes esticava o pescoço por sobre as divisórias de seus cubículos, todos olhando para a fonte daquela comoção: o gabinete da diretoria. Meghan Doyle estava tendo um ataque de ira. Ela bateu várias vezes o telefone na base, sobre a mesa. Com um puxão ela arrancou o fio do telefone da tomada, no chão, pegou o aparelho e soltou um grito de raiva, enquanto o atirava contra a parede. O telefone se despedaçou em uma chuva de pedaços de plástico, fios partidos e componentes eletrônicos, que se espalharam pelo chão do escritório. Então Meghan deixou-se cair em sua cadeira, fincou os cotovelos na mesa e enterrou o rosto nas mãos. Todos os agentes no salão permaneceram imóveis por vários segundos, olhando para sua silenciosamente exasperada diretora. Então, como um bando de pássaros voando em formação, eles giraram suas cabeças na direção de Tom, que ficou levemente apavorado ante o apelo coletivo e silencioso. Ele olhou para Diana. Ela também o encarava. Juntando as palmas das mãos numa súplica desesperada, ele implorou a sua parceira: — Ah, vamos lá. Por que eu? — Ela é sua namorada — frisou Diana, arqueando as sobrancelhas. Droga, eu realmente odeio quando ela tem razão, Tom bufou. Ele sentiu o peso dos olhares de todo o pessoal quando saiu de seu gabinete, atravessou o salão com as mãos timidamente enterradas nos bolsos das calças, e se dirigiu lentamente para a porta da sala de Meghan. Jed Vermelho levantou sua caneca de café para brindar Tom quando este passou por sua mesa. Do outro lado do salão, Jed Azul fez sinais táticos com as mãos, para sarcasticamente avisar Tom: mantenha seus olhos abertos e sua cabeça abaixada. Conforme Tom se aproximava de seu destino, ele se perguntava por que coisas daquele tipo sempre pareciam acontecer antes que tivesse a chance de beber sua primeira xícara de café. Um gole de café antes do mundo se acabar, pensava. Será que é pedir demais? Quando chegou ao escritório de Meghan, ele se virou para olhar Diana, para tomar coragem. Ela o incentivou com um aceno de mão que mais parecia o gesto de quem espanta uma mosca. Ele fez uma careta, levantou a mão, e com o nó do dedo médio bateu tão suavemente
que quase não sentiu o contato da madeira. Então escutou com o ouvido encostado na porta. — O que foi? — perguntou Meghan por detrás da porta fechada. Percebendo que aquilo seria o mais próximo de um convite que ele receberia naquelas circunstâncias, Tom abriu a porta e deslizou para dentro. Fechando a porta atrás de si com uma das mãos, ele esticou o outro braço para ajustar o ângulo da veneziana da parede envidraçada do escritório dela, que dava para o salão. Fechou bem as lâminas, para terem privacidade. — Manhã complicada? — perguntou ele. Ela ainda estava com o rosto entre as mãos. — De onde você tirou essa ideia? — De nenhum lugar em particular — ele respondeu, na esperança de amenizar a conversa com um pouco de humor irônico. — Apenas um pressentimento. Ela se endireitou, reclinou a cadeira e olhou para o teto. — Eu acabei de falar ao telefone com o secretário da Segurança Nacional — disse ela. — Foi uma conversa rápida. Ele falou quase o tempo todo — ela suspirou. — A notícia boa é que eu estou sendo transferida para um clima mais quente: o escritório de Atlanta. Engolindo em seco para suprimir sua crescente sensação de secura, Tom perguntou: — E a má notícia é… — Estou sendo rebaixada — respondeu Meghan, forçando um sorriso fraco, tenso de raiva. — Ele está me colocando como agente de campo, apesar do fato de eu não ter experiência na área ou treino tático. — Ela balançou a cabeça. — Eu tenho a impressão de que isto é o pagamento por ele ter forçado a barra para me dar este cargo, em primeiro lugar. Pedaços de plástico partido estalaram debaixo dos sapatos de Tom quando ele contornou a mesa para ficar mais próximo de Meghan. Ele se sentou na ponta da mesa e pegou a mão esquerda dela entre as suas. — Ele ao menos te disse o porquê disto? — Ah, sim, ele me disse o porquê, está certo — ela respondeu, rolando os olhos de desgosto. — Ele disse que alguém formalizou uma reclamação acerca do fato de eu estar dormindo com você. “Fraternização inapropriada com um subordinado”, foi o nome que deram. Como se eu simplesmente estivesse corrompendo a integridade da república. Tom trincou os dentes para evitar soltar palavrões.
— Droga, Meghan, sinto muito. Eu nunca tive a intenção de… — Pare — ela cortou. — Você não tem por que se desculpar — ela bufou, com desdém. — Eles estão apenas usando nosso relacionamento como desculpa. Eu sei a que isto realmente se refere: eles me culpam por perder Seattle para Collier, e acham que o terremoto na Califórnia é resultado direto disto. Vamos encarar os fatos: eu sou um bode expiatório — ela fechou os olhos e mostrou os dentes, numa recusa furiosa. — Não acredito que vou ter que me mudar para a Geórgia. — Você pode pedir demissão — disse Tom. Aquilo quase a fez rir. — Sim, claro. É exatamente o que aquele filho da mãe em Washington D.C. quer que eu faça. Esqueça. — Tudo bem, então — decidiu Tom. — Eu vou solicitar minha transferência para Atlanta e ir contigo. Ela ficou quieta por um momento, processando mais notícias ruins. — Na verdade — completou ela — você está sendo transferido para Milwaukee. Ele ficou esperando o final da piada. Não era uma. — Espera aí — ele disse. — Eles estão me mandando para Wisconsin? — É. — Mas… — começou ele, e então a voz sumiu. – Espera um minuto! Se você estiver em Atlanta e eu em Wisconsin, quem estará no comando aqui? — Ninguém – respondeu Meghan, enfastiada. Ela olhou nos olhos dele. — Eles estão fechando isto aqui. Em pé, ao lado da mesa de Meghan, com seus punhos tão cerrados que os nós dos dedos estavam brancos, Tom repentinamente desejou que Meghan tivesse outro telefone, para que ele o pudesse arremessar contra a parede, também. Diana achou que havia entendido errado o que seu parceiro dissera. — Fechar? Mas o que é que eles estão pensando? — Olhando ao redor para a Sala das Teorias e para Marco e os dois Jeds, ela perguntou: — O que isto quer dizer para nós? — Quer dizer que temos que empacotar nossas coisas e nos aprontarmos para cair fora. —
Tom disse para o grupo, que havia se reunido em um pequeno círculo perto da tela de projeção.— Meghan está lá em cima contando a novidade para o resto do pessoal. O Departamento de Segurança Nacional acabou de nos dar uma ordem de evacuação com prioridade máxima. Eles querem a nós todos em um voo partindo de Boeing Field1 dentro de uma hora. Ela e eu já temos novas lotações. Vocês receberão ordens quando aterrissarmos em Washington D.C. Jed Azul acrescentou: — Eu não estou nem com meu passaporte. — Nem eu com minha escova de dentes — Jed Vermelho completou. — Muito ruim – disse Tom. – Carros, propriedades, animais de estimação e tudo o mais que você não possa carregar num avião ficará por aqui. Apenas os familiares mais próximos estarão autorizados a embarcar no voo de evacuação. Jed Vermelho olhou para seu gêmeo e disse: — Por mim, tudo bem. Eu nunca gostei mesmo do primo Ted. — Jed Azul concordou com a cabeça. — Gente – Diana disparou para os Jeds —, isto não tem graça. Controlando seu temperamento, ela perguntou para Tom: — E quanto a Maia? Ela está confinada no quartel-general de Collier. Franzindo a testa com pena, Tom respondeu: — Se ela não estiver no avião com você às nove da manhã, vai ficar para trás. — Bem, isto é ótimo. — Diana disse, fervendo de raiva. — Como eu vou conseguir convencêla a deixar a Terra Prometida se ela não quer nem falar comigo? — Conte a verdade a ela — disse Marco. — Se a Segurança Nacional está correndo para nos tirar daqui, é porque provavelmente as forças armadas estão preparando um grande ataque à cidade. — Não conte isto a Maia — interrompeu Tom. — Se é verdade, prevenir o pessoal de Collier será traição. E se não for, talvez incitemos um pânico que poderá matar pessoas. — Não estou nem aí para isso — disse Diana. Incapaz de ficar parada, ela se afastou do círculo e começou a andar de um lado para o outro em frente à tela branca. — Mas você está certo em não avisar Maia sobre o que está para acontecer. Isto só a fará se agarrar ainda mais a Collier.
— Talvez você possa enganá-la – sugeriu Tom. — Diga a ela o que quer que seja que ela quer ouvir. — Certo — Jed Azul se intrometeu na conversa. – O importante é tirá-la daquele edifício. Diga que está disposta a dar tudo o que ela quiser, se ela simplesmente vier encontrar você para o café da manhã. Rolando os olhos, Diana respondeu: — Maia não vai cair nessa. Ela sabe que eu jamais desistiria assim tão facilmente. Marco cruzou os braços. — O que quer que façamos, é melhor fazermos rápido. Os ônibus saem em vinte minutos, e nosso avião decola em quarenta. Esfregando o queixo, pensativo, Jed Azul disse: — Poderíamos atacar de frente. Entrar pela porta dianteira do quartel-general de Collier, achar Maia e tirá-la de lá. Jed Vermelho acrescentou: — Movimento arriscado, mas talvez tenhamos a vantagem do fator surpresa. — Nem pensem nisso — contestou Tom. — O pessoal de Jordan não irá deixá-los chegar a menos de cem metros daquele prédio. Ele tem sentinelas que podem derreter seu cérebro, paralisar você num piscar de olhos ou fazê-lo ir embora e pensar que foi uma decisão sua. Audacioso, Jed Vermelho olhou para Marco e perguntou: — E quanto à sua habilidade de teletransporte? Você poderia surgir lá, agarrar Maia e desaparecer antes que o pessoal dele saiba que você esteve ali. Sacudindo a cabeça, Marco respondeu: — Primeiro, eu não posso mergulhar no escuro. Preciso de uma foto como referência ou uma imagem de vídeo do meu destino. Segundo, eu não tenho tido muita sorte ao trazer pessoas comigo quando me teleporto. Até agora, o maior passageiro que eu fui capaz de transportar é o meu gato. Além do mais, Collier vem instalando todo tipo de defesas exóticas naquele prédio há meses. Tentar “aparecer” por lá pode ser o meu fim. — Sempre haverá o telhado — insistiu Jed Azul. — O que tem isso? — perguntou Marco. — Bem, nós temos toneladas de fotos daquilo. Você poderia pular para lá, explodir a tranca da
porta de acesso com uma carga de C-4, e descer até a escada principal. Tom apertou os olhos em cínica desaprovação. — Jed Azul, pense por um instante. Collier mora no último andar daquele edifício. Você acha mesmo que ele não protegeu o acesso do terraço? Além do mais, nós não sabemos nem em que andar Maia está. Se chegarmos lá abrindo fogo, em um tipo de missão de resgate para levar Maia à força, vamos nos dar mal. — Adotando um tom de desculpas, ele disse para Diana: — Se você acha que pode convencê-la a sair de lá, deve fazê-lo agora. — Ela não sairá — disse Diana, imaginando como Maia reagiria diante da crise iminente. — Não dessa maneira. — Então é melhor nos aprontarmos para ir — disse Tom. — Eu não vou — respondeu Diana. — Se Maia ficar, eu também ficarei. A preocupação endureceu as feições de Tom. — A evacuação não é opcional, Diana. Estamos cumprindo ordens. Toda a equipe da NTAC deve estar naquele avião. — Então eu me demito — disse Diana, orgulhosamente desafiadora. Marco e os Jeds trocaram olhares preocupados. Jed Azul disse a Diana: — Você realmente acha que será bem fácil, não é? — Ele está certo – disse Marco. – A lei diz que em tempos de emergência nacional, estamos todos comprometidos enquanto durar a crise. Não podemos simplesmente abandonar o barco. — Com um sorriso torto ele acrescentou: — O lado bom é que ao menos isto significa que temos estabilidade no emprego. Diana olhou para Tom, procurando um resquício de esperança. — Meghan não vai aprovar isto, não é? — Não depende dela — disse Tom, encolhendo os ombros. — Meghan acabou de ser rebaixada, lembra? Ela não tem autoridade para deixar você ficar, mesmo que queira. A unidade tática está comandando a evacuação, e Major Falkner recebe ordens diretamente do secretário. De um modo ou de outro, Falkner vai colocá-la naquele avião; como prisioneira, se for preciso. — Ótimo – disse Diana, já formulando um plano. — Já que não há meio de evitarmos entrar no avião, temos apenas que bolar uma maneira de sair de lá.
Notas: 1 Boeing Field – aeroporto localizado em Seattle.
VINTE E TRÊS 8:55 a.m. MEGAN DOYLE ESTAVA de pé ao lado da saída do Aeroporto Internacional King County e entrada para a pista pavimentada, onde um jato 737NG estava preparando-se para decolar. Uma fila de agentes da NTAC postava-se atrás dela, de mãos vazias, enquanto marchavam para sua evacuação forçada de Seattle, escoltados por uma equipe tática usando uniforme negro e carregada de armas e equipamentos. Uma brisa leve trazendo o cheiro do combustível do jato bagunçou o cabelo de Meghan. O barulho das turbinas da aeronave aumentava a cada segundo. Ela encolheu-se sob o a luz solar matutina refletida na cauda do planador, então virou o olhar e checou seu relógio. Em menos de cinco minutos, o transporte deixaria o aeroporto, escoltado por um par de aviões de caça F-14 da Base de Guarda Nacional de Washington. Ela estava contanto mentalmente quem já havia passado por ela e quem ainda tinha que subir no avião. Olhando pelo interior do terminal, a moça avistou dois dos agentes que faltavam. Tom estava ao lado da porta do banheiro masculino checando o próprio relógio. Quando o fim da linha de agentes passava à sua frente, ela o chamou: — Tom! Vamos! — Estou esperando o Marco — ele gritou de volta. Abrindo a porta, gritou para dentro do banheiro: — Vamos, Marco! Apresse aí! Nossa carona está saindo! — Beleza, beleza — retrucou Marco, sua voz ecoando de dentro do banheiro. Um momento depois, ele saiu, parou para olhar para trás, levantou sua câmera digital e bateu uma foto antes de seguir Tom até o portão de embarque. Empurrando os dois homens à sua frente, Meghan perguntou a Marco: — Você sempre fotografa banheiros depois de usá-los? — Estou fotografando tudo — disse ele, tirando outra foto do terminal por cima dos ombros enquanto subiam os degraus do avião. No topo da escada, olhou para trás e acrescentou saudosamente: — Tudo isso pode desaparecer amanhã. — Bem, precisamos ir em um minuto, então suba no avião — disse Meghan, empurrando-o para dentro. Ela o seguiu e disse ao comissário de bordo: — Estamos todos a bordo. Feche tudo. O jovem militar assentiu e selou a porta, que se fechou com um baque pesado. De uma única vez, o ranger dos motores reduziram-se à um zumbido lento que reverberava através casca de alumínio da aeronave e era parcialmente abafado pelo barulho suave do sistema de ventilação, que circulava ar condicionado pela cabine de passageiros.
Meghan seguiu Tom e Marco até seus assentos, que eram na última fileira da classe empresarial. Não havia divisão entre esta sessão e a econômica; a única diferença entre elas era que os assentos na classe empresarial eram mais largos e tinham mais espaços para as pernas do que os da classe econômica. Enquanto Meghan esforçava-se para achar e juntar as duas partes do cinto de segurança, a voz de um homem com sotaque sulista saiu do alto falando sob a cabine do piloto: — Bom dia, galera. Aqui é o capitão Dan Harper, e eu serei seu piloto hoje. Agora preciso pedir a vocês que se levantem e ajeitem seus assentos na posição vertical enquanto esperamos pelo momento da partida. Serviremos o café da manhã assim que tivermos altitude, então apenas sentem-se direito, e aproveitem a viagem. Equipe de voo, prepare-se para a decolagem. Todos se ajeitaram, exceto Marco, cujo rosto contorceu-se num primeiro sinal de náusea. Ele levantou-se e caminhou atrapalhadamente na direção do banheiro, onde passou por uma comissária de bordo que tentou impedi-lo. Inclinando-se pelo corredor, Diana perguntou a Tom, num sussurro: — O que ele tem? — Sei lá — disse Tom balançando os ombros e a cabeça. — Ele está se sentindo enjoado desde que saímos da NTAC. Diana franziu o rosto, então abriu seu cinto de segurança e levantou-se. — É melhor eu dar uma olhada nele — disse ela, começando a andar. Meghan assistiu Diana dirigindo-se para o fundo da aeronave. A segunda bateu na porta do banheiro, então deu um passo para trás quando a porta abriu e a fez sumir de vista. Perplexa, Meghan lançou um olhar indagador a Tom. — Eles namoravam — disse ele. Ela assentiu como se isso explicasse tudo, mas alguma coisa ainda parecia errada. Como passatempo, ela olhou pela janela na direção do topo distante do Monte Rainier ou para as linhas passando por baixo da asa do avião enquanto eles se saíam da pista ou para seu próprio reflexo na janela. Então Tom soltou seu cinto de segurança e levantou-se. — Vou ver porque estão demorando tanto — disse. — Já volto. Antes que Meghan pudesse mandá-lo ficar, ele disparou pelo corredor. Ela inclinou-se por sobre seu assento e olhou para trás à tempo de vê-lo bater na porta do banheiro e, assim
como Diana, dar um passo para trás para que ela se abrisse. A porta ficou aberta por vários segundos. Sua curiosidade estava transformando-se em suspeita. Ela murmurou: — O que está acontecendo? Os dois Jeds levantaram as cabeças por sobre a parte de trás de seus assentos em frente ao dela. JA disse: — Talvez queiram fazer sexo nas alturas. — Você tem que estar no ar antes que possa fazer isso — disse Meghan. — E duvido muito que seja isso o que estão fazendo. JV perguntou: — Quer que a gente vá chamá-los? — Se importariam? — De maneira alguma — disse JV. Os dois Jeds soltaram o cinto de segurança, levantaram-se e saíram pelo corredor. Um minuto depois, nenhum dos agentes que haviam ido voltara. Meghan decidiu que estava na hora de ver por si mesma o que estava acontecendo lá atrás. Soltou seu próprio cinto de segurança e caminhou apressada pelo corredor na direção do banheiro, onde JV mantinha a porta aberta. Ela perguntou: — O que está havendo, Garrity? — Nada — disse ele, sem expressão. — Está tudo bem. — Largue a porta e se afaste — disse Meghan. — Agora mesmo, agente. Isso é uma ordem. Hesitante, ele soltou a porta e se recostou à parede ao fundo. Meghan fechou a porta e passou por ela, então a abriu para ver o que estava acontecendo dentro do minúsculo banheiro. Como temia, ele estava vazio. — Ele está respirando? — perguntou Tom.
— Muito pouco — disse Diana segurando o pulso de um Marco inconsciente. O analista de cabelos negros jazia no banco de trás do carro de fuga dos agentes, que corria para o norte da I-5 numa velocidade estonteante. — Está com a pulsação baixa. JA estava ao volante, ziguezagueando através do tráfego como se o carro deles fosse linha e a estrada agulha. Ele lançou um olhar nervoso a Marco por cima do ombro, e então perguntou a Tom: — Ele está muito mal? Acha melhor levá-lo ao hospital de veteranos? É o mais perto. Tom jogou a pergunta a Diana: — Você que sabe. — Eu não sei — disse ela. — Não sou médica. Ela ainda estava espantada com a maneira como Marco conseguira teletransportar-se do avião até o banheiro dos homens com ela junto. Eles haviam desaparecido de um lugar e aparecido no outro sem qualquer sinal visível de transição. Para Diana, fora quase algo mágico. Mas a julgar pelo tom pálido no rosto de Marco, ela percebeu que devia ter sido muito mais árduo para ele. Conseguir tal façanha pelo menos uma vez representava um grande passo adiante na maturidade de sua habilidade de promicina; o fato de que ele tinha levado uma foto tirada dentro do banheiro da aeronave para teletransportar-se de volta ao avião, que ainda estava visível distanciando-se pela pista, e repetir a “viagem” mais duas vezes — primeiro para levar Tom de volta ao terminal e então, na última viagem, JA — não fora nada milagroso. Mas então, antes que pudesse fazer outra aparição para tirar JV do avião, Marco caíra ao chão, sofrendo espasmos durante vários segundos antes de desmaiar. Sem tempo ou maneira de voltar ao avião, eles estavam seguindo com o plano, que consistia em sair do terminal o mais rápido possível. JA tinha ido ao estacionamento, pegado um carro e encostado ao lado da entrada lateral, onde tinha pegado Tom e Diana, que carregavam Marco. O que aconteceria em seguida nenhum deles sabia, infelizmente. Confiando em seus instintos, Diana disse: — Acho que ele só está exausto, não morrendo. Vamos ficar longe de hospitais. — Tudo bem — disse Tom. — Mas é bom ficar de olho nele assim mesmo. Se algo piorar antes de chegarmos ao escritório, podemos desviar para Harbor Hill ou First Hill. — Copiado — disse JA, passando por outro grupo de veículos que dirigia a menos de 160 km/h. — Então vamos mesmo voltar para a NTAC? — A não ser que consiga pensar em outro lugar para fazermos nosso esconderijo — disse
Tom. Ninguém tinha uma sugestão melhor. Os arranha-céus do centro da cidade brilhavam sob o sol da manhã e assomavam-se cada vez mais pertos à medida que o carro continuava seguindo para o norte. Depois de alguns minutos, Diana ficou aliviada ao sentir um aumento na pulsação de Marco. Sua respiração voltou ao normal, e então seus olhos abriram-se levemente. Rolando a cabeça para os lados para ver onde estava, ele resmungou: — Acho que conseguimos. — Por enquanto sim — disse Diana, lançando-lhe um sorriso gratificante. — Mas não estaríamos em lugar algum sem você. Foi uma grande ajuda. Ele sorriu. — Foi só um truque que vinha treinando. Olhando por sobre o ombro, Tom perguntou: — Como se sente? — Já estive melhor — disse Marco, estremecendo enquanto sentava-se. — Quem de vocês usou minha cabeça como bastão? JA sorriu para ele pelo espelho retrovisor. — Estávamos com medo de que tivesse se machucado feio. — Nada que um ano nos trópicos não conserte — disse Marco antes de produzir um sorriso fraco. — Mas ficaria feliz com um pouco de aspirina, uma bolsa de gelo e um cochilo. Inclinando-se para frente e procurando por sabe-se-lá-o-quê nos céus, Tom disse: — Seu cochilo vai ter que esperar. Tem algo acontecendo, com certeza. Olhando para fora das janelas, Diana disse: — Do que está falando? Não estou vendo nada. — Exatamente — disse Tom. — Quando foi a última vez que viu o céu em Seattle tão vazio assim? Cadê o trânsito usual? Devíamos estar vendo aviões lá no alto. Marco pressionou o rosto contra a janela traseira do carro e olhou para as faixas azuis entre os arranha-céus que margeavam a I-5. — Você acha que estão limpando o espaço aéreo — disse. — Preparando o campo de
batalha. A expressão de Tom tornou-se sombria. — Acho que precisamos de um abrigo, depressa. Olhando para uma parede de telas de televisão na sala de reuniões executivas da Fundação Collier, Jordan viu o momento tomando forma com toda a sua terrível glória. Ao redor dele, seus conselheiros e assistentes conversavam freneticamente à medida que recebiam as informações. O ar na sala estava pesado com cheiro de corpos sem tomar banho e de hálitos matinais. Desde as duas horas e meia atrás que o Secretário Estadual o acordara, Jordan não tivera tempo de comer algo ou tomar banho. Mal tivera tempo para colocar uma roupa sem gravata e chamar seu pessoal mais próximo. Agora que todos estavam juntos, ele sentia-se como o chefe enlouquecido de um circo. — Temos ocorrências de soldados adentrando a Costa Magnólia da Reserva Fort Lawton — disse Gary Navarro, à esquerda de Jordan. Da sua direita, Kyle acrescentou: — Tanques estão cruzando a ponte Evergreen Point e a do Lago Washington. — Pode ser só encenação — interpôs Lucas, o telepata gestáltico, que estava ao lado de vários de seus colaboradores psíquicos. — Outra demonstração vazia de força. — Muito improvável — disse a assistente de Jordan, Jaime, que abria caminho entre os três homens. — Todo o pessoal da NTAC acabou de deixar Seattle num jato do governo em Boeing Field. A sala aquietou-se enquanto Jordan digeria estas últimas notícias. Ele olhou para os rostos que o cercavam: para Gary e Kyle, para Jaime e Maia, para Hal e Renata e dúzias deles. — Não preciso de um xamã ou de pré-cognição para saber o que está para acontecer — disse aos presentes na sala. — Digam a todos que chegou o momento: a batalha pela Terra Prometida começou.
VINTE E QUATRO 9:58 A.M. TOM FICOU AO LADO DE DIANA e a observou digitar o código de segurança no teclado próximo à porta de frente. Barras de titânio bloqueavam a porta, que por sua vez era feita de aço duplamente reforçado. — É bom ver que eles se lembraram de trancar tudo quando saíram — brincou Tom. Seus três companheiros responderam com um franzir de testas. Diana digitou o último número de seu código e apertou “enter” no teclado. Com um ruído quase inaudível, vibrando, as barras se recolheram para dentro do concreto reforçado das fundações do centro de comando. Jed Azul, que estava esperando com seu cartão magnético na mão, adiantou-se e destravou a porta, depois a empurrou, abrindo-a para o resto do grupo. Tom entrou primeiro, seguido por Diana, Marco, e então Jed Azul, que voltou a trancar a porta atrás de si. Tom achou estranho ver as guaritas de vigilância vazias, os detectores de metal e de agentes químicos desligados, e as luzes do teto apagadas. A única luz era a iluminação residual. A maior parte desta vinha de uma fila de máquinas de suco e refrigerantes; o resto era produto de letreiros de “saída” permanentemente acesos e dispostos em intervalos regulares ao longo do teto. Os quatro agentes dispararam pelo saguão e pelos corredores até o centro de crise. Os passos apressados ressoavam pelos cantos vazios. O eco era tão agudo e alto que fez Tom ficar alerta, apesar do fato de não haver mais ninguém no prédio para escutá-los. Como o resto das instalações, o salão principal estava às escuras. Quase que por instinto, Tom começou a distribuir ordens. — Marco — disse ele. —, consiga informações lá de fora imediatamente. Vou ajudar Diana a reiniciar o sistema de comando. Jed Azul, vá até o arsenal e consiga algumas armas e coletes à prova de balas, caso alguém tente nos acertar. Marco e Jed Azul correram em direções diferentes, deixando Tom e Diana pulando de uma estação de trabalho para outra, trazendo o sistema de volta em um terminal de cada vez. Digitando sua senha no sistema, Diana disse, sem disfarçar a ansiedade: — Se Meghan já nos declarou desertores para Washington D.C…. — Eu sei — disse Tom, sem necessidade de ser lembrado de que seus privilégios de acesso ao banco de dados de segurança unificado da nação, bem como o de todas as fontes de inteligência locais da NTAC, poderiam ser interrompidos remotamente por seus superiores no Pentágono. — Vamos apenas torcer para que Marco encontre uma forma de nos manter no jogo.
Ele ouviu Diana digitando as teclas. Então seguiu-se um silêncio. Ela permanecia em frente ao terminal, as mãos pressionadas uma contra a outra em frente a seu rosto, como se estivesse rezando. — Algum sinal? — perguntou Tom, observando a tela em frente a ele girar um círculo, enquanto processava os códigos que digitara. — Ainda processando — ela disse por detrás das mãos. Então relaxou e abaixou-as. — Estamos dentro! Nossas senhas ainda estão ativas. Meio segundo depois, o terminal em frente a Tom também se ativou, emitindo alertas de prioridade do Pentágono. — Está bem — disse ele. — Vamos terminar de reiniciar. Eles foram de estação em estação, digitando seus códigos. Em questão de minutos estavam cercados por mais dados do que eles poderiam monitorar de uma só vez com apenas quatro agentes. Quando ligaram as duas últimas estações adjacentes, Diana pensou alto: — O que devemos fazer, agora que temos tudo funcionando? Estourar pipoca e assistir à cidade pegar fogo? — Depende — respondeu Tom. — Sobrou alguma pipoca na cozinha? — Repreendido pelo olhar fulminante de Diana, ele mostrou as palmas das mãos e continuou: — Olhe, o único motivo pelo qual voltamos é o salvamento de Maia. E, para ser honesto, neste momento eu não tenho ideia de como o faremos. Mas esta é a base de operações mais segura que nós temos. Tudo o que podemos fazer agora é observar e esperar. E eu te prometo, aconteça o que acontecer, nós não iremos deixar a cidade sem ela. — Isso mesmo — acrescentou Jed Azul, que retornava ao salão com uma braçada de coletes à prova de balas, dois rifles de assalto presos diagonalmente em suas costas, e mais um rifle pendurado de cada lado do corpo. — Sua garotinha vai voltar para casa, Skouris. — Pode apostar — Marco disse, ao retornar. Ele se sentou em um dos terminais de supervisor e começou a digitar furiosamente. — Deem-me dez minutos e eu serei capaz de impedi-los de nos negarem acesso. No mínimo eu serei capaz de arranjar uma maneira de permanecermos conectados ao banco de dados. — Bom trabalho — disse Tom. — Eu vou começar a procurar as últimas ordens da Secretaria de Defesa, descobrir o que está acontecendo por lá. Jed Azul entregou um rifle e um colete para Tom, depois deu o mesmo equipamento para Diana e Marco. Passando por Tom, ele parou e disse: — Preciso fazer mais algumas viagens. Precisamos de clipes reserva para os rifles, mais uma
Glock e algumas recargas para Marco. — Obrigado, J.A. — disse Tom, dando um tapinha no ombro do colega. — Só há um de mim aqui, Tom. Você pode me chamar de “Jed” novamente. Tom concordou com a cabeça. — Está certo. Enquanto Marco digitava, Jed caminhava e Tom se concentrava nos grupos de dados brutos que fluíam na NTAC, Diana pigarreou de maneira dramática, claramente querendo chamar a atenção de todos. — Gente… — ela disse. Os três homens pararam e olharam para Diana. Ela estava de pé, braços cruzados, os olhos parecendo estar cheios d’água. — Há algo que eu tentei dizer antes, mas… O momento nunca parecia… — ela fez uma pequena pausa, e então tentou novamente. — Eu só queria dizer… Obrigada. Primeiro por me ajudar a sair do avião, e mais ainda por virem comigo. Uma vez que vocês me tiraram de lá, poderiam ter me deixado para resolver isto sozinha. Ao invés disso, vocês todos estão aqui, comigo, no meio desta zona de guerra. — Ela enxugou uma lágrima solitária de sua bochecha e sacudiu a cabeça. — Maia é minha filha, eu tenho que estar aqui. Mas vocês, gente… — Eu tenho que estar aqui também — acrescentou Tom. – E não só por causa do meu filho. Porque eu sou seu parceiro. Marco falou para ela com um sorriso torto e amargo: — Se você está aqui, eu também estou. — A NTAC dizendo para deixar sua filha para trás? Isto não está certo — disse Jed. — No momento em que eles fizeram isto, eu fiquei cem por cento contigo. Aconteça o que acontecer, eu te darei cobertura. E à Maia também. Diana sorriu com o que Tom entendeu como alegria encabulada, então enxugou lágrimas frescas de seu rosto. — Obrigada, gente — ela disse, forçando a si própria a recompor seu semblante. Ergueu seu colete à prova de balas acima da cabeça, vestiu-o adequadamente e ajustou os fechos de velcro sobre suas costelas. — Agora vamos nos aprontar para detonar — concluiu.
VINTE E CINCO 10:14 a.m NÃO IMPORTAVA A DISTÂNCIA que Jordan ficava da batalha desenrolando-se ao seu rodar, ele sentia como se não pudesse ver tudo. Muitas coisas acontecendo muito rapidamente. Pela primeira vez desde que voltara do futuro, ele imaginou se havia se apossado de mais do que podia aguentar. — Hal, Lucas, Renata — disse ele aos principais membros de sua telepatia gestáltica. —, precisamos de informações sobre aeronaves que se aproximarem. — Três grupos aéreos de combate avistados até agora — disse Hal, o cego que tinha visão remota. — Um A-10 bombardeiro aproximando-se do porto em Puget Sound. Dez F-22 aproximam-se do nordeste em grande altitude. Do sudeste, dezesseis helicópteros Black Hawk¹ carregado de tropas. Ainda, dois aviões de suporte AWAC². Virando sua atenção para os vários monitores de vídeo, Jordan avistou uma linha de tanques avançando sobre as pontes que levavam à Terra Prometida pelo leste. Ele soube que uma decisão difícil era iminente. — Gary? O que está acontecendo lá embaixo? O jovem e atlético telepata balançou a cabeça e franziu o cenho. — Alguns desastres, e estamos perdendo território. Kyle deu um passo a frente, invadindo o espaço pessoal de Jordan. — Estamos perdendo território porque estamos de mãos atadas — disse ele, com a voz ríspida de raiva. — Mandou nosso pessoal defender-se de modo não-letal e passivo. O Exército tem atiradores atacando nosso pessoal de longe. Se não começarmos a revidar… — Destrua as pontes — disse Jordan, cortando Kyle. — Coloque nosso pessoal em segurança, então mande Dieter e Stefka afundarem aqueles tanques no rio. — É pra já — disse Kyle distanciando-se para executar a ordem. Embora a ventilação na sala de conferência estivesse fria e o ar condicionado na sua potência máxima, o rosto de Jordan estava quente. Ele limpou o suor de sua testa, então respirou fundo. Emil, um dos guarda-costas pessoais de Jordan, balançava a cabeça enquanto ouvia alguém pelo telefone, então levantou a cabeça e declarou:
— As barreiras estão impedindo. Tem quase trezentos navios bloqueando a Trigésima Sexta avenida pelo leste e o norte da Rua West Emerson. — E as pontes ao norte? — perguntou Jordan. — Sem contato com Ballard, Aurora ou Freemont — respondeu Emil. Gary resmungou com sarcasmo. — Nossa, que alívio. Acho que não temos mais nada com o que nos preocuparmos, exceto bombardeio naval, guerra biológica e um possível ataque nuclear. — Por falar nisso — disse Hal. — Vejo vários navios de guerra ao longe no extremo oeste de Pugent Sound carregando mísseis. Acho que tem muito chumbo vindo em nossa direção. — Tudo bem — disse Jordan, dando o melhor de si para exalar calma e confiança à sala lotada de pessoas que o olhavam em busca de liderança. — Nos preparamos para isso. Avise a todos na equipe de defesa aérea que se aprontem. Mensageiros telepáticos e assistentes com celulares enviaram avisos para sentinelas postados nos telhados e em lugares escondidos por toda Terra Prometida. Muitos das sentinelas eram eletrocinéticos, com habilidade desde campos de força que atrapalhavam sinais à rompimento magnético. Jordan esperava que com a ajuda de outros telepatas gestálticos e o guiamento de diversos clarividentes, os guardiões eletrocinéticos da Terra Prometida fossem rápidos e fortes o suficiente para impedir um ataque de míssil, porém lembrou-se de um conselho habitual de seu amigo ex-exilado Richar Tyler: espere pelo melhor, mas planeje o pior. Ele suspirou e arrependeu-se por não ter a experiência militar de Richard num momento tão crucial para o Movimento. Para seu desgosto, ele sabia que não havia outra pessoa a culpar pela ausência de Richard exceto a si próprio. Para impedir os Marcados, Jordan pressionara-o para torná-lo algo que não era: um assassino. Não demorara muito para que Richard abandonasse a tarefa – e, consequentemente, sua associação com Jordan. Mas isso era passado. Jordan tinha que se concentrar no presente. Talvez devesse ordenar um ataque preventivo contra os navios com mísseis, pensou. Não para destruí-los, mas para desarmá-los. Seria mais fácil do que interceptar mísseis em curso… Ele estava prestes a dar a ordem quando ouviu Maia soltando uma exclamação. — Parem! — gritou ela, silenciando o murmúrio e vozes na sala de reuniões. — É uma armadilha. Acenando para que todos ficassem quietos, Jordan perguntou: — O que é uma armadilha, Maia?
