Table of Contents Teologia e outros saberes Apresentação da coleção Introdução Considerações iniciais: o lugar da teologia na universidade 1. A universidade como associação do saber a) A expansão do ensino superior e a universidade confessional b) A universidade e a sociedade da informação info rmação c) Sujeitos da própria formação 2. A teologia na história da universidade a) A universidade produz teologia b) A consolidação da teologia escolástica c) A retomada do diálogo 3. Tarefas da teologia na universidade a) A crítica à teologia b) A crítica teológica PARTE I – I – Rupturas Rupturas e desafios A estranha teologia 1. A estranheza sociocultural 2. A estranheza político-religiosa 3. A estranheza epistemológica a) As ciências modernas b) A ciência e a teologia A teologia e os desafios do futuro 1. Os projetos da modernidade: em busca do futuro a) Os projetos políticos b) As ciências modernas 2. A crise da civilização atual a) O bem-estar e o mal-estar b) O presente e o futuro 3. O sentido do presente e do futuro a) A religião e suas promessas b) A teologia formula a experiência transcendente PARTE II – II – Razões Razões e sedimentações O conhecimento religioso 1. O conhecimento religioso em suas origens e processos a) O conhecimento religioso como dado social b) A consciência comum, concomitância cognitiva c) O processo de institucionalização do conhecimento religioso
A vida tribal A vida urbana O tempo axial A racionalização religiosa 2. A religião como forma de organização do mundo a) Compõe uma visão de realidade b) Normatiza a vida social e individual c) Produz finalidades 3. A fé inerente ao ser humano a) A fé antropológica b) A fé na sociedade moderna c) A fé como princípio do conhecimento O conhecimento teológico 1. Teologia: conhecer e saber a) O âmbito da experiência b) O âmbito da fé c) O âmbito do conhecimento d) O âmbito da sabedoria 2. A sabedoria cristã e as origens da teologia a) Quem ama conhece a Deus b) Jesus é a sabedoria de Deus c) Encontros e desencontros 3. O conhecimento teológico na cultura ocidental a) A origem da teologia b) A consolidação de paradigmas teológicos PARTE III – III – Especificidades Especificidades e relações A teologia e as várias formas de pensamento 1. As múltiplas faces da realidade e a pluralidade de pensamentos a) Os sujeitos e suas interpretações b) A história da cultura c) Os paradigmas das ciências d) Nem relativismo, nem dogmatismo 2. O diálogo das disciplinas e a busca da verdade a) As especializações b) A tecnologia e a manipulação da natureza c) O diálogo entre as disciplinas e a busca do todo d) A relatividade dos modelos e a busca da verdade 3. Os diferentes modos de pensar revelam dimensões diferentes da realidade a) As três estruturas de compreensão e suas linguagens O mundo transparente e sua linguagem
O mundo transcendente e sua linguagem O mundo imanente e sua linguagem b) As três estruturas e a linguagem teológica A experiência da transparência como fonte da teologia A busca da formulação lógica O diálogo com as ciências Compreendendo a realidade como valor 1. As ações visando a valores a) Os valores fundamentais e os valores imediatos b) A articulação entre as esferas de valores valor es 2. A relevância dos valores na construção da história humana 3. A tese da neutralidade científica a) A crítica ao positivismo b) As ciências e os valores 4. A teologia como conhecimento valorativo da realidade a) O mundo visto como valor pela fé b) A teologia como ciência feita a partir da fé PARTE IV – IV – Necessidades Necessidades e proposições A justa medida do ser humano e do mundo 1. Grandeza e pequenez a) O bicho homo em busca do sapiens b) A contingência humana c) Sempre contingente e enigmático 2. Senhor do mundo e irmão dos outros a) Ser livre e responsável b) As inversões da ordem primordial primor dial 3. O ser humano se descobre a) O ser humano e suas múltiplas dimensões b) A unidade do ser humano c) A centralidade do ser humano 4. A humanização de Deus a) A encarnação de Deus b) O amor é o humanismo cristão A vida como valor fundamental 1. A condição atual da vida planetária a) A sustentabilidade do planeta b) A convergência epistemológica 2. A vida em si mesma a) A origem da vida b) A matéria e o espírito
3. A vida em diversas molduras 4. Criador e criação a) A criação boa, a criatura humana livre e responsável b) O Criador é criatura c) A vida glorificada 5. Escatologia e ética a) A vida como valor b) A ética da vida Considerações finais Glossário Bibliografia Notas Autor Créditos
João Décio Passos
TEOLOGIA E OUTROS SABERES Uma introdução ao pensamento teológico
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Aos que ensinaram e aprenderam a pensar teologicamente as coisas da ciência e da fé no Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP
Apresentação da coleção coleção A coleção Teologia na Universidade foi Universidade foi concebida para atender um público muito particular: jovens universitários que estão tendo, muito provavelmente, prov avelmente, seu primeiro contato con tato com uma área de conhecimento que talvez nem soubessem da existência: a área de estudos teológicos. Além dos cursos regulares de teologia e de iniciativas mais pastorais assumidas em várias Igrejas ou comunidades religiosas, muitas universidades comunitárias oferecem a todos os seus estudantes uma ou mais disciplinas de caráter ético-teológico, entendendo com isso oferecer ao futuro profissional uma formação integral, adequada ao que se espera de todo cidadão: competência técnica, princípios éticos e uma saudável espiritualidade, independentemente de seu credo religioso. Pensando especialmente nesse público universitário, Paulinas Editora convidou um grupo de docentes com experiência no ensino introdutório de teologia — teologia — em sua maioria, oriundos do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), recentemente assumido pela nova Faculdade de Teologia dessa Universidade — e e conceberam juntos a presente coleção. A proposta que agora vem a público visa produzir estudos que explicitem as relações entre a teologia e as áreas de conhecimento que agregam os cursos de graduação das universidades, a serem realizados pelos docentes das disciplinas teológicas — teológicas — às às vezes chamadas de Introdução de Introdução ao Pensamento Teológico — , contando com a parceria de pesquisadores das áreas em questão (direito, saúde, ciências sociais, comunicação, artes etc.). Diferencial importante dos livros desta coleção é seu caráter interdisciplinar. Entendemos ser indispensável que o diálogo entre a teologia e outras ciências em torno de grandes áreas de conhecimento seja um exercício teológico que vá da teologia e… até a teologia do… Em outros termos, pretendemos ir do diálogo entre as epistemes à construção de parâmetros epistemológicos de teologias específicas. Por isso, foram escolhidos como objetivos da coleção os seguintes: a) Sistematizar conhecimentos acumulados na prática docente de teologia. b) Produzir subsídios para a docência doc ência inculturada nas diversas áreas. c) Promover o intercâmbio entre profissionais de diversas universidades e das diversas unidades destas. d) Aprofundar os estudos teológicos dentro das universidades afirmando e publicizando suas especificidade com o público universitário. e) Divulgar as competências teológicas específicas no diálogo interdisciplinar na universidade. f) Promover intercâmbios entre as várias universidades confessionais, comunitárias e congêneres. Para que tal fosse factível, pensamos em organizar a coleção de forma a possibilitar que cada volume fosse elaborado por um grupo de pesquisadores, a partir de temáticas delimitadas em função das áreas de conhecimento, contando com coordenadores e com escritores do âmbito. Essas temáticas podem ser multiplicadas no decorrer do tempo a fim de contemplar esferas específicas de conhecimento.
saberes exige uma estruturação O intuito de estabelecer o diálogo entre a teologia e outros saberes que contemple os critérios da organicidade, da coerência e da clareza para cada tema produzido. Nesse sentido, decidimos seguir, na medida do possível, a seguinte estruturação para cada volume da coleção (com exceção do volume inaugural, de introdução geral ao pensamento teológico): • Aspecto histórico e epistemológico, epistemológico, que responde pelas distinções e pelo diálogo entre as áreas. • Aspecto teológico, teológico, que busca expor os fundamentos teológicos do tema, relacionando teologia e… e ensaiando uma teologia da… • Aspecto ético, ético, que visa expor as implicações práticas da teologia em termos de aplicação dos conhecimentos na vida social, pessoal e profissional do estudante. estudante. Esperamos, portanto, cobrir uma área de publicações nem sempre suficientemente subsidiada com estudos que coadunem a informação precisa com a acessibilidade didática. É claro que nenhum texto dispensará o trabalho criativo e instigador do docente em sala de aula, mas será, com certeza, um seguro apoio para o sucesso dessa tarefa. Enfim, queremos dedicar este trabalho a todos aqueles docentes que empenharam e aos que seguem empenhando sua vida na difícil arte do ensino teológico para o público mais amplo da academia e das instituições de ensino superior, para além dos muros da confessionalidade. De modo muito especial, temos aqui presentes os docentes do extinto Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, onde essa coleção começou sua gestação. Afonso Maria Ligorio Soares Livre-docente em Teologia pela PUC-SP
Introdução O presente roteiro de estudos de teologia tem um alvo definido, do qual decorre um objeto próprio de reflexão e, por conseguinte, um percurso metodológico. O alvo traz à tona um perfil de sujeito com o qual pretendemos dialogar: estudantes universitários. Pensar previamente no interlocutor constitui não somente uma postura pedagogicamente correta, mas também um conteúdo e uma forma do que se pretende estudar, no caso, uma teologia universitária. Não se trata de negar a unidade epistemológica da teologia de modo a descaracterizar sua especificidade, mas de buscar dentro de suas próprias possibilidades teóricas e metodológicas referências capazes de falar legitimamente ao universo universitário. Se pudermos traçar algumas características desses interlocutores, podemos falar, por um lado, de suas pluralidades de convicções, valores e crenças, e, por outro, da cultura comum em que se encontram inseridos: marcadamente cultura de consumo, resultado acabado da modernidade tardia que traz em suas promessas e dinâmicas concretas a busca de felicidade e o consumo do produto efêmero incessantemente renovado. renovado . O espírito da busca e da satisfação, da certeza e da dúvida, do relativismo e do dogmatismo compõe o paradoxo da cultura atual e parece atingir os diversos aspectos da personalidade humana e, no caso da universidade, as próprias dinâmicas cognitivas e pedagógicas a serem realizadas em sala de aula e em outros espaços de ensino-aprendizagem. Não raro, confundemse, já desde a chegada à universidade, a cultura da informação trazida por cada estudante como experiência comum de seus cotidianos com a construção do conhecimento. De fato, a informação adquirida pelos estudantes demonstra significativo acúmulo quantitativo, tendo em vista as imensas possibilidades de aquisição oferecidas pelas tecnologias de comunicação, donde resulta um interlocutor tecnicamente ágil e com enorme potencial para comunicar, e até mesmo debater, as mais diversas opiniões e posicionamentos. Contudo, a capacidade de refletir crítica e criativamente sobre esses dados e transformá-los em conhecimento mostra-se como a grande tarefa do ensino superior. O desafio de transformar as informações em conhecimento é a meta comum das abordagens que compõem os meios teóricos, metodológicos e técnicos da ação acadêmica na universidade. Do ponto de vista da reflexão teológica, o paradoxo se faz também presente em vários aspectos na vida dos estudantes dentro da sociedade secularizada: a) a convicção de que religião não se discute, embora faça parte do cotidiano individual e social de cada sujeito; b) a cultura do religioso privatizado, fruto maduro da subjetividade moderna, assumido como valor por parte dos mesmos sujeitos, embora desconsiderem que tais valores tenham suas raízes nas configurações religiosas tradicionais; c) o medo da doutrinação religiosa tradicional, misturado a uma adesão de certo modo tranquila a novas doutrinas, marcadamente aquelas esotéricas; d) a reprodução mais ou menos consciente da oposição entre ciência e valores éticos, como aspectos irreconciliáveis; e) as múltiplas formas de relativismo que delegam ao desejo e ao bem-estar individual o protagonismo das opções e decisões. Numa palavra, podemos dizer que, em coerência com a dinâmica da sociedade secularizada, encontramos no mesmo espaço pedagógico e até nas mesmas personalidades a presença da indiferença e dos novos encantamentos religiosos. A teologia se mostra, por sua vez, estranha a esse ambiente, seja por lidar com a fé,
seja por constituir um exercício de razão que busca objetivar o que comumente se apresenta como valor estritamente subjetivo. No aspecto cognitivo-pedagógico, o ponto central parece residir, antes tudo, no desconhecimento da própria teologia como disciplina acadêmica que se distingue, por definição, da doutrina e da catequese. A identificação entre doutrina religiosa e teologia, compreensível por razões históricas, sobretudo no caso brasileiro, apresenta-se como barreira a ser superada no estudo da teologia na universidade, tarefa muitas vezes árdua pelo fato de o preconceito sobrepor-se à curiosidade investigativa em relação a uma nova área de conhecimento. O diálogo teológico com o interlocutor universitário não está isento do risco do argumento de autoridade ou de institucionalidade como busca de justificativa do estudo da teologia em áreas distintas de conhecimento: o estudo da teologia seria legítimo e legal em uma universidade confessional. Na verdade, do ponto de vista epistemológico, político, curricular e pedagógico, a teologia só pode ser legítima dentro de qualquer academia se se mostrar teórica e metodologicamente relevante para a compreensão da realidade e para a educação do cidadão e do futuro profissional. Do contrário, reproduzirá a postura equivocadamente instituída de “coisa de Igreja”, sem cidadania epistemológica e política. Parece política. Parece certo que o êxito de tal empreitada passa necessariamente pelo diálogo com as ciências, sem o que a reflexão pode atrair pela originalidade e exotismo, porém sem adesão real no processo de aprendizagem dos estudantes na dinâmica mais ampla do ensino e da pesquisa. status exclusivo de coisa eclesial e conquiste o Nesse sentido, uma teologia que supere o status status de status de coisa pública apresenta-se pública apresenta-se como desafio antes de tudo teórico e metodológico, como: a) a fundamentação do discurso feito a partir da fé, porém sem uma continuidade direta com as doutrinas e com as vivências eclesiais; b) a construção de um discurso teológico capaz de conservar seu específico epistemológico como intellectus fidei, fidei, porém dentro de um sensus um sensus fidei capaz de integrar em seu universo de sentido outros sensi fidei, fidei, eclesiais, individuais e até mesmo secularizados; c) a construção de um discurso que dialogue criticamente com as ciências, de forma a demonstrar seu lugar no conjunto das abordagens realizadas na academia; d) a elaboração de uma linguagem capaz de comunicar com clareza essas intencionalidades e especificidades epistemológicas. Embora estejamos diante de um propósito da idade da própria universidade, a qual, de fato, nasceu juntamente com a teologia, certamente o hiato da modernidade nos separou desses primórdios; legou-nos comportamentos, convicções científicas e até mesmo mesm o instituições legais a serem revistas pela pretensão de legitimidade pública da teologia. E provavelmente não haverá outro espaço a não ser o da universidade para a construção de tal projeto. Quanto à referência eclesial do discurso teológico, estamos diante de um dado inegável, porém não exclusivo, da teologia. Toda teologia vincula-se a uma tradição e dela recebe seu qualificativo e até mesmo sua marca confessional. Contudo, dois aspectos legitimam seu status seu status de ciência na universidade. Primeiro, seu estatuto teórico e metodológico que transcende a mera reprodução da doutrina e responde pelas exigências da fundamentação e da sistematização das ciências, de forma a configurar uma pluralidade de abordagens e métodos efetivados no diálogo estreito com outras ciências. Em segundo lugar, há que afirmar sua analogia com outros conhecimentos que se referenciam por corporações externas à universidade como o direito em relação ao sistema jurídico e à Ordem dos Advogados, Adv ogados, a medicina em relação aos Conselhos de Medicina e outros. O fato de uma corporação externa zelar pela qualidade — ortodoxia? — de seus futuros
profissionais não torna uma ciência menos ciência do que outras. A autonomia universitária constitui o parâmetro que deverá garantir uma influência controlada das corporações externas na corporação acadêmica constitutiva da instituição universitária. O roteiro que apresentamos quer ser, nesse sentido, um esforço de construção de um discurso teológico que se mostre legítimo e interessante para os estudantes universitários, buscando manter a especificidade do discurso teológico. Não se trata de um trabalho simples. De fato, as tentações de simplificar o diálogo podem desviar o discurso para outros territórios epistemológicos, como o da filosofia, o das ciências da religião e até mesmo de uma espécie de pedagogia da educação integral. O presente estudo está estruturado em quatro partes fundamentais, precedidas de uma introdução didática ao estudo e concluídas com resumo que busca retomar as questões centrais estudadas e lançar os desafios delas decorrentes. A primeira parte pretende parte pretende apresentar uma visão geral do contexto atual em que a teologia se insere: as rupturas e os desafios advindos dos tempos modernos. Expõe em um primeiro item os incômodos da teologia na sociedade atual e em um segundo os desafios do futuro trazidos pela mesma sociedade. A segunda parte foca parte foca as razões da teologia como um conhecimento sedimentado no conjunto dos demais conhecimentos. Apresenta as especificidades do conhecimento teológico a partir de seu ambiente original (a tradição judaico-cristã) e suas possibilidades de diálogo com a cultura atual. A terceira parte é parte é o aprofundamento desse anterior; foca primeiramente a especificidade da linguagem teológica como linguagem fundamentalmente simbólica e sugere, em seguida, uma compreensão da teologia como conhecimento valorativo da realidade. Conhecer a partir da fé significa um jogo dialético que envolve valores prévios (afirmações a priori, priori, aderidas como verdades de fé) e investigação racional (afirmações feitas a posteriori, posteriori, após exame racional) como duas direções do mesmo ato de conhecimento. A quarta quar ta parte oferece parte oferece um exercício concreto de reflexão teológica, tendo como objeto o ser humano e a vida. O ser humano e a vida, situados em moldura teológica criacional, são apresentados como referências epistemológicas e éticas para o diálogo teórico com outros conhecimentos e como parâmetros práticos das construções históricas urgentes para o futuro do planeta. Por fim, o glossário glossário colocado no final do trabalho pretende oferecer definições sobre os conceitos fundamentais da reflexão. A intencionalidade fundamental das reflexões é apresentar a especificidade e relevância da teologia no contexto da formação superior, o que faz de modo não linear. Em cada uma das partes essa questão é recorrente, sendo retomada em várias óticas e linguagens a partir de diferentes eixos: histórico, epistemológico, filosófico-antropológico e propriamente teológico. A busca de uma teologia universitária quer afirmá-la e, de certo modo, construí-la como uma abordagem valorativa sobre a realidade, modo de compreender a realidade que afirma o que a realidade é e é e o que deve ser . A fé fornece referências sobre o dever ser do do real em diálogo com os resultados do conhecimento científico que busca dizer o que são os objetos diversos sobre os quais se estruturam as áreas de conhecimentos, bem como os currículos. Para tanto, o conceito clássico de teologia nos termos formulados por Santo Tomás permanece como adequado e rico: a doutrina sagrada trata de Deus e das coisas enquanto se referem a Deus. Deus.1 Nessa direção, a
perspectiva teológica pode p ode ser aplicada sobre s obre qualquer aspecto ou parte da realidade re alidade e construir sobre esses um discurso próprio, um determinado modo de pensá-los na ótica de Deus, ou sub ou sub specie fidei. fidei. No caso da universidade, trata-se de um olhar que poderá discorrer tanto sobre as questões de fundo referentes à cultura científica e a seus objetos de estudo, quanto aos próprios objetos com suas especificidades e lógicas particulares. Com efeito, a teologia entendida como determinada perspectiva poderá dialogar com os processos e os resultados das ciências, contribuindo com a elucidação dos mais diversos divers os objetos dos quais se ocupam o ensino e a pesquisa no seio da universidade. De fato, desse empreendimento podem podem resultar “teologias” diversas: da ciência, da arte, do direito, da saúde etc. Talvez, seja o modo mais concreto e atual de continuar o ideal e a busca original que fundou e caracterizou a teologia na universidade nascente: a articulação entre a fé e a razão. As expressões atuais da razão científica, assim como as expressões atuais da fé, podem produzir novos resultados que contribuam com a busca permanente da verdade, ideal que rege tanto uma concepção escatológica de história quanto a concepção epistemológica que vê os modelos interpretativos como relativos. relativos.2 O presente roteiro pretende focar as questões de fundo da relação entre teologia e ciência: a problemática do conhecimento, da sociedade atual, do ser humano e da vida planetária. Em diálogo com outras abordagens, busca apresentar a teologia com suas particularidades epistemológicas, assim como sua visão sobre a vida como um todo, tendo em seu centro o ser humano. Não se trata, certamente, de um estudo clássico de introdução à teologia que fala a interlocutores de um mesmo senso de fé, mas de uma reflexão que exprime por tessituras verbais capazes de dialogar com os estudantes universitários, do ponto de vista das ciências (interdisciplinaridade), da cultura (interculturalidade) e das religiões (diálogo inter-religioso). Nesse sentido, a identidade do discurso teológico aparece precisamente no processo do diálogo que vai sendo construído: como intencionalidade prévia ou implícita nas abordagens, como linguagem que vai emergindo no cruzamento com outras, como delimitação que busca abarcar, em um território comum de natureza teológica, vários discursos, e, por fim, como busca transdisciplinar de uma convergência ética: valores capazes de estabelecer metas comuns para a vida humana em seu estágio atual de relação planetária. A passagem dos conhecimentos ao saber constitui o grande esforço da teologia, na medida em que busca no diálogo com as ciências e com os contextos culturais apresentar o sentido profundo da realidade: “Em toda toda parte o homem descobre a presença de um apelo ao absoluto e ao transcendente, lá se abre uma fresta para a dimensão metafísica do real: na verdade, na beleza, nos valores morais, na pessoa do outro, no ser, em Deus”. Deus”.3
Considerações iniciais: iniciais: o lugar da teologia na universidade A universidade nasceu como associação livre dedicada ao saber, no conjunto de outras universitates. Ela agregou estudantes de associações que foram organizadas no século XIII: as universitates. várias procedências socioculturais, na busca de autonomia de investigação e de aquisição de conhecimento. Seu contexto social são as cidades livres emergentes, e sua regra de organização a participação de todos os sujeitos que compunham a corporação. As primeiras universidades lançaram os germes da livre investigação e construíram o edifício metodológico e político das academias atuais. Participaram também dos primeiros ensaios da autonomia moderna. É verdade que o sujeito autônomo para pensar e agir constituiu o grande ideal e, ao mesmo tempo, a grande conquista dos tempos modernos. Contudo, a universidade antecedeu no ideal e na prática, mesmo que em escala pequena, esta realidade que foi sendo concretizada na sociedade moderna em diversas frentes e formatos. A educação do sujeito autônomo para ser, pensar e agir permanece como o desafio e o ideal da universidade atual. A teologia, por sua vez, sustenta esse valor como algo essencial à vida humana e, para tanto, pretende contribuir com a educação do ser humano em todas as suas dimensões e múltiplas relações. A vida universitária é um percurso de aprendizado que solicita força de vontade, disciplina e treinamento permanentes dos estudantes que dela fazem parte: os professores e, de modo especial, os alunos. Na universidade confessional, a tarefa de d e educar o ser humano para exercer sua cidadania e profissão com competência, liberdade e responsabilidade é primordial e possui um significado s ignificado teológico. O ser humano é a meta de toda ação pedagógica na longa tradição cristã. Tudo que for autenticamente humano será cristão, da mesma forma que tudo que for cristão deverá ser humano. Nesse contexto, a teologia tem como objetivo último contribuir com a compreensão do significado profundo do ser humano na história. Não se trata de impor uma visão de fé, mas de propor uma interpretação que, a partir das referências da fé, venha a oferecer elementos que, junto com as demais abordagens, ab ordagens, ajudem a compor comp or a visão v isão mais ampla do d o profissional p rofissional que será formado e oferecido à sociedade após os anos de educação superior. Em diálogo com os objetos de estudos e com as próprias ciências, a teologia pode ser crítica e criticada, tem algo a ouvir e algo a dizer. Na verdade, pela sua natureza e dinâmica consegue conversar com os muitos objetos de estudo presentes no ensino, na pesquisa e na extensão, mostrando-se, sobretudo, como um modo de ver a realidade e não primeiramente como mais um assunto específico a ser estudado.
1. A universidade como associação do saber A universidade marca o início de uma nova etapa na vida de seus estudantes. Uma etapa que vai introduzi-los, progressivamente, na dinâmica acadêmica e comunitária na qual serão chamados sempre mais a responder com autonomia e maturidade à vida de estudo. Desde as suas origens, a universidade foi o lugar da autonomia para aprender a pensar e investigar. Ela nasceu como associação livre — Universitas — em torno da causa do saber, agregando para tanto mestres e discípulos. Foi também, desde o início, o lugar da diversidade que atraía professores e,
sobretudo, alunos de vários pontos da Europa medieval, formando comunidades estudantis e cidades universitárias. Essa invenção medieval ainda sobrevive em sua concepção mais original nas instituições universitárias atuais. A instituição universitária participa da história do pensamento ocidental de maneira contraditória. No início, como um canteiro de ideias que elaborou do ponto de vista teórico e metodológico o encontro entre a tradição cristã — cristã — formulada formulada pela matriz platônico-agostiniana — e e os escritos aristotélicos, introduzidos pelos pensadores árabes na Europa a partir do século XII. Depois, como um lugar de cristalização do sistema escolástico, sustentado e reproduzido como pensamento oficial da Igreja Católica. De fato, do ponto de vista do pensamento e das ciências modernas que foram sendo elaborados desde o renascimento, a universidade não constituiu espaço de abrigo e de desenvolvimento das novas ideias e dos novos métodos. Ao contrário, tornou-se uma instituição conservadora e avessa às inovações que eclodiam em todos os âmbitos da vida social, política e cultural. Somente após a constituição e consolidação dos Estados modernos é que será induzida e, em muitos casos, forçada a chamar para si o protagonismo da produção científica e da formação de profissionais para atuarem na sociedade e no Estado modernos. De qualquer forma, até um tempo não muito distante, as instituições de ensino de um modo geral ocupavam uma função quase exclusiva de conservação e divulgação do conhecimento. Suas bibliotecas, seus mestres e seus cursos ofereciam um conhecimento que vinha das gerações passadas na forma de conteúdos a serem reproduzidos às gerações seguintes. A universidade ocupava um lugar de destaque nesse processo, ficando, contudo, reservada a uma elite intelectual e social, apta a receber a formação científica e capaz de financiar os custos diretos e indiretos dos estudos. No caso do Brasil, essa elitização trouxe consigo o agravante da implantação tardia. Foi somente no início da década de 1920 que se implantou a primeira universidade do país no Rio de Janeiro. Até então, algumas poucas instituições de ensino superior isoladas ofereciam formação superior para uma pequena elite. Foi somente a partir da década de 1940 que as universidades públicas começam a se expandir, seguidas de algumas católicas. Em 1945, é criada a PUC do Rio de Janeiro e em 1946 a PUC de São Paulo. Essas instituições nascem com o propósito de educação de uma elite nacional. As públicas diretamente ligadas aos projetos de modernização tecnológica e cultural do Brasil. As católicas preocupadas em implantar uma educação cristã de qualidade que fosse capaz de formar lideranças comprometidas com os princípios cristãos da justiça e da solidariedade, na linha da questão social já já lançada pelo Papa Leão XIII na encíclica Rerum encíclica Rerum Novarum (1891 Novarum (1891 ), ), e da tradição cultural cristã fundada em Santo Tomás de Aquino. De fato, a retomada das fontes tomásicas, impulsionada pelo mesmo Papa com a encíclica Aeterni Patris Patris (1879), adquirira fôlego e sistematização com os pensadores neotomistas, desde o final do século XIX. Essas universidades vão compondo um cenário de ensino superior nacional, cujos princípios e organizações fundavam-se na dupla ideia: formação profissional de qualidade e formação da cidadania. Não se tratava, evidentemente, de uma nova visão; ao contrário, dava-se continuidade à concepção clássica de universidade com suas raízes bem fincadas naquelas instituições medievais.
a ) A expansão do ensino superior e a universidade confessional O ensino superior brasileiro é composto hoje por três segmentos. O ensino público estatal , que tem padecido já há vários anos de uma crise que atinge não só sua sustentabilidade
financeira mas também seu modelo institucional. Não obstante sua expressiva expansão no decorrer da segunda metade do século passado, o ensino público atendeu paradoxalmente a uma população de maior poder aquisitivo, deixando de fora as classes sociais de baixa renda. Reproduziu, portanto, as contradições sociais e nem sempre conseguiu oferecer à sociedade profissionais socialmente comprometidos com a mudança das d as estruturas sociais. O segundo segmento que tem se expandido de modo significativo nos últimos anos é o ensino privado. privado. Trata-se de uma concepção de universidade centrada, quase sempre, na lógica mercadológica do menor investimento com maior rendimento para o aluno e para os proprietários. Os cursos rápidos, os contratos centrados, sobretudo, na hora aula, a metodologia de ensino fundada em um padrão didático comum, o investimento em publicidade e em infraestrutura física caracterizam essas instituições. A figura dos centros universitários, instituída na década de 1990 pelo Ministério da Educação, com a decorrente prerrogativa da autonomia para a criação de cursos superiores, otimizou os investimentos em novos cursos, que puderam, desde então, acompanhar as demandas exigentes do mercado no que se refere à renovação permanente de seus produtos. comunitário situa-se, de certo modo, entre os dois modelos O terceiro segmento denominado comunitário situa-se, anteriores. Funda-se numa tradição clássica de educação que busca articular formação profissional e formação cidadã, ensino, pesquisa e extensão, tradição humanista e inovação científico-tecnológica. No entanto, trata-se de ensino pago que concorre necessariamente com o mercado do ensino superior público e privado. As Universidades Católicas fazem parte desse segmento. Elas misturam em suas bases jurídicas e acadêmicas elementos clássicos e modernos. Buscam oferecer uma educação de qualidade, porém dentro dos parâmetros da sustentabilidade de uma instituição que se mantém com os próprios recursos. O desafio com o qual as universidades confessionais se defrontam é o de manter suas identidades sem entregar-se à lógica do mercado e transformar o ensino em uma mercadoria. Uma autêntica universidade assenta-se sobre referências epistemológicas, valores pedagógicos e modelos administrativos que devem conciliar qualidade acadêmica, efetivada no exercício indissociável do ensino, da pesquisa e da extensão, justiça nas políticas administrativas e função social. Essas atividades-fins buscam sempre os meios adequados à sua realização e não podem ser reduzidos a ofertas mercadológicas.
b ) A universidade e a sociedade da informação Vivemos hoje a sociedade do conhecimento. As instituições de ensino não são mais as únicas que oferecem conhecimento, como no passado. A sociedade moderna se estrutura sobre os resultados tecnológicos — tecnológicos — objetos, objetos, instrumentos e mecanismos — mecanismos — das ciências aplicadas. Sem essa base científica, seriam impensáveis o mundo atual e o seu funcionamento. Estamos nas mãos de peritos, peritos, como bem observa o sociólogo Anthony Giddens. Giddens.4 Mas a sociedade do conhecimento conta cada vez mais com mecanismos midiáticos capazes de informar sobre todos os assuntos com uma agilidade e eficiência sem precedentes, podendo com esses mecanismos oferecer oportunidades de conhecimento. Podemos, em tempo real, estar informados sobre os acontecimentos do mundo, consultar uma biblioteca do outro lado do planeta ou participar de um debate internacional por rede virtual. O volume de informações que invade nosso dia a dia nos “obriga” a apreender acontecimentos, ideias e valores, mesmo que não queiramos. Mas basta acionarmos a Web e
estamos conectados com as informações desejadas nos formatos mais diversos. Pesquisamos um volume de informações quase completo digitando apenas uma palavra-chave em um sistema de pesquisa que se torna uma espécie de consciência atual e remota da Web. Web. A distância entre os códigos de informação e os receptores ficou superada, de forma que os acessos às fontes clássicas das ciências, anteriormente reservadas a certos acervos ou a determinadas elites intelectuais, se tornaram possíveis. Cresce também, em muitas universidades, a construção de campi campi universitários virtuais, que, habilitados legalmente a oferecer ensino a distância e com estratégias metodológicas especiais, capacitam e titulam profissionais. Perante esse quadro, resta perguntar pela função da universidade de um modo geral, mas, sobretudo, pela função das universidades clássicas. É bem verdade que essa pergunta já podia ser feita, tendo em vista os autodidatas ou aqueles profissionais bem-sucedidos em suas profissões, sem nenhuma formação universitária. Se vivemos no mundo do acesso direto àquelas informações antes detidas pelas universidades, por que ingressar em uma delas, frequentar aulas, pesquisar e compor trabalhos e fazer exames e estágios? A universidade não se tornou uma corporação antiga e superada pelas múltiplas mídias e pelas novas tecnologias da informação? Qual será a sua missão dentro dessa conjuntura, enquanto instituição de ensino, pesquisa e extensão? As respostas a essas questões têm um aspecto antigo e um aspecto novo. Desde o seu início, a universidade foi um lugar de ensino-aprendizagem que pretendeu capacitar estudantes a conquistarem autonomia de conhecimento. O percurso acadêmico dos estudantes visava conduzilos a um grau superior de conhecimento que os capacitasse a ensinar como um mestre em artes, teologia, medicina ou direito. Tratava-se de um processo de crescimento intelectual em que a tutoria individualizada, as regras metodológicas e os rituais de concessão de graus exigiam um aprendizado teórico e prático e, portanto, de convivência no seio da associação de saber; mais que aquisições individuais de certos conteúdos, tratava-se de um exercício de pertença à corporação, assimilação de suas regras e interiorização de uma cultura. O aspecto moderno dessa resposta é que nem toda informação é necessariamente conhecimento. A recepção de conteúdos pode ser passiva e até mesmo ingênua. O conhecimento consiste na apropriação consciente das informações e na capacidade de processá-las crítica e criativamente. Portanto, mais que aquisição de conteúdos, o fundamental é o aprender a aprender , ou seja, a vivência de um processo metodológico que habilite o estudante a ser sujeito de sua aprendizagem. A universidade não pode reproduzir a sociedade da informação com mecanismos pedagógicos centrados na transmissão de conteúdos e de técnicas para o exercício da profissão. Deve, antes, formar o sujeito profissional com autonomia de investigação e de processamento das informações recebidas, com capacidade de intervir criativamente na realidade e com responsabilidade social e ética.
c ) Sujeitos da própria formação Educar para a autonomia é o grande desafio não só da universidade mas de todas as etapas da educação. O educador Paulo Freire mostra que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as condições para que na relação de troca entre professor e aluno o conhecimento aconteça. O processo de ensino-aprendizagem é o exercício de construção da autonomia naquele que aprende, de forma a torná-lo um pensador comprometido com a verdade das coisas. Só o espírito
autônomo é capaz de apreender a realidade, de admirar, de duvidar, de questionar e de construir respostas. respostas.5 Formar sujeitos significa adotar uma filosofia e um método capazes de ampliar os horizontes para além dos objetos específicos de seus cursos, privilegiar estratégias de problematização, sobretudo no exercício da pesquisa, superando o ensino reprodutivista, e articular a teoria com a prática como regra r egra metodológica que não somente envolva os laboratórios e os estágios mas que tenha a realidade como origem e fim de toda a educação. Nesse sentido, a formação do profissional como um sujeito autônomo exige formas de articular direta ou indiretamente o ensino, a pesquisa e a extensão. A universidade deverá ter essa articulação como política acadêmica geral e como metodologia de sala de aula. O sujeito universitário se forma à medida que vai adquirindo a capacidade de: • Transitar de sua visão de mundo anterior para as novas visões — teorias teorias e métodos — métodos — com com as quais vai entrando em contato em seu percurso de estudo. • Crescer e aprimorar o espírito investigativo, ou seja, a curiosidade, a dúvida e o questionamento perante os objetos de estudo que lhe são apresentados. • Articular o todo e as partes, a teoria e a prática, o passado e o presente, seu objeto de estudo com outros objetos. • Produzir respostas a partir das referências clássicas recebidas e das situações vivenciadas em seu cotidiano social, profissional e escolar. • Dominar as regras metodológicas e técnicas da investigação, da sistematização e da comunicação científica. • Assumir a responsabilidade profissional como o exercício de competência e de compromisso ético com o avanço da ciência e da sociedade. A aquisição dessas habilidades é resultado de um processo de aprendizado para o qual a vivência na comunidade acadêmica é essencial. A tendência tecnicista do ensino superior atual busca reduzir reduz ir a formação fo rmação profissional profiss ional a um conjunto de fórmulas transmitidas por um professorprofessor padrão que repete receituários comuns e assimiladas por alunos anônimos. Nessa tendência, a rapidez dos cursos coloca o custo-benefício financeiro como premissa que antecede o acadêmico e a educação do cidadão profissional. As habilidades do profissional autônomo exigem uma política acadêmica da universidade no sentido de colocar a educação integral do estudante como princípio, a estratégia de ensinar a aprender como método e a responsabilidade profissional e ética como finalidade. Da parte dos estudantes, o desafio é a própria aquisição dessas habilidades, o que não se concretiza sem esforço e disciplina de estudo. A tarefa do estudante universitário é aprender uma dinâmica que o inclua no centro do processo de ensino — aprendizagem aprendizagem que supere a recepção passiva em sala de aula. Há um fluxograma a ser planejado e adotado de modo que o antes, o durante e o depois da aula proporcione um ciclo virtuoso de aprendizagem aprendiz agem a partir do contato permanente pe rmanente com as questões qu estões estudadas. O filósofo e educador Joaquim Antônio Severino descreve a disciplina da vida de estudos como organização desses três tempos: a aula como momento de participação (exposição de conteúdos, problematização, síntese e determinação de novas tarefas), em casa como revisão e preparação para a aula seguinte (reorganização da matéria, documentação, fixação) e, novamente, a aula como momento de participação, de retomada das questões anteriores. O
momento do estudo pessoal, em casa, é de fundamental importância no fluxograma da aprendizagem autônoma. É quando o estudante vai fixando os conteúdos, construindo seus métodos próprios de sistematização e de investigação, exercitando a dúvida, a curiosidade e a interrogação, ao levantar hipóteses e dominando instrumentos metodológicos. metodológicos.6 Portanto, o resultado da formação universitária, no que diz respeito ao sujeito profissional, envolve, por um lado, as opções acadêmicas da instituição de ensino — ensino — sua sua filosofia, currículos e métodos — métodos — e, e, por outro, as opções do estudante — estudante — vontade, vontade, disponibilidade e disciplina — disciplina — em em dedicar-se ao estudo. Trata-se de um processo interativo de convivência diária com a produção e transmissão do conhecimento que resulta na autonomia e na competência profissional. Para tanto, contribuem os vários sujeitos, as áreas de conhecimento e instrumentos que integram a comunidade acadêmica. O presente estudo, exatamente por tratar-se de um curso introdutório que visa expor e exercitar um modo de pensar a realidade, quer contribuir com essa educação completa do profissional no sentido de uma visão crítica e ampla da realidade. Visa contribuir com a educação de sujeitos que sejam capazes de superar as posturas dogmáticas, a visão parcial da realidade, os pragmatismos e os individualismos e, ao mesmo tempo, facilitar para os mesmos sujeitos o diálogo com as alteridades, a articulação entre os meios tecnológicos e as finalidades éticas e a busca sincera e permanente da verdade. Como qualquer outra disciplina, a teologia se submete aos métodos regulares da aprendizagem. Uma vez que ela toca em questões ligadas à fé, às convicções pessoais e às tradições culturais, todas fortemente arraigadas nas concepções de cada estudante, corre o risco de ser reduzida a um conjunto de opiniões relativas às coisas já definidas como verdades para muitos sujeitos universitários. Desde as suas origens, o objetivo da teologia foi, exatamente, submeter as práticas de fé conservadas e transmitidas pelas tradições religiosas ao juízo da razão. Nesse sentido, as respostas da fé entram em confronto com os questionamentos da razão. O resultado teórico, metodológico, político e cultural desse confronto são inúmeros; escreve, a rigor, uma história de dois mil anos e, segundo muitos, a própria história do Ocidente. Entrar em contato com a teologia é, por um lado, mergulhar nessa longa e complexa tradição e, por outro, selecionar essa mesma tradição para poder, não só compreendê-la, mas também colocá-la em contato crítico e criativo com a realidade atual como um modo próprio de pensá-la de modo radical. É verdade que em matéria de religião muitos afirmam ser especialistas, tendo como fundamento seu próprio sistema de crenças. Contudo, em se tratando de teologia isso nem sempre é verdadeiro. Em sentido amplo, ela é uma ciência a ser estudada e apreendida como qualquer outra, um modo de pensar a realidade a partir de determinados parâmetros que produz resultados teóricos e práticos para a vida do sujeito que estuda, para a dinâmica da comunidade científica e para a sociedade de um modo geral.
2. A teologia na história da universidade A relação entre teologia e universidade tem uma história que, de certo modo, identifica-se com a própria história do pensamento ocidental, cujas raízes mais remotas assentam-se na tradição judaico-cristã e no pensamento grego. Desse encontro nascem a cultura e o pensamento ocidental com suas instituições, com seus processos de transformação histórica e com suas contradições.
O encontro entre o Cristianismo, filho da cultura escrita judaica que pede interpretação, e o Helenismo, que oferece um caminho racional de compreensão da realidade, plasma, progressivamente, a paideia cristã cristã ocidental, para utilizar a expressão de Jaeger, estudioso do 7 pensamento grego. grego. A educação do cidadão cristão passa pela formação da sua inteligência para que conquiste um saber sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre Deus, e possa exercer a cidadania na sociedade-Igreja. Com essa finalidade, o Cristianismo organizou, desde cedo, suas instituições de ensino. A escola de Alexandria parece ser o paradigma mais primordial desse esforço de articular sabedoria articular sabedoria cristã cristã e logos grego. logos grego. Na sequência da cristandade, as escolas tomarão um novo impulso no renascimento carolíngio e reafirmarão o papel fundamental do ensino para a vivência da fé cristã. Essas escolas vão organizar-se nas cidades, junto às catedrais e às vezes junto aos palácios de reis e príncipes. quadrivium: música, astronomia, As sete artes liberais (trivium (trivium:: retórica, lógica e gramática; e quadrivium: aritmética e geometria) vão compor um currículo básico, cuja função será formar o cidadão para sua vida pública e religiosa. A vida político-religiosa pressupõe uma cultura escolar básica oferecida por essas ciências. O estudo da teologia vai adquirir uma centralidade sempre maior dentro desse currículo, na busca de um método para estudar os textos bíblicos. Os mestres procuram categorias que permitam expor o significado da mensagem bíblica. Essa investigação do texto vai evoluir para o método das quaestiones, quaestiones, que significará uma ruptura com o método exegético clássico, o qual tendia a induzir do texto bíblico os seus significados intrínsecos — intrínsecos — os os sentidos literal, alegórico e tropológico — tropológico — rumo rumo a um método extrínseco, o qual parte do texto para as grandes questões qu estões elaboradas elaborad as por abstrações e deduções lógicas. A teologia escolástica se estruturará a partir desse método centrado nas questões. questões.8 Para tanto, se a fé será tomada como um ponto de partida ontológico para a reflexão racional, ra cional, a razão será, na verdade, verda de, o ponto de partida gnoseológico para a compreensão do texto bíblico. A chamada teologia escolástica (teologia escolástica (teologia ensinada nas escolas) nasce nesse ambiente como uma teologia estruturada metodológica e curricularmente, tendo como centro articulador a relação entre fé e razão. Os estudos pioneiros de Anselmo de Cantuária retomam as reflexões especulativas agostinianas e, mediante o uso da lógica filosófica, elabora uma primeira síntese entre fé e razão. Para o pai da escolástica, a fé precede à razão, mas a fé necessita da razão como um elemento elucidador de seu dinamismo. A fé busca o conhecimento — fides — fides quaerens intellectum — intellectum — , e o conhecimento é capaz de chegar a Deus e demonstrá-lo racionalmente.
a ) A universidade produz teologia As universidades foram criadas dentro de um novo contexto sociocultural que se configura na Europa a partir do século XII. O comércio e a vida urbana desenham um novo quadro que desafia as escolas anteriores, ligadas aos mosteiros, às catedrais e, às vezes, aos palácios. Essas escolas já haviam acumulado um capital cultural importante: o latim como uma língua escolar mais ou menos generalizada, um acervo de textos clássicos, um método de estudo de textos bíblicos, já fixado, inclusive, em manuais utilizados no ensino. As universitates compõem universitates compõem uma nova unidade político-social que agrega sujeitos de variadas origens dentro da pluralidade urbana, de forma que os associados se comprometem a cumprir regras comuns que resguardem a liberdade individual e a manutenção da coletividade. Professores e alunos associam-se, pois, nestes moldes, formando agremiações a partir de Paris e Bolonha. A Igreja incentiva as novas corporações de estudo na sequência de suas escolas
doctrina. Mantém sua hegemonia anteriores e também como meio de aprofundamento da sacra da sacra doctrina. junto delas — delas — e e consequentemente junto aos imperadores e reis — reis — na na medida em que concede as licenças — licenças — Licentia Licentia ubique docendi — docendi — através através dos diplomas pontifícios. A teologia, assim como as demais ciências, passa por fase de revigoramento no seio dessas associações leigas e autônomas que começam a se espalhar com muita rapidez pelas cidades europeias. europeias.9 A teologia, entendida como curso superior, nasce junto com a universidade e mistura-se com o seu projeto, do ponto de vista teórico, pedagógico e político. A universidade recebe uma tradição de longa data, que estimula a razão a investigar a realidade em nome da inteligência e em nome da fé. As escolas anteriores fornecem o método de investigação dos conteúdos da fé, e a universidade proporciona um encontro entre estas referências teóricas constituídas, a partir do agostinismo, do dionisismo e das novas referências teóricas e metodológicas extraídas das obras de Aristóteles. Desse encontro, fecundo e dialético, vai nascer uma nova configuração teológica balizada pelo realismo empírico aristotélico que tece afinidades eletivas eletivas com a doutrina da criação e da encarnação. A grande síntese de Tomás de Aquino é o resultado cabal dessa elaboração. Vale observar que, politicamente, a teologia gozou de uma relativa autonomia investigativa dentro das universidades, como uma ciência dentre as demais e como exercício da razão crítica e criativa. Dessa frutífera experiência de produção teológica virão as bases teóricas, metodológicas e curriculares do que hoje compreendemos por teologia enquanto ciência e curso superior.
b ) A consolidação da teologia escolástica Com o tempo, a teologia produzida pelas universitates — escolástica — vai conquistando uma hegemonia na reflexão teológica até ser adotada como o paradigma teológico oficial do magistério da Igreja; torna-se, na verdade, um paradigma fixo que se reproduz sobre si mesmo e que serve como sistema teórico defensivo para a Igreja, na medida em que uma nova racionalidade vai sendo gestada fora das universidades pelos pensadores e cientistas modernos. Portanto, as universidades, após um período de expansão e vigor intelectual, tornam-se centros de conservação e de reprodução de um conhecimento do passado, ligado às autoridades católicas e, portanto, controlado pela Igreja. A chamada racionalidade moderna, curiosamente iniciada dentro das universidades, vai trilhar um caminho paralelo à teologia, esta identificada sempre mais com a Igreja e com o clero e, muitas vezes, aquela estará fora das universidades, sobretudo no caso das ciências. A universidade permanece sendo uma instituição ligada à Igreja e sob seu controle, e só vai modernizar-se, ou seja, tornar-se um ambiente autônomo de ensino e pesquisa das ciências modernas, após a Revolução Francesa, muito embora conserve muito da estrutura medieval, sobretudo na sua pedagogia, rituais acadêmicos e modalidades de títulos concedidos. Na universidade moderna, a teologia vai sendo expulsa pela razão política já conhecida: a separação entre Igreja e Estado. A teologia, sendo coisa de Igreja e servindo apologeticamente a ela, não tem mais lugar dentro do novo contexto epistemológico que se sustenta na ideia da autonomia absoluta da razão em relação à fé, na investigação científica e na formação de profissionais para os serviços do Estado. Es tado. São os casos das universidades u niversidades de Paris e de Coimbra. Naquelas universidades em que as faculdades de teologia continuam existindo, isso ocorre oco rre muito mais por acordos políticos entre Igreja e Estado do que propriamente pela relevância teórica da abordagem teológica no conjunto das demais áreas de conhecimento que compõem o ensino e a pesquisa. Algumas universidades alemãs são os casos típicos. A Igreja, por sua vez, conserva
algumas de suas universidades, misturando nelas elementos antigos e novos. A Universidade Católica de Louvaine é o exemplo emblemático que, não por acaso, servirá de modelo para muitas universidades católicas erigidas posteriormente, inclusive as do Brasil. Outras se afirmam como universidades especializadas em teologia e ciências afins, como ocorreu com as várias universidades romanas. O resultado desse processo é a consolidação de duas racionalidades distintas e distantes que se excluem com anátemas mútuos no decorrer dos tempos modernos: a teologia escolástica que, em nome de Tomás de Aquino, será considerada pela Igreja como sistema perene e as ciências que avançam e se aprofundam nas mais diversas áreas e se ligam cada vez mais às filosofias ateias. As universidades modernas de um modo geral foram constituídas nesse ambiente bipolar; fazer ciência é uma atitude racional que prescinde da fé e que afirma, em muitos casos, um método que ofereça resultados neutros para que sejam seguros.
c ) A retomada do diálogo Após essa longa história de rejeição da racionalidade moderna, a teologia vai, gradativamente, dialogar com as suas conquistas práticas e teóricas. O resgate das fontes originais de Tomás de Aquino, a inserção social dos cristãos nas problemáticas sociais e políticas e o uso das ciências modernas no estudo de questões internas à teologia vão desencadear movimentos de renovação da teologia, sobretudo nas áreas dos estudos bíblicos, da patrística e da liturgia. Estava lançado o germe de uma grande renovação da teologia europeia que viria lançar as bases da renovação proposta pelo Concílio Vaticano II. Esta teologia debruçou-se sobre as grandes questões modernas: a secularização, a liberdade, a interpretação bíblica, a teoria da evolução, a história, a sociedade e a política. Nesse sentido, os objetos, os métodos e os resultados dessa teologia renovada estão em sintonia com a racionalidade universitária centrada, fundamentalmente na ideia da produção e transmissão livre do conhecimento. A busca do diálogo interdisciplinar que pauta hoje a investigação e o ensino resgata a importância da pluralidade e interação das diferentes abordagens visando à compreensão da realidade como um todo. A teologia encontra nessa dinâmica o seu espaço de reafirmação como um olhar específico sobre a totalidade da realidade, olhar apto a contribuir com as visões particularizadas das ciências sobre seus referidos objetos.