— Tudo — choramingou ela. — Os navios, os aviões, os soldados. Esse não é o ataque! — Ela apontou para o teto. — O verdadeiro ataque está vindo de lá. Todos olharam para cima, exceto Kyle, que virou-se aparentemente ouvindo seu oráculo invisível. Então também mirou o teto revelando a expressão de terror em seu olhar. — Um satélite! — gritou. — Cassie diz que o ataque vem da órbita, e o alvo somos nós! — Evacuem o prédio! — bramiu Jordan. — Hal, Lucas, Renata! Preciso de vocês comigo. — Virou-se pra Gary. — Vá com o Kyle e deixe Maia em segurança. Gary assentiu e seguiu Kyle até a porta, onde esperou que Maia o alcançasse. Então ele a pegou pela mão e a levou pelo corredor carregado de gente correndo para as escadas. Jordan olhou para seu trio de especialistas gestálticos. — Há alguma chance de pararem o satélite? — perguntou. — Se puder me apontá-lo — disse Renata. —, posso tentar fritá-lo antes que dispare. — Encontrá-lo será difícil — disse Hal ajustando seus óculos escuros de lentes grossas. Segurando-os pelos ombros, Jordan disse: — Tente. Logo. Lucas aproximou-se e deu as mãos a Hal e Renata. Os três abaixaram a cabeça e concentram-se. — Vou procurar — disse Hal, sua frustração evidente. — Mas não sei por onde começar. O espaço é muito vasto… muito vazio. — Continue tentando — urgiu Jordan. Balançando a cabeça, Hal respondeu: — Sinto muito, tudo parece igual. Não tenho ponto de referência, nenhum lugar para começar. Kyle adentrou novamente a sala de reuniões e avisou Jordan, com urgência: — Noventa segundos! Mesmo Jordan tendo grande medo da tendência sanguinária de Cassie, ela nunca errara antes, e ele não ia testá-la agora. — Já chega — disse ele empurrando o trio de gestálticos para a porta à sua frente. —
Corram! 10:22 a.m O capitão Arthur Desmond, o comandante oficial da aeronave americana Abraham Lincoln, estava de pé no centro obscurecido, porém fervilhando de pessoas do Centro de Direção de Combate. O compartimento estava mergulhado num brilho azul que era quebrado a intervalos regulares pelas telas brilhantes dos monitores que variavam de um verde-escarlate à um vermelho-sangue. O chiado de conversas por rádio pairava no ar e juntava-se ao zumbido baixo de pessoas que falavam suavemente usando fones de ouvidos individuais. Desmond postava-se calmamente, esperando a confirmação final das ordens finais. Em uma divisão com monitores de telas planas, a tela central mostrava uma imagem por satélite do centro de Seattle, sobre o qual fora implantado uma visão em três dimensões do alvo gerada por computador. A comandante Serena Hass, oficial executiva do navio, inclinou-se por sobre o oficial de comunicação. Ela acenou enquanto o jovem encarregado terminava de entregar seu relatório, então cruzou o compartimento apertado até ficar ao lado de Desmond. — O departamento de táticas confirma que todas as unidades estão em posição, e a resolução do alvo é clara. O Comando Espacial verificou que o satélite está pronto, e que temos tudo sob controle. — Obrigado — disse Desmond. Do painel à sua frente, ele pegou um telefone que tinha linha direta com o Pentágono. — Almirante Kazansky? — Prossiga, capitão — respondeu o chefe da Marinha. — A Força Aérea confirma estar pronta para o ataque, senhor. Estamos esperando a confirmação final da ordem. — Aguarde na linha — disse Kazansky. Demorou apenas alguns segundos até que o almirante transmitisse o pedido para a Casa Branca. A próxima voz ao telefone era uma que Desmond esperava nunca ouvir: — Capitão, aqui é o presidente. Acione a arma. — Sim, senhor presidente. Liberar Abraham Lincoln. — Desmond desligou o telefone, virou para sua oficial executiva e disse: — Vá em frente.
Hass acenou para o oficial de ações táticas, que falou com o encarregado das armas, que pressionou um único botão em seu painel, liberando uma explosão de dez segundos de um laser de energia postado em um satélite em órbita, muito acima do planeta. Uma palavra dita… um botão pressionado… um jato de luz. E um prédio desapareceu. Um elevador executivo levou Jordan e seus conselheiros seniores ao térreo do edifício Collier menos de trinta segundos depois que deixaram a sala de conferências. Enquanto o grupo reduzido apressava-se para sair do prédio e corria degraus abaixo saindo na rua Cherry, o céu azul sem nuvens acima deles explodiu. Uma espada de fogo vinda do alto lançou-se para baixo, brilhando mais que o sol, e martelou o centro do arranha-céu atrás deles. Fogo irrompeu de cada janela e encheu o térreo. O chão tremeu, e a praça em volta do edifício rompeu-se: partes dela soltaram-se para cima, outras afundaram. — Corram! — ordenou Jordan, liderando seu povo pela rua, através da praça a céu aberto da Prefeitura de Seattle. As calçadas estavam lotadas de pedestres e as ruas entupidas de carros cujos motoristas olhavam para o alto, boquiabertos diante do espetáculo acima deles, chocados demais para se darem conta de que deviam procurar abrigo antes que fosse tarde demais para fazê-lo. Os destroços em chamas caíam em meio à um tempestade de vidros quebrados, alguns em cacos tão grandes que perfuravam os observadores imóveis. Uma explosão ensurdecedora derrubou Jordan e sua turma no chão de concreto coberto de cacos de vidro e os cobriu de estilhaços. Lutando contra suas palmas sangrentas para que se levantasse, ele ouviu às suas costas os primeiros estrondos de morte do arranha-céu, que começou a implodir de cima a baixo. — Vão! — berrou Jordan para o seu povo, acenando para eles. Gary pegou Maia e carregou a adolescente assustada enquanto corria a sudoeste pela praça em meio a centenas de civis que fugiam em direção à Rua James. Emil guiava o cego Hal, Lucas carregava uma Renata ferida e ensanguentada, e Kyle flanqueava Jordan. A queda da Fundação Collier ficou mais rápida. Enquanto o prédio desaparecia dentro de si mesmo, uma nuvem de cinzas escuras e fumaça formou-se ao seu redor e espalhou-se pelo lado de fora. Não vamos conseguir, percebeu Jordan quando olhou para trás e viu o nevoeiro negro caindo sobre ele.
Então algo invisível o agarrou, e ele viu seus amigos serem puxados rapidamente em sua direção pela mesma força que o atingira. Demorou um momento para perceber que era obra de seu guarda-costas Emil, que usara sua habilidade telecinética para puxar todos mais próximos. O jovem levantou os braços e juntou os dedos acima de sua cabeça, formando um V de pontacabeça. Enquanto a enxurrada de concreto pulverizado, metal destruído, cacos de vidro e pó caía, ela atingia a barreira psicocinética acima de sua cabeça e caía para a esquerda e para a direita da escadaria da rua James, deixando Jordan e os outros encolhidos sob uma redoma segura. Todo o cheiro que Jordan sentia era gasolina e fumaça. Poeira e pequenos cacos de vidro picavam seus olhos, e o mundo inteiro parecia abafado como se estivesse embaixo d’água. Seus olhos marejaram-se de lágrimas para limparem-se, então ele piscou sentindo a dor e olhou para trás. Uma montanha ardente de escombros assomava-se acima dele. Não havia nem sinal do arranha-céu que ele proclamara como sua sede há apenas alguns meses antes nem da Prefeitura de Seattle. Onde antes ele vira ruas congestionadas de carros, agora só via concreto destruído e aço distorcido. Emil estendeu a mão a Jordan para ajudá-lo a levantar-se. Olhando através da neblina escurecida, ele viu que Kyle, Gary, Maia, Hal, Lucas e Renata ainda estavam ali. Assim como ele, os outros também estavam cobertos de poeira e tossindo. Apertando a mão de Emil, Jordan disse: — Bom trabalho. — Embora o jovem não tivesse demonstrado a mesma precisão com sua habilidade que Richard Tyler mostrara, ele acabara de provar que certamente podia igualar-se a Richard. Jordan virou-se para os outros. — Estão todos bem? Lucas, que estava ajoelhado ao lado de Renata – que sangrava e arquejava -, olhou para cima e respondeu, numa voz pesarosa: — Não. Gary, Kyle e Maia juntaram-se em frente a Jordan. — Não estou sentindo muitas mentes por perto — disse Gary. — Além de nós, diria que apenas umas duzentas pessoas conseguiram sair vivos.
O rosto de Kyle era um retrato de fúria. — Havia milhares de pessoas lá — disse. — E quem sabe quantas mais na Prefeitura, na rua e nos outros prédios? — Ele segurou o braço de Jordan. — Nós os avisamos para não atacar. Agora é hora de fazê-los pagar. Uma palavra sua e podemos apagar do mapa qualquer cidade que quiser: Nova York, Washington, Boston. Só diga qual. Jordan soltou-se do aperto de Kyle em seu braço. — Tenho uma idéia melhor. Sigam-me. — Andando na direção de Lucas, Hal e Renata, ele continuou: — A maior força do Exército Americano está na sua rede de informações. Mas uma força pode tornar-se uma dependência. E uma dependência é uma fraqueza. — Ele ajoelhou-se e segurou a mão de Renata. — Me perdoe, mas preciso pedir que faça uma última coisa. A moribunda respondeu com a boca cheia de sangue e pó: — Qualquer coisa. Ele olhou para Kyle. — A Cassie consegue nos dizer onde fica o controle do satélite que nos atingiu? — Uhn… — respondeu ele, recuando um pouco ao se tornar o centro das atenções. Franziu o cenho ao desviar o olhar e virar-se de lado para Jordan. Então sua confiança voltou, e ele deu meia-volta para encarar o grupo. — Um carregador de aviões na Costa do Pacífico, vinte e cinco milhas náuticas a oeste do Estreito de Juan de Fuca. — Diga a ela que agradeço — disse Jordan. Para o trio gestáltico, ele continuou. — Quero que os três encontrem esse carregador. Renata, o computador do avião ainda pode ter um link com o satélite que nos atingiu e, através dele, com a rede de todos os satélites da América. Faça o que puder para entrar nele. Ela consentiu. — Vou tentar. Lucas, Hal e Renata deram-se as mãos, baixaram as cabeças e fecharam os olhos. Jordan, Kyle, Gary e Maia juntaram-se ao redor deles enquanto estes comungavam. — Vejo o navio — disse Hal. Seus óculos escuros estavam quebrados, revelando os olhos cegos mirando diferentes direções. — Encontrei o capitão. Ele está no centro de comandos. Renata tossiu um jato de sangue, então disse:
— É esse o lugar. Estou passando pelos computadores. — Ela respirava com dificuldade e as exalações tinham um som molhado. — Ainda estão ligados ao satélite. — Ao que nos atacou? — perguntou Jordan. — Sim — disse ela com a voz fraca. — Ainda posso ver a ordem no histórico de atividades. A arma está recarregando. Abaixando ao lado dela, Jordan sussurrou em seu ouvido: — Ele está ligado a outros satélites? A voz de Renata tornou-se débil e monótona. — Está ligado a alguma coisa. Posso segui-la… — A cor desaparecia de seu rosto. — É o Centro de Comando Espacial Americano no Pentágono. — É isso o que estávamos procurando — disse Jordan. — Agora você pode desativar todos os satélites de uma vez. A mulher amoleceu, e Jordan viu as mãos dela soltando-se das de Hal e Lucas. Ele a segurou nos braços e a manteve no lugar. — Renata, por favor, aguente firme. Precisamos que faça isso. Só uma vez. — São muitos — reclamou ela, como se estivesse falando durante o sono. — Muito grandes. Não consigo. — Estamos aqui, Renata — disse Lucas genuinamente. — Hal e eu podemos ajudar você. Use sua força para clarear a mente. Pegue o que precisar de nós. Respirando lenta e profundamente, Renata pareceu recuperar um pouco de sua concentração e assentiu uma única vez. — Tudo bem — disse. — Mais uma vez… — Seu esforço era tão grande que seu cenho franziu-se violentamente. — Estou no sistema de comando… Todos os satélites estão conectados agora… E estou mandando ordens de autodestruição. — Ela deu um sorriso maroto. — Até logo, queridinhos. — Pronto — disse Hal. — Posso ver todos os satélites em órbita. Seus núcleos estão sobrecarregados e estragando seus componentes internos. — Ele acenou satisfeito. — Estão fritos. Lucas soltou as mãos de Hal e de Renata. — Terminei a conexão — disse.
Jordan abraçou Renata, cuja vida ele sentia esvaindo-se. — Você conseguiu — disse ele. — Você aleijou a maior força militar do mundo. — Bem feito pra eles — disse ela com um sorriso manchado de sangue. Então soltou um último e silencioso suspiro e amoleceu nos braços de Jordan. Gentilmente ele pousou o corpo dela nos degraus cobertos de cinzas, então pôs-se de pé e encarou os outros. — Encontre o máximo de sobreviventes que conseguirem. E rápido — disse. — Não temos muito tempo. Precisamos achar um abrigo antes que os soldados venham. ¹O Sikorsky UH-60 Black Hawk, designado pelo fabricante como S-70, é um helicóptero médio bimotor de transporte utilitário e assalto. ²Um sistema de radar aéreo designado para detectar aeronaves. Usado a grande altitudes, os radares permitem que seus operadores distingam aviões amigos ou inimigos a quilômetros de distância.
VINTE E SEIS 10:25 A.M. — DROGA — DISSE JED. — Está um salve-se-quem-puder lá fora. Tom observava a desordem estampada nas várias telas da parede e nos monitores dos computadores do centro de crise, e ele tinha que admitir que Jed tinha razão. Seattle havia se transformado num hospício. Arruaceiros perambulavam pelas ruas, destruindo carros e tocando fogo em tudo. Saqueadores quebravam vitrines e pilhavam residências, com ou sem resistência dos donos. — Quantos desses malucos você acha que são p-positivos? — perguntou Jed, os braços cruzados sobre seu colete preto à prova de balas. — Há pessoas nesses bandos levitando coisas, desintegrando coisas, e fazendo sabe lá Deus mais o quê. Marco ajustou os óculos, aparentemente considerando a pergunta. — Dado o êxodo dos p-negativos após a epidemia do cinquenta/cinquenta do ano passado, eu poderia estimar que três quartos dos arruaceiros possuem algum tipo de superpoder. — Não é de se admirar que a polícia de Seattle tenha sumido de vista — disse Tom, imaginando o pesadelo que deveria ser o cenário atual na perspectiva de um policial comum sem poderes vindos da promicina. Ele abriu uma tira lateral de seu colete para esfregar uma coceira que vinha incomodando suas costelas e a colocou novamente no lugar. — Mesmo os “oficiais da paz” de Jordan parecem estar sendo derrotados — notou ele, observando o que parecia ser um embate entre um oficial psicocinético e um rebelde que podia induzir convulsões com um simples toque. Sacudindo a cabeça, Jed observou: — O Corpo de Bombeiros ainda está tentando atender aos chamados? Estou vendo três edifícios prestes a… Ele foi interrompido por um clarão de luz branca ofuscante, vindo de um monitor que mostrava a imagem longínqua do céu do centro de Seattle. Por um momento, Tom sentiu uma nesga de terror puro em suas entranhas, pois imaginara que aquilo pudesse ser a detonação de uma ogiva nuclear. Então o foco se ajustou na câmera que estava filmando a cena, e os quatro agentes da NTAC viram claramente o feixe de energia cortando o céu, atingindo diretamente o Edifício Collier. Observando a torre se desfazer em fogo e escombros, tudo em que Tom podia pensar era em Kyle. Do fundo da sala, ele ouviu Diana sussurrar, horrorizada: — Maia…
O arranha-céu implodiu de cima a baixo, mergulhando para dentro de si até que sua base irrompeu, enterrando vários quarteirões da cidade sob pedregulhos e uma densa nuvem cinzenta. Tom reviveu todas as suas piores lembranças acerca do dia 11 de setembro de 2001. Apesar de seu grande esforço para esconder a emoção, seus olhos queimaram e se encheram de lágrimas. Jed sentiu-se meio tonto e deixou-se cair em uma cadeira, tudo sem conseguir tirar os olhos da tela. — Jesus — ele murmurou, parecendo estar em choque. Tom engoliu em seco e controlou seu medo. Caminhou até Marco e segurou o ombro do rapaz. — Você me consegue uma linha externa? Celular, fixo, qualquer coisa? Eu preciso ligar para o Kyle, e Diana precisa saber de Maia, agora. — Vou tentar — disse Marco, digitando nervosamente o teclado de uma estação de comunicação. O monitor lhe deu nada mais do que respostas negativas vermelhas brilhantes. — Nada — disse ele. — O exército cortou as linhas fixas, e estão bloqueando todas as frequências não-militares. — Ele chutou a parede por sob sua mesa. — Estamos completamente incomunicáveis. — Já chega — disse Diana. Ela pegou sua arma, removeu o pente e o verificou, depois o recolocou, destravando-a e acomodando-a no coldre. — Os policiais estão espalhados, os oficiais da paz de Jordan são inúteis e os militares são parte do problema — ela pendurou o rifle nas costas da mesma forma que Jed havia feito e pegou pentes de munição extras, caminhando decidida para a porta. Correndo para se colocar na frente dela e levantando uma das mãos, Tom disse: — Opa! Você não vai lá fora. — Uma ova que não vou — disse Diana, o olhar feroz e decidido. — Não aguento mais, Tom. Se Maia está viva, se por um milagre, seja ele da promicina ou de Deus, ela conseguiu sair inteira daquele edifício, eu vou achá-la e tirá-la da cidade de uma vez por todas. — Diana — insistiu Tom, tentando fazê-la entender —, lá fora está literalmente uma zona de guerra. Não temos qualquer cobertura. Até onde sabemos, fomos classificados como alvos. E se Maia está viva, então está rodeada de algumas das pessoas mais poderosas do planeta. — É fácil para você dizer – respondeu Diana. – Seu filho é um homem feito. Ele pode se virar em uma crise. Maia só tem treze anos, Tom! Ela ainda é uma criança, pelo amor de Deus! — Eu sei que ela só tem treze anos, mas eu dificilmente a chamaria de criança, Diana. Você não a viu naquela reunião com Jordan. Ela se vira melhor do que muitos adultos que conheço. Não parecendo nem um pouco convencida pelos argumentos dele, Diana disse:
— Você tem três escolhas, Tom. Pode vir comigo. Pode ficar aqui — ela o encarou sem pestanejar. Depois de alguns segundos de silêncio tenso, ele perguntou cautelosamente: — Qual a terceira opção? Ela pegou a pistola e apontou para o rosto dele. Ele recuou com um passo largo, depois saiu do caminho e a deixou passar. Ela passou por ele, vestida para matar, e saiu sem nem ao menos olhar para trás. Tom a observou, então virou-se para Marco e Jed. — Vocês sabem que ela é maluca, não é? — Os outros dois homens concordaram com a cabeça. — Quero dizer, não estou errado quanto a isto, estou? — Seus amigos sacudiram as cabeças. — Taticamente falando, ficar aqui é a opção mais segura. — Mais concordâncias com as cabeças. Ele olhou na direção das telas de vídeo e viu toda a confusão de cinzas, poeira e fumaça encobrindo o centro de Seattle. As hordas fugitivas de civis, as fogueiras furiosas, a desordem nas ruas, os helicópteros Black Hawk entrando no espaço aéreo da cidade sem resistência do pessoal de Jordan. Por um minuto bastante longo, ele não conseguiu entender se a sensação que consumia suas entranhas era seu senso de dever, um sentimento de culpa ou uma nova úlcera péptica. Então ele pegou a arma, verificou a munição e a acomodou no coldre. Colocou dois pentes do rifle nos bolsos de seu colete, caminhou até a porta e voltou-se para olhar para Jed e Marco. — Vocês sabem que eu tenho que ir com ela, certo? Os dois homens concordaram com a cabeça, solidários. — Tomem conta do forte — disse Tom. — Nós voltaremos. 10:56 A.M. — Alguém pode me explicar exatamente por que diabos nossos satélites têm sistemas de autodestruição?
Keith Bain, o Secretário de Defesa, encarou os chefes adjuntos do Estado Maior e vários membros graduados da Inteligência americana que se encontravam na sala de reuniões do Pentágono, e esperava que não houvesse resposta para sua pergunta. Ninguém parecia ter pressa em falar. Então, num tom irritado, o General Wheeler, da Aeronáutica, disse: — Nós usamos isto para evitar engenharia reversa. Se um inimigo captura uma das nossas aves, nós acabamos com ela. — Isto alguma vez foi necessário? – perguntou Bain para o homem magricelo que, aos cinquenta e um anos de idade, era o mais novo dos graduados. Wheeler ergueu o olhar com um comedimento exausto. — Ainda não, senhor secretário. Bain concordou com a cabeça. — Isto é altamente inspirador de confiança, general. Seria ainda mais impressionante se toda a nossa rede de satélites tivesse sido reduzida a ferro-velho espacial. Olhando para os demais, Bain continuou: — Alguém verbalize para mim: qual o tamanho do dano que acabamos de sofrer? O Almirante Kazanski respondeu: — Aqueles satélites eram a base de nosso Sistema de Posicionamento Global1 — todos os olhos voltaram-se para o elegante e grisalho oficial. — Sem eles, nossos navios, aeronaves e unidades terrestres serão forçados a contar com instrumentos de navegação menos precisos. Também não poderemos garantir a acuidade de qualquer sistema de armas teleguiadas, como os mísseis cruzadores. — Podemos compensar isto — acrescentou o General Hirsch, chefe do exército, de cabelos grisalhos e papeira farta. – As armas guiadas por laser não serão afetadas. — Mas elas ficarão dependentes de pessoal de prontidão em posições distantes – disse Kazanski. — O que por sua vez limita nossas opções de escolha de alvo e área operacional. O Secretário de Defesa tomou um gole de seu café preto e fez uma careta por causa do gosto amargo. — E quanto ao SIGINT2? — A Agência de Segurança Nacional ainda tem controle sobre tudo o que circule por linhas fixas ou centrais telefônicas — respondeu o General Braddock, o comandante de queixo
quadrado dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. — Mas nossa habilidade para captar ligações do ar está desativada. E o que quer que tenha abatido nossas aves também embaralhou os computadores centrais – ele acenou com a cabeça na direção dos diretores da CIA e do FBI. – O que deixa vocês, rapazes, completamente sem sorte, também. Um civil magro e alto, com cabelos grisalhos curtinhos e um bigode escovinha, informou: — A NRO3 também foi atingida, o que significa que a maior parte do nosso rastreamento de navios, submarinos e aeronaves estrangeiras está desativada. — Forçando um olhar quase que de desculpas para o General Wheeler, ele acrescentou: – E, a menos que eu esteja errado, General, o NORAD4 perdeu seu sistema de alerta de mísseis. A sala inteira voltou-se para o chefe da Aeronáutica, que se remexeu desconfortavelmente na cadeira. O Secretário Bain fixou um olhar gélido no homem. — É verdade, general? Estamos atualmente sem uma defesa adequada contra um possível ataque nuclear? Depois de uma pausa que serviu apenas para aumentar a tensão na sala, Wheeler falou: — Sim, senhor. Por enquanto, temo que sim. — Maldição — disse Bain, arqueando suas sobrancelhas, em descrédito. Ele massageou a testa, e então perguntou a Kazanski: — Almirante, temos uma linha fixa para nos comunicar com a NS Everett5? — Sim, Senhor Secretário — ele colocou a mão no telefone diretamente em frente a eles. — Estão de prontidão nesta linha para novas ordens. — Bom — disse Bain. — Diga-lhes para passar as ordens para o General Maddow: a Operação Stormfront está autorizada. Posicione todos os soldados de Seattle imediatamente. Nós vamos retomar a cidade. Notas: 1 Sistema de Posicionamento Global, ou Global Positioning System (GPS), é um sistema de informação eletrônico que fornece via rádio a um aparelho receptor móvel a posição do mesmo com referência às coordenadas terrestres. 2 SIGINT – abreviatura de signals intelligence, é o termo inglês usado para descrever a atividade de coleta de informações ou inteligência através da interceptação de sinais de comunicações entre pessoas ou máquinas. 3 NRO – National Reconnaissance Office – agência americana de inteligência que projeta,
constrói e opera os satélites espiões do governo americano. 4 NORAD – North American Aerospace Defense Command é uma organização binacional que fornece alertas aéreos, vigilância espacial e defesa para o Canadá e os Estados Unidos. 5 NS Everett – Naval Station Everett – é a base naval mais moderna da Marinha Americana, localizada perto da cidade de Everett, a 40 km de Seattle.
VINTE E SETE 11:08 a.m. KYLE SÓ SENTIA O GOSTO DE POEIRA. Ele tinha seguido Jordan e seu pequeno, mas crescente, grupo de sobreviventes quando haviam começado sua caminhada saindo da caída Fundação Collier, mas a nuvem de cinzas pelo ar espalhava-se mais rápido do que eles andavam. Agora a neblina cinza-escura pairava sobre a cidade como uma redoma suja e enchia a boca de Kyle com um pozinho grudento. Tossindo e lutando por ar, quase não ouviu quando Cassie chamou seu nome. Piscando por causa da poeira no ar, ele a viu chamando-o para o canto da estrada. — Venha comigo — disse. Ele se afastou do grupo de Jordan e cambaleou na direção de Cassie. Sua projeção era impecável. Uma das vantagens de ela só existir na minha cabeça, pensou Kyle com uma pontada de ciúmes. — Por aqui — disse ela, puxando-o através da nuvem de poeira. Ele ainda não entendia como conseguia “senti-la” quando ela não estava realmente ali, mas o que lera alguns meses antes – assim como vira Matrix diversas vezes – o fizeram pensar que era alguma parte de sua mente tentando enganar-se e fazendo-se acreditar que ela era real. Ela o levou até uma porta coberta de fuligem, que se abriu quando ele a forçou. Ele viu-se em uma pequena escada fechada dos três lados por paredes de vidro que tinham se tornado opacas devido aos restos humanos pulveridados. Olhando para cima, ele piscou para limpar os olhos e percebeu que a escadaria pertencia a um estacinamento de vários andares. Vozes ecoavam de algum lugar lá em cima, provavelmente as de outros sobreviventes usando a garagem como abrigo. Ele virou-se e encarou Cassie, que encostou-se à parede olhando-de de volta com uma expressão presunçosa. — Ora, ora — disse Kyle. — Se não é o meu demônio interno em pessoa. — Oh, sinto muito — respondeu Cassie com um falso arrependimento.— Prefeira estar tossindo até as tripas lá na rua? Não seja por isso. Vaya com Dios. — Tudo bem — disse Kyle acenando com uma mão enquanto usava a outra para apoiar-se ao joelho e dobrar-se a fim de tossir mais algumas vezes. — Obrigado pelo intervalo. — Ele guspiu a sujeira da boca e então se levantou. — O que você quer? Com falsa indignação, Cassie respondeu:
— Quem disse que quero algo? — E quando não quer? Ela aproximou-se dele com um sorriso malicioso. — Talvez só queria te manter seguro — disse, em tom de provocação. — Afinal de contas, eu não seria nada sem você. — Alisando o rosto sujo dele com as pontas dos dedos, ela acrescentou: — E vice-versa. Kyle congelou enquanto os dedos frios de Cassie contornavam sua mandíbula, percorriam seu pescoço abaixo e por fim deslizava pela frente de sua camisa. Ele sabia, por experiências passadas, que era quase impossível resistir ao charme da moça. Quando queria manipulá-lo, ela tinha a habilidade de fazer-se irresistível. O olhar em seus olhos azuis, o brilho de seus cabelos vermelhos, e o som de sua voz contribuíam para torná-lo um fantoche indefeso. Não desta vez, decidiu ele. — Chega — disse, dando um passo para o lado a fim de livrar-se momentaneamente de seu feitiço de sedução. — Vá direto ao assunto. — Eu estava tentando — disse ela com um sorriso provocativo. — Você não me trouxe aqui para uma rapidinha — rebateu ele. Ela desabotoou um botão de seus jeans. — Tem certeza? — Me avise quando for falar sério — disse ele abrindo a porta e deixando entrar uma nuvem de poeira. — Beleza — disse ela, batendo a mão na porta e fechando-a novamente. — Pensei que podíamos juntar trabalho e prazer, mas você não está mesmo no clima. Levantando os braços ao lado corpo e lançando um olhar assustado a suas roupas coberta de fuligem, ele resmungou: — Nossa, e por que será? — É hora de começar a fazer umas mudanças. Percebendo a gravidade na afirmação dela, ele olhou-a cautelosamente. — Mudanças onde? — No Movimento — disse Cassie. — Ele está caindo. Você consegue ver isso, não consegue?
Ele andou pela escadaria e franziu o cenho. — Não está exagerando muito? — Você sabe do que estou falando — disse sua alucinação ruiva. — A Marinha atira um missíl em Jordan, e ele revida com uma coletiva de imprensa. Eles estraçalham sua sede, e ele destrói alguns satélites. — Ela ficou em frente a Kyle e aproximou seu rosto do dele, como se estivessem discutindo algo. — Ele não está jogando para ganhar, Kyle. E, numa guerra, se você não joga para ganhar, perderá com certeza. Dando as costas a ela, Kyle respondeu: — Eu tentei dizer isso a ele. Você estava lá. Ele não quer ouvir. Enquanto Kyle dirigia-se até janela acinzentada, Cassie insistiu: — O Jordan não ouve ninguém além de si mesmo. Sabe quantos dos nossos morreram na queda do prédio? — Ele a ouviu caminhando atrás de si, então sua voz estava logo atrás de seus ombros. — O Jordan não é o líder de que o Movimento precisa, Kyle. Em tempos de guerra, precisamos ter no controle alguém que não tenha medo de usar força. Alguém que esteja disposto a sujar as mãos. Os dedos delas apertaram firmemente, mas com gentil intimidade, seus ombros, e ele virou pare encará-la. — É a sua vez, Kyle. É hora de você dar um passo e liderar o Movimento. Kyle sentiu um arrepio à mera sugestão. — O quê? Não! Eu não quero tomar o comando. — Não seja tão egoísta, Kyle. Isso não tem a ver com o que você quer, tem a ver com o que o Movimento precisa. Ele sentia-se tonto. — De jeito nenhum. Isso é loucura — disse. — A última coisa que o Movimento precisa é de uma luta pelo poder. Além disso, mesmo que eu desafiasse Jordan, quem seria louco de me seguir? Beliscando o queiro dele com o indicador e o polegar, Cassie sorriu e disse: — Bobinho! Não estou dizendo que devíamos fazer uma votação. São tempos de guerra. Coisas ruins acontecem. Jordan podia muito bem encontrar um fim com a bala de um atirador de elite… — Ela soltou o queixo dele e deu um apertão carinhoso na ponta de seu nariz. — Adivinha quem seria o próximo da fila para levar o Movimento à vitória?
Eles se encararam de olhos bem abertos – os dela com exasperada ambição, os dele com um terror mudo. — Não — disse ele balançando a cabeça. — De jeito nenhum que eu… — Mentiroso — disse Cassie, suas palavras saindo apressadas por entre seus lábios. — Você já fez isso uma vez… — Ela abaixou-se à frente dele enquanto acrescentava: — Consegue fazer de novo. Congelado no lugar em que estava, tudo o que ele conseguiu fazer foi negar inconvincente. — Mas não era eu atirando no Jordan… Eram os Marcados. Eu era só um fantoche. — Eu sei — disse Cassie, abrindo o zíper das calças do homem. Ele fechou os olhos e fingiu não estar sentindo o aperto suave de seus dedos ou o som abafado de sua respiração enquanto sussurrava: — Mas tenho certeza que você se lembra como se faz… Diana via as chamas dançando dentro das carcaças de carros que tinham sido abandonados em quase todas as ruas do centro de Seattle. Uma neblina dourado-amarronzada tornava difícil a visão a mais de dez metros à frente, forçando-a a dirigir lentamente em meio aos sobreviventes atordoados que perambulavam. O efeito caleidoscópico das lágrimas em seus olhos só fazia piorar. O cheiro acre de cabelo e ácido queimado serpenteava pelas aberturas do carro e a fazia tossir, então segurar a respiração. Ao lado dela, Tom sentava-se inclinado para frente, sua testa quase tocando o parabrisas. Ele espiava através do arco feito pelo limpador na sujeira que cobria o carro, procurando qualquer sinal de alguém que parecesse com Maia. Suas mãos estavam sob o porta-luvas, segurando sua pistola semiautomática, pronto para reagir a qualquer ameaça. Aos dois lados do carro, saqueadores – alguns usando máscaras e óculos de esqui, outros usando máscaras militares de gás – emergiam das lojas com seus braços carregados do máximo de coisas que conseguiam carregar. Diana olhava para eles com desprezo. — No meio de uma zona de guerra e tudo o que essas antas conseguem pensar é em ter uma TV nova — disse ela desviando de um bando de ladrões portando grandes caixas de papelão. Tom riu. — Se você quiser atropelar alguns deles, pra mim tá tudo bem. — Não me tente — disse Diana sentindo-se genuinamente homicida.
Viraram uma esquina a alguns blocos de distância da antiga localidade da Fundação Collier. O nevoeiro era mais denso ali. A sujeira fazia barulho por baixo do carro enquanto Diana dirigia em meio a grandes blocos de concreto de onde saíam barras de ferro tortuosas. Ela ouviu um arranhão quando uma das protrusões deixou sua marca no canto do Sedan. Outra curva levou a mais uma rua tomada pela chuva de cinzas, mas o nevoeiro era mais claro, iluminado pelo sol vespertino. Diana pisou no freio. Algumas sombras formaram-se na parede de poeira. Silhuetas na fumaça pálida, figuras humanas de todas as formas e tamanhos caminhavam na direção do carro de Tom e Diana. Para ela, era um momento de déjà vu. Sua mente voltou para o dia da chegada dos 4400, quase quatro anos antes nas margens de Highland Beach. De uma espessa bola de névoa que rolava sobre as águas cristalinas do lago, quatro mil e quatrocentas pessoas – algumas que tinham estado desaparecidas por anos, outras por décadas – haviam aparecido de uma bola de luz, sem memórias de sua abdução e sem explicações para o seu retorno. Ela abriu a porta e saiu do carro. — Diana! — gritou Tom, mas ela o ignorou e afastou-se de sua porta para ficar em frente ao veículo. Às suas costas, ouviu a porta de Tom abrindo-se. Um momento depois, ele estava ao lado dela, estremecendo e enrugando o rosto ao nevoeiro de um cheiro desagradável. Juntos, os dois viram seres humanos aparecerem da penumbra de poeira, que pintara suas vítimas com um uniforme fantasmagoricamente cinza. Mesmo cobertos pela cor, rostos familiares apareceram. À frente da multidão estava Jordan Collier. Atrás dele vinha Gary Navarro. E protegida em seus braços fraternais estava Maia. Diana correu para frente. Maia soltou-se de Gary e correu para os braços de sua mãe. Envolvendo a filha num abraço apertado, ela choramingou aliviada: — Graças a Deus, Maia! Por entre soluços desesperados, ela disse: — Disseram que você tinha ido embora! Hoje de manhã, no avião! — Não, querida — disse Diana, passando a mão no cabelo obscurecido pelas cinzas de Maia.
— Queriam que eu fosse. Mas eu nunca a deixaria. Nunca. Ela permaneceu assim por um tempo, grata por estar segurando a filha nos braços mesmo enquanto o mundo caía aos pedaços ao seu redor. Então percebeu que Jordan e seus seguidores haviam parado na rua e estavam observando as duas. Jordan dirigiu-se a elas sombriamente. — Maia — disse ele. — Precisamos continuar. — Eu sei — ela disse desprendendo-se do abraço de Diana. Gary começou a caminha, seguindo para nordeste, liderando a multidão que passou por Diana, Maia, Tom e Jordan. — Espere, não! — protestou Diana. — Maia, você tem que vir comigo, querida. Precisamos voltar à NTAC até que tudo isso se resolva. Maia balançou a cabeça. — Não, mãe. Meu lugar é com meu povo. — Nós precisamos dela, Diana — disse Jordan. — Ela previu o ataque em nossa sede, e ela sabe onde os soldados modificados irão atacar. A cidade inteira é um alvo agora, e a NTAC não é exceção. Quando os sobreviventes pálidos passavam ao lado dela, Diana jogou sua fúria em Jordan: — Pelo menos a NTAC tem como se defender! Traga seu povo; podemos ajudar. — Paredes espessas não vão nos salvar desta vez — disse Jordan. — Todos do meu povo que têm habilidades que podem ser usadas em combate foram enviados para encontrar os soldados. O resto está vindo comigo para encontrar abrigo. Enquanto Diana lutava para controlar sua raiva e procurava palavras para convencer Maia, Tom se colocou entre ela e Jordan. — Você viu o Kyle? — perguntou o homem. — Ele sobreviveu ao ataque? — O Kyle está bem — disse Jordan. Com um aceno para a multidão que passava, acrescentou: — Se quiser esperar, tenho certeza que ele passará cedo ou tarde. — Com um toque gentil, ele puxou Maia para continuar andando ao seu lado quando recomeçou a caminhada. — Vamos. Tom ficou para trás enquanto Diana corria ao lado de Maia. — Querida, por favor — disse a mulher. — Não faça isso. Você tem que vir comigo. Não é
seguro aqui fora. — Nenhum lugar é seguro — disse Maia. — Mas estou mais segura com meu povo do que com o seu. — Ela aproximou-se e segurou as mãos de Diana enquanto as duas andavam lado a lado. — Venha conosco. Nós vamos te proteger. Ela desejava desesperadamente que pudesse fazer Maia compreender. — Não posso fazer isso, amor. Tenho um dever com a NTAC… — Ela lançou um olhar por sobre o ombro enquanto sua voz enfraquecia. O silêncio que se seguiu encobriu seu pensamento não expresso: E um dever com o Tom. — Eu entendo — disse Maia. — Você tem seu dever, e eu tenho o meu. — Ela olhou para Diana com um semblante surpreendentemente maduro. — Não se preocupe — continuou. — Nós vamos nos ver antes que isso acabe. Eu prometo. Maia soltou a mão de Diana. Diana parou de andar e a deixou ir. Em poucos segundos, sua filha desapareceu nos restos da destruição âmbar, cercada pelo recém-criado exército de fantasmas de Jordan. Passaram-se minutos sem que uma palavra fosse dita. Tom parou ao lado dela, e eles observaram o brilhante véu de poeira. — Nós criamos nossos filhos para que um dia os deixemos viverem a própria vida — disse Diana. — Mas como posso me desprender? Tom enrugou a testa. — Se um dia eu descobrir, te aviso.
VINTE E OITO 11:38 A.M. O COMANDANTE ERIC FROST marcou os alvos com uma caneta vermelha em um mapa laminado, que estava aberto sobre o solo de concreto do Centro de Controle de Galerias Pluviais Elliot West. Ele e os outros vinte e nove soldados de elite que o cercavam estavam vestidos com uniformes de camuflagem urbana preto-e-cinza, cujos bolsos continham um pouco de tudo, desde garrafas de água até granadas de fumaça. — Equipe Alfa, nós vamos rastrear Jordan Collier e os membros mais graduados de seu conselho de liderança — disse o oficial da Força de Operações Especiais da Marinha para seus companheiros soldados de elite. — Nosso último informe diz que eles conseguiram escapar de seu quartel-general antes que desabasse, então precisamos especular para onde podem ter seguido. Brian Gerhart, um tenente dos fuzileiros navais com uma cara que lembrava a Frost um nó de dedo com olhos, levantou a mão. Frost acenou com a cabeça para o homem, que fechou os olhos e disse: — Tenho uma imagem deles se movendo a pé. Parece que estão seguindo para nordeste pela Madison. Próximo à Rua Pike. — Não estão indo em direção à NTAC, então — observou o sargento Knight, um policial do exército cuja compleição pálida, olhos azuis e feições finas lhe conferiam o aspecto de um homem feito de gelo e aço. Apontando para o mapa, ele continuou: — Eu diria que há oitenta e sete por cento de chance de eles se encaminharem para norte na 19ª Avenida. — Neste caso acabaremos nos encontrando — disse Frost. — O que significa que precisaremos de cobertura, e muita. — Ele circulou o quarteirão da cidade rotulado de Centro de Seattle. — Equipe Bravo, precisamos que afastem o pessoal de Collier do nosso caminho, enquanto seguimos para o leste. Comecem com a Space Needle1 e improvisem dali em diante. O comandante da equipe Bravo, Capitão Hayes, que se sobressaía por causa de seus ancestrais Sioux2 e o fato de ter os bíceps maiores do que a coxa da maioria dos homens, concordou com a cabeça. Frost olhou para o comandante da próxima equipe, um tenente boina-verde magricelo e de olhos caídos, chamado John Conway. — Equipe Charlie, os planos para vocês mudaram. Os satélites do GPS estão fora do ar, então a Marinha está operando com munição guiada por laser. Vocês têm que marcar os alvos mais importantes de Collier com ultravioleta e esperar enquanto o Shoup3 os derruba, um a um. Comece com pontes, avenidas elevadas e lugares fortificados. — Entendido — disse Conway, sem tirar os olhos do mapa. Frost captou a natureza da
extrema concentração de Conway: ele estava memorizando o mapa do centro de Seattle. Hayes levantou uma mão enorme, de dedos grossos. — Uma pergunta. Com um meio aceno de cabeça, Frost disse: — Prossiga. — Quais são as instruções aqui, senhor? — Verifiquem seus alvos — disse Frost. — Há quatro pelotões do exército em movimento, todas em camuflagem urbana. Quer dizer, qualquer um na rua que não é um dos nossos é um alvo válido até que se prove o contrário — declarou Frost. — Não mirem na polícia da cidade, a menos que eles apontem para vocês primeiro. Qualquer civil que demonstre sinais de habilidade proveniente da promicina estará em evidência. Todos entenderam? Cabeças sacudiram-se em confirmação ao redor dele. — Certo — disse Frost, enrolando o mapa. — É isto. Esta é uma operação à luz do dia, então tomem cuidado lá fora. Mantenham o rádio em silêncio, a menos que vocês estejam completamente sem saída. Verifiquem seu equipamento, travado e carregado, e saiam. Hooyah! Os outros oficiais das forças especiais responderam: — Hooyah! — enquanto os fuzileiros berraram: — Oorah! – e os rapazes do exército rugiram: — Hooah! — tudo parte de uma tradição militar compartilhada, cada uma sutilmente única. A Equipe Bravo foi a primeira a se posicionar. Hayes guiou seus homens para fora do Centro de Controle por uma porta que dava para o estacionamento norte do edifício. Dali, Frost sabia, o plano exigia que eles fizessem uma rápida travessia da Avenida Elliott West, seguida por um rápido rastejamento sobre uma ladeira coberta de capim até a Rua West Mercer. Então, a Equipe Bravo teria que voar por quase um quilômetro até o centro de Seattle, preparar a munição na base da Space Needle (que era estrategicalmente inútil, mas ideal para criar uma distração) e descarregar um inferno precisamente ao meio-dia. A unidade de Conway tinha uma missão de perfil mais complicado. Ele e cada membro de sua equipe, dez homens ao todo, deveriam ter sua própria lista de alvos prioritários, localizados pela cidade. Depois que a Equipe Charlie deixasse o Centro de Controle, cada um de seus membros teria que atuar independentemente pelo resto da missão. Nenhum deles teria o privilégio de chamar reforços ou bater em retirada. Para sair da zona de combate, cada homem teria que providenciar a destruição de todos os alvos de sua lista, e então alcançar o local de chegada combinado, no ponto mais a sudeste do Lago Union, precisamente à meianoite. Enquanto os homens da Equipe Charlie faziam uma revisão final de seus alvos e horários,
Frost guiou a Equipe Alfa por uma escotilha de 1,80m de diâmetro, por uma tubulação que levava de volta para dentro da galeria pluvial. Este foi o modo de seu pelotão ingressar na Terra Prometida. Ele e seus homens se deslocaram para os canos de saída, que ficavam submersos na água à profundidade de dezoito metros, a cem metros de distância do Parque Myrtle Edwards4, na Baía Elliott5. Os canos variavam em diâmetro de 1,80m a 2,40m, dali até o Centro de Controle Elliott West. Era uma passagem apertada para homens que carregavam equipamento de combate, mas eles conseguiram atravessá-la. A parte do túnel que corria para o leste do Centro de Controle tinha 4,20m de largura; estendia-se por debaixo da Rua Mercer até a Avenida Dexter, onde dobrava para nordeste, paralelamente à Rua Broad. Na esquina da Oitava Avenida com a Rua Roy, deveria haver outra escotilha, que levaria ao abrigo de uma vala. Dali, Frost e seus homens deveriam se posicionar ao nível da rua, na parte norte de Seattle, e seguir até seu alvo. Ele chafurdava na água estagnada que lhe subia até os tornozelos, esforçando-se para ignorar o odor pútrido e o cheiro de enxofre e metano do esgoto e da vegetação podre. Acendendo ligeiramente sua lanterna, ele fez uma rápida contagem e confirmou que todos os nove homens estavam ali com ele. — Certo, cavalheiros — gritou ele. — Temos quinze minutos para percorrer dois quilômetros. Mexam-se! Os homens de Frost debandaram atrás dele, correndo em fila indiana pelo túnel com apenas o feixe de luz de sua lanterna para iluminar o caminho. O ruído dos pés chafurdando na água ecoava dentro da passagem de concreto circular, transformando-se em um paredão de barulho. O oficial de operações especiais concentrou-se nas sensações das solas de seus pés rompendo a superfície da água, o peso reconfortante do rifle em suas costas e de sua pistola ao lado do corpo, e os segundos correndo em seu relógio digital. Em quatorze minutos e dez segundos eles sairiam do túnel pela vala da Rua Roy. Se tudo corresse conforme o planejado, em menos de vinte e quatro horas a Terra Prometida voltaria a se chamar Seattle. E Jordan Collier e seu movimento estariam caminhando para a lixeira da história, onde era o seu lugar. Notas: 1 Space Needle – Torre de 184 metros, edificada em Seattle, é o ponto turístico mais famoso da cidade. 2 Sioux – Tribos indígenas habitantes dos estados americanos de Dakota do Sul e Dakota do
Norte. 3 Shoup – Destroyer da classe Arleigh-Burke, da Marinha Americana, lançador de mísseis teleguiados. 4 Myrtle Edwards Park – Parque público de Seattle, com 19km2 de extensão. 5 Elliott Bay – Grande baía no estado de Washington, onde a cidade de Seattle está localizada.
VINTE E NOVE 10:45 A.M. ERA O MOMENTO pelo qual Dennis Ryland estivera esperando. Cada canal de TV a cabo por que ele passava mostrava imagens de caos e inquietação em Seattle. Um buraco no céu do centro da cidade espalhava uma fumaça negra pelo local. Moradores em pânico, ladrões que aproveitavam a oportunidade e pessoas descontentes se misturavam nas ruas imundas causando confusão. Ele tomou um gole de café e sorriu. Assim está melhor, pensou enquanto engolia a bebida. Ainda o chateava saber que seu escritório no antigo Edifício Haspelcorp se fora, reduzido a cinzas e escombros por um raio de calor vindo do espaço, mas esse era o preço da guerra. Uma quantia pequena a pagar se isso convencer o presidente a deixar-me livrar o mundo dessa ameaça de uma vez por todas, disse a si mesmo. Do lado de fora da janela, Tacoma era o retrato perfeito de uma serenidade monótona. Tirando o fato de que a televisão mostrava notícias de uma guerra civil a menos de vinte minutos de distância dali, era um dia perfeito de verão na tediosa Seattle. Dennis considerou esperar até depois do almoço para tirar proveito da crise na Terra Prometida, mas então pensou melhor. Aproveite o momento, decidiu. Ele caminhou até sua mesa, depositou o café nela e acomodouse na cadeira. Seus dedos digitaram a senha para que pudesse conectar-se ao laboratório de pesquisa secreto da Haspelcorp. Pouco depois, o sistema confirmou a senha. Ele usou a interface gráfica para iniciar um canal de vídeo com o laboratório. Uma roda de animação substituiu o cursor em seu monitor. Enquanto ela girava, a palavra CARREGANDO apareceu logo abaixo. Dennis soltou um suspiro e imaginou o olhar perplexo que seu chefe Miles teria ao descobrir como investira o orçamento de pesquisa da empresa nos últimos três meses. Então ele deixou-se sonhar por um momento sobre os altos cargos no governo que estariam novamente ao seu alcance assim que a Casa Branca soubesse que ele sozinho achara uma solução para o problema mundial da promicina, ao mesmo tempo em que poupava o mundo de uma guerra sangrenta e sem precedentes. Eu poderia ganhar um cargo no gabinete, disse a si mesmo. Talvez até mesmo um diplomata. Era até engraçado pensar em si como um embaixador ou nas pessoas dirigindo-se a ele como “Vossa Excelência”. Decidiu-se: queria ser o embaixador dos Estados Unidos nas Bahamas. A rodinha na tela ainda girava. Por que está demorando tanto, ponderou. Ele tirou um cigarro do maço em sua gaveta,
acendeu-o, inalou e soltou uma pluma de fumaça branca e de cheiro forte na direção do monitor. O canal terminou de carregar. A rodinha desapareceu e o cursor voltou. Uma imagem em movimento preencheu a tela. A princípio estava escuro demais para que Dennis pudesse ver os detalhes. Ele pensou que o laboratório talvez estivesse no modo noturno, desligado enquanto os cientistas descansavam. Então ele viu as chamas. Pequenas flamas de fogo laranja despontavam do fundo da tela, formando silhuetas de máquinas quebradas ao fundo. Dennis aumentou o brilho na tela e mexeu no contraste para que pudesse melhorar a imagem. O laboratório tinha sido destruído. Parecia que alguém havia detonado uma bomba lá dentro. Todos os computadores estavam em pedaços. Todos os equipamentos de alta tecnologia e super caros que ele conseguira com muito risco e por um preço relativamente alto estavam reduzidos a tralhas flamejantes. Ele foi passando pelos vários canais de vídeo do sistema interno de segurança do laboratório e ficou agradecido pelo sistema de câmeras não ter sido atingido por uma calamidade como aquela. Mas o que aconteceu?, sua mente encheu-se de especulações. Teria o laboratório sido atacado pelo povo de Jordan? Seria espionagem? Teria o governo americano rastreado a movimentação de materiais sensíveis e destruído o local em nome da segurança nacional? Enquanto essas perguntas circulavam, e o pânico e histeria aumentavam, ele foi rapidamente passando pelos canais de vídeo do laboratório, tentando imaginar o que poderia ter acontecido naquele deserto. Quando terminou, percebeu que o que achava mais intrigante eram coisas que ele não tinha visto. Não havia visto o corpo de nenhum dos cientistas. Não havia visto o corpo de nenhum atacante. E não havia visto nem um sinal do aparelho que o trio de cientistas estivera montando. Ele abandou suas teorias e agarrou-se a apenas uma, fixando sua mente na única explicação cabível dadas as evidências: os cientistas e a invenção tinham sumido, e o laboratório fora destruído por um incêndio provocado. Sentindo seu sangue fervendo cada vez mais à medida que tragava seu cigarro, Dennis fechou o punho esquerdo e apertou a mandíbula enquanto encarava a verdade.
Os filhos-da-mãe me sacanearam. Então um sentimento incômodo de pavor o fez pensar no por quê. Será que os cientistas queriam roubar sua glória revelando o neutralizador de promicina sozinhos? Parecia improvável. Se estivessem planejando entregar o aparelho ao governo, por que se dar ao trabalho de ter Dennis os patrocinando com a Haspelcorp para conseguir um laboratório secreto? Talvez queiram vender, pensou Dennis. Mas quem compraria isso? Algum governo de fora? Outra corporação? Nada daquilo fazia sentido para ele. Só o que sabia com certeza era que, se não recuperasse o aparelho logo, aquilo custaria seu emprego – provavelmente muito mais – quando Miles descobrisse que o laboratório no deserto fora destruído. Distraído demais para fumar ou saborear seu café, ele apagou o cigarro na xícara. A bituca mergulhou nas borras com um silvo débil. Não posso pedir que a divisão de segurança da empresa me ajude a recuperar o aparelho, pensou ele. Eles teriam que preencher um relatório com a bancada, e aí eu ia me ferrar. Não posso contar com a polícia nem com os Federais. Mas ninguém mais tem recursos o suficiente para achar algo assim rápido… Seus olhos percorreram os enfeites nas prateleiras de seu escritório e então voltaram para a TV na parede. Os canais de TV a cabo iam passando, pela milésima vez aquela manhã, repórteres falando por toda Seattle. Foi aí que Dennis percebeu o que tinha que fazer, e a quem tinha que pedir ajuda, enquanto ainda tinha tempo de salvar a própria pele. Desgostoso, mas devidamente impressionado pela ironia da situação, xingou Deus silenciosamente enquanto ria sonoramente. Ele tinha que voltar à Terra Prometida.
TRINTA 11:55 A.M. O ar do lado de fora do Centro 4400 fedia a suor, fumaça e sangue, e era preenchido por gritos de dor. Shawn Farrell estava mais do que cansado, mas os feridos continuavam a aparecer em levas. Vinham de todas as partes da cidade: dos pontos onde soldados haviam relaxado suas defesas, do que restava do desmoronamento do Edifício Collier em Beltown, das tumultuadas ruas de Beacon Hill. — Por favor, ajude-nos — diziam. Alguns pediam abrigo, a maioria implorava seu toque de cura, e uns poucos ofereciam dinheiro. Heather Tobey, abençoada seja, havia imposto algum senso de ordem ao povo amontoado. Mesmo quando Shawn titubeara perante a assustadora demanda por sua ajuda, ela havia colocado a equipe do Centro para trabalhar na triagem dos feridos. Aqueles com as feridas mais graves foram trazidos primeiro para Shawn. Os outros foram organizados de acordo com suas necessidades. Os rostos sangrentos e cobertos de fuligem se sucediam. As mãos de Shawn estavam pegajosas com o sangue marrom-avermelhado e quase seco dos outros. Cada um que ele recuperava exigia demais de si próprio, mas não conseguia virar as costas para ninguém. Então continuou adiante. Lágrimas escorriam de seus olhos, à medida que ele se desesperava com todas a maneiras que as pessoas haviam encontrado para ferir umas às outras. Ele lamentou a mulher que fora esfaqueada por um estranho, o jovem surrado por uma gangue de adolescentes p-negativos simplesmente por ter o poder de transformar areia em esculturas com sua habilidade proveniente da promicina, o homem atingido por uma bala de atirador de elite na frente de seu filho de apenas quatro anos de idade. Um horror após o outro chegava às suas mãos. Suas forças se esvaíam, mas ele não podia parar. Uma família de quatro pessoas, seus corpos e rostos vermelhos e pretos de queimaduras, porque um renegado do cinquenta/cinquenta havia ateado fogo à sua casa em um descontrolado ato de vingança, uniu as mãos enquanto Shawn pousava as suas nas testas das crianças. Ele sentiu as chamas que haviam tentado devorá-los, a agonia dos pais, tropeçando através de uma barreira de fogo, enquanto tentavam proteger os filhos debaixo de seus roupões de banho, o medo e o sofrimento das crianças.
Shawn cambaleou para trás, e a família o encarou, seus rostos curados e seus corpos inteiros, os trajes enegrecidos como única evidência de seu encontro com a tragédia. Eles derramaram lágrimas de agradecimento e estenderam os braços para abraçá-lo, mas ele já estava sendo arrastado em direção à outra vítima necessitada de socorro. Consertou ossos quebrados, regenerou olhos arruinados, recolocou dedos decepados, reparou rupturas orgânicas e apagou cicatrizes de fogo. Quando parou para respirar, deu uma olhada na multidão e viu que o número de necessitados havia simplesmente se multiplicado. Não havia descanso em vista, nenhum sinal de pausa em seus trabalhos. Tudo o que ele queria fazer era se render à fadiga e dormir por um dia inteiro, uma semana, um ano. A pressão pulsava em suas têmporas e atrás de seus olhos. Doía tanto que ele sentiu o estômago revirado, teve tonteiras e ficou muito quente, como se estivesse com febre. Continuar era exigir demais. Sentia-se esgotado, debilitado, absolutamente exausto na definição mais literal da palavra. Ele agachou-se, as mãos apoiadas nos joelhos, e obrigou-se a respirar devagar, num esforço para clarear a mente. Em questão de momentos Heather estava a seu lado, um braço repousando gentilmente sobre seus ombros, o outro apoiando seu peito. — Você tem que parar um pouco — disse ela com voz suave, mas carregada de preocupação. — Isto está exigindo demais de você. — Estou bem — mentiu Shawn. — Só preciso de um instante, só isso. Aparentemente duvidando de sua atuação, Heather franziu a testa para ele, e então acenou para um dos funcionários do Centro que estava por perto. — Traga-me água, algumas bebidas energéticas e uma barra de cereais — disse ela ao homem. Então acrescentou, com urgência: — Rápido! Enquanto o jovem disparava para dentro do Centro, para buscar bebidas e alimentos, Heather permaneceu ao lado de Shawn e o manteve de pé, mesmo quando tudo o que ele queria era deitar-se e apagar. Ele imaginava se alguém notaria o jeito como ela o mimava e deduziria que eles fossem, de fato, amantes. Equilibrando o peso, ele deixou sua cabeça pender para trás até que pudesse ver o céu azul. O sol estava quase a pino, e o atingia com um calor real. Ele tomou consciência do suor que cobria sua testa e ensopava sua camiseta branca manchada de sangue e sujeira.
Respirar bem profundamente não revigorou nem aliviou Shawn, mas causou-lhe uma dor aguda e profunda entre as costelas superiores do lado esquerdo. Ele recuou e se encolheu. Heather surpreendeu-se e gritou. — Shawn! Ele engoliu a dor e a forçou a retroceder. — Estou bem — respondeu a ela. — Isto pode parecer estranho, mas acho que não era minha a dor que estava sentindo. O rosto dela contorceu-se em confusão. — Você sentiu a dor de alguém? Tem certeza? — Sim — confirmou Shawn, abanando a cabeça. — Foi como quando eu imponho as mãos — Ele se virou lentamente, procurando dentre os rostos na multidão. — Alguém perto de mim está com dores no peito, dores muito fortes. Sentado no chão, ao lado do caminho que levava ao Centro, estava um homem de meia-idade, semiconsciente, apertando o peito; ele era calvo e atarracado, e ao seu lado havia uma mulher mais ou menos da mesma idade e bastante assustada, que Shawn supôs ser a esposa dele. Os olhos do homem tinham o ar distante e opaco, característico daqueles cuja vida está esvaindo-se. Por trás do olhar vidrado havia um silencioso apelo por socorro. Shawn fixou o olhar nos olhos do homem e o manteve assim. Abrindo seus sentidos e sua mente, Shawn sentiu as dores entorpecentes e as batidas irregulares do coração fraco do homem. Ele levantou uma mão coberta de sangue seco na direção do homem e fechou os olhos. Em sua imaginação, viu o músculo cardíaco danificado, artérias endurecidas e obstruídas, e coágulos potencialmente fatais, prontos para se espalhar na corrente sanguínea do moribundo. Uma a uma, Shawn dissipou cada dor. A cada esforço, a dor em seu próprio peito ficava mais profunda, até parecer que um torno tivesse atravessado suas costelas, espremendo-as até sufocar. Então tudo se acabou, e ele arfou, repentinamente livre da dor. Caiu de costas nos braços de Heather. O funcionário que ela mandara para dentro do prédio havia retornado, e estendia para ela uma garrafa aberta de Gatorade sabor laranja, com um canudo dentro. Ela a segurou diante da boca de Shawn. — Beba — insistiu. Ele sugou o canudo, a princípio lentamente. Cada gole da bebida doce e levemente salgada renovava uma pequena fração de sua força esgotada. Antes de se dar conta, havia esvaziado
a garrafa. Ele piscou, recuperando o ânimo, e disse para o funcionário: — Eu quero aquela barra de cereais agora. Shawn levou menos de trinta segundos para devorar a barrinha de granola coberta de chocolate. Quando estava engolindo a água da garrafa que o rapaz havia trazido, reparou, através da mata ao seu redor, que mais pessoas estavam vindo pelo caminho sinuoso e ladeado de árvores do Centro 4400. Quantos serão desta vez?, ele pensou. Vinte e cinco? Cinquenta? Mais cem almas necessitadas de um curandeiro? A multidão que se aproximava crescia em número, e Shawn reparou que a maior parte deles não tinha qualquer sinal de ferimentos sérios. Quando eles faziam a última curva do caminho, a pessoa à frente da procissão tornou-se visível. Era Jordan Collier. Shawn largou sua garrafa vazia e caminhou para frente, longe dos doentes e feridos, para encontrar o pessoal de Jordan. Heather e vários funcionários do Centro saíram da multidão para se posicionar bem atrás de Shawn. Mais ou menos quatro anos antes, Jordan havia convertido o Centro, até então usado como museu de arte, em um refúgio seguro para os 4400. Ali havia sido seu primeiro quartel-general como o líder de fato do Movimento dos Promicina-Positivos, seu santuário particular. Também era onde Jordan fora aparentemente assassinado por um atirador de elite, um evento que havia posto a responsabilidade de dirigir o Centro sobre os ombros jovens e, na época, completamente despreparados de Shawn. Os meses que se seguiram haviam trazido muitas experiências amargas para Shawn, mas o teste mais cruel veio após o quase milagroso retorno de Jordan do túmulo. Shawn se opôs ao plano de Jordan de distribuir promicina publicamente porque, enquanto este aceitava que metade das pessoas que tomassem a droga morressem agonizando, aquele não concordava com isto. Os dois se separaram sob um clima que ultrapassava um pouco a hostilidade mútua. Apesar do fato de que Shawn havia ajudado Jordan a se livrar da possessão de um dos Marcados e intermediado as negociações entre ele e os agentes da NTAC, os dois homens permaneceram separados pelo tipo de amargura que só pode existir entre aqueles que um dia foram amigos. Jordan parou em frente a Shawn, e a multidão que o seguia parou gradativamente, criando um efeito em ondas que se espalhou pela massa sinuosa de corpos. Jordan e sua trupe de centenas – a qual Shawn observou que incluía Gary Navarro, Maia Skouris e seu próprio primo, Kyle – estavam cobertos de poeira cinza escura. — Olá, Shawn — cumprimentou Jordan.
Tomando o cuidado de manter sua mente consciente vazia, para o caso de Gary estar espreitando telepaticamente, Shawn comprimiu o queixo e respondeu com velada desconfiança: — Jordan. — Vejo que você está ocupado — observou Jordan, indicando com a cabeça a massa de suplicantes em frente à entrada do Centro. — E nós mesmos estamos ligeiramente pressionados pelo tempo, então eu irei direto ao ponto: estamos aqui para pedir abrigo. — Abrigo? — Shawn espremeu os olhos. — Você está brincando? — Não, Shawn, não estou — gesticulando em direção às pessoas atrás dele, continuou. — Eu sei que nem todos do meu povo são 4400. Alguns tomaram promicina por opção; outros foram expostos durante a epidemia. Mas os soldados que estão chegando para nos matar não querem saber como cada um de nós teve contato com a promicina. Para eles, somos apenas alvos. Jordan lançou um olhar nostálgico à fachada branca e curvilínea do Centro. — Quando eu inaugurei este lugar, era para os retornados originais, porque foi a quem eu pensei que iria servir — ele fez uma pausa, e então olhou nos olhos de Shawn. — Quando nós nos separamos, eu achava que o meu propósito era disseminar a promicina. Eu acreditava que convencer todos a tomá-la iria resolver os problemas do mundo, e que o ônus, mesmo trágico, compensaria os ganhos. Seu rosto se entristeceu de remorso. — Mas eu estava errado. E você estava certo, Shawn. Não se pode salvar a humanidade condenando metade dela à morte. Não é um futuro pelo qual valha a pena lutar. Todos ao redor deles estavam quietos, em um silêncio de tensa expectativa. A história da animosidade entre Shawn e Jordan era bastante conhecida, e parecia que todos sentiam que o futuro do Movimento, e da Terra Prometida, dependia da resposta de Shawn. Ele estendeu sua mão para Jordan, que a aceitou. Enquanto eles apertavam as mãos, Shawn declarou, para todos ouvirem: — Vamos colocar todo mundo para dentro.
TRINTA E UM 12:01 P.M. DIANA XINGOU POR entre os dentes quando outra barricada de carros em chamas e pilhas de restos forçou-a a fazer outro desvio por uma rua lateral como há poucos minutos. — Eu avisei que devíamos ter pegado a I-5 — disse Tom. Ela rebateu: — Quer dirigir? — Gesticulando para a área cheia de fumaça do lado de fora do veículo, continuou: — Fale de uma vez, Tom! Se puder prever quais as próximas ruas que esses marginais vão bloquear, fique à vontade e assuma o volante! Tom pareceu estar pensando numa resposta, mas colocou a mão direita em frente sua boca e olhou pela janela em vez disso. Diana entendeu o silêncio dele com uma vitória de prudência. Ela virou à direita ao sul da avenida Beacon e desejou que dessa vez conseguisse chegar à rua Spokane South, e de lá até a via – expressa de Seattle. Haviam chegado até o cruzamento entre a South Forest e o sul da Décima-Sétima avenida quando o tiroteio começou. Balas grandes de calibre ricochetearam pela lataria do carro com um ruído trepidante. O vapor subiu do motor e obscureceu o vidro dianteiro com graxa pulverizada. Então veio um barulho crepitante como o de um transformador elétrico sendo destruído por um raio. Inclinando-se por sobre o painel, Tom e Diana viram dois civis, um homem e uma mulher, emergirem de trás de um carro estacionado e estenderem as mãos na direção de uma oficina mecânica à direita deles – de onde, percebeu Diana, começara os tiros. O homem arremessava grandes flechas de raio de suas mãos na oficina, iluminando os soldados que se escondiam e atiravam ao mesmo tempo. A mulher ao seu lado lançava bolas de fogo debaixo dos carros e caminhões ali estacionados, explodindo seus tanques de gasolina como se fossem bombas. Estilhaços flamejantes cravejaram o carro de Tom e Diana. Então veio uma massiva onda de gasolina ardente que envolveu o veículo, juntamente com metade da rua à frente e atrás deles. Tom destravou sua porta. — Fique abaixada, mova-se rápido e vá para o prédio verde atrás da gente. Sairemos do fogo
cruzado assim que virarmos a esquina. — Beleza — disse Diana destravando sua porta. Um estalo metálico do lado de fora fez Diana olhar por cima do painel novamente. Os carros que, há poucos momentos, estiveram estacionados na rua à frente deles eram lançados para o alto sobre o que estava sendo usado como trincheira pelos dois civis. O homem e a mulher atrapalharam-se na retirada enquanto várias toneladas de metal caíam como chuva. Os veículos tombavam por cima deles como dados gigantes de aço. O carro de Tom e Diana oscilou e então começou a levantar-se. Os dois trocaram um olhar assustado. — É hora de ir — disse Tom. Eles abriam a porta do carro e rolaram para a rua, que estava coberta de cacos de vidro, aço amassado e combustível em chamas. Diana caiu com dificuldade e por pouco não evitou uma poça ardente de óleo. Ela torcia para que a parede de fumaça negra causada pelos veículos incendiados atrapalhasse a visão dos soldados o suficiente para que ela e Tom pudessem se arrastar e esconderem-se atrás do que, podia enxergar agora, era a Biblioteca Beacon Hill. Atrás dela, seu carro decolou e invadiu uma casa próxima. Tom atingiu a esquina da biblioteca menos de um segundo antes dela. Enquanto se postava atrás dele e encostava as costas à parede, ela perguntou: — Tudo bem. E agora? — Nem adianta me olhar — disse ele por cima do ombro. — Eu nos tirei do carro. A próxima ideia brilhante é sua. — Ótimo — murmurou ela. Estava prestes a sugerir que voltassem pelo caminho de onde vieram até que viu o bandido movendo-se na direção deles. — Acho que temos um problema. Seguindo seu olhar preocupado, Tom soltou um suspiro de desânimo. — Só pode estar de brincadeira — disse ele. — Um bandido que vai nos matar por sermos da NTAC, um soldado que vai nos matar pelo simples fato de estarmos aqui. Não vamos ganhar hoje. — Ele lançou olhares rápidos na direção da biblioteca. — Fique por perto — disse, correndo para a lateral do prédio enquanto sacava sua Glock. Parou a alguns passos da porta de vidro e deu três tiros, reduzindo a entrada a milhões de pedacinhos. Então ele entrou, destrancou a porta e a abriu.
— Vem — disse. — Vamos sair pelo outro lado, pelo estacionamento. Ela o seguiu pela biblioteca, um espaço com um grande teto arqueado cujas formas e saliências parecidas com costelas das vigas lembraram a Diana o interior de uma baleia em um desenho animado. Eles correram pelas longas e curvas prateleiras e estantes separadas até o outro lado do prédio. E então saíram. Tinham dado dois passos do lado de fora quando perceberam que haviam passado por quatro atiradores camuflados de preto e cinza, que armavam uma emboscada, escondidos sob folhagem ao lado da porta. Os soldados colocaram-se de pé e levantaram as armas. Os agentes da NTAC levantaram as mãos por reflexo. — Calma lá — disse Tom. — Somos amigos. — Identifiquem-se — disse o soldado mais perto, que, diferente dos outros, Diana percebeu não usar insígnia alguma que mostrasse sua posição ou qualquer identificação. — Agente Tom Baldwin, da NTAC — disse Tom. — E essa é minha parceira: Agente Diana Skouris. Temos distintivos nos bolsos. — Devagar — disse o soldado. Movendo-se com uma cautela deliberada, Tom e Diana mantiveram uma mão no alto enquanto usavam a outra para tirar seus distintivos com as credencias da NTAC dos bolsos das calças. Entregaram ao soldado, que os examinou e logo assentiu. — Tudo bem — disse ele, devolvendo as credenciais. — A cidade inteira virou uma zona de combate, então é melhor que se protejam em dobro. — Acenando com a cabeça para frente, acrescentou: — Vão andando. — Obrigado — disse Tom, enfiando sua identificação de volta no bolso. Diana fez o mesmo e manteve-se ao lado de Tom, enquanto moviam-se na direção da rua. Um movimento à direita de Diana a fez virar a cabeça. Cinco pessoas corriam em uma estreita faixa de grama entre a biblioteca e um prédio de tijolos: um homem conduzindo duas garotinhas e uma mulher carregando um bebê. A menina mais velha tinha o cabelo loiro como o de Maia. A mais nova carregava auras de luz radiantes de uma cor jade em volta das mãos e da cabeça. As duas garotas encolheram-se e gritaram quando os soldados a salpicaram com uma saraivada de balas. O pai gritou de raiva, a mãe entrou em prantos, e o bebê chorou aterrorizado enquanto eles caíam ao lado das meninas que haviam se separado por uma
tempestade de metal. Diana parou e ficou olhando, hipnotizada e horrorizada. A garota loira estava morrendo, agonizando com os espasmos e engasgando-se com o sangue em sua boca. Então seus olhos falharam, e ela ficou imóvel. O sangue de sua família salpicou seu rosto e seu cabelo. Lágrimas de ódio marejaram os olhos de Diana. O cabelo da menina era exatamente como o de Maia. Os soldados saíram do abrigo para verificar os mortos. Diana levantou a Glock e abriu fogo. O primeiro tiro atravessou a cabeça do soldado da frente, e ele caiu para trás, através de uma janela de vidro na biblioteca. O segundo tiro rasgou a garganta de outro soldado. Ele caiu e atingiu o chão como um saco de cimento molhado. O próximo soldado virou-se e começou a levantar seu rifle antes que o terceiro tiro de Diana acertasse seu rosto em cheio. O último soldado a tinha na mira, e ela preparou-se para morrer. Então veio outra explosão de tiro, e o soldado caiu para trás com um buraco de bala em sua testa. Ela virou-se por cima de seu ombro e viu a fumaça saindo da boca da arma de Tom. Ele abaixou a arma. Diana fez o mesmo enquanto lançava um olhar culpado a ele. — Acho que acabei de escolher um lado. — Eu também — disse Tom sem um pingo de arrependimento. — O seu. — Ele guardou sua Glock. — Vamos dar o fora daqui.
TRINTA E DOIS 12:27 P.M. JORDAN NÃO TINHA TIDO TEMPO para tomar uma chuveirada, mas havia se permitido gastar alguns minutos em um lavabo executivo no último andar do Centro 4400, a fim de limpar a sujeira cinzenta de suas mãos e seu rosto. Suas roupas e sapatos permaneciam irreparavelmente imundos, e seus cabelos compridos estavam grudados em sua cabeça por causa da poeira pegajosa, que havia tomado a consistência de cola quando ficou molhada. Ele pegou uma garrafa de água e engoliu duas boas goladas, agradecido por tirar da boca o gosto de cinzas. Jordan não se considerava cansado. Os rostos daqueles que haviam perecido em nome do Movimento o assombravam; e, mesmo ao encarar seu reflexo emaciado e sujo no espelho do banheiro, ele se sentia estranhamente entusiasmado em relação aos horrores pelos quais havia passado menos de duas horas antes. Eu devo estar em choque, pensou. Minha mente está enfrentando o trauma. Quando o perigo houver acabado, vou conseguir sentir isto. Ele suspirou e cumprimentou a si próprio com uma careta. Mal posso esperar. Pegou uma das toalhas que estavam empilhadas perto da pia, secou o rosto e enxugou a umidade de suas mãos. Jogou a toalha no cesto de lavanderia ao sair do banheiro. Seus guarda-costas Emil e Tristine estavam a postos ao lado da porta do banheiro, exatamente onde ele os havia deixado. A dupla se pôs a caminhar atrás de Jordan enquanto este se movia rapidamente pelo corredor que levava ao salão de reuniões. As portas duplas da entrada principal estavam escancaradas. Lá dentro, reunido em torno da enorme mesa escura de reuniões, estava um conselho de guerra que consistia na nata do pessoal de Jordan e Shawn. Suas atenções estavam voltadas para um grupo de mapas enormes. — Podem me atualizar — disse Jordan, aproximando-se do grupo de Kyle, que estava perto de seu primo, Shawn. Apontando para os marcadores improvisados, que incluíam uma caixa de fósforos, uma borracha, as chaves de algum carro e uma moeda de prata, dispostos sobre um mapa da grande área de Seattle, Kyle disse: — Nossos observadores remotos viram três tropas de elite dentro da Terra Prometida, além de várias unidades de pessoal militar comum. — As tropas de elite — analisou Jordan, estudando o mapa. — O que sabemos sobre suas habilidades?
Shawn respondeu: — Eles têm pelo menos um telecinético, possivelmente dois. O pelotão que atacou a Space Needle1 há poucos minutos tinha um eletrocinético, um pirocinético e um homem que pode paralisar pelo toque. — A maior parte dos outros tem habilidades concernentes à obtenção de informações — acrescentou Gary. — Lucas e Hal me ajudaram a analisar vários deles há poucos minutos. Eles têm um provável sortimento de rastreadores, observadores remotos, videntes limitados, transmissores psíquicos, curandeiros e por aí vai. O único deles que me preocupa de verdade é o que está no comando. Jordan lançou um olhar preocupado para o jovem telepata. — Por quê? Qual é a dele? — Aí é que está o problema — disse Gary. — Eu não faço a menor ideia. Tudo o que sei é o pouco que consegui ler nas mentes seu pessoal dele, mas a maioria não sabe mais do que seu nome, posto e especialidade: Comandante Eric Frost, Operações Especiais da Marinha. Com sua visão periférica, Jordan enxergou um jovem sussurrando para Shawn e entregando a ele uma folha de papel. Enquanto Shawn lia o relatório, Heather cruzou os braços e perguntou a Gary: — Sabemos mais alguma coisa? Mesmo pequenos detalhes podem fazer diferença. Gary disse: — Incluindo Frost, há trinta soldados de elite trabalhando em equipe na Terra Prometida. Pelas memórias da tropa eu descobri que entraram na cidade através de alguma galeria de esgoto de Elliott Bay. Uma vez dentro da cidade, eles se dividiram em três grupos de dez homens. Shawn interrompeu: — As tropas estão disseminando o caos em Belltown. Eles estão tomando partes das rodovias e iniciando incêndios mais rápido do que podemos impedir. Concordando com a cabeça, Gary continuou: — Acho que a intenção é nos manter ocupados e fora do caminho, enquanto Frost e sua equipe se dirigem para o leste e procuram por nós. Da última vez que seus homens viram a ele e ao seu grupo, estavam retornando pela galeria pluvial da Rua Mercer, em direção a uma manilha na esquina da Oitava com a Roy. — O que significa que eles provavelmente estão vindo para cá — concluiu Jordan. — Onde eles estão agora?