3. Tarefas da teologia na universidade As universidades medievais apropriaram-se da tradição teológica anterior dando-lhe um novo vigor e um novo formato, respondendo às condições socioculturais e às novas exigências teóricas e metodológicas do saber. Este sistema teológico formou-se, pois, como a elaboração consciente da racionalidade da fé a partir da inteligibilidade de uma época. De fato, a teologia se refaz e se faz numa dialética com as condições históricas, entre sua endogenia — endogenia — a a conservação do depósito de fé — fé — e e as exogenias sociais, políticas e culturais. A logos, sem o que a teologia pode pesquisa teológica é que garante a autenticidade de seu logos, adormecer no fundamentalismo das origens ou enrijecer-se num sistema doutrinário, como parece acontecer com frequência em certos c ertos grupos ou ambientes eclesiais, quando não selecionar ideologicamente o passado e justificar o presente. A universidade possui, por sua própria índole, condições de apropriar-se objetivamente da tradição teológica para além de interesses
apologéticos e utilitários na busca sincera da verdade e no serviço à sociedade e às próprias confissões religiosas. A relação entre teologia e universidade pode ser vista numa dupla mão, marcada pela crítica mútua e, consequentemente, pela criação do novo, no âmbito teórico e prático. A crítica da teologia, como em qualquer área de conhecimento, ocorre à medida que ela entra em contato com a realidade histórica e com outras abordagens. É a partir dessa dinâmica que todo paradigma de conhecimento pode ser superado e ser renovado. Da parte da teologia, ela poderá operar uma crítica da realidade em diálogo com as demais ciências dentro da universidade, assim como fazer uma crítica epistemológica e ética das próprias ciências.
a ) A crítica à teologia Enquanto lugar de crítica e construção de conhecimento, a universidade pode discernir o saber teológico como: • Crítica do fundamentalismo e dos dogmatismos que pensam a fé a partir de si mesma, fora dos contextos históricos e da temporalidade presente. • Desvelamento das armadilhas ideológicas recorrentes na afirmação e exposição exposição das fontes da teologia pelo processo da falsificação, da seleção e da revisão. • Tomada de consciência da transmissão reprodutivista do saber teológico como um sistema escolar acabado herdado do passado na forma de dogmas intocáveis. • Superação do utilitarismo utilitarismo clerical que prioriza práticas específicas em detrimento da investigação crítica e criativa da teologia e da própria apropriação da tradição teológica. • Produção de uma teologia inserida nos contextos históricos como um sistema consciente de suas funções sociais conservadoras ou transformadoras. • Diálogo construtivo da teologia com as epistemes modernas presentes na universidade na forma do ensino e da pesquisa no sentido de uma constante produção de si mesma e de colaboração crítica. • Criação Criação de uma cultura da pesquisa teológica no quadro comum das políticas acadêmicas logos específico na comunidade universitárias na conquista e comunicação de seu logos científico-acadêmica.
b ) A crítica teológica A teologia, por sua vez, com seu acúmulo milenar de objetos, abordagens e métodos, pode contribuir com a dinâmica interdisciplinar dentro das universidades no ensino, na pesquisa e na extensão nas possíveis frentes: • Crítica dos fundamentalismos atuais, a começar do fundamentalismo religioso presente na universidade, mas também dos fundamentalismos políticos e científicos. • Apresentação de um sistema que sustente uma cosmovisão que supere as fragmentações de sentido e de valores atuais e do dualismo entre visão científica e visão simbólica da realidade. • Crítica do racionalismo cientificista vigente na universidade nos seus formatos positivistas e pragmatistas: conhecimento linear, unidimensional e tecnicista.
• Crítica ético-teológica ético-teológica da sociedade contemporânea nos aspectos econômicos, sociais e culturais. • Fundamentação da abordagem ética e da práxis pedagógica, inerentes às dimensões constitutivas da universidade: ensino, pesquisa e extensão. • Proposição de uma racionalidade capaz de articular mediação científico-tecnológica científico-tecnológica com finalidades éticas, investigação com valor, prática profissional com ética. A relação da teologia com a universidade tem sido de amor e ódio, de vínculo direto e de exclusão mútua. O diálogo entre essas duas instituições medievais que sobreviveram às revoluções modernas, reproduzindo seus antagonismos e incorporando suas inquietações, poderá configurar um momento de síntese precisamente no sentido dialético nas esferas da produção de conhecimento e da cultura de um modo geral. Não se trata de reeditar o grande sistema medieval, superado em todas as suas condições, mas de construir novas vias de diálogo interdisciplinar e de resultados transdisciplinares que ofereçam referências amplas e profundas para a organização da sociedade plural e global.
PARTE I
Rupturas e desafios
A história humana avança em uma dinâmica de continuidades e rupturas. Preservação do passado e construção do presente fornecem os dois grandes fios de sua trama, mesmo naqueles momentos em que tudo parece renovar-se radicalmente e as tradições do passado perdem o vigor e a função. A cultura configura o conjunto de significados que são construídos nesses momentos; compõe o resultado das modificações históricas que, uma vez estabelecidas como valor e regra, se impõem ao conjunto de uma determinada sociedade. Os estudos sobre a cultura humana tendem a descrevê-la e caracterizá-la a partir da ruptura, ou seja, de sua identidade própria que se mostra como distinta da outra anterior ou da outra colateral. Nesse sentido, o pensamento cognoscendi que situa em uma sequência linear evolutiva o moderno construiu um modus cognoscendi progresso da cultura e do pensamento. A humanidade teria evoluído de fases culturais mais elementares para fases mais elaboradas, da obscuridade para a luz, formulam os pensadores iluministas, do mito para a ciência, concluem os positivistas. O passado fica, desse modo, relegado à condição de inferioridade político-cultural, ao qual resta o papel de clássico (fontes da cultura atual) e de tradição (preservação do passado), porém sem influência direta na constituição da cultura presente. É a partir dessa concepção que a própria história foi valorativamente classificada em pré-história e história, e essa última em antiga, medieval, moderna e contemporânea. Nessa concepção, profundamente entranhada no imaginário do tempo ocidental, a ruptura é que nos caracteriza e a velocidade do tempo é que significa progresso. Certamente, podemos detectar na história momentos de rupturas, de modo particular na história ocidental. A chamada era das revoluções demarca as modificações pelas quais o mundo tem passado nos últimos séculos. Passamos, de fato, de uma história lenta para uma história cada vez mais acelerada, das formações sociais de longa duração para as de curta duração. Nesse processo, as mentalidades vão se modificando em dois aspectos: incorporando a dinâmica da mudança e misturando-se com diferentes significados. As configurações culturais isoladas têm perdido suas possibilidades de existir efetivamente, ainda que subsistam, em muitos casos, de maneira sectária ou folclórica. A revolução tecnológica conduziu a história para uma posição inusitada de autorrenovação que direciona a vida em todos os seus aspectos, liquidifica os valores permanentes e caduca as estruturas tradicionais. Nesse quadro, as heranças culturais do passado entram em crise com suas identidades e funções sociais. As elaborações científicas e culturais participam, igualmente, de tal processo como protagonista, ora da conservação, ora da mudança, a depender de sua configuração epistemológica e, sobretudo, de seu potencial tecnológico. A modernidade significou o grande marco de ruptura das mentalidades e das práticas sociais. Ela pode ser entendida como a era das mudanças nas diversas esferas da práxis humana individual e coletiva que vai, progressivamente, reformatando o conjunto da sociedade. É comum ouvirmos a clássica fórmula que sintetiza a ruptura operada pela modernidade: a virada do teocentrismo para o antropocentrismo. Salva da ilusão do corte abrupto da história, essa fórmula revela a dinâmica central da modernidade, mesmo não vindo a constituir configurações geopolíticas e culturais homogêneas em âmbito mundial. A modernidade abriu, de fato, uma nova fase para a história humana, tendo como centro a noção de sujeito autônomo e este, à medida que vai construindo formações sociais concretas, coloca as representações religiosas sob nova moldura epistemológica e sobre novas funções sociais e políticas. O espaço das construções racionais e das formações sociopolíticas dispensa a referência religiosa como sua base constitutiva, como ocorria antes no sistema da cristandade. Vivemos hoje o resultado tardio
dessa secularização, mesmo que a religião permaneça viva no seio da sociedade, fornecendo suas referências de crença para os sujeitos e instituindo suas verdades e normas. O espaço público é cada vez mais regido pelas leis autônomas do mercado e das instituições públicas, e os sujeitos agem do ponto de vista ético, legal e cultural sem necessitar do fundamento religioso legítimo. As instituições de um modo geral se legitimam por sua oportunidade e função racionais para a vida social de uma forma geral, bem como por suas eficiências em cumprirem suas funções particulares. Por sua vez, as instituições de natureza religiosa ocupam um lugar público de certo modo isolado no conjunto da sociedade, como instituições que existem para si mesmas sem espaço e função social ou política legalmente explícita. Do ponto de vista sociocultural, ocorre ainda uma perda de relevância do religioso como elemento formador de consciência e de orientação das práticas sociais dos sujeitos e grupos. É nesse contexto que a teologia se encontra na qualidade de conhecimento instituído como área de saber e como curso superior, e depara-se com os desafios de legitimar-se política e epistemologicamente. Contudo, se as rupturas modernas desinstalaram a teologia de seu lugar histórico como algo do passado, os desafios do futuro, decorrentes dos projetos da própria modernidade, hoje nos assombram e clamam por referências capazes de criar convergências em prol da vida. Na busca do futuro sustentável para a humanidade e para a vida planetária, somam forças todas as formas de conhecimento e as tradições religiosas, não mais como campos isolados de saber, mas sim como fornecedoras de finalidades e mediações que reagreguem, em torno de valores comuns, toda a humanidade.
CAPÍTULO I
A estranha teologia Uma coisa é estranha quando pertence a uma configuração sociocultural desconhecida, situada, portanto, em espaços ou tempos distantes daqueles vivenciados por um determinado grupo humano. Mas pode também tornar-se estranha na medida em que se oculta esotericamente no interior de um determinado grupo social, perdendo sua visibilidade no conjunto maior da sociedade. Pode ainda ser estranho um fato ou coisa que se mostrem sem nexo de causa e efeito para quem os observa. A estranheza da teologia se deve dev e um pouco a cada um desses casos. É, de fato, um tipo de conhecimento que vem do passado e que ainda não encontrou seu lugar dentro das ciências modernas. Por isso mesmo, permaneceu, e de certo modo ainda permanece, reclusa aos espaços confessionais como um conhecimento especializado de domínio de clérigos e religiosos. Por conseguinte, a sociedade de um modo geral não vê nem necessidade, nem nexo nesse tipo de conhecimento, uma vez que “religião não se discute”. Sobretudo para a comunidade científica, a teologia é vista como uma falsa ciência, relegada à condição estrita de religiosidade (coisas de foro íntimo) ou de religião (coisa das Igrejas) e, portanto, sem lugar na n a academia. No caso brasileiro, o fato torna-se ainda mais nítido, uma u ma vez que somente em 1999 a teologia foi reconhecida legalmente como curso superior. A universidade brasileira foi instituída e consolidada sem a presença da teologia, mesmo a Igreja Católica gozando de uma posição social, política e cultural relevante na sociedade brasileira. Contudo, mesmo permanecendo fora desse cenário dos saberes legítimos, a teologia teve, de fato, uma função importante na formação cultural nacional, como referência na formação dos clérigos e, por decorrência, nas expressões religiosas populares, historicamente vigorosas. De fato, por debaixo das expressões religiosas cristãs socialmente reproduzidas pelo povo no decorrer da história, o catolicismo popular de ontem e de hoje, os pentecostalismos de hoje, subsistem compreensões e conceitos teológicos, ainda que não explicitados conscientemente. A teologia é, na verdade, estranha às instituições modernas edificadas sobre o princípio da laicidade, ainda que na intimidade dessas mesmas instituições tenha exercido direta ou indiretamente influências, seja nos acordos firmados entre Igreja e Estado, seja como valores culturais reproduzidos pelas próprias instituições: expressões teológicas inscritas nas Constituições, nos rituais de juramento nos tribunais e até mesmo em cédulas monetárias. Contudo, essa espécie de “teologia inconsciente” subsistente na cultura ocidental constitui um dado que desafia a teologia profissional, elaborada conscientemente como reflexão crítica a partir da fé, com potencial crítico da realidade e com intencionalidade ética. Ocorre ainda que, à medida que a autonomia religiosa conquistou seu espaço político e social, possibilitando sua reprodução e produção individual e a emergência de grupos e movimentos religiosos das mais diversas identidades, a teologia, como forma regrada de conhecimento, foi perdendo sua função, sempre mais relegada como discurso desnecessário e, até mesmo, perigoso à liberdade de construção religiosa que tem sua origem na experiência religiosa de indivíduos e grupos.
1. A estranheza sociocultural A sociedade moderna institui-se sobre a epopeia da autonomia humana. A autonomia mostrou-se em seus múltiplos rostos como ideal, promessa, projeto e realização. A depender de cada época e lugar, um desses aspectos prevaleceu sobre o outro, sendo que, em termos de
realização, colhemos hoje os frutos maduros dos limites e das possibilidades reais de sua concretização. De qualquer modo, desde o Renascimento, passando pela Reforma Protestante e culminando na Revolução Científica, a modernidade fez configurar uma sociedade cada vez mais autônoma em seu funcionamento e sua compreensão do cosmo e da história. Duas estruturas igualmente modernas deram o amparo para a sociedade autônoma: o Estado, que garantiu a liberdade de opções e crenças, o que resultou na sociedade plural; e o mercado, que instaurou uma dinâmica de vida centrada no indivíduo como produtor e consumidor de produtos. A sociedade moderna alcançou em nossos dias dimensões planetárias com o mercado globalizado. A chamada cultura de consumo não deixa dúvidas sobre isso. Nos recônditos mais longínquos, nas ilhas políticas e nas comunidades tradicionais mais fechadas, os impactos diretos ou indiretos desse modo de vida se fazem presentes. O mercado não se explica mais e tão somente como modelo socioeconômico liberal, resultado de opções feitas por uma nação ou por um determinado regime político. Ele não constitui uma realidade macropolítica externa às pessoas, mas, ao contrário, construiu um modo de vida que engloba todos os âmbitos da existência, habitando as consciências individuais, como valor e regra de comportamento. Os modos de produzir e de consumir, de relacionar-se socialmente e de transmitir culturalmente, de crer e de posicionar-se eticamente são cada vez mais condicionados pela regra do custo-benefício: do maior bem-estar com o menor esforço. Com efeito, a cultura do consumo é uma cultura do desejo. O ato de consumir liga-se ao ato de desejar. A conexão entre os dois fecha a roda da vida em um ciclo dinâmico que movimenta o mercado e, ao mesmo tempo, em um ciclo fechado que não conhece a sua realização plena, embora busque incessantemente alcançá-la. A psicologia do consumo é o combustível inesgotável desse movimento. A busca de satisfação dos desejos transformados em necessidade na criação de cada produto novo ou simplesmente da embalagem nova do mesmo produto recria a insatisfação perante a novidade e, ao mesmo tempo, o desejo de possuí-la. O sistema de consumo desdobra-se em ciclos concomitantes, interdependentes e retroalimentadores que amarram a individualidade ao mercado em uma prisão do tempo presente imediato, cuja lei é a obtenção do bem-estar imediato, sem adiamentos futuros e sem esperas utópicas e escatológicas. O ciclo da satisfação-insatisfaçãoda satisfação-insatisfação- satisfação… conecta-se transitivamente no ciclo social desejoconsumo-desejo… que, por sua vez, produz e é produzido pelo ciclo da produção-ofertaconsumo… No sistema do mercado está inserida a busca de felicidade, “f ora da qual não há salvação”. Na verdade, nessa dinâmica tudo que pretenda permanecer expira-se expira-se como antiquado, inútil e infeliz. O antes — antes — a a tradição, os princípios, as instituições — instituições — se se mostra superado e sem depois — as função na busca da felicidade real. O depois — as utopias, as finalidades globais, os valores — valores — mostra-se, por sua vez, inútil como reserva desnecessária para o funcionamento regular da vida. Indivíduo Satisfação-insatisfação- satisfação… Sociedade Desejo-consumo-desejo… Mercado Produção-oferta-consumo… Vivemos nesse sistema fechado, eficiente e ambíguo. A sociedade atual tem mostrado o individualismo exacerbado que a estrutura de alto a baixo. Os produtos oferecem cada vez mais facilidades para o dia a dia das pessoas, com seus resultados mais eficientes, com preços mais
acessíveis e a duração mais curta. É impossível não consumir os produtos de todos os tipos que nos são oferecidos em casa, pelas mídias e os teleshoppings, nas ruas e nos lugares de comércio. O sistema de vida moderno é intrinsecamente consumista, mesmo para aqueles sujeitos que pautam sua vida na mais rigorosa ética e, por conseguinte, na seleção dos produtos ou no consumo austero. Como não consumir energia, automóvel, roupas, alimentos, remédios, eletrodomésticos em uma vida urbana? Estamos todos inseridos dentro de um sistema que se move a partir de uma produção tecnicamente sofisticada, mercadologicamente abundante e politicamente planejada. Não resta nenhum serviço serv iço que não tenha sido transformado em produto comercial: os alimentos e outros gêneros de primeira necessidade há muito tempo já foram feitos mercadorias em incessante renovação, as telefonias são produtos sempre mais diversificados e sofisticados, a educação e a saúde estão cada vez mais capturadas pela lógica da facilitação ao consumidor. Esse sistema fechado inclui e exclui seus parceiros consumidores: aqueles que podem adquirir os produtos são incluídos em seus serviços eficientes, os que não têm acesso a cesso são excluídos ou perversamente incluídos como consumidores de segunda categoria. Trata-se, evidentemente, de um sistema eficiente que atualiza tecnicamente seus produtos com a finalidade de manter e ampliar as suas clientelas. As ciências e as tecnologias modernas garantem a evolução, a renovação e aperfeiçoamento dos produtos e serviços. Os limites de tempo e espaço próprios da contingência humana são a cada dia mais vencidos pela tecnologia. Não há mais distâncias que nos separem no planeta depois do celular e da internet e, a fortiori, fortiori, dos dois juntos. Pelo som e pela imagem, cada indivíduo está mundialmente conectado. A estimativa de vida amplia-se a cada dia com os avanços da medicina. A vida cada vez mais decodificada em seus mecanismos internos — físicos, psíquicos e sociais — pode ser manipulada e satisfeita em suas necessidades e desejos. A autonomia do indivíduo para escolher e decidir sobre si mesmo, sobre suas relações e projetos, está potencializada pela sociedade atual como nunca dantes. É possível montar o mundo ao nosso redor, segundo nosso desejo, a fim de satisfazer nosso bem-estar, dependendo cada vez menos dos limites impostos pela natureza ou pelos controles impostos pela tradição ou pelas regras sociais. O mundo movimenta-se sem cessar nessa dinâmica egocêntrica, aprisionando sempre mais em sua lógica os indivíduos satisfeitos ou ávidos de satisfação. Esses ficam presos em seus próprios desejos, que buscam satisfação ou, se parcialmente satisfeitos, com as sobras do banquete dos que podem comprar o bem-estar pleno e sem limites das ofertas supermodernas. su permodernas. Contudo, a ambiguidade é inerente a esse sistema de satisfação ilimitada do Eu do Eu desejoso. desejoso. Não se trata somente de uma ambiguidade deduzida eticamente, mas de sua própria mecânica dissimuladora e incapaz de cumprir o que promete para todos os indivíduos. Em primeiro lugar vem a lógica do desejo satisfeito. O desejo precisa ser permanentemente transformado em insatisfação, sem o que a roda do consumo não se move. A operação é de dissimulação. Os desejos são transformados em necessidades. Se o consumidor não possuir um determinado produto, estará em situação de escassez e de necessidade não satisfeita. Uma vez possuído o produto, passa a fazer parte integrante da vida como gênero de primeira necessidade, sem o qual se tornaria impossível viver. O vital, o necessário, o complementar e o supérfluo se fundem nas práticas de d e consumo como indispensáveis indisp ensáveis à vida e à felicidade. Em segundo lugar, instaura-se instaur a-se a perversidade do desejo insatisfeito. A dissimulação consiste, agora, em alimentar-se do desejo que pode não ser satisfeito, basta sua imagem e suas migalhas. É o desejo alienado que busca pela imitação satisfazer-se, assim na pobreza como na riqueza, riqueza, mirando naqueles que possuem
efetivamente o produto. As marcas falsas propiciam a imitação dos produtos autênticos, os furtos possibilitam a apropriação do produto inacessível, o desejo se satisfaz, ainda que muitas necessidades básicas permaneçam irrealizadas. Portanto, para os que podem possuir os produtos, os desejos são transformados em necessidades na curva ascendente ilimitada da satisfação e do consumo. Para os que não podem possuir ocorre exatamente o inverso: as necessidades são transformadas em desejos. des ejos. Trata-se Trata -se de de uma inversão que proporciona maior realização no satisfazer o desejo com os produtos de última geração do que no realizar as muitas necessidades básicas, sendo que nesses produtos todos tornam-se tornam-se “iguais”. Consumir os mesmos produtos é ser cidadão. Para tanto, basta a regra da aparência: o ser se identifica sem equívocos com o parecer. Nesse império do desejo, os ricos tornam-se sempre insatisfeitos, após cada satisfação temporária, enquanto os pobres tornam-se satisfeitos, mesmo permanecendo com suas necessidades. Em ambos os casos, o desejo permanece sempre reativado e pronto a buscar sua satisfação nos produtos que fornecem bem-estar. A felicidade apresenta-se como meta inatingível, embora sempre prometida em último grau. grau.10 O resultado paradoxal será não a satisfação mas sim o vazio. O retorno permanente ao vazio é que caracteriza o consumismo com suas promessas e aparências. A fé na regularidade dessa sociedade garante sua solidez e seu funcionamento sistêmico. Sem a confiança em suas estruturas, dinâmicas e sujeitos, a sociedade hipermoderna entraria em falência sistêmica. É a confiança que mantém o consumo dos produtos e serviços em seus ritmos normais de funcionamento, mesmo que o consumidor não tenha nenhum acesso sobre seus mecanismos e causas. Vivemos em uma espécie de máquina mágica que nos oferece seus efeitos eficientes, verdadeiros e belos. Dos pequenos aos grandes serviços, dos produtos do consumo rotineiro às máquinas mais sofisticadas, somos usuários crentes em suas autenticidades e eficiências. Não sabemos da procedência dos alimentos que consumimos e não conhecemos a habilitação dos técnicos que nos servem nas mais diversas funções. A ignorância das causas e dos mecanismos da sociedade acaba sendo a própria condição para que ela funcione regularmente. As sociedades tradicionais viviam sob a possibilidade da falência sistêmica do mundo pela força do poder sobrenatural e conheciam as causas naturais ou artesanais dos produtos e serviços que consumiam: a origem do alimento, da roupa, bem como o agricultor e o artesão produtores dos objetos e serviços. No sistema local, no qual os sujeitos estavam inseridos, a relação causaefeito ocorria naturalmente e dispensava, portanto, a dúvida assim como confiança cega em seu funcionamento. A intervenção nessa normalidade era, contudo, possível mediante a ação mágica e miraculosa pela via religiosa. Na sociedade atual, a relação direta entre causa e efeito foi substituída por uma espécie de magia geral do sistema funcional que impõe seus resultados eficazes e oculta suas causas. Com efeito, a indiferença em relação ao outro torna-se normal dentro da máquina do consumo que satisfaz e faz crer em sua eficácia. A ocupação permanente do indivíduo em satisfazer-se, amparado pela máquina da produção-consumo, instaura a dinâmica do tempo presente: consumir o último produto de existência efêmera. A felicidade, cada vez mais visível aos olhos, agradável ao coração, convincente à razão e acessível às mãos, instaura uma relação unidirecional entre indivíduo-produto como caminho certo de bem-estar, o que se traduz em vínculo direto e imediato entre fins e meios e dispensa outros vínculos que dispersem dessa rota de felicidade. O
que não for satisfação-consumo será algo colateral dispensável: o outro se torna uma exterioridade inútil ao funcionamento do sistema e à busca da felicidade por parte dos indivíduos. A indiferença social é, portanto, um constitutivo do sistema. As condições sociais em que se encontrem os semelhantes não distraem os indivíduos de suas metas de felicidade, a não ser como feiúra que atrapalhe a felicidade. As ações sociais podem até ser úteis para disfarçar a pobreza e torná-la mais bela e higiênica na convivência conviv ência cidadã. Estamos diante de um sistema regido por uma lógica imanente: do desejo que gira em torno de si mesmo, da crença que tem seu início e término no funcionamento da máquina social e da indiferença que exclui o que não contribui com os interesses dos indivíduos. Princípios ou valores anteriores e posteriores a esse ciclo tornam-se, na prática, dispensáveis ou inúteis, ainda que possam ser professados teoricamente como válidos, por razões de tradição ou de socorro nos momentos de exceção. O universo das doutrinas e dos valores religiosos torna-se cada vez mais dispensável nesse ciclo pragmático, a não ser que entre para a sua imanência como um reforço na busca da satisfação. É quando a religião perde seu caráter transcendente e sua força ética e entrega-se à individualidade ávida por prazer. O desejo satisfeito suga na correnteza de sua pulsão a dinâmica da fé. Esvaziada em sua dimensão objetiva, a fé será sempre mais sentida e menos pensada, sempre mais estética e menos ética. A reflexão teológica que envolve as dimensões subjetiva (a adesão voluntária expressa na aposta e na ação) e objetiva (o senso coletivo eclesialmente estruturado) da fé se mostra desnecessária por buscar fundamentos e sistematização para a as experiência religiosas e eclesiais e por parametrar criticamente as mesmas experiências. De fato, na sociedade do “bem“bem-estar com menor esforço”, os esforços de objetivação racional soam como sacrifício dos desejos, labor inconveniente e reflexão tecnicamente inútil. Estamos cada vez mais longe da cultura intelectual que assume a reflexão e o conhecimento como valores bons em si mesmos, de forma que o tecnicismo e o pragmatismo profissional é que acabam ditando as regras e as finalidades da educação. Nessa cultura, a teologia é estranha pelo fato de ser desnecessária a essa lógica.
2. A estranheza político-religiosa Além desse estranhamento pragmático, a teologia encontra-se em um contexto que a relegou, desde a consolidação da sociedade moderna, às esferas das intimidades individual e eclesial. A modernidade nasceu e consolidou-se sobre um projeto centrado no sujeito autônomo das referências tradicionais, emblematicamente das referências religiosas. O filósofo Richard Tarnas sintetiza essa nova posição do sujeito moderno em relação à cultura anterior nos seguintes termos: O Ocidente presenciou a emergência de um ser humano autônomo e dotado de uma consciência de si mesmo — curioso curioso em relação ao mundo, confiante em sua capacidade de discernimento, cético quanto às ortodoxias, rebelde contra a autoridade, responsável por suas crenças e ações, apaixonado pelo passado clássico e ainda mais empenhado em um futuro maior, orgulhoso de sua humanidade, ciente de sua força artística e individualidade criativa, seguro de sua capacidade intelectual para compreender e controlar a Natureza e bem menos dependente de um Deus onipotente. onipotente.11
Essas são as diversas facetas do antropocentrismo moderno. A forma sintética magistralmente descrita tem, contudo, um caráter típico ideal, no sentido de captar um movimento histórico real, porém sem um correlato empírico exato. Tal perfil genérico de homem moderno tem alguns
significados: como ideal assumido pelo movimento da modernidade e, portanto, algo que se implantou gradativamente no tempo e no espaço; como identificação mais concreta e visível na elite protagonista do movimento moderno e, quase sempre, distante do conjunto da população, mormente das esferas populares; como um dado de realidade que se concretiza de modo não abrupto e linear, mas por meio de continuidades, rupturas, avanços e retrocessos; como uma implantação não homogênea, mas sim de modo diferenciado nas diversas esferas da vida cultural como um todo e, por fim, como tendência que mostra hoje seus limites enquanto ideal universal. Contudo, trata-se de um programa que se implanta como cultura hegemônica, processo de racionalização que criou um modo de pensar e organizar a sociedade no Ocidente, ao menos desde o final do século XIX. Vivemos, há muito, uma sociedade estruturada sobre bases racionais — racionais — científicas científicas e tecnológicas — tecnológicas — que que moldam definitivamente a produção econômica e industrial, a organização política e social, os meios de transporte e de comunicação e, mais recentemente, os modos de viver na dinâmica do consumo e das conexões comunicacionais planetárias. Se olharmos esse processo de racionalização, podemos perceber um movimento diverso em suas rupturas com a religião. Há primeiramente um movimento explícito de ruptura, dado na esfera da reflexão, reflexão, da filosofia e da ciência. A centralidade da metafísica e da teologia será, gradativamente, rompida na direção de uma racionalidade imanente e empírica. Em um primeiro momento o deísmo significou uma espécie de negociação entre a tradição medieval e aquela moderna que emergia com vigor: Deus era o criador e o arquiteto que respondia como causa prima da prima da ordem da criação com suas leis imanentes e autônomas. Em seguida, com o avanço das ciências naturais, sobretudo com o evolucionismo de Darwin, a natureza revela sua capacidade de autocomando, seja pelas variações casuais, seja pela seleção natural. A natureza não precisava mais de uma origem e de uma teleologia externas à sua dinâmica de funcionamento, como postulavam as tradições da teologia clássica e do deísmo moderno. A esse movimento racional acompanha um movimento político que vai construindo a ordem secular, independente do sobrenatural. O Estado moderno impõe-se como instituição leiga e capaz de comandar a vida social. A sociedade torna-se sempre mais plural, regida política e culturalmente pela visão secularizada de realidade, sem necessidade das tutelas da Igreja ou das determinações do sobrenatural. No entanto, a religião sobrevive so brevive de maneira muitas vezes intacta, não n ão só como possibilidade legítima dentro do Estado plural que garante a liberdade de expressão, mas também como instituição que estabelece relações de influência com o próprio Estado, por meio de ações diretas (acordos firmados explicitamente entre as hierarquias) ou indiretas (acordos de bastidores entre as autoridades e pressões por meio de autoridades leigas católicas). As Igrejas e as tradições religiosas de um modo geral não só se enfileiram entre aquelas instituições que compõem legitimamente a sociedade moderna, mas também ocupam, de fato, um lugar de destaque dentre elas com um poder político se não de direito, certamente de fato. Não parece ser tão somente uma acomodação das instituições pré-modernas pré-moder nas dentro do Estado moderno, ou mesmo de um pragmatismo do Estado perante um poder político tradicional, mas, antes, de uma instituição que responde por uma dimensão sociocultural que, de fato, permaneceu com toda sua vitalidade e influência no seio da sociedade secularizada. Embora as dinâmicas política e cultural modernas tenham tenh am restringido a função sociopolítica das instituições religiosas, colocando-as numa posição política autocentrada (como algo restrito à sua comunidade interna)
ou numa posição social privatizada (algo restrito às opções individuais), elas continuaram exercendo uma função social importante na vida dos fiéis, seja como referência de orientação moral para cada fiel, seja como meio de organização de sujeitos políticos cristãos. Da parte das Igrejas, essa separação se confirmará nas posturas teóricas (teológicas) e políticas que vão se consolidando. No Catolicismo, a visão de uma Igreja autossuficiente e dona da verdade toma forma e adquire sua máxima expressão no pontificado de Pio IX e no Concílio Vaticano I. As descobertas das ciências modernas serão vistas como redutoras e negadoras da verdade superior cuja fonte é a tradição teológica cristã. No Protestantismo, vai emergir uma corrente que se expandirá no século XX: o fundamentalismo. Para esses, a verdade tem sua fonte única na literalidade do texto bíblico. A leitura literal possibilita chegar à verdade da fé, evitando a intromissão das ciências no momento da interpretação do texto. Outra expressão desse dualismo foi a separação entre a vida da fé (coisa íntima) e a vida social e política (coisa pública). Perante esse quadro de rupturas e de adaptações do fator religioso na sociedade moderna, podemos detectar algumas direções importantes: • A esfera política: após a ruptura oficial entre a religião e as estruturas políticas, instaura-se uma cultura secular que tende a crescer e consolidar-se à medida que o processo de modernização avança, sobretudo com o desenvolvimento científico tecnológico. As instituições modernas funcionam sem fundamentos e finalidades religiosas. • A esfera cultural: as referências religiosas, institucionalizadas ou não, permanecem como um dado tradicional e cultural com significativa relevância individual, social e política. • Da convivência dessas duas esferas esferas podemos deduzir, portanto, algumas dicotomias: uma primeira, que separa a vida pública da vida privada e coloca a religião na vida privada; uma segunda, que separa as instituições modernas da cultura popular; e uma terceira, que separa a religião e a ciência. A religião tende a ter uma função supletiva às ciências: visa explicar ou resolver aquilo que a ciência não explica e nem resolve. • Também é possível detectar algumas estratégias dessas esferas: da parte das instituições, a velha tendência aos acordos e alianças explícitas e veladas, da parte das Igrejas a luta para conquistar espaço político na sociedade e influência moral na vida social. A separação entre o poder público e a Igreja, sendo aquele entendido como uma estrutura fundada no povo e não em Deus, acabou instaurando uma rígida dicotomia entre a religião e a mesma coisa pública de um modo geral. Muito embora a religião tenha permanecido em um lugar legítimo e até mesmo legal no interior do espaço público, ela sobreviveu como uma espécie de mônada política isolada do conjunto mais amplo, ainda que, na prática, tenha construído formas de relacionamento com o Estado, ora nos bastidores políticos, ora em acordos formais e públicos. Certamente, a força política inerente ao religioso, bem como a força consolidada das instituições eclesiais, não permitiram ao Estado moderno dispensar as Igrejas de suas estratégias de construção e manutenção do poder. No entanto, dentre as instituições eclesiais, certamente a teologia foi a mais relegada pelo Estado às funções eclesiais ad intra, intra, permanecendo sem legitimidade e legalidade pública dentro das instituições de conhecimento reguladas pelo Estado. Entretanto, a filosofia pôde diferentemente da teologia ser revista ou, na verdade, recriada pelo pensamento moderno e pôde não somente gozar de prestígio na sociedade moderna como contribuir com a sua própria edificação, fornecendo-lhe novos fundamentos. Os pensadores
humanistas e iluministas cumpriram este papel legitimador da filosofia, muito embora ela tenha permanecido como um tipo de conhecimento não técnico quando a tecnociência adquire maior proeminência e hegemonia no âmbito do Estado moderno. Mesmo sem funções pragmáticas na máquina social moderna, a filosofia sobreviveu como conhecimento importante para pensar a nova era da humanidade e até mesmo para fornecer insumos epistemológicos contra o antigo regime, dominado pela racionalidade metafísica e teológica. A teologia, ao contrário, permaneceu por tempo considerável na era moderna como um conhecimento ultrapassado que resistia aos novos tempos, em nome não só de um tipo de racionalidade como também de um antigo regime político claramente antimoderno. A separação política entre Estado e Igreja contribuiu, sem dúvida, para o confinamento da teologia no interior das Igrejas como uma espécie de propriedade confessional delas, um conjunto de doutrinas que se afinam sobre si mesmas sob as regras de uma formalidade lógica rigorosa, no caso da escolástica católica, ou de um cânone fixo intocável, no caso da teologia protestante. Em ambos os casos, a ideia de coisa eclesial prevaleceu sobre qualquer função pública. O desenvolvimento da teologia dogmática e moral demonstra essa ess a imanência eclesial e o distanciamento da realidade histórica. O mesmo podemos afirmar do fundamentalismo bíblico que prendeu os fiéis nos limites da mensagem bíblica, criando uma imanência hermenêutica fechada no ciclo indivíduo-texto. Foi somente a partir do final do século XIX com o neotomismo, da parte católica, e com as ciências bíblicas, da parte das Igrejas reformadas, que se iniciou uma lenta abertura da reflexão teológica, na direção da história e das ciências. De fato, no decorrer do século XX, a teologia vai estabelecer diálogos cada vez mais fecundos com os objetos e métodos das ciências modernas, possibilitando a superação de seus paradigmas par adigmas clássicos até então hegemônicos.
3. A estranheza epistemológica A estranheza epistemológica da teologia possui aspectos teóricos e práticos. Como reflexão da fé e a partir da fé não poderia sair isenta desse processo de transformação que altera a função de seu objeto, as instituições de seu ensino e o clima de sua produção, no âmbito das instituições modernas. Como já dissemos, embora sobreviva como patrimônio cultural portador de uma tradição milenar dentro de muitas universidades, a teologia será sempre mais identificada com as tradições eclesiais, que a mantêm como conhecimento necessário unicamente à formação de seus clérigos. O fato é que as ciências modernas vão estabelecer, progressivamente, um estatuto epistemológico legítimo que exclui de seu domínio e de suas regras a reflexão teológica. Vinculada a um ordenamento social ultrapassado, a teologia reproduziria, além do mais, uma cosmovisão hostil ao próprio projeto da modernidade como uma espécie de ciência do antigo regime. Também, a hegemonia das ciências modernas na comunidade científico-acadêmica, aliada ao seu vínculo sempre mais sólido à profissionalização e ao mercado de trabalho, contribuirá por colocar a teologia na esfera do conhecimento desnecessário ao funcionamento de um sistema social regido sempre mais e sob todos os aspectos pelas razões econômica e tecnológica.
a ) As ci ências modernas
As bases teóricas da modernidade são normalmente entendidas como opostas às bases teológicas da Idade Média, que articulava os conhecimentos da fé e da razão em um edifício teórico-metodológico bem estruturado, sustentado pela metafísica. Trata-se de oposição verdadeira e que adquire expansão e consistência à medida que o projeto da modernidade implanta-se do ponto de vista político e científico. A ideia de oposição é que vai reger as relações entre a tradição judaico-cristã e a sociedade moderna de um modo geral, seja no aspecto teórico (teologia × ciência), seja no aspecto político (Igreja × Estado). As ciências modernas, bem como a teologia desenvolvida nesse período, trilharão caminhos próprios e autossuficientes na direção da autoafirmação de suas verdades e da exclusão mútua de seus pressupostos, objetos e finalidades. Desenvolvidas sobre si mesmas e sob a lógica da negação mútua, as ciências e a teologia, a razão e a fé, vão conhecer dias de tal exclusão que parecerão bloquear definitivamente qualquer possibilidade de diálogo, criando uma espécie de duas culturas irreconciliáveis: a cultura da fé e a cultura científica. Para ambas, com seus referidos habitats e habitats e sujeitos, impunhase como regra de ofício a negação recíproca. Ser ateu passa a ser um pressuposto do agir cientificamente correto, assim como negar os resultados das ciências uma postura ortodoxa imposta como regra da fé, sem o que se incorreria no risco de heterodoxia e até mesmo de heresia. No âmbito do Cristianismo, dialogar com a modernidade significava estar incluído no movimento suspeito do “modernismo”, ou seja, na adesão às ideias modernas inimigas da fé. De fato, os teólogos que ousaram acolher as teses modernas em suas reflexões sofreram duras sanções por parte de suas hierarquias. Contudo, estamos diante de um quadro nitidamente político, quando as ortodoxias eclesiásticas e científicas ditam as regras de um relacionamento e acabam criando uma cultura intelectual em seus respectivos universos. Não se trata de um movimento imposto, em princípio, pela pura força lógica da razão, pela investigação livre e desinteressada e pela honestidade intelectual. Isso significa que, embora tenha predominado uma duradoura oposição entre a religião e a ciência de um modo geral, o processo foi mais complexo, marcado por rachaduras internas que revelam continuidades por dentro das rupturas, relacionamentos ocultos e explícitos entre os campos opostos e trocas entre os distintos sujeitos. É possível, assim, resgatarmos modelos de relacionamentos entre a ciência e a fé no interior desse movimento de longa duração, sabendo hoje não só dos relacionamentos efetivamente ocorridos, bem como conhecendo o final da história: a emergência das teologias modernas. De fato, a revisão histórica da modernidade, hoje em voga nas mais variadas expressões teóricas e políticas, nos permite revisitar tal oposição de maneira crítica e afirmar sua realidade e suas mistificações: • A modernidade assenta muitas de suas raízes na Idade Média. Noções como as de autonomia, de capacidade da razão e de valorização da natureza foram construídas no seio do pensamento escolástico e nos permitem detectar uma dialética entre continuidades e rupturas em seu processo de desenvolvimento na constituição da modernidade. • As revoluções filosófica (filosofia (filosofia cartesiana) e científica (a cosmologia e a física) mantiveram uma teologia fundante da natureza, uma metafísica natural que permite detectar continuidade com a filosofia da causa primeira da tradição aristotélico-tomista. • O desenvolvimento do pensamento pensamento moderno ocorreu de modo não homogêneo, mas, ao contrário, contando com postulados religiosos, implícitos ou explícitos, às suas teses, sendo o ateísmo um pressuposto nem sempre universal.