— Não faço ideia — respondeu Gary. — Frost consegue esconder a si próprio e aos homens que estão com ele. Não fomos capazes de achá-lo através da telepatia, visão remota, nem de qualquer outra forma. Olhando cheio de esperança para seu pensativo xamã, Jordan perguntou: — E quanto a você, Kyle? Alguma pista sobre como ou onde possamos nos prevenir a respeito do Comandante Frost e sua equipe? Kyle olhou fixamente para seus sapatos, e então sacudiu a cabeça, desanimado. — Desculpe — ele respondeu. — Cassie e eu nos desentendemos. Mas sabemos que o objetivo deles é nos capturar, então precisamos começar a nos mexer. Cobrir as janelas e portas, posicionar sentinelas, colocar mãos à obra. Talvez até, ah, não sei, arrumar algumas armas de fogo? Gary acrescentou, olhando de soslaio, apreensivo: — Armas não seriam má ideia, Jordan. — Não acho que precisemos delas — disse Jordan. — Mas se isto faz alguns de vocês se sentirem melhor, estejam à vontade — ele apontou para os objetos assinalados no mapa. — Enquanto nos preparamos para o confronto com Frost, não nos esqueçamos das tropas comuns — olhando para Gary, ele perguntou: — Marisol ainda está no controle da situação em Georgetown? — Até onde sei, sim — respondeu Gary. — Bom. Diga a ela para atacar; que comece recuperando terreno. Mande Raul e Qi Xian para ajudá-la — voltando-se para Kyle, perguntou: — Algum de vocês tem notícias das tropas que romperam nossa linha em Fort Lawton? Kyle apontou para fina faixa árida de terra entre Magnólia Bluff e Queen Anne. — Orson está segurando-os na estação de apoio da linha férrea oeste. — Ele vai precisar de reforços — observou Jordan. — Mande Sandra, Aasif e Oliver. Faça-os saberem que quero aqueles soldados de volta à base deles ao anoitecer. — Feito — afirmou Kyle, saindo para repassar a ordem para um dos mensageiros telepáticos, que servia como forma básica de comunicação clandestina do Movimento. Jordan juntou as mãos. — OK. Todos os outros, vamos trabalhar para defender o Centro. Vão. O conselho se dispersou, e as pessoas moveram-se rapidamente, recebendo instruções
específicas de Shaw, Kyle, Gary e dos poucos guarda-costas de Jordan que tinham experiência de proteção pessoal. Observar o pessoal iniciar os procedimentos proporcionou a Jordan um instante para perceber que Maia estava de pé atrás dele, observando-o fixamente. — Não vai ser suficiente — ela afirmou. — Nunca é — respondeu Jordan, preparando-se para o pior, que ele sabia estar por vir. — Nunca é. Notas: 1 Space Needle – também conhecida como Obelisco Espacial, é o ponto turístico mais famoso de Seattle, e consiste numa torre de 184 m de altura.
TRINTA E TRÊS 12:42 P.M. MARCO CLICAVA EM E arrastava ícones, janelas e widgets pela tela de seu computador touchscreen com tanta força que quase o derrubava da mesa. Estava esforçando-se para conseguir acompanhar a cascada de falhas das câmeras de monitoramento de tráfego da cidade, as quais estivera usando desesperadamente para encontrar Tom e Diana, que haviam desaparecido depois de uma luta com uma tropa de soldados quase meia hora antes. Jed observava por cima do ombro de Marco e o alertava: — Vá com calma, cara. Você vai encontrá-los. — Nessa velocidade, não — disse Marco, frustrado com os dados que perdia. — O Exército está derrubando todos nossos sistemas de monitoramento público. A essa hora amanhã, não poderei dizer se está chovendo sem olhar pela janela. — Claro que vai — disse Jed. Com um sorriso torto, acrescentou: — Aqui é Seattle. Está chovendo quase sempre. Atrás deles, um homem falou, numa voz áspera: — Sempre otimista, né, Jed? Eles viraram-se. Jed começou a erguer seu rifle – então congelou. Dennis Ryland estava parado no umbral da porta do centro de crises, seu revólver erguido e apontado na direção de Jed e Marco. — Fique onde está — disse ele. — Fico feliz em ver que a Segurança Doméstica deixou alguém comandando o espetáculo aqui na NTAC, mas meio que esperava algo mais do que vocês dois. — Depois de uma breve pausa, acrescentou: — Sem ofensas, claro. — Não ofendeu — disse Jed. — Se importaria de nos dizer como entrou aqui? Dennis deu de ombros. — Ainda tenho algumas senhas no sistema — disse e sorriu para Marco. — Não graças a você. — Apontando para o colete de Marco, acrescentou: — Bastante munição? Nunca vi alguém encher os bolsos de um colete desse jeito. — Gosto de estar preparado — disse Marco. — Obviamente. Você deve ter sido um ativista. — Apontando o queixo para Jed, Dennis disse: — Pode abaixar o rifle? Isso me deixa um pouco nervoso. Jed abriu um sorriso falso.
— E isso não seria legal, seria? O bocal de uma pistola surgiu do corredor escuro e apertou-se contra a nuca de Dennis enquanto Tom Baldwin respondia: — Não. Nem um pouco legal. Coloque a arma no chão, Dennis. Agora mesmo. O ex-diretor da NTAC fez como mandaram. Ele abaixou a pistola, agachou-se lentamente e a postou diante de seus pés. Tom disse: — Chute-a para Jed. Com um movimento de seu pé, Dennis fez sua arma deslizar pelo chão ladrilhado até Jed, que a parou com pé enquanto levantava o rifle e apontava-o para Dennis. — Entre e sente-se — disse Tom, empurrando Dennis para frente. Tom o seguiu para dentro do centro de crise. A meio passo atrás dele estava Diana, que entrou com a própria arma apontada para cabeça de Dennis. O homem de meia-idade sentou-se em uma cadeira e respondeu aos olhares penetrantes doas agentes com um sorriso sem graça. — Gente, você não acham que estão exagerando um pouco? Diana disse: — Ainda não atirei em você, atirei? — Você vai querer ouvir o que tenho a dizer antes de estourar meus miolos. Tom guardou sua arma e acenou para que Diana fizesse o mesmo. Ela hesitou até que Jed disse: — Tudo bem, Skouris. Eu cuido dele. Mais tranquila, Diana guardou sua arma. — Certo — disse Tom a Dennis. — Você queria falar? Então fale. O sorriso desapareceu das feições cansadas de Dennis. — Estou encrencado — começou ele. Diana o interrompeu:
— E nós nos importamos porque…? Ele a ignorou e continuou: — Eu autorizei um projeto de pesquisa ilegal na Haspelcorp. Três cientistas me disseram que podiam criar um dispositivo que neutralizasse promicina em massa. Não demorou para que isso tornasse um investimento de bilhões de dólares. — Espera. Já ouvi essa história antes — disse Tom, juntando as sobrancelhas cinicamente. — E então algo deu terrivelmente errado… As espessas sobrancelhas de Dennis traíram sua irritação crescente. — Em algum momento nas últimas vinte e quatro horas, os três cientistas levaram o dispositivo do laboratório secreto. Nesse momento, a coisa pode estar em qualquer lugar. Até mesmo aqui. — Não quero parecer rude — disse Tom. — Mas e daí? Um dispositivo capaz de neutralizar promicina pode por um fim nessa guerra civil. Levantando os olhos, Dennis disse: — Exatamente! Por isso patrocinei o projeto deles, pra começo de conversa. Era a solução pela qual vinha procurando – um modo de impedir o movimento insano de Collier sem arriscar mais vidas inocentes. Tom caminhou por trás de Dennis, do outro lado de uma fileira de computadores. — Antes de descobrirmos o porquê, temos que descobrir o quem. Aqueles três cientistas – você disse que eles vieram até você com o projeto. Eles trabalham para a Haspelcorp? — Não. Eles são independentes. Nunca ouvi deles, mas provaram credenciais, então ouvi o que tinham a dizer. Marcos estava muito curioso agora. — Se esses caras sabem tanto sobre promicina, acho que sei quem são eles — disse. — Quais os nomes deles? — Peter Jakes, Robert Wells e Helen Kuroda. Marco balançou a cabeça, confuso. — Nunca ouvi falar deles. Tom lançou um olhar assustado a Dennis.
— Você disse que os sobrenomes deles são Jakes, Wells e Kuroda? Dennis confirmou com um breve aceno de cabeça, e Tom se encolheu em choque. Ele disse a Diana: — Esses eram os nomes reais de três dos agentes Marcados. — Eita! — disse Marco. — Está dizendo que a Haspelcorp patrocinou um projeto dos Marcados? — Ele olhou para Dennis. — Tem certeza que sabia o que eles estavam construindo? — Claro — respondeu Dennis. — Eu vi com meus próprios olhos. Os agentes trocaram olhares desconfiados. Marco disse: — Sem ofensa, Dennis, mas você mal sabe usar um computador. Ele respondeu na defensiva: — Estou aprendendo. — Você sabe diferenciar um hodoscópio de um magnetron de cavidade? — Claro. Olhando desconfiadamente, Marco perguntou: — Como? Dennis gaguejou por alguns segundos antes de resmungar: — Uhm… Um deles tem uma cavidade? — Bela tentativa — disse Marco. — Me conte tudo o que você deu para os Marcados: partes, materiais crus, combustível – tudo o que foi usado. Rolando os olhos, Dennis disse: — Pelo amor de Deus, Marco! Foram tantas coisas. Não consigo lembrar tudo de cabeça. Mas uma coisa que me deu um baita trabalho uns dias atrás foi conseguir um carregamento da CERN… — Antimatéria e um novo elemento transurânico¹? — Sim — disse Dennis, visivelmente surpreso. — Como…?
Marco sentiu o sangue fugindo de sua face. Ele olhou para Tom e Diana, que também haviam empalidecido diante da revelação involuntária de Dennis. — Merda! — disse Tom. Ele olhou, boquiaberto, para Dennis. — Você tem ideia do que fez? De quem eram aquelas pessoas? Ou o do que acabou de colocar nas mãos deles? Dennis examinou a reação deles, franziu o cenho e então respondeu: — Aparentemente não. Diana passou a mão pelos cabelos. — Tudo bem, vejamos: o que quer que os Marcados tenham feito Dennis trazer da CERN foi o que deu ao governo americano a desculpa para atacar Seattle. Agora os Marcados possuem uma bomba de anti-matéria. Então a pergunta que precisamos fazer é: qual o alvo deles? — Pode ter evidências no laboratório — disse Dennis. — Eles incendiaram o lugar antes de fugirem. Deviam estar tentando esconder alguma coisa. — Faz sentido — concordou Tom. — Você tem alguma foto do laboratório? De dentro ou de fora? — No meu celular — disse Dennis. — Eu baixei trinta segundos de vídeo do servidor de segurança, caso precisássemos analisá-lo. — Ótimo — disse Tom. — Entregue para o Marco. Abrindo o paletó, ele disse: — Vou entregar bem devagar. Tom assentiu para que ele continuasse. Dennis retirou o telefone e o entregou a Marco, que rapidamente acessou vídeo mais recente salvo e apertou “PLAY”. A imagem na tela do telefone estava tão escura e cheia de fumaça que Marco mal podia discernir qualquer detalhe. — Não tenho certeza se isso serve — ele disse para Tom. — Preciso ver um pouco mais do lugar para onde eu… Espere… — A imagem transformou-se na parte exterior do laboratório. Ele viu fumaça ascendendo de uma construção em ruínas num deserto árido. Virou-se para Dennis. — Nevada? — Sim. Na mosca.
— Valeu — disse Marco. — Beleza, com isso eu consigo. — Ele certificou-se de que estava com seu telefone num bolso fechado de seu colete a prova de balas, então se pôs de pé e acenou para Tom e Diana. — Volto logo — disse. Ele olhou profundamente na imagem distorcida na tela LCD do telefone. Seus olhos viram através da imagem que se movia, e as margens de sua visão borraram-se, até que tudo o que via era a areia esbranquiçada e o céu ensolarado do deserto… Marco pestanejou sob o sol do deserto. Parecia que o calor irradiava tanto da pista pavimentada sob seus pés quanto de cima dele. A luz solar cegava seus olhos, e sua pele exposta formigava. Essa é a sensação de ser cozinhado vivo, ele pensou. A cabana coberta de areia que escondia a entrada ao laboratório secreto da Haspelcorp estava a alguns metros de distância. Assim como no vídeo no celular de Dennis, a fumaça saía do metal destruído. Ansioso para sair do sol, Marco caminhou rapidamente na direção da construção arruinada. Seus passos eram firmes na superfície pavimentada, produzindo um som diminuto que se perdia na imensidão solitária do deserto. Era difícil para Marco mover-se rapidamente sob o calor sufocante e bruto, mas ele temia que se diminuísse o ritmo ou parasse para descansar as solas de seus tênis fossem derreter sob seus pés. Atingiu a cabana. Aninhando-se sobre o chão na entrada estavam alguns destroços metálicos. As bordas de algumas das partes estavam retas e limpas; outras estavam queimadas e derretidas. Embora não soubesse o que fazer com elas agora, ele suspeitou que podia avaliálas mais tarde. Juntou as peças, enfiou-as nos bolsos de suas calças, então continuou na direção da cabana. Ele tentou abrir a porta e a arrancou de seu umbral desgastado pelo calor. Parte da parede caiu junto com ela, reduzindo-se a pedaços carbonizados que se quebraram em pedaços menores em seus pés. — Construído de má vontade — murmurou, mesmo a piada sendo somente para ele. Algo nas profundezas vazias do terreno que o cercava fazia Marco querer conversar com si próprio. Passando pela porta, ele parou para que seus olhos se acostumassem com a escuridão dentro da cabana. À sua frente, o fogo havia destruído e exposto o que parecia ser dispositivos de última tecnologia montados dentro da parede. Ao lado deles havia outra porta semi-desintegrada e, além dela, um corredor estreito.
Tudo dentro da cabana cheirava a madeira queimada. Marco abriu a porta de correr. Alguma coisa a prendeu no caminho. Devido ao som de trituração que se seguiu, Marco pensou que fossem cinzas ou mais destroços causados pelo fogo. Com algum esforço, venceu a obstrução, deixando a porta aberta por completo. Ele foi recebido por uma lufada de fumaça que picaram seus olhos até que eles lacrimejassem. Afastando a nuvem irritante com as mãos, Marco caminhou pelo corredor cautelosamente, testando e integridade de cada piso antes de pisar com todo seu peso. Alguns deles responderam aos seus passos com um ruído ameaçador, mas o caminho parecia sólido. Outra porta no fim do corredor levava a um eixo de elevador sem elevador. Encarapitando-se na borda, Marco arriscou um olhar para baixo do eixo, que caía na escuridão total. De cada lado dele, havia caixas de motor que provavelmente haviam controlado o carro do elevador, mas elas pareciam tortas e enegrecidas, e seus cabos haviam sumido. Olhando ao seu redor, Marco murmurou: — Acho que uma escada seria pedir muito. — Ele lançou outro olhar ao abismo aparentemente sem fim. — Não. Vamos fazer com que um elevador seja o único acesso ao laboratório. O que poderia dar errado? Ele abriu a aba de um dos vários bolsos em seu colete. — Vamos ver quem ri agora, Dennis — disse ele enquanto tirava quatro luminárias amarradas por um cadarço. Com alguns movimentos leves, ele ativou as hastes de plástico flexíveis. Enquanto os componentes dentro delas misturavam-se, produziram uma intensa luz fantasmagórica. — Isso serve — disse e então as jogou no eixo do elevador. Elas caíram quase em linha reta, o que pareceu a Marco ser numa lentidão surreal, mas ele cronometrou o tempo em seu relógio como não mais que quatro segundos. Calculando em sua cabeça, concluiu que as hastes haviam caído por volta de noventa metros. — Vamos dar uma olhada no que tem lá embaixo — disse a si mesmo enquanto retirava um par de binóculos compacto de outro bolso estufado em seu colete. Ele circundou o cordão nos pulsos para que não caíssem, então deitou-se na beirada do eixo. Mirando os binóculos na direção das hastes luminosas distantes, ajustou o foco até que conseguisse ver bem o fundo do eixo. Estava preenchido pelos restos do carro do elevador. Analisando os lados, avistou uma abertura na parede e desconfiou que fosse a entrada para o laboratório escondido. Ele se imaginou um pouco acima do carro tombado do elevador… … e então estava lá. Nossa, adoro teleporte, pensou ele enquanto descia do carro destroçado do elevador.
Segurando as hastes luminosas, deu alguns passos cautelosos adentrando o laboratório. Ele tossiu quando inalou mais fumaça tóxica. Um pouco tonto, torceu para que elas não possuíssem partículas radioativas ou elementos que pudessem matar. Tarde demais, imaginou. Movendo-se pelo laboratório, ele sentiu-se sufocado tanto pelo calor quanto pelo cheiro de gasolina. O odor era mais forte nas áreas que pareciam mais atingidas pelo fogo. Vários pontos de ignição e a presença de aceleradores: somente esses dois fatores já teriam sido suficiente para indicar incêndio provocado mesmo que os cientistas não tivessem fugido com a arma letal que haviam construído. Somando-se à certeza de Marco de que o laboratório fora destruído deliberadamente era a maneira uniforme como todos os computadores haviam sido destroçados e empilhados no centro da sala de trabalho. — Sutil, pessoal — disse Marco em voz baixa. — Muito sutil. Ele foi de sala em sala procurando por pistas, não importava o quão triviais pudessem ser. O incêndio havia limpado o laboratório de quase todos os papéis. Copos de vidro e tubos de ensaio haviam derretido. Até mesmo grande parte dos metais haviam sido deformados pelo calor extremo. Em uma sala, que deduziu que era usada como alojamento pelos cientistas, ele viu o canto de um livro em uma mesa sobre a qual um armário havia caído. Ele se inclinou desengonçado por sobre o armário para ver o livro. Sua capa era de um preto fosco e metades das páginas haviam sido consumidas pelo fogo, mas a contracapa estava só um pouco amarronzada. Delicadamente, ele o abriu o suficiente para descobrir do que se tratava o volume. Era um atlas do mundo. Marco puxou o livro de sob o armário e viu algo mais na mesa: uma pequena pedra. Ele se inclinou e a pegou. Era leve como uma pena. Revirando-a por entre os dedos, ele observou sua forma estranha e que tinha pequenas cavidades. Deve ser vulcânica, concluiu. Interessante. Ele enfiou a pedra em um bolso diferente do que estavam os metais que encontrara do lado de fora da cabana e segurou o livro queimado embaixo do braço. Não era muita coisa, mas ele suspeitava que não havia mais nada que valesse a pena encontrar no laboratório. — Vazando pra casa — disse, pegando sua carteira e a abrindo em uma foto da Sala de Teoria da NTAC. Olhando para a imagem de sua casa tão distante, ele sabia que estaria lá em questão de segundos.
— Não sei como pude duvidar de você, Marco — disse Dennis, com a voz tão neutra que Tom teve certeza que ele estava sendo sarcástico. — Você consegue mesmo fazer essa coisa. Marco sentou, com os braços cruzados e o cenho franzido mostrando indignação, em sua mesa na Sala de Teoria. Tom, Jed, Diana e Dennis tinham descido a seu pedido depois que ele chegara do laboratório da Haspelcorp alguns minutos antes. Dennis deu uma espiadela na pedra vulcânica sobre a mesa de Marco: — Quero dizer, eram essas as pistas que esperávamos: uma pedra, uns pedaços de metal e um atlas usado como tocha. Belo trabalho. — Não tínhamos nada há quinze minutos — retrucou Diana. — Tudo o que sabíamos é que você foi enganado e ajudou três fanáticos do futuro a construir uma arma apocalíptica. E, caso tenha esquecido, está aqui pedindo nossa ajuda agora. Então por que não faz um favor a si mesmo e cala a boca? Jed disse: — Tirou as palavras da minha boca. Tom disse, dirigindo-se a Marco: — Que tipos de análises pode fazer nessas coisas? — Não muito mais que testes básicos, por enquanto — respondeu Marco. — Posso colocar a rocha e o metal sob um microscópio e talvez ter certeza do que eles são feitos. Uma coisa que posso dizer da pedra é que ela não é do deserto perto do laboratório. Mas sem uma análise mais aprofundada, não posso dizer mais que isso. — E o livro? — indagou Diana. — Um atlas comum — respondeu Marco. — Foi publicado há dois anos. Olhei todas as páginas à procura de marcas, anotações ou pedaços arrancados. Com exceção das partes queimadas, está tudo lá e sem marca alguma. Pegando um pedaço de metal, Jed perguntou: — Isso ficou amassado do fogo? — Acho que não — disse Marco. — O dano de calor só está de um lado de cada pedaço, e não há resíduo de carbono. Além do que, se eu estiver certo, essas peças são provavelmente alumínio ou liga de alumínio, o que nos diz que deveriam mostrar mais deformação se estiveram no incêndio no laboratório. — Deixe-me ver isso — pediu Tom a Jed, que o entregou o metal leve. — Esse dano de calor no lado… poderia ter sido causado por solda?
Aquilo interessou Marco. — Agora que você mencionou, sim. É exatamente isso que parece. Tom virou-se e viu que Dennis assentia, mas Diana e Jed esperavam por uma explicação. — Os cientistas não levaram aquela arma pelo deserto nas costas. Eles tinham um veículo – um avião, um helicóptero ou um carro. Diana cerrou os olhos, confusa. — E eles a soldaram no veículo? Para quê? — Porque o veículo é o modo de entrega. — Exatamente — concordou Tom. — Eles estão levando-a ao alvo voando ou dirigindo. A única notícia boa é que o laboratório deles era longe demais de um lugar que valesse a pena atacar. — Ei, peraí — disse Jed. — É a menos de dois quilômetros de Las Vegas. É quase um alvo. — Não se o seu objetivo é varrer o movimento de promicina do Jordan — disse Tom. Seus pensamentos eram um turbilhão enquanto ele tentava imaginar o cenário. Perguntou a Dennis: — Quanto daquele elemento você pegou da CERN? — Só alguns gramas — respondeu Dennis. — E mais alguma anti-matéria. — Certo — disse Tom. — Marco, o que isso pode nos dizer? Marco revirou os olhos. — Assim por cima? Presumindo que o que o Dennis nos contou seja verdade e preciso, alguns gramas seriam suficiente para destruir uma cidade grande. O raio de efeito da explosão seria de mais ou menos 12 a 16 quilômetros. — O que significa que eles só teriam que chegar perto do alvo — disse Diana. — Nem teriam que se mostrar. — Sabe o que dizem por aí — retrucou Marco. — Você pode chegar perto o suficiente, mas não ter sucesso… nem mesmo com dispositivos termonucleares. — Vamos parar com as piadinhas forçadas e nos concentrar? — disse Dennis. — O que quer que aquela arma seja, precisamos encontrá-la antes que chegue ao lugar que estiver indo. — Ele tem razão — concordou Tom. — Vamos olhar as imagens de satélite das últimas vinte e quatro horas…
— Esqueça — interrompeu Marco. — Os satélites estão pifados. Sem GPS, sem comunicação, sem satélites para espionar. Qualquer arquivo que tinham, já era. Diana replicou: — Mas e os arquivos na Segurança Nacional? — Se conseguisse me conectar, já estaria fazendo isso — respondeu Marco. — O Exército cortou nossas linhas terrestres, e estão bloqueando qualquer sinal de celular ou rádio em Seattle. Neste mesmo momento, estamos completamente excluídos da internet, de TV a cabo e na grade de comunicação nacional. Jed soltou um suspiro frustrado. — Se não podemos analisar essas coisas e não podemos trazer ou mandar qualquer arquivo, que diabos vamos fazer? Sentar aqui chupando dedo? Tom tinha certeza que sabia o que Marco diria a seguir. Ele esperava estar enganado… mas não estava. — Odeio ter que dizer — confessou Marco. —, mas acho que precisamos pedir ajuda ao Shawn ou ao Jordan. ¹ Elemento transurânico é um elemento químico cujo número atômico é maior que 92.
TRINTA E QUATRO 1:21 P.M. DEPOIS DE ONZE HORAS no banco do motorista, Jakes mal conseguia sentir seu traseiro. Havia se tornado dormente horas atrás em algum ponto entre Salt Lake City e Ogden, Utah. Ele entretanto não se importava, uma vez que o formigamento era tudo o que sentira desde que cruzara a fronteira Nevada-Utah. O culpado sou eu mesmo, censurou a si próprio. Eu deveria ter verificado se o ar condicionado dessa geringonça funcionava antes de partir. Ele olhou de relance para seu braço esquerdo, apoiado na porta, o cotovelo para fora da janela aberta. O sol havia imprimido um forte bronzeado em sua pele; seu membro esquerdo agora estava dois ou três tons mais escuro que o direito. Um frentista em Steptoe, Nevada, havia dito que era um “bronze de motorista”. Nuvens cinzentas haviam começado a carregar o céu logo depois que Jakes passou por Salt Lake City, dando a ele um certo alívio em relação ao implacável bombardeio de radiação solar ultravioleta. Seguindo para o norte na bifurcação da Interestadual 15, em direção a Idaho, ele olhou para cima e ao redor. O céu tinha cor de água suja, e a atmosfera úmida cheirava a chuva. Como sempre, não havia nada a não ser porcarias no rádio. A estrada cortava a paisagem de Idaho quase que totalmente em linha reta. Havia duas faixas rumando para o norte e mais duas para o sul. Entre as duas pistas da estrada havia um canteiro largo e raso, cheio de arbustos de deserto e pedras soltas. Ladeando a rodovia, havia vastas planícies onde se alternavam mato alto e solo esturricado, marcadas aqui e ali por pequenas árvores. Além das planícies erguiam-se suaves colinas cobertas por arbustos secos, alinhadas uma após a outra, formando longas paredes de terra. Não importa o quanto avançasse, parecia sempre a mesma paisagem para Jakes. Por um pequeno milagre, a função de busca do rádio encontrou uma estação cuja música Jakes não odiava de todo, e ele ficou nela. Apesar de sua estadia no passado ser relativamente recente, havia aprendido a apreciar a cultura americana do início do século XXI, bem com sua comida e seu cinema, mas especialmente sua música, a maior parte da qual já havia sido perdida em seu tempo. Ele batucou as mãos no volante, acompanhando o ritmo. Parecia vergonhoso relegar tantas criações da humanidade ao esquecimento, mas sua missão não lhe permitia o luxo do sentimentalismo. Ele não podia mais se permitir continuar ligado àquela invejável e privilegiada era da civilização humana, assim como um pecuarista não poderia ter compaixão por animais levados pela necessidade para o abate. Para que o futuro de Jakes sobrevivesse, aquela época de busca pelo prazer teria que ser eliminada. O barulho de uma sirene entrecortou a música.
Jakes olhou pelo retrovisor. Giroscópios vermelhos e azuis se aproximavam rapidamente. Ele reconheceu as linhas brancas em “V” do carro da Polícia Estadual de Idaho que o perseguia, e amaldiçoou a si próprio por ter sido descuidado. Em meio à música, o ronco do motor e o zumbido monótono da estrada passando sob o carro, ele havia desviado a atenção do lugar em que estava e do que estava fazendo. Ligou a seta para a direita, reduziu, entrou no acostamento e parou sua picape. A viatura parou a alguns carros de distância, atrás dele. Jakes desligou o motor e o rádio, e então esperou com as mãos no volante e o cinto de segurança ainda travado. O som de uma porta de carro se abrindo, seguido pelo ruído de botas caminhando pelo asfalto atraiu seu olhar para o retrovisor externo. O motorista do carro de polícia havia emergido de seu veículo e estava andando em direção à porta de Jakes. Outro policial ainda estava dentro do carro, no banco do carona. Onde eles estavam escondidos?, Jakes se perguntou. Não havia outdoors por aqui. Deviam estar atrás de algum arbusto, à margem da estrada. De pé, a poucos centímetros de sua porta, estava a imponente figura de um patrulheiro rodoviário da Polícia Estadual de Idaho. Vestido com calças cinza escuras, camisa preta, óculos de sol espelhados e um chapéu “Urso Smoky1”, o patrulheiro mantinha-se parado em uma postura tranquila, mas alerta, com uma das mãos repousada sobre a coronha da arma que pendia de sua cintura. — Senhor, sabe por que eu te parei? — Sim, senhor policial — respondeu Jakes. — Eu estava correndo demais. — Você estava a 148 km/h numa área onde o limite é de 120 km/h. Mantendo a voz o mais estável e calma possível, Jakes explicou: — Sim, senhor. Eu me empolguei com a música. Estava prestando atenção nela e me descuidei da velocidade. Não tenho justificativa. Sinto muito. A declaração de culpa de Jakes não pareceu satisfazer o patrulheiro, que olhou para ele com uma dura expressão de desdém. — Posso ver sua carteira de motorista e o registro do veículo? — Claro — respondeu Jakes. — Estão bem aqui. — Ele abriu o porta-luvas e retirou sua carteira de motorista e o documento do carro, ambos absolutamente legítimos para o corpo que estava habitando. Quando se inclinou para entregar os papeis para o policial, olhou de soslaio para a pistola semiautomática enfiada entre seu banco e a alavanca de câmbio. O patrulheiro pegou os papeis e os examinou com uma das sobrancelhas erguida.
— Califórnia? Veio de longe. — Sim, senhor. — A regra principal para se falar com a força policial, Jakes havia aprendido, era dar respostas curtas. — E o que o traz a Idaho? — Férias — respondeu Jakes. — Aham — disse o policial, ainda concentrado na leitura dos documentos. Ele virou a cabeça e olhou através do vidro traseiro da picape, para a ogiva coberta por lona na caçamba. — O que você leva ali atrás? — Equipamento de camping — disse Jakes. A segunda regra era nunca fornecer voluntariamente qualquer informação a mais do que fosse absolutamente necessário. Aproximando-se do veículo e fazendo sombra sobre os olhos com uma das mãos, enquanto olhava através da janela traseira esquerda, o patrulheiro observou: — Não me parece que você tenha trazido muito equipamento. — Eu levo apenas o necessário. — Dá pra notar. — Notas mais profundas de desconfiança pontuaram sua voz. — Importa-se de me mostrar o que há por debaixo daquela lona, senhor? — De maneira nenhuma — respondeu Jakes. — Posso abrir a capota traseira daqui, se você quiser. O policial caminhou até a traseira da picape. — Então abra. Jakes soltou o cinto de segurança, inclinou-se para frente e alcançou a alavanca da capota traseira com a mão esquerda. Pôs a mão direita na coronha da pistola próxima ao seu banco. Com um puxão, destravou a capota, que se ergueu suavemente. O patrulheiro levantou a capota até ficar completamente aberta. Então inclinou-se para frente e apoiou o peso do corpo em uma das mãos, enquanto retirava o encerado com a outra. Sua boca se escancarou quando viu a ogiva dentro do invólucro de alumínio. — Que diabos… Sem dizer uma palavra, Jakes pegou sua pistola, virou-se e disparou um tiro que atravessou a testa do patrulheiro, pintando o asfalto atrás dele com um jato de massa encefálica vermelho-acinzentado.
Assim que o corpo tombou no chão, Jakes disparou mais três tiros na direção do policial que estava dentro da viatura. O parabrisa ficou em cacos conforme um projétil após o outro o perfuravam e golpeavam a cabeça e o peito do segundo patrulheiro. Depois da trovoada de quatro tiros dentro de seu carro, o silêncio que se seguiu parecia quase surreal. O ar dentro da picape estava sufocante por causa da pólvora liberada. Aquela era a terceira regra de Jake para se falar com a força policial: saber quando encerrar a conversa. Que maldita inconveniência, Jakes praguejou, enquanto guardava a arma e saía do carro. Ele caminhou até a traseira de seu veículo, recolocou a lona que cobria a ogiva e fechou a capota. Então pegou o patrulheiro morto e o arrastou para a viatura policial. Não havia outros carros à vista, e Jakes agradeceu imensamente ao universo por aquela pequena misericórdia. Ele abriu a porta do motorista da viatura e empurrou o sargento morto para dentro, junto de seu parceiro assassinado. Agora vamos à limpeza, ele disse para si. Pegou o cartão de memória e o DVD da câmera do painel da viatura, depois usou o computador de bordo para ver se eles já haviam pesquisado a licença de seu veículo; o policial que havia ficado no carro estava começando a digitar os dados quando Jakes atirara nele. Portanto, não havia registro oficial daquela ocorrência de trânsito. Jakes cancelou o procedimento. Ele colocou a marcha em ponto morto e empurrou a viatura para fora da estrada, para dentro de um grupo de pequenos arbustos secos. Para motoristas que se aproximassem pela parte de trás, aquilo iria parecer a tocaia mais malfeita do mundo. Os motoristas que viessem pelo outro lado só os veriam de uma certa distância, e os arbustos secos encobririam o parabrisa quebrado. Parecia que levaria muitas horas até que alguém percebesse que aqueles dois homens estavam desaparecidos. Até lá, Jakes já estaria longe. Mesmo se eles encontrassem suas digitais ou seu DNA dentro do carro, isso não teria importância. Sua nova identidade não tinha ficha criminal. Não conseguiriam identificá-lo. Voltando para seu veículo, ele olhou para cima, para o céu cinza-chumbo, enegrecido. Parecia que uma tempestade se aproximava. Ele entrou em sua picape, jogou o cartão de memória e o DVD no chão, em frente ao banco do carona, deu a partida e engatou a marcha. Uma música famosa tocava no rádio. Ele desligou. Olhos na estrada, advertiu a si próprio. Ainda havia um longo caminho pela frente, e espaço nenhum para mais erros.
Notas: 1 Smoky the Bear – personagem criado pelo Serviço Florestal americano, usado em campanhas de educação para a prevenção de incêndios florestais, “Smoky” usa um chapéu de aba larga que se tornou sua marca registrada.
TRINTA E CINCO 1:53 P.M. A ÚLTIMA COISA que Tom queria era sair novamente e enfrentar a tempestade de fogo cruzado que se apossara de Seattle. Mas não havia linhas telefônicas ou e-mails disponíveis, e a única coisa que os celulares transmitiam era estática. Ele até tentaria mandar sinais de fumaça se metade da cidade já não estivesse em chamas. Já que ninguém mais queria dirigir, Tom acabou atrás do volante de um dos SUVs blindados da NTAC. Agora ele estava desviando de bolas de fogo, balas e dúzias de projéteis aleatórios produzidos telepaticamente em cada bloco enquanto seguia pelas estreitas ruas residenciais de Madrona. Era exatamente isso o que queria estar fazendo hoje, pensou enquanto ziguezagueava por entre carros e caminhões em chamas capotados. Diana estava equipada com uma espingarda doze, e Dennis estava espremido numa pose desconfortável entre Jed e Marco no banco de trás. — Se eu soubesse que pegaríamos a rota cênica, teria trazido minha câmera — disse Dennis, sem esforçar-se para esconder seu mal humor. Tom guinou para o lado e passou raspando por um caminhão que bloqueava a rua, então respondeu: — Não agradeça a mim, Dennis, agradeça ao Exército. Foram eles que transformaram a interestadual em queijo suíço. — Teremos mais espaço assim que entrarmos na Madison — disse Diana, e ela tinha razão. Meio minuto depois Tom fez uma curva tão brusca na Rua East Madison que ele e Jed foram prensados contra as portas do lado do motorista, e apertou Dennis ainda mais entre Marco e Jed. O último dos tiros aleatórios ricocheteou pela janela traseira, deixando um pequeno arranhão. — Que bom que esse carro tem vidros à prova de bala — comentou Jed. —, senão essa teria sido uma viagem bem curta. — Vai ser curta do mesmo jeito — disse Tom. — Acho melhor pensarmos no que dizer ao Shawn antes de chegarmos lá. Diana pareceu surpresa. — Pensei que você e Shawn estivessem de boa. — Nós estávamos, mas… — Ele não sabia como terminar a frase. — Você sabe como são as coisas com família. E o jeito como ele fez o trabalho sujo da Maia na reunião não
ajudou muito. Dennis inclinou-se para frente. — Tenho uma sugestão. Vendo a cabeça de seu antigo chefe entre os dois assentos dianteiros encheu Tom com uma vontade de golpear Dennis com uma marreta. Que nem um Whac-a-mole humano¹, pensou Tom com um sorriso. — Vamos ouvir — disse ele, suspendendo seu impulso malévolo momentaneamente. — Sei que pode parecer uma ideia radical, vindo de mim, mas talvez devêssemos contar a verdade ao seu sobrinho. Diana lançou um olhar de dúvida para Dennis. — Antes que eu possa pensar alguma coisa, o que exatamente você define como “a verdade” nessa situação, Dennis? — Contaremos a ele que os Marcados têm uma bomba de antimatéria e estão a caminho para explodir Seattle a não ser que seu povo nos ajude a encontrá-los e impedi-los. Tom balançou a cabeça. — E quando ele perguntar como os Marcados conseguiram a bomba? — Bem, acho que não precisaremos abordar essa parte — respondeu Dennis. Marco cobriu a boca com o pulso e fingiu tossir enquanto murmurava: — Mentira! — Use a cabeça — disse Jed. — Algumas daquelas pessoas conseguem ler mentes, beleza? No segundo que você pisar lá, elas saberão o que você fez e por que, então se eu fosse você, jogaria limpo. Dennis suspirou furioso e recostou-se novamente. — Tudo bem. Jed pensou alto: — E se o pessoal de Jordan foi para o Centro? — Diana virou-se e o olhou enquanto ele acrescentava: — Quero dizer, e se tivermos que lidar não apenas com o Shawn, mas também com o Jordan? Isso tornaria as coisas, bem… tensas.
— A cidade está sendo despedaçada enquanto falamos — disse Diana. — E você está preocupado com as coisas tornarem-se tensas? Olhando ao redor procurando algum apoio, mas sem encontrar, Jed retrucou como um garoto repreendido: — Você entendeu o que quis dizer. Era a vez de Marco e Diana serem prensados contra porta enquanto Tom virava rapidamente o SUV em uma curva difícil na Avenida Twenty-third East. Tirando os ataques e os desvios, o resto da viagem seria uma linha reta na direção do norte até que alcançassem Crescent e virassem no Centro 4400. — A grande pergunta é — disse Diana, em seu modo de pensar em voz alta sem adereçar-se a ninguém em particular. — o que vamos pedir que Jordan ou Shawn façam com a bomba assim que souberem dela? Nós queremos que ele a destrua? Dennis disse: — Preferia que não. — É — interpôs Marco, sarcasticamente. — Você poderia perder seu emprego se isso acontecesse. — Também tem o fato de isso representar uma grande conquista científica — insistiu Dennis. — Achei que você e Diana poderiam apreciar o valor a essa altura. Simplesmente destruí-la seria jogar tudo fora. Jed torceu o rosto, em dúvida. — Talvez. Mas a última coisa que alguém ia querer é o Jordan colocar as mãos em uma bomba futurística que nem sequer ativa um detector de radiação. Marco retrucou: — O que o Jordan ia querer com uma bomba? Ele já tem pessoas que podem destruir a cidade com suas habilidades de promicina. — Talvez — disse Jed. — Mas sempre é bom ter uma carta na manga. — Ele inclinouse para frente. — O que acha, Tom? Você conseguiria dormir sabendo que Jordan tem uma bomba nuclear? — Não consigo dormir nem agora — respondeu Tom. — Mas não acho que assim seria melhor. Diana levantou as mãos.
— Tudo bem, então. Queremos a ajuda deles para encontrar a bomba, mas não queremos que eles fiquem com ela. Então nós ficamos. Pedimos a eles que nos ajudem e então faremos o resto. — Parece um belo plano — disse Dennis. — E o que você acha que eles pedirão em troca? — Diana, Jed e Marco trocaram olhares surpresos. Dennis prosseguiu: — Você acha mesmo que eles vão largar tudo enquanto impedem uma invasão na nova cidade-estado deles só para te ajudarem a encontrar uma bomba? Tom respondeu: — Poderiam se soubessem que está vindo para cá. Dennis considerou com uma leve inclinação de sua cabeça. — Talvez sim. Talvez não. — Ele levantou as sobrancelhas. — Você não está me entendendo, Tom. Se eles pedirem alguma coisa em troca por isso, vocês estarão ferrados. Porque eles podem te dar algo, mas você não pode dar nada. — Ele tem razão, Tom — disse Diana com sua expressão mais séria. — Acho melhor pararmos e comprar-lhes uma lembrancinha no Starbucks. Tom retrucou: — Beleza, mas não seja tão “pão-dura” quanto você foi no amigo secreto. Pegue um cartão na Applebee enquanto você estiver lá. — Certo — concordou Diana com uma gravidade falsa. — E uma cesta de frutas — acrescentou Marco. — Todo mundo gosta de uma dessas. — Espera aí. Nós vamos dividir a conta? — perguntou Jed. — Porque eu só tenho vinte pratas. Franzindo o rosto diante da facilidade com que as agentes da NTAC respondiam aos comentários sarcásticos um do outro, Dennis disse impassível: — É por isso que sinto falta de trabalhar com vocês: seu profissionalismo. Adentrar uma rua estreita em uma potencial zona urbana de guerra a 145 quilômetros por hora era provavelmente o pior lugar para alguém perder a concentração por pelo menos um segundo, mas, por meio minuto, tudo o que Tom, Diana, Jed e Marco conseguiam fazer era rir. — Tudo bem — disse Tom, por fim. — Fechem a matraca. Estamos quase lá. — Ele
fez uma curva para a esquerda na Crecent, então diminuiu a velocidade enquanto seguia abaixo a entrada ziguezagueante do Centro. — Sei que não temos nada para oferecer. Acho que temos que esperar que ainda haja boa vontade entre Shawn e eu para que ele possa nos ajudar. — E se o que está ruim piorar ainda mais — disse Jed. —, nós oferecemos o Dennis a eles como sacrifício humano. — Isso não daria certo — disse Diana. — Um sacrifício humano tem que ser alguém que importe. Enquanto eles passavam pela penúltima curva no caminho, Tom viu Dennis através do espelho retrovisor abrir a boca para responder. Então o SUV parou subitamente com um barulho ensurdecedor, como se Tom tivesse colidido com uma parede de tijolos dirigindo ao dobro da velocidade atual. A próxima coisa que ele viu foi a airbag atingir seu rosto. Depois disso, o mundo todo se tornou vermelho e roxo pelo que pareceu vários segundos. Gradualmente, a airbag diminuiu a pressão contra seu rosto e peito, e então se desinflou por sobre o volante. À sua volta, todas as outras airbags do veículo encolheram-se e caíram, libertando seus passageiros atônitos. Tom imaginou se algum deles tinha uma dor de cabeça tão dolorosa como a dele. A frente do SUV reduzira-se a algo parecido com uma sanfona, e todas as suas janelas estavam quebradas por causa do impacto. — Alguém se machucou? — perguntou Tom. — Tá todo mundo bem? — Sim e não — respondeu Diana. Ninguém perguntou o que acabara de acontecer. Em um mundo onde telecinese era algo comum na vida diária, a causa de sua calamitosa desaceleração era fácil de adivinhar. Em meio à dor palpitante, sincronizada com sua pulsação, em seu crânio, Tom ouviu uma voz desconhecida dentro de sua cabeça: não se mexam. Ele olhou para Diana, e então para Marco. — Alguém mais ouviu isso? — Acho que todos ouvimos — respondeu Marco. Todos os outros no carro acenaram com a cabeça para confirmar. Fiquem dentro do veículo, ordenou a voz. E mantenham as mãos à mostra. Vocês estão cercados.
Diana pressionou o pacote de gelo contra sua bochecha e tentou não pensar na ferida que provavelmente cobriria seu rosto na manhã seguinte – supondo que ela e o resto da Terra Prometida vivessem por tanto tempo. O grupo do SUV estava sentado em um lado da longa mesa na sala de reuniões onde, apenas dois dias antes, eles haviam se encontrado com Jordan e seu círculo mais próximo. Diana estava flanqueada por Tom à sua esquerda e Marco à sua direita; Jed ocupava o assento ao lado de Tom e Dennis estava na ponta oposta, ao lado de Marco. Os quatro homens seguravam pacotes de gelo contra partes variadas de suas anatomias. Tom pressionava o dele contra seu nariz, Jed gelava seu pescoço, Marco colocara o dele acima de sua cabeça, e Dennis usara o dele para cobrir os olhos. Pela primeira vez desde que o interceptara no centro de crise da NTAC, Diana notou que Dennis era o único diferente do grupo: era o único que não vestia um colete à prova de balas. Uma porta abriu-se, e Shawn entrou na sala. Ele parecia exausto. Suas roupas estavam manchadas e amassadas, e suas mãos estavam sujas de sangue seco. Sujeira e suor assentavam seu cabelo, e seus olhos normalmente brilhantes tinham olheiras causadas pelo cansaço. Heather Tobey vinha logo atrás dele e parecia pouca coisa menos exausta que Shawn. Caminhando atrás dela estava Jordan Collier. Suas roupas eram uma sombra cinzenta, e seu cabelo estava encoberto de pó esbranquiçado, mas suas mãos e rosto haviam sido lavados o suficiente para exibir um pouco de cor. A comitiva que o seguia – Gary, Kyle, Maia e um trio de cujos nomes Diana nunca conseguia lembrar-se – aparentemente tinham estado muito ocupados para se limparem. Todos eles estavam pintados no mesmo tom cinzento da cabeça aos pés, todos cobertos pelo pano da morte forjado no fogo. Todos, do primeiro ao último, continuaram de pé ao lado da mesa. — Perdoem-nos por não nos sentarmos — disse Jordan. — Estamos um pouco ocupados no momento. — Nossa — disse Tom. — Obrigado por arrumar um espacinho pra gente, então. Jordan respondeu com um sorriso fino sem emoção. — A única razão por não estarem todos mortos agora é porque Gary me garantiu que suas intenções são boas.
Falando diretamente para Gary, Diana disparou: — O que mais você arrancou de nossas cabeças? Precisamos ao menos dizer por que estamos aqui? — Tudo o que sei é vocês estavam vindo para nos dar um aviso. Depois que as airbags os atingiram, seus pensamentos ficaram difíceis de serem lidos. Marco riu. — Provavelmente porque todos estávamos pensando a mesma coisa: ai. — Pelo amor de Deus, estamos perdendo tempo — vociferou Dennis. Ele olhou para Tom e Diana. — Digam a eles. Kyle apontou para Dennis ameaçadoramente. — Se eu fosse você, ficaria de boca fechada até o fim dessa reunião. — Ele fez um gesto para os quatro agentes da NTAC. — Eles têm algum crédito. Você não. Jordan levantou uma mão e acenou para Kyle acalmar-se. Enquanto o jovem dava um passo para trás, Jordan disse à equipe da NTAC: — Alguém me conte o principal. Rapidamente, por favor. Tom inclinou-se para frente a cruzou as mãos sobre a mesa. — Três agentes dos Marcados induziram Dennis a ajudá-los a construir um tipo de bomba miniatura de antimatéria indetectável. Em algum momento nas últimas vinte e quatro horas, eles a roubaram e desapareceram. Achamos que eles vão acionar a arma. Shawn perguntou: — Na Terra Prometida? Diana deu de ombros. — Não temos certeza. Por isso estamos aqui. Perdemos acesso à maioria das ferramentas que nos ajudar encontrar a bomba. Precisamos da ajuda de vocês para achá-las antes que ela seja acionada. Jordan enrugou a testa, preocupado. — Vocês descreveram a arma como uma bomba “miniatura”. Qual o tamanho do dano que ela pode causar? — Vai vaporizar tudo num raio de 12 quilômetros — respondeu Marco. —, e a onda do
choque e efeitos térmicos vão varrer tudo a 30 quilômetros além disso. — È bem grande para mim — disse Jed. — E a radiação? — perguntou Heather. — Essa talvez seja a única parte boa disso tudo — respondeu Marco. — Uma bomba de antimatéria quase não tem conversão de matéria em energia, então não quase não haveria resíduo de radiação. Jordan olhou para Gary, que confirmou com um único aceno de cabeça. — É tudo verdade — disse o telepata. Isso provocou uma pequena risada em Jordan, cujos olhos abriram-se mais enquanto ele balançava a cabeça. — Acho que seja verdade o que eles dizem. Não existe situação tão ruim que não possa piorar. — O que incomoda — disse Tom. — é que isso não parece o jeito de agir dos Marcados. — Como assim? — perguntou Jordan. — Eles tendem a pensar maior que isso — respondeu Tom. — Talvez estejam contando com você ocupado lutando contra os militares para vê-los chegando, mas devem saber que não acaba por aí. Quero dizer, mesmo que conseguissem te derrotar, ainda haveria p-positivos pelo mundo todo que continuariam a lutar. Assentindo, Jordan disse: — Verdade. Mas se cada um de nós tem uma parte a fazer pelo futuro, talvez se livrar de uma pessoa no momento certo é tudo o que eles precisam fazer para ganhar. — Ele suspirou. — Infelizmente, meu pessoal está ocupado demais lidando com essa invasão. Até que eles protejam a cidade, não há nada que possamos fazer para ajudá-los. Sinto muito. Enquanto Jordan virava-se para sair, Tom disse ao sobrinho: — E você, Shawn? Vai deixar Jordan falar por você? Ele está no comando aqui de novo? — Isso é apelação, tio Tommy — respondeu Shawn. — E não. Eu ainda comando o Centro. Mas, neste momento, ele e eu estamos trabalhando juntos para proteger nossa cidade e nosso povo. Marco levantou sua mochila abriu o bolso superior.
— Por favor — implorou o analista. — Tudo o que precisamos é de alguém que nos ajude a estudar as pistas que já encontramos. Não estamos pedindo que lutem a batalha por nós, só pedimos que nos mostrem o próximo passo. — Sinto muito — disse Shawn. — Talvez, quando a cidade estiver salva, podemos fazer algo. — Ele começou a tirar as pessoas da sala de conferência. — Se quiserem voltar para NTAC, nós… — Nós temos que ajudá-los — disse Maia, parando o grupo que saía e silenciando a sala. Todos olharam para a adolescente, cujo semblante intenso tornava-se mais enervante devido à camada de pó que a cobria. Ela encarou Jordan. — Se não os ajudarmos, o Movimento acaba hoje. Os agentes da NTAC e Dennis levantaram-se e juntaram-se na multidão ao redor de Maia. Jordan apoiou-se em um joelho em frente a ela e apoiou as mãos em seus ombros. — O que você está vendo, Maia? Como o Movimento termina? Com palavras frias e graves, ela respondeu: — O mundo se torna cinzento e morre. ¹ Um Whac-A-Mole é uma máquina grande, geralmente na altura da cintura, com cinco buracos no topo e uma grande marreta macia. Cada buraco contém uma toupeira de plástico que aparecem aleatoriamente. O objetivo do jogo é acertá-las com a marreta assim que aparecerem.
TRINTA E SEIS 2:38 P.M. ALGUÉM BATEU na porta da sala de reuniões. Shawn a abriu, revelando o tímido jovem asiático lá fora. — Entre — convidou Shawn, com um gesto, encorajando-o a entrar na sala. Movimentando-se a pequenos e tímidos passos, o estudioso adolescente adentrou a sala de reuniões. Percebendo o grande número de pessoas que ali o esperavam, ele engoliu em seco, nervoso, e ajustou seus óculos bifocais, que haviam sido remendados bem no meio com fita crepe. — Pessoal — disse Shawn —, este é Chongrak Panyarachun, de quem eu lhes falei. — Ele encaminhou Chongrak para a cadeira na cabeceira da mesa. Sobre ela haviam sido colocados o livro, a pedra e os pedaços de metal que Marco Pacella havia trazido consigo. Puxando a cadeira, Shawn disse a Chongrak: — Está tudo bem. Sente-se. O americano filho de imigrantes tailandeses hesitou à frente da cadeira por um instante, e então se encolheu nela, como se desejasse desaparecer simplesmente ao sentarse ali. Shawn deu um passo para trás, fazendo um sinal com a cabeça para Heather, que se adiantou e agachou-se ao lado de Chongrak. Ela pousou sua mão sobre a dele com delicada ternura e sorriu. — Obrigada por vir. De uma só vez, o rosto de Chongrak se iluminou. Ele sorriu para Heather, de forma a depositar confiança nela. Observar a maneira pela qual Heather fazia aflorar os talentos inatos das pessoas e promover suas melhores qualidades ainda tocava Shawn tão fundo quanto da primeira vez em que ele a havia visto em ação. Na melhor das hipóteses, Shawn conseguia restaurar a pessoa naquilo que ela fora antes de conhecê-lo; o dom de Heather ajudava as pessoas a desenvolver seus próprios. Ele não invejava a habilidade dela, mas a admirava e respeitava profundamente. — Precisamos que você examine estes objetos. — Heather pediu a Chongrak, enquanto indicava com a outra mão as evidências colhidas por Marco. — Você pode fazer isso por nós, e dizer o que vê? Chongrak concordou com a cabeça. Estendeu a mão esquerda para frente e pegou um dos pedaços de alumínio semiderretido. Assim que alcançou o objeto, seus dedos se cravaram nele como garras de uma águia sobre a presa, e seu comportamento mudou por
completo. Ele fechou os olhos. Sentou-se ereto na cadeira. Ergueu a cabeça. Diante de todos, ele se transformou de vaquinha de presépio em alguém cuja presença podia dominar a sala. — É sucata de um processo de soldagem — declarou Chongrak, com uma confiante voz de barítono que parecia enorme demais para sua compleição. — Alumínio. Foi escolhido por seu baixo peso e sua força. Modulando sua voz para um tom suave e meloso, Heather perguntou: — Escolhido por quem? Você pode ver a oficina de soldagem? O rosto do jovem se contraiu com o esforço da concentração. — Eu a vejo — disse Chongrak. — Ela é jovem. Loira. — Apesar de seus olhos permaneceram fechados, ele estendeu a mão direita e pegou outro pedaço de metal. — É de noite. Ela está criando uma estrutura para acomodar algo. Dentro de um caminhão. Olhares significativos passaram de pessoa para pessoa por toda a sala. Aproveitando a dica, Heather perguntou a Chongrak. — Que tipo de caminhão? Conte-me sobre ele. — É branco — respondeu Chongrak. — Um utilitário esportivo. Com uma caçamba. — Ele contraiu o rosto o suficiente para mostrar os dentes por um instante. — Não consigo ver que modelo é… Isto é tudo. — Os dois pedaços de metal caíram de suas mãos, retinindo alto quando rolaram por sobre a mesa. Do outro lado da sala, Marco acenou para chamar a atenção de Heather e apontou para o livro queimado. Ela estendeu o braço e colocou o livro nas mãos de Chongrak. Ele o segurou com ambas as mãos, abraçou-o contra o peito, e soltou um grito de dor. — Fogo! — berrou. — Páginas se queimando! — Volte mais. — Heather encorajou-o, suave, pousando uma mão em seu braço. — Antes do fogo. Alguém já havia lido este livro? Chongrak se acalmou e respirou fundo. — Sim — respondeu. Seus dedos viajaram vagarosamente ao longo das bordas tostadas do livro. — Todos. Eles o leram juntos. — Quem são eles? — perguntou Heather. — Como são eles? — Dois homens e a mulher loira. Um homem é branco, o outro é negro. — Ele parou e inclinou sua cabeça. — Eles estão virando páginas. Procurando por algo. Um mapa.
Shawn ia ficando cada vez mais ansioso conforme sentia o tempo correr, e fez um movimento circular com a mão, pedindo a Heather que o incentivasse a ir mais rápido. Ela concordou com a cabeça e virou-se para o rapaz psicométrico. — Chongrak — disse ela. — Que mapa eles estão olhando? — Dos Estados Unidos. Olhares confusos circundaram a sala. Ninguém parecia saber o que fazer a respeito. Shawn lançou um olhar interrogativo para Heather, que encolheu os ombros, frustrada. Ela perguntou a Chongrak: — Há alguma parte do mapa em que eles estejam mais interessados? — Não tenho certeza — ele respondeu. — Eles estão olhando para a metade oeste… O homem branco está apontando para alguma coisa; não sei o que é. Poderia ser Idaho, ou Montana, ou Wyoming… Eles estão fechando o livro. Isto é tudo. — Ele largou o livro sobre a mesa com um barulho retumbante. Tudo o que restava era a pedra. Heather a pegou e a colocou gentilmente na mão de Chongrak. — Leve o tempo que precisar — disse ela. Ele respirou fundo e jogou a cabeça para trás, como se estivesse olhando para o céu. — Era o homem branco que estava lendo o livro. Ele está pegando a pedra. De um solo árido coberto de água. Árvores secas à distância — Chongrak sorriu. — Vapor. Há uma coluna de vapor subindo do solo. Um gêiser. Marco disparou: — Um gêiser? – Apesar do olhar de Heather, ele continuou. — A pedra é do Parque Nacional de Yellowstone? — Sim — respondeu Chongrak. — O homem está no Parque Yellowstone. Cambaleando, chocado pela descoberta, Marco desabou sobre uma cadeira e exclamou: — Ai, meu Deus! Shawn sentiu que haviam feito algum progresso, então acenou com a cabeça para Heather, que deu um tapinha no ombro de Chongrak. O jovem tailandês abriu os olhos, e voltou à sua postura moderada. Heather tirou a pedra das mãos dele.
— Obrigada, Chongrak — ela disse. — Você foi de grande ajuda. Pode ir agora. Ele sorriu sem olhá-la nos olhos e então levantou-se da cadeira e caminhou até a porta a passos curtos. Shawn abriu a porta para o jovem, que se esgueirou da sala sem uma palavra e sem sequer olhar para trás. Quando a porta se fechou, Jordan pediu a Marco: — Explique. — Agora faz sentido — disse Marco. — Os Marcados estão procurando por uma maneira de virar a mesa. Algo que irá neutralizar seu movimento em apenas uma jogada. Eles estão levando a bomba para Yellowstone. Todos, menos Marco, pareciam completamente assombrados. Foi Jordan quem perguntou: — E então? Então o quê? — Então — Marco respondeu com escárnio puro — o parque está localizado no topo da Cratera Yellowstone. Shawn e a maior parte das outras pessoas na sala ainda não faziam ideia do que Marco estava falando, mas uma pessoa sabia: Diana. Ela caiu em uma cadeira e cobriu sua boca aberta com as mãos. — Jesus! Tom parecia perplexo quando disse a Diana: — Já que Marco não consegue explicar claramente o que significa, você quer tentar? Diana concordou com a cabeça, abaixou as mãos e respirou fundo. — A Cratera Yellowstone é o que restou da última erupção do supervulcão Yellowstone — declarou. Kyle perguntou: — Há um vulcão sob o Parque Yellowstone? Marco respondeu: — Não apenas um vulcão, mas O vulcão. O maior sistema vulcânico ativo na Terra. Um evento de nível de extinção apenas esperando para acontecer.
— E os Marcados pretendem fazê-lo acontecer hoje. — Diana concluiu. — Aquela bomba antimatéria que eles construíram é poderosa o suficiente para explodir a tampa da cratera. Jordan disse: — E quando isto acontecer…? — Será como sacudir uma garrafa cheia de Sonrisal num dia quente de verão, depois tirar a tampa — respondeu Marco. — Imagine uma piscina três vezes maior do que Los Angeles, cheia de rocha derretida. E dentro dela há gás sob pressão. Tire a tampa, e todo aquele gás preso vai explodir, direto para cima. Será a maior erupção vulcânica da história da humanidade. Jed levantou as mãos. — OK, mas isto é no meio do nada, em Wyoming. E então? — Com uma erupção deste tamanho — respondeu Diana — não importa onde aconteça. Se aquela cratera explodir, o jogo terminou. Diga adeus à raça humana. Genuinamente petrificado, Shawn perguntou: — Tem certeza de que não está exagerando nem um pouquinho? Uma erupção vulcânica pode realmente provocar um desastre tão grande? Levantando-se, Marco disse: — Deixe-me esclarecer para todos vocês. A última erupção que foi próxima disto aconteceu setenta e quatro mil anos atrás, no Lago Toba, em Sumatra. Aquela explosão quase exterminou a espécie humana. Ele contornou a mesa, enquanto continuava sua aula improvisada. — Ela encobriu o sol por todo o globo, extinguiu populações de animais, matou plantas e desceu as temperaturas para perto do congelamento em toda parte, exceto perto da linha do equador. Pesquisas genéticas na área do DNA mitocondrial identificaram aquele momento como um “ponto de choque” na história do genoma humano. Ele reduziu nossa população a apenas alguns milhares de casais por todo o planeta. O fato de que aquilo não nos levou à extinção pode ter sido apenas um golpe de sorte. Parando à cabeceira da mesa, Marco acrescentou: — Esta erupção será muito, muito pior. Vai cobrir a América do Norte de costa a costa com uma camada de mais de meio metro de cinzas tóxicas. Vai encobrir o sol por anos, talvez por uma década, iniciando um inverno nuclear, e portanto uma nova Era do Gelo, que durará
milhares de anos. É o fim do mundo, sem choro nem vela. Um silêncio horripilante se seguiu. Então todos os olhares voltaram-se para Maia, que saiu de um canto da sala e se colocou na frente de Jordan. — Como eu disse: o mundo se torna cinzento e morre.
TRINTA E SETE 2:45 P.M. TOM ENCONTRAVA-SE no escritório de Shawn ao lado da porta fechada, ainda despreparado para aceitar o convite de Jordan para participar de uma comunhão psíquica maluca. — Vai ser como aquela vez com a torta? — Não, Tom — respondeu Jordan. — O fenômeno que você experimentou em Evanston só permitia às pessoas partilharem memórias. Isso é como criar uma percepção em harmonia ao vivo. Havia três pessoas atrás de Jordan, todas elas esperando por Tom, e Gary era o único que ele conhecia. Jordan apresentara os outros como Lucas, cuja habilidade era criar telepatias gestálticas, e Hal, uma observadora remota cuja especialidade era encontrar pessoas ou coisas mesmo quando elas estavam em movimento ou muito distantes. — Não quero que fiquem lendo meus pensamentos — disse Tom. — Não é bem assim — retrucou Lucas. — Quando nos conectarmos, veremos e ouviremos as mesmas coisas, mas nossos pensamentos continuarão privados ao menos que queiramos dividi-los. Com um malicioso sorriso torto, Gary disse: — Tão privados quanto podem ser com um telepata na sala. — Não está ajudando — disse Tom a Gary. Gary levantou uma mão e abaixou a cabeça para desculpar-se. — Relaxa, Tom. Tenho mais controle do que costumava. Hoje em dia, consigo procurar informações específicas na cabeça das pessoas, como saber se são amigos ou inimigos, ou se estão escondendo algo importante. Agora que sei que está do nosso lado… — Não diria que estou ao seu lado exatamente — protestou Tom. — Diria que temos um interesse em comum: impedir o Armagedom. As mandíbulas do telepata contraíram-se, como se ele estivesse segurando sua raiva. — Diga como quiser. A questão é que não estarei espionando sua cabeça. — Tom, convidei-o para juntar-se a nós por duas razões — disse Jordan. — A primeira é para que você possa ter acesso total a todas informações que temos. Assim saberá que não estamos escondendo segredo algum. A segunda razão é que, assim que encontrarmos essa bomba, você e seu time bolem um plano para impedi-la. Todos do meu povo que têm habilidades propícias ao combate estão ocupados lutando contras as tropas na cidade ou
defendendo o Centro de um ataque iminente. Não posso liberar ninguém até que a batalha pela cidade termine. Tom assentiu e deu um passo a frente para se juntar ao grupo. — Certo — concordou ele. — Eu entendo. Vamos logo com isso. Os cinco homens deram-se as mãos e fecharam os olhos. A princípio, a convocação dos gestálticos era como um sussurro, quase imperceptível em meio ao barulho dos pensamentos soltos na cabeça de Tom. Então aquilo caiu por cima dele como uma onda suave e morna. Ele sentiu sua respiração e pulsação sincronizarem com a dos outros. Embora seus olhos ainda estivessem fechados, ele viu a si mesmo e aos outros por cima, e soube instintivamente que era a habilidade de visão remota de Hal sendo compartilhada. — Por onde devemos começar, Tom? — perguntou Jordan. — Acredito que nosso veículo esteja na estrada há um tempo — respondeu ele. — Marco disse que o fogo no laboratório já tinha se apagado quase por completo quando ele chegou lá, então deve ter sido aceso logo de manhã. Agora, o caminhão podia estar quase em Yellowstone. A perspectiva de visão remota subiu cada vez mais, através do telhado do Centro, como se ele fosse feito de vapor, e das nuvens, para onde o horizonte começava a mostrar o primeiro sinal de uma curva. Então aceleraram para sudoeste, a Terra abaixo deles tornandose um borrão. Disparando pelas montanhas de nuvens, eles sobrevoaram o Monte Rainier, passaram por sobre as Rockies e planaram pelos planaltos do oeste. — Vamos começar pelo parque e fazermos o caminho de volta pela rota mais provável — disse Hal. Os outros murmuraram em concordância. Enquanto desciam em espiral para o chão, Tom sentiu um embrulho no estômago e uma tontura. Tudo o que via era um borrão de terra firme. — Como sabe onde está? — Eu apenas sinto — disse Hal. — Eu imagino o lugar que quero procurar e sinto o caminho até lá. Segundos depois estavam movendo-se paralelamente ao chão, traçando o caminho da estrada, as linhas de trânsito surgindo numa tira amarela incessante. Nos próximos minutos, carros de todo tipo passaram, alguns sozinhos, outros em
grupos. Ao sinal de qualquer veículo branco, Hal diminuía a velocidade e preparava-se para dar uma melhor olhada. O primeiro era um carro compacto; o segundo, um de esporte. Na rodovia, a alguma distância de Yellowstone, eles avistaram um terceiro veículo: uma van. — Vamos dar uma olhada — disse Tom. — Pensei que estivéssemos procurando um SUV — disse Jordan. — Estamos perto. Não podemos arriscar perdê-lo. Hal guiou o ponto de vista deles na direção da van, então eles atravessaram sua lateral e entraram. A área de carga era preenchida por cortinas de tecido, bastões de metal e caixas de ferramentas e peças menores – mas nada que parecia com uma bomba. — Não é o nosso cara — disse Gary. — Ele trabalha para uma loja de departamentos, fazendo instalação de janelas. — Certo — disse Tom. — Vamos em frente. A visão paralela do mundo inverteu a direção, saindo da van como um fantasma. Os quilômetros iam ficando para trás, a extensão da rodovia era imutável enquanto se torcia como um laço na direção do horizonte sob um céu obscurecido. Algo ao longe chamou a atenção de Tom. — Ali — ele disse. — SUV branco vindo na nossa direção. Em um piscar de olhos eles atravessavam o parabrisas e estavam no banco do passageiro, ao lado do motorista. Era um homem branco de uns quarenta anos, com cabelos castanhos, e esguio. Havia sangue seco nas postas de suas unhas. Entre ele e o câmbio havia uma pistola Glock semiautomática. Na parte de carga havia uma sinistra protuberância no formato de uma bomba sob uma lona. — Bingo — disse Tom. — Com certeza esse é o cara — disse Gary. — É Jakes. O plano todo está claro em sua cabeça. Ele está indo para a margem oeste do Lago Yellowstone. Quando chegar lá, irá armar a bomba e jogar o caminhão lago para que ninguém interfira antes que ela detone. — E seus conspiradores? — indagou Jordan. — Os outros membros dos Marcados?
— Wells e Kuroda estão em um voo para fora de Vegas. Estão indo para Tókio, e de lá se esconderão. — Pegue cada detalhe — falou Tom. — Fabricante e modelo, o número da placa, marcador de quilometragem, quanto combustível tem. Tudo. — Nissan Pathfinder — disse Jordan. — O tanque está pela metade. Hal foi para trás, e eles pareceram estar andando de costas em frente ao veículo. — A placa é da Califórnia — disse. — Número: 3XZZ713. — Beleza — disse Tom. — Agora só precisamos saber onde ele está. Ainda perseguindo o SUV, eles subiram uma altitude que Tom deduziu ser de uns 30 metros e circundaram a área. — Tem algo à frente — disse Luca. — Pedágio, talvez… — Droga — disse Tom. — É a entrada para Yellowstone. O cara está a alguns minutos da costa de Wyoming. Jordan perguntou preocupado: — Quanto tempo até ele chegar ao local? — Quinze minutos até o perímetro — respondeu Tom. — Chegará ao centro em uma hora. Depois disso, será tarde demais para detê-lo.
TRINTA E OITO 3:06 P.M. TODOS OS MAPAS DO Wyoming e do Parque Nacional de Yellowstone que Marco conseguira achar na biblioteca educacional do Centro 4400 estavam abertos sobre a mesa da lanchonete entre Tom e Diana. Era uma verdadeira montanha de papeis. A equipe da NTAC havia se reunido na loja principal do Centro para formular um plano, o mais rápido possível, para interceptar o agente dos Marcados que transportava a bomba. Apesar do fato de que o edifício possuía seu próprio gerador, a crise atual exigia que fossem desligados os sistemas não-essenciais, o que, para decepção geral, incluía o ar condicionado. — A estimativa de tempo de Tom estava correta — disse Marco, enxugando o suor de sua testa. Com seu dedo indicador, ele seguiu a linha da rodovia que adentrava o parque pelo oeste. — Neste momento, nosso cara está na Rodovia da Entrada Oeste. Ele vai virar para o sul na Estrada da Grande Volta em cerca de vinte e cinco minutos. Dali, ele estará a apenas meia hora da margem oeste do Lago Yellowstone. Jed voltou da cozinha com um arsenal de sanduíches embrulhados em celofane e papelão fino. — Tudo o que pude encontrar foi salada de ovo com maionese de baixa caloria — disse ele, colocando os sanduíches em cima dos mapas. — Heather deu todo o resto para o pessoal ferido lá no auditório. — Eu não ligaria se fosse couro de sapato — disse Marco, estendendo a mão para um dos pacotes. — Eu comeria qualquer coisa agora. — Idem — acrescentou Tom, pegando um sanduíche para si. — E quanto às garrafas de água? Desculpando-se com um encolher de ombros e um abanar de cabeça, Jed respondeu: — Elas foram para o mesmo lugar que os sanduíches bons. Junto com os sucos e refrigerantes. Diana abriu um sanduíche para si e deu uma grande mordida. Entre o mastigar de pão e ovo, ela resmungou: — Credo, isso é horrível. — Mas continuou a comer, assim como os outros. Tinha sido um dia longo, e nenhum deles tinha comido desde o momento de vir para o trabalho, sete horas mais cedo. Nem mesmo o fedor de corpos exaustos, embrulhados em vestes táticas à prova de bala, era suficiente para fazê-los perder o apetite. Mastigando seu sanduíche, Jed perguntou: — Podemos alertar a administração do Parque? Pedir para interceptar o utilitário?
— Este não é exatamente o treinamento que eles recebem — respondeu Tom. — Um erro e eles podem ser mortos, ou pior, detonar a bomba. Além do mais, como vamos contatálos? Continuamos sem telefone, e-mail ou contato por rádio com o mundo fora de Seattle. Jed encolheu os ombros. — Talvez alguém do pessoal de Jordan possa mandar uma mensagem telepática. Marco olhou interrogativamente para o agente. — Sim, isto iria realmente conferir credibilidade à mensagem: um comunicado mental do pessoal que o governo está tentando exterminar, dizendo que eles devem fazer de tudo para parar uma bomba em Yellowstone. Fuzilando Marco com o olhar, Jed respondeu: — Era só uma ideia. Olhando de um mapa para outro, Diana perguntou: — Qual é a distância daqui para Yellowstone? — Em linha reta? — disse Marco. — Por alto, uns 1.300 quilômetros. Por quê? — Há um jato executivo Cessna Citation no hangar de Boeing Field — disse ela. — Talvez se nós… — Levaríamos vinte minutos só para chegar até lá — respondeu Tom. — Além do mais, pode não estar abastecido. Marco acrescentou: — E pra completar, a velocidade máxima do Citation é de aproximadamente 950 quilômetros por hora. Mesmo se decolássemos neste segundo, jamais conseguiríamos chegar a tempo. — Vocês estão se esquecendo de outra coisa — disse Jed. — Quanto vocês acham que avançaríamos, partindo de Boeing Field, até que a aeronáutica nos derrubasse? — Ótimo — disse Diana, largando os braços, em rendição. — Podemos riscar a opção de voar. — Ela massageou a própria testa. — Deus, isto é perturbador. Deter bombas em caminhonetes é a razão pela qual o Departamento de Segurança Doméstica1 foi criado! Mas agora, mesmo sabendo onde a picape está e para onde está se dirigindo, não há nada que possamos fazer a respeito! Todos olharam para os mapas, cada um estampando o mesmo semblante de
consternação. Tom disparou um olhar em direção a Marco. — Se você pudesse nos teletransportar… — Sem chance — respondeu Marco. — Levar a mim mesmo para fora do laboratório e voltar é uma coisa. Levar alguém comigo é exaustivo. Não posso fazer isto novamente, não em tão pouco tempo e nem por uma distância tão grande. Franzindo a testa, ele continuou: — Se pudéssemos conseguir com Jordan um telecinético, ou um eletrocinético, e colocá-los em contato com aquele grupo telepático dele, poderíamos desfragmentar Jakes e aquela caminhonete, e acabar com isto agora mesmo. — Esqueça — disse Tom. — Precisamos usar uma ameaça apocalíptica só para convencer Jordan de que era importante demais nos deixar usar sua equipe para achar a maldita caminhonete. Enquanto ele estiver em guerra com o exército, não vai se arriscar mais. — Em outras palavras — disse Jed, enquanto amassava seu pacote de sanduíche vazio —, Jordan não consegue ver a situação como um todo. — Ele arremessou o papel para uma cesta de lixo distante. — Ele está tão ocupado defendendo seu próprio quintal, que não consegue ver que o céu está desabando. A voz de Jordan fez com que as cabeças se voltassem em direção à porta. — Eu estou completamente ciente do que está acontecendo — disse ele, entrando no recinto. — Mas, ao contrário da crença popular, habilidades agressivas não são comuns entre os promicina-positivos. Para cada pessoa que desenvolve um talento específico para combate, há dezenove que não o fazem — Parou na ponta da mesa e se manteve em pé, com as mãos cruzadas nas costas. — Meu pessoal é maioria por pouco nas ruas, e a maior parte daqueles que estão defendendo este Centro tem que fazê-lo com armas nas mãos. Tenho um telecinético lutando para manter um campo de força de proteção em torno do prédio, e um guarda-costas perito em ataques psíquicos me protegendo. Então não é que eu não queira recrutar todos para ajudá-los. Na verdade eu não tenho no momento ninguém disponível para isto. — Sim, nós entendemos — respondeu Tom. — E nós mesmos iremos cuidar da caminhonete, se conseguirmos chegar até ela. — Nisto — disse Jordan, com um sorriso — eu posso ajudar. ***************** Vários minutos depois Jordan retornou, parou na asfixiante entrada da loja e olhou para o corredor atrás de si.
— Kendall? Pode entrar aqui, por favor? Diana observou Jordan conduzir uma bela adolescente para o refeitório. Ele a direcionou para a mesa dos agentes da NTAC e a seguiu. Quando ela se aproximou, Diana viu que a garota era mestiça de asiáticos com europeus. Seu cabelo preto esfarrapado, na altura dos ombros, era permeado por mechas rosa choque e turquesa. Ela estava vestida em calças jeans rasgadas, que haviam desbotado até ficarem quase brancas, camiseta do Colbert Nation2, jaqueta de couro que parecia ter sobrevivido a uma queda de moto em alta velocidade num chão de cascalho, e coturnos bem desgastados. — Pessoal — disse Jordan —, esta é Kendall Graves. Pedi que os ajudasse, e ela concordou. Acenando com a cabeça para a garota, ele acrescentou: — Diga oi. Com um olhar vidrado de tédio que parecia peculiar em adolescentes, ela levantou o queixo em direção aos agentes. — E aí? Diana não tinha motivos para não gostar da garota, mas tudo o que dizia respeito a Kendall, desde sua desprezível arrogância até a forma como ela irradiava uma sexualidade selvagem, simplesmente em virtude de sua juventude, faziam-na temer que aquilo fosse o que o futuro reservava para Maia. Retirando com um dos dedos o cabelo molhado de suor de cima de seus olhos, Marco perguntou à garota: — Você é uma teletransportadora? — Eu abro portais — declarou Kendall, com orgulho evidente. Com uma sacudidela casual da cabeça, ela jogou seu cabelo multicolorido para trás dos ombros. — Mostre-me aonde você quer ir, e eu te darei uma porta que o deixará lá. Tom acenou com a cabeça, em aprovação. — Parece perfeito. — Acaba com seus problemas com as linhas aéreas — disse Kendall com um sorriso. Ela apoiou uma das mãos, acentuando a curva de seu quadril e transferiu o peso para enfatizar as linhas de suas longas pernas. — Então… Pra onde vocês vão? — Parque Nacional de Yellowstone — respondeu Diana.