• No espírito da ortodoxia moderna, as ciências ocupam o lugar lugar da fé, porém numa posição de similaridade: como dogma redentor da humanidade que conduz à verdade e resolve a incerteza do futuro. • As ciências jamais construíram uma cultura secular homogênea no tempo e no espaço: a religião permaneceu como um dado sociocultural atuante nas culturas ocidentais e, muitas vezes, subjacente às instituições públicas secularizadas. • A modernidade tardia não realizou as promessas de superação do espírito religioso; ao contrário possibilitou, pela força de seu próprio pluralismo, tolerância e individualismo, o resgate, a adaptação e a recriação de fenômenos religiosos das mais diversas estirpes, misturando criativamente o antigo e o novo. Da parte da teologia, o que a história nos conta é precisamente um movimento crescente de aproximação aos paradigmas modernos; um esforço sempre mais insistente em acolher os objetos, os métodos e as teorias elaboradas pela filosofia e pelas ciências modernas. Os estudos bíblicos, iniciados na tradição reformada, nasceram como esforço de rever as interpretações bíblicas a partir das descobertas modernas referentes ref erentes à cosmologia e à biologia e que colocavam em dúvida as narrativas da criação, a visão de milagres e a historicidade de episódios bíblicos. A teologia europeia do século XX e as teologias do terceiro mundo desenvolvidas no século passado construíram uma monumental revisão da teologia clássica a partir do diálogo com o mundo e as ciências modernas, chegando, inclusive, a dialogar com sistemas originalmente distantes ou avessos à fé cristã, tais como o evolucionismo e o marxismo. Vale observar que, dentro dessa dinâmica de diálogo, as ciências não só serviram de instrumentos para a revisão dos objetos clássicos da teologia, como elas próprias foram tomadas como um objeto da teologia. Isso ocorre a partir da teologia das realidades terrestres, as quais vão pautar em boa medida o espírito das decisões do Concílio Vaticano II. Fica, de fato, explícita nos textos conciliares uma hermenêutica positiva do mundo moderno a partir da noção de “sinais “sinais dos tempos”, bem como a acolhida das ciências como portadora da verdade e parceira necessária da teologia. teologia.12
b ) A ci ência e a teologia As ciências modernas foram sendo constituídas a partir de marcos políticos e culturais que permitiam o exercício autônomo da d a razão, na busca bus ca de explicação e intervenção interv enção na realidade. A metafísica e a teologia começam a sofrer concorrências, enquanto paradigmas interpretativos da realidade, de forma que a visão de totalidade fornecida por esses edifícios teóricos vai sendo corroída pela visão de objetos particulares e pelas especializações. De dentro da unidade filosófica clássica emerge uma unidade nova com a filosofia moderna, porém agora gravitando em torno do sujeito pensante pensante capaz de conhecer os objetos sem necessitar das verdades reveladas. Por sua vez, das premissas lançadas pela filosofia moderna antropocêntrica e imanente começam a emergir as abordagens particulares e empíricas das ciências que se ocuparão de uma sequência interminável de objetos particulares. A delimitação desses objetos, com seus respectivos métodos, resultou no que hoje chamamos de ciências (teorias). Os seus resultados epistemológicos se mostram, por um lado, na eficácia tecnológica (intervenção) e no uso econômico de seus resultados (instrumentalização) e, por outro, em um panorama sempre mais fragmentado e pragmático que isola cada qual em um ciclo imanente eficaz (objeto-método-
teoria) que dispensa como estranha e desnecessária qualquer consideração sobre princípios e finalidades éticas. Ciências = Objetos = Métodos = Tecnologia = Intervenção = Especialização = Fragmentação Portanto, as finalidades éticas ficam epistemologicamente fora do estatuto das ciências. A pergunta para que que não interfere na concreção do que que e na eficácia do como, como, muito embora estejam veladas nas intenções daqueles que fazem ciência e, ainda mais, daqueles que a utilizam por um ou outro motivo. Nesse sentido, da eficiência epistemológica decorre uma suficiência epistemológica que dispensa as abordagens externas ao que a ciência necessita para existir, funcionar e produzir resultados. O princípio da não intervenção da ética nos rumos das ciências tem como pressuposto não só sua autossuficiência epistemológica mas também sua neutralidade metodológica. Ainda que seja verdadeira tal suficiência, ela não existe como um sistema isolado social e politicamente e, muito menos, como uma prática cognitiva desinteressada ou acima do bem e do mal. Mesmo que postulássemos um retorno à gratuidade especulativa medieval, que assume o conhecimento como um valor em si mesmo, caberia, mesmo assim, a pergunta sobre os sujeitos interessados no conhecimento e sobre os usos que poderiam fazer do mesmo para a vida de cada ser vivo. Ora, a teologia caracteriza-se como conhecimento valorativo da realidade. Ela situa-se numa região externa às ciências, como conhecimento, de fato, estranho e desnecessário aos seus propósitos de decodificação da lógica interna dos objetos com a decorrente formulação das teorias e das estratégias de manipulação dos mesmos objetos. Nenhum biólogo ou engenheiro precisa conhecer teologia para ser um bom cientista; basta que conheçam suas respectivas ciências e partam para a investigação com disciplina e competência. Circunscritas às suas imanências teórico-metodológicas, as ciências têm produzido resultados surpreendentes no decorrer da história, sobretudo nos dois últimos séculos. E essa história demonstra ser totalmente verdadeiro que o cientista não precise de Deus para exercer sua profissão com rigor metodológico e competência técnica. A autonomia da razão reconhecida pela própria teologia adquire no âmbito das ciências sua autonomia prática e justificável, tanto na ordem das explicações sobre a realidade quanto no momento da intervenção sobre ela. O silêncio de Deus é patente em cada manipulação científica sobre sobr e a natureza: a eficiência se impõe como um dado à inteligência lúcida e honesta e como prova concreta da potência da razão autônoma. A solidão de Deus em uma espécie de “transcendência cientificamente inútil” estabeleceu-se estabeleceu-se como pressuposto normal e usual das práticas científicas. Nesse clima, alguns cientistas postulam o ateísmo como regra de vida, outros como regra metodológica e todos adotam, por ofício e regra, a razão como suficiente para demonstrar a verdade. Contudo, as histórias da política e da própria ciência expõem o limite e, até mesmo, a ingenuidade dessa postura de neutralidade e clama por uma epistemologia mais ampla que inclua o método suficiente das ciências em uma moldura maior composta por valores. As perguntas para que e para quem se quem se faz ciência se mostram, então, necessárias e complementares aos seus propósitos particularizados e objetivamente delimitados. As ciências foram constituídas metodologicamente como um parêntese aberto sobre a realidade que dispensa em nome de sua lógica e sua eficiência a exposição de seus pressupostos e de suas finalidades, não demonstráveis cientificamente. Pressupostos (Ciência) Finalidades
Crença (Método) Interesse Aposta (Resultado) Benefícios O ato de fazer ciência, mesmo que metodologicamente autossuficiente, é um ato de aposta no conhecimento, ou na possibilidade de conhecer aquilo que se pretende. O cientista parte, portanto, de d e pressupostos press upostos racionais prévios pr évios à investigação: a crença cren ça na objetividade do real e na possibilidade de chegar à verdade que nega o ceticismo e afirma a potencialidade do intelecto humano. Em termos práticos, elabora seu projeto de pesquisa tendo hipóteses (sugestão de saídas às problemáticas a serem investigadas) como regra de encaminhamento dos trabalhos, sendo que para tanto conta, antes de tudo, tudo , com a intuição e a aposta e não com a certeza. Nesse sentido, o ato de fé é o primeiro pressuposto da investigação científica; sem ele as ciências não dariam seu primeiro passo, assim como nenhum outro projeto humano. Também, todo trabalho investigativo visa a algum resultado teórico ou prático que se vincula de modo consciente ou não, explícito ou não, às finalidades. São resultados que produzem efeitos para pessoas, grupos ou para o planeta de um modo geral. Contudo, a pergunta para pergunta para que e para quem se quem se faz ciência não é feita pelas ciências, embora todas elas se destinem direta ou indiretamente a alguém e a algum interesse. Ainda que subsista a concepção clássica de que conhecer é melhor que ignorar e, portanto, que o conhecimento é algo bom em si mesmo, na sociedade atual as ciências estão cada vez mais vinculadas à tecnologia e essas, por sua vez, ao mercado. A sequência explícita ciência-tecnologia-mercado ciência-tecnologia-mercado expõe, expõe, de fato, as finalidades das ciências e instaura um ciclo tecnicamente virtuoso, virtuoso, na medida em que as ciências recebem investimentos para produzir tecnologias que são vendidas como produtos de alto valor e das quais se retiram subprodutos de todas as ordens para o mercado de consumo. Com efeito, o mesmo ciclo se vicioso, quando amarra as ciências ao dinamismo do mercado e fá-la avançar mostra eticamente vicioso, sob suas regras como serva do mercado mercado e restrita, portanto, aos interesses e possibilidades daqueles que, em última instância, podem vendê-la e comprá-la. A teologia pode contribuir com a crítica das ciências, não no sentido de se opor a ela como no passado, mas de explicitar seus nexos com os pressupostos e as finalidades, assim como na proposição de finalidades que a tornem cada vez mais um dom a serviço da vida toda e de d e todos. O atual estágio de evolução das ciências e de seus resultados para a humanidade e para a vida do planeta de um modo geral necessita cada vez mais de outros saberes que mostrem o significado s ignificado profundo da existência e contribua com o estabelecimento de finalidades que ajudem na preservação da vida planetária e com a convivência dos povos no mundo cada vez mais sem fronteiras.
CAPÍTULO II
A teologia e os desafios desafios do futuro O futuro sempre moveu o ser humano na direção das construções históricas. Parece ser clara uma convicção para o ser humano, desde que emergiu da animalidade pura no processo evolutivo: a autoconsciência de que é um ser inacabado. Não se trata somente de uma convicção filosófica sobre si mesmo ou da constatação de um dinamismo psicossocial que o coloca em um processo de socialização e de aprendizagem permanentes, na sua relação com o mundo e com os outros. Essas formulações são verdadeiras, e acompanham o desenvolvimento do pensamento humano, desde as representações míticas. Porém, o inacabamento humano se mostra em uma dimensão e dinamismo pré-conceituais, como força motriz que impulsiona o ser humano à construção do futuro. A história da civilização porta uma antropologia subjacente que afirma que ainda não somos o que devíamos ser e que devemos partir para a nossa autoconstrução. O futuro reserva, portanto, um vir a ser, guarda o ainda não humano, tempo de sua completude e felicidade. A própria noção de humanização, com suas diferentes conotações e propostas, insere-se nesse dinamismo que busca o humano ainda não realizado e que deve ser realizado por meio das opções éticas e políticas. As cosmovisões escatológicas das diversas tradições religiosas projetam para um tempo póshistórico esse acabamento humano. A longa Idade Média pode ser vista como uma mistura de várias expectativas sobre o futuro, sendo o advento de Cristo uma certeza que impulsiona a história para frente. O futuro incerto da escatologia cristã oficial e as escatologias populares encenam, com seus diferentes cálculos e imagens, o futuro que concluirá a história e estabelecerá a vitória de Deus sobre o Demônio. Trata-se, na verdade, de uma conclusão dialética na qual a síntese advirá da negação da matéria: a era do espiritual superará os limites da matéria, o eterno superará o tempo histórico, o reino celestial sucederá a todos os reinos da terra. Por outro lado, a possibilidade iminente da morte, que visita com frequência o espaço das individualidades e mesmo das coletividades, reforça a relevância da fé nos tempos da eternidade da alma, possibilidade garantida pelas práticas devocionais e, evidentemente, pela mediação dos bens salvíficos dispensados pela Igreja. Por sua vez, a catequese reproduz tal expectativa de futuro com seus conteúdos compostos quase sempre na dialética condenação-salvação. De qualquer forma, a Igreja detém, por meio de sua hierarquia, a possibilidade de controlar o futuro ao oferecer a salvação ou a condenação aos fiéis, o que permite ao fiel vivenciar com segurança a possibilidade da salvação eterna. A modernidade vai superando progressivamente essa cultura de imaginação, expectativa e controle do futuro pelo viés religioso, ao menos da parte de suas elites políticas e intelectuais. O futuro sempre mais historicizado mostra-se como uma possibilidade ao sujeito moderno, agora capaz de produzir, decidir e pensar com autonomia. A construção do futuro é uma possibilidade real e iminente e está nas mãos do ser humano. As propostas econômicas, políticas e científicas da modernidade não são mais que a oferta de um futuro melhor para todos; prometem para breve uma nova fase histórica, quando seus modelos se implantarem plenamente: o progresso trará seguramente bem-estar para todos. Contudo, não estamos diante de um processo homogêneo de secularização da escatologia. Dentro da própria modernidade é possível localizarmos formas alternativas de elaborar a esperança no futuro melhor, afirmações que, via de regra, são elaboradas pelos novos
movimentos religiosos: grupos fundamentalistas, expressões esotéricas e mesmo as diversas tribos urbanas. O humano é afirmado em todos esses movimentos como algo a ser construído por vias alternativas e autônomas, uma tarefa que compete ao grupo, ao indivíduo ou a ambos. De toda forma, nesses grupos parece prevalecer uma escatologia imediata sobre a pós-história das religiões tradicionais e aquela não realizada da modernidade. Com efeito, vivemos hoje uma época que mistura diferentes expectativas de futuro, tendo como fundo as assimetrias sociais e as fragmentações culturais: aquela que se entrega ao presente efêmero que devora o futuro na busca do máximo prazer realizado (manipulação hedonista do futuro), a que busca apressar o futuro em formas de vida alternativas mais verdadeiras e felizes (realização sectária do futuro), a que enfrenta a construção do futuro como tarefa radicalmente individual (a construção relativista do futuro), a que busca por meio de projetos sociais e políticos antecipar a verdade sobre o ser humano (construção ética do futuro), assim como a preservação das escatologias tradicionais (construção moral do futuro). Não se trata, evidentemente, de tipos estanques, mas de tendências que podem relacionar-se dialeticamente nas vivências concretas pessoais e coletivas. O dado onto-antropológico do inacabamento humano impede, de fato, que o futuro seja consumido pelo presente, seja qual for a proposta de realização. A busca do acabamento humano, com suas aberturas incontornáveis nas esferas do desejo e da razão, mostra-se como dinamismo mais profundo que impulsiona as decisões e ações do ser humano na história.
1. Os projetos da modernidade: em busca do futuro Por modernidade entende-se exatamente o tempo recente, recente, como consciência do tempo presente que revê o passado e prepara o futuro. Portanto, uma etapa da história que sucede e supera a anterior. A confiança nas possibilidades atuais e futuras do ser humano moveu as revoluções cultural, econômica, política e científica que fizeram os tempos modernos com otimismo sem precedentes. Corroborado por eventos inéditos que vão refazendo as configurações históricas desde o século XVI, tal otimismo ganha fundamentação teórica nas novas correntes científicas e plataformas políticas nas propostas de renovação da sociedade. A história ganha centralidade nas interpretações sobre a realidade de um modo geral, de forma a consolidar um imaginário temporal evolutivo e progressivo de uma humanidade que avança do passado para o futuro, f uturo, em e m fases sucessivas e inéditas, como superação su peração do antigo pelo novo e do pior pelo melhor. Certamente, a revolução industrial, com suas tecnologias t ecnologias que vencem venc em cada vez mais os limites do tempo e do espaço geridos por uma civilização artesanal, teve um papel fundamental como recriação da consciência de temporalidade que, de certa forma, permanecia ainda presa aos ritmos impostos pela natureza. A chegada iminente do novo produto industrializado passa a integrar as expectativas de futuro do homem moderno, sobretudo daqueles que deles usufruem com maior facilidade. Em resumo, o futuro mostra-se: • Como possibilidade real de uma nova etapa para a humanidade e como superação dos limites humanos. • Como tempo do domínio pleno do ser humano sobre as forças da natureza e sobre os condicionamentos históricos.
• Como Como motor que move as diversas ações humanas na busca de novos produtos e tecnologias capazes de proporcionar maior bem-estar. • Como possibilidade de emergência de uma nova humanidade, livre de todas as formas de domínio. Os tempos modernos instauraram uma dinâmica histórica e antropológica do trânsito contínuo para o futuro. A construção do tempo melhor torna-se regra moral e critério de julgamento das construções humanas de um modo geral, ainda que, na realidade, tais construções não tenham conseguido prover de modo igualitário as necessidades do conjunto da sociedade, deixando o futuro como mero sonho para os setores sociais empobrecidos. De fato, a confiança de que o futuro melhor vai chegar, mesmo com todos os fracassos históricos dos projetos modernos, ainda alenta os indivíduos e povos em suas buscas constantes em nossos dias. Assim ocorre com as metas de crescimento econômico dos países, com as utopias sociais dos diversos movimentos emancipatórios, com os investimentos financeiros e com as aquisições que fazemos. A pobreza e a opulência posicionam-se, obviamente, de maneira diferenciada nessa dinâmica. Os pobres, consolando as necessidades irrealizadas com a satisfação de certos desejos. Os ricos, transformando cada possibilidade de satisfação do desejo em necessidades indispensáveis e sempre mais sofisticadas. A ideia necessária de que o futuro melhor ainda não se realizou, mas que está por realizar-se, é repetida em cada projeto econômico e político oferecido para os pobres e para os ricos. O que está por vir será sempre melhor no mercado do consumo e nos avanços tecnológicos. A felicidade ilimitada é promessa que a todos atrai como plenitude humana realizável, na medida do bem-estar adquirido. Contudo, tal felicidade é uma meta que traga o futuro na fugacidade histórica e na contingência humana insolúvel. Esse clima cultural reforça um sentimento difuso de inacabamento da história e do próprio ser humano, tendo como base de sustentação imediata o ciclo incessante de renovação dos produtos de consumo. A vida é movida cada vez mais pelo advento permanente do novo, de antecipação do futuro no presente. Por outro lado, a crença na felicidade realizada, possibilitada pelas criações humanas incessantes e pelo direito de buscá-la como bem universal inalienável, esconde em sua euforia a real condição humana, marcada pela incompletude, pela insatisfação e pela dor, e delega às ilusões o protagonismo do sentido da vida humana.
a ) Os projetos políticos Como ocorre em todos os projetos, é possível constatar nos projetos que sustentam a modernidade uma progressão que vai dos ideais às práticas históricas. A passagem das ideias iluministas para as práticas políticas e científicas demonstra, emblematicamente, esse movimento de preparação e consolidação da modernidade. Com efeito, o domínio da natureza e da história se faz a partir de uma proposta de seu redirecionamento político, a natureza transformada cada vez mais em fonte de recursos e bem-estar e a história em lugar da emancipação humana. A sequência ciência-domínio-futuro fornece ciência-domínio-futuro fornece a síntese e a dinâmica das concretizações históricas da modernidade em todas as suas fases. Os ideais da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, fraternidade, inauguraram novos tempos para a humanidade, por um lado como possibilidade real que vai contaminando o mundo e fomentando movimentos emancipatórios nacionais, por outro, como um ideal universal utópico que produz dialeticamente seu oposto, como no caso dos movimentos socialistas. A luta histórica
entre a burguesia que afirma o Estado moderno como realização desses ideais e os movimentos socialistas que veem nele a própria negação dos ideais vai expor definitivamente as defasagens entre a realização e a promessa, o presente e o futuro. As projeções de futuro feitas por Karl Marx deixam flagrar uma visão antropológica na sociedade comunista que superaria toda exploração do trabalho. A máxima “a cada um segundo sua necessidade, de cada um segundo sua capacidade” postula um tipo de ser humano radicalmente diferente e novo do que temos hoje na história, um tipo de sociedade do pleno equilíbrio entre indivíduo e coletividade, assim como entre os desejos e as necessidades individuais. De fato, a modernidade apresentou-se como projeto de futuro melhor. As promessas modernas tiveram, paradoxalmente, o papel de agregar e desagregar os libertários em nome da superação de todas as formas de dominação e da autonomia do ser humano. As promessas firmaram-se como valor e direito e reconfiguraram a história promovendo revoluções efetivas. Contudo, suas defasagens históricas mantiveram o futuro melhor como possibilidade por realizar, como direito por vir e como missão para todos os sujeitos históricos. O século XIX foi o cenário de uma luta sem tréguas na busca da realização efetiva das promessas modernas e contou com diferentes estratégias. De fato, para os projetos políticos — políticos — burguês ou socialista — o espírito científico teria aberto para a história a possibilidade de superação de seus ideais almejados e ainda não realizados, seja aqueles ideais de cunho escatológico sem incidências concretas na história, seja aqueles ideais políticos até então situados no âmbito da pura idealidade política. As ciências modernas trariam o futuro esperado pelo ser humano e forneceriam o seu s eu acabamento definitivo. A Igreja Católica, após uma postura de negação das conquistas modernas, até mesmo daquelas científicas, vai redimensionar sua postura e suas estratégias em relação às contradições modernas e lançar-se num diálogo crítico com as coisas novas novas que surgem velozmente. A Encíclica Rerum Encíclica Rerum Novarum, Novarum, do Papa Leão XIII, inaugura, oficialmente, o pensamento social da Igreja, marcado, desde então, por crítica à realidade presente e proposição de um ideal ético para o ser humano. Abre-se, oficialmente, uma nova fase na relação entre Cristianismo e história em que os ideais cristãos vão participar do jogo político da construção do futuro da humanidade com seus valores de sociedade justa e fraterna. A transitividade política da consciência cristã passa a integrar o pensamento e a práxis da teologia católica como dado desafiante e fecundo que resulta em diversos sistemas teológicos no decorrer do século passado. A crítica ética do presente e a proposição do futuro justo, em conformidade com os valores evangélicos, demarcarão, desde então, as reflexões de fé nas diversas instâncias eclesiais e nos seus variados sistemas teóricos.
b ) As ci ências modernas As ciências escreveram, em boa medida, a história dos tempos modernos como braço forte da expansão econômica, por meio das múltiplas tecnologias industriais, bem como de sustentação política do Estado moderno. O projeto das ciências modernas relaciona-se diretamente com os projetos políticos na construção da civilização do bem-estar. A concepção clássica do conhecimento como um valor em si mesmo vai mesmo vai dando lugar a uma concepção prática que vincula conhecimento-intervenção, de forma a abordar a realidade com a finalidade de modificá-la em alguma direção e com algum interesse. Ainda que saibamos do rapto econômico e político dessa praxeologia pretensamente neutra, no sentido da afirmação desses poderes, as ciências, de fato,
solidificaram-se e especializaram-se como tais, sob o teste da verificabilidade, do controle metodológico e da eficácia prática. Ciência e tecnologia compõem uma unidade cada vez mais indissociável, como polos da mesma atividade racional e que se legitimam mutuamente, à medida que constroem uma civilização. A separação entre as humanidades e as tecnociências vai configurar uma dupla racionalidade, separando, em última instância, o saber útil do inútil, sendo que para o funcionamento da máquina moderna a prevalência das várias tecnologias sobre as humanidades será indiscutível. Acredita-se que o mundo novo virá, indubitavelmente, pelos avanços tecnocientíficos e não das humanidades, que dirá das velhas humanidades protagonizadas pela filosofia e pela teologia. Essa postura acompanha a origem e o desenvolvimento das ciências. A partir do século XIX, as ciências emergiram nas muitas especialidades como diversificação de domínio sobre objetos, em todos os casos domínio sobre a natureza. Elas mostraram, de fato, suas veracidades não tanto pela persuasão lógica ou mesmo pela demonstração de suas metodologias empíricas, mas, sobretudo, pelos resultados produzidos e que vão sendo oferecidos como possibilidades de usos pela população. O domínio científico da natureza estender-se-á igualmente à história, ou seja, ao ser humano, na medida em que as ciências ocupam-se dessa realidade. Nos primórdios da sociologia, o positivismo pretendia, exatamente por meio da ciência, implantar na sociedade moderna a ordem e o progresso. Tanto quanto a física, conseguira traduzir a natureza em fórmulas explicativas e intervir em seu curso, a sociologia deveria fazê-lo com a sociedade. Augusto Comte, seu principal representante, anuncia em sua famosa classificação dos estágios do espírito humano que esse futuro já chegou com as ciências. A fase do espírito positivo que sucedeu e superou as fases anteriores, a religiosa e a filosófica, oferece ao ser humano a possibilidade de seu acabamento completo, como ser capaz de compreender e transformar o mundo. O socialismo, por sua vez, apresenta-se com Karl Marx em uma nova fase, agora científica, que havia superado uma primeira fase utópica. A explicitação da lógica de funcionamento do capitalismo e das saídas política pela via da revolução do proletariado fornecia a base científica para a construção da sociedade do futuro, agora planejada racionalmente, em termos econômicos, sociais e políticos. O século XX pode ser visto como a era das experiências do progresso na busca de uma nova época histórica para o ser humano. Na verdade, mostrou-se como o teste da razão científica e de suas promessas de futuro. As esperanças modernas, anunciadas como ideal e valor político e apresentadas como possibilidade de concretização, por meio da razão científico-tecnológica, construíram o século passado como uma epopeia de sucessos e tragédias, ou, de fato, como sucessos científicos que resultaram em tragédias históricas. As duas grandes guerras tiveram um papel fundamental nesse teste; significaram a possibilidade real do fim, o fracasso do progresso, o perigo da tecnologia e os limites da condição humana. Dessa experiência emergiu uma antropologia mais realista, assim como uma crítica dos limites das ciências. A consciência da contingência humana ganha elaborações e projetos diversos no âmbito da filosofia e de movimentos políticos. A crítica da instrumentalização das ciências aglutina pensadores. A busca de referências capazes de recuperar o significado mais completo e profundo do ser humano vai adquirir força no âmbito das reflexões e produzirá movimentos sociais e religiosos pelo planeta afora. O século XX concluiu suas últimas décadas numa escalada de buscas de soluções e significados para a vida humana,
quando as respostas prontas herdadas do passado e as próprias respostas das ciências já não davam conta de conduzir a humanidade na direção da sustentabilidade, quiçá da felicidade. Contudo, os resultados trazidos pelas ciências mostram-se como fato inegável e como possibilidade de benefício para p ara a humanidade. Seus S eus resultados positivos são s ão inúmeros e tornamtornam se rotina na vida moderna. A razão humana mostrou nos últimos séculos sua capacidade fantástica de avançar na explicação e no domínio da vida. A teologia poderá contribuir com o discernimento dos processos e dos resultados advindos das ciências, tendo como parâmetro fundamental a justa medida do ser humano em sua condição criatural: ser limitado e com a missão de cuidar da criação. Certamente, a leitura teológica correta das ciências não poderá ser uma exaltação ingênua da inteligência humana, nem a negação apocalíptica de seus resultados, mas sim a visão profética que critica seus resultados pérfidos e anuncia sua missão para contribuir com a preservação da vida no planeta.
2. A crise da civilização atual Vivemos dias de uma crise sem par para o conjunto da humanidade. Isso significa maior consciência dos reais resultados da modernidade; por um lado, senso de valor e, por outro, cálculo de realidade oferecido pelas próprias ciências. Trata-se, evidentemente, de uma crise que atinge de modo diferenciado cada pessoa e cada região do planeta, tendo em vista que o planeta está estruturado de maneira assimétrica, do ponto de vista econômico, social e político. Além de contraditória, uma crise que se mostra paradoxal, misturando no mesmo tempo e espaço posturas variadas: consciência e ingenuidade em relação aos seus processos e efeitos, ativismo e passivismo no tocante aos projetos de enfrentamento enfrentame nto e insegurança e tranquilidade em relação ao futuro. Bem-estar e mal-estar são posturas que compõem o clima geral de nossa época e podem habitar, concomitantemente, um mesmo grupo e, até mesmo, um mesmo sujeito. É bem sabido que os modos de compreender e designar essa crise têm suas divergências, sobretudo no estabelecimento de sua relação com o passado. Para alguns, vivemos uma ruptura com os tempos modernos, na forma de negação e superação dos seus paradigmas, uma época de pós-modernidade. Para outros, estaríamos vivendo uma crise que nasce de dentro da própria modernidade, quando seu próprio amadurecimento revela limites, uma época como desmodernização ou de modernização tardia. De modo semelhante, outros constatam a mesma crise e continuam a designá-la como modernidade ou então como seu ponto mais alto: supermodernidade ou hipermodernidade. Embora as explicações sobre a nossa época possam variar de autor para autor, sendo que cada qual busca uma forma de denominá-la, de expor suas mudanças e de situá-la em relação ao passado, numa coisa eles estão em acordo: vivemos uma época de saturação de um modelo de civilização. civilização. E não se trata tão somente de mais uma crise histórica, como sempre acontece em maior ou menor intensidade, sobretudo nos momentos de mudanças mais significativas, ou, então, de uma crise de natureza ontológica que caracteriza o existir humano no mundo. Trata-se de uma crise real cuja extensão e profundidade podem ser descritas nos seguintes aspectos: • Uma crise estrutural advinda de um modelo um modelo de civilização que foi sendo implantado a partir da modernidade; vivemos as consequências desse modelo, no que ele trouxe como modo de produção e de organização da vida.
• Uma crise sistêmica que engloba todas as dimensões da vida e da convivência humana e de todos os seres vivos do planeta. • Uma crise ecológico-escatológica ecológico-escatológica que coloca em risco iminente a continuidade da vida em termos planetários; o presente já prenuncia essa possibilidade no âmbito das sustentabilidades ambiental, econômica, social e política. • Uma crise sociopolítica que expõe, a cada dia de maneira mais nítida, a falência do modelo econômico liberal planetarizado e a impotência dos poderes políticos locais em exercer com autonomia e soberania suas funções. • Uma crise cultural que demonstra o aprisionamento dos indivíduos no ciclo da satisfaçãoconsumo; trata-se de uma cultura do consumo, centrada na satisfação ilimitada do indivíduo que o torna política e socialmente intransitivo. • Uma crise de valores que tudo liquidifica na lógica do desejo-satisfação: vivemos uma civilização da barbárie do eu satisfeito, satisfeito, sendo as referências éticas herdadas do passado e os consensos éticos mínimos da convivência humana descartados como coisas superadas pelo fato de serem desnecessárias para p ara o funcionamento desse sistema.
a ) O bem-estar e o mal-estar Vários autores desde Freud já designaram a crise dos tempos modernos como mal-estar. De fato, a modernidade foi edificada em todos os seus pilares como promessa de bem-estar para os sujeitos; apresentou-se como movimento universal de autonomia e igualdade que superaria os tempos medievais e traria pelas vias políticas e científicas uma nova fase para a humanidade. O conceito de mal-estar possui conteúdos semânticos distintos, a depender do território teórico em que se situa. Pode ser designado como crise psicológica, como de modo pioneiro foi enunciada civilização. Mas pode ter também um conteúdo por Freud em sua obra clássica O mal-estar da civilização. eminentemente sociocultural, entendido como demarcação de uma mudança global e profunda no modus vivendi vivendi do ser humano, que estaria superando por saturação e insustentabilidade os tempos modernos. Em ambos os casos, explicita-se um projeto que promete bem-estar e traz, na verdade, mal-estar; instaura-se uma conjuntura em que indivíduo e sociedade se encontram desprovidos de referências em relação ao passado e ao futuro. Concretamente, teríamos adquirido a consciência de um anúncio de futuro que não se realizou e tornou-se passado inoperante perante os desafios do presente, em outros termos, a consciência de um presente cada vez mais esvaziado de referências capazes de conduzir o ser humano. Encontramo-nos em um clima de mal-estar que abrange o econômico, o social, o político e o ético. Ainda que seja experimentado diferentemente pelas regiões do planeta e pelos múltiplos sujeitos modernos, esse clima torna-se sempre mais visível e ameaçador, na forma de crise planetária e, concomitantemente, de consciência comum da comunidade humana. h umana. Parece ser verdade que estamos falando de uma época em que o estar bem e o estar mal misturam-se nos mesmos sujeitos e nos mesmos processo globais e locais, como polos antagônicos das possibilidades diferenciadas de acessos aos bens (mal-estar social), como consequência negativa das conquistas tecnocientíficas, em princípio benéficas (mal-estar ecológico) ou, ainda, como polos dialeticamente opostos de uma única experiência subjetiva do mal da insatisfação decorrente insatisfação decorrente do bem da satisfação (mal-estar satisfação (mal-estar existencial).
A civilização do bem-estar, raptada e dominada economicamente, encontra-se encravada em um ciclo vicioso, sem possibilidades imediatas de um redirecionamento virtuoso. O futuro se apresenta como a temporalidade incerta que seduz e ameaça.
b ) O presente e o futuro O futuro incerto é sempre motivo de insegurança e de mal-estar para o ser humano. A história dos surtos milenaristas antigos e modernos o demonstram de modo emblemático. O clima mais ou menos recente da guerra fria, as expectativas atuais do aquecimento global e, ultimamente, a crise financeira global colocam a humanidade em sinal de alerta, em postura de defensiva e de busca de garantias de que a felicidade prevaleça para as nações e para cada ca da investidor do futuro. A incerteza anunciada em relação ao futuro instaura, via de regra, a irracionalidade global, na forma da defensiva bélica ou dos mercados oscilantes, bem como nas mais diversas formas de irracionalidades individuais: as ilusões que se sobrepõem aos fatos, o pânico e o desespero que rompem com os papéis e os pactos sociais mais básicos. Contudo, o jogo do certo-incerto é parte da essência da própria vida. Se, desde sua origem, a vida caracteriza-se pela incerteza das venturas de seu devir, carrega também como verdade absoluta o seu fim, o retorno ao estado inerte. Tal certeza, única e irremediável, não destrói o desejo de viver e de perpetuar a vida da espécie, embora possa produzir diferentes valores em relação ao hoje e ao amanhã. A pergunta pelo sentido radical da vida emerge, precisamente, na busca do que possa articular o já e o ainda não, não, o certo e o incerto, em um nexo coerente que permita ao ser humano construir um modo de viver ontologicamente estável (o sentido da existência finita) e eticamente seguro: o estabelecimento dos fins com seus meios adequados. A construção do futuro vem a ser, desse modo, não uma tarefa movida pelo interesse imediato e individual, mas, antes e tão somente, pela responsabilidade pelo que há de vir e pelos que hão de vir. A responsabilidade advém da consciência universal, transbordamento do eu finito, e transita como gratuidade à vida que deve perpetuar-se como fim em si mesma e como valor incondicional.
3. O sentido do presente e do futuro O futuro ocupa, portanto, um lugar ambíguo no projeto da modernidade: como antecipação permanente das d as possibilidades pos sibilidades de bem-estar e como incerteza em relação às suas sua s possibilidades, poss ibilidades, sejam as possibilidades ecológicas advindas da crise do sistema planetário, sejam as possibilidades de satisfação do eu consumista. O sentido dos limites e das possibilidades humanas nos âmbitos coletivo e individual vem a ser um imperativo urgente para as gerações de hoje, para que possam transcender eticamente na direção da sustentabilidade da vida e evitar a danação final. A ética da responsabilidade proposta por Hans Jonas eleva-se dessa consciência como um paradigma atual, sobretudo em uma época em que a possibilidade de interrupção da vida mostra seus sinais concretos na crise ecológica global. Responsabilizar-se pelo futuro significará, como bem expõe o filósofo, tomar consciência do risco que corremos e temer a catástrofe final. O medo tem, nesse sentido, uma função construtiva na vida ética como sentimento que, ao provocar a imaginação do mal, pode buscar os meios de evitá-lo no tempo presente, preparando os tempos vindouros para as futuras gerações. gerações.13
Porquanto, as utopias modernas que projetam o futuro bom são crivadas pela crise presente, de forma que as mediações políticas e tecnocientíficas expõem seus limites em termos de construção futura e as finalidades éticas se tornam indispensáveis. Com efeito, o sentido do presente é o sentido do futuro e vice-versa. A ingenuidade ou a indiferença em relação ao futuro revertem-se diretamente nas posturas presentes, da mesma forma que o imediatismo do presente delega ao futuro um destino mágico, consequência da ação humana onipotente ou de uma natureza que se perpetua numa espécie de sustentabilidade eterna. De igual modo, a elaboração de finalidades que busquem o futuro para a vida em seu conjunto traduz-se em ações coerentes e construtivas. A responsabilidade recorta o tempo imediato e o tempo vindouro como princípio fundado em uma totalidade que engloba tudo e todos.
a ) A religião e suas promessas As promessas de futuro inerentes às religiões na forma de discursos escatológicos explícitos ou de princípios tácitos podem balizar o presente com seus valores e normas. Não se trata de reencantar o mundo com um sobrenatural que suspende as leis da natureza, a liberdade e as responsabilidades históricas, mas sim de afirmar um sentido anterior, superior e posterior aos imediatismos históricos e individuais. As grandes tradições religiosas mostram-se, de fato, eficientes, com seus valores incondicionais, como bem explica o teólogo Hans Küng. O religamento significa, no caso, não mais conectar o sagrado e o profano como dimensões distintas e rompidas pela racionalidade moderna, mas de religar o conjunto fragmentado em uma totalidade de sentido capaz de recompor o conjunto da vida e assumi-la como valor para todos. As éticas religiosas têm, nesse sentido, a função de construir de modo serviçal uma ética civil que englobe crentes e não crentes e conecte o presente com o futuro, de forma a construir uma convergência ética mundial. mundial.14 As promessas religiosas, ainda que estruturadas a partir de uma temporalidade escatológica pós-histórica e exprimidas por uma u ma estética sobrenatural, sobren atural, são oferecidas ofer ecidas ao tempo presente como possibilidade de salvação ou condenação, metas que constroem percursos. Evidentemente, a razão moderna desconstruiu na teoria e na prática qualquer hegemonia moral do escatológico sobre o tempo presente. A rejeição do presente em nome do futuro caracterizava as asceses cristãs clássicas, expressando na linha temporal outras faces do dualismo entre os dois mundos: o natural e o sobrenatural. A recolocação do escatológico, como finalidade última que possa direcionar eticamente a história, é uma operação possível e legítima que, exatamente em nome da sustentabilidade da vida no agora e no amanhã, recupera no religioso sua dimensão integradora e sua força moral. O futuro revelado pelas tradições religiosas pode criticar utopicamente as rotinas e os interesses que colocam a vida em risco. A transcendência do futuro capturada nas múltiplas formas do consumo imediato na sociedade atual vai esgotando seu potencial ético-normativo como antecipação continua de bem-estar e certeza ilusória de realização plena. A reserva escatológica afirmada pelas religiões e, de modo particular, pelas tradições judaico-cristãs coloca a história em sua justa posição, como processo em construção que necessita de uma direção previamente creditada como verdade, bondade e beleza a serem buscados no jogo da decisão livre dos sujeitos.
b ) A teologia formula a experi ência transcendente
A teologia formula criticamente a experiência da fé. A experiência religiosa pode contar com a razão para expor sua consistência ou suas fragilidades. Nesse sentido, a reflexão teológica apresenta-se como uma abordagem necessária em tempos de domínio das ciências e do mercado. A primeira decodifica a realidade em sua lógica imanente, o segundo introduz o ser humano na lógica do desejo eternamente insatisfeito. Nesse contexto, a experiência religiosa pode ser assumida como paralela ou supletiva ao discurso científico ou então como motivação última de busca de satisfação. O discernimento da experiência religiosa em nome de sua própria legitimidade e importância para a vida de um modo geral pode ser feito de modo satisfatório pela teologia que fala criticamente da fé de dentro da experiência da fé. O confronto crítico entre fé e razão é feito como crítica mútua das duas faculdades humanas. A fé expõe os limites da pura razão e a razão, por sua vez, submete os conteúdos da fé ao seu juízo lógico e investigativo, de forma a expor sua razoabilidade. Sabemos que, em tempos pré-moderno, a experiência religiosa impunha-se, quase sempre, como verdade absoluta e caminho único e agia como “sagrado selvagem” que tragava em sua força arrebatadora, moral ou política os cúmplices fiéis. A ousadia em dominar racionalmente essa experiência faz parte da epopeia da razão humana, desde seus primórdios. A teologia emergiu como abordagem capaz exercer tal tarefa e, no âmbito do Cristianismo, adquiriu matéria e forma epistemológicas sólidas, a ponto de ser designada como ciência pelos antigos e medievais. Em nossos dias, ela poderá contribuir com a colocação das múltiplas experiências de fé em sua justa posição no âmbito da convivência humana. Santo Agostinho, um dos pais da teologia cristã, fornece um parâmetro de experiência mística que alia criticamente desejo e realidade, finitude e infinitude. É no reconhecimento da transcendência última do desejo, possível de satisfação plena tão somente em Deus que o ser humano pode romper com o ciclo vicioso do eu satisfeito-insatisfeito… satisfeito-insatisfeito… Não se trata de um posicionamento novo no âmbito da tradição judaico-cristã que afirma como princípio fundamental a condição criatural do ser humano, mas, certamente, elucidativo para pensarmos as prisões atuais do desejo na lógica do mercado consumidor que, por sua vez, aprisiona os desejos religiosos. Sintetiza o grande santo: “Criastes-nos “Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Vós”. A satisfação plena do desejo no ciclo incessante das buscas humanas conduz irremediavelmente à insatisfação. A consciência de nossa condição criatural, cujo sentido último descansa no Criador, possibilita a ruptura com esse ciclo. A justificação do sentido último da realidade, para aquém e para além do imediato, necessita da teologia para fundamentar-se com lucidez e coerência e superar o ciclo imanente do desejo ilimitado do eu, ainda que do eu religioso. A teologia, exatamente por supor a objetividade da fé ( fides fides quae quae)) instituída sobre dados revelados, oferece referências que situam as práticas subjetivas ( fides fides que) que ) em um contexto social de fé ( sensus sensus fidei), fidei), permite estabelecer parâmetros para a vivência da fé na comunidade eclesial e mesmo na sociedade. O ato de pensar a fé racionalmente ocorre dentro desse consenso eclesial e a partir dele se desenvolve em suas regras. É nesse sentido que pode ser denominada ciência da fé, como a ética é ciência da moral, a estética a ciência do belo e a filosofia ciência da verdade. Ainda que cada indivíduo tenha suas verdades, seu senso pessoal de beleza, suas convicções morais e sua visão de Deus, ele não pode dispensar em nenhuma dessas áreas a presença de uma objetividade instituída como consenso e norma razoável. Nesse sentido, a teologia faz parte do
conjunto das instituições que constroem a vida social, superando pela via do consenso o dissenso do isolamento individual e cultural no instante de constituição das grandes civilizações. Portanto, é de dentro desse consenso herdado do passado, vivenciado e pensado no presente que a teologia, podemos dizer, formula o futuro, indo além dos imediatismos do presente. Em outros termos, oferece aos anseios individuais de antecipar o futuro feliz os parâmetros éticos e escatológicos da felicidade, afirmando a completude humana como algo que transcende o eu satisfeito imediato e, ao mesmo tempo, a necessária consciência do limite imponderável de nossa condição humana: seres sempre incompletos e insatisfeitos. É do sentido último da satisfação e da completude que podemos retirar o sentido e os valores que transcendem o puro eu individual. A afirmação do senso comunitário da fé fundado em suas fontes — fontes — reveladas, reveladas, interpretadas e repassadas — repassadas — e e praticado nos cultos e nas vivências comuns faz o jogo dialético entre o futuro e o presente como temporalidades que se completam: o eterno se faz presente e o transcendente transparece no imanente, sem que uma das dimensões esgote a outra em sua dinâmica.
Desejar e temer Os graves problemas ecológicos exigem uma efetiva mudança de mentalidade que induza a adotar novos estilos de vida, “nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções de consumo, da poupança e do investimento”. Tais estilos de vida vida devem ser inspirados na sobriedade, na temperança, na autodisciplina, no plano pessoal e social. É necessário sair da lógica do mero consumo e promover formas de produção agrícola e industrial que respeitem a ordem da criação e satisfaçam as necessidades primárias de todos. Uma semelhante atitude, favorecida por uma renovada consciência da interdependência que une todos os habitantes da terra, concorre para eliminar diversas causas de desastres ecológicos e garante uma oportuna capacidade de resposta quando tais desastres atingem povos e territórios. territórios.1 A esperança é uma condição de toda ação, pois ela supõe ser possível fazer algo e diz que vale a pena fazê-la fazê-la em uma determinada situação […]. O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir. Trata-se Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade […]. É possível temer que algo aconteça com ele […]. A responsabilidade é o cuidado reconhecido como obrigação obrigação em relação a um outro ser, que se torna “preocupação” quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade. Mas o medo está presente na questão original, com a qual podemos imaginar que se inicie qualquer responsabilidade ativa: o que pode acontecer a ele, se eu não assumir a responsabilidade por ele? Quanto mais obscura a resposta, maior se delineia a responsabilidade. Quanto mais no futuro longínquo situa-se aquilo que se teme, quanto mais distante do nosso bem-estar ou mal-estar, quanto menos familiar for o seu gênero, mais necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginação e a sensibilidade dos sentidos. Torna-se necessária uma heurística do medo capaz de investigar, que não só descubra e represente o novo objeto como tal, mas que tome conhecimento do interesse moral particular, ao ser interpretado pelo objeto, algo que qu e jamais teria ocorrido antes. antes.2
Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado. É grande o vosso poder e incomensurável a vossa sabedoria. O homem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; o homem que publica a sua mortalidade, arrastando o testemunho de seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvarVos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós. Vós.3 Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Igreja, n. 486. JONAS, O princípio responsabilidade, responsabilidade, p. 352. 3 SANTO AGOSTINHO, Confissões, Confissões, 1. 1 2
PARTE II
Razões e sedimentações
A definição do ser humano como capaz de conhecimento é consensual nas formulações que buscam defini-lo, d efini-lo, desde a mitologia até as ciências. A capacidade de d e interiorizar interior izar e exteriorizar a realidade em um processo de retenção, elaboração e transmissão é, indiscutivelmente, a marca característica do humano que emerge da animalidade bruta e adquire cada vez mais amplitude e complexidade. É também a marca fundamental do que chamamos cultura, entendida como resultado do que os grupos humanos consolidam como identidade e transmitem como valor e regra para as gerações, por meio das mais diversas linguagens. Conhecer (cognoscere (cognoscere do do latim) designa a capacidade de conceber algo. Na raiz mais antiga, gê ou gen ou gen do do sânscrito, tem um parentesco com gênesis com gênesis (origem) (origem) e até mesmo com geo com geo (terra), (terra), palavras gregas. Portanto, conhecimento significa originalmente capacidade ativa de gerar, assim gyne, em grego). Nesse como gera a natureza (originalmente gna-tura (originalmente gna-tura)) e como gera a mulher ( gyne, horizonte liguístico-cultural, pode adquirir maior profundidade o que o filósofo Sócrates propõe como método de ensino, ou seja, de transmissão do conhecimento, com sua maiêutica: maiêutica: parto. O mestre induz o conhecimento como um parteiro; não gera por si só o conhecimento no discípulo, mas faz o próprio aprendiz gerar suas ideias. Coincidência ou não, na tradição judaica das origens origens misturam-se em uma mesma narrativa terra, mulher e conhecimento, conhecimento, compondo uma epopeia de grandeza e decadência, de autonomia e responsabilidade da criatura perante o Criador. A criatura está condenada a conhecer, uma vez perdida a inocência primeva. É necessário descolar-se do útero do jardim de delícias para que se possa conhecer o bem e o mal e dominar a terra. Em suma, conhecer pressupõe maturidade, autonomia para gerar o novo na própria consciência e transmiti-lo às gerações seguintes. s eguintes. Desse modo, o conhecimento, enquanto ato gerador, exige maturidade maturidade “genética”, capacidade de produção do novo, autonomia para conceber e gerar no âmbito das ideias e dos conceitos, ato que não está isento de dor: empenho em aprender a conhecer, fadiga na aquisição dos métodos e rupturas com a passividade das noções sedimentadas e espontaneamente reproduzidas. A dinâmica do conhecimento envolve a relação de dois polos indispensáveis, o sujeito e o objeto, assim como um caminho consciente entre ambos que possibilita a concepção deste por aquele. Esse caminho consciente é o que chamamos método. O conhecimento propriamente dito é o que resulta desse processo e oferece conteúdos objetivados na forma de imagens, ideias, conceitos ou teorias. Portanto, a sequência sujeito-método-objeto-resultado sujeito-método-objeto-resultado compõe os itens estruturantes da ação cognitiva, independente do conhecimento que esteja em jogo, mais popular ou erudito, mais prático ou teórico. Evidentemente, as distinções que possam existir em um dos itens da sequência produzirão resultados diferentes em termos de conhecimento. As classificações ou tipologias de conhecimento conferem posturas diferenciadas para os sujeitos, ou para os objetos e mesmo para os métodos. Com efeito, parece ser fato que a consciência da subjetividade humana como distinta dos objetos, ou autônoma em relação aos ambientes natural ou social, posiciona-se como a base mais fundamental para a construção dos conhecimentos racionais. O desvencilhar-se dos laços de dependência direta marca o percurso de maturação do indivíduo, desde a saída do útero materno, passando pela primeira socialização até atingir a autonomia individual na fase adulta da socialização, no âmbito da sociedade global. A construção do conhecimento, como bem demonstram os psicólogos da aprendizagem, ocorre de modo diferenciado em cada uma das fases do desenvolvimento humano, estando relacionada à sua capacidade de abertura para a realidade exterior e de assimilação do diferente em sua consciência. A emergência do conhecimento se dá concomitante à capacidade humana de
entender-se como distinto de seu meio físico e cultural e como capaz de autonomia em relação àquilo que a tradição lhe impõe como verdade objetiva e imutável. É nessa dinâmica que são construídos em um primeiro momento da humanidade os mitos e em seguida a filosofia e as ciências. Em todos esses momentos, a realidade vai sendo apropriada pelo sujeito, desde então capaz de formular, explicar, organizar e interferir na realidade. Em suma, o conhecimento é a concepção do mundo em nossa consciência, seja como reprodução espontânea, inerente ao processo socialização (conhecimento espontâneo) ou como reprodução de significados transcendentes da realidade (conhecimento religioso), seja como apropriação autônoma da realidade na forma de conceitos (conhecimento filosófico) ou, ainda, como conceitos verificáveis e capazes de interferir na realidade (conhecimento científico). A teologia é um tipo de conhecimento que integra, de algum modo, todas essas formas de conhecer. Embora tenha seu lócus fundante mais antigo na filosofia grega, primeiramente como um logos sobre logos sobre os mitos e, na sequência, como busca de compreensão da fé, concretamente dos conteúdos transmitidos pela tradição judaico-cristã, no âmbito do Cristianismo dos primeiros séculos, a teologia consolidou-se como reflexão que busca articular experiência e formulação racional, valores e reflexão, fé e verificação. Em todos os seus modelos históricos, essas dimensões se cruzam como dados referentes à fé vivida e à fé formulada. De fato, a clássica questão da relação entre fé e razão assume diferentes formas, a depender dos contextos culturais e científicos em que se dá. Esse é um dado fundamental da reflexão teológica, sabendo que é pela via da razão que a fé é interpretada e comunicada em cada tempo e lugar. Portanto, a teologia carrega boa dose de conhecimento espontâneo, na medida em que assume as experiências da fé vivida e transmitida culturalmente nas comunidades eclesiais ou na tradição da fé diluída na cultura mais ampla; incorpora como regra fundamental o conhecimento filosófico quando busca expor os fundamentos da fé sob o juízo da razão lógica e, sobretudo nos últimos tempos, usa como mediação os métodos e resultados das ciências modernas para decodificar objetos a serem teologizados. O conhecimento religioso é o ponto de partida da teologia, de onde ela se levanta como reflexão crítica e para onde ela pretende retornar como parâmetro para o discernimento e a ação religiosa. Os caminhos do conhecimento religioso são múltiplos, tanto do ponto de vista da pluralidade cultural que o produz, quanto do ponto de vista da evolução histórica que vai compondo os vários paradigmas cristãos. A teologia vai buscar o sentido lógico dessas diversas experiências, construir modelos interpretativos capazes de fundamentá-las, sistematizá-las e de comunicá-las em uma linguagem metodologicamente prevista e teoricamente coerente.
CAPÍTULO I
O conhecimento religioso Afirmar a existência do conhecimento religioso significa não só partir de sua legitimidade antropológica e política, postura contraposta às visões negativas que o define como coisa do passado (Comte), neurose (Freud) ou ideologia (Marx), como também postular uma u ma consistência epistemológica para tal experiência humana; consistência que exige a elucidação de sua estrutura interna (constantes da experiência religiosa), a exposição de suas particularidades metodológicas (os caminhos regulares da vivência religiosa) e, finalmente, a exposição de seus resultados (o conteúdo religioso propriamente dito). Podemos dizer, então, que estamos diante de um discurso de natureza epistemológica que exige: a) uma abordagem singular da experiência religiosa, como dado que mostra uma constante, para além das diversidades de experiências de cada tradição religiosa em específico; b) um discurso que afirma a autenticidade da religião, como fenômeno que oferece uma visão e um posicionamento para os sujeitos religiosos; c) a afirmação de uma função legítima para a religião no conjunto maior da vida individual e social; d) a descrição das vivências religiosas a partir dos processos que as constituem como interiorização e exteriorização de determinados conteúdos; e) a possibilidade de sistematização das representações e práticas religiosas, do ponto de vista conceitual; f) a afirmação de um modo simbólico de ver e comunicar a realidade, distinto de outras formas de ver e descrever a realidade verificáveis empiricamente. A respeito da postulação de neurose e ideologia religiosas, vale observar que, mesmo sabendo da possibilidade real dessas anomalias, elas não autorizam, contudo, a execução sumária do fato religioso. Também podem ser neuróticos os conhecimentos espontâneo, filosófico ou científico. Muitos hábitos que caracterizam nossas práticas cotidianas podem estar relacionados a compulsões e obsessões. Por sua vez, os sistemas de pensamento, hoje bem sabemos, devem ser situados nos contextos sociais e políticos em que foram construídos para que possam revelar suas reais intencionalidades e, por conseguinte, suas funções sociais e políticas. A relação entre ciência e ideologia já está bem esclarecida pela filosofia das ciências. A ideia de neutralidade do conhecimento como algo absolutamente distinto das práticas culturais, susceptíveis de manipulação ideológica, está superada. Evidentemente, o conhecimento enquanto ato consciente deve esforçar-se por demonstrar objetividade em seus processos e resultados e superar, portanto, as armadilhas ideológicas e as tendências inconscientes de natureza outra. No entanto, a ciência não será jamais um conjunto teórico neutro e muito menos definitivo que paira acima das individualidades concretas e dos contextos históricos, ambos com suas inevitáveis influências sobre os modelos científicos. O conhecimento religioso faz parte da vida humana e mostra-se como um dado desde que nossa consciência emergiu como distintivo da espécie homo na longa escalada da hominização. Do mesmo sujeito e no mesmo processo de constituição da vida interior, ou seja, da capacidade de interiorizar conscientemente o mundo — conhecer e saber que conhece — e, ao mesmo tempo, processar o que foi interiorizado — interiorizado — aprender aprender a conhecer — conhecer — , eclodem as várias formas de representação da realidade: a relação de causa e efeito, a relação do todo e parte e o conjunto carregado de significados transcendentes. O sujeito que crê é o mesmo sujeito que pensa e age em um modo de vida que vai adquirindo, cada vez mais, uma dinâmica simbolizadora, ou seja, que transcende o reino da pura necessidade
e os determinismos ambientais e grupais. As dimensões social, política e econômica são construídas de modo indissociável das interpretações sobre a origem a finalidade da realidade e é, de fato, a partir dessas interpretações de fundo que elas se justificam como verdadeiras e corretas e encontram, muitas vezes, o impulso para serem conservadas ou modificadas. Em outros termos, toda produção sociocultural ocorre como esforço de organização da vida inseparável do esforço de simbolização da mesma.
1. O conhecimento religioso em suas origens e processos A capacidade de conceber uma realidade sobrenatural e reproduzi-la ao grupo como verdade e valor a serem vivenciados acompanha o desenvolvimento da cultura humana ao longo da história. A consciência de que o real possui um sentido oculto que explica suas origens e movimentos, suas forças e destinação, faz parte das culturas e torna-se, em todas elas, símbolo e narrativa sagrada, ações rituais e normas de vida. O símbolo pode ser de natureza material ou histórica. Em outros termos, tanto coisas quanto fatos históricos podem revelar significados que estão para além de suas respectivas materialidade e factualidade. A narrativa sagrada se faz primeiramente como repetição oral, depois como transmissão escrita. Em ambos os casos, o ato de transmitir as explicações religiosas significa exercício de conhecimento, em um processo regular de ensino-aprendizagem. A figura que detém o conhecimento das origens transmite aos membros do grupo seus conteúdos: valores a serem apreendidos como norma ou apropriados como eficácia na ação ritual. Inserido nesse sistema, cada indivíduo apreende à medida que é capaz de repetir as noções e as práticas religiosas. O conhecimento religioso opera na lógica do símbolo, ou seja, a partir de algo que tem a força de remeter para experiências que estão para além de si mesmo. É uma realidade sensível e presente que qu e comunica o ausente ause nte e fá-lo transparecer como totalidade no fragmento, fr agmento, como força na fragilidade ou como eternidade na temporalidade. temporalidade.15 Contudo, o conhecimento religioso pode ser entendido no sentido lato e no sentido estrito. O primeiro sentido coincide com os sistemas míticos que incluem o sujeito no grupo como repetidor e cúmplice das tradições portadoras das verdades primordiais referentes ao mundo e ao ser humano. No caso, o objeto religioso traga em seu dinamismo toda a vida dos indivíduos, de forma que resta a eles somente interiorizar as tradições em sua integralidade: não há propriamente adesão do sujeito, mas somente reprodução das representações e práticas religiosas no processo espontâneo de socialização. Prevalecem, portanto, nessas sociedades as regras do mito que, ao ser repetido, pode modificar a realidade com sua força original, anterior, exterior e superior aos indivíduos. Na verdade, do ponto de visto espaço-temporal devemos considerar a existência de sistemas mítico-religiosos diversos e distintos e, portanto, de infindáveis figuras e mecanismos de comunicação simbólica. De fato, a cada cultura uma concepção e uma prática míticas. Também é necessário distinguir os diferentes modos de apropriar-se das narrativas míticas e de comunicá-las, aquelas mais arcaicas eminentemente orais, que coincidem com o modo de vida tribal e aquelas registradas pela escrita situadas já nos primórdios das grandes civilizações. O conhecimento religioso no sentido estrito envolve diretamente a decisão e a ação do sujeito como artífice de suas opções e escaladas religiosas, postado, então, como capaz de adquirir livremente os conhecimentos. Prevalece, nesse caso, a regra da gnose, ou seja, a possibilidade
individual de conquistar conhecimento e salvação mediante um aprendizado individual. As grandes tradições religiosas gestadas na chamada era axial estruturam-se sobre essa prática de conhecimento religioso (gnose), operando uma passagem do cosmocentrismo mítico para o antropocentrismo religioso. Mito
Gnose
Cosmocentrismo
Antropocentrismo
Repetição
Adesão Conquista conhecimento
Atualização do mito Força homem
exterior
ao
de
Força interior do homem
a ) O conhecimento religioso como dado social A consideração do conhecimento religioso como elaboração da consciência primitiva ainda incapaz de apropriar-se objetivamente do real marcou os estudos científicos da religião, sobretudo quando as ciências se consolidam na segunda metade do século XIX. Essa postura parece ainda subsistir como uma espécie espé cie de paradigma do cientificamente correto. Já J á verificamos que a crença na evolução linear do pensamento, no progresso da razão e na superioridade do pensamento científico fornece for nece a lógica estruturante estrutur ante de tal convicção. con vicção. Tal convicção afirma, tácita ou explicitamente, uma antropologia que cinde e distingue a consciência do ser humano, instaurando uma espécie de duas consciências: uma primitiva, marcadamente mítico-religiosa e uma moderna, operacionalizada pela ciência. Como já observamos, os modernos acreditam que as ciências configuram uma nova fase no espírito humano, fase que supera qualitativamente a anterior. A operação pela via de um código único, o científico, é que caracterizaria, em curto prazo e definitivamente, o ser humano na sua su a natureza mais íntima. Não é difícil perceber o idealismo dessa convicção e, por conseguinte, sua inconsistência inco nsistência em termos sociológicos, onde e quando as consciências efetivamente se formam numa relação direta entre indivíduo e sociedade. A separação entre indivíduo e sociedade, entre consciência individual e coletiva ou, entre valores individuais e cultura, constitui uma abstração sem consistência empírica. A dinâmica real da construção social ocorre no jogo entre individualidade e coletividade, e qualquer isolamento de uma das dimensões — dimensões — do do ser humano como um todo — todo — oculta os processos reais de construção do humano. Peter Berger explica essa dinâmica em três direções simultâneas, como exteriorização, interiorização e objetivação do ser humano, cujo resultado é a formação do indivíduo e da sociedade. sociedade.16 Nesse sentido, concluímos que os conteúdos da consciência humana processam-se por acúmulos e rupturas: o que a consciência interioriza da objetividade social ou consegue refazer na mesma objetividade, recriando suas estruturas e valores. O resultado da interiorização é a socialização, ou seja, o indivíduo assimila aquilo que a sociedade tem como regra e valor objetivos. A modernidade apresentou-se, evidentemente, como projeto de ruptura com as estruturas objetivas medievais e, por conseguinte, com a religião. No entanto, a presença pública da religião, marcadamente do Cristianismo, em todas as esferas da vida cultural, seja como valor
explicitamente religioso, seja como valor subjacente à própria modernidade, não perdeu sua objetividade social com os discursos e práticas modernas. Em outros termos, a modernidade não retirou a religião do quadro geral das estruturas sociais, mantendo-a como um dado cultural, oficialmente sem função política, porém ativa do ponto de vista social e cultural, quando não do ponto de vista político, ainda que nos bastidores das diplomacias e da política real. Ademais, a tradição religiosa permanece como um dado cultural da vida privada, ainda que redimensionada em seu poder de controle social ou de controle moral das consciências. O conhecimento religioso subsiste, desse modo, como uma dinâmica viva e operante nos tempos modernos, ainda que alterando suas formas e conteúdos, na medida em que altera suas funções.
b ) A consci ência comum, concomitância cognitiva sapiens desde que emergiu como A pergunta pelo sentido das coisas caracteriza o homo sapiens fenômeno original na escalada evolutiva. A autonomia, dinâmica que demarca os limites e possibilidades da consciência humana para além dos determinismos da matéria e da espécie, é exercida como construção de sentido para a realidade, construção que edifica a realidade social nos aspectos simbólicos e materiais, inseparavelmente. Sentido da realidade e sobrevivência são direções que edificam a vida humana feita de sujeitos capazes de produzir sua própria subsistência e que constroem para tanto instrumentos cada vez mais suficientes e eficientes. Com efeito, descolar-se da natureza, dominá-la e dar a ela sentido constitui um único movimento de automização do ser humano capaz de pensar-intervir no mundo. A consciência humana emerge e amplia-se como capacidade de associar as coisas, de classificar o mundo, portanto, de distinguir e unificar a realidade diversificada. É à medida que a inteligência humana conquista essa fluidez essa fluidez cognitiva cognitiva que a arte, a religião e a ciência nas configurações mais arcaicas começam a tomar formas e a compor sistemas significativos na cultura humana. humana.17 A visão do todo e a busca da causa nada mais são que o movimento da razão e da vontade na direção da significação da realidade: explicar e dominar a natureza são ações de uma busca única; achar o significado subjacente às coisas imediatas, em termos de espaço e tempo, ou seja, a relação entre próximo e o distante e entre o antes e o depois, constitui o instante primordial da simbolização do real e de transcendência do ser humano, para além dos determinismos do habitat que aprisiona as espécies. A superação das relações de pontualidade (habitat (habitat imediato que fornece os elementos para a sobrevivência), na busca de relações mais amplas entre as coisas, de utilidade (alimentação e subsistência), na busca dos meios de produção da subsistência e de imediaticidade (as ofertas instantâneas da natureza), na direção dos seus significados, vão construindo, progressivamente, um mundo com possibilidades e significados humanos, ou o mundo propriamente dito. A consciência do real mostra-se na história humana como um feixe de possibilidades de significação, possibilidades que brotam do mesmo assombro e curiosidade perante a natureza com suas dádivas e ameaças. A consciência é, ao mesmo tempo, portadora e reprodutora de acúmulos objetivos de significações que perguntam e respondem o que é o mundo e o ser humano, tanto do ponto de vista de sua dinâmica imanente, quanto de seu significado transcendente. Nesse sentido, os significados religiosos, filosóficos e científicos não constituem universos significativos opostos, mas modos de perceber e explicar a própria realidade pelo mesmo espírito insatisfeito que questiona e busca soluções teóricas e práticas para a vida. A
busca da causa e da finalidade direciona o espírito humano em todas as suas investidas de sobrevivência que operam como estratégia de domínio imediato da natureza, bem como em soluções definitivas para as contingências inevitáveis da vida: todos os limites e o limite fundamental, que é a morte.
c ) O processo de institucionalização do conhecimento religioso Como qualquer outra formulação, a religiosa sofre mutações históricas que seguem a própria capacidade de explicar e dominar com maior eficácia a natureza e desvendar suas leis. O conhecimento religioso primitivo não se processa da mesma forma daquilo que hoje é praticado pelo homem moderno. Em outros termos, as visões e práticas religiosas revelam um percurso evolutivo, marcado, naturalmente, por continuidades e rupturas. À medida que a cultura humana vai sendo ampliada em suas possibilidades de explicar e dominar a realidade, as referências religiosas passam por transformações importantes. Algumas transformações são vistas como transformações axiais, outras como formas de adaptação em um novo contexto ou, ainda, como maneira de garantir a sua própria sobrevivência, à medida que a história avança e a cultura se complexifica. O conhecimento religioso surge na mesma lógica de associação, descrita por Mithen, como fluidez cognitiva, cognitiva, ou seja, como capacidade de o animal humano relacionar-se com a realidade de várias maneiras (técnica, sociabilidade, linguagem), superando aquela relação naturalista, básica na vida animal. A relação entre a natureza e o ser humano parece constituir uma relação básica, o início de analogias mais complexas e profundas que virão logo em seguida. Nesse sentido, pensar os animais como pessoas e as pessoas como animais (antropomorfismo e totemismo) significou um avanço primeiro na capacidade de simbolização da realidade, tanto na busca de relações entre os seres, como na busca das relações causais e mesmo de domínio das forças da natureza e de organização social. social.18 Se as múltiplas cognições trazem à tona a capacidade de simbolizar a realidade, é nas fases seguintes do desenvolvimento das sociedades humanas que elas ganham formas e estruturas nítidas, dentro de um conjunto maior de criações das instituições humanas. A vida tribal
A tribo foi a primeira forma de institucionalização dos sistemas de vidas dos distintos grupos humanos, nas suas mais variadas etnias espalhadas por todos os cantos do planeta. Os mitos constituem as expressões mais antigas do conhecimento religioso em suas incontáveis variedades, embora forneçam dados para estudos que desvendam suas estruturas comuns. A narrativa do tempo das origens, origens, tempo de criação do cosmo e do ser humano, como protótipos ideais do mundo real e atual, donde se retira não só a explicação para as coisas atuais mas também os segredos da vida feliz, caracteriza os mitos. Os homens atuais podem acessar aquele tempo primordial pela via ritual que, em regra, consiste em representar aqueles atos divinos primordiais que criaram todas as coisas. Pelo ritual as pessoas imitam Deus, entram em comunhão com ele e obtêm seus benefícios. benefícios.19 O mito compõe, portanto, um sistema de crenças que permite a ligação de todas as coisas dispostas no espaço e no tempo com o ponto inicial e axial das origens, ligação que vincula a natureza com os indivíduos, os indivíduos entre si e com a divindade. É nessa totalidade indissociável que todas as coisas são explicadas pelas narrativas e repassadas pelas tradições, que
as ações benéficas são praticadas pelos rituais de renovação da natureza, de cura e de agradecimento e que as normas de vida do grupo são assumidas e praticadas. Portanto, o sistema mítico institui com suas narrativas, rituais e normas a forma mais antiga de conhecimento que permite ao ser humano compreender a realidade em suas múltiplas dimensões, incluindo a compreensão de si mesmo, bem como estruturar a vida do grupo nas suas hierarquias, relações interpessoais e funções. Trata-se, contudo, de um sistema de conhecimento localizado que, não obstante revele essas estruturas universais, está referida a espaços físicos (com suas potencialidades naturais), a raças específicas e a endogenias culturais. Cada sistema mítico tem sua linguagem própria: deuses, narrativas, rituais, regras e organizações sociais particulares que se entendem como o mundo verdadeiro, em contraposição a outros mundos estranhos, por conseguinte falsos. O conhecimento mítico-religioso tem três características fundamentais que o distinguem do conhecimento religioso elaborado nas civilizações: saber radicalmente local que se entende como centro do mundo, conhecimento reproduzido pela narrativa oral de de geração em geração e prevalência do conhecimento coletivo coletivo sobre o individual. Carece à vida tribal a autonomia do indivíduo perante o grupo, assim como a autonomia de um grupo perante o outro como diferença e não como centro do mundo, endogenia absoluta que só resta subordinar a si os grupos que sejam diferentes. A vida urbana
A vida urbana significou um segundo salto do homo sapiens sapiens em termos de domínio e significação da realidade. É da experiência em ordens sociais mais amplas e complexas que as representações mentais vão adquirir consistências em termos de estruturação lógica. E, progressivamente, prevalecerá, então, uma consciência que já não se contenta em relacionar as coisas, buscar causas e buscar formas de dominar simbolicamente a natureza, a partir de um sistema de crenças. A vida urbana vai significar em termos de relações inter-individuais e intergrupais o contato com a diferença sociocultural, o choque cultural, a necessidade da busca de consensos e de formulações mais universais e, ao mesmo tempo, o início da experiência da individualidade autônoma. É na cidade que as endogenias tribais mostram sua relatividade e, em um processo sociocultural que envolve confronto, negociação e síntese, buscam significações e práticas que abarquem a coletividade. É quando o universal se impõe sobre o individual e o local como dado político (as regras da democracia), d emocracia), educacional (o ideal de ser humano), h umano), religioso (o Deus uno), ético (o bem comum) e gnoseológico (os conceitos universais). O conhecimento religioso vai processando-se na dialética de superação do mito para o logos, como busca de um significado universal para a realidade pela via dos códigos religiosos ou filosóficos. Os deuses locais vão ceder lugar aos deuses nacionais e internacionais, e a experiência religiosa será submetida às investigações do pensamento. Surgem, então, os primeiros rudimentos do que será mais tarde teologia. O tempo axial
A chamada era axial sugerida pelo filósofo Karl Jaspers designa, precisamente, essa mudança relacionada ao processo de formação das civilizações, mediante a ruptura com a hegemonia das culturas tribais e a invenção das primeiras cidades. É quando ocorrem deslocamentos nas práticas e valores socioculturais nas grandes tradições, sobretudo no Oriente, na direção de uma maior
consciência do humano. A consciência da condição humana como ser individual, socialmente relacionado, capaz de achar um significado para si mesmo, pela via do autoconhecimento, capaz de conhecer o outro e o mundo, de compadecer-se do sofrimento alheio e de construir uma convivência comum caracterizam essas mudanças que vão tomando forma nas civilizações hindu, chinesa, grega e hebraica. Essa era está associada a grandes crises e, ao mesmo tempo, a grandes líderes que introduzem reformas religiosas e filosóficas em suas sociedades. São protagonistas desse d esse movimento mov imento antropocêntrico antropo cêntrico os o s profetas bíblicos, os líderes Confúcio Co nfúcio e Buda e os filósofos do período clássico grego. grego.20 A consciência da humanidade que resulta dessa época legou-nos visões e valores que nos permitem superar os ciclos da natureza, assim como aquela cultura que reproduz visões e práticas religiosas diretamente ligadas ao seu domínio pelos rituais sacrificiais. sac rificiais. A visão mítica da realidade, estruturada no domínio direto da divindade sobre o mundo, a coletividade que absorve em sua objetividade os indivíduos, a endogenia grupal que desconhece a alteridade e todas as formas de ocultamento da autonomia e criatividade humana, entendida, então, como universal, recebem desde a era axial as referências religiosas e filosóficas fundamentais de sua superação. Portanto, o conhecimento religioso adquire um dinamismo novo, como busca interior da verdade (caminho místico), como possibilidade de apropriação crítica da realidade (teodiceias) e como coerência de vida (vivência ética). Em síntese, o ser humano emerge como sujeito da interceptação da realidade, capaz de conhecer a verdade e chegar à felicidade, como criatura distinta da natureza e do Criador e como artífice da sociedade justa. Está inaugurada a possibilidade antropológica do conhecimento religioso (gnose) no seu sentido mais estrito, quando cada indivíduo pode percorrer com autonomia e aprendizado o caminho do saber e da felicidade. A racionalização religiosa
A ideia de racionalização recebeu sua formulação e aplicação mais completas com Max Weber. O sociólogo entende a história da cultura ocidental como um percurso de progressiva racionalização, do qual não escapa nenhuma expressão cultural, a começar pela religião. Aliás, é de dentro da própria tradição judaico-cristã que a racionalização, ou seja, o domínio cada vez mais autônomo da realidade, emerge como valor e possibilidade histórica e cognitiva. Desse modo, o conhecimento religioso não se configura como uma referência distante ou oposta ao conhecimento racional, mas como um componente importante de seu percurso. Por outro lado, a religião vai afirmando-se e desenvolvendo-se no decorrer da história, de maneira sempre mais institucionalizada. Em grandes linhas, passa do espontâneo para o formalizado, do oral para o escrito, do prático para o teórico, do mágico para o ascético. Para Weber, esse movimento faz parte em linhas gerais de um processo de rotinização do carisma que para sobreviver cria formas de institucionalização; a razão objetiva impera sobre a relação mágica com a realidade, e o mundo se “desencanta”. De fato, ao menos no Ocidente podemos verificar um caminho de racionalização do conhecimento religioso, realizado, de modo paradigmático, pelo Cristianismo. Como legado tardio da era axial, o Cristianismo apresentou-se, desde as suas origens, como um projeto ético, centrado não em uma ideia de divindade, ainda que obviamente ela exista, mas em um projeto de vida que tem sua base fundamental na lei do amor. É a partir dessa base que todo o seu edifício religioso se estrutura e funciona. Vale lembrar que a matriz de onde o Cristianismo formou-se, o Judaísmo, consolidou-se em sua forma tardia como tradição que relacionara de maneira
conhecimento. A leitura e o entendimento correto da tradição sagrada vinculante religião e conhecimento. escrita — escrita — a Torá, Torá, os Profetas e os outros escritos — escritos — constitui o caminho de conhecimento de Deus e da salvação do ser humano. Esse é o legado da tradição rabínica que passa diretamente para o Cristianismo, o qual já se estrutura originalmente sobre o esforço imediato de construir referências escritas (cânones, regras, doutrinas) para a vivência da fé no Cristo de Deus, Jesus de Nazaré. Nas pegadas de Weber, podemos dizer que o conhecimento religioso torna-se, em algum momento, um sistema institucionalizado, quando, então, o mito mito reveste-se de logos, logos, as experiências espontâneas buscam sua fundamentação e as práticas religiosas tornam-se propriamente religião. De qualquer forma, o conhecimento religioso na sociedade moderna trava uma dialética — dialética — de de oposição, paralelismo ou síntese — síntese — com com a razão científica, a qual explica e domina a natureza, sem necessitar da religião. Por ora, basta garantir à vivência religiosa os créditos de autêntico conhecimento.
2. A religião como forma de organização do mundo Nas expressões mítica ou filosófica, experiencial ou institucionalizada, o conhecimento religioso mostra-se como estratégia de interpretação do mundo. A apropriação mais elementar da realidade, como explica Durkheim, é feita pela via do religioso. Ainda que as representações e práticas religiosas se apresentem como cosmovisão do sobrenatural, portanto de algo além do mundo imediato, ela, na verdade, relaciona-se diretamente a esse mundo, permitindo ao ser humano situar-se dentro do conjunto maior do mundo, na sua relação com a natureza e com os outros. O conhecimento religioso mostra-se, assim, como conhecimento da realidade, da natureza, do ser humano e da divindade. “Se a filosofia e as ciências nasceram da religião, é porque a própria religião, no princípio, fazia as vezes de ciência e de filosofia”. Essa tese orienta em boa medida a investigação do sociólogo positivista Émille Durkheim na sua obra As obra As formas elementares da vida religiosa. religiosa.21 No esforço de demonstrar o significado e a função social da religião, partindo de sua expressão mais primitiva, o sociólogo mostra como a religião estrutura a visão de realidade do ser humano. Explica que as categorias mais básicas do pensamento humano como tempo, espaço, gênero, número, causa, substância já estão contidas nas representações religiosas e, a partir delas, assumem as formas conscientes e conceituais na filosofia e nas ciências. Portanto, o conhecimento racional é descendente do pensamento religioso. Ele emerge como apropriação racional daquilo que, na espontaneidade da linguagem simbólica, era reproduzido pela tradição religiosa pelas narrativas, pelos rituais e pelas regras de convivência. Ainda que possamos afirmar uma maior elaboração elaboraç ão do pensamento lógico em relação ao religioso, o fato é que em ambos os casos as linguagens estruturam o mundo, superando o caos e a desordem. O conhecimento religioso opera como um sistema de representação da realidade. Composto como negociação complexa entre indivíduos e disposto em uma temporalidade capaz de amadurecer e produzir consensos, o conhecimento religioso revela a vida social em sua capacidade de significar a realidade, como abstração mais básica da qual deverão emergir as abstrações conceituais da filosofia e das ciências. Nesse sentido, convergem em um mesmo sistema representativo a existência da mente que pensa, a sociedade organizada e as crenças religiosas.
Conclui Durkheim: “Assim, longe de haver entre a ciência, por um lado, a moral e a religião, por outro, a espécie de autonomia a utonomia que tão frequentemente fr equentemente se admitiu, esses diferentes modos modo s de atividade humana derivam, na realidade, de uma só e mesma mesma fonte”. fonte”.22 A fonte é, evidentemente, a vida social que em sua essência significa a capacidade de ir além do individual e construir consensos impessoais e universais capazes de garantir a convivência humana. Em suma, podemos dizer que a religião organiza o mundo nos seguintes aspectos:
a ) Compõe uma visão de realidade As representações religiosas, assim como todas as outras, oferecem uma visão global da realidade — cosmovisão — que permite superar a desordem, o acaso e a anomia. Os seres sobrenaturais, com suas funções e ações no mundo imanente, constroem um sistema que permite situar a realidade: como um conjunto significativo que tem origem e fim; como diversidade que se encontra em uma unidade maior; como realidade contingente, limitada no tempo e no espaço pela dinâmica da vida e como possibilidade de sentido, se ntido, perante os limites implacáveis da vida, de modo particular a morte. Assim sendo, as cosmogonias e as escatologias religiosas demarcam a temporalidade do mundo, fazem a distinção entre natural e sobrenatural e fornecem um significado para a realidade imanente. As ações divinas convidam os seres humanos a pensar nas razões e nos fins de suas ações no mundo. Os rituais religiosos oferecem o caminho sobrenatural que revela o segredo da vida, com suas cenas primordiais reencenadas e carregadas de salvação. Cada grupo social e, concomitantemente, cada indivíduo situa-se como ser distinto e relacionado dentro desse conjunto maior de significados. O mundo e a história humana adquirem igualmente significados em termos de causa e efeito; têm origem e têm finalidade. As narrativas das origens e as intervenções rituais oferecem a possibilidade de explicar as causas primordiais e intervir no curso da natureza e da história na direção de uma finalidade benéfica. Nesse sentido, a própria magia significa o esforço de superar determinismos e acasos e construir um futuro com a força ritual. Por conseguinte, a vida social adquire significados capazes de superar a ausência de regras. Assim como o mundo tem sua posição definida numa ordem transcendente mais ampla, a sociedade institui suas normas e regulamenta seus papéis e funções.
b ) N ormatiza ormatiza a vida social e individual Portanto, a sociedade institui-se como espelho imanente da realidade sobrenatural. Ela estrutura-se estrutura-se a partir do princípio “assim na terra como no céu”. As ordenações narradas pelas tradições religiosas, orais ou escritas, seja do tempo das origens, seja aquelas historicamente reveladas, tornam-se ordenações sociais que chamam cada fiel a imitar os caminhos dos seres sobrenaturais, em outros termos, a ter uma vida moral coerente com aquilo que acredita como verdade. O conhecimento religioso significa, portanto, coerência e prática, de forma que a vida daquele que crê deve ser um testemunho das realidades professadas. Sem essa vivência não há conhecimento autêntico, mas, ao contrário, traição aos princípios professados e ao próprio Deus. A noção de pecado expressa essa postura de traição e incoerência em relação à ordem primeira transcendente que deve orientar a ordem imanente, assim como a noção de santidade expressa a imitação perfeita da ordem sobrenatural e de suas regras. Bem e mal são as categorias fundamentais que estruturam as ordenações morais. O bem relaciona-se às verdades originais e reveladas aos seres humanos, o mal é exatamente o seu
contrário. O conhecimento religioso pode ser visto, em última instância, como a capacidade de distinguir o bem e o mal, de “escolher o bem e evitar o mal”, como ensinam as tradições religiosas.
c ) P roduz finalidades O conhecimento das origens permite prever o significado último da realidade. Afinal a eternidade conserva suas verdades desde sempre, o bem das origens é o mesmo bem da consumação final. A realidade imanente do mundo flutua com sua contingência, nessa eternidade, dela saiu e a ela voltará de alguma forma. Independente das diferentes narrativas escatológicas, a religião afirma uma finalidade para o universo e para cada indivíduo. O mundo tem um percurso a cumprir, determinado seja pela vontade divina, seja pela ação humana capaz de colocá-lo na rota querida por Deus. As visões de tempo cíclico ou linear se relacionam de modo diferenciado com a finalidade, como bem sabemos. Mesmo que na primeira prevaleça o determinismo e a repetição, conhecer a finalidade da realidade é deveras importante, exatamente para que cada indivíduo possa libertarse da repetição — repetição — lei lei do carma, reencarnação — reencarnação — que que gera sofrimento. O descanso final na vida espiritual pura, livre da matéria, é a meta de felicidade. No caso das tradições que afirmam a possibilidade de construção ética do futuro escatológico, esse terá sido revelado na história h istória e os caminhos de sua construção igualmente oferecidos. O segredo consiste em fazer a história presente configurar-se às suas promessas, portanto em antecipar o futuro. No conhecimento religioso, o futuro ocupa, seguramente, um lugar fundamental na condução da história e da própria vida humana. A certeza ou a incerteza, a esperança ou o medo em relação ao futuro pode produzir posturas políticas e morais diferenciadas nos grupos sociais e em cada pessoa crente. Certamente, a consciência da relevância do futuro para a humanidade se mostra em expressões político-religiosas distintas: como antecipação imediata (milenarismos), como imitação (messianismos) e como construção (éticas religiosas). A tradução do futuro em finalidades éticas, como depósito de valores a serem vivenciados no tempo presente, parece ser o grande segredo da saúde política das religiões, o que permite evitar o esgotamento da reserva escatológica e, por decorrência, dos valores na dinâmica fugaz da história, como também a indiferença, filha do determinismo. Portanto, o conhecimento religioso ocorre numa dinâmica de cumplicidade entre o sujeito e os objetos de sua crença. A socialização religiosa ocorre, via de regra, numa intensa interiorização dos conteúdos cridos por parte do fiel, na busca da imitatio dei, dei, ou do testemunho. Aqui, posturas diferentes podem caracterizar as tradições e dividir as águas do comportamento religioso. Do ponto de vista moral, ficam separados os mais coerentes dos menos coerentes, do ponto de vista institucional, os mais sagrados que compõem compõ em a hierarquia hiera rquia dos menos sagrados, os leigos e, do ponto de vista da interpretação, os mais fidedignos aos fundamentos religiosos (os fundamentalistas, por exemplo) daqueles que propõem uma adaptação dos fundamentos no tempo e no espaço. O método de conhecimento religioso surge como uma questão importante na socialização religiosa, como caminhos oferecidos ao entendimento e à vivência religiosa, caminhos que, quase sempre, se apresentam plurais e até opostos, dentro de um mesmo sistema de crenças. A figura do especialista (o mestre, o guru, o sacerdote, o líder espiritual) ocupa um lugar importante na condução do fiel pelo caminho religioso correto. O aprendizado religioso consiste
em um aprofundamento que se dá pela via prática na forma da imitação de Deus. Quanto mais coerente a vida do fiel, mais conhecimento ele terá alcançado dos mistérios da salvação oferecida por Deus. Deus . O crescimento espiritual ocorre ocorr e em um ciclo evolutivo que envolve os conteúdos e as vivências da crença, cujo resultado pode ser expresso na regra: maior conhecimento, melhor vivência. vivência. Tal cumplicidade exige do fiel o aprofundamento de sua compreensão, no que se refere aos conteúdos por ele professados. A razão não constitui, pois, um dado à parte, mas, sim, um dado ativo que cobra lucidez do religioso, ou seja, capacidade de conhecer corretamente as doutrinas, o que significará a busca das regras corretas (conhecimento), para a adesão (convicção) e, por conseguinte, para a vivência correta (sabedoria) daquilo que busca conhecer.
3. A fé inerente ao ser humano O conhecimento religioso não significa um modo de pensar e relacionar do ser humano primitivo, superado pela cultura científica atual. Ainda que nas n as culturas antigas o religioso tenha uma posição hegemônica no conjunto das significações, em termos antropológicos a consciência humana permanece religiosa, mesmo que de forma não expressa em práticas explícitas. Hoje sabemos que a evolução da cultura processa-se não por rupturas mas sim por acúmulos de referências que sobrevivem e operam simultaneamente. As ciências são não só devedoras das categorias religiosas mas também parceiras atuais na significação do mundo. É preciso verificar a natureza distinta de suas finalidades e de suas linguagens, para que cada qual possa ocupar seu território sem estabelecer falsas hegemonias em nome da última verdade. As ciências não podem afirmar ou negar a autenticidade do conhecimento religioso por insuficiência de seu próprio método. Mas, como ponto de partida de seu próprio método, deve começar por afirmar a factualidade da religião como dado sociocultural, evidente no tempo e no espaço, dado que não só caracteriza a cultura humana na forma de uma arché arché da cultura contemporânea, mas também como um princípio ativo atual, capaz de alavancar posturas morais e políticas nos grupos e nos indivíduos. Com relação ao mérito da religião — ser ou não autêntica — autêntica — , as ciências não podem emitir sequer opinião em nome da própria empiricidade e verificabilidade de seu método. Desse, escapa o horizonte transcendente dos valores e das finalidades, ambos cridos como verdadeiros e assumidos como valores. Cientificamente não se pode dizer nem sim e nem não a seu respeito, r espeito, o que contrariaria contr ariaria a própria natureza da fé, que se afirma exatamente como adesão àquilo que não se verifica e que, não obstante, se pode esperar. A definição cristã de fé, presente na Carta aos Hebreus, expressa essa visão: “A fé é a posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se veem” (Hb 11,111,13). A ciência só pode demonstrar as realidades que se veem e não outras que forneçam esperanças e valores a serem vividos. Ela se ocupa do fato e não do sentido, expõem a lógica interna dos objetos e não sua posição ética na visão global da sociedade e do ser humano na história. Não se trata de sobreposição de uma sobre a outra, mas sempre de complementaridade de visões e de práticas, em nome da verdade maior. O conhecimento religioso ocorre no ser humano como posse livre dos indivíduos de uma oferta de sentido para a realidade. A busca do significado definitivo e seguro para a vida humana caracteriza as adesões e construções religiosas. Sem a fé nessa dimensão transcendente não há conhecimento religioso e, em última instância, nenhum tipo de conhecimento. Isso significa dizer que todas as construções humanas, as religiosamente explícitas ou não, se dão a partir de
valores professados e aderidos que escapam, porém, do universo predeterminado das demonstrações científicas.
a ) A fé antropológica Todo ser humano crê, portanto, em algo não demonstrável que adota como valor orientativo de suas decisões e ações, mesmo que não explicite objetivamente esse valor. Os ideais de mundo e de ser humano diferentes dos atuais movem os projetos sociais, políticos e pedagógicos de um modo geral, muito embora na condição de ideal não possam ter nenhuma garantia de sua realização, nem em termos de viabilidade histórica, nem em termos de verificabilidade científica. Contudo, são esses valores assumidos como finalidades que orientam as práticas humanas e as fazem buscar os meios de realização em cada tempo e lugar. É o ainda não que não que impulsiona e sustenta as ações atuais do ser humano como sentido maior agora. A fé é que permite dar sentido e orientação para o ser humano, sendo que nenhuma do agora. certeza pode, de fato, orientá-lo. A incerteza do futuro, rigorosamente aberto e sem garantias aos projetos individuais e coletivos, só pode ser suplantada com apostas creditadas como certas e possíveis. Os códigos dessa apostas podem ser religiosos ou meramente políticos. Tal é a função fun ção das utopias que os indivíduos e grupos constroem. Elas movem o hoje na busca dos tempos melhores para cada um e para todos, contestam as condições presentes em nome do melhor e antecipam em prestações o mesmo ideal. Sem essas apostas, nenhum projeto humano teria vigor e consistência, nasceria morto na inércia da incerteza. Evidentemente, esse sensus esse sensus fidei social fidei social se mostra como um dado ético e político importante na construção das sociedades de ontem e de hoje. Qualquer consenso social tem, na verdade, por debaixo de seus valores, um senso de fé que o fundamenta e apresenta-se como capaz de agregar indivíduos e grupos para além de seus interesses imediatos e mesmo do imediatamente viável. Para além do imediato, o espírito humano abre-se ao possível, para além da rotina ao inédito e para além do relativo ao absoluto. As construções culturais edificam-se sobre essa postura fundamental. O desejo, a vontade e a inteligência humana funcionam sempre nessa dinâmica de superação do presente imediato na direção do futuro e na busca do mundo mais adequado à sobrevivência e a convivência humanas, ainda que nem sempre exerçam bem esse dinamismo.
b ) A fé na sociedade moderna As sociedades tradicionais explicitavam suas finalidades religiosas em suas normas e instituições. A reprodução dos valores religiosos ocorria de forma espontânea pelas gerações afora, de forma que a sociedade refletia uma ordem coerente com a crença explícita. Isso vale para as sociedades tribais com suas endogenias pedagógicas, assim como para as civilizações, com suas instituições religiosas estruturadas e seus discursos religiosos, de certo modo racionalizados. Entretanto, as sociedades modernas edificaram-se sobre a regra da razão científica, ou seja, sobre convicções e práticas políticas baseadas nas possibilidades concretas de domínio da razão humana sobre a natureza e a história. As noções de certeza, domínio e verificação demarcam as construções sociais modernas como a priori priori teórico-metodológico e como princípio que garante a cada indivíduo direitos e autonomia. O que escapa dessa regra é visto como antigo e obscuro. Nesse sentido, a sociedade moderna pode ser vista como produto das certezas e da autonomia do ser humano.
Como já certificamos, a evolução das sociedades modernas expôs os limites dessa certeza, na medida em que fez aparecer o incerto e o ineficaz em suas próprias construções. O jogo real e incerto das variáveis que constroem as conjunturas, as consequências nefastas do domínio tecnológico para a sociedade, assim como a persistência daquilo que estaria superado como prémoderno, fizeram com que a consciência dos limites de uma racionalização absoluta da realidade, da presença permanente da incerteza em relação ao futuro e das possibilidades de manipulação das consciências emergisse como dado sempre mais real e contundente. As dinâmicas consolidadas da sociedade moderna expuseram mecanismos de sobrevivência de posturas que tinham a morte mor te anunciada, tais como a presença da religião, da magia e das apostas de fé de um modo geral. Porém, o paradoxo mais fundamental pode ser conferido dentro da própria dinâmica da sociedade moderna que, de fato, edifica-se sobre a confiança inabalável e certa em relação ao seu funcionamento, a sua eficiência e a seus benefícios a cada indivíduo que nela se encaixa. É nessa direção que o sociólogo Anthony Giddens explica o funcionamento da sociedade atual, estruturada sobre a confiança. confiança.23 Os indivíduos modernos acreditam, em princípio, nas instituições modernas sem exigir nenhuma verificação de sua autenticidade e intencionalidade. Vivemos em um sistema de confiança do qual não questionamos a legitimidade e, sequer, a sustentabilidade técnica e a segurança social. Assim ocorre com a comida que ingerimos sem conhecer as origens, com a condução que tomamos sem ter as credenciais do piloto, com a notícia que recebemos sem conhecer as fontes e com os serviços que contratamos sem saber da competência do especialista. A relação causa-efeito é não só ignorada mas também dispensada em nome de um funcionamento anônimo, automático e eficiente. Na verdade, do ponto de vista do funcionamento do sistema social moderno, a verificação de seus nexos práticos e normalmente eficazes levaria à sua própria paralisação. A confiança é a base de funcionamento regular da sociedade moderna, com as origens anônimas de seus mecanismos, com seus sujeitos comandantes e com seus especialistas peritos. Essa fé secularizada e implícita na máquina mágica moderna encaixa os indivíduos em um sistema de “piloto automático” que tem na satisfação e bem-estar bem-estar a prova de seu funcionamento e de sua autenticidade. Trata-se de uma confiança que, se rompida, instaura quase sempre o desespero massificante — massificante — o o pânico das aplicações de mercado quando de uma crise anunciada ou da segurança quando eclode um fato violento — e prefere a conservação à mudança, em nome de um bem-estar sempre mais eficiente e completo. A fé torna-se um princípio que mantém a ordem instituída e não antecipa ordens futuras qualitativamente distintas da presente.
c ) A fé como princípio do conhecimento O conhecimento lida com a verdade, ou seja, com processos e resultados que correspondam à realidade. Do contrário não poderíamos falar em conhecimento. Contudo, há formas distintas de expressar a verdade que demarcam a diferença entre o conhecimento religioso e o conhecimento científico. Aquele lida com uma verdade que transcende a verificação empírica, exatamente por situar-se no âmbito dos valores e, portanto, de ideais assumidos como sentido profundo da realidade. São verdades de fé acessadas pela intuição e pela vontade como algo razoável, porém não racionalizável do ponto de vista científico. Já o conhecimento científico busca a verdade de fato, delimitado e apropriando-se dos objetos na busca de sua regularidade. Enquanto a verdade
científica é, necessariamente, demonstrada, a verdade de fé não pode ser demonstrada, mas tão somente aderida como pressuposto e como sobreposto de toda a ação humana. Por conseguinte, a fé e seus objetos não podem ser demonstrados cientificamente. A tradição metafísica afirma a possibilidade de demonstrar pelo método lógico as realidades transcendentes: a causa e a finalidade última da realidade que coincidem com Deus. As tradições religiosas oferecem referências transcendentes que têm sua racionalidade própria; são razoáveis e não demonstráveis, uma vez que, no ato de assentimento da fé, a razão entra como faculdade capaz de discernir e orientar a vontade e a ação. Porém, a fé posiciona-se, na verdade, como princípio que perpassa todas as opções humanas, inclusive aquelas científicas. Como já verificamos, as formulações científicas resultam de processos investigativos que têm em seu ponto pon to de partida pressupostos, pressup ostos, explícitos ou implícitos, que amparam o ato racional: a crença de que a razão pode conhecer e de que o real pode ser conhecido são postulados que antecedem à verificação dos resultados científicos. Desse modo, a razão só se lança na aventura da investigação do desconhecido porque aposta em sua capacidade e na possibilidade de resultados corretos e eficientes. As opções humanas, por entender e apropriar-se da realidade, são antes de qualquer coisa aposta em valores que antecedem à certeza e à demonstração. O conhecimento religioso ocupa-se, portanto, desse universo que antecede à dinâmica do conhecimento científico, oferecendo ao crente conteúdos explícitos e caminhos para a vivência desses valores. Seu território é o universo dos valores aderidos pelas faculdades humanas como verdadeiros, bons e belos para a vida humana feliz. A teologia vai nascer do conhecimento religioso como extravasamento racional, logos grego, como fundamentação em conteúdos revelados da impulsionado pelo vetor ativo do logos grego, tradição judaico-cristã e como institucionalização de experiências místicas soteriológicas sobre Jesus, o Ungido (Cristo) de Deus. É dessa questão que nos ocuparemos a seguir.