Uma expressão confusa elevou as sobrancelhas arqueadas da garota, uma das quais, notou Diana, tinha um piercing. — Onde fica isto, exatamente? — Wyoming — disse Diana. — Já ouviu falar? — Segurando um mapa dos Estados Unidos, ela apontou para o parque. — Aqui. Kendall concordou com a cabeça, aparentemente ignorando a sutil e disfarçada hostilidade irracional de Diana. — Beleza. Sem esforço. Já fiz portais desta distância antes. Posso levá-los até lá. Tom perguntou: — Você pode mover mais de uma pessoa de uma vez só? — Eu só abro uma porta — disse Kendall. — O que passar, passou. Um, cinco, dez, não faz diferença para mim. — Quanto mais, melhor — observou Jed. Ele perguntou a Jordan: — Podemos pegar nossas armas e munições de volta? Eu preferia não ter que jogar pedras nesse filho da mãe quando o alcançarmos. — Eu pedirei para trazerem de volta suas armas — declarou Jordan. Marco intrometeu-se: — Se alguém puder trazer também algumas garrafas de água… — Considere o pedido atendido — disse Jordan. Diana abriu um mapa do Wyoming sobre a mesa. O papel estalou sob suas mãos quando ela falou: — Tudo o que temos de fazer agora é decidir onde devemos armar uma emboscada para Jakes. Todos se acercaram do mapa. — A esta altura — disse Jed, apontando — ele provavelmente ainda está na Rodovia da Entrada Oeste. — Sim — concordou Marco — mas não temos como saber exatamente onde na estrada. Se surgirmos atrás dele, estamos fritos. Apontando para o mapa, Tom observou:
— Vejo outro problema: não há muitas estradas secundárias naquele trecho. Não há um bom local para armar uma cilada. Cruzando os braços, Marco disse: — O único lugar viável é o cruzamento entre a Entrada Oeste e a Estrada da Grande Volta. Sabemos que ele tem que pegar esse caminho para chegar ao seu alvo. — Esse lugar não é perto demais? — perguntou Diana. — Se esperarmos até que chegue ao cruzamento, ele já estará dentro do perímetro da cratera. E se ele detonar a ogiva antes que possamos desarmá-la? — Então seis bilhões de pessoas terão um dia realmente ruim — profetizou Tom. — Jed e eu podemos nos posicionar como atiradores de elite. Diana, precisaremos de você como sentinela avançada, para nos alertar com antecedência sobre o momento em que ele estará ao alcance da nossa mira. Assim que ele alcançar o cruzamento, daremos os tiros: nós o mataremos primeiro, para depois parar a caminhonete. Jed concordou com a cabeça. — Entendido. — Pessoal — disse Diana, com a testa franzida de preocupação —, detesto ter que perguntar isto, mas e se vocês errarem? Como vamos perseguir a caminhonete? Tom olhou esperançoso para Kendall. — Acho que não conseguiremos levar um carro conosco. — Desculpe — respondeu Kendall. — Só consigo abrir um portal tão largo quanto meus braços abertos. Fazendo uma pose que lembrou a Diana o famoso desenho “Homem Vitruviano”, de Leonardo da Vinci, Kendall acrescentou: — Nada mais largo do que isto pode passar. Marco brincou: — Alguém tem um Mini Cooper? — O caramba — rebateu Jed. — Não vou fazer uma perseguição de alta velocidade numa porcaria de um Mini Cooper. — Relaxa — disse Marco. — Eu só estava brincando.
Caretas de pavor davam um tom sombrio aos rostos dos agentes. Jed deu alguns passos e limpou o suor de sua face. Então ele parou, virou-se para o grupo e disse: — Podemos confiscar um carro nas redondezas. — Ninguém garante que acharemos um exatamente quando precisamos dele — rebateu Tom. — Além do mais, a partir do momento em que começarmos a perseguição, os guardas do parque estarão todos atrás de nós. E, caso algum de vocês tenha se esquecido, nós todos somos tecnicamente fugitivos federais agora. Diana olhou para a jaqueta de couro surrada de Kendall e teve um lampejo de inspiração. — Motocicletas! — exclamou ela. — Tom, eu sei que você ainda sabe pilotar, e eu posso lidar bem com uma. E quanto a você, Jed? — Droga, claro — respondeu Jed. — Eu pilotava uma Harley. — Estreitas o suficiente para passar pelo portal — Diana concluiu — e mais do que rápidas para alcançar uma picape. Tom sorriu em aprovação. — Bem lembrado — ele olhou para Jordan. — Seu pessoal pode nos conseguir algumas motos? — Claro — respondeu Jordan. — Temos algumas na garagem. — Assim, nos resta apenas um pequeno problema — disse Jed. — Consideremos que tudo dê certo: nós pegamos Jakes e paramos a caminhonete. Como vamos desarmar a superbomba dele? Todos direcionaram olhares de súplica para Marco. — Ah, claro — o irritado e jovem analista disse, forçando uma cara feia. — Sem pressão. Notas: 1 Department of Homeland Security. 2 Colbert Nation – Expressão criada pelo apresentador Stephen Colbert, apresentador do programa de televisão americano The Colbert Report, de sátira política.
TRINTA E NOVE 3:17 P.M. TOM FICAVA DIZENDO A SI MESMO a mesma mentira, como se a mera repetição fosse torná-la real: isso é só mais uma missão, igual a qualquer outra. Ele ignorou o ácido queimando em seu estômago. A bile amarga correndo seu caminho de volta para a garganta. Os tremores de adrenalina que faziam suas mãos tremerem. Não é nada, assegurou a si mesmo, mesmo sabendo que estava mentindo. Não importava quantas vezes o FBI ou a NTAC haviam treinado-o para caçar armas de destruição em massa, a coisa real não era nada como nos exercícios do treinamento. O pessoal que o treinara conseguira simular tudo, exceto a sensação doentia do medo de verdade. Nenhuma simulação fizera-o ouvir sua própria pulsação na têmpora, ou sentir o coração batendo contra seu esterno, ou a necessidade de secar o suor em suas palmas a cada dez segundos. Posso nunca mais ver o Kyle, percebeu. Ainda havia muitas coisas que ele queria dizer ao filho, mas não tempo suficiente para dizê-las. Devia pedir para conversar com ele antes de partir, decidiu. Só para o caso de… Ele não queria completar aquele pensamento. Assim que o pessoal de Jordan e de Shawn montasse três motocicletas, Tom, Jed e Diana os conduziriam pelos portais dimensionais de Kendall, a caminho de um encontro a quilômetros de distância com um fanático que estava pronto para acabar com o mundo em uma tempestade de fogo e gelo. — Tudo um dia de trabalho — ele e Diana haviam brincado, ambos escondendo o medo por debaixo de seus sorrisos forçados. Tom tinha um pequeno escritório para si enquanto se preparava para a operação. Ele apertou as tiras de seu colete, checou a Glock duas vezes para certificar-se de que ela estava completamente carregada, e confirmou visualmente que estava com munição extra nos bolsos para seu rifle de assalto M4A. Assim que alguém lhe conseguisse um capacete decente, ele teria que fazer um ataque suicida a um agente Marcado com uma bomba de antimatéria. Nada como a última carta, pensou ele, engolindo as últimas gotas de água de uma garrafa de um litro. Uma batida na porta do escritório despertou Tom de seu devaneio de humor. Ele colocou o rifle de lado e foi até a porta. Seus instintos lhe diziam que era Kyle do outro lado, esperando para vê-lo caso aquela fosse a última chance que tivessem de se despedirem. Tom abriu a porta para descobrir que, como sempre, seus instintos estavam completamente errados.
Mais Skouris olhava fixamente para ele com um olhar perturbador. — Preciso falar com você — ela disse. Adentrou o escritório sem esperar pela resposta dele. — Feche a porta. Virando-se para encarar a adolescente de cabelos loiros, Tom disse: — Maia, você não deveria estar vendo sua mãe agora ao invés de mim? — Não há tempo — respondeu a menina. Ela colocou a mão em um bolso de suas jeans poeirentas e retirou uma seringa e agulha com um líquido verde amarelado dali. — Você precisa tomar isso. — Afirmou, colocando a seringa hipodérmica sobre a mesa. — Agora. — Pode parar — disse Tom, distanciando-se da seringa como se nela estivesse contido algo radiativo. Apontou um dedo acusador para o objeto. — Isso é o que eu acho que é? Ela caminhou para trás da mesa, como se tomando o poder na sala. — É uma versão concentrada da dose de promicina — disse. — Eu venho tomando U-pills a cada… — As U-pills não a bloqueiam — interrompeu Maia. — Vai funcionar mais rápido do que promicina regular, mas de nada adiantará se você não injetar antes de sair na missão para deter a bomba. Tom recuou, surpreso. — Como você sabe sobre…? — Ele deixou com que a pergunta sumisse. Não importava como ela sabia sobre a missão. Cruzando os braços, continuou: — Não vou tomar essa dose de maneira alguma, Maia. — Você tem que tomar — disse ela, sua voz tornando-se mais energética. Ele deu passo a frente e inclinou-se sobre a mesa, assomando-se sobre a garota. — Por quê? Por causa daquele livro de profecia “Luz Branca” que o Kyle diz ter encontrado? Não me importo se isso é verdade ou não. Mesmo que ele garanta minha sobrevivência à dose, não tem como saber que poder estranho eu ganharia. E se isso me tornar um pesadelo vivo, como fez com meu sobrinho Danny? Ou com aquela tal de Typhoid Mary? Quem garante que eu seria melhor que eles? — Eu — respondeu Maia. — Isso não acontecerá com você. Prometo. Levantando-se da mesa, Tom balançou a cabeça.
— Não — disse. — Não é bom o suficiente. Eu fiz uma promessa a mim mesmo, Maia. Recusei a promicina quando o Kyle a ofereceu para mim, e depois que o vírus 50/50 matou minha irmã eu jurei que nunca tomaria a dose. Então não posso simplesmente confiar na sua palavra para isso. — Mas você precisa — insistiu Maia. — Do que você está falando? — perguntou Tom, tentando descobrir o que a menina não estava dizendo. — Que você sabe que eu vou tomar. — Não — respondeu Maia. — O que sei é que você tem uma escolha. — Eu já a fiz — disse ele. A raiva provocou um tom estridente na voz da adolescente: — Escolheu errado! Tem que confiar em mim. — Confiar em você? — Ele estava quase rindo. — Você já mentiu antes, quando foi melhor para você. Inventou profecias. — Eu sei — disse ela, parecendo arrependida. — Mas agora é diferente. — Por quê? — Porque é você quem decide se a raça humana vive ou morre. — Seus olhares cruzaram-se. — A não ser que tome a dose agora, antes de sair desta sala, cada pessoa desse planeta morrerá… a começar pela Diana. Ouvir o nome de sua parceira alarmou Tom. Ele imaginou se Maia a chamara pelo nome porque ainda restava algum ressentimento de sua discussão alguns dias antes, ou se estava fazendo-o somente para manipulá-lo. Ele circulou a mesa e pôs-se à frente da garota. — O que quer dizer com “a começar pela Diana”? Maia continuou firme, sem recuar um passo sequer enquanto Tom se aproximava dela. — Me deixe lhe contar algo que aprendi sobre o futuro — disse ela. — É como um rio – sempre mudando, sempre tomando o curso da menor resistência. Às vezes, as coisas que fazemos criam ondulações na água; às vezes criam um borrifo. Somente algumas coisas são grandes o suficiente para mudar o curso do rio. Apontando para a seringa na mesa com a cabeça, ele perguntou:
— O que isso tem a ver com Diana? Ou com a morte da humanidade? — Você e Diana sairão em alguns minutos para impedir a bomba — respondeu Maia. — Se você não tomar a dose, vocês irão falhar e Diana será a primeira a morrer. — E se eu tomar a dose? O que acontece depois? — Isso não está claro — disse Maia. — No momento, o futuro em que você não toma a dose é o que predomina. Isso faz com o que os outros sejam difíceis de ver. — Então você está dizendo que eu não tomo a dose. — Não! — rugiu Maia e passou os dedos pelo seu cabelo sujo, frustrada. — Escuta o que tô dizendo. Alguns acontecimentos do futuro não podem ser mudados, mas outros podem. Não estou dizendo que não tem escolha – você tem. Tudo o que estou te contando são as conseqüências que sua escolha trará. Maia pegou a seringa e a segurou entre eles. — Você pode tomar essa dose e impedir que um maluco destrua o mundo… — Ela a abaixou, sem liberá-lo de seu olhar impiedoso. — Ou pode recusá-la… e ver Diana morrer.
QUARENTA 3:28 P.M. O CORAÇÃO DE DIANA ESTAVA DISPARADO como o motor da motocicleta BMW branco alpino de alta performance que descansava entre suas pernas. Ela estava no final da formação, atrás de Tom e Jed, que estavam montados, respectivamente, em uma Suzuki esportiva azul e em uma Yamaha preta superesportiva. Os motores grunhiam, alto e profundamente, com cada giro dos aceleradores ressoando dentro do ambiente de concreto da garagem subterrânea do Centro 4400. De pé, a vários metros em frente a Tom, estava Kendall Graves. A adolescente esguia, de trajes punk e cachos coloridos, parecia mais concentrada e séria, agora que o momento da ação havia chegado. Ela fez um sinal com dois dedos para Tom. Ele acenou a cabeça em resposta, depois voltou-se para encarar Jed e Diana. — Chegou a hora — disse. — Tudo pronto? Jed fez um sinal de positivo com o polegar e colocou o capacete; ao ajeitá-lo no lugar, este bateu no cano do rifle automático pendurado em suas costas. Diana movimentou o queixo para confirmar que estava pronta, e também colocou seu capacete. Imediatamente, seu equipamento de proteção para a cabeça abafou o rugido dos motores das motos, reduzindo-o a um zumbido moderado. O visor polarizado eliminou a claridade forte e esverdeada das lâmpadas fluorescentes da garagem, e também cortou a fumaça dos canos de descarga, que provocava dores de cabeça, bem como o odor penetrante de mofo do cimento úmido. Kendall se posicionou com as pernas afastadas e os braços bem abertos acima da cabeça, transformando-se num X humano. Um pequeno ponto de luz dourada formou-se em frente ao seu umbigo e se expandiu, como a íris de uma câmera que se abre em espiral. Em poucos segundos estava grande o suficiente para que Diana pudesse enxergar através dela, como se fosse simplesmente uma janela aberta. Do outro lado havia uma estrada descampada e curva, de duas pistas, margeada por finos pinheiros e paisagem monótona. O céu sobre a estrada tinha o tom cinza escuro de chumbo embaciado. Um veículo de passeio azul veio em direção a eles, do outro lado da linha amarela dupla, e sumiu de vista. Quando o portal estava largo o suficiente para o trio e suas motos passarem, Tom levantou um braço, fez um movimento circular que significava “movam-se”, e apontou para frente. Ele se inclinou para frente, a fim de ficar atrás do pára-brisa da moto, engatou a marcha da Yamaha e acelerou. O motor da Suzuki rosnou poderosamente quando Jed começou a se movimentar, na cola de Tom. Diana apertou a embreagem da moto, empurrou a alavanca com o pé para dar a
partida e virou o acelerador. Sua BMW saltou para frente, a vibração constante do motor pulsando cada vez com mais energia. Para ela, parecia que estavam dirigindo em direção a uma tela de cinema, mas então eles passaram através desta, e num piscar de olhos o ar mudou. Estava pesado, com cheiro de chuva e perfume de pinho, e era muitos graus mais quente. Em seu retrovisor, Diana viu o portal se fechar. Estamos por nossa conta agora, lembrou a si própria. O plano era que um dos clarividentes de Jordan, provavelmente Hal ou talvez Lewis Mesirow, monitorasse o progresso dos três agentes da NTAC na tarefa de parar a picape. Assim que o trio tivesse o controle da bomba, Kendall abriria outro portal e mandaria Marco através deste. Assim esperamos, refletiu Diana. Correndo em fila, bem próximos um do outro, o trio fez uma curva que emendava numa longa reta. Bem mais à frente estava o cruzamento que levava à Estrada da Grande Volta. Tom levantou o punho, que era o sinal para parar, e acenou para Jed e Diana por sobre seu ombro direito. Eles foram para o acostamento e pararam, um paralelo ao outro. Tom levantou o visor do capacete, e Jed e Diana fizeram o mesmo. — Lá está o ponto de interceptação — disse ele, olhando de relance para um cruzamento em “T”, uns cem metros adiante. — Vamos checar nossos rádios rapidamente. Os três agentes retiraram seus walkie-talkies compactos das roupas táticas e os testaram para se certificar de que funcionavam, agora que estavam livres do bloqueio militar de sinais, que havia cortado toda a comunicação por rádio dentro de Seattle. — Testando, testando — disse Tom, e sua voz saiu claramente nos rádios de Jed e Diana. — OK — disse ele, guardando seu walkie-talkie. — Diana, posicione-se aqui, por detrás daquelas árvores, e procure por uma picape branca. Quando ela passar, nos avise. Jed, você ficará à esquerda do cruzamento, e eu à direita. Vamos preparar linhas de fogo superpostas. Acerte no motorista da picape, se possível. Se não, mire nos pneus. — Entendido — respondeu Jed, fechando o visor de seu capacete. Olhando para Diana, Tom perguntou: — Dúvidas? — Não — disse ela, mantendo uma expressão de coragem. — Vamos fazer logo isto. — Certo — respondeu Tom. — Boa sorte, e boa caçada. O último a chegar a Seattle paga a primeira rodada.
Ele abaixou seu visor, inclinou-se para frente e disparou em sua moto, com Jed dois segundos atrás dele. Diana saiu da estrada principal, seguindo por uma trilha barrenta que levava para dentro da floresta de pinheiros. Quando ela estava longe o suficiente para não ser vista por quem passasse pela estrada principal, virou-se e se posicionou a fim de estar pronta para uma perseguição. Ela se perguntava o que viria primeiro: a picape branca ou a tempestade que ameaçava rasgar o céu. Ela checou o relógio. Se as observações e os cálculos estivessem certos, Jakes chegaria dentro de meia hora. Eram apenas 15:31, pelo horário do Pacífico, mas ela já sentia como se aquele fosse o dia mais longo de sua vida. Havia acordado na expectativa de que seria apenas mais uma quinta-feira no escritório. Ao invés disso, tinha sido forçada a lutar por sua vida em uma zona de guerra. Agora estava a centenas de quilômetros de Seattle, sentada em uma motocicleta no meio do Parque Nacional de Yellowstone, armando uma emboscada para um fanático com um fetiche de apocalipse. Ela queria engolir e sufocar a ansiedade que brotava dentro de si, mas sua boca estava seca. Não há nada que deva me fazer ficar ansiosa, ela disse a si mesma, esperando acalmar seus medos com sarcasmo. Afinal de contas, somos apenas nós três entre a raça humana e a extinção total. O que poderia dar errado? 3:57 P.M. Jakes olhou para a linha amarela que passava por ele enquanto rodava pela solitária pista de duas faixas da Rodovia da Entrada Oeste. Ele estava a menos de um quilômetro e meio da entrada para a Estrada da Grande Volta, o que significava que sua jornada estaria finalizada em menos de quarenta minutos. Confrontado com o fim iminente de sua missão e de sua existência, ele se flagrou em uma reflexão filosófica. Ele não se importava de saber que a morte estava tão perto. Desde o momento em que aceitara a missão, sabia que jamais retornaria ao futuro que havia deixado para trás. Falhando ou tendo sucesso, ele havia condenado a si próprio a morrer no passado. Aquilo tornou outras escolhas muito mais fáceis. Olhou de relance para o céu e imaginou se a tempestade que prometia desabar iria fazê-lo antes ou depois que ele alcançasse seu destino. Haveria uma certa poesia visual em permanecer de pé, na chuva, enquanto minha caminhonete afundasse no lago, pensou, com uma expressão levemente divertida. Como se fosse um filme. Ainda havia muita coisa que ele não entendia sobre sua missão, ou sobre como seus
superiores tinham oportunamente modificado sua definição de sucesso. A maior parte das perguntas que ele fizera antes de ser mandado para o passado havia sido ignorada ou tido respostas evasivas. Uma questão que ainda o incomodava, mesmo que ele estivesse perto de torná-la irrelevante, era a casualidade paradoxal de sua missão. Seus superiores haviam insistido em que a razão de sua missão era impedir que um bando de cientistas renegados alterasse o passado, criando o movimento da promicina e, assim, desestabilizasse o último baluarte de seu tempo da civilização humana. Mas como o movimento da promicina poderia ser bem sucedido, se eu e meus companheiros ainda éramos capazes de combatê-la?, refletiu ele. Alterar o passado não iria imediatamente destruir o mundo como o conhecemos? Ele ponderou a possibilidade de que seus líderes o estariam enganando. Será que o verdadeiro propósito de minha missão foi ocultado de mim? Quanto mais ele pensava sobre a viagem no tempo, menos sentido fazia para ele. Observando o borrão de floresta que passava em cada lado de sua picape, ele tentou parar de pensar em todas aquelas questões, mas elas continuavam a assombrar seus pensamentos e criar novas perguntas. Se eu obtiver sucesso, e acabar com o movimento de Jordan Collier, estarei criando o futuro que deixei para trás? Ou aquele futuro desapareceu a partir do momento em que os 4400 apareceram na praia de Highland Beach? Ele se recordou da hipótese que sugeria que a consequência de ramificações no tempo seria a criação de novos universos quânticos. Se for o caso, ele concluiu, então o futuro que eu conheci jamais esteve em perigo. Poderia simplesmente seguir seu curso, com seu passado inalterado, onde os esforços dos renegados para reescrever a história consistissem em nada mais do que criar linhas do tempo bifurcadas, com resultados diferentes. Mas e daí? Que diferença faria se universos paralelos seguissem caminhos distintos? Por que eles pediriam para serem compactados em nanodispositivos e voltar no tempo se não havia ameaça real ao nosso poder? Havia várias suposições, naturalmente. Uma delas era a hipótese da “probabilidade dominante”, que sustentava que se a possibilidade de um determinado resultado se tornasse decisiva, então as realidades quânticas que esta favorecesse iriam eventualmente eliminar a existência de universos menos prováveis. Se aquela conjectura provasse estar correta, então talvez explicasse por que seus superiores achavam necessário despender recursos, energia e pessoal em esforços múltiplos para defender sua versão preferida da história. Uma placa à beira da estrada o informou de que estava se aproximando da entrada para a Estrada da Grande Volta. Começava a chover. Não há sentido em cismar com isto agora, decidiu Jakes. Não irei solucionar séculos de lógica temporal contraditória no caminho daqui para o lago. Ordens eram ordens, lembrou a si próprio. Sua missão era impedir, pelos meios que se fizessem necessários, a disseminação do movimento de Jordan Collier. O plano que ele,
Wells e Kuroda tinham posto em prática parecia atingir perfeitamente aquele objetivo; o fato de que também faria o mundo se assemelhar muito com o globo árido do qual eles haviam vindo era simplesmente um bônus. Jakes guiou a picape através da suave curva à direita, entrando na Estrada da Grande Volta. Ele imaginava a expressão de choque de Collier quando o fim do mundo o pegasse de surpresa. Aquilo o fez sorrir. O pára-brisa da picape se estilhaçou, cacos de vidro espetaram o rosto de Jakes, e uma bala de grosso calibre rasgou parte de seu ombro esquerdo, salpicando o banco traseiro de sangue. Seus gritos de dor confundiam-se com o cantar dos pneus do veículo, conforme derrapava de um lado para o outro pela estrada. Ele lutou para recuperar o controle da picape. Balas pipocavam nas janelas e portas. O sangue banhava seu braço esquerdo paralisado, ensopando sua camisa. Nauseado e tonto, ele pisou no acelerador e fez um esforço para espiar através do pára-brisa estilhaçado. Acima do sopro do vento, do ronco do motor danificado da picape e de sua própria respiração ofegante, ele escutou mais tiros. Em seguida veio o crescente zumbido de motocicletas, aproximando-se rapidamente por detrás dele. Buracos apareceram em seu teto. As janelas explodiram em cacos. Projéteis perfuraram o banco do carona. Um tiro aleatório rasgou a lateral de seu corpo. Parecia que uma vareta de fogo havia sido enfiada em suas entranhas, doendo e queimando por dentro. Então um grande estrondo sacudiu seu veículo, e as rodas começaram a não obedecer ao seu comando, resistindo aos seus esforços para ultrapassar os carros mais lentos, à frente na estrada. Pneu furado, concluiu Jakes. Que seja. Ele começou a derrapar, de um lado para o outro, e embora sentisse que estava morrendo aos poucos, começou a rir. A guerra acabara, e quem quer que o houvesse encontrado chegara tarde para impedir. Ele estava dentro do perímetro do alvo da ogiva; embora a margem do lago tivesse sido identificada como o local ideal para a detonação, aquele pedaço desolado de estrada mais do que bastaria. Jakes sabia que o dispositivo automático que o ligava à ogiva completaria a missão,
mesmo que ele próprio não pudesse fazê-lo. Não se importava de não viver para ver o fim. Uma morte era simplesmente tão boa quanto outra. Ele jogou uma perua para fora da estrada e manteve o acelerador colado no chão, enquanto mais balas atingiam sua picape. Aquele deveria ser o último quilômetro de sua jornada, e ele estava determinado a aproveitar a viagem enquanto durasse. Diana manteve o acelerador de sua moto no máximo, enquanto voava pela estrada tortuosa abaixo, lentamente diminuindo a distância entre ela, Tom e Jed. Eles estavam mais de cinquenta metros à frente dela, na cola da picape branca que já haviam enchido de balas de seus rifles automáticos. Agora tinham que contar com suas Glocks, mas mesmo uma pistola semiautomática era difícil de apontar e disparar enquanto se dirigia uma moto esportiva em alta velocidade, numa perseguição de alto risco. O vento chicoteava Diana, e soava como trovão ao resvalar seu capacete. A chuva a pinicava e tornava a pista escorregadia. Mais à frente, a picape derrapava de um lado para o outro, impedindo Tom e Jed de emparelhar com ela. Embora um dos pneus tivesse sido estourado por um tiro de rifle e Jakes estivesse ferido, ele ainda tinha controle parcial do veículo. Colado na traseira dele, Jed disparou mais alguns tiros, que ricochetearam na porta e no pára-choque traseiros da Pathfinder. O destro Jed estava atrapalhado tentando mirar a arma com sua mão esquerda, uma necessidade imposta pelo fato de que o acelerador da moto fica do lado direito do guidão. Tom, que, apesar de ser canhoto, geralmente segurava sua arma com a mão direita, estava mais à vontade atirando com a esquerda. Com dois tiros ele despedaçou o vidro traseiro da caminhonete. A picape e as duas motocicletas fizeram uma ampla curva na estrada. Jakes acelerou, mas Jed e Tom frearam. Um enorme ônibus de turismo, quase tão largo quanto a pista, vinha na direção contrária. Ele desviou para o acostamento, a fim de evitar a veloz e desvairada picape, que evitou por pouco uma colisão frontal. O ônibus começou a se inclinar para o lado quando entrou no declive que margeava a estrada, e então bateu num grupo de pinheiros. Duas pessoas, o motorista e uma passageira, voaram pelo pára-brisa e caíram como bonecos de pano no chão poeirento. Pouco adiante a estrada estava congestionada. Era uma mistura de picapes, carros de passeio, peruas e caminhonetes. A maior parte deles carregava equipamento de acampamento, e alguns levavam canoas ou pequenos botes em reboques.
Ah, droga, Diana pensou, imaginando o pior. O velocímetro de sua moto marcava 150 km/h. Ela sabia que a coisa estava para ficar feia. Jakes desviava da fila de carros de um lado para outro. Ele bateu numa perua cheia de equipamento de acampamento no bagageiro, jogando-a para fora da estrada, e obrigou uma caminhonete que vinha na direção contrária a colidir de frente com um pequeno veículo híbrido, que se partiu como um ovo. Em questão de segundos a estrada virou uma confusão mortal de vidro estilhaçado e metal partido, veículos tombados e corpos ensanguentados. Tudo o que Tom e Jed podiam fazer era andar em zigue-zague por entre os obstáculos, evitando causar mais danos ou ferir pessoas. Diana desviou para o acostamento da direita e acelerou ao largo da cena do acidente, lutando para continuar a perseguição. A Pathfinder branca e amassada continuou a ziguezaguear erraticamente pela estrada, a aproximadamente 145 km/h. Mais veículos encontravam-se adiante, desprevenidos sobre o perigo que se aproximava. Então a picape estabilizou seu curso. Jed posicionou-se à esquerda e acelerou a moto ao máximo. Seguindo a linha divisória entre as pistas, ele emparelhou com a porta de Jakes e lutou para manter a mira com a mão esquerda por sobre seu braço direito. Jakes jogou a picape para a esquerda e bateu em Jed, jogando-o para a outra pista, e em cima de um carro que vinha tentando desviar dele. A moto de Jed rodopiou e caiu de lado. Então o carro chocou-se com ela. O impacto jogou Jed da moto, que ficou esmagada debaixo dos pneus do carro. Mesmo tendo o carro mergulhado entre as árvores, tentando evitar atropelar Jed, o próximo veículo não conseguiu frear a tempo. Jed desapareceu sob suas rodas quando Tom e Diana passaram por ele. Tom acenou para Diana com sua Glock, indicando que iria fazer o próximo ataque pelo lado esquerdo de Jakes, e Diana entendeu que sua tarefa era fazer uma abordagem simultânea pelo lado direito da picape. Ela pegou a pistola, acenou com a cabeça em concordância, e seguiu pela direita quando acelerou. Alguma parte da mente de Diana, lá no fundo de seus anos de treinamento na NTAC, sabia que ela tinha que estar apavorada; mas quando a estrada se transformou em um borrão alucinado, e o vento esmurrou seu peito, tudo em que ela conseguia pensar era em cometer aquele assassinato.
O ronronar do motor da BMW ressoou por dentro de todo o seu corpo, mas a pistola estava firme em sua mão. Havia carros à frente, mais vítimas inocentes a caminho. Diana não tinha a intenção de deixar Jakes chegar até eles. Muitos já haviam morrido pela causa daquele maluco. Isto acaba aqui, jurou. Através das janelas quebradas da picape, ela viu Tom sinalizar com a cabeça. Eles se movimentaram. Juntos aceleraram, movendo-se em sincronia. Quando ela mirou pela janela do carona da picape, Tom fez o mesmo com sua Glock pelo lado do motorista. Eles atiraram em uníssono. Jakes debateu-se quando as balas atingiram sua cabeça e seu pescoço. Ele pisou fundo no freio e jogou para a esquerda. A motocicleta de Tom bateu contra a lateral da Pathfinder quando esta girou. A desaceleração súbita da picape a jogou em um rodopio caótico. Ela se partiu quando tombou no asfalto, espalhando vidro, plástico partido e pedaços de metal. Diana lutou para se afastar da catástrofe que acontecia atrás dela, apenas para constatar que a estrada à frente estava bloqueada pelo tráfego lento. Ela pisou no pedal de freio traseiro, mas àquela velocidade tudo o que conseguiu foi ser jogada e arrastada pela pista por sua moto. A Pathfinder despedaçada continuava vindo em sua direção. Ela não conseguia ver Tom ou a moto dele. À frente dela, acima do ruído de seu corpo sendo arrastado por sobre a poeira e o asfalto, ela ouvia o som tedioso das pancadas metálicas dos carros colidindo. Gritos, urros e lágrimas. Mas a última coisa que Diana viu foi o borrão de fumaça da picape branca e quebrada rolando em sua direção.
QUARENTA E UM 3:57 P.M. O PRIMEIRO AVISO DE JORDAN COLLIER de que o Centro 4400 fora invadido e estava sob ataque foi o som de um tiro de rifle no corredor do lado de fora da suíte executiva. — Para trás! — gritou Marco, uma das poucas pessoas no prédio com uma arma. Ele trancou a entrada principal e apontou para uma saída no fundo da sala de reuniões. — Procurem proteção! Andem! Gary e Kyle lideraram o recuo, conduzindo Maia a um corredor que dava acesso a diversos escritórios e banheiros. Enquanto mais pessoas os seguiam para o lado de fora, Marco esforçou-se para virar a mesa de conferência de lado. Jordan correu para o seu lado para ajudá-lo, e Lewis Merisow juntou-se a eles. Trabalhando juntos, eles derrubaram a pesada mesa de madeira de lado. Marco jogou-se atrás dela e puxou o rifle de assalto de suas costas. Para Jordan e Lewis, ele disse: — Corram! E fiquem abaixados! — Então ele preparou sua arma e mirou para trás por cima da barricada improvisada enquanto a porta era aberta de supetão. Lewis seguia Jordan de perto enquanto eles disparavam na direção da saída. Um tartamudear furioso tomou conta do local, e algo quente e molhado espirrou na nuca de Jordan. Ele virou em um canto e olhou para trás à procura de Lewis. O clarividente de meia-idade não estava lá. Arriscando uma olhadela pela esquina, Jordan viu Lewis com o rosto virado para o chão sobre uma poça de sangue. Ele passou a mão no líquido em sua nuca. Quando a olhou, viu-a manchada de sangue fresco. Balas abriram buracos na parede à sua frente. Ele abaixou-se e arrastou-se pela porta, saindo no corredor. Uma explosão veio da sala de reuniões. Fogo e destroços explodiram pela porta na direção do fim do corredor. Lamentando o sacrifício do agente da NTAC que ficara para trás, Jordan entrou correndo por uma saída de emergência – somente para dar de cara com Marco Pacella, que estava gasto, mas com certeza vivo. — Ponto para nós — disse ele arrumando seus óculos, que tinham uma das lentes rachada. — Vamos lá para cima. Eu te dou cobertura. — Jordan assentiu para o jovem que se
teletransportava, então seguiu para o próximo andar enquanto Marco ia logo atrás, o rifle apoiado sobre o ombro. Quando atingiram o andar seguinte, Marco perguntou: — Você por acaso não viu para que lado Dennis Ryland foi, viu? — Sinto muito, não vi — disse Jordan, abrindo a porta para o nível mais alto do Centro, onde ficava a maior suíte executiva. Ele deu um passo para o lado e deixou Marco examinar a área. Mandando Jordan continuar pela porta, Marco disse: — Não se preocupe isso. Tenho certeza que ele vai aparecer. — Com um sorriso desdenhoso, acrescentou: — Ele sempre aparece. Shawn apertava os olhos com o barulho da saraivada das armas automáticas. Ele mal podia ver as silhuetas que se moviam por entre a fumaceira que arranhava sua garganta e faziam seus olhos arderem até que começassem a lacrimejar. Pessoas gritavam de agonia, corriam para todos os lados e abaixavam-se sob os móveis para se esconderem. Sua jovem amiga Chongrak estremecia envolta em um raio de eletricidade. Tristine, uma das guarda-costas de Jordan, entrava em convulsão enquanto terríveis feridas cheias de sangue abriam em sua garganta, abdômen e costas, como se uma enorme lâmina invisível a esquartejasse. Confiando em sua memória, Shawn arrastou-se de quatro pelo labirinto de cubículos até que encontrou um corredor que estava preenchido por gás lacrimejante. Seus pulmões pareciam estar cheios de fogo. Ele tossia sentindo dor enquanto se apressava na direção da saída mais próxima. Enquanto corria por entre os escritórios e salas de reunião, lutava para enxergar através da fumaça tóxica. Ele sabia que precisava arrumar um abrigo e permanecer lá, mas precisava saber se… — Shawn! Heather levantou-se de trás de uma máquina de xérox em uma pequena ante-sala à sua direita. Ela correu até ele e preencheu seu rosto com beijos assustados e aliviados. — Graças a Deus! — disse ele. — Venha, temos que ir! Pegando-a pela mão, ele a conduziu por uma curva de um modo atrapalhado e inclinando-se, passando em disparada pelo lobby do elevador e entrando na sala de espera de sua suíte executiva. Um barulho como o de um martelo acertando cristal fez os dentes de Shawn baterem
e transformou uma parede de vidro em perigosos cacos que cobriram o chão da recepção. Ele puxou Heather para trás da mesa de sua secretária, procurando protegê-la. Impactos e balas que ricocheteavam arrancaram pedaços da mesa e das paredes. Em meio ao barulho dos disparos, Shawn ouviu o grito agudo aterrorizado de uma garota vindo do outro lado da sala. Ele e Heather olharam para a direção do som e viram Maia deitada atrás de um sofá de couro, com as costas viradas para a parede. — Maia! Fique abaixada! — gritou Heather. Outra saraivada de balas do canto da mesa em frente ao rosto de Heather, e ela se encolheu nos braços de Shawn. Ela lançou um olhar fulminante a ele. — Onde estão Gary e Kyle? Eles deviam estar protegendo ela! — Eu não sei — protestou Shawn, elevando o tom de voz acima do barulho das balar que retalhavam a mesa atrás deles. Com os olhos indo de Shawn a Maia, Heather gritou: — Temos que ajudá-la! Faça alguma coisa! — Não posso! — disse ele. — Estou tentando sentir a energia deles, mas tem algo me impedindo… um deles. Deve ser o líder, Frost. Ele caiu para trás e levou um momento para perceber que alguém havia levantando, com telecinese, a mesa que ele e Heather usavam como proteção. — Corra! — alertou Shawn, jogando-se pela porta de um escritório administrativo ao lado da mesa da recepcionista. Ele caiu em cima de um monte de vidro quebrado e esforçouse para impedir que suas mãos e rosto se machucassem. Pedaços grandes perfuraram e cortaram os antebraços e as costas de Shawn quando ele rolava pelos destroços dilacerantes. Foi só quando parou de se mexer que percebeu que Heather não estava ao seu lado. Ele olhou para trás enquanto ela corria desesperadamente cambaleante na direção da assustada Maia… Alguma coisa invisível cortou Heather. Um ferimento grande fatiou seu corpo, dividindoa do queixo ao umbigo. Ela caiu, sangrando e longe do alcance de Shawn. Maia soltou um grito de terror.