CAPÍTULO II
O conhecimento teológico O conhecimento teológico começa e termina no conhecimento religioso, na medida em que nesse âmbito a fé se põe em ação e institucionaliza-se como tradição em uma comunidade. Em termos mais precisos, a razão orienta-se a partir da fé e ela retorna, buscando a um só tempo justificar a fé como um modo de ver a realidade e de viver a vida. É no seio da fé que a reflexão teológica encontra o seu proprium seu proprium epistemológico, epistemológico, distinto de outras ciências. Enquanto ciência da fé, a teologia aventura-se a vincular, no ato de conhecimento, fé (o universo dos valores) e razão (o universo da lógica e da demonstração). A dupla direção da investigação teológica, ao ad intra da intra da fé (a investigação dos seus conteúdos) e ao ad extra, extra, quando a fé se torna um princípio de leitura da realidade, coloca a teologia em um lugar epistemológico específico: o mesmo movimento que conduz a fé a interpretar a realidade conduz a inteligência a investigar a razoabilidade da fé. Instaura-se um ciclo incessante de articulação entre fé e razão que não poupa do juízo lógico os conteúdos canonizados da fé, bem como não isenta nenhum aspecto da realidade do juízo da fé. Com efeito, aquilo que todo conhecimento e toda ação humana têm como ponto de partida nem sempre consciente, explícito ou deliberado (os valores motores das decisões e ações), na teologia torna-se pressuposto deliberado e assumido como dado integrante da reflexão. Foi por esse caminho que a teologia trilhou desde as suas origens, tecendo com a razão investigativa relações diversas. A história dessas relações constrói um percurso de rejeições e de apropriações entre os dados da fé e os métodos científicos que vão sendo construídos, sendo que, para a teologia, o diálogo e até mesmo o uso das ciências no sentido lato ou estrito constitui um dado natural em seu método. Nos caminhos da razão honesta que busca a verdade, o encontro entre os diferentes conhecimentos acontece espontaneamente, mesmo que não haja consenso ou síntese. Um balanço dos resultados de tal relacionamento detectaria, possivelmente, sucessos e fracassos, como dados antagônicos de um mesmo caminho de buscas. Sucesso: a história rica da teologia com seus muitos paradigmas. Fracasso: a inacessibilidade de seu objeto perante o tribunal da razão que se consolida na era das ciências. Sucesso: a razão apropriou-se em um movimento ilimitado de busca do Transcendente. Fracasso: a razão teológica não produziu uma ética capaz de agregar a humanidade nos tempos modernos. Sucesso: a teologia produziu a legitimidade da tradição judaico-cristã no seio da cultura ocidental. Fracasso: a teologia não foi capaz de agregar o conjunto dos conhecimentos, não obstante seu objeto ser, por natureza, unificador. Sucesso: a teologia acolheu em seu seio, ainda que numa lógica da “assimilação tardia”, os resultados das ciências modernas. Fracasso: o fundamentalismo dispensa nas suas várias expressões os juízos da razão e a mediação das ciências. Sucesso: a teologia conserva e reproduz em sua racionalidade a possibilidade de criação de modelos interpretativos. Fracasso: a cultura hipermoderna raptou para o âmbito do desejo a dinâmica da fé, dispensando sempre mais a razão. Esse balanço poderia continuar desdobrando-se em muitos outros itens. Certamente, poderíamos repeti-lo de modo, quase idêntico, aos resultados da filosofia e das ciências na história do Ocidente. Sucessos e fracassos não são resultados puros e opostos na cultura humana, mas, ao contrário, eles se mostram concomitantes, a depender do ponto de vista que se adota. Por exemplo, um fundamentalista considera sucesso e fracasso, exatamente o oposto dos juízos
acima enunciados. Contudo, as razões da teologia possivelmente não advêm de nenhum balanço. Elas se mostram, antes de tudo, na própria existência da teologia na cultura ocidental, para além da eficácia de seus resultados teóricos e práticos. Em termos teóricos, o resultado é sempre relativo aos paradigmas que vão sendo construídos, feitos e refeitos no tempo e no espaço. Em termos práticos, circunscreve-se, igualmente, aos contextos históricos, de forma que, ainda que a ortopráxis constitua um critério no julgamento da veracidade teológica (Quem ama conhece a Deus: 1Jo 4,7-8), ele não esgota a sua densidade histórica e validez teórica. A prática teológica reta significa a consciência de sua função espiritual na vida do crente e na sua função sociopolítica em cada contexto. A eficácia imediata da teologia poderia instrumentalizá-la epistemológica (como uma tecnologia) ou politicamente (como uma ideologia). A função de fornecer sentido para as ações humanas garante-lhe sempre uma posição transcendente em relação às conjunturas, como reserva de significados éticos capazes de produzir posturas históricas diferenciadas nos fiéis. Em chave weberiana, a teologia é um tipo de ação visando a valores, ou seja, que tem finalidade em si mesma. Sua finalidade é ética e legitima-se por si mesma em cada contexto em que se insere. Nesse sentido, pode-se dizer que, do ponto de vista da eficácia prática imediata, a teologia perfila-se com a filosofia e as artes: uma abordagem sem eficácia imediata e muito menos lucrativa. Por conseguinte, a pergunta: para pergunta: para que serve a teologia? não teologia? não tem sentido, revela um equívoco sobre a natureza de seu objeto e de sua metodologia. As ciências modernas foram constituídas sobre um valor prático que acabou universalizando-se para outras formas de conhecimento, incluindo as ciências humanas. Uma cultura científica dominada pelos resultados torna-se sempre mais hegemônica em nossos tempos, de forma que, se o conhecimento não produz resultados tecnológicos, terapêuticos, políticos ou econômicos, será considerado de segunda categoria ou até mesmo uma falsa ciência. O conhecimento teológico expressa uma curiosa busca de síntese entre questões que envolvem diferentes faculdades humanas: o desejo, a vontade e o intelecto, exigindo que se unifique o que a organização moderna do conhecimento separou, ou até mesmo renegou. A neutralidade do intelecto é normalmente adotada como regra máxima do que recebe status recebe status de ciência, coisa que dispensa, necessariamente, o desejo e a vontade, considerados interferência da subjetividade no exercício isento da objetividade. Contra a neutralidade, a teologia afirma como objeto de sua investigação aquilo que o desejo busca e a vontade adere como verdadeiro, antes que a razão dispare seus juízos e formule suas leis. Contudo, o juízo da razão não poupará de seus testes os conteúdos cridos e aderidos pela fé. Ao contrário, busca seus fundamentos, expressa sua razoabilidade e comunica seus enunciados com rigor sistemático. Além desse teste racional, a teologia submete a realidade, em seus múltiplos aspectos, ao teste dos valores propugnados pela fé, busca desvelar o sentido radical das coisas a partir do confronto com as fontes da fé: o sentido da vida e da morte, o sentido da história e da sociedade, o sentido da pessoa e de suas ações etc. et c. Desse modo, as dimensões da fé e da razão relacionam-se de maneira crítica e construtiva, resultando paradigmas interpretativos da realidade que permitem aos fiéis situarem-se de maneira lúcida e comprometida em suas tradições, em suas comunidades e no mundo, mas possibilitando, também, àquele que não professa uma fé explícita perceber um modo de ver a realidade que busca um sentido para as coisas e para as ações humanas.
1. Teologia: conhecer e saber Iniciemos este item fazendo algumas distinções conceituais que facilitam a compreensão do conhecimento teológico, nos termos de sua globalidade anteriormente postulada. A dinâmica da fé envolve o sujeito em suas múltiplas dimensões e lança-o para compromissos no contexto em que se insere. insere.24 A razão que integra esse processo como princípio de discernimento, fundamentação e construção produz como resultado o discurso teológico, em termos amplos uma racionalidade teológica. Trata-se de uma racionalidade porque fundamenta, justifica e sistematiza conteúdos dentro de um conjunto coerente capaz de situar os sujeitos e orientar suas condutas. De fato, a razão é a capacidade humana de unificar o diverso em um sistema mais amplo de sentido que envolve as faculdades humanas e permite ao sujeito posicionar-se na realidade com conhecimento de causa e direção, com decisão livre perante as possibilidades e com autonomia propositiva. O conhecimento teológico é, ao mesmo tempo, resultado e construção da razão, instituindo-se com regras claras seu objeto e seus métodos. Ele envolve em seu labor metodológico os seguintes âmbitos: experiência, fé, conhecimento e sabedoria.
a ) O âmbito da experi ência Antes de qualquer posicionamento humano reside a experiência; experiência; é dela que o ser humano emerge como espécie e como indivíduo capaz de dar significado à realidade e, ao mesmo tempo, de transformá-la. A experiência é aquilo que fornece a base material, social, política e cultural que envolve o ser humano na sua relação com a natureza e com os semelhantes e da qual ele emerge com sua identidade e capacidades. A ambivalência da vida humana fornece a dinâmica básica da experiência. O que o ser humano crê, pensa e age é resultado de sua relação de dependência e de autonomia com seu contexto. Vida e morte constituem a ambivalência mais imediata, da qual decorrem outras ambivalências, bem como interrogações e buscas de sentido que trilham da ignorância para o conhecimento, da fraqueza para a força, do nada para o ser .25 Que a experiência seja o ponto zero de todas as construções humanas estão de acordo as teorias filosóficas (Aristóteles, Tomas de Aquino e David Hume), a tradição judaico-cristã (a noção de criação e criatura) e todas as ciências (com seus objetos empíricos). A noção de Revelação que fundamenta toda a teologia parte do princípio de que Deus fala de modo humano e através dos homens, ou seja, através da realidade concreta e não de modo supra-histórico. Com efeito, a experiência não constitui uma espécie de cenário das construções humanas, ou antes, do próprio humano. Nela, por ela e para ela as crenças, as ideias, os valores, as convicções e as normas são construídas e repassadas de geração em geração. A fé tem seu lugar fundante na experiência que se faz do significado simbólico da realidade, como lugar e tempo da Revelação de sentidos para os sujeitos humanos. A experiência da fé, tanto no aspecto objetivo (de uma determinada tradição), quanto no aspecto subjetivo (instância primeira do ato de crer), constitui a fonte permanente da teologia.
b ) O âmbito da fé A crença, crença, ou de maneira genérica a fé, diz respeito aos pressupostos a priori que priori que adotamos como máximas incondicionais que orientam nossas decisões e ações. Ela não se identifica com uma única faculdade humana, mas envolve todas elas em uma aposta fundamental: o desejo como força motora para o objeto da crença, a inteligência como discernimento e a vontade como
decisão. O que é crido torna-se imediatamente valor e convicção. O valor é é a concretização do que se crê, fazendo o princípio tornar-se finalidade, a ideia traduzir-se em imperativo e a visão formar convicção. O valor adotado como máxima torna-se convicção, convicção, passa a orientar as ações e formula-se em normas normas positivas ou restritivas concretas, doutrinas e mandamentos instituídos que se impõem ao indivíduo e ao grupo. grupo.26
c ) O âmbito do conhecimento Aqui se coloca a capacidade da inteligência de definir, decodificar e formular noções sobre objetos. É a faculdade do intelecto por excelência, quando o sujeito coloca-se perante o objeto e dele se apropria com autonomia, crítica e criatividade, e responde sobre sua natureza e dinâmica. As perguntas pelo que que,, como e por que que são postas e respondidas pela inteligência. A relação causa-efeito, as relações entre as diversidades e a lógica interna das coisas são estabelecidas pelo conhecimento na sua linguagem simbólica, filosófica ou científica. O conhecimento pressupõe, como já dissemos, o sujeito autônomo capaz de distanciar-se da realidade com consciência, os objetos cognoscíveis apropriados, o método estabelecido e aplicado e o resultado claramente comunicado. Sem esses tópicos, o conhecimento pode tornar-se opinião, ilusão ou falsificação da realidade. Desse dinamismo cognitivo nenhuma dimensão experimentada pelo ser humano tem saído ilesa. Ao contrário, passou pelo teste da verificabilidade lógica ou empírica.
d ) O âmbito da sabedoria Aquilo que é conhecido não produz necessariamente efeito na vida do sujeito que o realiza. Pode constituir uma habilidade que não conduz a vida do sujeito na direção de uma finalidade que lhe dê sentido. A sabedoria significa exatamente o conhecimento colocado a serviço do sentido; ela envolve a experiência, a inteligência, o valor e a crença. Enquanto o conhecimento tem a ver com a compreensão e posse da realidade, a sabedoria diz respeito ao sentido profundo e à inserção do sujeito dentro dela; o conhecimento passa pela lógica e a sabedoria pela vivência; conhecer é buscar adequar de modo coerente a ideia com a realidade, saber implica a adequação do que se conhece com o que se vive. A sabedoria conduz, portanto, ao sentido e à felicidade, uma vez que o sujeito topou com a verdade, mesmo que em sua inevitável parcialidade. Ela é a virtude moral intelectualmente fundamentada, resultada da reflexão profunda e contínua sobre a realidade: a razão que entende, decide e vivencia o que experimentou, questionou e respondeu. A teologia é conhecimento que visa conduzir à sabedoria. Em outros termos, a sabedoria é uma de suas dimensões. Se essa não constitui uma exclusividade sua, coloca-se, ao menos, como tarefa ex oficio. oficio. A relação orgânica que mantém com a fé não se trata de uma relação meramente epistemológica, mas uma relação ética que visa justificar e fundamentar uma determinada postura humana perante a realidade. Quem entra no território do sentido, não importa a via, vai vincular no mesmo ato a inteligência, o desejo e a vontade; vai conhecer saboreando ( saber saber = sabor ). ). A sabedoria é essa síntese ampla e profunda que tem a teologia como um de seus caminhos de realização, de modo particular na esfera da tradição cristã.
2. A sabedoria cristã e as origens da teologia
As religiões visam, portanto, conduzir seus adeptos à sabedoria. Elas não são um objeto oferecido primeiramente ao entendimento de seus adeptos, como uma filosofia, mas um caminho de salvação abraçado como possibilidade de felicidade e que envolve, sempre mais, todas as dimensões do fiel. A experiência religiosa demarca uma ruptura na vida daquele que a realiza e a possibilidade de trilhar um novo caminho. A conversão de Buda significou o encontro do caminho (o meio-termo) da vida feliz. A experiência religiosa de Muhammad na caverna do Monte Hira e descrita como o abraço irresistível do Anjo ordenando-lhe: Recita! O profeta Jeremias expressa sua experiência religiosa como força sedutora: “Seduziste-me “Seduziste-me Senhor e eu me deixei seduzir. Tornaste forte demais para mim, tu me dominaste” (Jr 20,7). Com o Cristianismo não é diferente. Trata-se de um caminho de vida oferecido àquele que acredita em Jesus Cristo. Ser discípulo de Jesus é, antes de mais nada, segui-lo, trilhar um novo caminho. O ser cristão foi compreendido desde as origens do Cristianismo como caminho de perfeição que busca a identificação com o Mestre Jesus Cristo. Constitui, portanto, antes de tudo, um modo de ser e não somente um modo de pensar. Esse modo de ser se faz em um processo de aprendizagem contínua e sem fim, o que o evangelista Mateus deixa registrado em termos radicais: “Sede perfeito como vosso Pai do céu é perfeito” (Mt 5,48). Contudo, nas origens do Cristianismo, a noção de sabedoria foi construída em um contexto de diversidades e de lutas dentro da própria comunidade cristã. A afirmação peremptória do Apóstolo Paulo da identidade da sabedoria cristã expressa a tensão fundante do Cristianismo entre os postulados do Judaísmo e do Helenismo. É sobre essas duas matrizes socioculturais que o Cristianismo construiu sua identidade como movimento de seguimento de Jesus morto e ressuscitado. O cristo crucificado é escândalo para os judeus e loucura para a sabedoria grega, mas é a sabedoria para aqueles que nele acreditam (cf. 1Cor 1,22-25). Nascido do Judaísmo sinagogal e dentro do mundo mu ndo greco-romano, greco-ro mano, o Cristianismo significou a elaboração de uma experiência original em meio à diversidade e em diálogo com ela. O que conservar da tradição judaica e o que assimilar das tradições gregas foram seus grandes dilemas e, ao mesmo tempo, sua potencialidade, na condição de novo grupo religioso, cada vez mais distante do Judaísmo oficial. Os primeiros líderes cristãos, de modo emblemático Paulo, edificaram uma nova cosmovisão religiosa, tendo no centro a pessoa de Jesus Cristo, o Ressuscitado que permanece vivo na comunidade dos seguidores através de seu Espírito. Desse modo, entrar para a comunidade cristã não significa tão somente acolher uma mensagem de um líder religioso, mas sobretudo fazer a experiência de sua presença viva e atuante na comunidade de fiéis, aderir a um novo modo de viver.
a ) Quem ama conhece a Deus O Judaísmo sinagogal já havia consolidado um tipo de vida religiosa que exigia conhecimento de um determinado conteúdo: as Escrituras Sagradas. Conhecer e entender as Escrituras constituía o centro da vivência religiosa, possibilidade de conhecer o projeto de Deus e o caminho de felicidade. A vida religiosa é aprofundamento contínuo nesse conhecimento, na busca de uma síntese sempre mais perfeita entre o que se conhece e o que se vive. De fato, a noção de Texto Sagrado confere uma dinâmica objetiva a essa experiência religiosa que extravasa e supera as introspecções puras que colocam o fiel numa relação direta de seu eu com eu com um mestre ou guru, como em muitas tradições orientais. No caso da tradição sinagogal, tratavase de compreender o que Deus falou para vivenciar seus mandamentos. Nesse sentido, as escolas
especializadas nas Escrituras formam especialistas que são testados não só em sua vontade de crescer na sabedoria, mas igualmente em seu conhecimento objetivo das Escrituras, que exige domínios da memória, da interpretação, da argumentação, assim como a capacidade de comunicação. Portanto, em torno das Escrituras se dão o culto, o estudo e a vivência. Desejo, vontade e inteligência são faculdades solicitadas no ato de decisão e de vivência religiosa. Assim, as noções de verdade e falsidade no ato de compreensão religiosa, de conhecedor e aprendiz, especialista e leigo, tanto quanto as noções de coerência e incoerência no momento da vivência, constituem parâmetros estruturantes da vida religiosa sinagogal. É dessa cultura de ensino-aprendizagem (conhecimento) que surge o Cristianismo e a partir dela terá que construir sua compreensão de Jesus. Este foi interpretado pelos primeiros líderes da comunidade cristã no âmbito da tradição das Escrituras, de forma que o Jesus de Nazaré (Jesus histórico) e o Messias prometido pelos profetas (Cristo da fé) se fundem na mesma referência de fé. Fato histórico e interpretação, adesão e compreensão, vontade e entendimento são dimensões de uma mesma atitude de quem se dispõe a seguir o Cristianismo nos seus primórdios. A sabedoria cristã exige fé, conhecimento e decisão. Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14,4). Por ele Deus revelou e oferece salvação como realização de suas promessas desde os tempos antigos. Contudo, não se trata de conhecer algo do passado, mas de inserir-se em uma dinâmica presente que possibilita experimentar a ação atual atu al de Jesus, Jesu s, mediante seu Espírito. A experiência exper iência da ação do Espírito tem um aspecto individual e interior e um aspecto comunitário e exterior. Seguir Jesus é inserir-se na comunidade e na relação intersubjetiva, galgar um modo de vida pautado pelo amor. Quem se refugia na interioridade não alcança a sabedoria. O outro se posiciona como mediação para p ara o crescimento espiritual. esp iritual. Sem amor nada tem valor, afirma Paulo. Quem ama conhece a Deus, ensina João.
b ) J esus é a sabedoria de Deus A sabedoria grega de que fala Paulo refere-se ao conhecimento racional, à capacidade de o sujeito explicar a realidade com sua própria inteligência, sem necessitar de respostas fornecidas pela tradição religiosa. A filosofia grega já havia atingido seu apogeu especulativo com os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles, cumprindo essa programática. As primeiras comunidades cristãs, inseridas nas cidades greco-romanas, falam a língua grega e líderes cristãos conhecem as correntes filosóficas gregas, especialmente as da época do chamado período helenista, que pretendiam exatamente oferecer orientações para a vida feliz. Os pensadores cristãos estão, inevitavelmente, em contato com essas correntes de pensamento e terão que conversar com elas, seja para rejeitá-las, seja para utilizar-se de suas categorias na elaboração de argumentos em defesa e esclarecimento da fé cristã. Nesse contexto, o Cristianismo vai sendo formulado como uma proposta de vida: um conjunto de significado expresso por meio de descrições, reflexões e argumentações que visam apresentar e explicar quem é Jesus Cristo e qual é sua proposta de vida. Evidentemente, toda inserção cultural tem suas consequências, sobretudo para o grupo minoritário. O Cristianismo vai relacionar-se de maneira dialética com o pensamento grego, ora rejeitando explicitamente suas categorias, em nome da fidelidade à tradição judaica, ora assimilando deliberadamente suas categorias e, com certeza, incorporando espontaneamente
muitas de suas expressões conceituais, na medida em que fala a língua grega e congrega nas comunidades pessoas (gentios) de tradição helenista. O Cristianismo firmou-se, portanto, como um projeto de vida e como um conceito, explicado pelos Apóstolos e pelos escritores dos primeiros textos. Jesus é a sabedoria de Deus, a verdade revelada à humanidade, o modelo a partir do qual todas as coisas foram feitas, o Logos o Logos de de Deus que existe desde sempre. Essas designações a respeito de Jesus demarcaram um encontro entre, de um lado, a teologia judaica da sabedoria, construída no contexto helênico do Judaísmo tardio, e, do outro, as filosofias gregas que buscam o significado da realidade a partir de noções transcendentes pré-existentes das quais decorrem todas as coisas, como nos casos concretos dos arquétipos neoplatônicos e do logos estóico. logos estóico.
c ) Encontros e desencontros Tendo como ponto de partida a experiência de fé em Jesus Cristo, o Cristianismo estruturouse, portanto, em uma afinidade eletiva entre eletiva entre elementos da teologia judaica e da cultura helênica. Ao mesmo tempo em que os conceitos gregos ajudam a conferir significados às experiências cristãs e ao próprio Cristo, eles não tardarão a trazer divergências nas comunidades. O conhecimento de Jesus Cristo Cristo e a obtenção de sua salvação estarão situados no “fio da navalha” entre manter a tradição do Deus encarnado em Jesus Cristo ou render-se aos esquemas transcendentalistas das correntes filosóficas gregas que tendiam a desvalorizar o mundo empírico e, ao mesmo tempo, a apresentar um caminho de ascensão à salvação mediante um roteiro gnose) os mistérios da salvação. A oferecido àqueles iniciados que se dispunham a conhecer ( gnose) salvação, entendida, então, como conhecimento de determinados mistérios ocultos, poderia ser conquistada pelos iniciados, à medida que apropriada cognitivamente. gnosticismo; eram cristãos que Esses grupos cristãos formam um movimento designado gnosticismo; ofereciam uma interpretação e um roteiro de salvação divergentes do Cristianismo que já se tornara consensual. Certamente, um produto por demais pagão, racionalista e ocultista, estranho, portanto, ao que se afirmava como essencial na fé cristã: o seguimento de Jesus pela via fundamental do mandamento do amor. De fato, para o Cristianismo conhecer significava amar. O mistério já fora revelado em Jesus Cristo e não somente a alguns, e a salvação vem, por meio de Jesus Cristo, para aquele que nele crê e vive seu mandamento. Essa era a forma de conhecer do cristã. cristão, a gnose a gnose cristã. Para a gnose a gnose cristã, cristã, conhecimento e vivência da fé em Jesus Cristo são atitudes inseparáveis. O papel da razão não se sobrepõe ao da fé, o conhecimento tem como objeto o que Deus revelou desde os antigos e na plenitude em Jesus Cristo. As controvérsias entre cristãos e gnósticos estiveram no centro do Cristianismo primitivo e contribuíram indiretamente com as futuras distinções e diálogos entre a fé e a razão quando da elaboração da teologia cristã propriamente dita. O Cristianismo dos primeiros tempos tirou de sua própria dinâmica de formação uma conclusão: a razão por si só não oferece nem o total conhecimento da verdade revelada por Deus e nem a salvação; a fé necessita, por sua vez, da razão como princípio de esclarecimento e de comunicação de seus conteúdos. A teologia será construída ao longo da história a partir dessa convicção fundamental.
3. O conhecimento teológico na cultura ocidental Max Weber mostrou que a racionalização é o dinamismo que compôs de modo peculiar a cultura ocidental. Nessa parte do planeta, por uma série de confluências históricas, as tradições acumuladas nos diversos saberes vão adquirindo o formato de ciências; noutros termos, a natureza e a história vão sendo cada vez mais interpretadas e dominadas pela razão. As expressões culturais dão um salto e adquirem domínio racional: objetivação e método. método.27 A teologia faz parte dessa epopeia da razão ocidental como resultado inevitável do próprio Cristianismo, instituído em suas estruturas mais fundamentais, a partir do encontro entre as culturas judaica e grega. É esse o ambiente vital da teologia, de onde retira suas referências fundamentais, do ponto de vista da fé e da razão que lhe compõem como um tipo específico de conhecimento. O surgimento da teologia é muitas vezes atribuído tão somente às heranças helenistas, numa operação em que a tradição judaico-cristã teria fornecido a matéria religiosa, e a filosofia grega a forma lógica. Essa conclusão tem seu aspecto de verdade, porém não pode ser tomada de maneira rigorista, sob pena de reproduzir uma operação metodológica artificiosa que ignora os processos reais de trocas interculturais. O próprio Max Weber reconhece a não exclusividade da tradição grega no processo de racionalização, ao demonstrar o papel racionalizador exercido pela tradição judaico-cristã, desde os tempos da ética profética. Na verdade, não podia ser outro o resultado da interpretação sobre um evento históricosalvífico — salvífico — Jesus Jesus Cristo — Cristo — , cuja positividade histórica pede interpretação a partir das Escrituras judaicas e, ao mesmo tempo, conceitos adequados à sua comunicação na cultura grega. É sobre a visão positiva e evolutiva da história como resultado da relação dialógica e muitas vezes dialética entre Deus e o ser humano que se pode afirmar: a) a inteligência humana como princípio de discernimento da ação de Deus na história a partir do parâmetro das Escrituras; b) a liberdade humana em acolher a presença histórica de Deus e posicionar-se a partir dela; c) a centralidade do sujeito individual na decisão por Deus; d) a vivência coerente do plano de Deus em atitudes éticas que antecedem a qualquer forma de culto ou de acesso direto a Deus; e) a possibilidade de registrar pela escrita a experiência de salvação como códigos que testemunham para as gerações seguintes as ações de Deus. Com efeito, sendo o ato de interpretar, conhecer e comunicar sempre inserido culturalmente, ele será realizado pelas vias capazes de comunicar com consistência e clareza a mensagem de salvação. Nesse sentido, as categorias gregas serão instrumentos que comporão intrinsecamente a construção hermenêutica do Cristianismo. Os escritos do Novo Testamento, assim como a catequese cristã primordial, nascem como formulação e comunicação das verdades essenciais da fé cristã. Por sua vez, a teologia emerge, igualmente, desse encontro entre a sabedoria e conhecimento, como esforço de fundamentar e comunicar as verdades cristãs à inteligência grega. Portanto, mesmo que o Cristianismo contenha em suas origens judaicas e processo de constituição elementos racionais, podemos ver em sua evolução um esforço sempre mais explícito de conferir-lhe fundamentos racionais na linha do que Weber designou como rotina do carisma carisma que se sucede pela institucionalização do carisma. carisma.28 A teologia na sua acepção mais genérica ou primordial representa, sem dúvida, um momento de institucionalização da sabedoria cristã, seja como esforço de buscar coerência e consenso interno, quando batiam as divergências,
seja para justificar-se perante a sociedade grega. A geração das testemunhas diretas de Jesus já havia passado. Era preciso institucionalizar as fontes, os papéis e a moral das comunidades cristãs, sob pena de sucumbirem na desagregação e na dissipação no âmbito da cultura grecolatina dominante, mundo encarado pelo Cristianismo como lugar de sua missão.
a ) A origem da teologia A teologia surge, pois, como conhecimento do conhecimento cristão, ou seja, como elaboração lógica dos conteúdos conhecidos pela fé. É quando se pode distinguir conhecimento cristão de conhecimento sobre o Cristianismo. Cristianismo. Embora a teologia tenha um nexo constitutivo com o universo semântico judaico-cristão e, de certo modo, se defina a partir dele, em seu objeto material e formal, ela significa a objetivação racional daquilo que a fé adere como verdade. A dinâmica da teologia é de distanciamento e de retorno às fontes da fé. A tomada de distância da fé vivenciada é um recurso metodológico indispensável para o fazer teológico, sem o que prevalece o silêncio, mesmo que na forma legítima da contemplação. O retorno à vida de fé acontece por decorrência, na medida em que um discurso fornece compreensões sobre aquilo que se crê. Em outros termos, a teologia tem uma finalidade ética explícita e deliberada, pretende orientar opções e posturas a respeito da história humana. É nesse sentido que se tornou célebre a expressão crer para compreender e compreender para crer , como regra metodológica dos teólogos cristãos do mundo antigo. Entretanto, seguindo a ideia de racionalização da vida cristã, a teologia surge como um processo gradativo, marcado por divergências, opções e definições que consolidam, ao mesmo tempo e de modo interativo, o sensus o sensus fidei e fidei e a hierarquia dirigente. A sociologia nos ensina que consenso e estruturação do poder são expressões de um mesmo processo de institucionalização, no qual a regra comum se torna hegemônica. Em termos weberianos, a autoridade carismática dos primeiros Apóstolos será sucedida por autoridades tradicionais mais claramente instituídas em seus papéis — os bispos, os presbíteros e os diáconos — , assim como por autoridades racionais: os primeiros teólogos. No caso dos primeiros teólogos — teólogos — os os Padres da Igreja — Igreja — , esses dois tipos de autoridade costumam coincidir nos mesmos sujeitos: são líderes legitimados pela linhagem da sucessão apostólica e, ao mesmo tempo, teólogos. Já nos tempos apostólicos, Paulo mostrara-se como liderança, investida de carisma, de autoridade e de conhecimento racional e, não por acaso, torna-se o principal expoente da organização da Igreja nascente. E é a partir das Escrituras, incluindo aquelas dos primeiros Apóstolos e discípulos que se chamarão mais tarde Novo Testamento, que a reflexão da fé se desenvolverá ao longo da história nos seus mais variados modelos. De fato, a teologia em seu sentido lato pode ser vista como um processo de institucionalização da fé que se mostra em diversas fases: a) na fixação dos livros bíblicos do Novo Testamento que codifica tradições sobre Jesus e a Igreja primitiva; b) na elaboração dos primeiros teólogos em contato com a cultura helênica, como estratégia de defesa apologética da da fé; c) na fixação da doutrina e dos dogmas por parte dos concílios; d) como formulação propositiva dos conteúdos da fé com conhecimento conheciment o das regras metodológicas. Esse movimento de racionalização vai da fé professada à fé formulada e em seus primeiros tempos teve como objeto principal as questões trinitária e cristológica: coadunar a fé nas três pessoas divinas com o Deus uno, e as naturezas humana e divina na única pessoa de Jesus Cristo.
Para tanto, a filosofia grega contribuiu com suas categorias (essência, natureza, substância, pessoa), permitindo construir um discurso coerente sobre a fé. fé.29 A autocompreensão da teologia como intellectus fidei fidei ganha consistência e autonomia no interior do Cristianismo como uma atividade regular que vai agregar pensadores e constituir tradições diferenciadas no Ocidente e no Oriente cristão. Em ambos os casos, a reflexão sobre a fé torna-se tarefa indispensável para sua vivência e compreensão, o que dá continuidade à tradição escolar helenista, configurando, agora, uma paideia cristã, cristã, como bem conceituou 30 Werner Jaeger .
b ) A consolidação de paradigmas teológicos A teologia formou, portanto, suas escolas já nos seus primeiros séculos. Certamente, a escola de Alexandria, organizada sob a influência do neoplatonismo, foi a experiência mais emblemática e que se tornou um nascedouro de pensadores de cuja linhagem Agostinho é o representante mor. É, de fato, nas escolas que a teologia adquire autonomia como ciência da fé, onde se discutem métodos e teorias para o estudo da tradição da fé, nos moldes das escolas filosóficas gregas. As escolas teológicas iniciadas nos tempos patrísticos e consolidadas na Idade Média estarão em estreita sintonia com as tradições filosóficas; dessas retiram as teorias e categorias para a interpretação dos conteúdos da fé, assim como as regras lógicas para a sua sistematização. O neoplatonismo teve um papel constitutivo nos primeiros paradigmas teológicos da escola Alexandrina, em Santo Agostinho e, posteriormente, nas escolas medievais. No século XIII, com o surgimento das universidades, os novos textos aristotélicos permitirão a construção de um novo paradigma teológico que se perpetuará nas obras do eminente Tomás T omás de Aquino e, por meio de um forte processo de institucionalização protagonizado pela Igreja, comporá um sistema teórico pedagógico escolástico. De fato, a teologia ensinada nas escolas consolidou o princípio da articulação fé-razão e firmou-se como disciplina oferecida em currículos de ensino superior. Em última instância, a teologia cristã clássica é devedora dessas duas fontes principais: Platão e Aristóteles. Adotadas respectivamente por Agostinho e Tomás, as matrizes platônica e aristotélica subsistem nas teologias cristãs atuais do mundo reformado e católico. Até o século XIII, o paradigma agostiniano vigorou como hegemônico no Cristianismo e de lá para cá dividiu com o pensamento tomásico os territórios da reflexão teológica no seio das tradições cristãs. Tomás de Aquino tornar-se-á a principal fonte do pensamento católico oficial na tradição escolástica e, mais recentemente, no neotomismo. Agostinho permanece, por sua vez, como a fonte principal da tradição teológica protestante. De fato, é impossível pensar na cultura ocidental sem se referir a essas duas tradições, mesmo que de modo indireto. Agostinho e Tomás constituem, de fato, referências para temáticas que estão no fundo de nossas instituições e valores atuais, ainda que nas suas expressões mais secularizadas, tais como as moções de identidade, razão, sujeito, liberdade, alma, conhecimento, mundo e história. história.31 As matrizes culturais judaica e grega receberam nos dois pensadores sua fusão mais consistente e duradoura e, por meio do Cristianismo, ainda ocupam um lugar fontal na cultura ocidental. Foi, de fato, em meio a essas teologias, se não por seu intermédio, que as imagens e conceitos de espaço e tempo se estruturaram no Ocidente a adquiriram as suas formas atuais: visão de história que caminha para o futuro melhor, contagem do tempo, organização do calendário semanal, mensal e anual, a expansão espacial do Cristianismo para implantar o
império de Cristo entre os povos. É verdade que a modernidade significou, como vimos, um projeto de ruptura com o regime da cristandade, e assim tem operado por onde vai se consolidando. Contudo, foi o sujeito autônomo e capaz de pensar e agir no mundo com autonomia e responsabilidade, plasmado ao longo dos séculos pelo pensamento cristão, que possibilitou a emergência dessa nova fase da história. histór ia. Como vimos na primeira parte, ainda que a modernidade tenha construído suas instituições sem a presença direta da teologia, ela esteve presente no decorrer da história nas formas instituídas e eruditas, nas mãos de especialistas e de hierarquias eclesiais, bem como em inúmeras expressões populares, nas Igrejas que vão surgindo da vertente reformada do Cristianismo. Não obstante os avanços extraordinários das ciências nas dimensões macro e micro da vida, as religiões continuam eclodindo como sistema de interpretação da realidade, muitas vezes reproduzindo formatos arcaicos que se contrapõem aos resultados das ciências. Por outro lado, é forçoso reconhecer que as ciências jamais baniram com seus resultados o senso de mistério, que permanece subjacente ao real explicado e dominado como sentido radical, e aguarda adormecido aquém e além dos domínios da razão científica como última explicação das últimas coisas inexplicadas ou então como valor necessário ao direcionamento da vida de um modo geral. Assentada sobre a longa tradição teológica de raízes gregas e em boa medida por ela possibilitada, a teologia construiu novos paradigmas nos tempos modernos. A marca central desses paradigmas foi, sem dúvida, o esforço de dialogar com a racionalidade moderna, marcada pelo método de conhecimento conh ecimento empírico. As várias vá rias escolas esc olas teológicas que q ue ganharam ganha ram amplitude e consistência no decorrer do século XX puderam adotar resultados e métodos da filosofia e mesmo das ciências modernas, como meios indispensáveis de decodificar a realidade nos vários objetos e métodos que vão sendo construídos. Para tanto, a compreensão tomásica de teologia como ciência não só de Deus em si mesmo mas também de todas as coisas a partir de Deus oferece o amparo para que a razão avance na direção de múltiplos objetos, na busca de sua compreensão. As muitas teologias genitivas modernas (da história, do social, do corpo, da cultura, do feminino, da ciência etc.) podem contar com o auxílio das ciências com seus respectivos domínios sobre esses objetos; constroem nesse sentido um conjunto de teologias especializadas em sintonia com as especializações científicas. De igual modo, as chamadas teologias substantivas (do social, da ecologia, do gênero etc.) são efetivamente feitas sob a ótica mais fundamental, sub fundamental, sub specie fidei (“sob a perspectiva da fé”) e adotam a mediação das ciências para recortar seus objetos. No caso, o diálogo com as ciências contribui não só com a compreensão do objeto mas também com a construção da própria perspectiva. Nesse sentido, a teologia da d a libertação ancora o olhar da fé na experiência do pobre e a partir dele edifica seu discurso ético na busca da coerência da fé na sociedade de iguais; a teologia ecológica olha o planeta a partir da fé no criador e busca parâmetros éticos capazes de estabelecer uma convergência global que contribua com a salvação do planeta; a teologia das religiões resgata o potencial dialogal da tradição cristã e busca os meios de dialogar com as diferenças religiosas, igualmente em nome da fé. É nesse ponto que a teologia se distingue das ciências e, sobretudo, das ciências da religião, que podem adotar os mesmos objetos para estudo, porém necessariamente sem o olhar da fé. f é.
Contudo, a perspectiva da fé pode ser não só compreendida de diversos modos como também adotar várias maneiras de se fazer. A perspectiva pode ser fundamentalista e produzir resultados intolerantes e sectários. Pode ser de tal modo ortodoxa que não favoreça o diálogo com o mundo e reproduza ciclicamente as tradições dogmáticas constituídas. Pode ser também uma perspectiva autocentrada que busca dialogar, porém a partir de seu epicentro de significados, de forma a incluir as diferenças em seu universo de referência. Por fim, o teólogo pode operar com uma perspectiva de fé dialogante que assume a fé do outro como grandeza teológica e, portanto, produz uma teologia ecumênica ecu mênica que busca os elementos comuns nas diversas tradições religiosas ou numa teologia do plural que dialoga com as diferenças, acreditando serem elas um valor em si mesmas.
De qualquer modo, é forçoso observar que em todas as teologias estão presentes de modo implícito ou explícito alguns dados fundamentais e estruturantes da reflexão: a) a perspectiva da fé apresenta-se como dado metodológico que compõe o discurso e não somente como uma opção voluntarista do teólogo; b) tal perspectiva tem sua constituição original, desenvolvimento histórico e consolidação epistemológica no universo judaico-cristão; c) de forma que, em termos teóricos e metodológicos, o que se mostra como teologia deverá referir-se de algum modo a esse modus operandi operandi cognitivo, sob pena de introduzir uma ruptura semântica com um conceito milenarmente consolidado; d) a teologia das religiões significa a introdução de uma perspectiva que amplia o significado da própria tradição da fé cristã como grandeza que afirma o diálogo como dado implícito à fé e a verdade como realidade a ser buscada dentro e fora do Cristianismo. Por fim, em nome da fé e da razão, há que cobrar de todas as teologias uma função histórica consciente e explícita, no sentido de sua contribuição com a construção de um mundo que abrigue todas as espécies num sistema vivo subsistente, o que inclui a convivência humana sob o éthos da éthos da fraternidade. A vida é o princípio e o fim da teologia.
Crer e conhecer A palavra de Deus destina-se a todo homem, de qualquer época e lugar da terra; e o homem, por natureza, é filósofo. Por sua vez, a teologia, como elaboração reflexiva e científica da compreensão da palavra divina à luz da fé, não pode deixar de recorrer às filosofias que vão surgindo ao longo da história, tanto para algumas das suas formas de proceder como para realizar funções mais específicas. […] A teologia está organizada como ciência da fé, à luz de um duplo princípio metodológico: auditus fidei e fidei e intellectus fidei. fidei. Com o primeiro, recolhe os conteúdos da Revelação tal como se foram explicitando progressivamente na Sagrada Tradição, na Sagrada Escritura e no Magistério vivo da Igreja. Pelo segundo, a teologia quer responder às exigências próprias do pensamento por meio da reflexão especulativa. especulativa.1
A fé não é conhecimento […]. Aquilo que as pessoas se comprometem com paixão infinita em uma autêntica fé religiosa não é conhecido porque o objeto que lhe corresponde é transcendente. A fé não seria fé religiosa, nem teria o dinamismo da esperança e da confiança fundamentais, que tendem a um objeto transcendente, se fosse objeto de conhecimento. Isso fica patente quando consideramos alguns exemplos de objetos de fé que são fundacionais: a natureza benigna da realidade última como um todo; o valor supremo do ser em oposição ao não ser; o permanente significado do existente; o valor da vida humana e até mesmo da própria vida de alguém, ambas inseparáveis; que Deus existe, é pessoal ou benevolente; que a vida em geral e a vida de alguém em particular comportam um objetivo e um propósito; que existe uma forma humana de viver permanente e essencialmente consistente que é passível de ser determinada. determinada.2 E em matéria de unidade e coerência, a explicação mítica é bem mais satisfatória, securizante e reconfortadora que a científica. Diferentemente da explicação mítica, a científica não pretende fornecer conhecimentos sobre a globalidade e a completude do universo. Seus conhecimentos são inacabados e locais. Fornecem respostas parciais respostas parciais e provisórias […]. Uma das funções essenciais do mito não é somente ajudar os homens a suportarem a angústia e o aparente absurdo de sua condição humana, mas dar-lhes forças para vencer os grandes medos […]. A visão científica, ao contrário, repr esenta esenta um enorme esforço para libertar o conhecimento de toda emoção, de toda paixão e de toda subjetividade […]. Historicamente, nem sempre tal projeto foi realizado de modo tão racional e objetivo como se imaginou […]. A ciência se converte em mito quando se substitui a toda forma de conhecimento e pretende estender seu império e sua ânsia explicativa a todos os domínios da vida humana. humana.3 JOÃO PAULO II, Encíclica Fides Encíclica Fides et Ratio, Ratio, nn. 64-65. teologia, pp. 42-43 HAIGHT, Dinâmica HAIGHT, Dinâmica da teologia, 3 JAPIASSU, Ciência e destino humano, humano, pp. 65-72. 1 2
PARTE III
Especificidades Especificidades e relações
A teologia situa-se no universo acadêmico das linguagens científicas, ou seja, dos discursos instituídos como expressões da apropriação da razão sobre a realidade; origina-se do mesmo berço cultural e das mesmas buscas do espírito humano que resultaram na postura filosófica ou nas atividades do logos logos de um modo geral. E, como todas as formas de conhecimento, vai adquirindo feições próprias. À medida que avançam pela história, essas feições consolidam-se no seio da tradição judaico-cristã e, progressivamente, como atividade escolar da Igreja Católica e, mais tarde, das universidades e das demais Igrejas cristãs. O termo “teologia” vem da palavra grega theología/theologéin. Quer theología/theologéin. Quer dizer estudo (logia (logia)) de Deus (teo (teo). ). O primeiro uso desta palavra se dá em relação aos mitos. Aqueles que compunham e cantavam os mitos na Grécia antiga eram chamados de teólogos. O filósofo Aristóteles, que viveu no terceiro século antes de Cristo, quando escreve sua obra, dá ao termo teologia o significado de ciência, de reflexão racional regrada, situando-a no conjunto maior de sua obra que mais tarde ficou denominada como Metafísica como Metafísica.. Posteriormente, tanto no Oriente quanto no Ocidente, o termo será assumido pelo Cristianismo quando entra em contato com a língua e a cultura gregas. O termo teologia vai ser então cristianizado e passar a significar a explicação lógica do conjunto das verdades da fé. Clemente de Alexandria, que viveu no segundo século depois de Cristo, usa o termo teologia como “conhecimento das coisas divinas”. Para Orígenes, que viveu na mesma época, teologia é a doutrina sobre Deus e sua salvação realizada em Jesus Cristo. Dionísio faz uma divisão interessante. Haveria, segundo o teólogo, uma teologia escondida, entendida escondida, entendida como a vida de fé, e uma teologia manifesta, manifesta, que poderia ser demonstrada através da razão. Santo Agostinho diz que teologia é a inteligência humana se esforçando por entender a fé. A pessoa que acredita ama o que acredita e, por isso, deseja entender melhor aquilo que ama. A partir dessa época, a teologia adquire, então, o significado de reflexão sobre os dados da fé. A reflexão sobre as Verdades reveladas e testemunhadas pelos textos bíblicos será sempre o esforço da inteligência humana por melhor compreender para melhor acolher a Palavra de Deus na vida. A teologia adquire um caráter sempre mais racional como intelecção da fé (intellectus (intellectus fidei) fidei) e atinge seu ápice nas escolas medievais. Nesse ambiente, a afirmação de que a fé busca a razão ( fides fides quaerens intellectum) intellectum) adquire sua maior expressão em Santo Tomás de Aquino. Discípulo tardio de Aristóteles, Tomás resgata do filósofo os elementos lógicos, gnosiológicos e ontológicos para construir sua teologia, assim como seu método teológico. Verá na teologia o esforço racional de ligar as coisas a Deus: como a ciência de Deus e das coisas em relação a ele. A teologia ensinada nas escolas (escolástica), a partir do século XIII nas universidades, vai predominar durante a Idade Média como expressão bem acabada dessa empreitada que visa compreender a fé por meio da razão. Fé e razão não são conhecimentos opostos, mas complementares. A reflexão puramente racional — racional — a filosofia — filosofia — é um caminho para chegar a teologia, afirmam os medievais e repete o paradigma Deus. A filosofia é uma serva da teologia, escolástico nos séculos seguintes. No contexto da modernidade, modernid ade, a unidade de pensamento p ensamento montada pelo sistema escolástico será quebrada dentro e fora do Cristianismo. Dentro, pela Reforma Protestante. Fora, pelos próprios filósofos modernos. Lutero e o Protestantismo afirmarão a superioridade das Escrituras das Escrituras sobre sobre a razão. Trata-se de fazer teologia utilizando-se, sobretudo, da tradição bíblica. É preciso antes de tudo crer, inclusive antes de compreender. Os primeiros filósofos modernos vão fazer uma
filosofia que continua afirmando a necessidade da existência de Deus, porém como uma necessidade puramente racional, que dispensa a Revelação. A mediação para falar de Deus será unicamente a razão e não a história. Filósofos que virão depois afirmarão que Deus não é uma necessidade racional e muito menos histórica. Surgem, por fim, teologias negativas, negativas, que procuram demonstrar demonstr ar que Deus não existe e que a fé é um absurdo perante a razão, agora livre e capaz. A partir da modernidade, temos, então, em grandes linhas, três tendências: a teologia católica, que afirma a maneira escolástica de fazer teologia; a teologia protestante, que afirma a prioridade da fé e da Bíblia sobre a razão; e a teologia negativa, que vai negar a existência de Deus. Como pudemos verificar, no século passado surgiram novas formas de pensar a fé, procurando reconciliar a racionalidade moderna secular s ecular com a teologia. Desse D esse diálogo nascem as teologias modernas europeias, assim como as teologias da libertação do Terceiro Mundo. Ambas procuram utilizar-se tanto dos conhecimentos das filosofias modernas, quanto dos resultados das ciências humanas. Abre-se, assim, uma nova etapa na reflexão teológica como forma de conhecimento crítico da realidade, inserido na história, em diálogo com as ciências, com as culturas, com as relações de gênero e com as religiões. Em todas essas compreensões e práticas teológicas, podemos perceber um continnum: continnum: a relação entre fé-razão-realidade, tópicos de um confronto hermenêutico que resultam nos modelos e sistemas teológicos em contínua construção. As especificidades da teologia dizem respeito a seus objetos e métodos, distintos de outras formas instituídas de conhecimento. Se em todos os conhecimentos podemos detectar, em termos genéricos, o mesmo ciclo que articula, inevitavelmente, no ato científico pressupostos-razãocontexto, na teologia esses tópicos tornam-se explícitos e constitutivos do próprio discurso: o pressuposto da fé traz seus conteúdos (revelados), a razão atua com suas regras lógicas e a realidade se apresenta como matéria ilimitada do olhar teológico. Os dois capítulos que seguem retomam questões que já foram tratadas anteriormente, mas sob um novo enfoque. O primeiro busca relacionar a linguagem teológica com outras linguagens que compõem em grandes linhas as visões sobre a realidade constituídas pelo símbolo, pela filosofia e pelas ciências. Essas visões distintas podem dialogar na busca de olhares mais completos sobre a realidade como um todo. O segundo capítulo retoma a questão da especificidade da teologia, sob a ótica do valor: uma abordagem que diz o que a realidade deve ser porque professa o que a realidade é em sua radicalidade.
CAPÍTULO I
A teologia e as várias formas de de pensamento O ser humano tem sido definido como capaz de pensamento, entendendo pensamento como capacidade de interiorizar, representar e expressar a realidade. A origem do pensamento acompanha o gradativo processo de hominização da espécie, emergindo como habilidade proporcional ao seu descolamento da estrita lei da necessidade biológica. b iológica. Sabemos, hoje, que há muitas maneiras de pensar a realidade, não só pelo fato da realidade ser plural, mas pela própria diversidade interna do ser humano e de suas múltiplas formas de relacionar-se com o mundo e com os outros. A unidade ou unanimidade de visão é, quase sempre, uma abstração ou uma estratégia ideológica: construção de conceitos ideais sem referências concretas, ou como recurso do poder que pretende obter consenso das pessoas. Na existência pessoal e social, o pensamento humano mostra-se, na verdade, como um dinamismo plural, condicionado por variáveis internas ou externas ao sujeito, por referências do passado ou do presente ou, ainda, por processos materiais ou espirituais. A história do pensamento, nas suas mais variadas formulações, testemunha, precisamente, que os modos de ver e de interpretar a realidade modificam-se no tempo e no espaço, seja pela lei inevitável da mutabilidade histórica, seja pela ação consciente de determinados sujeitos audazes e protagonistas de mudanças. Ainda que a razão busque a visão unitária da realidade, na forma de conceitos e de teorias, na verdade esse resultado será sempre parcial (exprime um ponto de vista sobre um aspecto da realidade), relativo (ao tempo e ao espaço) e provisório (na medida em que vai sendo superado por novos modelos explicativos). A teologia, desde os primórdios da razão especulativa, participou da produção cultural erudita e popular como fonte de interpretação da realidade, como caminho regrado de compreensão e como proposição ética. Suas peripécias históricas mostram as várias formas de pensar a realidade do mundo, do ser humano e do próprio Deus, a partir das fontes judaico-cristãs e das fontes racionais da ciência grega. No contexto da universidade, ela pretende ser mais uma forma de compreender a realidade, distinta e em diálogo com as demais produzidas pelas ciências diversas que aí se encontram legitimamente alocadas.
1. As múltiplas faces da realidade e a pluralidade de pensamentos Ninguém duvida que existam muitas maneiras de ver e de interpretar a realidade. Podemos constatar esse dado nas nossas experiências subjetivas, na história da cultura humana e nas ciências. Cada um desses modos de explicar a realidade está condicionado ao lugar, ao momento e às intenções que nos colocam perante objetos específicos, situações particulares ou à realidade de uma maneira geral. Hoje, mais do que nunca, cresce a consciência da relatividade dos modelos interpretativos, das linguagens, das teorias e dos métodos formulados para explicar a realidade. Cresce também a consciência de que um único modelo interpretativo não dá conta da complexidade inerente a qualquer recorte da realidade. Por isso, é cada vez mais importante, do ponto de vista sociocultural, o respeito às diferenças e o diálogo, e, do ponto de vista das ciências, a abordagem plural e interdisciplinar. Os relativismos e os dogmatismos sociais, morais
e teóricos são as duas pontas extremadas dessa constatação. O relativismo oferece a solução da indiferença, diante da pluralidade de posturas e de interpretações da realidade. O dogmatismo apresenta, por sua vez, as ideias fixas, o pensamento único como verdade definitiva e inalterável para todas as coisas. coisas . Nesse primeiro tópico, antes de expormos as especificidades do pensamento teológico, vamos falar da pluralidade, e, portanto, da relatividade dos modelos interpretativos, assim como das formas dogmáticas e relativista de pensar. A intenção é traçar a moldura de fundo na qual deve ser situado o pensamento teológico e, certamente, qualquer outro pensamento.
a ) Os sujeitos e suas interpretações Experimentamos subjetivamente a diversidade em nosso cotidiano, conforme variam nossos sentimentos, interesses, faixa etária ou grupo em que nos situamos. Uma chuva torrencial pode ser vista como muito boa em um momento de racionalização da água, pode nos irritar se ficarmos presos no trânsito com risco de sermos submergidos num alagamento ou, ainda, como algo indiferente, se estivermos abrigados confortavelmente em nossas casas. Até mesmo uma música pode provocar em nós não só diferentes sensações mas também diferentes avaliações, a depender de nosso estado de espírito ou da atividade que executamos no momento. Uma coisa é ouvi-la numa viagem, outra é ter que ouvi-la enquanto executamos uma atividade que exige concentração e silêncio. O mesmo vale para qualquer objeto com o qual entramos em contato em nossas rotinas: uma determinada comida, um filme, um texto, uma roupa e até mesmo nossa própria imagem. Também, na medida em que o tempo passa, nossos gostos e avaliações sofrem alterações. Um filme cômico apreciado na infância não consegue arrancar de nós os mesmos risos quando nos tornamos adultos; uma comida, antes detestada, passa a ser apreciada; um livro lido no passado, quando relido, revela novos significados e pode levar a novas conclusões. Também o grupo a que pertencemos influencia nossas visões e pode, até mesmo, mudar nossas posturas e interpretações. Um católico fervoroso que vem do interior, do meio rural, pode tornar-se um pentecostal convicto, ao chegar à grande cidade. A convivência com determinadas ideias na escola, no grupo de amigos ou no trabalho pode provocar mudanças em nossas concepções e comportamentos. Isso não significa reafirmar a velha tese de que o ser humano é um mero produto de seu meio, mas de que ele é resultado de uma interação com os contextos em que se situa. Na verdade, na própria noção de sujeito está incluída a dimensão coletiva. Não existe indivíduo humano sem sociedade e nem sociedade sem indivíduos, sob pena de construirmos abstrações conceituais. O ser humano se faz como interação entre as suas heranças biopsíquicas e a realidade social, de forma que também as suas visões e práticas só podem ser entendidas nesse âmbito de relações. Aquilo que permanece e aquilo que muda em nós, nos mais diversos aspectos, são estratégias que vamos criando para conseguirmos adaptação, de forma a gastarmos menos energia e obtermos maior bem-estar. E trata-se de um processo permanente de construção de nós mesmos e de nossas visões e convicções. Somos, nesse sentido, um ser inacabado que busca permanentemente acabamento. Nesse movimento, construímos a sociedade, a cultura e a nós mesmos.
b ) A história da cultura
Se olharmos para a história humana, encontramos também uma sucessão dos modos diferentes de ver e interpretar a realidade e, por decorrência, os modos de atuação e intervenção nela. A história da cultura é feita de encontros e desencontros que produzem as mais variadas visões e posturas dos grupos humanos, no jogo tenso entre unidade e diversidade de significados; narra a luta entre as diversidades na busca de hegemonia, as quais, pela via do consenso ou da coerção, constroem as identidades. Evidentemente, não se trata de um processo simples que consegue unanimidade imediata ou total homogeneidade de valores e significados. De fato, consenso não significa unanimidade. O processo de formação cultural envolve, quase sempre, um tríplice aspecto. Primeiro, uma cultura se estabelece quando se consegue, de fato, construir uma objetividade que impõe significados gerais aos indivíduos e grupos. Em segundo lugar, alguns grupos reagem recrudescendo-se em seus significados particulares, formando subculturas que se reproduzem em suas endogenias, como negação ou alternativa à cultura comum. Uma terceira possibilidade, quase sempre mais frequente, é a do hibridismo cultural, ou seja, produz-se uma nova realidade cultural a partir da mistura de elementos da cultura dos vencedores e dos vencidos. Em todos esses casos, a cultura forma-se e institui-se como resultado da relação entre as diferenças. Também é importante lembrar que a humanidade vive em cada época o resultado dos amálgamas, das sobreposições, das resistências das mais diversas formas de ver a realidade. As visões singulares, se bem examinadas, acomodam em seu interior diversidades, mesmo que se afirmem como identidades puras. Por outro lado, a mesma história é a memória das múltiplas visões e posturas que, por razões várias, foram sendo superadas ou transformadas com o passar do tempo. O singular apresenta-se, frequentemente, como vencedor, sob os códigos políticos, culturais e religiosos, sobretudo se olharmos para a história oficial e para as instituições. Mas, na verdade, a pluralidade é que tem capacidade de mover a história construtivamente, de produzir o novo e de demover o antigo com suas provocações inéditas que desestabilizam o estável. A pluralidade de visão é que garante a autonomia dos sujeitos e dos grupos e que pode mover a razão na busca da verdade, na medida em que lança o ser humano à dúvida, à interrogação e à busca de novas respostas.
c ) Os paradigmas das ci ências Embora as ciências sejam vistas pelo senso comum e afirmadas por certas correntes teóricas como verdade definitiva e única, elas fazem parte de um universo também plural, seja no sentido diacrônico, com os vários sistemas produzidos ao longo da história, seja no sentido sincrônico, com a convivência de diferentes teorias em um mesmo tempo e sobre um mesmo objeto. As chamadas linhas teóricas dos profissionais da saúde e as escolas das ciências humanas demonstram isso. A razão humana tem um movimento paradoxal na busca de compreensão da realidade. Ao mesmo tempo em que avança na direção da pluralidade de objetos, gerando as mais diversas especializações, busca a singularidade de conceitos e as generalizações a fim de compor sistemas teóricos singulares. Essa tensão pode produzir fundamentalismos e relativismos científicos. O primeiro afirma a singularidade totalizadora das teorias e métodos. O segundo afirma que tudo é mero conceito que não expressa a realidade de fato e, portanto, não há o que afirmar ou negar sobre a realidade. O filósofo norte-americano Thomas Kuhn elaborou um conceito que deu conta de explicar essas questões: o conceito de paradigma. paradigma. Ele observa que, de fato, as explicações oferecidas
pelas ciências mudam muda m no decorrer da história, de forma que aquilo que qu e se afirmava como certo, cer to, como cientificamente explicado, sofre modificações e pode ser até mesmo abandonado em função de um novo modelo explicativo que melhor expresse um determinado objeto. objeto.32
d ) N em em relativismo, nem dogmatismo A atitude científica não suporta nem o relativismo, nem os totalitarismos. A razão humana, desde que se lançou na busca da compreensão da realidade, inaugurou um caminho de relação entre o sujeito e o objeto, entre a inteligência e a natureza das coisas, o que afirma uma estrutura e uma dinâmica própria do ato de conhecer: • O sujeito humano é capaz de conhecer a realidade com suas suas próprias capacidades intelectivas. • A realidade, em seus múltiplos aspectos, pode ser conhecida, ou seja, explicada em sua lógica interna, mediante conceitos formulados e inteligíveis. • O resultado desse conhecimento pode ser transmitido em seu processo — o modo de conhecer — conhecer — e e em seus conteúdos. De um modo geral, esse é o caminho comum de todas as ciências, mesmo havendo múltiplas teorias para explicar a natureza e a produção do conhecimento, várias propostas metodológicas e, como resultado, diferentes teorias. O relativismo e o dogmatismo gnosiológicos acompanharam, sob variados formatos, a história do pensamento. O ceticismo antigo postulava a impossibilidade de chegar à verdade. O ceticismo moderno afirma a necessidade de adotar a dúvida como método (Descartes), para chegar à certeza, ou a impossibilidade de chegar a qualquer conhecimento que não venha da experiência, como no caso do empirismo. É também frequente deduzir das próprias fragmentações das ciências a impossibilidade de conhecer objetivamente a realidade. Também as próprias correntes de pensamento construídas ao longo da história assumiram, muitas vezes, posturas de rigidez e autoritarismo teórico como co mo expressão expressã o da verdade ve rdade única e definitiva. Muitas delas apresentaram-se como portadoras dos segredos para atingir a verdade sinônima de salvação. O gnosticismo e o maniqueísmo são bons exemplos dessa postura. Em nossos dias, os relativismos e os dogmatismos têm muitas formas de expressão no senso comum, ficando disseminados na cultura e nas religiões. Contudo, suas expressões atingem, ainda, a filosofia e as ciências. As correntes filosóficas niilistas (do latim nihil , “nada”) afirmam a impossibilidade de qualquer referência fixa (a tradição, a verdade, o valor) que possa orientar o ser humano e a sociedade. Por outro lado, não é raro encontrarmos profissionais das ciências que consideram seus universos epistemológicos como os únicos verdadeiros e desqualificam outras abordagens como falsas. A oposição entre as medicinas alopática e homeopática é um exemplo emblemático dessa postura. O dogmatismo termina por assumir as teorias como verdades fixas e únicas como capazes de esgotar toda compreensão da realidade, de expor a verdade e de oferecer as soluções para todos os problemas do mundo e da humanidade. Por outro lado, encontramos aqueles que afirmam que tudo é relativo ou que a verdade não existe. Toda ciência seria mera expressão de um ponto de vista da realidade ou de projeção do espírito humano sobre os objetos sem nenhuma consistência objetiva. Amparados na ideia da produção dos significados da realidade, muitos afirmam que a própria realidade não possui consistência objetiva em si mesma, não tem densidade ontológica,
mas é puro significado construído pela razão humana. Em nome das interpretações construídas pela cultura e pela ciência, negam a objetividade da realidade. realidade.33 Contudo, contra as posturas extremas do relativismo e do dogmatismo, testemunha a própria história do pensamento ou das ciências. A eficácia prática das ciências demonstra empiricamente sua objetividade, ou seja, sua capacidade de designar o real como tal e, portanto, de intervir com êxito em suas leis. Por outro lado, os dogmatismos não resistem às sucessões de ideias, modelos e sistemas teóricos e metodológicos que compõem a história dos conhecimentos.
2. O diálogo das disciplinas e a busca da verdade A história das ciências demonstra, portanto, uma evolução e uma pluralidade de abordagens, de estudos e de teorias que compõem progressivamente um quadro espetacular de especializações. A humanidade caminhou da visão mais singular para a visão mais plural da realidade. As ciências foram emergindo na história do pensamento como particularizações da realidade, cada qual com seus objetos específicos de estudo. Desse modo, nas origens do pensamento racional o cosmo foi o grande objeto de investigação. A pergunta pela origem da realidade (arché (arché), ), pelo elemento comum subjacente aos movimentos cósmicos e à diversidade dos seres ( phísis), phísis), movia a razão humana nas suas perguntas e respostas primordiais. Na sequência, veio a pergunta pelo ser humano, pelos dinamismos de sua alma (psiché), (psiché), pelo seu comportamento social, político e intelectual. É quando o brado socrático “conhece-te “conhece-te a ti mesmo” lança o grande desafio para o para o espírito humano. Este duplo posicionamento, perante o cosmo e perante o ser humano, vai desencadear toda a história da razão no Ocidente a partir das raízes gregas. O encontro dessas raízes com a tradição judaico-cristã introduziu no seio da razão a problemática prob lemática de Deus, enquanto origem e destino do mundo e do ser humano. A busca da unidade acompanhou toda essa tradição e encontrou na ideia de Deus um apoio fundamental. As ciências modernas nascem dentro dessa tradição de busca do conhecimento do ser humano e do mundo, e vão aprofundando, cada vez mais, a investigação e a explicação da lógica interna dos comportamentos da natureza de um modo geral e do ser humano em específico. A busca da unidade vai cedendo lugar à explicação das diversidades: das leis da natureza em seus mais diversos ângulos e objetos. O mundo macro e o mundo micro foram sendo dissecados nos mais variados aspectos, donde resultaram e resultam as muitas ciências modernas. Esse movimento particularizou a realidade. Explicou seus elementos físicos, químicos, biológicos, antropológicos, psicológicos, históricos etc. Cada uma dessas abordagens avançou, por sua vez, na direção da especialização, da explicação do detalhe na busca dos segredos mais íntimos da realidade. As estruturas e o funcionamento da natureza de um modo geral foram sendo expostos em suas minúcias e estando sempre mais suscetíveis aos instrumentos de intervenção e manipulação. Consolidava-se a era das especializações e da tecnociência.
a ) As especializações Portanto, o mundo moderno é construído sobre essas especializações. Não só as ciências a as tecnologias modernas são especializadas, mas a própria organização da sociedade se dá a partir delas. As instituições financeiras e comerciais, políticas e sociais, culturais e religiosas se estruturam e funcionam como com seus especialistas e com suas regras estabelecidas a partir da
ideia de setores. Max Weber denominou esse processo de “racionalização”, vendo nas organizações burocráticas o cume do processo. Já verificamos que a sociedade moderna é vista pelo sociólogo Anthony Gid-dens como uma um a organização o rganização que se sustenta como um u m “sistema de peritos”, ou seja, como uma ordem mantida por especialistas em cuja competência todos confiam. A sociedade moderna é a sociedade especializada e dos especialistas. As muitas profissões são as formas regulamentadas que a sociedade institui para responder pelos serviços nos mais diversos setores da vida humana. Cada especialista cuida de uma parte da vida, de uma parte da sociedade e do ser humano. As especializações da saúde são exemplos emblemáticos dessa tendência. O médico cuida de uma única parte anatômica e fisiológica de nosso corpo, mesmo que tenhamos outro membro do mesmo corpo carecendo de cuidados. O pensador Edgar Morin critica essa fragmentação do conhecimento como uma perda da visão de conjunto da realidade, uma vez que o ser humano é uma totalidade interligada com outras totalidades. Na verdade, não existe nenhuma realidade isolada em si mesma e nem parte sem o todo. Hoje se sabe cada vez mais sobre o cada vez menor, critica o pensador. E acrescenta que a perda da visão do todo é um erro do conhecimento humano. Somente um conhecimento capaz de articular o todo e as partes pode chegar à verdade. O todo tem peculiaridades que não são encontradas nas partes. Também nas partes estão presentes características do todo: as heranças genéticas marcam os indivíduos da espécie, a sociedade se faz presente em cada indivíduo com a linguagem, a tradição e os valores. Também cada ser é uma totalidade em si mesmo, composto estruturalmente por partes ou dimensões. O ser humano é composto de múltiplas dimensões, como uma unidade feita de pluralidade: é biológico, psíquico, espiritual, emocional, racional, social, cultural, religioso etc. Essas dimensões são distinguíveis, porém inseparáveis no fluir real da vida. Também a sociedade é feita de muitas dimensões que se interpenetram dinâmica e dialeticamente no seu funcionamento: a economia, a política e a cultura se fazem em uma relação mútua de rejeição, de negociação ou de complementação. complementação.34 As ciências e, por consequência, a sociedade atual compartimentaram essa realidade totalizadora, isolando suas partes como objeto de estudo e de manipulação, como divisão do trabalho e como organização institucional. A prevalência da dimensão econômica tem reduzido a natureza e o ser humano à capacidade produtiva. Da parte da ciência, as especializações e a hegemonia do modelo tecnológico têm escondido dimensões fundamentais da vida humana, como o lúdico, o artístico e o religioso. Dimensões que permitem desvelar o sentido profundo da vida, religar suas partes em uma unidade radical e relacionar meios imediatos e fins últimos.
b ) A tecnologia e a manipulação da natureza As ciências modernas se constituíram como domínio da natureza, domínio inicialmente motivado pelo desejo de conhecer as suas leis e de explicá-las. Foi assim com as ciências naturais e, em seguida, com as ciências humanas. A partir do século XVI, muitas explicações sobre os dinamismos da natureza, herdadas do mundo antigo e medieval, foram sendo refeitas pelas novas descobertas e pelas novas teorias, submetidas, desde então, à verificação e controle empírico. É verdade que essas novas teorias contavam com pressupostos novos: os instrumentos de investigação dos objetos. São instrumentos lógicos, como no caso da matemática, e instrumentos físicos, como no caso da luneta. Nesse sentido, as descobertas científicas modernas
ocorrem concomitantemente às invenções tecnológicas; há novos domínios de fins e meios, de teorias e práticas. Na sequência da história, a natureza conhecida vai sendo cada vez mais dominada pelo conhecimento. As ciências especializadas visam a um domínio direto das leis da natureza com a finalidade de intervir em suas leis e obter resultados que facilitassem a vida humana. As máquinas de todos os portes, as drogas, a medicina, as engenharias e as ciências humanas tinham como objetivo oferecer resultados que produzissem maior bem-estar à sociedade: conforto, agilidade e saúde. As ciências vão se tornando cada vez mais práticas e, à medida que produzem eficácia, se impõem como hegemônicas sobre outras formas de conhecimento. A pergunta “estudar para quê?” se impõe, desde então, como fundamental, no momento da escolha de uma uma determinada profissão, e tudo o que não for prático será considerado conhecimento de segunda categoria. O desenvolvimento da sociedade moderna se deu como uma crescente capacidade de domínio das forças da natureza, como racionalização do mundo e da história pela via da ciência. Como vimos, na visão de Max Weber, o Ocidente constituiu-se como processo crescente de racionalização. A racionalização econômica significou, definitivamente, o eixo em torno do qual tudo mais vai movimentar-se na sociedade. A razão livre para conhecer e, até mesmo para controlar tecnicamente a natureza em favor do ser humano, estará vinculada indelevelmente ao fator econômico como sua origem e finalidade. Fazer ciência é produzir tecnologia que possa ser vendida no mercado dos produtos para que estes últimos ofereçam riquezas aos proprietários dos meios de produção. Instaura-se uma epistemologia que conecta uma sequência rígida entre ciência-tecnologia-mercado,, um ciclo fechado entre conhecimento produzido e conhecimento ciência-tecnologia-mercado vendido, conhecimento vendido e conhecimento produzido. Trata-se não somente de uma instrumentalização econômica da razão científica, mas também, no interior da mesma dinâmica, de uma instrumentalização política, uma vez que conhecimento vendido é poder econômico e político. político.35 As grandes indústrias de equipamentos de ontem e de hoje estão a serviço de uma elite econômica e científica capaz de dominar indivíduos, grupos e nações com seus instrumentos tecnológicos, inclusive com aqueles produtos de extrema utilidade para a vida humana. As duas grandes guerras expuseram ao mundo os efeitos perniciosos dessa manipulação da ciência, seus riscos e interesses aos grupos dominantes. Nesse contexto, um grupo de pensadores alemães, conhecidos como Escola de Frankfurt, produziu uma crítica da instrumentalização econômica e política da razão. Contudo, naquele momento não chegaram a perceber os últimos efeitos do domínio econômico-tecnológico da natureza em termos de sustentabilidade planetária. Presenciamos hoje os efeitos devastadores da tecnologia sobre a vida do planeta. São os efeitos da destruição direta sobre a natureza — natureza — extração extração de recursos e destruição de ecossistemas — e da destruição colateral pela emissão de gases poluentes, emitidos das indústrias, das máquinas e de outros produtos tecnológicos. A tecnologia está destruindo o planeta. As especializações e a utilização econômica da ciência não permitiram sequer o desenvolvimento de uma ciência e de uma tecnologia capazes de pensar e atuar sobre o conjunto da vida planetária. Essa volta da ciência e da tecnologia para o todo que na verdade se identifica com a vida se torna em nossos dias uma questão de vida ou morte. A teologia, enquanto guardiã de uma tradição que pensa o conjunto da vida v ida na relação Criador-criatura, Criador-criatur a, tem um papel importante nessa recolocação recoloc ação do valor da vida em seu conjunto.
c ) O diálogo entre as disciplinas e a busca do todo As especializações das ciências tiveram um papel histórico ambíguo. Contribuíram com o domínio da natureza, produzindo a possibilidade de dominar o tempo e o espaço em favor e contra o ser humano, de dominar a vida em benefício e contravenção à vida. Não se trata de negar a importância histórica social e cultural das especializações e voltar a uma filosofia da totalidade, nos moldes pré-modernos. Trata-se, porém, de colocar as especializações em diálogo para que se possa poss a resgatar res gatar o todo. Esse todo tem uma dimensão cósmica e ecológica, na medida em que tudo se entrelaça na estrutura geral e no fluxo real da vida. Além de não existir parte isolada nesse todo, nenhuma parte subsistirá sem o conjunto, como bem expõem as ciências ecológicas. Tem também uma dimensão antropológica que visa resgatar o ser humano em sua posição de destaque na evolução da vida, como sujeito livre e responsável, único capaz de interpretar e transformar a natureza para o bem e para o mal. Edgar Morin denuncia a fragmentação do conhecimento como um erro de visão e como um erro antropológico e ético. A fragmentação não dá conta de explicar a lógica de uma parte sem considerar o todo. Decorre que o ser humano se posiciona dentro do conjunto estabelecendo formas de dominação que conduzem o planeta para a destruição total. O domínio das partes sem o todo significa também o domínio dos meios sem considerar os fins, o domínio das tecnologias sem conexão com os valores. O diálogo interdisciplinar tem, portanto, uma razão epistemológica e uma razão ética. Pretende encontrar o todo para encontrar a própria vida em seu significado mais amplo e profundo. Nesse ponto, a teologia tem dado uma contribuição importante com sua tradição cosmológica e ética. A vida em sua totalidade e profundidade criatural amarra o mundo e a ética como o grande valor a ser adotado pelo conjunto da humanidade na busca de sua sobrevivência, juntamente com as demais criaturas. Os estudos de ecoteologia ecoteolo gia de Leonardo Boff têm exposto de forma bem fundamentada e didática essa questão. Segundo o teólogo, a vida planetária vem a ser o consenso ético possível para toda a humanidade, a possibilidade de agregação para além das diferenças de raça, credo e classe social. social.36
d ) A relatividade dos modelos e a busca da verdade A concepção de ciência como explicação exata, fixa e definitiva da realidade está presente no senso senso comum e em muitas correntes científicas. O “cientificamente provado”, entendido como verdade inquestionável e perene, impõe-se como noção mais próxima do dogma do que propriamente da ciência. Na verdade, como já dissemos, a ciência é feita a partir de modelos teóricos e metodológicos que buscam explicar determinados objetos e que podem ser modificados e substituídos por outros modelos. A história do pensamento humano e das ciências mostra a busca permanente da explicação mais coerente da realidade. Cada época histórica e cada explicação acreditavam, até há bem pouco, ser a própria verdade. Contudo, a evolução das ciências, sobretudo com a velocidade v elocidade que adquiriu nos últimos tempos, mostra, por si mesma, a relatividade das explicações e a provisoriedade das teorias e métodos. Não se trata, como vimos, de afirmar o relativismo do conhecimento, como se nada tivesse valor científico objetivo. O domínio objetivo da natureza desmente essa postura com sua eficácia real. Trata-se, sim, de adotar e utilizar um paradigma um paradigma sabendo de sua importância e de sua relatividade para explicar a realidade: ele desvela sempre
um ângulo do objeto, uma dimensão da realidade, jamais a totalidade. A ciência define-se como objetividade; sua verdade reside na coerência entre seus objetos e formulações, porém trata-se de uma verdade limitada e não da Verdade capaz de dizer definitivamente o que é a realidade. A lição ética que se pode tirar dessa consciência epistemológica e que vem ao encontro da teologia é que a verdade não tem dono e deve ser buscada permanentemente. A verdade na sua totalidade não pode ser apossada em termos lógicos e científicos. A ciência será sempre explicação e domínio parciais da realidade, domínio que se exerce como objetividade, mas não como a verdade, no singular. Ademais, outras explicações e domínios devem entrar em cena para contribuir com a visão de conjunto da realidade e, portanto, se aproximar ao máximo da verdade. Em termos teológicos, a verdade tem um aspecto transcendente e escatológico. Ela se refere à experiência profunda da fé que descobre o sentido último da realidade na relação entre o conhecimento e a vontade, entre a adesão e o convencimento, entre os meios e os fins. Mas tem também um significado escatológico, ou seja, não se esgota jamais em uma experiência histórica, feita pela ciência e mesmo pela fé. A verdade reside em sua totalidade na própria Inteligência Criadora, que transcende todo tempo e todo espaço, como causa primeira, sentido fundamental e último fim. Na reserva utópica do fim absoluto, encontra-se uma reserva gnosiológica que na epopeia da razão torna-se reserva de sentido a ser explicitado permanentemente. Portanto, uma visão teológica da ciência afirma a necessidade da busca constante da verdade com todos os esforços da inteligência e a humildade em admitir sua parcialidade e provisoriedade. A inteligência humana é um dom a ser colocado em ação a ção e a serviço da verdade. A verdade prevalecerá sempre, sem restrições e sem donos, mas estará em sua totalidade sempre além da temporalidade histórica como reserva de conhecimento a ser buscado pela mente e pelo coração humano por todos os caminhos possíveis.
3. Os diferentes modos de pensar revelam dimensões diferentes da realidade A múltiplas disciplinas anteriormente descritas formaram-se ao longo da história do pensamento humano como resultado da razão que admira, duvida, interroga e responde. O ser humano construiu, no decorrer do tempo, uma multiplicidade de respostas que variam conforme o contexto e o grau de domínio das forças da natureza, de forma que é possível percebermos não só uma diversidade de respostas mas também uma evolução nos modos de compreender a realidade. A cultura, se olhada na sua globalidade, é um conjunto de significados e práticas composto por uma variedade de produções humanas, de conhecimentos, de técnicas, de valores, de regras e de costumes originados em temporalidades e espacialidades distintas. Tanto as sociedades quanto os sujeitos humanos são portadores dessa somatória de significados; são reprodutores de um acúmulo cultural que vem do passado e atualiza-se no presente nas formas eruditas e espontâneas de significar e praticar a vida. Com efeito, a sociedade humana se organiza a partir desses legados das gerações anteriores em suas instituições de saber e de serviços. Do ponto de vista da estruturação do pensamento, trazemos em nós aquilo que a humanidade elaborou como interpretação da realidade na forma do símbolo, da religião, da filosofia e das ciências. Com maior ou menor intensidade, cada um de nós assume essas visões em nossas práticas cotidianas, em nossa profissão e em nossas convicções íntimas ou publicamente
professadas. O ser humano não opera com uma única linguagem nas suas relações com o mundo e com os outros, ainda que a linguagem científica com frequência se apresente como a mais legítima e capaz de revelar a verdade. Outras linguagens explicam a realidade, assim como a ciência, elucidando dimensões que esta última não é capaz de ver e comunicar. A curiosidade e a busca de soluções para as precariedades humanas levaram às respostas técnicas, políticas e religiosas. religiosas.37 O teólogo Leonardo Boff sintetiza essa diversidade de experiência e de linguagens, buscando uma racionalidade capaz de colocar em diálogo o símbolo, a filosofia e a ciência; fala em três estruturas de compreensão do mundo que, ao mesmo tempo em que resumem a história do pensamento humano, revelam modos distintos de interpretar a realidade que nos permitem superar visões parciais ou mesmo a hegemonia do pensamento científico como o único portador de verdade. Essas estruturas captam as fases da história do pensamento e da cultura no Ocidente e resumem os modos de o espírito humano ver, explicar e valorar a realidade. São elas: a experiência do mundo como transparência, transparência, como transcendência e transcendência e como imanência. imanência.38 Trata-se, fundamentalmente, de três cosmovisões do ser humano perante o mundo advindas de uma experiência originária e vão resultar nas linguagens específicas e codificadas da religião, da filosofia e da ciência. Essa tríplice classificação não acrescenta, na verdade, nada de novo àquilo que pode ser observado na história da cultura com a conhecida sequência: pensamento mítico, filosofia clássica e razão moderna, conforme a conhecida exposição de Augusto Comte. No entanto, apresenta algo de novo e de operacional para a compreensão do pensamento humano em sua globalidade. A novidade está na possibilidade de superação do esquema evolucionista, que estabelece uma sequência rígida e linear para essas fases, do esquema conservador, que prioriza a fase clássica em oposição à moderna, ou, ainda, de um esquema de paralelismo entre elas. A operacionalidade reside, por sua vez, no potencial interpretativo das três estruturas de compreensão do mundo, quando se buscam as bases epistêmicas mais profundas e amplas, ou a experiência originária, das linguagens explicativas da realidade. Para o presente estudo, que pretende expor as particularidades da teologia no contexto das ciências estudadas na universidade, essa tipificação vem a ser uma síntese do que estamos refletindo sobre a natureza e a dinâmica do discurso teológico.
a ) As tr ês estruturas de compreensão e suas linguagens Segundo Boff, a experiência originária de cada uma das três compreensões afirma aquilo que lhe parece mais real e constitui-se o marco de referência unificadora para todas as práticas e significados produzidos pelos grupos e sujeitos em seus referidos contextos e situações. O espírito humano com maior ou menor intensidade e equilíbrio é portador desses modos distintos de ver, explicar e posicionar-se no mundo. O mundo transparente e sua linguagem
A experiência originária dessa visão reside naquilo que os fenomenólogos costumam chamar de sagrado. O sagrado O sagrado é é a realidade, origem, meio e fim de todas as coisas sensíveis vivenciadas. A experiência e a constituição do tempo e do espaço fundam-se na sacralidade primordial: o in illo tempore tempore que sustenta a atualidade e estrutura o espaço como axis mundi. mundi. A realidade vivenciada é toda símbolo e nos arremessa para além dela mesma, para sua fonte sagrada original. O mundo é experimentado como uma grande transparência da sacralidade. A natureza e
a ação humana são experimentadas e significadas como decorrência e passagem para algo mais profundo e mais além que lhe dá fundamento, sentido s entido e direção. O mundo transcendente e sua linguagem
A experiência originária afirma que o real transcende este mundo visível, plural e fugaz, e que é possível chegar a ele pelos caminhos da razão lógica. Para a tradição platônica trata-se da ideia. ideia. É nesse mundo que transcende a efemeridade do tempo e do espaço, que tudo devora, que reside o logos de logos de todas as coisas, a verdade do mundo. A tradição aristotélica, embora propondo uma visão unitária da ideia com a realidade sensível e um caminho diferente de acesso a ela, continua firmando uma realidade metafísica que transcende o mundo das visões e relações concretas e imediatas: pensemos nas noções de substância, causa, ser e mesmo causa incausada. incausada. O conhecimento da realidade do mundo e da história advém da capacidade de descortinar sua essência e dinâmica mais íntima e transcendente. Deus é aqui a ideia das ideias ou o motor imóvel donde tudo vem e para onde tudo vai. A categoria da transcendência vai estruturar o pensamento e mesmo a cultura ocidental até a Idade Moderna. Mas, de fato, transcender a realidade imediata é a vocação da filosofia de um modo geral. A busca da causa, da dinâmica e das finalidades da realidade explicitam a dimensão fundante e não imediata das coisas. O mundo imanente e sua linguagem
A experiência originária desta fase é o próprio mundo em sua imanência. A razão está circunscrita dentro de um círculo de limites e possibilidades gnosiológicas em relação ao mundo. O pensamento moderno, nas suas vertentes filosófica e científica, tem a imanência do mundo e da história como seu objeto e limite de afirmação da verdade. A lógica interna e constitutiva de todas as coisas pode ser desvendada pela razão verificadora, a partir de si mesma, como um dado empírico demonstrado unicamente por argumentos suscetíveis de verificação. Por outro lado, trata-se de um sistema lógico marcado pelas próprias relatividades da história sem as seguranças estáveis da metafísica. Como já verificamos, a teologia e a própria tradição do pensamento transcendente serão consideradas como uma impossibilidade em termos racionais e como uma hipótese descabida e desnecessária para as investigações em torno da verdade das coisas.
b ) As tr ês estruturas e a linguagem teológica Avançando na reflexão, Boff sugere que experiência do mundo como transparência pode articular as duas outras realidades: a imanência e a transcendência em uma única experiência, em um único olhar que capta a dupla dimensão da realidade, sem afirmar uma delas como exclusiva, donde decorrerá a possibilidade de articulação da filosofia e da ciência no âmbito da teologia. Entende que a transcendência se mostra na imanência. O mundo se transfigura sem deixar de ser mundo, fazendo superar o dualismo de dois mundos e de duas visões de mundo, e instaurando uma espécie de terceira realidade. A linguagem simbólica se dá na integração indivisível do invisível no visível, do distante no próximo, da totalidade no fragmento. A realidade imediata se torna transparência de uma realidade mais além e remete para ela sem sair dela. Na raiz mais profunda desse modo de experimentar e interpretar a realidade está o encontro com o mistério. mistério. Antes da reflexão, portanto, o encontro com o transcendente que transparece na imanência; não se trata de capturar e conceituar o transcendente pela via da razão intelectiva, fazendo-o um objeto, mas de captar sua manifestação imediata na realidade do mundo e da vida. O mundo se torna sinal que fala de seu fundamento e sentido último, se mostra como linguagem reveladora, como comunicação de um sentido radical que desvela a origem e a finalidade da realidade.
A realidade imanente é, nesse sentido, ao mesmo tempo reveladora e remetedora de sentidos que estão além de sua factualidade sensível e imediata. A linguagem em geral é o primeiro dado dessa revelação e remissão: as coisas são coisas e significados ao mesmo tempo, a terra é mundo, os objetos são símbolos, as experiências humanas são sempre carregadas de ligações com outras realidades distantes no tempo e no espaço. É nesse sentido que se pode afirmar que o ser humano é fundamentalmente um ser simbólico. O mundo é por natureza a transparência de significados, é o conjunto das coisas que falam e que provoca ligações com sentidos que o transcendem. Os símbolos são, por natureza, os fragmentos transparentes da realidade, fragmentos que apontam para totalidade de sentido que transcende e fundamenta a realidade imediatamente experimentada. Na linguagem dos símbolos, as realidades imanente e transcendente encontramse sem dualismo, paralelismo ou oposição. A experiência simbólica unifica as dimensões num único olhar, num único ato. Não se trata da afirmação do além e do aquém do mundo e si mesmos, mas de mostrar o mundo em sua densidade e totalidade carreado de passagens, de canais por onde veiculam o sentido último da existência. O mundo se transfigura sem deixar de ser mundo. Materialidade e espiritualidade se amarram no único pedaço de tempo e de espaço, num único objeto ou gesto, numa única palavra ou narrativa. A linguagem simbólica não exclui, portanto, outras linguagens decodificadoras da realidade; ao contrário, as inclui como elucidadoras de uma de suas dimensões transcendente e imanente. A filosofia, com suas interrogações radicais, conduz a razão para a compreensão do logos fundante da realidade, busca capturar a transcendência, conhecê-la e comunicá-la. A busca do ser e do sagrado acompanha a razão ocidental desde seus primórdios. As ciências revelam, por sua vez, a dinâmica imanente da realidade, sua natureza e lógicas internas. A ciência é a realização completa do intelecto, como capacidade de ler dentro das coisas (do latim: intus + legere = intelectus), intelectus), de conhecer as estruturas e as leis de funcionamento da realidade, de formular essas leis e de controlá-las em seguida. De fato, a teologia surge como um esforço de integrar essas três experiências originárias com suas respectivas linguagens, dando a cada uma delas uma função na formulação de seu discurso que busca empréstimos na filosofia e nas ciências. A experi ência da transpar ência como fonte da teologia
A fundação primeira da teologia é a transparência, a experiência de um mundo que remete permanentemente para sua origem e para seu fim transcendente, seja na experiência da Revelação Histórica, na busca da Causa Primeira da realidade ou na experiência de uma Transcendência Sagrada. O filósofo Karl Jaspers denomina essas experiências e suas linguagens de cifras cifras como fé que pode ser de natureza filosófica ou religiosa. religiosa.39 É de uma dessas fontes originárias que nasce a teologia como afirmação de um sentido e de um valor fundante para a realidade. Nesse sentido, não só a teologia fundada no testemunho da Revelação parte da fé, mas também a teologia filosófica, tendo em vista que está fundada na concepção de um ser transcendente e absoluto como sentido último e necessário da realidade, assim como a teologia das religiões que tomam a diversidade religiosa como ponto de partida. A busca da formulação formulação lógica
No entanto, a teologia, desde as suas origens, significou esforço da razão em desvelar racionalmente o sentido revelado no mistério; o que se torna transparente é acolhido pela razão como objeto de investigação, de forma que a transcendência se torna o caminho de a razão buscar o fundamento da transparência do mundo. O que significa a realidade? Qual seu
fundamento cognoscível? Que dizer da sua origem e finalidade últimas? São as perguntas primeiras da razão que vão produzir a teologia no bojo da filosofia. Na sequência, quando do encontro dessas questões com a tradição judaico-cristã, outras perguntas incitarão a busca de respostas. Qual a relação entre os conceitos aderidos pela Revelação e os conceitos construídos pela razão? A fé é razoável? Como conciliar sua verdade com a verdade racional? Como fundamentar racionalmente a experiência de fé das comunidades cristãs? A noção atual de teologia é resultado dessas interrogações. Ela busca expressar racionalmente — racionalmente — na forma do logos — a experiência da salvação acolhida pela fé na Revelação histórica de Deus, ou a transparência de transparência de Deus na história. A teologia busca dar fundamentação e discernimento crítico para a experiência exper iência histórica da fé f é e, ao mesmo tempo, tendo a fé como pressuposto, pr essuposto, discernir as as realidades históricas. Proporciona, portanto, uma dialética entre a experiência existencial e religiosa que capta a transparência do mundo e da história como fala de Deus, e a reflexão racional que busca plausibilidade, fundamento e expressão dentro das regras do logos humano. logos humano. Todo o desenvolvimento histórico da teologia, desde o Cristianismo primitivo, atingindo seu cume na escolástica medieval, realizou essa façanha que terá na metafísica seu grande sistema e base teórica. O diálogo com as ci ências
Também a teologia vai fazer empréstimos da racionalidade imanente para relacionar a realidade última com a imediata, os meios e os fins, o escatológico e o histórico, Deus e o ser humano. Após um longo período de oposição às ciências modernas, a reflexão teológica vai dialogar com os resultados e com os métodos das ciências, sobretudo com os das ciências humanas, tanto para a decodificação de suas fontes, o que dará origem às chamadas ciências bíblicas, como para par a a abordagem ab ordagem de objetos ob jetos específicos que darão d arão origem às teologias adjetivas anteriores e posteriores ao Concílio Vaticano II. Trata-se de um movimento de reconciliação com as realidades terrestres que busca compreender teologicamente as grandes questões teóricas e práticas elucidadas pela racionalidade moderna, tais ta is como: a origem do ser humano (e as teorias científicas da evolução), o processo histórico (e as ciências históricas), as contradições sociais (e as ciências sociais), a diversidade cultural (e a antropologia), o comportamento humano (e a psicologia) e assim por diante. Vale ressaltar que nesse esforço de diálogo a própria teologia reconfigurou-se em seus conteúdos e métodos, produzindo um quadro variado de reflexões sobre os mais diversos temas. Cosmovisões
Experiência Originária
Transparência Sagrado Transcendênci a Imanência
Ideia Mundo
Código s
Meios
Objetivos
Resultados
Símbol Revelação Integração Comunhão o Filosof Reflexão ia Ciência
Unidade
Explicação
Objetivaçã Diversida Manipulaçã o de o
Pensar a partir do sagrado, da ideia ou do mundo constitui modos distintos de experimentar e expressar a realidade que podem ter seus momentos de exclusividade e até de hegemonia, a depender do tempo e do espaço e das circunstâncias em que nos situamos. Contudo, como
testemunha a história humana, não podemos afirmar um modo em oposição ou sobreposição ao outro, como pretendem aqueles que acreditam (no sentido original do crer) no progresso linear da cultura. O sentido amplo e profundo da realidade pede a diversidade de visão e de posturas não somente por coerência ontológica com a própria constituição do real, mas também por razões antropológicas e éticas: afirmar as múltiplas experiências humanas em consonância com suas múltiplas dimensões, assim como um caminho ético que permita ligar a parte e o todo, os meios e os fins.
CAPÍTULO II
Compreendendo Compreendendo a realidade como valor O ser humano vive a partir de valores que motivam e direcionam suas ações. A sua relação com o mundo e com os outros ocorre numa dinâmica valorativa que articula meios e fins, ainda que, muitas vezes, certos meios sejam afirmados como neutros, sem vínculos com finalidades externas às suas estratégias e técnicas, capazes de produzir efeitos eficazes por si mesmos e, portanto, capazes de atingir seus objetivos operacionais. Nesse sentido, o postulado da indiferença, da neutralidade ou da relatividade dos valores relacionados a qualquer ação humana não capta o real dinamismo do espírito humano, que constrói, concomitantemente, estratégias e sentido para a sua ação. Com efeito, a ação orientada por valores se dá no interior de um processo de compreensão da realidade. Valorar e conhecer são posturas que se interagem de alguma forma na relação concreta do ser humano com o mundo, com os outros e consigo mesmo. Podemos dizer que há um nexo necessário, ainda que não explícito e consciente, entre valoração, compreensão e ação sobre a realidade em todos os projetos humanos. A construção das diversas formas de conhecimento, dos mitos mais arcaicos à ciência de ponta, destina-se a alguma forma de intervenção na realidade; intervenção sempre motivada e direcionada por valores. As ciências modernas dispensam a consciência e a explicitação dos valores no momento de sua fundamentação teórica e metodológica e de sua execução; apresentam-se como um conjunto de meios capazes de explicar e intervir na realidade pela força de sua exatidão e eficácia, sem necessitar de pressupostos éticos. Já verificamos que essa autossuficiência metodológica se impõe como um fato verdadeiro, mas não se sustenta do ponto de vista mais amplo e profundo, como opção e ação axiologicamente neutras. Ao contrário, a ciência traz crenças embutidas em seu estatuto teórico-metodológico, ao afirmar que suas fórmulas correspondem à realidade e que a razão humana é capaz de conhecer; carrega interesses individuais e políticos no momento de sua produção, assim como finalidades em suas aplicações. A teologia pode ser vista como um tipo de ciência engajada que busca, precisamente, articular valores e conhecimento da realidade. Ela não só expõe seus pressupostos de fé, mas também os assume como objeto de investigação; busca compreender a realidade a partir de seus pressupostos, assim como os pressupostos a partir da realidade. A regra fundamental é a articulação entre a fé e a razão. O pressuposto da fé direciona a reflexão a partir de seus conteúdos-valores e esses se tornam simultaneamente objeto de crítica da razão. A teologia visa, portanto, oferecer um conhecimento valorativo da realidade ao afirmar o que a realidade é e o que a realidade deve ser; faz coincidir, nesse sentido, a ética com a ciência, os meios e os fins. Em última instância, é o conhecimento dos fins que permite conhecer os meios. A afirmação do sentido teológico da realidade fornece um horizonte de referência para a razão e para a vida humana na sua relação com a natureza e com os outros, com o passado, o presente e o futuro. Nesse sentido, a teologia pode contribuir com a crítica das ciências, ao expor seu modo de pensar a realidade a partir dos seus princípios e fins últimos. Ela está em condições não de discutir os métodos e resultados das ciências mas sim de expor os vínculos desses com o ser humano, enquanto sujeito de onde procede, por onde passa e para onde se destina toda ciência. Uma crítica teológica das ciências busca, pois, expor os vínculos necessários entre o agir científico e a destinação das ciências, os objetos de estudo e sua contextualização, as abordagens e as intencionalidades, as mediações técnico-científicas e as finalidades éticas.