Shawn liberou um grito de fúria. Não havia nada que ele pudesse fazer senão assistir Heather morrer. Jed Garrity fechou os olhos quando fez impacto, arremessando ele e sua motocicleta pelo asfalto molhado de chuva da estrada Grand Loop. Esperou sentir o gosto do próprio sangue a qualquer minuto. Mas neste exato momento, ele abriu os olhos e viu não a estrada, a moto ou seu corpo quebrado… mas um corredor coberto de cacos de vidro e cápsulas usadas de bala, obscurecido devido ao nevoeiro que o gás lacrimejante que se dispersava causava. Demorou um segundo para ele reconhecer o interior do andar mais alto do Centro 4400. Então seus ouvidos registraram o som das armas disparando e o do pânico. Ele virou-se e viu quatro homens, todos olhando para o lado oposto, na direção da suíte executiva. Eram soldados metidos em uniformes cinza e preto e equipados com máscaras de gás, óculos de visão noturna, blindagem no corpo e um arsenal militar. Do lado mais longe do corredor, Jed ouviu Heather Tobey exclamar “Maia! Fique abaixada!”. Os soldados revezaram-se atirando na direção da voz da moça, e ele ouviu Maia gritando. Um dos solados levantou a mão e, com um simples gesto, jogou para o lado a grossa mesa de madeira que Shawn e Heather usavam para esconderem-se. Shawn agilmente pulou para proteger-se. Heather disparou a correr em meio ao fogo cruzado. Um soldado diferente fez um movimento como se cortasse algo com o braço, e uma ferida grande cortou Heather em um monte de sangue. O homem com poder de telecinese arremessou um sofá para o lado, deixando Maia exposta. Jed deu passo à frente, enroscou o braço ao redor da garganta do soldado que estava no fim do pelotão, agarrou seu queixo e torceu a cabeça do homem brutalmente. Nenhum dos outros soldados ouviu seu pescoço quebrando-se. Enquanto o corpo escorregava do aperto de Jed, ele sacou a arma do coldre homem e disparou tiros rápidos. Ele derrubou o matador psíquico primeiro, e então o telecinético. Passando pelo escritório, Jed esvaziou o pente atirando sem parar visando manter os soldados distantes.
A pistola soltou o clique quando ficou sem munição, e Jed a descartou. Ele pegou o rifle de assalto às suas costas e o manteve apontado para o último soldado enquanto dirigia-se para perto de Maia. — Maia — disse ele, segurando a mão dela. — Sou eu. O Jed da NTAC. Fique atrás de mim, doçura, eu te protejo. — Ele ajudou-a a levantar-se e indicou com a cabeça a porta pela qual Shawn saíra. — Por ali. A garota seguiu atrás dele enquanto Jed a protegia, somente agora lembrando-se do que prometera a Diana há algumas horas. O que quer que aconteça, dissera ele, protegerei você… e Maia também. Era hora de cumprir a promessa. Nunca digam que não sou um homem de palavra, disse ele, seguindo com Maia para um lugar que só depois percebeu ser um beco sem saída. Kyle tinha corrido tão rápido e descontroladamente que perdera a noção de todo o resto. Tudo o que conseguira ver era seu próximo passo, o próximo lance de escadas, a próxima porta e o próximo lugar onde poderia abrigar-se. Jordan dissera para correr, portanto, ele correra. Pensara que Maia, Gary e os outros estavam logo atrás dele, mas só depois que passara pela porta no escritório de Shawn e vira que não havia mais para onde correr que olhou para trás e percebeu que estava sozinho. O barulho de luta e correria o alcançou, abafados, porém ainda altos, através das paredes do escritório. Ouviu o som ininterrupto dos tiros, então passos apressados se aproximando. Ele escondeu-se atrás de uma grande cadeira almofadada no canto da sala e contorceu-se para pegar a pistola semiautomática que ganhara durante a preparação para defesas do Centro. Cassie colocou a cabeça por cima de seu ombro. — Mexa o polegar antes que puxe a lateral — disse ela. — E mantenha-a abaixada ou vai estragar tudo quando atirar. Ele girou os olhos para o tom “sei-de-tudo” na voz dela. Ainda mexendo na arma, perguntou: — Destrave-a — disse ela. Apontando para uma pequena alavanca à esquerda, acrescentou: — Aqui. Destravando a alavanca com o polegar, Kyle levantou o braço e mirou por cima da cadeira. Cassie soltou um muxoxo.
— Você expôs sua cabeça — disse. — Abaixe-se e mire pelo canto. Use sua mão esquerda para apoiar a direita. Isso ajudará a mirar. Olhando por cima de seu ombro, ele rebateu: — Quer fazer você? — Eu faria se pudesse — devolveu ela. Ele ouviu passos do lado de fora da porta. Ela abriu-se com o largo ruído das dobradiças rangendo. Kyle viu a ponta de um rifle de assalto adentrando a sala. Seu dedo pressionou o gatilho da arma. Ele prendeu o fôlego para continuar mirando firme. Então Cassie sussurrou: — Não atire — e gentilmente colocou a mão no braço de Kyle e o abaixou até que a arma estivesse apontada para o chão. Marco Pacella entrou em seu campo de vista, então virou-se bruscamente na direção de Kyle. Levantando os braços em sinal de rendição, ele disse: — Não atire! Sou eu! O agente da NTAC abaixou seu rifle e acenou para alguém atrás dele. — Tudo limpo — disse. Jordan adentrou o escritório depois de Marco e lançou um olhar demorado e preocupado a Kyle. — O que aconteceu com Gary e Maia? — Nós nos separamos — respondeu Kyle. — Por que não estão com Kendall? — Eu estava protegendo a retaguarda — protestou Marco. Todos se encolheram quando tiros de rifle começaram do lado de fora do escritório. Marco acenou para Kyle. — Fique atrás da cadeira. — Então levou Jordan com ele para trás da mesa. — Fique abaixado — disse, agachando-se e mirando para a porta por cima da mesa. Jordan sumiu de vista ao lado dele.
A porta abriu-se de supetão. Mais uma vez, Marco abaixou a arma. Maia entrou na sala, seguida por Shawn e o agente Jed Garrity da NTAC, que entrou de costas, apontando o rifle para qualquer coisa que pudesse aparecer atrás deles. — Fiquem longe da porta — disse ele enquanto se ajoelhava e fechava o portal quase por completo. Ele o deixou aberto o suficiente para poder mirar através da abertura. — Derrubei três dos quatro inimigos no corredor, mas aposto que o quarto está chamando por reforços. — Olhando para trás na direção de Jordan, ele acrescentou: — Se você tiver alguma cavalaria para chamar, agora é o momento. Marco levantou-se, correu para o lado de Jed e disse: — Se eu conseguir dar uma olhada no corredor, posso aparecer atrás deles quanto tiverem em posição e começar um tiroteio. — Muito arriscado — disse Jed. — Mas vale a pena tentar. — Ele afastou-se para a esquerda para que Marco visse pela porta minuciosamente aberta e examinasse o corredor além do escritório. Enquanto os dois agentes da NTAC sussurravam seus planos um com o outro, Kyle ouviu soluços abafados vindos de trás dele. Shawn estava agachado atrás de sua mesa com o rosto nas mãos, seu peito cheio de lamento. Kyle aproximou-se do primo, ajoelhou-se e segurou seus ombros. — Shawn? O que foi? O que aconteceu? — Heather — soluçou Shawn, seu rosto ainda escondido nas mãos. — Eles acabaram de… Ela… — Ele aspirou com um silvo molhado, mas então pareceu impossibilitado de continuar. Cassie abaixou-se ao lado de Shawn e olhou para Kyle. — Ele a ama — disse ela. — Ele acha que ela está morta, mas não está… não por enquanto, pelo menos. — Com um olhar convencido a Kyle, acrescentou: — Conte a ele! — Shawn — disse Kyle, inclinando-se para mais perto dele. — Escute. Cassie, o meu poder, está dizendo que Heather está viva. Ainda há tempo de salvá-la. Olhando alarmado para trás, Jed disse num sussurro áspero: — Está maluco? Ele não pode ir lá fora! Cassie segurou a nuca de Kyle. Seu toque era firme, porém estranhamente reconfortante. Ela sussurrou em seu ouvido, e ele repetiu as palavras para os outros. — O soldado que estava disfarçando os outros está morto — disse Kyle. — Jed o
pegou. Nosso pessoal pode ver os outros agora. Podemos revidar. Todos os outros estavam digerindo a notícia enquanto Shawn ficou em silêncio e levantou-se. Enxugou as lágrimas de seu rosto. Seus olhos avermelhados ficaram firmes quanto ele levantou a mão direita. — Consigo sentir a energia de vida dela — disse. Sua voz estava trêmula quando acrescentou: — Está se esvaindo rapidamente. — Reassumindo a postura, ele fechou os olhos, levantou a mão esquerda e se concentrou. — Também posso sentir os soldados. Estão subindo pelas escadas laterais. Estarão aqui em dez segundos. — Quando ele reabriu os olhos, eles possuíam uma frieza que Kyle nunca vira antes em seu primo. — Maia — disse Shawn num tom firme que não toleraria discussão. —, entre no banheiro e tranque a porta. Kyle e Jordan, protejam-se. Jed e Marco, vigiem a porta até que eu volte. Shawn saiu pela porta e Maia trancou-se no banheiro. Os agentes da NTAC bloquearam a saída. — Não — disse Jed a Shawn. — Você não pode sair desarmado. — Não estou desarmado. — retrucou Shawn. — E Heather precisa de mim. Ele avançou entre Jed e Marco, que se afastaram para deixá-lo passar. Kyle observou o primo saindo pela porta. — Nós te daremos cobertura — disse Jed e acenou para que Marco o seguisse enquanto saía atrás de Shawn. Enquanto Marco saía e fechava a porta, ele disse a Kyle e Jordan: — Estaremos logo ali fora. Fiquem abaixados. — Pode deixar — concordou Jordan, puxando uma cadeira e enfiando-se no espaço sob a mesa. Kyle atravessou o escritório rapidamente e agachou-se atrás da cadeira pesada. Cassie foi atrás dele e apoiou-se no encosto da cadeira. — É sua chance — disse. — Chance para quê? — Para atirar em Jordan. Sem testemunhas. Você pode dizer que um dos soldados apareceu, desceu bala no messias da promicina e desapareceu. Ninguém saberá. Se já não estivesse encostado a um canto, teria se afastado dela. — Não! Você está maluca! Gary pode ler mentes! Ele saberia. — Ele gesticulou para o banheiro. — E a Maia também.
— O Gary não é mais necessário ao movimento — retrucou Cassie. — E a Maia é descartável. Os tiros reverberavam pelo lado de fora da porta escritório. Então vieram horríveis gemidos guturais de sofrimento. — Não! — disse Kyle. — Não vou fazer isso! Ela o segurou pelos cabelos e puxou. — Você tem que fazer! Mas que droga, Kyle, levanta e seja homem! Atire! Ele desvencilhou-se dela. — Sério? Puxar um gatilho me tornará homem? Beleza, então… — Ele apontou a pistola para seu próprio rosto e colocou o cano na boca. Cassie revirou os olhos e soltou um suspiro de desgosto. — Agora só está sendo burro, Kyle. Shawn caminhou do escritório até o lobby dos elevadores. Heather estava caída à sua direita no chão, cercada de cacos de vidro e pedaços estourados das mesas e paredes. De trás dele, ouviu Marco chamando num sussurro tenso: — Shawn! Volte aqui! Ele o ignorou. Havia um homem vivo em uma sala à esquerda do corredor além de Heather. Mais deles vinha pela escada daquele lado. Mesmo sem poder ver a qualquer um deles, Shawn podia sentir suas essências com tanta precisão que sabia onde cada um estava. Sentia cada passo, cada respiração e ouvia seus batimentos cardíacos como se fossem seus próprios. Eles estavam logo após a esquina. Esperando. — Sei que estão aí — disse Shawn, desafiando-os. Um homem virou-se pela esquina, seu braço dobrado com uma granada na mão. Shawn levantou sua mão esquerda e parou o coração do soldado. O homem engasgou-se, torceu-se e caiu sobre os joelhos. Ele largou a granada, que rolou para trás dele.
Alguém gritou: — Explosivo! Os soldados brotaram da esquina, pulando por sobre o colega caído fugindo desesperados da granada. Tinham percorrido quase metade do corredor na direção de Shawn quando o explosivo detonou, preenchendo o espaço atrás deles com fogo e fumaça. Alguns soldados tropeçaram e caíram. Os dois na dianteira ergueram o rifle a miraram em Shawn. Congelaram antes de terminarem o movimento. Todos os cinco homens no corredor tiveram convulsões e espasmos. Em poucos segundo, estavam de joelhos, cada um sentindo mais dor do que jamais haviam sentido antes. Dentro do escritório à esquerda, o último homem preparou-se para dar o bote. Ele soltou o ar e girou enquanto saía pela porta. Sua arma na mão… … e caiu de joelhos quando Shawn impediu que seus pulmões se expandissem para que pudesse respirar. De pé ao lado de Heather, ele tinha a vida de seis homens em suas mãos. Ajoelhou-se ao lado de sua amada mortalmente ferida e sentiu sua vida esvaindo-se. Sua última faísca de neutroeletricidade estava morrendo nos seus tecidos cerebrais. Seus órgãos haviam sido degolados pelo atacante telecinético. Shawn colocou sua mão direita sobre a testa dela. Lembrou-se da sensação de apenas algumas horas antes, a de curar um homem do lado de fora do Centro sem nem ao menos ter que tocá-lo. A implicação daquele momento tornou-se imediatamente clara para Shawn. Se seu poder havia crescido ao nível de poder curar sem nem sequer fazer contato, então o contrário também era possível: ele podia matar sem fazer contato. Com a mão esquerda, tomou a vida de seis homens que haviam chegado ao seu lar para lidar com a morte. Com a mão direita, deu aquela energia para Heather. Ele remendou o dano interno nela, tirou o sangue dos pulmões e reabasteceu a partículas vitais que dançavam em sua sinapse. Com uma única respiração e uma batida cardíaca, ele a trouxe de volta da fronteira obscura da morte. Alguns metros longe, seis homens morreram para tornar o milagre possível, mas Shawn não sentiu nem uma pontada de culpa ou um arrependimento momentâneo. As costas de Heather arquearam-se quando ela sugou o ar, dolorosa e profundamente, o tipo de arquejo que só quem ressuscita consegue fazer. Seus olhos abriram-
se de uma vez, primeiro chocados, depois amedrontados e, por fim, aliviados. Ela sentou-se e abraçou seu salvador. Ele a tomou nos braços e chorou de gratidão, convicto de que fizera a escolha certa. Para salvar Heather, tiraria seis vidas, sessenta, seiscentos ou até mesmo seis mil. Não havia nada não faria para protegê-la. Nada. — O prédio está seguro — disse Jed a Jordan. — E também temos uma área limpa a quase dois quilômetros do Centro. Jordan assentiu. — Bom — disse. — E as comunicações? — Mais ou menos — respondeu Marco. — Seu povo tomou o sistema de trânsito, então walkie-talkies de áreas pequenas estão funcionando perfeitamente. Mais conselheiros de Jordan entraram no escritório. Aquilo o lembrou de quando, há alguns anos antes, aquela sala tinha sido sua, antes que seu assassinato deixasse o Centro e suas inúmeras responsabilidades para Shawn. — Boas notícias — disse Emil. — As forças americanas estão sendo derrotadas por toda a cidade. Madrona está livre, e a Marinha está usando o hotel Broadmoor Golf Course para evacuar seu pessoal em Black Hawks. Lucas acrescentou: — Teremos Beacon Hill livre até o pôr-do-sol, e as tropas que entraram por Fort Lawton estão voltando. — Excelente — disse Jordan. Ele virou-se para Kyle: — Algum conselho de Cassie sobre qual o próximo passo? O jovem esfregava as têmporas, exausto. — Não — respondeu. Do lado de fora do escritório, Shawn cuidava das consequências da batalha no Centro. No começo da fila estava Gary, vítima de inúmeros tiros, que fora encontrado inconsciente no andar de baixo, minutos depois que Shawn esquartejara as tropas em frente à sua sala. O telepata acordou de súbito, em estado de pânico e gritou: — Cadê a Maia? — Está tudo bem — disse Shawn, segurando o atleta musculoso com uma mão gentil
em seu peito. — Ela está bem. — Ele apontou para dentro do escritório, onde Maia estava em pé ao lado de Jordan. A garota acenou para Gary, que relaxou e sentou-se. Marco virou-se e olhou Jed com uma expressão questionadora. — Espere aí. O que faz aqui? Você estava em Yellowstone com Tom e Diana. — Fui atropelado por um carro — respondeu Jed. — E você? Não devia desativar a bomba? O pânico tomou conta de Marco. Ele olhou a Jordan. — Quem está supervisionando a missão em Yellowstone? — Era para ser o Lewis — disse Jordan. — Mas ele… Olhares confusos e ansiosos foram trocados entre cada um deles. Ficou dolorosamente claro que a necessidade de monitorar as ações da NTAC para impedir a bomba de antimatéria falhara durante o ataque no Centro. — Era isso o que eu temia — disse Marco.
QUARENTA E DOIS 3:28 P.M. PARECIAM aplausos. Do outro lado da escuridão, estavam por toda parte: um ruído limpo e constante, uma cascata de barulho claro, um burburinho maçante e aleatório, pancadas fracas e irregulares. Lágrimas corriam pelo rosto de Diana, mas não eram suas. Ela não estava chorando. Cega e imóvel, inerte e silenciosa, ela estava deitada, enquanto gotas beijavam sua face. Calor e pressão chamaram sua atenção. — Diana — disse a voz. Parecia distante, como se alguém a estivesse chamando do extremo oposto de uma casa enorme e cheia de cômodos. Sua consciência retornava. Ela abriu os olhos. Tudo estava brilhante, a ponto de ofuscar. Pingos de chuva salpicavam o rosto e o corpo de Diana. Ela estava deitada de barriga para cima, no meio da estrada. Tom apoiava-se em um dos joelhos, a seu lado. Ela engoliu em seco para desfazer a sensação grossa e pegajosa de sua boca, e então balbuciou: — Tom? Ele segurou a mão dela. — Estou bem aqui. — E a bomba? — Em contagem regressiva — respondeu ele. — Jakes deve ter colocado um dispositivo automático que disparou o contador. Ela virou a cabeça na direção da picape branca, que estava tombada, a alguns metros deles, na estrada. — Ele está…? Concordando com a cabeça, Tom disse: — Está morto. Eu verifiquei.
Diana não se envergonhou de sentir uma certa satisfação em receber aquela notícia. — Temos que… Parar a bomba. Seu parceiro franziu a testa. — Eu já tentei. Boa parte daquela coisa é de peças que eu nunca vi antes. Além disso, o painel de controle foi destruído. A única parte que continua funcionando é o contador. Seu batimento cardíaco acelerou-se enquanto ela perguntava: — Quanto tempo? Ele olhou em seu relógio de pulso. — Noventa e um segundos. — Forçando um sorriso triste, ele disse: — Acho que você não trouxe, por acaso, um manual que ensine a desarmar munição superavançada… — Desculpe — ela respondeu. — Deixei no meu carro. Segundos se passaram enquanto Diana contemplava a solitária estrada, cheia de destroços e cercada por paisagem árida. Ela sabia que estavam exatamente na zona de perigo da cratera. Quando a bomba explodisse, liberaria o evento de extinção que varreria a raça humana da face da Terra. Estragamos tudo, constatou ela. Admitir a falha para si mesma a encheu de coragem. Tudo estava acabado, então não tinha mais nada a perder. Ela apertou fortemente a mão de Tom. Ele olhou para ela. — Você se lembra — perguntou ela, com um sorriso trêmulo — quando minha irmã April usou a habilidade dela para forçá-lo a admitir que tinha tido fantasias sexuais comigo? Virando os olhos, Tom respondeu: — Como eu poderia esquecer? — Bem — ela disse —, acho que você merece saber… Eu também tive fantasias com você. Por um segundo, ele olhou fixamente para ela, como se estivesse em choque. Então verificou o relógio outra vez, e olhou de novo para ela, ao mesmo tempo irritado e brincalhão. — Só agora você me diz isso. Riram juntos do absurdo da situação. Quando pararam de rir, ela perguntou
novamente: — Quanto? — Quinze segundos. — Me abrace até terminar. Por favor. Ele a ajudou a se sentar, e então acomodou-se ao lado dela e a abraçou. Ela o abraçou com força e fechou os olhos, sabendo que, em poucos segundos, apenas alguns metros atrás dela, o mundo estava para se acabar em fogo e fúria. Ela contou os segundos mentalmente. Três… Dois… Um… Mesmo através de suas pálpebras o clarão era intensamente brilhante, e a onda de calor investiu contra ela, fazendo seu corpo inteiro latejar com uma dor duas vezes maior do que a da pior queimadura que já tivera. Então, para sua surpresa, a luz diminuiu. Não muito; ainda estava brilhante demais para se olhar diretamente, mas havia diminuído. O calor retrocedera rapidamente, também. Ela abriu os olhos e voltou a cabeça. A picape se fora, devorada por uma pesada esfera de fogo branco, que havia queimado um círculo no asfalto abaixo desta. Mas o sol em miniatura parecia estar contido em outra esfera de energia, uma concha âmbar que flutuava enquanto o inferno ensandecido dentro desta pulsava, mas não conseguia se expandir. — Graças a Deus e a Jordan Collier — disse Diana, certa de que um dos p-positivos de Jordan havia interferido para salvar a ela e a Tom. Então ela percebeu que Tom estava tremendo. Seus dentes estavam trincados e os músculos do pescoço saltavam de esforço. Ele olhava fixamente para o coração da bola de fogo ao lado deles. Diana constatou que ele a abraçava com apenas um dos braços. Ela olhou por sobre o ombro dele. O outro braço de Tom estava apontado na direção da crepitante bola de energia branca e quente, a mão aberta, os dedos bem separados. Ele levantou o braço mais alto, e a esfera ergueu-se do chão. Então ele começou a dobrar os dedos, cerrando o punho e girando o pulso, como se estivesse imitando o esmagamento de um inseto. A bola de fogo encarcerada contraiu-se, acompanhando o gesto de Tom. Quando o
punho dele cerrou-se ao máximo, a ponto de os nós dos dedos se tornarem esbranquiçados, a explosão contida encolheu até virar um ponto diminuto, e então desapareceu de vista. Ele desabou nos braços de Diana, exausto e trêmulo. A chuva caiu sobre eles. Depois de alguns instantes, Tom recuperou fôlego suficiente para dizer: — Não agradeça a Jordan… — Ele abriu um dos bolsos de sua roupa tática e tirou de lá uma seringa vazia, pontilhada de traços luminosos de promicina presos debaixo do êmbolo de borracha. Ele exibiu um sorriso fraco. — Agradeça a Maia.
PARTE TRÊS AS PROMESSAS QUARENTA E TRÊS 24 DE JULHO DE 2008 8:43 PM O PÔR-DE-SOL ACONTECERIA em poucos minutos. O céu acima da Terra Prometida adquirira um tom azul escuro a leste, e o horizonte queimava num vermelho escarlate. Partes da cidade ainda estavam em chamas, mas Jordan sabia que em breve seu povo controlaria o fogo. A fumaça elevava-se dos bairros que haviam sido destruídos, tanto por armas quanto por soldados com poderes devastadores. Observando-o e transmitindo – com sua habilidade de promicina – tudo o que via e ouvia para todos os cabos e freqüência na Terra, estava a jovem israelense chamada Ilana Teitelbaum. Era uma garota bonita com cabelos castanhos lisos e longos. Jordan tentava não ficar extasiado pelos seus olhos escuros cheios de vida enquanto os encarava e mandava sua mensagem para o mundo. — Tudo ao meu redor — disse ele, andando em volta do telhado do Centro 4400 enquanto Ilana girava para mantê-lo em vista. — é a conseqüência do ataque de hoje cometido pelas Forças Armadas Americanas contra a Terra Prometida. Como prometi que faríamos, defendemo-nos. — Ele deu uma rápida olhada para a torre em chamas e em ruínas onde a Fundação Collier tinha sido até aquela manhã. — Como podem ver, também tivemos perdas, e a nossa cidade sofreu grande dano. Mas nossas casualidades são pequenas se comparadas com as das forças que nos atacaram. Ele conduziu Ilana mais para frente e direcionou a visão dela para além da beira do telhado, para o estacionamento e a entrada principal do Centro. — Até mesmo agora, os feridos da Terra Prometida, tanto p-positivos quanto pnegativos, sabem que podem vim até nós e serem curados. Diferentemente dos soldados que saíram daqui hoje, mutilados ou gravemente feridos, amanhã nosso povo estará recuperado e inteiro. Ilana deu um passo para trás, mas continuou olhando-lhe enquanto ele sinalizava para ela virar-se a sudoeste. — Pela manhã, os incêndios pela Terra Prometida estarão apagados. Nosso povo terá água limpa, eletricidade estável, e remoção de esgoto confiável… tudo de graça. Em uma semana, teremos reconstruído nossas estradas, até mesmo algumas rodovias que os militares destruíram. Ele parou de dar voltas e ficou de costas para o sol poente, sabendo instintivamente
que estava sendo contornado por uma áurea de luz. Toda frequência de vídeo, regular ou de alta definição, estava transmitindo a visão de Ilana; aqueles que não estivessem vendo ao vivo, com certeza veriam na Internet nos dias e semanas que seguiriam. O momento tinha chegado: era hora de mostrar sua carta. Ele sorriu. — Os Estados Unidos, por outro lado, terminaram miseravelmente neste conflito. Seus satélites militares foram destruídos, impossibilitando-se de promover a guerra e prevenirem-se de serem atacados. Porque suas inúmeras agências de inteligência “hackearam” vários satélites civis, sua destruição cortou serviço de telefone móvel de grande parte da Carolina do Norte, impossibilitando a capacidade de transmissão, e derrubando seu sistema de GPS. Demorará muitos anos para que a América restaure tais serviços. Ele cruzou as mãos à sua frente e continuou: — Levando em consideração que este tipo de dano à infra-estrutura nacional logo após o terremoto que devastou grande parte da Califórnia, está é uma causa preocupante não só para americanos, mas para todos os povos no globo que temem as consequências mundiais de um colapso nos Estados Unidos. “Tal tragédia não pode acontecer. É por isso que estou aqui hoje para dizer que eu e todos os cidadãos da Terra Prometida não temos rancor do povo americano ou seus aliados. Vocês não têm que enfrentar estes tempos sombrios e desafios assustadores sozinhos”. Conscientemente repetindo as últimas palavras de seu discurso ao governo da cidade de Seattle depois do Grande Passo Adiante, Jordan descruzou as mãos e disse: — Em tempos de crise, estamos prontos para ajudar de qualquer modo que pudermos, como precisarem. Tudo o que têm a fazer… é pedir.
QUARENTA E QUATRO Todas as partes do corpo de Tom estavam doendo. Seus músculos doíam, e sua pele queimava com as abrasões. Cada batida do coração fazia sua cabeça pulsar em agonia, como se algo estivesse tentando arrancar seus olhos das órbitas. Ele estava deitado sobre uma comprida mesa de jantar e refletia sobre sua noite infeliz. Haviam se passado poucas horas desde que ele e Diana tinham retornado através de um segundo portal aberto por Kendall. Tom carregara sua parceira ferida de volta para o Centro 4400, onde os seguidores de Jordan a haviam levado imediatamente para ser atendida por Shawn. Até Tom se encontrar abandonado na enfermaria do Centro, ele não havia se dado conta de que ninguém perguntara se ele precisava de cuidados médicos. A culpa é toda minha, disse para si mesmo. É isto o que ganho por ser tão calmo. Ele escutara conversas sobre o ataque que havia acontecido ao Centro, mas que já havia terminado, e que os principais líderes da Terra Prometida ainda estavam vivos. Sem condição de percorrer o prédio, a fim de procurar Kyle ou Shawn, Tom havia conseguido dois tabletes de Vicodin em um armário da enfermaria, que estava destrancado. Então percorrera o corredor até um escritório privativo, onde achara uma garrafa de bourbon barato dentro da gaveta de uma escrivaninha. Vai servir perfeitamente, declarou. Na lanchonete, ele escolhera um copo de suco da estante de plástico que ficava ao lado da porta de entrada. Então se sentara a uma mesa, esmigalhara os dois tabletes de Vicodin com a coronha de sua pistola, jogara o pó no copo, e entornara ali o que ele achou que fosse uma dose tripla da bebida que tomara emprestada. Ele mexera tudo com o indicador, até que parecesse bem misturado, e então bebera em um único e longo gole. Alguns minutos depois, a dor que percorria seu corpo havia diminuído… um pouquinho. O alívio era quase suficiente para que Tom adormecesse, mas toda vez que ele tentava abandonar o estado consciente, algum som aleatório, como um tiro distante ou uma explosão, ou passos ecoando em algum corredor próximo, o trazia de volta ao estado de completo despertamento. Em uma ocasião havia sido um odor de enxofre, como um fósforo riscado, o que fez seus olhos se abrirem. Outro sonho recém-começado acabara de escapar dele ao ouvir a porta da lanchonete se abrir com um grande estalo metálico. Passos superpostos ecoaram pelo refeitório fracamente iluminado. Com grande esforço, Tom ergueu-se da mesa até se sentar ereto, as pernas penduradas na ponta desta, encarando seus visitantes: Jordan, Shawn e Kyle.
Ao menos, ele estava quase certo de que eram eles. A bebida e o medicamento não haviam contribuído muito para aplacar seu sofrimento, mas fizeram um excelente trabalho no sentido de borrar sua visão. — Tio Tommy — disse Shawn, sua voz parecendo estranhamente profunda, lenta e ressoante. Ele estendeu o braço e apertou o ombro de Tom com a mão. — Você está bem? Com está se sentindo? — Como se eu tivesse sido atropelado por um caminhão cheio de bebidas falsificadas — respondeu Tom, falando enrolado. Ele se inclinou para frente. Shawn o amparou. — Respire fundo — disse o jovem. Tom sentiu um calor glorioso tomá-lo por dentro, e conforme ele inspirava, sua mente e sua visão se clareavam. Expirando, sentiu a dor se esvair, como se a tivesse soprado para fora de si. — Melhorou? — perguntou Shawn. Tom deu um ligeiro sorriso. — Muito. — Ele puxou o sobrinho para si e lhe deu um abraço apertado. — É bom ver você. — É bom ser visto — disse Shawn. Quando Tom o largou, Shawn informou: — Não se preocupe com Diana. Eu a curei há algumas horas. Ela está descansando lá em cima. — Obrigado — respondeu Tom, deixando-o se afastar. Kyle deu um passo à frente, tomando o lugar de Shawn. — E aí, pai? — disse ele, claramente lutando contra uma inundação de poderosas emoções que ainda o faziam sentir-se acanhado na presença de outras pessoas. — Vem cá — chamou Tom, passando os braços em volta do filho e o abraçando com muita força. — Pensei que nunca mais iria ver você. Pensei que eu… — Lutando com o esforço que fazia para expressar seus sentimentos, ele avaliou a ironia de Kyle ter herdado aquele seu jeito. Determinado a modificá-lo, Tom piscou por entre suas lágrimas e se forçou a continuar. — Pensei que nunca mais iria ver você. Não para dizer uma última vez… Que eu te amo. — Também te amo, pai. Shawn colocou uma das mãos nas costas de Kyle e a outra no ombro de Tom, e eles permaneceram juntos por alguns momentos, em silêncio. Aquilo fez bem para Tom. Eles se
sentiam como uma família novamente. Então Jordan teve que estragar tudo, ao falar: — Desculpem interromper… — Então não interrompa — respondeu Tom. — Eu só queria lhe dar as boas vindas ao clube dos p-positivos, Tom. Todos entendemos que este foi um grande passo para você. Tom soltou Kyle e Shawn, ficou de pé e deu um passo na direção de Jordan. — Eu não fiz isso pelo seu Movimento, ou para cumprir uma profecia mal fabricada. — Não faz diferença para mim o porquê de você ter tomado a dose — disse Jordan. — O que importa é que você o fez. Você literalmente salvou o mundo, Tom. Era difícil para Tom discutir com um homem que o glorificava excessivamente. Após alguns segundos em que abrira e fechara a boca em um silêncio frustrado, Tom disse: — Talvez. Mas isto não quer dizer que eu estou do seu lado, Jordan. Ou do lado do governo. Jordan deu de ombros. — Ninguém disse que você tem que escolher um lado, Tom. É meu desejo que um dia, em breve, não exista mais “lado” nenhum. Apenas as pessoas, vivendo em paz. Ele quase teve que rir da singeleza da visão utópica de Jordan sobre o futuro da humanidade. — Sim, claro. Você vai pagar uma coca-cola para o mundo e todos cantarão em harmonia. Exceto pelos idiotas e pelos asquerosos que tentarão usar seus poderes para enriquecer, ou ferir as pessoas, ou controlar tudo. — É verdade, sempre haverá aqueles entre nós cujas causas não são nada nobres — respondeu Jordan. — Que representam uma ameaça para nós. Concordando com a cabeça, Tom disse: — É com isso que me preocupo, Jordan: me certificar de que pessoas como você… — Pessoas como nós — corrigiu Jordan. Repreendido, Tom franziu a testa.
— Certificar-me de que pessoas como nós obedeçam às leis e não saiam por aí ferindo as pessoas. — Bom — disse Jordan. —, porque é exatamente do que a Terra Prometida irá precisar: alguém justo. Alguém confiável, que nos mantenha todos honestos. — Ele estendeu sua mão aberta. — E para isto, Tom… Estou contente de que seja você. Tom olhou para a mão de Jordan e percebeu que ele estava oferecendo mais do que uma trégua, mais do que simplesmente amizade. O que Jordan oferecia era uma parceria em um novo entendimento, e um papel na preparação do mundo que estava por vir. Era mais responsabilidade do que Tom jamais quisera para sua vida. Ele estendeu o braço e apertou a mão de Jordan. Jordan sorriu, então largou a mão de Tom e caminhou em direção à porta. — Shawn? Kyle? Temos muito trabalho para fazer hoje. Shawn virou-se para se juntar a Jordan, mas Kyle permaneceu ao lado de Tom e disse: — Eu já vou. Preciso de mais alguns minutos com meu pai. Com um sacudir de cabeça e um sorriso, Jordan sinalizou seu entendimento. Então ele e Shawn caminharam rapidamente para fora da loja, cochichando assuntos aparentemente urgentes. Quando a porta se fechou atrás deles, Kyle lançou um olhar esperançoso na direção de seu pai. — Pai, posso te fazer uma pergunta pessoal? — Claro — respondeu Tom. — Eu sei que você era contra tomar promicina, mas agora que o fez… Como se sente? A pergunta fez Tom parar e pensar por alguns segundos. Agora que se livrara da dor que havia ocupado seus pensamentos pelas últimas horas, estava realmente apto a avaliar a si próprio, por dentro e por fora. Ele sentiu o canto de sua boca se erguer em um meio sorriso de contentamento. — Eu me sinto bem — admitiu. — Como se fosse eu mesmo, só que com um algo a mais. — Olhando para Kyle, acrescentou: — É quase como se a promicina soubesse quem e o que eu sou por dentro, e então amplificasse isso — Balançou a cabeça. — Faz algum sentido para você?
— Muito — respondeu Kyle. — Diana disse que você estava fazendo campos de força. — Diante da resposta afirmativa da cabeça de Tom, Kyle continuou: — Faz todo sentido. Você sempre se preocupou em proteger as pessoas, então tem um poder que o deixa defender a si e aos outros. — Ele olhou em outra direção, e então acrescentou: — Você tem outros poderes, também. Sabia disto? Inclinando-se para frente e ouvindo com todo o interesse, Tom perguntou: — Que tipo de poderes? Kyle virou-se, como se estivesse escutando outra pessoa. Tom se perguntou se a habilidade peculiar de seu filho incluía escutar vozes. — Você será imune aos efeitos do controle da mente — disse Kyle. — Não será lido por telepatas ou mentalmente atacado. Qualquer poder que funcione afetando as mentes dos outros não terá mais efeito em você. — Ele sorriu. — Bem legal, né? — É, isso parece bem útil — respondeu Tom, comemorando secretamente, dentro de si, sua recém descoberta sensação de invulnerabilidade. Ele e Kyle começaram a caminhar em direção à porta para sair da lanchonete. — Você é como aquela música de Simon e Garfunkel que a mamãe ouvia o tempo todo — disse Kyle. — Você sabe qual é: “I Am a Rock”. Tom riu, mas em seu coração ele sentiu que Kyle estava mais certo do que pensava. Ouvindo a canção em sua mente, Tom soube o que para ele havia se tornado figurativamente verdade: ele era uma ilha. Diana abriu os olhos e viu Maia de pé, ao lado dela. — Oi, mamãe — disse Maia. Ela parecia recém saída de um banho. Seu cabelo estava molhado, e seus cachos naturais estavam se refazendo, a despeito de seus esforços para mantê-los esticados. Ela vestia roupas limpas: calças jeans baggy, tênis branco-e-rosa, e uma camiseta emprestada do Rush que era pelo menos dois tamanhos maior do que o dela. Sentada no sofá, Diana estendeu o braço, gentilmente pegou a mão de Maia nas suas, e sorriu. — Oi, querida. Você está bem? Maia concordou com a cabeça. — A luta acabou — disse ela. Com perfeita certeza, acrescentou: — Os militares não irão tentar vir aqui novamente. — Isso é bom, eu acho — respondeu Diana.
Ela olhou em volta, pelo pequeno escritório, para o qual o pessoal de Shawn a havia trazido depois que Tom a carregara de volta de Yellowstone pelo portal. A maior parte do que havia acontecido depois era um borrão. Diana lembrava-se de Shawn aparecendo na porta e olhando para ela por vários segundos, mas não havia de fato colocado as mãos sobre ela. Mesmo assim, sua dor havia desaparecido, deixando apenas a exaustão, e ela havia desmaiado. Olhando para Diana com um misto de pesar e preocupação, Maia perguntou: — Você está bem? Diana concordou com a cabeça. — Sim, querida, eu estou bem. — Ela afastou um cacho rebelde de cabelos úmidos que estava sobre os olhos de Maia e o colocou por detrás da orelha da menina. – Você foi muito corajosa hoje. — Repassando na memória a discussão que haviam tido mais cedo, ela olhou para o chão. — Eu sei que briguei um bocado com você. E eu não parei para pensar que talvez você já esteja crescida o suficiente para tomar grandes decisões por si mesma. — Reunindo sua coragem, ela olhou a filha nos olhos. — É por isso que eu tenho que te pedir desculpas, Maia. Não é fácil, para mim, admitir que você está começando a crescer, e que talvez você não precise mais de mim como precisava antes. Maia abraçou Diana e deitou a cabeça no ombro dela. A fragrância do sabonete ainda estava nela. — Eu nunca disse que não preciso de você. Eu só quero ter você ao meu lado, é isso. Afastando-a e segurando-a com os braços esticados, Diana disse: — Maia, eu sempre vou estar ao seu lado, mesmo quando não concordar com você. Ser mãe é exatamente isso. — Puxando Maia novamente para ela, continuou: — E ser uma família é permanecer juntos. Agora que a luta acabou, você vai finalmente voltar para casa? Soltando-se do suave abraço de Diana, Maia recuou meio passo e permaneceu em pé, os braços estendidos ao lado do corpo, o queixo franzido. — Ainda não — disse ela, parecendo ligeiramente envergonhada. Do bolso frontal de suas calças jeans largas, ela tirou uma seringa com uma agulha hipodérmica tampada, e cheia de um líquido dourado luminoso, que Diana soube na hora que era promicina. — Não até que você tome a dose. Diana olhou espantada para a seringa na mão da menina. Anos antes, as primeiras experiências do Dr. Kevin Burkhoff com promicina, que tiveram Diana como cobaia inconsciente, tinham desenvolvido nela uma resistência natural à substância, e Maia sabia disto. Lançando um olhar confuso para a garota, Diana disse:
— Mas querida… Eu sou imune à promicina. Usando o tom monótono e misterioso que ela costumava reservar para suas profecias precognitivas, Maia respondeu: — Por enquanto.