1. As ações visando a valores As ações humanas têm sempre um direcionamento para objetivos imediatos e explícitos, mas também para finalidades profundas nem sempre explícitas que dão sentido às motivações e aos percursos humanos como uma totalidade coerente. O cientista social Max Weber propôs uma tipologia que classifica as ações humanas em quatro tipos: a) as ações racionais visando aos fins, ou seja, aquelas ações que estabelecem os meios para atingir determinadas finalidades, ou resultados; b) as ações racionais visando aos valores, que é condicionada por valores éticos, estéticos ou religiosos, os quais ocorrem sem relação com resultados; c) as ações afetivas, determinadas por ligações afetivas, também sem relação com resultados; e d) as ações tradicionais baseadas nos costumes. costumes.40 Weber propõe uma tipologia, ou seja, uma classificação da realidade que não coincide, exatamente, com a realidade a que se refere, sendo que esta na prática pode ser uma mistura concreta de tipos diferentes e até divergentes. A função da tipologia é captar as tendências de uma realidade e proporcionar uma visão de sua dinâmica para quem pretende compreendê-la racionalmente, de modo que nossas ações concretas podem ocorrer num misto de finalidades racionais e valorativas. No entanto, a tipologia nos permite detectar, de fato, a presença de certas ações humanas vinculadas a valores, quando aquilo que as motiva está contido no interior da própria ação, considerada boa e necessária por p or si mesma, independente dos resultados r esultados que possa produzir. A finalidade de um beijo é beijar, a finalidade do amor é amar, a finalidade da arte é embelezar, a finalidade da fé é crer. Para todas essas ações, basta a própria ação para que o sujeito que a pratica encontre em seu transcurso e conclusão realização e sentido. Podemos dizer que a ação visando a valores tem um aspecto consciente, na medida em que se direciona por algo racionalmente conhecido e escolhido, e um aspecto normativo, enquanto adere a um absoluto em que se acredita. Ela tem, ainda, um aspecto de gratuidade por sua finalidade referir-se ao próprio agir como necessário porque bom, sem visar a resultados. De fato, os valores existem, direcionam e sustentam as ações humanas. Eles acompanham a vida dos seres humanos ao longo da história e no percurso existencial de cada pessoa. Podem ser definidos como a motivação fundamental de nossa existência que, posicionados como finalidade, orientam de modo explícito ou implícito nossas ações. No caso da ação visando a valores, valores, eles aparecem de modo explícito; no caso das outras ações eles são implícitos, uma vez que não pode haver nenhum tipo de ação sem que se sustente em algo crido como fundamental que sustente os interesses, ainda que os mais mesquinhos. Em suma, finalidades prévias orientam todas as ações humanas, em maior ou menor profundidade, de modo explícito ou implícito, como algo permanente ou transitório e, ainda, de maneira globalizante ou parcial. Poderíamos traçar um quadro sobre a profundidade e a amplitude dos valores subjacentes às ações humanas indo do mais radical ao mais superficial, dos valores últimos aos valores imediatos, e verificar, igualmente, a articulação entre esses níveis. Estabelecer finalidades é um dinamismo da consciência humana que busca demarcar horizontes para as suas ações. Não há ação sem direção, ainda que essa direção estabeleça tão somente as metas de subsistência (satisfação das necessidades básicas) ou de equilíbrio entre o ser humano em seu meio (economia de energia). Mesmo nesses casos, a consciência já se mostra como estratégia de vida que transcende o puro instinto ou o determinismo da espécie que
direciona mecanicamente seus representantes para determinados comportamentos. A finalidade da vida constitui a mais básica de todas. Além de inscrita nos mecanismos de formação, interação, sobrevivência e continuidade de todos os seres vivos em conjunto e em particular, a vida se mostra como a grande meta subjacente às construções humanas ao longo da história da espécie nos processos de hominização e de humanização. Ela rege as espécies que evoluem em complexidade e profundidade. Ela sustenta os valores estabelecidos culturalmente como regra de convivência e, por se tratar de regra comum, como aquilo que é humanamente legítimo ou legal. Toda fundamentação dos valores construída pela ética assenta-se, em última instância, na valorização da vida, entendida como dom da natureza: a ideia de criação como um dom do Criador, donde decorrem os preceitos da ética judaico-cristã, ou a ideia de uma ordem natural phísis) a ser reproduzida na ordem política (éthos ( phísis) (éthos)) nos primórdios da ética filosófica, no contexto da pólis da pólis grega. grega. Em manter e organizar a vida humana mediante as atividades econômica, política e educacional consiste, certamente, a base material de toda formulação moral, desde as sociedades mais arcaicas até as formulações éticas que introduzem o elemento racional e universal, ao perguntar pelos fins últimos da espécie humana.
a ) Os valores fundamentais e os valores imediatos Os valores mais fundamentais da vida humana não são sempre conscientes ou explícitos; podem subsistir como cosmovisão, como herança cultural ou como princípio religioso, todos esses interiorizados no processo espontâneo de socialização dos indivíduos e grupos humanos. Fazem parte do conjunto das objetivações sociais anteriores, superiores ou posteriores a vida estritamente individual. Nesse sentido, aderimos e reproduzimos certos valores de fundo de modo habitual e espontâneo, ou seja, sem grande esforço reflexivo ou volitivo. O senso comum, a cultura popular e as tradições religiosas costumam transmitir grandes valores que os indivíduos e grupos reproduzem em seus comportamentos diários, sem necessitar de nenhuma justificativa racional. É nesse sentido que, muitas vezes, se fala em povo brasileiro hospitaleiro, em consciência coletiva dos judeus, na justiça dos islâmicos, no valor do trabalho dos protestantes. Mas muitos valores fundamentais podem ser assumidos como referência explícita em nossa vida, mesmo que na direção contrária da cultura predominante. É quando aderimos voluntariamente, escolhemos direções e traçamos grandes metas para a vida como um todo. Tais escolhas podem ser racionais, na medida em que traçamos um projeto de vida pessoal e profissional e estabelecemos finalidades últimas: crescer profissionalmente respeitando o outro, enriquecer sendo capaz de partilhar, conquistar posturas profissionais sem dominar os companheiros de trabalho. Os grandes personagens da história da humanidade são exemplos dessas opções por valores fundamentais, indo inclusive às últimas consequências e não poupando em tal coerência a própria vida. Abraão e Sara morreram com esperança de que as promessas de Deus seriam realizadas, apesar das evidências contrárias; Jesus de Nazaré levou o amor às últimas consequências, ao perdoar seus algozes; Mahatma Gandhi enfrentou toda a repressão da coroa inglesa, afirmando a não violência como valor absoluto. As tradições religiosas e a própria razão sempre buscaram distinguir os princípios essenciais dos particulares ou circunstanciais. A investigação dos constitutivos essenciais da realidade marca todo o percurso da filosofia clássica e, neste mesmo movimento, a reflexão ética construiu-se como a fundamentação e proposição da finalidade primordial da vida humana. A
pergunta pelo essencial esteve presente na ética judaica e cristã, assim como nas diversas tradições religiosas. Cada tradição tem a sua regra de ouro e ouro e em todas elas o outro é colocado como o parâmetro da ação: amar o outro como a si mesmo, não querer para o outro o que não quer para si, fazer ao outro o que deseja para si. Os demais valores devem ser decorrências desse valor fundamental, as demais regras referenciadas por essas. O Cristianismo afirma o amor como o valor primeiro e fundante de todos os outros. O apóstolo Paulo escreveu o conhecido hino que coloca o amor como o critério definitivo para discernir todos os demais valores, inclusive a fé e a esperança (cf. 1Cor 13). ética. A A fundamentação racional dos valores fundamentais constitui o que chamamos ética. vivência dos valores nas esferas particulares — particulares — por por uma cultura, por uma religião ou indivíduo — é é propriamente a moral. O ideal é, evidentemente, que essas esferas se aproximem ao máximo e, a até mesmo, se encontrem no momento das opções e ações dos grupos e pessoas.
b ) A articulação entre as esferas de valores Os valores fundamentais determinam e orientam nossas condutas como origem permanente de nossas opções menores, nossos atos realizados nos momentos particulares de nossa existência. É a bússola que dirige a vida numa determinada direção, ainda que na caminhada possa haver pequenos desvios. Como a bússola, os valores fundamentais são necessários necess ários para garantir o rumo permanente que torna possível p ossível retomar a direção dir eção em caso de desvio ou de conflito de valores. De fato, nos atos diários e rotineiros, nas decisões e execuções imediatas, agimos a partir de valores que não são necessariamente fundamentais, mas quase sempre de natureza prática: a decisão por uma compra, por um curso a ser feito, por um relacionamento afetivo ou por um emprego. Em todos os casos, há valores em jogo: valores morais, estéticos, econômicos, sociais ou culturais. E decidimos a partir deles ao fazermos as escolhas, mesmo que seja uma decisão não consciente, sem ter que nos colocar diante dos valores fundamentais. A teologia procura distinguir a orientação fundamental da existência humana das decisões particulares. A orientação fundamental tem um aspecto profundo que envolve a liberdade e o empenho total da pessoa, estando em jogo nessa decisão o seu destino último. Muito embora a orientação fundamental nem sempre apareça nas ações particulares, ela serve como referência permanente, sendo considerada, sobretudo, nas situações de conflitos. É possível efetivar a compra de um produto se essa decisão prejudica o outro? Um relacionamento afetivo pode transformar o outro em objeto? Um emprego almejado pode ser conseguido utilizando informações falsas? Nessas situações, a orientação fundamental pode direcionar a decisão como seu valor último. Um outro aspecto importante é que a orientação por valores fundamentais é uma construção permanente e que pode consolidar-se ou desgastar-se des gastar-se à medida que tomamos as decisões diárias d iárias orientados por valores práticos e imediatos. “O uso do cachimbo entorta a boca”, reza sabiamente o provérbio popular. Nas pequenas decisões podemos detectar a presença ou ausência de valores fundantes; também, à medida que feitas com liberdade e responsabilidade, reafirmam e expressam os grandes valores, mesmo que não se refiram explicitamente a eles. eles.41 Os valores fundamentais situam-se no horizonte dos significados radicais da existência humana, que transcendem o imediato e o pragmático da compreensão e da ação no mundo. Por isso mesmo, a colocação desses valores se dá como atitude de fé que os adota como fundamento real e viável das escolhas e ações humanas e como finalidade última.
2. A relevância dos valores na construção da história humana A cultura de um modo geral é resultado das ações humanas na busca de domínio e transformação da natureza, de ordenação da vida social e de interpretação desses processos. Em toda a história, podemos constatar a presença de ações humanas, justificadas ou não, perante o grupo social, buscando impor estratégias e interpretações cujas finalidades consistem em construir, de alguma forma, a realidade. Os valores dos grupos hegemônicos se impõem como valores comuns e obtêm resultados, estabelecem configurações históricas e institucionalizam ordens morais e legais. A história geral e a história das morais humanas têm sempre uma justificativa para a ordem que se implanta. Temos, então, uma moral da escravidão, uma moral da nobreza, uma moral da colonização etc. Trata-se da ordem legítima que se mostra como verdadeira, justa, legal e eficaz. A tarefa de seus defensores e atores é mostrar que se trata de um valor, de algo bom para todos. Em todos os casos, a justificativa sagrada se faz necessária, como fundamentação última e inquestionável. No entanto, a mesma história produz resistências em nome de valores contrários àqueles dominantes. A moral dos grupos minoritários e dominados constrói suas finalidades e estratégias também em nome de valores que buscam suas formas de legitimação e agregação de sujeitos e grupos. A moral do êxodo judaico se tornou o grande paradigma da tradição judaicocristã. Em nome do Deus defensor dos escravos libertos do Egito, o Decálogo Decálogo instituiu uma ordem social alternativa àquela escravocrata predominante no Oriente Médio. Também o Cristianismo vai afirmar-se e expandir-se como uma nova ordem social dentro do Império Romano. A lei do amor universal propõe um sistema de vida que transcenda as diferenças sociais, raciais e de gênero: “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher” (Gl 3,28). Ao longo da história, poderíamos ir mapeando os valores subjacentes aos impérios, às guerras, à arte e à própria ciência. Talvez devêssemos distinguir dois momentos principais: o das sociedades tradicionais e o das sociedades modernas. No primeiro momento, os valores religiosos são assumidos, justificados e explicitados como fundantes das práticas históricas de um modo geral. A centralidade do sobrenatural na vida política e cultural perpassa as ações humanas e fundamenta a existência das instituições. Nos tempos modernos, com o chamado processo de secularização, os valores mais fundamentais nem sempre são explícitos. Os valores imediatos sim. As ciências e a política colocarão seus valores, basicamente o valor da autonomia do agir e do pensar. No entanto, com a fragmentação progressiva do conhecimento e da ação, com a afirmação das mediações práticas (as estratégias das ciências, da política e da economia) como mediações justificáveis por sua cientificidade e eficácia, as finalidades últimas foram perdendo sua relevância e sendo dispensadas no momento da pesquisa e da prática científica e econômica. A ciência e o mercado têm sua própria lógica e funcionam em seus objetivos intrínsecos, já não precisam de nenhuma finalidade ética externa que as regule. De qualquer forma, a colocação dos valores é indispensável para a compreensão do desenvolvimento da história e da constituição da cultura de um modo geral. O Evangelho diz que “onde está teu tesouro, ali está teu coração” (Mt 6,21), ou seja, o centro da decisão e da ação humanas são os valores. Ninguém age sem uma motivação profunda seja consciente ou
inconsciente, implícita ou explícita. O empresário pretende ganhar dinheiro com seus investimentos e aposta sua vida nessa direção. O cientista acredita que é possível conhecer a lógica interna do objeto que investiga, que é possível conhecer a verdade inerente à realidade. O político tem seus valores sociais so ciais e políticos que qu e movem sua ação em nome do povo e da nação. Os sujeitos religiosos de uma forma geral explicitam seus valores como motivadores últimos e imediatos de suas opções e ações. O mundo, antes de ser um dado racional que desafia a inteligência a interpretá-lo, é um valor a ser perseguido. Nesse itinerário, o ser humano busca seu lugar na direção da felicidade imediata e eterna. O jogo entre o eterno e o imediato, entre o definitivo e o efêmero, acompanha as investidas humanas e seus projetos. O ser humano ou eterniza o imediato, afirmando as ações fugazes como momentos imperdíveis de experiência absoluta do prazer e busca repetir e aprofundar essas experiências num ciclo infindável de eterno retorno do desejo insaciável, ou imediatiza o eterno, ocultando sob suas decisões e ações imediatas os valores mais radicais. Vive o imediato como se o eterno não o tocasse na esfera dos desejos mais profundos e das inquietações mais fundamentais. É comum também afirmar a separação entre a esfera de atuação dos valores fundamentais da dos valores imediatos. Os valores fundamentais ficam localizados na esfera das opções religiosas individuais, enquanto os valores imediatos regem as opções cotidianas, a vida social e profissional. “Negócios à parte!” part e!” A A ética não deve interferir no funcionamento do mercado nem da investigação científica. Também valores éticos universais não podem reger a vida privada das pessoas, sendo que cada indivíduo possui seus valores particulares e age tão somente a partir deles. Contudo, a pergunta que resta é pelo valor absoluto subjacente e escondido sob esses valores imediatos. No fundo, todas as pessoas servem a algum deus no altar da profissão, no templo da ciência ou no reino da política, mesmo acreditando que o relativismo e a neutralidade ética combinam com as ações humanas. Nenhuma ação é eticamente neutra. A ausência da consciência sobre os valores fundantes da ação humana contribui com a alienação ética: o direcionamento inconsciente de nossas ações para finalidades estranhas aos nossos valores, para interesses alheios que subjugam nossas ações. É nesse ponto que o conhecimento racional mostra sua importância na crítica dos valores que se apresentam como universais, legítimos e verdadeiros. É o momento de construção da consciência ética. A explicitação da dimensão histórica e cognitiva dos valores, assim como a busca de seus fundamentos, constitui tarefa da ética propriamente dita, enquanto reflexão sobre as práticas morais. Da mesma forma que nenhum conhecimento é eticamente neutro, nenhuma moral transcende a crítica da razão.
3. A tese da neutralidade científica Os valores que direcionam nossas ações expressam ou confirmam algum tipo de conhecimento da realidade que possuímos, conhecimento que pode ser de origem religiosa, racional ou prática, ou mesmo de uma combinação desses. Se os valores significam uma forma de conhecer a realidade, o contrário nem sempre ocorre, quando o conhecimento científico aborda a realidade.
De fato, a ideia de neutralidade científica acompanhou a formação das ciências modernas. A ruptura com a metafísica, no sistema kantiano, significou o estabelecimento de parâmetros epistemológicos para o conhecimento moderno. Os limites do empírico é que dão a autenticidade do conhecimento válido, e a referência a princípios metafísicos não pode contribuir com a sua edificação. Um outro sistema de fundamentação da realidade será construído por Kant no momento da reflexão moral, entendendo que os valores estão localizados no âmbito da vivência e necessitam de uma razão de ser absoluta que termina em Deus. Essa separação entre o conhecimento que se fundamenta na empiricidade do objeto e os valores que se fundamentam em Deus demarcou a história das ciências e ainda vigora em nossos dias como regra explícita ou velada do fazer científico. Na verdade, nas origens o rigens das ciências modernas, a “hipótese Deus” ficou de fora dos métodos científicos, não por uma opção pelo ateísmo enquanto tal, mas por uma espécie de ateísmo metodológico (neutralidade metodológica). Os primeiros cientistas mantinham em seus pressupostos universais a necessidade necess idade racional r acional de um Princípio P rincípio inteligente, responsável pelo ato inicial das leis da natureza. A natureza funciona por si mesma uma vez dotada de autonomia. O Criador seria, no caso, a origem primeira da própria autonomia sem, contudo, interferir em suas regras em curso e, portanto, no estudo e formulação das mesmas regras por parte da ciência. A ideia de neutralidade das ciências tem, pois, esse lugar original referido fundamentalmente à teologia e à metafísica. Na sequência histórica, estavam abertas a possibilidade e a necessidade de afirmar a objetividade das ciências a partir da empiricidade de seus objetos, da positividade de seus métodos e da verificabilidade de seus resultados. No âmbito das ciências humanas, o positivismo significou a formulação mais acabada ac abada dessa tendência. Augusto Comte propõe uma ciência da sociedade tendo como parâmetro as ciências naturais. Pretendia construir uma “física social”, que fosse capaz de explicar a lógica lógica de funcionamento da sociedade, bem como possibilitar a intervenção sobre ela na busca da organização e do progresso. pro gresso. Para o positivismo, a ciência se impõe pela sua capacidade de explicar a realidade como ela é, numa relação de distância e objetividade entre o sujeito que conhece a coisa conhecida, sem que esses polos, sujeito e objeto, se deixem afetar pelas condições em que se encontram no ato de conhecimento. Utilizando-se do método matemático, a realidade, no caso a realidade social, pode ser explicada pela ciência em sua estrutura e funcionamento, permitindo pe rmitindo construir generalizações sobre ela. As ciências da natureza de um modo geral possuem um estatuto epistemológico sustentado na convicção da neutralidade, uma vez que é capaz de isolar e manipular seus objetos, de testar empiricamente suas hipóteses e reproduzir seus resultados em situação de controle. Tal objetividade metodológica afirma-se como neutra política e eticamente em nome do teste de verificação e da aplicação eficaz de seus resultados. Embora essa concepção tenha seu auge no século XIX e tenha já sofrido toda sorte de críticas por parte de filósofos e epistemólogos, ela goza de pleno vigor, sobretudo na ordem prática. As ciências médicas, a tecnologia bélica e a própria economia são executadas como meios eficazes que dispensam a colocação de qualquer finalidade que venha direcionar seus rumos e estratégias. O interesse prático prevalece sobre qualquer outro e tem uma dupla face: o resultado eficaz da manipulação do objeto de estudo e o interesse econômico que recaia sobre esse resultado. Presenciamos hoje um embate amplamente divulgado pelas mídias entre a bioética e a biotecnologia, sobretudo nas questões ligadas à manipulação da vida. O significado da ciência, suas finalidades e, portanto, seus limites é o ponto crucial do debate entre as tendências. O
sentido último da vida é o princípio, de natureza não científica, que sustenta as proposições da bioética. Embora, muitas vezes, vezes , pareça um diálogo de surdos sur dos e uma luta quixotesca, esse es se debate deb ate é de fundamental importância para a vida planetária e para a convivência humana em termos de futuro da vida.
a ) A crítica ao positivismo Esse propósito de distância e objetividade foi logo criticado por pensadores igualmente preocupados em fazer f azer ciência. Wilhelm Dilthey, pensador do historicismo alemão, vai construir uma crítica severa dessa pretensão de neutralidade. O filósofo afirma ser necessário distinguir as ciências da natureza, capazes de utilizar métodos quantitativos e produzir explicações sobre seus objetos em situação de manipulação e controle, das ciências do espírito, nas quais estão implicadas realidades humanas em seu objeto. Não seria possível, no caso, a distância e a neutralidade entre sujeito e objeto, sendo que o sujeito pode ser afetado pelo seu objeto de estudo. O sujeito é um intérprete da realidade, e a sua condição pode interferir naquilo que afirma sobre o objeto, da mesma forma que o objeto pode afetar o sujeito e interferir em suas conclusões. A ciência, assim como qualquer outra forma de visão de mundo, está banhada pela relatividade histórica que situa e envolve seus processos de operação: os sujeitos, os objetos, os métodos e os resultados. Portanto, as ciências do espírito não podem produzir explicações sobre seus objetos, como as ciências naturais, mas somente compreensões. compreensões.42 O propósito de neutralidade científica do positivismo esconde, na verdade, sua inserção no contexto do Estado burguês do século XIX. A convicção de que a ordem social está submetida às mesmas regras imponderáveis da ordem natural e, portanto, livres de qualquer decisão humana, oferece o fundamento teórico e metodológico da conformação à ordem estabelecida pelo capitalismo industrial e à rejeição das utopias revolucionárias como lutas políticas quixotescas e de qualquer outra “pré“pré-noção” que se inclua nas análises da “coisa” social. Essa epistemologia rege a sociologia de Comte e de Durkheim, e afeta outras correntes teóricas ligadas ao marxismo e ao próprio Max Weber .43 Essa neutralidade positivista parece ter sofrido as críticas suficientes para expor sua contradição intrínseca enquanto ciência social. Com efeito, o que estamos postulando é a necessária crítica a ser feita às ciências de um modo geral, no que se refere às suas finalidades éticas. Por sua vez, a falsa neutralidade política das “ciências do espírito” tem, certamente, seu correspondente religioso. A afirmação de uma ordem natural fixa para a sociedade, bem como de uma espécie de ciência imutável, se inscreve muito mais na linha de um comportamento religioso, da formulação dogmática, da regra de vida, do que propriamente do exercício autônomo da razão investigativa. Aliás, nesse propósito o próprio Comte se deixa flagrar com seu Catecismo positivista. positivista.44 A imagem da Deusa da Deusa Razão, Razão, herdada do iluminismo e da Revolução Francesa, é mais que uma analogia religiosa; é uma postura espiritual que afirma a supremacia absoluta da razão humana sobre a realidade e sobre o próprio ser humano. Do ponto de vista teológico, a qualificação divina de qualquer realidade histórica, inclusive aquelas religiosas, configura idolatria. A idolatria da razão, como a de qualquer outra entidade, absolutiza o relativo e coloca o humano a seu serviço e, quase sempre, exige sacrifício. No caso da Deusa da Deusa Razão, Razão, o sacrifício exigido parece ser o do próprio intelecto, por natureza livre e crítico para investigar todos os objetos e objetar toda investigação. Essa operação feita em nome da
razão sugere, exatamente, o caminho inverso da teologia, na medida em que transforma a ciência em doutrina, sendo que a teologia submete a doutrina à ciência.
b ) As ci ências e os valores A crença na neutralidade científica leva, portanto, à crença na própria ciência que se torna um imperativo categórico da razão, imposto sobre outras visões e práticas humanas que escapem de seus parâmetros metodológicos. Sob a tirania dessa racionalidade ficam, portanto, restritos determinados objetos, métodos e teorias como legitimamente científicos, donde decorrem a maior ou menor legitimidade acadêmica no âmbito das universidades, ou a maior ou menor legitimidade política dentro da sociedade de um modo geral. Há que ressaltar que o próprio Max Weber, não obstante o lugar fundamental que reserva às visões de mundo e aos valores em sua sociologia, afirma que a ciência deve ser isenta dos juízos de valor. Ela é um conjunto de meios que deve distinguir-se das finalidades valorativas. O cientista deve esclarecer os valores sem assumi-los em seu método fundado na objetividade. O filósofo Hilton Japiassu denomina de mito a mito a pretensão de neutralidade científica. A ciência não se separa dos valores; ao contrário, relaciona-se a eles em todo o seu percurso, no início, no meio e no fim de sua formulação e aplicação. Ela nasce em um contexto que a possibilita e condiciona social e culturalmente; é formulada e exercitada a partir de um objeto e de uma metodologia escolhida pelo cientista, a partir de interesses explícitos ou implícitos, e tem uma finalidade na medida em que se destina à aplicação. De fato, as ciências modernas são todas praxeológicas, visam à intervenção na realidade natural e humana. Isso significa que elas têm uma direção inerente aos resultados visados. A psicologia pretende interferir no comportamento humano, a sociologia induz comportamentos coletivos, a economia vincula-se a um determinado modelo econômico, a engenharia interfere na natureza. Essa praxeologia está diretamente relacionada a interesses (valores) individuais ou grupais e tem consequências boas ou ruins para o ser humano e para a natureza. natureza.45 A ciência se faz, portanto, como intencionalidade e engajamento. Ela opera a partir de valores implícitos ou explícitos que, para o bem da verdade, devem ser conhecidos e assumidos pelos cientistas e pela sociedade de um modo geral. O discurso da neutralidade científica esconde esses valores e contribui com o ocultamento dos interesses subjacentes às políticas científicas do ato de fazer ciência. Em suma, essa ruptura entre os meios e os fins, ou seja, entre a metodologia e os valores, mostra, por um lado, a autossuficiência teórica e tecnológica das ciências, ratificada nos resultados concretos que produzem, e, por outro, sua insuficiência para evitar ou dispensar a abordagem sobre as finalidades éticas subjacentes a suas práticas.
4. A teologia como conhecimento valorativo da realidade Dos itens anteriores podemos tirar duas conclusões. A primeira que, do ponto de vista metodológico e prático, a ciência se faz sem valores intrínsecos ao seu processo de construção e execução. A segunda, que a neutralidade científica é um mito, uma vez que, do ponto de vista dos fundamentos do conhecimento e da contextualização histórica das práticas científicas, há sempre pressupostos teóricos e finalidades práticas que sustentam e direcionam essas ações. O
grande desafio da ciência é ter consciência desses condicionamentos e tirar as consequências para a sua formulação e execução, ir além de sua imanência metodológica e olhar o contexto amplo em que se situa, ou seja, sair de uma moral implícita para uma ética explícita. O desafio para a ética é ajudar na construção de caminhos que, sem apoiar-se de d e modo fundamentalista em modelos interpretativos do passado, dialogue com os avanços da ciência. Contudo, nem todos os paradigmas científicos postulam a neutralidade como uma necessidade metodológica. Ao contrário, afirmam a necessidade do engajamento consciente da investigação da realidade, como no caso do referencial marxiano, ou buscam, precisamente, expor os fundamentos teóricos da ordem valorativa da realidade, casos da ética — ética — filosófica filosófica ou teológica — e do direito. Tanto a ética quanto o direito podem ser definidos como ciências normativas. Essas buscam não só expor uma fundamentação do normativo mas igualmente propor ordenamentos orden amentos valorativos, capazes de direcionar a convivência humana human a a partir p artir do bom bo m e do justo. Em todos esses casos, investigação e valoração, crítica e proposição se entrelaçam no mesmo ato de apropriação crítica da realidade. As ciências normativas operam, na verdade, com um duplo movimento reflexivo que compõe um ciclo hermenêutico entre o valor e a realidade. A crítica dos fundamentos do valor, feita a partir da razão, e a crítica da realidade, feita a partir do valor, dinamizam o discurso, na busca da coerência de um aspecto em relação ao outro. A teologia é a ciência normativa por excelência. A reflexão teológica transita entre as referências de valor advindas das fontes da fé (os textos bíblicos) e a realidade (em todas as suas esferas ou dimensões); critica seus fundamentos escritos, mediante os instrumentos das ciências históricas e textuais, e critica a realidade de um modo geral a partir dos valores propostos e aderidos como verdadeiros, bons e salvíficos para o ser humano. Nesse sentido, os conteúdos cridos criticam a realidade e são criticados por ela. As compreensões e definições de teologia elaboradas no decorrer da história têm essa afirmação fundamental: submeter os dados da fé, os conteúdos revelados, ao exame racional e submeter a realidade ao exame da fé. A fé pensada pensa a realidade, e a realidade pensada pensa a fé. Eis a dialética mais radical que se faz em termos ontológicos: o encontro entre o ser o ser e e o dever ser ; em termos epistemológicos, o confronto entre a ciência e a fé.
a ) O mundo visto como valor pela fé A adesão a um conjunto de valores pressupõe suas legitimidades social, política e cultural. Trata-se de uma legitimidade que necessita de um fundamento estabelecido pela via racional ou pela via da fé. A autoridade da razão se impõe mediante a demonstração lógica ou empírica. A autoridade da fé se impõe pelo testemunho aderido como algo que toca incondicionalmente o sujeito, como realidade originária e envolvente. Em todos os casos, o valor tem força de autoridade, se impõe como verdade, norma e costume para aquele que o assume. A fé adere a um valor incondicional que se mostra como plausível e afetivo, ou seja, como algo que não exige sacrifício do intelecto por ser racionalizável (embora não racional) e por atrair o coração do fiel ouvinte da mensagem. A fé pressupõe, nesse sentido, uma proposta e uma resposta do sujeito nela envolvido. Ela é, antes de tudo, um dom oferecido ao ser humano, como expõe a teologia clássica. Mas ela é também movimento de adesão e de aposta por parte do sujeito historicamente inserido. A fé tem, portanto, um aspecto objetivo relacionado a um sistema de crença (visão de realidade e prática de vida) e um aspecto subjetivo, que se processa no profundo do indivíduo,
envolvendo seu desejo, inteligência, vontade e ação no único ato de entrega. Trata-se, antes de tudo, de uma postura perante a realidade, impulsionada por valores assumidos como verdade, capazes de explicitar o significado profundo das coisas e, por conseguinte, propor um caminho de vida direcionado a uma finalidade e orientado por normas. Em suma, a realidade é vista como um dado cujo valor advém de uma transcendência que a antecede e sucede como origem e fim. A fé é, portanto, um caminho ético para o ser humano e não um conhecimento esotérico ou científico de Deus, como afirmam muitos movimentos religiosos atuais. Na tradição judaico-cristã, o valor do mundo e do ser humano reside na condição criatural de ambos. A noção de criatura rejeita a ideia de decadência da matéria, como perda de status de status divino divino ou como castigo, assim como a ideia de divinização. A autonomia da realidade criatural chama o ser humano para a atuação livre e responsável, sem a interferência direta e impositiva do Criador. A fé constrói, portanto, um modo de conceber a realidade que envolve o sujeito em um processo de d e interiorização interiorizaçã o e exteriorização de valores estabelecidos est abelecidos pela tradição religiosa como verdade salvífica. A teologia vai emergir como a introdução da razão investigativa — que admira, duvida, interroga e responde — no interior desse processo, como intelecção da fé vivenciada que afirma o que as coisas devem ser.
b ) A teologia como ci ência feita a partir da fé Já pudemos verificar que as diversas concepções e definições de teologia, formuladas ao longo da história, giram em torno de uma questão fundamental: a articulação da razão com a fé. fé. Trata-se de uma articulação que preserva as autonomias de cada uma das dimensões com seus objetos e dinâmicas próprios, enquanto faculdade humana, e reserva a cada qual sua função no ato de conhecimento. A dialética fé e razão não constitui um ciclo fechado entre os dois polos em si mesmos, mas um ciclo que se direciona em mão dupla para a realidade do mundo e do ser humano. Fé e razão são óticas que constroem, em conjunto, a abordagem teológica sobre essa realidade. Os dados da fé oferecem uma interpretação do real, e são criticados, sistematizados e fundamentados pela razão lógico-argumentativa. Por sua vez, o que a razão oferece como explicação da realidade e como regra de conhecimento busca articular-se com os pressupostos da fé. Nesse sentido, a fé normatiza os resultados das ciências, fornecendo finalidades éticas para a sua aplicação na realidade concreta. A teologia busca pensar a realidade a partir da fé (de Deus) e pensar a fé a partir da realidade rea lidade (a cultura e as ciências). A teologia constrói, portanto, um conhecimento valorativo sobre a realidade. Ela diz o que a realidade deve ser ; faz coincidir aquilo que é é com aquilo que deve ser . Mediação racional e científica e finalidade última da realidade se articulam no mesmo ato de interpretação. O mundo e o ser humano são, portanto, aquilo que devem ser. Em outros termos, o transcendente dá sentido ao imanente, o fim último determina os meios, o valor formata o fato. A realidade é carregada de valores que revelam sua essência verdadeira e seu destino final, o que atrai a vontade e a inteligência humana para agir e compreender. Por outro lado, as fontes de valor — codificadas nos textos sagrados, nas doutrinas, nas tradições — tradições — são são explicitadas e assumidas como pressuposto como pressuposto da da reflexão teológica e, ao mesmo tempo, tomadas como objeto de crítica da razão. A teologia, em suas várias vertentes, é, nesse sentido, uma crítica ampla e radical que submete ao exame da razão seus próprios pressupostos, ou seja, a própria fonte de onde retira os conteúdos interpretativos e valorativos da realidade. Desse modo, a teologia cristã estuda os textos bíblicos com os recursos das ciências; a teologia
filosófica submete o próprio Deus ao juízo lógico-argumentativo; e a teologia das religiões examina criticamente as tradições religiosas em suas fontes e componentes. Em todos os casos, crer e compreender são direções do espírito humano que se confrontam e se completam na busca do sentido profundo da realidade. A realidade, assim interpretada, se mostra como uma grandeza ética, cujos caminhos delineados direcionam-se para uma finalidade conhecida e assumida. Contudo, Deus não é a única fonte de valor, nem mesmo dos valores absolutos. Esses podem ter sua fonte no âmbito imanente, na natureza ou no ser humano. Mas a amplitude do objeto material da teologia a coloca em posição diferenciada em relação às ciências, ou seja, a coloca em horizonte de infindas possibilidades de abordagem da realidade como um olhar que pensa a realidade a partir de. de. Compreender o mundo a partir dos valores da fé, ou, em outros termos, pensar as coisas a partir de Deus constitui uma operação que faz coincidir o ser e e o dever ser , o que e o para que que da realidade, o já e o ainda não não da história; uma operação cognitiva que envolve dois princípios interligados. Um ontológico, que afirma o que a realidade é em si mesma, uma vez que ela é o que deve ser em sua destinação última, sabendo que Deus falou na história sobre esta destinação (Revelação). Outro ético que estabelece finalidades últimas (teleologias) e meios decorrentes (deontologia) para as compreensões e práticas humanas. A ótica da fé pode fornecer elementos para pensar a realidade; pode ir da amplitude do cosmo aos seres mais minúsculos, da norma positivamente instituída ao interior das consciências, do histórico ao pós-histórico, da ciência ao desejo. Pensar a realidade a partir de Deus significa, certamente, a afirmação de alguns valores fundamentais aderidos como comunicados por Deus: a positividade e autonomia da criação, a relatividade do imanente e do histórico, a singularidade, liberdade e responsabilidade do ser humano, a máxima da igualdade humana e da lei da solidariedade e a esperança da plenitude humana junto de Deus. Por conseguinte, tudo o que se opuser a isso será negado como antivalor: a visão maniqueísta e determinista da natureza, a absolutização de estruturas históricas, as dominações e opressões humanas, as divisões humanas de todas as ordens, o egoísmo, o relativismo e o niilismo que neguem os valores e o destino final do ser humano e da história. Em suma, a fé tem uma palavra a dizer sobre a realidade do mundo, do ser humano e de Deus, como realidades inter-relacionadas, sendo que de Deus decorrem a relatividade e a grandeza do mundo e do ser humano. Nessa moldura, a teologia tem algo a dizer para as ciências. Ao expor o dever ser das das coisas, levanta a questão da destinação da ciência, de seu para que que e de seu para quem. quem. A ciência responde pelo que que e pelo como como de seus objetos e se faz suficiente em sua imanência teórica e metodológica ao responder a essas interrogações. A teologia, por sua natureza epistemológica, tem condição de perguntar e expor o antes e o depois da depois da ciência realizada em seus processos e resultados e, a partir dessa posição, de criticar os meios científicos e tecnológicos em suas intervenções sobre a realidade. Portanto, ao tomar como objeto de reflexão os objetos das ciências, assim como a própria ciência, a teologia revela aspectos de fundo que aqueles objetos e a própria ciência não abordam pelos seus limites epistemológicos. O antes e antes e o depois das depois das ciências envolvem o ser humano nas suas motivações profundas e na sua destinação última e expõem o sentido da investigação e da verdade. Não se trata, portanto, somente de apresentar às ciências a pergunta metafísica da causa última da realidade e a pergunta de suas teleologias, mas de expor também o sentido da própria ação investigativa do ser humano em seu percurso do início ao fim. A teologia não pode discutir
os métodos e resultados das ciências em si mesmos, tendo em vista a especificidade de seus objetos e a autonomia de seus métodos. Ela pode contribuir com a demonstração de sua imanência limitada e da necessidade da explicitação dos valores imediatos e fundamentais que as sustentam e direcionam. A pergunta pelo sentido da ciência é a própria pergunta pelo sentido da realidade em geral e pelo ser humano em particular. É do ser humano que procedem e para o ser humano que se direcionam as ações investigativas das ciências e de todas as outras formas de pensamento. Nenhuma explicação, interpretação e intervenção sobre a realidade pode prescindir da pergunta epistemológica sobre seus pressupostos e da pergunta ética de suas finalidades, ainda que postule autonomia e neutralidade metodológica para fazê-lo. Ao pensar a realidade a partir da fé, a teologia articula o começo, o meio e o fim do conhecimento com a razão que crê e pensa. Os valores precedem e sucedem toda a sua ação reflexiva, mostrando o que a realidade é e deve ser . Não se trata de opor-se às ciências, com seus métodos e resultados, como uma abordagem superior e mais completa, mas de, numa visão de complementaridade que respeita as especificidades, contribuir com sua abordagem própria com aquilo que envolve a atividade científica em sua globalidade, mas escapa dos limites empíricos de seu objeto e das regras de seu método. Vale ressaltar que a teologia não pode ocupar o lugar de suplemento para aquilo que a ciência não consegue explicar. Ela não começa onde a ciência termina, como se se ocupasse com as questões transcendentes em si mesmas, espécie de ciência dos mistérios ou de explicação do inexplicável. A teologia busca uma compreensão para aquilo que a ciência explica (o mundo e o ser humano) a partir de um horizonte de fé, de valores aderidos como bons, verdadeiros e belos e que revelam o significado profundo da realidade, sua origem e finalidade. No diálogo com as ciências, pode construir uma visão ampla e profunda da realidade como resultado de suas especificidades. A teologia tem que aprender permanentemente o que é a realidade, com os resultados das várias ciências e essas, por sua vez, acolher da parte da teologia o que a realidade deve ser , incluindo a própria realidade da razão científica. Nesse diálogo, a teologia pode mostrar seu potencial para contribuir com a compreensão da realidade, fazer-se necessária.
Dialogar e amar A consciência moral introduz na pessoa humana outro nível de avaliação da realidade, um novo significado para acontecimentos e ações. Este nível se apresenta como intransponível e último. Ele julga todo o resto e não pode ser submetido ou sacrificado a outro ponto de vista da consciência. Nesse sentido, a consciência moral transcende todos os níveis de consciência ou de intencionalidade do ser humano. É só pela descoberta mais profunda e mais completa da verdade que a consciência pode ser iluminada e corrigida, sem com isso sofrer violência. A consciência se apresenta […] como uma “voz” ou uma “luz”. As religiões, inclusive a cristã, dirão: a voz de Deus, a luz de Deus. Porque o imperativo moral manifesta-se à pessoa como algo que está no ser humano, mas não é dele, não se reduz à sua vontade. O ser humano se descobre não como dono do mundo e dos outros mas sim como responsável perante eles. eles.1
Unidades complexas como o ser humano ou a sociedade são multidimensionais; dessa forma, o ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa… O conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter multidimensional e nele inserir estes dados: não apenas não se poderia isolar uma parte do todo, mas as partes umas das outras; a dimensão econômica, por exemplo, está em inter-retroação permanente com todas as outras dimensões humanas; além disso, a economia carrega em si, de modo “hologrâmico”, necessidades, desejos e paixões humanas que ultrapassam os meros interesses econômicos. econômicos.2 Quanto mais os acontecimentos do mundo se tornam o mundo histórico-social, tanto mais premente se torna a pergunta pelo sentido, pelo objetivo e pelo fim desse processo. Quanto maior o poder do homem na exequibilidade das coisas, tanto mais se revela sua impotência em saber sobre o para onde e o para quê. A pergunta de Kant — Kant — “o “o que posso esperar?” — se — se anuncia no ponto em que, no temor pela danação possível, o saber em si ilimitado topa com seus limites. Por isso, não é possível separar história do mundo e acontecimento salvífico, pois é impossível abandonar à danação a história que fazemos pelo conhecimento da natureza e da técnica. A esperança na salvação e o temor da danação são os motores últimos da ação humana. Na per gunta gunta “o que posso esperar?” refletereflete-se o sentido da pergunta “o que posso saber?”, como também da pergunta “o que devo fazer?”. fazer?”.3 CNBB, Doc. CNBB, Doc. 50, Ética: pessoa e sociedade, sociedade, n. 71. MORIN, Os sete Os sete saberes necessários necessários à educação do futuro, futuro , p. 38. 3 MOLTMANN, Ciência e sabedoria, sabedoria, p. 22. 1 2
PARTE IV
Necessidades e proposições
Verificamos que a teologia posiciona-se epistemologicamente como um conhecimento valorativo da realidade. Afirma o que a realidade é a partir do que ela deve ser , buscando, portanto, superar as defasagens defas agens entre o ser e o dever ser. A fé fornece o horizonte hor izonte dos valores que devem ser transformados em convicção e em ação; sabe o que deve ser verdadeiro e bom (e belo) para o ser humano e para o mundo, por força do futuro revelado que vem ao encontro enco ntro da história. O que se espera para o mundo e para o ser humano a fé assume como meta e nela aposta, contando com a força não só do desejo, da vontade, mas também da razão e da ação. Portanto, a fé significa um modo de ler o mundo e nele posicionar-se. Conferimos na parte anterior que o mundo visto pela lógica simbólica torna-se transparente, abre-se para o sentido de fundo, para o mistério que demarca sua origem e finalidade, e lança quem assim o leu para a comunhão e a cumplicidade com seus significados fundamentais. Contudo, do ponto de vista estritamente teológico, não se trata de uma postura religiosa imersa no poço sem fundo do mistério, muitas vezes denominado sagrado, quase sempre batizado com nome próprio de alguma divindade e nem de um eu que eu que mergulha em sua profundidade na busca da verdade e da felicidade plena. O conhecimento religioso de viés mítico e as gnoses religiosas trilham, respectivamente, esses caminhos e oferecem suas eficácias aos adeptos. Sobre essas práticas não fazemos, a rigor, teologia, mas sim religião, sendo essa expressa na forma de ritos, gnoses e introspecções espirituais. A teologia se faz a partir de uma fé que possui algo posto como objetivo, como dado histórico comunicado em fatos, significados codificados em valores, verdades cifradas em textos. A essa experiência e conteúdo chamamos Revelação. E é a partir dessa noção que a teologia se lança na aventura de pensar a fé e de, com a fé, pensar o ser humano, o mundo e o próprio Deus. Nessa ótica, os conteúdos da fé servem para interpretar a realidade: são postulados de sua origem e destino, portadora da verdade daquilo que ela deve ser. Para o Cristianismo, o que a realidade deve ser já foi revelado em Jesus Cristo. Ele é a chave de interpretação oferecida por Deus que permite dizer o que são as coisas no plano de Deus. Não estamos postulando uma teologia fechada a um cristocentrismo universal que exclua as outras tradições religiosas ou, então, as inclua em seu universo de sentido, mas sim mostrando o potencial hermenêutico de uma fé que afirma que Deus se revelou na história comunicando a si mesmo no homem Jesus de Nazaré. Em outros termos, os conteúdos da d a fé revelam o sentido do mundo e do ser humano. h umano. O projeto de teologia levado a cabo pelo teólogo belga Adolphe Gesché expôs de modo preciso esse potencial hermenêutico da teologia com o princípio “Deus para pensar”. Como objeto do pensamento teológico, adota-se qualquer aspecto da realidade, como já afirmara Tomás de Aquino. Deus assim assumido, ainda que não satisfaça o crente comum em suas práticas ou mesmo os místicos em suas buscas, torna-se uma grandeza cognitiva, um princípio estruturador da realidade e do próprio pensamento. Por conseguinte, teremos, então, que demonstrar que é diferente pensar o mundo sem Deus e com Deus, diferença que produz resultados distintos no âmbito das interpretações e práticas sociais e pessoais. Cumpre, entretanto, reafirmar aqui uma distinção: a prática mítica e a prática teológica da religião, no caso concreto do Cristianismo. Enganam-se aqueles que imaginam a Revelação como um depósito de verdades divinas sobre Deus que, se acessado pela fé à maneira mítica, ou seja, como uma temporalidade eterna atualizada na história, pode irromper o divino na história nas mais variadas teofanias: os milagres, as aparições, as possessões espirituais etc. As religiões de viés mítico processam desse modo o mistério. Encaixa-se provavelmente nessa lógica o
conceito de Salvação, mas não o de Revelação. As narrativas das origens acessadas ritualmente suspendem as distinções temporais, e a sacralidade abarca a realidade, suspendendo suas leis, sugando para dentro de si o tempo e o espaço contingentes. Ora, a prática teológica possui uma outra lógica e lança suas raízes na própria tradição judaico-cristã. Não há nessa lógica um tempo original aguardando ser acessado para eclodir na história como salvação gratuita. Há, sim, uma narrativa da Revelação de Deus que deve ser acolhida, compreendida e celebrada. Três conceitos decorrem dessa compreensão: • Primeiro o de interpretação. interpretação. Entre o tempo narrado pelo texto e o tempo do leitor, se interpõe como necessária a interpretação dos conteúdos narrados. A busca do significado coloca em ação o sujeito humano com sua inteligência capaz de investigar o sentido (e por decorrência o Sentido), antes de afirmar algo sobre ele ou mesmo de invocá-lo. Essa distinção abre espaço para a construção de uma tradição sobre a narrativa sagrada e, por decorrência, de escolas especializadas em explicar e traduzir o conteúdo revelado. Portanto, haverá sempre a distinção entre o ontem e o hoje do texto, no esforço de fazê-lo compreensível e, quiçá, aplicável. • O segundo conceito, decorrente desse primeiro, é o de memória. memória. A narrativa do texto com finalidades rituais não traz o ontem para hoje na dinâmica mítica da atualização do in illo tempore primordial, tempore primordial, mas permite ao crente fazer, na interação entre o passado narrado e o presente vivido, a memória do passado. pas sado. Assim ocorre oco rre com a Ceia pascal judaica e com a Eucaristia cristã. Tanto na interpretação quanto na memória, a mediação humana se mostra fundamental como reguladora do sagrado selvagem e como construtora do sentido do ontem no hoje e vice-versa. • O terceiro conceito que medeia a experiência da Revelação narrada é o de sinal . O Cristianismo aprofundou essa noção em sua prática litúrgico-sacramental. Os sacramentos (sinais) fazem o vínculo entre a dimensão transcendente e a imanente, de forma que o sinal se mostra como o canal sensível mediante o qual se pode experimentar a salvação de Deus, porém dentro dos limites materiais do sinal. A teologia em seu sentido mais amplo opera dentro dessa lógica da mediação histórica, portanto do auxílio da razão na formulação da experiência da fé. Escreve certamente a história do sagrado civilizado: escrito, transmitido, memorado e celebrado dentro dos limites da vida humana. Circunscreve a Revelação de Deus no âmbito da vida humana como proposta que convida a crer, como código catalogado em textos e tradições, como apelo à compreensão e decisão. Direciona a fé para o âmbito da liberdade humana em aderir ou não a uma realidade inacessível empiricamente e, sobretudo, em vivenciá-la como possibilidade de vida ética. É nesse sentido que a teologia se mostra como vigia crítica da vivência da fé que contribui com a construção de um significado para a realidade. Fornece elementos para pensar a realidade do ponto de vista de Deus. Sem a teologia, as experiências religiosas podem se tornar prisioneiras do livre desejo das iniciativas privadas, como código arbitrado por visionários teofanicamente autorizados ou como instrumento de manipulação ideológica. Reivindicamos o direito de pensar teologicamente para o bem da razão e da vida em tempos de império do desejo que tudo suga em seu ciclo vicioso alimentado pela dinâmica do consumo, em tempos de produção religiosa fundamentalista fu ndamentalista que em nome de Deus bloqueia a razão e a liberdade humana e em tempos de crise de valores universais que colocam a vida planetária em risco.