QUARETA E CINCO A APENAS DOIS MINUTOS da meia noite, Tom foi o primeiro dos agentes da NTAC que chegou ao escritório de Shawn. Tom estava pronto para ir para casa quando a mensagem de que alguém com autoridade para falar em nome dos Estados Unidos estava ao telefone chegou até ele. — O que está havendo? — perguntou enquanto adentrava a sala e via Shawn e Jordan esperando atrás de uma grande mesa. — Pediram para que esperássemos até que todos estivessem aqui. Impaciente para saber mais, Tom perguntou: — Quem pediu? Jordan levantou dois dedos e colocou-os em frente aos lábios num gesto que o mandava ficar em silêncio, e Tom sentiu vontade de chutá-lo entre as pernas. A porta abriu-se atrás dele, e Diana entrou seguida por Jed e Marco. Ela perguntou: — O que está havendo? — Engraçado — respondeu Jordan, apontando para Tom. — É exatamente o que ele disse. — Mas antes que Tom pudesse mandá-lo calar a boca e continuar, Jordan inclinou-se e apertou um comando no teclado do computador. Um monitor de tela plana postado na parede à direita de Tom ligou-se com uma imagem do secretário da Segurança Doméstica, um homem de rosto redondo e careca chamado Andréas Ziccardi. — Sr. Secretário — disse Jordan. —, eles chegaram. — Estou vendo, Sr. Collier — disse Ziccardi. Direcionando-se aos agentes da NTAC, ele continuou: — Vocês quatro tiveram um dia longo pra burro, não tiveram? Os outros olharam para Tom. Como era o agente mais qualificado da equipe, a responsabilidade de responder ao Departamento de Segurança Doméstica estava em suas mãos. — Sim, senhor — disse ele. O fantasma de um sorriso iluminou o semblante gordo de Ziccardi. — Vocês realmente pensaram que eu ligaria para desejar-lhes um bom dia em meio a uma zona de guerra?
— Não, senhor — respondeu Tom, prevendo a armadilha que Ziccardi tentava implantar nele. — Isso nem me passou pela cabeça. A expressão de Ziccardi tornou-se furiosa. — Claro que não passou, Baldwin! Vocês quatro tinham ordens diretas para embarcarem no avião e reportarem-se em D.C para suas novas tarefas. No minuto que saíram o jato, foram oficialmente declarados como desaparecidos. Incapaz de reprimir sua ira, Tom retrucou: — É, pois isso é o que importa aqui. Não precisa me agradecer por salvar o planeta em Yellowstone, por falar nisso. É tudo parte do serviço, correto? Afinal de contas, você não pode deixar uma coisinha com o fim do mundo impedi-lo de me dar umas palmadas na mão por ter desaparecido. O secretário franziu o cenho e balançou a cabeça. — Ah, sim. Eu ouvi sobre sua façanha em Yellowstone. Alguns turistas até têm um vídeo dela. Não sabia disso, sabia, Baldwin? — Ele levantou um pedaço de papel selado com fita adesiva. — Sabe o que é isso? É uma autorização federal para sua prisão, por ter auto-injetado promicina ilegalmente. — Ele tremeu, como se estivesse tentando controlar sua fúria. — Eu poderia ter consertado isso. E se tivesse a ver com a filha da Skouris, poderia até te perdoar. Mas adivinha o que alguém gravou hoje. — Com um sorriso fraco, acrescentou: — Deixe-me mostrar-lhes. O secretário digitou alguns comandos em seu computador. Segundos depois uma imagem trêmula e embaçada substituiu-o na tela. Era uma gravação feita amadora que fazia uso de várias lentes do zoom, o que indicava que a pessoa que gravara estivera no topo de um prédio. A cena que se desenrolava era uma de que Tom se lembrava vividamente: o confronto dele e de Diana com os soldados do lado de fora da Biblioteca Beacon Hill. O vídeo mostrava o soldado atirando na criança p-positiva e na família dela, assim como Diana matando três dos militares. Também mostrava claramente Tom dando um tiro fatal no quarto soldado. Enquanto o vídeo passava, documentou Tom e Diana afastando-se da carnificina e olhando para a câmera do observador – fazendo seus rostos inconfundivelmente reconhecidos. Tom baixou sua cabeça, envergonhado, quando o vídeo terminou. Ziccardi reapareceu no monitor. — Alguém vai tentar me dizer que não eram vocês? Antes que Tom pudesse responder, Diana gritou:
— E você vai tentar me dizer que aqueles soldados não mataram crianças a sangue frio? Simplesmente os apagaram, civis inocentes em plena luz do dia! Até onde eu saiba, isso se chama crime de guerra! — E se vocês quisessem prestar queixas contra aqueles homens, o caso teria sido investigado por meios adequados. — disse Ziccardi. — Mas ao invés disso, atacaram militares americanos desinformados em território dos Estados Unidos. No segundo que fizeram isso, tornaram-se combatentes inimigos. Juntamente com seus dois cúmplices, foram declarados inimigos dos Estados Unidos da América. Se qualquer um de vocês pisar em território americano outra vez, passarão o resto de suas vidas na Prisão de Guantánamo, numa cela sem janelas — lançou um olhar penetrante a Jed. —, assim como sua cópia de carbono. Ele inclinou-se tão próximo de sua web cam que sua imagem distorcida como uma caricatura grotesca e acrescentou: — Aproveitem sua estadia na Terra Prometida. Porque no dia que qualquer um de vocês pisar um centímetro que seja fora dela, estão ferrados comigo. A tela ficou preta. Um silêncio atordoante tomou conta do local. Os agentes da NTAC viraram-se de uma só vez quando Jordan pigarreou. — Avisem-me se um de vocês estiver procurando um emprego.
QUARENTA E SEIS A NOITE ANTERIOR havia ensinado uma coisa a Dennis Ryland: era sempre mais fácil entrar em uma guerra do que sair dela. O apressado come cru, censurou a si próprio. Ele cambaleou pelos corredores do novo quartel-general da Haspelcorp, em Tacoma. O sol da manhã entrava pelas janelas da face sul, banhando o corredor com luz dourada. Aquilo o fez se contrair. Graças à pressa de escapar da Terra Prometida depois de escurecer, ele não havia dormido na noite anterior, e agora seus olhos coçavam. A fadiga fazia seus braços e suas pernas parecerem moles e fracos. Ele estava louco por uma xícara de café. Quem sabe, um café com rum? Entretanto, quando abriu a porta de seu escritório, foi recebido por rostos carrancudos e três homens de terno, armados e com distintivos. - Deixe-me adivinhar – disse Dennis, com sarcasmo. – Vocês estão aqui para uma intervenção? - É uma forma de definir isto – respondeu Miles Enright. O homem magro de meia-idade estava parado em frente à janela, com a luz do sol batendo em suas costas, e Dennis pôde ver seu próprio reflexo nos óculos escuros dele. Miles esboçou um sorriso frio. – Dennis – disse ele, indicando o homem à sua esquerda – este é o agente Brill, da Agência de Segurança Nacional – sobre o homem que estava à sua direita, falou: – Este é o agente especial Roel, do F.B.I.. E aquele perto da porta é o agente Wilson, da C.I.A.. Eles gostariam de lhe fazer algumas perguntas. - Na verdade – disse o agente Roel – gostaríamos de prendê-lo primeiro, depois fazer algumas perguntas. O agente Wilson acrescentou: - O que pode ou não significar a sua cabeça sendo mantida por longos períodos embaixo d’água. - Dependendo do quanto você cooperar – Brill concluiu com um sorriso ameaçador. Roel deu um passo para frente. - Sr. Ryland, vire-se de frente para a parede, por favor – Dennis fez o que o homem pediu, e continuou seguindo suas instruções. – Afaste as pernas, incline-se para frente, e apoie as palmas das mãos na parede. O agente revistou Dennis rápida e minuciosamente, e então algemou o punho direito dele. O aço estava frio e cortou sua carne quase até o osso quando Roel colocou sua mão direita atrás de suas costas, forçando-o a permanecer ereto, e retirou sua mão esquerda da parede. Roel a segurou e, com movimentos rápidos e experientes, algemou Dennis completamente.
- Dennis Ryland – disse Roel – você foi acusado de comprometer a segurança nacional dos Estados Unidos da América, apropriar-se de recursos federais, ajudar e incentivar terroristas inimigos e trazer material radioativo ilegalmente para os Estados Unidos. Miles interrompeu com sinais visíveis de sadismo: - Ah, Dennis, e você está despedido – e para os homens de terno ele falou: – Tirem-no daqui. A pior parte de ser conduzido algemado para fora do edifício Haspelcorp, na opinião de Dennis, não eram os olhares atônitos dos gerentes intermediários ou os subordinados que balançavam suas cabeças em desaprovação, ao terem o júbilo de vê-lo ser levado sob custódia. Não; para Dennis, a decepção maior daquela virada de mesa era que ele havia ficado sem seu café com rum. Uma dúzia de carros – alguns com a marca da Polícia Estadual de Washington, outros sem qualquer inscrição – havia cercado a entrada principal do edifício. Dúzias de policiais uniformizados estavam de prontidão para assegurar que Dennis – com seus pés e costas doloridos e seu físico de servidor burocrático – não pudesse escapar. No alto, um par de helicópteros pretos perturbava o ar matinal com o ruído de seus poderosos rotores. Tamanha era a exibição de opressão que Dennis quase riu quando Roel o empurrou para dentro de um dos carros sem inscrição, tomando cuidado para não bater a cabeça do preso. Isto é algo em que o governo é sempre bom, resmungou Dennis. O que eles fazem de melhor: armar um circo. Cada janela da Haspelcorp que dava para a rua mostrava um ou mais rostos observando Dennis. Ele olhou para cima e sorriu para eles. Já havia visto aquele filme. Ele voltaria.
QUARENTA E SETE KYLE ESTAVA PARADO DIANTE da porta fechada dos aposentos temporários de Jordan no Centro 4400. Ele sentiu Cassie aparecer atrás de si e sua respiração quente em seu pescoço. O perfume dela era delicado e floral. — É agora — disse ela. — Ele está sozinho. Nunca teremos uma chance melhor. A mão direita dele, suada, fechou-se em volta da pistola enfiada na cintura de suas calças jeans pela parte de trás. Com a mão esquerda, bateu na porta. Do outro lado, Jordan respondeu: — Entre. Soltando a arma, Kyle abriu a porta e adentrou a sala de Jordan. A mobília era pouca, mas confortável. Jordan estava parado diante de uma janela longa com vista para o belo jardim do Centro. Em uma mão, segurava um pires e na outra, uma xícara. Ele usava uma calça de linho larga e sem detalhes com uma camiseta no mesmo estilo. Seus pés calçavam sandálias de couro. Do lado de fora da janela, o sol punha-se atrás dos galhos exuberantes do Parque Interlaken. Ele virou-se e recebeu Kyle com uma expressão serena. — O que posso fazer por você, Kyle? A voz de Cassie estava aguda de tanta raiva. — Faça agora! Enquanto as mãos deles estão ocupadas. Gotas de suor escorriam pelos cantos do rosto de Kyle enquanto ele esforçava-se para não reagir aos comandos malévolos de Cassie. Para Jordan, disse: — Precisamos conversar. Ela pôs-se entre os dois homens. — O que está fazendo, Kyle? Não vai amarelar agora. Atire nele! Jordan pousou o pires e a xícara no peitoril da janela. — Tem algo errado com ela? — Ela quer que eu te mate. Cassie deu um tapa no rosto de Kyle. Ele piscou os olhos, chocado, e sua cabeça inclinou
para o lado devido à pressão. Parecendo confuso e preocupado, Jordan perguntou: — Kyle, você está bem? Ignorando o olhar cheio de ódio de sua musa obscura, ele respondeu: — Ela acabou de me bater. — Ele tocou a bochecha formigante e sorriu. — Acho que não devia ter te contado. Furioso, Cassie disparou: — Nossa! Você acha? Juntando as mãos e os dedos indicadores, Jordan começou a andar em frente à janela. — Ela te contou porque quer que você mate? — Ela disse que o Movimento está se desintegrando e que você não é líder que precisamos em tempos de guerra. Quer que eu assuma o comando. Jordan assentiu. Parecia calmo e pensativo. — Entendo — disse. Então ele olhou para Kyle. — Você trouxe uma arma ou ela quer que me mate com suas próprias mãos? Não havia raiva ou sarcasmo na voz de Jordan. Sua estranha reação calma horrorizou Kyle e fez Cassie dar um sorrisinho maléfico. Kyle esticou a mão atrás de si e tirou a pistola. — Trouxe isso — disse ele, mostrando-a para Jordan. — Bom. Pelo menos será rápido. — Ele parou de andar, encarou Kyle e deixou os braços caírem ao lado do corpo. — Estou pronto. — Bem, eu não estou — disse Kyle. Com um movimento de seu polegar, soltou a trava da munição, que caiu da pistola e rolou pelo chão. Ele manteve a arma longe de Jordan enquanto colocava a trava de volta e o último cartucho caía. Então arremessou o revólver descarregado pela janela atrás do messias, que caiu em um monte de vidros quebrados no jardim abaixo. Cassie olhava para ele. — Isso foi burrice de sua parte, Kyle. Jordan olhou pela janela de vidro quebrado, então para Kyle novamente enquanto perguntava:
— Por que você fez isso? O jovem entendeu a reação de Cassie, mas a de Jordan o surpreendeu. — O que está dizendo? Quer mesmo que eu atire em você? — Se é isso que Cassie pediu para você fazer, então deve haver uma razão — respondeu Jordan. — Ela nunca se enganou antes. — Escute ele, Kyle — disse Cassie com um sorrisinho presunçoso. — Para tudo há uma primeira vez — retrucou Kyle. — Aquele navio que afundou, o ataque a Harbor Island… Foi Cassie que me mandou fazer essas coisas. Ela deu um soco em seu estômago. Ele inclinou-se, incapaz de inalar o ar por alguns segundos. Enquanto o rapaz esforçava-se para ficar ereto, Cassie disse: — Cale a boca e faça o que eu mando, Kyle. Tem uma faca na cozinha, na gaveta ao lado do fogão. — Agora mesmo ela está me dizendo onde encontrar uma faca — disse ele. — Às vezes, ela me usa como fantoche. Ela fala, mas as palavras saem da minha boca. Os pés dela acertaram em cheio a parte de trás do joelho dele, e ela o empurrou para frente. Ele caiu de joelhos em frente à Jordan. — Você é fraco — disse Cassie, andando ao seu redor como um tubarão. — Você me dá náuseas. Jordan disse: — Kyle, se eu precisar morrer para que o Movimento continue, teremos que aceitar isso. — Não — disse Kyle balançando a cabeça. — Acho que ela está mentindo, Jordan. Matar você não tem nada a ver com o Movimento. Chegando um pouco mais perto, Jordan perguntou: — Por que está dizendo isso? — Algo que meu pai me disse. Ele disse que a promicina lhe deu poderes que parecem refletir quem ele é por dentro. Quem ele é de verdade. E eu pensei sobre o poder de outras pessoas. Shawn sempre estava tentando consertar o problema de outras pessoas; e agora ele cura. Heather queria ensinar as pessoas; e agora ela trás à tona seus talentos ocultos. Jordan assentiu, aparentemente entendendo.
— E o que você queria, Kyle? — Eu achei que queria respostas — respondeu. — Mas agora percebo que o que queria era atenção. Queria respeito. — Ele olhou para Cassie. — Mas não deste modo. Ela enlaçou a mão em volta da garganta de Kyle e apertou. — Você precisa ficar quieto agora. Ele tentou tirar a mão dela, mas a moça era mais forte que ele. Cuspindo as palavras, ele disse: — Você tem que detê-la. Jordan colocou-se ao lado de Kyle. Cassie soltou-o e afastou-se um pouco. Jordan perguntou: — O que está pedindo para eu fazer, Kyle? — Quero que tire o meu poder — disse Kyle caindo de quatro, lutando para respirar. — Por favor. Jordan cobriu a boca e suspirou pelo nariz. Levantando a mão, disse: — Não sei, Kyle. A Cassie tem sido uma guia vital para o Movimento. Sem ela… — Me escute — disse Kyle, olhando para cima. — Ela é mais que um pouco doida e não tem boas intenções. Mas o que me assusta é que ela é mais forte que eu. Qualquer dia desses, vai acabar me usando para fazer qualquer coisa que quiser. Eu estou implorando: não deixe que isso aconteça. O pedido pareceu pegar Jordan de surpresa. — Kyle, preciso ter certeza de que você sabe o que está pedindo. Se eu neutralizar seu poder, será para sempre. Você nunca o conseguirá de volta ou algum outro. Conseguirá viver com isso? — Sim — respondeu o jovem. Lembrando-se de quando fora possuído por um agente dos Marcados anos antes, continuou: — Já fui usado uma vez por um maluco na minha cabeça que tentou te assassinar através de mim. Não deixarei que isso aconteça outra vez. — Muito bem — disse Jordan. Ele colocou as mãos em cada lado da cabeça de Kyle. — Não vou mentir: isso vai doer. — Tudo bem. Tem que doer. Do outro lado da sala, Cassie encolheu-se como uma criança com medo e gritou:
— Kyle! Pare! Não faça isso! Podemos fazer um acordo!. Eu vou me comportar! Por favor…! Uma pressão esmagadora envolveu o crânio de Kyle, e todos seus pensamentos ficaram vermelhos. Cassie gritou como um herege sendo queimado na fogueira. Seus gemidos agonizantes deram arrepios em Kyle, que chorava tanto de dor quanto de aflição. Cassie cessou seus gemidos de dor por tempo suficiente para clamar: — Kyle! Por favor! Eu te amo… Ele fechou os olhos e sentiu o exorcismo dilacerante de Jordan através de sua mente, cortando cada traço de Cassie com a sutileza do bisturi de um cirurgião. Seu choro assustador reduziu-se a um soluçar fraco. Enquanto Jordan o soltava, Kyle pensou sentir Cassie às suas costas. Ele virou a cabeça ao mesmo tempo em que a sensação ia desaparecendo… Não havia ninguém ali… Enxugando as lágrimas em seu rosto, ele pôs-se de pé e acenou para Jordan com a cabeça. Então andou a passos vacilantes na direção da porta. Enquanto abria-a, Jordan o chamou: — Você está bem? Kyle virou-se. — Ela se foi. — Não foi isso que perguntei. Ele assentiu de leve. — Eu sei. Saiu e fechou a porta atrás de si. Caminhando pelo corredor, Kyle sentiu a diferença em sua alma: Cassie estava morta; e ele, sozinho.
QUARENTA E OITO TOM SE JOGOU NO sofá de Diana com um suspiro de satisfação. – Grande jantar – disse. – Quando você aprendeu a cozinhar assim? – Eu não sou totalmente inútil na cozinha – ela protestou. – De qualquer forma, rigatoni à Fiorentina é relativamente fácil. É apenas massa, frango, espinafre tenro e fresco, e molho de vodca – segurando uma garrafa quase vazia de Pinotage, ela perguntou: – Mais vinho? – Por favor – respondeu Tom, erguendo seu copo. Ela o encheu com metade do que sobrara, e então entornou o resto do robusto vinho tinto em seu próprio copo longo. Um aroma peculiar de velas ainda exalava dos recémapagados castiçais na mesa da sala de jantar, e a melodia suave do jazz saía das caixas de som ao lado da TV, quando Diana sentou-se na outra ponta do sofá em que Tom estava. Acompanhando o ritmo da música com a cabeça, ele perguntou: – O que é que estamos ouvindo? – Ella Fitzgerald – ela respondeu. Ele sorriu. – Da coleção de Maia? Ela retribuiu o sorriso. – Como você adivinhou? Os dois se recostaram, saboreando o vinho e ouvindo a voz doce e suave de Ella por algum tempo. Em um intervalo entre as canções, Tom suspirou. – Que dia! Eu te falei que Meghan me ligou hoje de manhã? – Não – respondeu Diana. – O que ela disse? Ele revirou os olhos e franziu a testa. – Se o correio dos Estados Unidos ainda fizesse entregas na Terra Prometida, acho que ao invés de telefonar ela teria me mandado um cartão postal. Com sincera compaixão, Diana perguntou:
– Ela te dispensou? – Como se eu fosse um monte de lixo – respondeu Tom. – Ela na verdade tinha uma lista de motivos. Uma lista! Acredita? Diana apoiou o cotovelo no encosto do sofá e deitou a cabeça no próprio ombro. – Qual era o item número um? – Ela tentou fazer com que parecesse um impasse – ele respondeu, olhando para as meias em seus pés. – A Segurança Nacional a avisou das revoltas e ordenou que acabasse com elas, e este provavelmente foi um dos motivos. O vídeo em que eu e você estamos atirando contra os soldados também não a agradou – olhando para Diana, ele continuou. – Mas acho que o que a irritou de verdade foi o fato de eu ter mentido para ela para poder te ajudar – sacudindo a mão num gesto de descaso, ele continuou: – De qualquer forma, acho que não teríamos futuro daqui para frente. Ela está por aí com um mandado de prisão contra mim, enquanto eu estou aqui, brincando de xerife na louca utopia de Jordan. Levantando seu copo, Diana sugeriu: – Me avise se precisar de um assistente de confiança, xerife. – Pode se considerar convocada. Enquanto Tom tomava mais um gole de vinho, Diana disse: – Eu também tenho uma esquisitice para compartilhar com você – ela se arrastou para o meio do sofá, inclinou-se para a mesinha de centro, descansou ali seu copo e abriu a tampa de uma pequena caixa de madeira. Dentro da caixinha forrada de veludo estava uma seringa com promicina, que sua filha lhe dera alguns dias antes. Diante daquela visão, Tom levantou-se e foi se sentar no meio do sofá, ao lado de Diana, observando a caixa. – Maia me entregou isto assim que eu acordei, depois da nossa missão em Yellowstone – disse Diana. – Ela diz que não voltará para casa enquanto eu não tomar esta dose. Quando eu contei que era imune, ela me disse que esta é uma nova fórmula, mais forte. Foi isso que ela te deu? Ele concordou com a cabeça. – Sim, acho que foi. Ela não estava brincando quando falou sobre ser mais potente. Isso me deu habilidade em menos de uma hora – lançando um olhar preocupado para Diana, ele perguntou: – Você não está pensando em tomar isto, está?
– Talvez – ela respondeu, mais defensivamente do que pretendia. – Quer dizer, eu quero que minha filha volte para casa, e se esta for a única maneira… – ela deixou a própria voz desaparecer, uma vez que estava certa de que Tom havia entendido. – Além do mais, você não pode dizer nada. Depois de todo o seu falatório contra a promicina, e de seu discurso sobre escolher o livre arbítrio ao invés da profecia, você injetou a agulha em seu próprio braço – franzindo a testa, fingindo desconfiança, ela apontou para ele e perguntou: – O que eu quero saber é como Maia conseguiu te convencer a tomar isto, se nem seu próprio filho havia conseguido? Por que você confiou mais na visão dela do que na dele? Tom desviou o olhar. Diana imaginou engrenagens girando dentro da cabeça dele, enquanto decidia o que iria responder. Então ele respirou fundo, voltou a cabeça e olhou-a nos olhos. – Eu fiz isto por você – ele respondeu. – Maia disse que se eu não tomasse a dose, teria que ver você morrer – a voz dele tremeu quando acrescentou: – Eu tomei a injeção para não te perder. Um silêncio embaraçoso se fez entre os dois. Olhando nos olhos dele, Diana repentinamente percebeu o quão próximos ela e Tom estavam. Uma sensação carregada de romance, quase magnética, passou por eles. Enquanto se aproximavam vagarosamente, Diana de repente não se sentia mais triste por saber que Maia estava a milhas de distância e que não voltaria para casa aquela noite. Ela ficou esperando que Tom recuasse, mas ele parecia tão envolvido naquele momento quanto ela. Ela piscou os olhos e recuou. Mesmo que eles não fossem mais agentes da NTAC e, portanto, não fossem mais parceiros, um senso de tabu persistia em sua mente, e aquela era uma linha que ela não estava preparada para cruzar… ainda. Levantando-se e dando um passo para trás, ela retirou algumas mechas de cabelos dos olhos e sorriu polidamente para Tom. – Bem – ela disse – está ficando tarde. Ele olhou distraidamente para o relógio e aparentemente foi bem educado em não insistir que ainda não eram nem oito e meia da noite. – Sim, acho que sim – ele respondeu, descansando seu copo de vinho sobre a mesa. – Então, te vejo no Centro amanhã de manhã? – Isso – ele disse. Então levantou-se e a seguiu até a porta, que ela abriu para ele. Os dois se atrapalharam um pouco quando ele passou por ela para sair, e então virou-se de volta. – Boa noite – ele disse, com um sorriso simpático. – Boa – ela respondeu, se inclinando para frente. Eles se cumprimentaram com dois beijinhos no rosto. Ele acenou levemente com a cabeça, e então saiu pelo corredor, em
direção às escadas. Ela começou a fechar a porta, e já havia quase terminado o movimento, quando rendeu-se a um impulso bobo. Silenciosamente, ela abriu novamente uma fresta para espiar Tom. No mesmo instante, Tom diminuiu o passo e olhou para trás, por cima do próprio ombro, com o mesmo olhar de ansiosa consideração que ela lhe devolvia. Invadida por uma alegria súbita, ela sorriu para ele. Ele sorriu de volta, depois se virou e desapareceu pelas escadas abaixo. Diana fechou a porta, virou-se e apoiou as costas nela, com um sorriso bobo no rosto. Ela não fazia ideia do que o dia seguinte iria trazer, mas já sabia duas coisas sobre ele. Seria diferente. E seria interessante.
QUARENTA E NOVE SEUS ROSTOS HAVIAM MUDADO, mas o mundo continuava a mesma coisa. Algo tinha dado errado no plano. Confinados dentro dos corpos de dois irmãos marroquinos de pele escura, Wells e Kuroda espremiam-se por sobre uma mesa em uma lanchonete movimentada de Casablanca. Na fachada do lado de fora, a forte luz do sol da tarde cozinhava a rua empoeirada. Dentro do estabelecimento escuro, o ar estava abafado e impregnado com ao fumaça cheirando a fruta que saíam de cachimbos d’água. Todas as outras pessoas pareciam, de um modo ou de outro, com os novos hospedeiros dos agentes Marcados: pele e cabelos escuros e trajando vestes de deserto cujo estilo continuara o mesmo por centenas de anos. Beliscando a comida em grande prato de metal entre eles, Wells entortou o nariz para o alimento. — Eu seria capaz de matar por um hambúrguer de bacon agora — disse. — Foi você que insistiu pra gente parecer com os nativos — retrucou Kuroda. Wells bufou. — Como de fizesse diferença agora. O Jakes se foi, o plano já era, e Collier está mais poderoso que nunca. — Ele lançou um olhar cansado para o resto do local, certificando-se de que nenhum outro cidadão os estava ouvindo. Ninguém dava a menor atenção. — Da próxima vez iremos direto ao Jordan. — E quem disse que vai ter próxima vez? — retrucou Kuroda. Não temos nada, Wells. Todo nosso dinheiro se foi na guerra. E agora que a linha do tempo está toda bagunçada não tem como saber o que acontece em seguida. Tudo aquilo que você disse que ia acontecer? Já era. O futuro que a gente conhecia já era. Franzindo a sobrancelha de raiva, Wells resmungou: — Não quero saber. Não vou ficar parado e deixar Collier ganhar. — Ele pegou a mangueira de seu cachimbo d’água e levou o bocal até os lábios. — Um plano novo vai aparecer com o tempo — disse. Então inalou uma lufada de fumaça doce e fresca. Ele curtia o som de borbulho que vinha do cano enquanto fumava. Depois de exalar tudo, falou: — Felizmente, tempo é uma coisa que temos em abundância. Kuroda levantou o bocal do seu cachimbo. — É a única coisa que temos em abundância. A mangueira do cachimbo de Wells tremulou e escapou de sua mão. O mesmo aconteceu com
o de Kuroda. As mangueiras ondularam hipnoticamente, dançando entre os homens com a graça mortal de uma serpente. Então deram o bote para frente e enrolaram-se nos pescoços de Wells e Kuroda, apertando-se perigosamente. Ao redor deles, os clientes na lanchonete levantaram-se de suas almofadas gritando “Djinn! Djinn¹!”. Em poucos segundos, o lugar estava vazio. Pratos de comida estavam ao chão e virados de cabeça para baixo, seus conteúdos esparramados sobre as almofadas de cetim. Cachimbos d’água jogados formavam poças no chão sujo. Só sobraram os dois agentes marcados no local, contorcendo-se no chão enquanto as mangueiras enforcavam-nos. Mesmo quando sua visão começou a falhar e perder o foco, Wells viu duas figuras metidas em vestes de deserto entrarem na lanchonete. Os recém-chegados viraram duas silhuetas devido à claridade do dia quando se aproximaram e avultaram-se por sobre Wells e Kuroda. O mais alto perguntou ao outro: — Tem certeza que são eles? O companheiro respondeu: — Tenho. São os dois últimos. A mangueira ao redor do pescoço de Wells apertou-se mais do que ele acreditava possível. Ele sentiu a traquéia quebrando-se e a vértebra cervical esmagando-se enquanto tudo escurecia. No seus últimos momentos, Wells sentiu o gosto da derrota. O futuro pelo qual ele lutara estava perdido. O mundo pertencia a Jordan Collier. — Tem certeza que são eles? — perguntou Richard Tyler. — Tenho — disse Gary Navarro, olhando os rostos dos Marcados que se contorciam sob seus pés. — São os dois últimos. Wells e Kuroda nunca suspeitaram que Gary tinha descoberto tudo sobre seus disfarces através da mente de seu cúmplice, Jakes, antes de sua morte. Desde que haviam chegado em Tóquio, operários leais a Collier estavam esperando por eles. Cada passo que eles deram desde então estava sendo observado. Nenhum deles deixara de ser vigiado por um momento sequer. Os barulhos de estalos dos pescoços dos agentes fizeram Gary recuar. Apesar de tudo por que passara na Terra Prometida, testemunhar um assassinato em primeira mão ainda deixavao enjoado.
— Acho que você deveria esperar lá fora — disse Richard ao perceber o desconforto de Gary. Mentindo, envergonhado, ele respondeu: — Estou bem. — Virando a cabeça para não olhar os agentes Marcados, perguntou a Richard: — Como o Jordan conseguiu tirá-lo do seu esconderijo para isso? — Você não consegue ler minha mente para ver a resposta? — Consigo — respondeu Gary. — Mas geralmente não faço isso com que está do meu lado. — Eu não estou do lado de ninguém — rebateu Richard. — Então por que está aqui? Sons agonizantes – de algo molhado sendo esmagado e o sibilar de gases e líquidos – vindos dos corpos dos Marcados disseram a Gary que ele fizeram bem ao desviar o olhar. Ele não queria ver o que estava acontecendo, mas seus ouvidos diziam-lhe mais do que queria saber. Olhando sem compaixão para o dano que causava com a telecinese, Richard disse: — Só estou terminando o que comecei. Dando um passo a frente, Richard tirou de suas vestes um frasco preenchido com um pó metálico. Ele removeu a tampa de borracha do recipiente e despejou o conteúdo nos corpos mortos. Incapaz de segurar sua grande curiosidade, Gary virou-se e observou o pó caindo e pousando sobre os rostos grotescamente deformados doas agentes. A substância parecia ser absorvida pela carne dos mortos. Momentos depois, uma luz fluorescente tomou seus olhos, e um fogo azul engolfou suas cabeças e espinhas. O nanopatógeno radioativo feito pelo doutor Kevin Burkhoff fez efeito rápido nos nanites dos Marcados, aniquilando para sempre suas identidades sintéticas. Como brinde, no fim, os corpos de seus hospedeiros queimaram numa lufada de cinzas. Então o brilho diminuiu, e tudo o que sobrou foi a fumaça grossa de gordura humana, o odor de queimado de carne chamuscada e o calor norte-africano do meio-dia. Gary acionou um pequeno dispositivo de comunicação implantado em sua orelha. Produzida pelo gênio devido à promicina Dalton Gibbs, a invenção permitia aos membros do movimento comunicarem-se de qualquer lugar sem que suas conversas fossem rastreadas ou interceptadas. Gary não sabia como isso funcionava, e também fora advertido de que não precisava saber. Ele mexeu no transmissor.
— Jordan, é o Gary. — Prossiga. — Missão cumprida. Os dois últimos marcados estão mortos. — Ótimo. Volte para casa e diga ao Richard que eu agradeço. Virando-se para transmitir a gratidão de Jordan, Gary viu que Richard se fora, já havia desaparecido entre a multidão do lado de fora da lanchonete. — Direi — respondeu Gary. — Te vejo quando voltar. — Ele desligou o aparelho e saiu da lanchonete pela saída na cozinha do fundo. Enquanto se misturava à multidão agitada na rua, ele lembrou-se do último pensamento de um dos homens que ajudara a matar: O mundo pertence à Jordan Collier. Ele quase teve pena dos agentes Marcados mortos, porque agora via que eles nunca entenderam o que era a promicina. Eles não enxergavam sua premissa. O mundo não pertencia a Jordan Collier. Graças à promicina, o mundo pertencia a todos. ¹ é uma espécie de espírito que rege o destino de alguém ou de um lugar.
CINQUENTA TOM ACORDOU na manhã mais clara e brilhante que já vira em toda a sua vida. Seus olhos levaram alguns segundos para se adaptar à claridade da consciência, após sair das sombrias profundezas do sono. Outras sensações retornaram primeiro. A dureza da superfície sob suas costas. Odores de pinho e amônia. Fricção de álcool com um toque de limão. Um arrepio espetou a pele de seus braços e pernas desnudos. Ele não estava em sua própria cama, nem em sua casa. Entrando imediatamente em estado de alerta total, ele se sentou e olhou para os lados, observando ao redor: uma sala circular com superfície de prisco branco e cromo cintilante. As altas paredes eram dominadas por janelas, através das quais apareciam paisagens exuberantes e paradisíacas de colinas, florestas e rios de águas brilhantes. Três níveis de estações de trabalho esparsamente posicionadas o circundavam. Homens e mulheres imaculadamente bem arrumados em roupas e sapatos brancos estavam sentados, encarando Tom, enquanto interagiam com displays projetados holograficamente. O murmúrio baixo de conversas ressoava pela câmara hemisférica. Acima de Tom, um domo transparente mostrava um céu límpido e tão perfeitamente azul que o fez sentir como se nunca tivesse visto o firmamento antes daquele momento. - Bom – disse um homem. – Você acordou. Dando meia-volta, Tom se viu frente a um homem de meia-idade, de cabelos castanhos curtos e grisalhos, magricelo e de um olhar enervante, que Tom rapidamente percebeu ser devido ao fato de suas íris serem tão negras quanto suas pupilas. Como as outras pessoas que trabalhavam na sala, ele vestia um longo jaleco branco de laboratório e calças brancas largas, que pareciam feitas de algodão, e sapatos brancos que agora Tom percebera serem sapatilhas de lona. Tentando não parecer tão assustado quanto estava, Tom disse: - Estou no futuro. - Correto – respondeu o cientista. Tom deu uma olhada na luminosidade matinal. - Parece diferente do que eu me lembrava. - Naturalmente.
Descendo da mesa metálica de cirurgia, Tom perguntou: - O que é isto? Tem a ver com os Marcados? - De maneira nenhuma – respondeu o cientista. – A ameaça agora está completamente neutralizada. - De nada – olhando para cima e em volta, enquanto esfregava os braços nus para aquecê-los, Tom continuou. – Então, qual é o problema? Eu fiz tudo o que você me pediu para fazer. Isabelle está morta, os Marcados se foram, e a promicina se espalhou pelo globo – indicando com a cabeça o mundo verdejante lá fora, ele acrescentou: – Até o futuro parece mais brilhante. Então, o que diabos eu estou fazendo aqui? O cientista adotou uma expressão grave e cruzou os braços atrás das costas. - Tom, havia uma razão pela qual nós nunca havíamos dado promicina a você durante as visitas anteriores ao futuro. Mesmo quando nós o mandamos de volta para confrontar Isabelle, com todos os poderes dela, nós não injetamos a droga em você. Não imagina o porquê disto? O medo jorrou ácido no estômago de Tom. - Jordan sempre disse que jamais forçaria alguém a tomar promicina – disse Tom. - Ele não, mas nós obviamente o fizemos – disse o cientista. – Mas não no seu caso. Nós achamos que havia entendido. Mas então você foi e tomou a dose assim mesmo. Tom sentiu-se como se estivesse sendo levado a julgamento por salvar o mundo. - Mas Kyle, meu filho, ele… Ele disse que a profecia no Livro Branco… - Propaganda inimiga – disparou o cientista. – As mentiras foram disfarçadas de verdade o suficiente para parecerem plausíveis – o cientista deu um passo à frente e agarrou a camiseta de Tom. – Não importa o que aquele livro dizia, você nunca deveria ter se tornado promicinapositivo, Tom. Nunca. Empurrando o cientista, Tom agitou os braços no limpo e ensolarado futuro e protestou: - OK, eu tomei promicina! Se eu não tivesse tomado, o mundo seria destruído. Mas tudo parece bem para mim, então que diferença isto faz? Havia medo nos olhos do cientista quando ele respondeu: - Provavelmente toda, Tom… Toda. –––––––––––––––––––––––––––––––––––– Aqui termina a Primeira Saga dos 4400.
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