Entretanto, Deus não se reduz a um enfoque hermenêutico. Trata-se de uma ousada proposta da hermenêutica do sentido do sentido radical ra dical da vida, vida, em desuso dentro das academias, em marginalidade dentro de muitas experiências religiosas, sempre mais capturadas pelo eu desejoso de prazer ilimitado ou sob o controle de autoridades hierárquicas. Na amplitude do sentido da vida, focalizemos o ser humano e o mundo nos dois últimos pontos que seguem.
CAPÍTULO I
A justa medida do ser ser humano e do mundo Buscar na teologia a referência sobre o ser humano e o mundo, como justa medida, não significa, de nenhum modo, negar que existam outras medidas. Cada cultura, sistema de crença ou mesmo sistema teórico tem suas medidas (cânones) e oferecem sentidos para essas realidades. A própria tradição cristã afirma que a razão humana pode chegar à verdade e, mais, considera missão do ser humano buscá-la ao longo da vida. A busca da verdade que liberta conta com o auxílio do Espírito Santo, ensina o Evangelho de João. Com efeito, a medida oferecida pela teologia tem algo de dentro da fé (os conteúdos codificados da tradição judaico-cristã) e algo de fora da fé (os conteúdos demonstrados pela razão), trabalhando articuladamente. Uma tradição religiosa poderá, eventualmente, afirmar que a verdade advém somente de dentro de seu depósito de fé. A teologia, ao contrário, não poderá fazê-lo, tendo em vista sua constituição epistemológica que busca articular fé e razão. Portanto, o diálogo com as ciências é inerente à teologia. É sua missão cavar a verdade em todos os sítios por onde cavam os cientistas, não como dona do conhecimento mas sim como ouvinte persistente da verdade. A verdade da fé ensina que ela é inesgotável porque se identifica com o próprio Deus e, portanto, compete ao ser humano buscá-la sempre. Estar a serviço de Deus como intérprete de seu olhar sobre o mundo (ver o mundo a partir da fé) significa exatamente não se arvorar em ser dono da verdade, mas em investigar a realidade com os instrumentos da fé e da razão, buscando conciliar o que a fé afirma dever ser com o que as ciências vão dizendo que é. Estamos certamente diante de uma operação interminável, tendo em vista o dado empírico da complexidade micro e macro da vida, o dado epistemológico inerente às ciências, que demonstra as mudanças de paradigmas no decorrer da história, e o dado hermenêutico, que coloca os distintos olhares dos sujeitos que conhecem. Contudo, a tarefa da teologia consiste, exatamente, em confrontar-se, interagir e mesmo sintetizar suas conclusões com as das ciências, mantendo suas autonomias mútuas, mas buscando suas sintonias, sempre em nome de uma visão mais completa e adequada da realidade. Portanto, a busca da justa medida do ser humano e do mundo, do ponto de vista da teologia, inclui necessariamente a consideração das ciências e da realidade histórica. Essas realidades são grandezas que falam sobre o ser humano e o mundo com os humanismos e as cosmologias que foram construídas ao longo do tempo. Hoje, um fato imediato se impõe a olho nu: nunca soubemos tanto sobre o universo e a vida humana. Com instrumentos tecnológicos, enxergamos hoje boa parte do universo e a receita genética da vida. Também é verdade que um fato persiste: as perguntas radicais sobre a origem e o destino do universo e da vida humana feitas pelos mitos e pela filosofia clássica permanecem vivas e hoje contracenam com as ciências. Por fim, um terceiro fato: os dramas humanos persistem e se complexificam em termos de subsistência planetária e de convivência entre os povos. A ambiguidade humana mostra-se de modo quase extravagante, confrontando em um mesmo campo de visão as tecnologias de planejamento econômico com a fome, os tratados de paz com as guerras, os direitos instituídos universalmente com as exclusões sociais, as redes informacionais com os isolamentos humanos, as técnicas de construção com os moradores de rua, em suma a criatividade com a destrutividade.
A modernidade não cumpriu suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade. A maior parte da população mundial ainda busca busc a essas promessas migrando do campo para a cidade ou de uma nação para a outra. A sociedade planetarizada expõe cada vez mais os fracassos de um projeto que, em vez de gerar sujeitos autônomos e responsáveis pela condução da história, gerou indivíduos consumidores passivos de um lado e indivíduos donos do capital financeiro mundial de outro. Por todas essas razões, podemos dizer que ainda buscamos o humano prometido e até mesmo garantido pelo projeto da modernidade. A justa medida do humano sugerida pela modernidade em sua afirmação antropocêntrica gerou uma conjuntura mundial de morte e vida com todas as formas instituídas de poder econômico e político. A medida teológica para desvelar o sentido do humano e do mundo não é antimoderna, ainda que tenha suas raízes em uma racionalidade anterior à época moderna. Ao afirmarmos que Deus permite pensar o ser humano e o mundo, estamos, antes de tudo, acolhendo essas realidades como grandezas carregadas de verdades e de valores e não como realidades antagônicas a Deus, sabendo que é exatamente através da criação — o o mundo e a história — história — que que Deus falou e continua falando.
1. Grandeza e pequenez A história das explicações sobre o ser humano revela um duplo movimento nos caminhos trilhados respectivamente pela filosofia clássica e pelas ciências modernas. O primeiro caminho se fez afirmando a diferença entre o ser humano e os animais propriamente ditos. Os mitos afirmam a proximidade do ser humano com as divindades, como deus decaído, como filiação direta ou como imitação de deus, sendo que o destino final seria o retorno ao mundo transcendente, junto ou próximo à divindade. As tradições semitas afirmam a criação do ser humano por Deus, a sua imagem e semelhança, tendo uma missão histórica na condição de aliado de Deus. A filosofia clássica, dando início à cosmovisão antropocêntrica, busca destacar na espécie humana seu proprium seu proprium como como ser racional, distinto, portanto, da pura animalidade. E é somente da racionalidade que poderá vir qualquer construção verdadeira, boa e bela para o ser humano. Nas eras seguintes, a teologia e a filosofia cristãs coroaram essa visão com uma antropologia essencialista sobre o ser humano como animal racional e espiritual, marcado pelo pecado e pela graça. O resultado dessa des sa tradição é uma concepção que escondia esco ndia em seu discurso discurs o a condição animal do ser humano por debaixo de sua especificidade e grandeza racionais, como ser espiritual criado por Deus e salvo por Jesus Cristo. O segundo caminho, inaugurado pela filosofia moderna e consolidado pelas ciências modernas, incluindo a psicanálise, significou a gradativa afirmação da animalidade do ser humano: afirmação de sua dimensão de poder, de sua materialidade, de seus desejos instintivos e de sua igualdade fundamental com os animais, longa linhagem da evolução das espécies. As ciências modernas trouxeram à tona a animalidade humana, mesmo que sabedora de suas especificidades como espécie homo sapiens, sapiens, situada no topo da evolução. A teologia pode hoje contar com essas duas vertentes antropológicas em suas reflexões e ganhar em profundidade com as proposições de ambas. Certamente, o desafio maior reside na acolhida dos resultados das ciências modernas, não somente por insistir, muitas vezes de forma exclusiva, na animalidade humana, mas por ter sido construída de forma distante e, quando não, em oposição às afirmações da teologia, fortemente amparadas na tradição clássica.
De fato, grandeza e pequenez são qualificações que envolvem as múltiplas dimensões humanas, de forma a cobrir o arco da animalidade à espiritualidade. A ambiguidade humana resulta exatamente dessa combinação tensa entre animalidade e espiritualidade, sem o que imperaria o ser humano ideal, que não incorreria em erros, ou na estrita animalidade, não susceptível por sua própria condição a juízos de bem ou mal. Nesse sentido, as descobertas das ciências modernas sobre o ser humano oferecem à antropologia teológica elementos para uma compreensão mais completa do jogo real entre determinação-autonomia, desejo-liberdade e vontade-ação, dinâmicas fundamentais da condição humana, que caracterizam seu percurso humanizador. Na verdade, as conclusões sobre a animalidade humana parecem não acrescentar novidades do ponto de vista da visão clássica do homem decadente e concupiscente, mas sim injetar dados que podem explicar sua natureza real, marcada pela luta entre o bem e o mal.
a ) O bicho homo em busca do sapiens O que distingue o ser humano da pura animalidade de onde ele emergiu na escala evolutiva é sua autodeterminação em relação aos determinismos naturais de sua espécie. Enquanto no mundo da pura animalidade a espécie encarrega-se de prover seus representantes dos mecanismos necessários à sobrevivência e perpetuação, no ser humano a individualidade assume o comando de sua autoconstrução de modo autônomo e diferenciado, seja nas identidades individuais (os indivíduos são geneticamente iguais, mas são totalmente diferentes uns dos outros em suas personalidades), seja nas identidades grupais (cada grupo configura-se com características culturais diferenciadas). No mundo animal, prevalece como lei a dependência da natureza determinada pelo instinto e pelos habitats; no mundo humano prevalece a capacidade de transcender de modo aberto para as construções de novos habitats em função da sobrevivência. Certamente, a longa escalada da hominização não responde por si mesma nem pelo sentido de fundo da vida humana, o que se poderia delegar à metafísica ou à ética, nem pelo seu dinamismo interno, como força intrínseca da natureza ou como jogo do acaso de variáveis químicas e biológicas. Com efeito, afirmam com razão os estudiosos que o ser humano encontra-se no início de sua sapiens, se comparado com a longa história da vida na terra. O animal vida como espécie homo sapiens, pré-humano habita em nós com toda a sua força e costuma emergir com sua força irracional, como raiz dos desejos egoístas, como violência que mata o semelhante, como ganância que destrói o mundo. O sapiens O sapiens está longe de ser uma qualidade definitivamente conquistada pela espécie homo homo,, mas parece ser, na verdade, um dom inicial a ser trabalhado por cada um e pelo conjunto da humanidade. É quando, então, o bio-antropológico coincide com o ético como projeto de construção. A hominização busca, portanto, os meios de atingir sua completude com a humanização. Para a teologia, toda a realidade advém de Deus, como seu princípio fundante, e para ele caminha como destino derradeiro. Sendo assim, tanto a nossa animalidade quanto a nossa autonomia e transcendência são dons do Criador que devem buscar continuamente a perfeição. Contudo, o ser humano por sua própria condição de animal sapiens animal sapiens carrega carrega em si uma cisão, não experimentada pelo animal estrito senso. Neste, há uma coincidência entre a espécie e o indivíduo, entre a necessidade e o desejo, e entre o ímpeto e a ação. No ser humano, os desejos não coincidem com as necessidades, e a vontade não coincide com a ação. Desejamos além do necessário e queremos o que não podemos praticar. Estamos ontologicamente cindidos e em
busca permanente p ermanente de equilíbrio. eq uilíbrio. Em termos simples, a razão raz ão deve portar-se a favor f avor ou contra os instintos, ou, o contrário, os instintos se posicionam contra ou a favor da vida humana. Os românticos responderam que é da vida mais natural e selvagem que vem a felicidade. Os iluministas, ao contrário, afirmaram que fora da razão não há salvação para o ser humano. A teologia afirma, por sua vez, a criaturalidade do ser humano, olha para a sua totalidade e acredita que a história humana é fruto de sua liberdade e responsabilidade, e, ao mesmo tempo, o lugar de sua autoconstrução. A cisão inerente ao ser humano foi vista pela teologia clássica como concupiscência que carregamos em nós, fruto da queda original dos primeiros pais. Desejamos o que não devíamos desejar. Fazemos o mal que não queremos fazer. É somente a graça de Deus que vem ao encontro de nossa decadência por meio de Jesus Cristo que nos permite encontrar o caminho da libertação. A graça oferecida por Deus reforça nossa liberdade para superarmos a condição de decadência e cisão em que nos encontramos. É do jogo entre a graça e a liberdade que pode emergir o novo na história humana como lugar da convivência solidária do ser humano e do respeito à natureza.
b ) A contingência humana A contingência fundamental do ser humano, decorrente de sua condição biológica, como ser que nasce e morre, constitui a base de todas as outras fragilidades de que é portador inexorável. Evidentemente, essa condição geral da vida se mostra como problema tão somente para o ser humano, que, por sua autoconsciência, a experimenta de várias maneiras e constrói sobre ela múltiplos significados. Com efeito, a maior ou menor dramaticidade da condição contingente depende dos modos como o ser humano a vivencia e significa. A experiência mais acentuada dos limites da vida — vida — as as doenças, os acidentes e os percalços — percalços — faz faz com que a contingência seja um fato a ser enfrentado sem subterfúgios, ainda que as significações decorrentes de tal enfrentamento não forneçam soluções efetivas. Para quem experimenta menos sofrimento durante a existência, a consciência da condição contingente se revela menos dramática, sendo, porém, quase sempre, adiada para um futuro distante, tão real quanto ilusório. Mas, para todos os efeitos, a morte posta-se como o momento inevitável em que todos os viventes tragam a última gota de sua condição frágil e finita. intra a essa condição ontológica, todos nós experimentamos momentos Porém, é certo que ad intra a em que nossa fragilidade se expõe como dado insolúvel. Necessitamos comer e beber para sobreviver. A falta de dinheiro pode trazer mudanças radicais nas condições de vida. A doença pode nos atingir a qualquer momento, nos impedir de cumprir nossas tarefas diárias e até mesmo trazer a morte. Um acidente pode interromper uma carreira profissional. Podemos ser demitidos do trabalho a qualquer momento. Uma tempestade pode atingir nossa casa ou carro. Ainda podemos observar a fragilidade da vida dentro do próprio sistema solar e do sistema Terra, quando os próprios movimentos cósmicos e a força da natureza podem aniquilar por completo as espécies vivas, como já ocorreu em outras eras. As religiões e a cultura de um modo geral vêm em socorro dessas situações-limite com seus significados e, sobretudo no caso da cultura, com seus artefatos de proteção e segurança. A busca de solução para as contingências da vida alcançou nos tempos modernos seu ponto mais alto. As tecnologias de um modo geral permitem solucionar ou postergar os sofrimentos e diminuem os nossos esforços de superação do limite fundamental do espaço e do tempo. A medicina em seu
estágio atual dribla e adia a morte, como nunca dantes. A humanidade nunca vivenciou possibilidades tão reais de solucionar, ocultar ou adiar os limites da vida, mesmo que física e ontologicamente elas permaneçam as mesmas: sofremos, podemos sucumbir e morreremos fatalmente. Contudo, as religiões, fornecedoras de sentido para as contingências da vida, exercem uma função nem sempre real para o ser humano. Podem aumentar ou esconder o sofrimento em nome de Deus. As guerras religiosas, a intolerância e as discriminações geram sofrimentos para indivíduos e grupos, quando não a morte. Os discursos e ritos religiosos que prometem soluções para os problemas da vida ganham espaço em nossos dias, em sintonia exata com a cultura do bem-estar, prometida e oferecida pela sociedade sociedad e de consumo. Entretanto, diferentemente das soluções ilusórias, nos ensina a tradição judaico-cristã que a contingência humana não tem solução; deve tão somente ser assumida como dado fundamental de nossa existência de criaturas livres e responsáveis, lançadas, portanto, no jogo das variáveis da natureza e da história. A morte e o sofrimento são inerentes à vida humana e devem ser assim assumidos sem subterfúgios. A matéria de que somos feito repete sempre seu refrão mais autêntico: “Ao pó hás de voltar”.
c ) Sempre contingente e enigmático Essa condição real da vida permanece um problema a ser elaborado pelo ser humano de todos os tempos. Qual será, portanto, o significado de um problema sem solução? As soluções para os limites humanos são soluções de varejo. No seu conjunto, são inerentes à vida. Somos um ser um ser para a morte, morte, dizia Heidegger. E é, de fato, da consciência dessa condição que poderá emergir algum sentido real para a existência. O salmista reza a Deus dizendo: “Fazes o mortal voltar ao pó, dizendo: ‘voltai, ó filhos de Adão’ […]. Tu o inundas com sono, eles são como a erva que brota de manhã; manhã; de manhã ela germina e brota, de tarde ela murcha e seca” (Sl 90). As saídas sobre a precariedade humana variam, conforme a cultura e a época, e encontram sua resposta principal na religião. A cena da vida e da morte é encarada de diferentes modos. A saída trágica diz que se trata de uma condição decadente, determinada por forças externas ao ser humano. Ao ser humano resta conformar-se ao seu destino de decadência pré-traçada e aguardar no conformismo uma solução que só poderá vir após a morte. Nessa direção situam-se as saídas oferecidas, sobretudo pelas religiões de tipo dualista do mundo antigo e as reencarnacionistas atuais. A saída cômica pode inscrever-se no âmbito do acaso da natureza que nos produziu na longa escala evolutiva. Resta-nos assumir a total ausência de sentido da existência e tirar dela o maior proveito. A comédia reside na distração perante os limites, em tratá-los como naturais, como se o espírito não sofresse, ou, ainda em ignorar o jogo real da existência, priorizando a vivência imediata. A vida deveria, no caso, ser vivida como aventura, sem se preocupar com seu fim inevitável. A saída dramática assume a condição contingente e busca dar a ela um sentido no âmbito da liberdade humana: não há solução técnica para contingência humana, porém é possível dar a ela um significado. A tradição judaico-cristã fornece a principal matriz da antropologia dramática. O ser humano, criado livre, é responsável por suas ações. Deus não interfere em sua condição de criatura que nasce, sofre e morre, mas que pode também ser feliz. A cena descrita no livro do Deuteronômio registra de modo emblemático a situação em que nos encontramos na história: “Eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida para que vivas” (30,19). Essa
condição adquire no Cristianismo uma estatura radical, quando o próprio Deus se submete à lei da morte e nela se oculta, matando a ideia do Todo-Poderoso. O grito de Jesus na cruz afirma a condição insolúvel do ser humano, lançado ao jogo livre das variáveis da natureza (que morre) e do poder humano (que pode matar). As injúrias, “salva“salva-te a ti mesmo”, “desce da cruz se és o Messias”, feitas pelos chefes dos sacerdotes, expressam uma teologia do poder divino. Deus responde com o silêncio a essas expectativas de poder que romperiam com a liberdade, determinando o humano à sua vontade. Portanto, os limites da vida humana não encontram no âmbito da religião uma solução. Qualquer sugestão nessa direção atenta contra a liberdade do ser humano e à transcendência de Deus. Religião não oferece solução, uma vez que a vida não tem solução em sua precariedade; oferece, sim, sentido para as coisas que têm solução (e que não precisariam de interferência de força divina) e para aquelas que não têm solução. O sentido da vida encontra sua fonte e seu fim no Criador que cria, livre como a si mesmo, o ser humano. E é no jogo da liberdade que pode achar um sentido para os limites da vida. Mas a condição humana deve permanecer sempre como um enigma irredutível a soluções e explicações definitivas. A condição de ser inacabado e a singularidade individual fazem com que cada um seja uma abertura permanente à busca contínua de acabamento e uma composição original em constante mudança e crescimento. A pergunta sobre o que é o ser humano deve, pois, ser repetida sempre, como fruto da admiração contínua de sua complexidade. Nas suas relações fundamentais com o mundo e com os outros, o ser humano se retrai como mistério obsconditus que nos surpreende e nos interpela. interpela.46 É matéria e mais que matéria, é racional e menos que racional, é desejo e insatisfação, produz a paz e a guerra, ama e mata, afirma o que nega e passa a amar o que antes odiava, constrói e destrói com a mesma força e inteligência; adora e rejeita àquilo que adota como máxima de sua vida. Decifrar o humano é tarefa permanente da teologia e das ciências que o assumem como objeto de estudo. As respostas sobre o ser humano não serão definitivas e não poderão antecipar e sufocar as perguntas sempre recolocadas. Possivelmente, a última instância sobre a busca da verdade sobre o ser humano virá dele próprio em seu autoconhecimento irredutível e inconcluso, ainda que as ciências construam paradigmas objetivos com suas explicações antropológicas. O tribunal da razão não sobreporá, jamais, ao tribunal da consciência que busca desvendar a si mesma; as definições não reduzirão em suas assertivas a infindável busca do “conhece-te “conhece-te a ti mesmo” (Sócrates) e é à medida que o ser humano vive sua vida que se torna mais conhecedor conhecedor de si. “O maior desafio do homem é dar à luz a si mesmo” (Erich Fromm).
2. Senhor do mundo e irmão dos outros Se, do ponto de vista ontológico, o ser humano é grandeza e pequenez, condição que pode ser vista como algo bom ou ruim, a depender do estado psicológico de cada sujeito ou das cosmovisões religiosas que cada um professa, do ponto de vista ético, essa mesma condição pode produzir o bem e o mal. É com base nessa condição marcada por limites e possibilidades que o ser humano constrói a sociedade e, por conseguinte, os valores que assume como finalidades de sua vida. As religiões, como já vimos, ocupam-se fundamentalmente dessa esfera, ao afirmar os valores e negar aquilo que impede de concretizá-los. Ainda que o mal seja um conceito de difícil definição, ele existe efetivamente para todas as pessoas; ainda que deva ser situado em contextos socioculturais específicos, ele possui algo de
universal, como força que muitas vezes transcende a própria vontade humana. De fato, em última instância a definição do mal solicita a cosmovisão religiosa para oferecer algum sentido ou a reflexão filosófica e teológica como esforço por defini-lo objetivamente. No caso da tradição judaico-cristã, jud aico-cristã, o mal se insere no jogo das opções op ções humanas. É visto v isto como a força negativa que destrói a vida de um modo geral, a começar pela vida humana. A visão tardia do Demônio como origem do mal não aniquila a liberdade e a decisão humanas de praticar o bem e evitar o mal. A tradição bíblica em seu conjunto nos permite fazer três afirmações sobre a dinâmica do mal. Primeiramente, que a criação é boa. A primeira narrativa do Livro do Gênesis arremata os atos da criação com o refrão: “E viu que era bom” (cf. Gn 1). Em segundo lugar, que o bem vencerá o mal, quando chegarem os novos “céus e nova terra” (cf. Ap 21). E, por fim, que entre essas temporalidades o ser humano é o responsável por seus atos e pela condução da história na direção do bem. Em outros termos, o mal não está nem na origem, nem no fim do mundo e da história, mas é algo inerente à condição humana, à historia humana. Portanto, é um problema do ser humano e não de Deus. De fato, o drama do mal acompanha a história humana. As mitologias buscam as origens do mal em suas cosmogonias e antropogonias. As religiões bíblicas mostram, antes de tudo, um Deus redentor do mal; antes de falar sobre o ser de Deus, apresentam seu projeto de salvação para o ser humano. A luta por construir um mundo melhor faz parte par te da epopeia do ser humano na construção de suas instituições sociais e jurídicas. A própria invenção das ciências buscou achar meios de responder à pergunta sobre o que é o mal (filosofia, ética), de formular o que era bem e mal (direito), de afastar os males corporais (medicina), de melhorar a vida social (sociologia) etc. Em todos os casos, está evidentemente em jogo a construção da civilização do conhecimento e da convivência pacífica para os povos e o bem-estar individual e social. Certamente, o direito, a ética e a teologia são guardiãs ex oficio das oficio das reflexões e proposições de valores, o que implica, em última instância, distinguir o bem do mal e propor como meta e caminho o bem. Sem a definição da objetividade do mal, a sociedade humana se decompõe na barbárie do individualismo. O postulado da relatividade é uma tese insustentável do ponto de vista teórico e prático, e termina favorecendo conformismo conf ormismo perante a realidade concreta co ncreta do mal e das estruturas que o produzem. Quando tudo se dilui no relativismo, vence o poder do mais forte, como imposição ou mesmo como regra instituída.
a ) Ser livre e responsável As narrativas da criação do Livro do Gênesis, de modo particular a chamada segunda narrativa (cf. Gn 2,4 – 3,24), 3,24), mais que cosmogonia e antropogonia, ocupam-se de antropologia, ou seja, refletem sobre a natureza e a condição humanas. As cenas da vida harmônica no paraíso, da transgressão e da expulsão apresentam, na verdade, o roteiro da liberdade humana. A condição atual do ser humano não advém de determinações externas às decisões humanas; ao contrário, é fruto de suas próprias opções e decisões. De fato, alguns mitos de criação que circulavam pelo Oriente antigo viam o ser humano como um deus decaído e determinado a viver nessa decadência trágica como castigo insolúvel. No Livro do Gênesis, o ser humano, criado por Deus e semelhante a ele e, portanto, também criador livre, assume sua criaturalidade de modo responsável. O bem e o mal não são condições predeterminadas anteriores e superiores ao ser humano, mas decorrência de suas decisões.
A ordem narrada afirma um lugar central para o ser humano em sua relação com o mundo, com os semelhantes e com Deus. A vida no paraíso é a vivência ideal dessa ordem quando o ser humano “cultiva o jardim e dá nome aos animais”, vive com a mulher como “carne de sua carne” e convive com um Deus próximo próximo que “caminha pela brisa da tarde no jardim”. O biblista Carlos Mesters interpreta o paraíso terrestre exatamente como ideal e esperança, e não como condição perdida, conforme confo rme o fez a teologia latina de viés platônico. Trata-se Trata- se do ser humano hu mano em seu ideal 47 de vida livre e em harmonia com a natureza e com os outros. outros. Essa antropologia é uma síntese sábia que nasce da experiência histórica de Israel em sua luta por uma sociedade subsistente e livre, no contexto de sucessivas dominações externas e internas. É da história real que tiram a lição da liberdade humana, como força capaz de construir o próprio destino na direção do bem ou do mal, seguindo ou fugindo da lei proposta por Deus.
b ) As inversões da ordem primordial Na visão bíblica, o drama da vida humana é composto pela sequência liberdade-decisãoação-consequências. ação-consequências. A proposta de Deus a seu povo, instituída de forma emblemática no Decálogo do Sinai e no caso do paraíso, simbolizada na árvore do bem e do mal, é um convite à vida, jamais uma determinação que anula a subjetividade. A relação entre Criador e criatura só pode ocorrer na liberdade, sem o que não haveria possibilidade de amor, mas tão somente de dominação. A liberdade dos filhos de Deus em decidir por seu projeto garante a cada qual a possibilidade de d e construir seu próprio p róprio destino d estino e o destino da história. Nesse Nes se sentido, o “comer “come r o fruto proibido” constitui o ato de liberdade do ser humano em decidir seu próprio futuro e agir na direção que julga correta. Porém, toda decisão produz resultados na ordem natural dos nexos entre causa e consequência. A história humana não é fruto de decisões divinas exteriores, mas da ação humana. A narrativa da criação faz uma leitura da história a partir da liberdade humana e constata as consequências do equívoco da desobediência a Deus. A ruptura com sua aliança gera sofrimento, dominação e morte: • A harmonia com a natureza foi substituída por dominação, a terra está desgastada, “produzindo espinhos e abrolhos”. • A mulher, antes companheira, está agora “dominada pelo marido”. • Deus, que andava pelo jardim, provoca medo: “Ouvi teus passos e tive medo”. A ordem planejada por Deus sofreu uma inversão radical. Em vez de filho de Deus, passa a ser filho do mundo (segue a ordem da serpente). Em vez de senhor da natureza, passa a dominar os outros (domina a mulher, na sequência Caim mata Abel). Em vez de irmão do outro, quer ser irmão de Deus (come o fruto para ser igual a Deus). Deus).48 A desordem ocorrida no paraíso narra, sem dúvida, a desordem da história humana de ontem e de hoje: a destruição da natureza e a dominação dos outros. A narrativa da criação descreve a situação e aponta para a causa: a ganância humana que não se contenta com os bens do paraíso e quer ser igual a Deus. Como vimos na primeira parte desse estudo, o desejo humano se mostra ilimitado, quando se lança na busca da satisfação sempre mais completa. Na verdade, a cada desejo satisfeito sucede uma nova insatisfação. Nesse ciclo, o ser humano se perde em seu próprio eu e passa a buscar na natureza e nos outros os meios de sua autossatisfação. A destruição da natureza e a dominação dos outros é a consequência da ganância que ignora o
direito alheio e da natureza, bem como a ausência de uma lei, exterior e interior, que coloque o ser humano em sua justa posição como senhor que cuida da natureza e como irmão que convive com outros solidariamente. A árvore do bem e do mal nos ensina que a humanidade necessita da ética, capaz de orientar a vida planetária: o uso econômico da natureza, as tecnologias, as relações entre os seres humanos em todas as esferas de convivência. A crise ecológica planetária anuncia o risco de nossa expulsão definitiva do paraíso. É preciso plantar novamente a árvore do bem e do mal, antes que o desejo de alguns instaure a morte definitiva para as criaturas.
3. O ser humano se descobre As narrativas da criação expressam, portanto, uma concepção de ser humano: criatura material e boa feita por Deus, senhor do mundo, irmão dos outros e livre para praticar o bem e o mal. A história humana é a continuação da ordem criada por Deus, agora sob a responsabilidade do ser humano. E a condução correta da história se dá a partir de uma ordem estabelecida, sem a qual prevalece a destruição e a dominação. Essas lições éticas do Livro do Gênesis são muitas vezes obscurecidas pela polarização entre a teoria evolucionista e a criacionista. É quando as narrativas da criação, compostas em linguagem mítica própria de seu contexto original, são transformadas em descrições históricas e em teorias para explicar a origem da espécie humana. A antropologia teológica presente nos textos da criação fica entendida, equivocadamente, como historiografia e biologia. Não se trata apenas de uma questão de livre interpretação do texto ou de uma opção feita a partir de um universo de fé, mas de ignorância de sentido original do texto, de modo a esconder seu potencial ético que chama o ser humano a pensar em sua condição de livre e responsável pela história. A polarização atual entre evolucionismo e criacionismo é resultado persistente da oposição entre ciência e religião, instaurada pela modernidade, e que transfere a discussão para a esfera da relação entre estado e instituições religiosas. As soluções políticas e legais, normalmente adotadas para equacionar a questão no âmbito das escolas, ignoram décadas de reflexão teológica que, em nome da própria fé, busca o sentido do humano presente nos resultados tanto das ciências e da própria teoria da evolução quanto das narrativas bíblicas. Não estamos perante um humano cindido hermeneuticamente, como muitos entendem, mas de um único humano cuja história biológica pode revelar a mesma mão do Criador das narrativas da criação. A relação complementar entre teologia e ciência ajudou a desvelar o humano em sua real condição, tanto demonstrando sua origem no âmbito das espécies, quanto contribuindo com a compreensão dos textos bíblicos em suas dimensões histórica, linguística, social e literária. Portanto, a teologia atual é devedora de várias ciências. As ciências, por sua vez, hoje sabem melhor de seus limites para dizer tudo sobre o ser humano. A complexidade do ser humano necessita de outras abordagens para expor seu real significado como ser situado no mundo e relacionado com os outros. Vale observar que a leitura literal do texto ocorre, na verdade, a partir de uma visão hermenêutica previamente adotada como verdadeira: a de que o texto fala por si mesmo e dispensa a mediação de categorias interpretativas. Essa é uma operação falsa, uma vez que toda e qualquer interpretação é feita a partir de alguma categoria, ainda que esta permaneça oculta. A leitura literal esquece de dizer que lê o texto a partir de alguma tradução que exigiu
conhecimentos da língua original e do significado cultural dos termos para que fosse concretizada. Não há tradução sem ciência e, portanto, sem alguma teoria. Essa é a contradição radical da leitura fundamentalista: toda leitura é feita dentro de uma tradução, toda tradução dentro de uma tradição hermenêutica e toda tradição hermenêutica a partir de pressupostos científicos.
a ) O ser humano e suas múltiplas dimensões Portanto, a ciência e a teologia contribuem, cada qual com seu enfoque, com o conhecimento do ser humano. Ambas têm hoje mais condição de falar sobre o ser humano, sua natureza, sua possibilidade e seus limites, do que no passado, quando ficavam restritas em seus territórios como donas da verdade. Se o enigma humano permanece como um dado irredutível a um monologos, logos, ele vai sendo desvelado pelos múltiplos olhares das ciências, da filosofia, da arte e da teologia. Para além de todos os idealismos, sabemos hoje de sua animalidade; para além dos materialismos emerge sua espiritualidade. A racionalidade humana, com todas as suas descobertas e conquistas tecnológicas, mostra-se limitada e insustentável ecologicamente. As construções econômicas e políticas têm evidenciado suas insuficiências em organizar a vida humana nos âmbitos das nações e do planeta. Os avanços das ciências em todos os recônditos da vida macro e micro têm adiado a morte e aliviado muitos sofrimentos, mas não conseguiram distribuir as riquezas, impedir a destruição da natureza e superar os conflitos humanos. O humano nunca foi tão bem explicado e nunca suscitou tantas interrogações em sua relação com a natureza e com os outros. As visões restritas do ser humano construídas pelas ciências modernas, bem como as práticas modernas, se mostram limitadas do ponto de vista do conhecimento e, por conseguinte, da ética. As múltiplas dimensões e relações do ser humano não negam as conclusões das várias ciências, mas sim a pretensão de totalização que elas possam ostentar, e solicitam, na verdade, complementaridade das várias formas de conhecimento. Com efeito, hoje sabemos mais sobre o ser humano com as diversas ciências: sobre suas origens (biologia e paleontologia), sobre sua dimensão interior e seus mecanismos de comportamento (psicologia), sobre suas relações com os outros (sociologia), sobre os significados das construções culturais (antropologia, história, ciências da linguagem). A interdisciplinaridade oferece uma visão mais completa do ser humano e permite, certamente, à teologia posicionar-se como um olhar transdisciplinar que expõe a sua singularidade como ser uno e plural, limitado e livre para agir na história.
b ) A unidade do ser humano A antropologia judaico-cristã afirma a singularidade do ser humano como unidade plural e totalidade indivisível. Diferentemente das antropologias dualistas, que dividem o ser humano em duas partes justapostas, corpo-alma, a concepção semita afirma que o ser humano é uma unidade indivisível composta de dimensões: uma dimensão vital (ruah (ruah = “espírito”), uma dimensão interna e pessoal (nefesh (nefesh = “eu vivo”) e uma dimensão visível (basar (basar = “carne”). A separação entre matéria (corpo) e espírito (alma) como partes opostas, a primeira ruim e a segunda boa, é de origem grega; entrou para o Cristianismo através do neoplatonismo e acabou misturando-se com a tradição bíblica já nos primeiros séculos. O desprezo pela matéria, pelo mundo e pelo corpo como coisas decadentes e pecaminosas não tem origem na antropologia hebraica e cristã.
Como vimos, a narrativa da criação mostra Deus criando a matéria como coisa boa e abençoada. O ser humano é feito por Deus de matéria ( Adan = Adan = “de terra”) e de espírito (sopro de Deus). É o próprio sopro de Deus que anima toda a vida material, sem nenhuma alusão à superioridade do espiritual sobre o material. Ao rezar o esplendor da criação, assim diz o Salmo 104: “Escondes tua face e eles se apavoram, retiras tua respiração e eles expiram, voltando ao pó. Envias teu sopro e eles são criados” (vv. 29-30). 29-30). O ser humano é um todo e é como todo — todo — corpo corpo e espírito — espírito — que que pratica o bem e o mal. A desvalorização da matéria e da corporeidade produziu ao longo da história cristã posturas de negação da vida terrena, como lugar de pecado e sofrimento, negações da sexualidade como coisa pecaminosa e indigna, ascese que negava a vida material na busca da espiritualidade e separação entre a vida religiosa e a vida mundana. O Cristianismo atual é, em muitos aspectos, herdeiro desse dualismo e ainda não sabe lidar propositivamente com muitas questões ligadas à corporeidade e à sexualidade humanas. As ciências humanas contribuíram com o desvelamento dos mecanismos próprios da corporeidade humana nos seus aspectos biológicos e psicológicos. Elas possibilitam à teologia recuperar a positividade da materialidade humana e entendê-la em seu dinamismo natural, anterior às qualificações de bem ou de mal. De fato, da parte da teologia, permanece sua missão de pastora do sentido da realidade, a quem compete expor as origens, os significados e as finalidades do ser humano em suas múltiplas dimensões. Por mais que as ciências exponham os segredos da vida humana da concepção até a morte e intervenham efetivamente sobre seu curso e qualidade, a vida permanece contingente, lançada no drama de buscar sentido e estabelecer para si mesma uma direção. As perguntas sobre quem sou, o que faço no mundo e para onde vou persistem com a intensidade de sempre, ainda que enganadas pela ideologia do super-homem moderno, centro da vida e capaz de todas as explicações e soluções imediatas para os dramas da vida. A teologia continua com sua função metafísica e ética, buscando os princípios e as finalidades da vida e criticando o que desvirtua o ser humano na busca da felicidade e o que mata e inverte a ordem da criação. Faz ressoar a visão de ser humano feliz criado por Deus que exige: • A superação do ciclo do desejo que aprisiona o ser humano e sua sua autossatisfação egoísta e gera dominação e morte para a natureza e para os semelhantes. • A afirmação da necessidade de valores éticos expressos em normas capazes de regular a convivência universal, superando todas as formas de relativismo. • O respeito à natureza como grandeza positiva, a ser usada como bem para a sobrevivência, e não destruída. • A solidariedade com o semelhante como norma fundamental que constrói a convivência humana. • A responsabilidade de todos na construção dos destinos pessoais e coletivos, em termos locais e planetários.
c ) A centralidade do ser humano Como vimos, ao ser humano é creditada uma responsabilidade em relação ao mundo e à história, como criatura livre e responsável e, por isso mesmo, semelhante a Deus. Desse antropocentrismo de cunho teológico decorre as noções de sujeito e de história. Cada ser humano
responde por si mesmo e por seu grupo perante Deus; ele é parceiro de uma aliança com Deus que o potencializa a construir o bem e evitar o mal. A história não é fruto do destino, mas da decisão humana e se dispõe como uma construção que avança do passado para o futuro. A consciência de povo eleito, libertado por Deus, aliado de Deus e no aguardo do futuro melhor dos tempos messiânicos fornece a matriz religiosa dessa concepção que se secularizou na cultura ocidental: a história que caminha para um futuro aberto e que tem o ser humano como seu construtor. Já pudemos verificar essa descoberta do ser humano como artífice de si mesmo e da história, designada como um evento da chamada era axial. Essa postura narra a escalada histórica do ser humano que rompe com as amarras imediatas de seu grupo social restrito e se abre para uma posição universal. Nesse sentido, centralidade histórica e autoconhecimento são dois lados de uma mesma consciência que encontra sua natureza universal na relação com as diferenças e assume-se como senhor da natureza e da história. O encontro entre as culturas judaica e grega, já antes dos processos de síntese desencadeados no Cristianismo, colocou frente a frente o sujeito livre e relacionado com o indivíduo racional. A partir desse encontro, a cultura hebraica vai refletir sobre a noção de sabedoria, buscando relacionar a capacidade racional de cada ser humano na moldura da tradição que afirma a origem da sabedoria em Deus. A sabedoria, para além de qualquer racionalismo individualista e abstrato, afirma-se a partir de algumas dimensões estruturantes da antropologia hebraica: (1) (1) Dimensão divina: “Toda sabedoria vem do Senhor, ela está junto dele desde sempre” (Eclo 1,1); A raiz da sabedoria é o temor do Senhor (cf. Eclo 1,20); (2) dimensão cósmica: “O espírito de Deus enche o universo e dá consistência a todas as coisas” (Sb 1,7); (3) dimensão (3) dimensão pessoal: pode ser adquirida (4) dimensão social: o sábio pratica a (cf. Sb 6; Eclo 6,18), educa a pessoa (cf. Eclo 4,11-22); (4) dimensão justiça (cf. Eclo 3,30). Todo conhecimento tem, portanto, uma dimensão ética que qu e implica uma postura de respeito a Deus e responsabilidade para com os outros. De fato, a categoria da alteridade constitui o dado próprio da tradição judaico-cristã em se tratando de compreender o ser humano. A identidade humana é afirmada como resultado da experiência histórica hebraica como relação que se constrói na direção do passado (a ligação com os antepassados comuns), em relação ao presente (a ligação do povo eleito) e em relação ao futuro (o valor da descendência). O Cristianismo significou um processo de universalização dos valores humanos judaicos, agora entendidos como qualificativos de todo ser humano. O antropocentrismo moderno pode ser visto, portanto, como o resultado maduro dessa consciência, quando a noção de individualidade autônoma emergiu como possibilidade histórica real, em termos econômicos, culturais, sociais, políticos e epistemológicos, e se tornou, de fato, arco e flecha de um projeto amplo designado modernidade. Os efeitos históricos da modernidade permitem hoje um u m balanço desse des se antropocentrismo e a denúncia d enúncia de sua s ua prepotência, exercida em nome da superioridade da razão (europeia, branca, masculina) em relação à natureza (vista como fonte inesgotável de riquezas) e em relação a outros povos (inferiores e colonizados). A justa crítica da prepotência antropocêntrica não pode, contudo, esconder o lugar central do ser humano no mundo e na história. O ser humano destruidor, e somente ele, é que terá condições de refazer a rota da modernidade numa outra direção. Ainda que se postule a centralidade da vida (biocentrismo) como máxima ética, o sujeito da história e propositor da ética permanece o mesmo. Fora do ser humano não há ética e nem mesmo conceito de vida.
4. A humanização de Deus É verdade que o antropocentrismo moderno exerceu seus domínios sobre a natureza e os povos em nome do Cristianismo, o que fez de maneira explícita no passado e de maneira implícita no presente. A conquista do novo mundo foi feita em nome da dilatação da fé cristã, para a salvação dos povos. A Guerra do Golfo foi proclamada por Busch como cruzada contra o mal, em nome da América cristã. De fato, o dom do senhorio sobre a natureza produziu, como já constatara o Livro do Gênesis, consequências da ganância humana que termina matando a natureza e dominando o semelhante. Portanto, o uso teológico (ideológico) do mandato divino “dominai a terra” para justificar as posturas posturas de conquista e exploração é decorrente de uma leitura parcial da antropologia bíblica que, na verdade, visa explicar a origem dos males e responsabilizar o ser humano por ele. O Cristianismo é, sem dúvida, antropocêntrico. O ser humano está no centro da fé cristã como sujeito e destinatário dos planos de Deus, mas, sobretudo, como mediação de sua Revelação. Em síntese, é a afirmação divina da grandeza humana como realidade assumida integralmente por Deus. O Cristianismo rompe com o esquema tradicional das religiões que, de um modo geral, buscam distinguir, separar separa r (sentido etimológico de sagrado) sa grado) a realidade nas dimensões do natural (profano) e sobrenatural (sagrado). A afirmação da encarnação de Deus mistura em uma única realidade essas distinções ontológicas e instaura como mediação para pensar Deus em sua relação com o mundo não mais o cosmo mas sim o ser humano.
a ) A encarnação de Deus Nesse estudo nos interessa falar do significado antropológico da fé na encarnação de Deus e não propriamente no seu significado cristológico ou trinitário. Dessa afirmação de fé que funda o Cristianismo emergem imagens de Deus e do ser humano. Deus rompe com sua transcendência inatingível e vem ao ser humano. Se “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37), o ato de o Criador Criador fazer-se criatura instaura um problema metafísico para a doutrina de Deus, tanto na tradição judaica quanto na filosofia grega. gre ga. Aquele que esteve na origem de todas as coisas como Absoluto e Todo-Poderoso, ou como Causa Primeira de todas as causas, extrapola-se de sua transcendência e se faz carne. O quarto evangelho começa a narrar sua boa notícia dizendo que a Palavra ( Logos em Logos em grego) eterna de Deus, por meio da qual todas as coisas foram feitas, se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1,1-14). O termo termo “carne” — sarx em sarx em grego, que traduz basar do do hebraico — hebraico — designa designa o ser humano em sua totalidade e também a sua condição de precariedade e mortalidade. Deus assume, portanto, a condição humana sem restrições. A história humana adquire um sentido de elevação e divinização, de forma a superar qualquer oposição entre sagrado e profano e entre espírito e matéria. O ser humano torna-se valor absoluto como lugar da presença de Deus. A ressurreição de Jesus é a consumação da elevação humana até Deus, quando em Deus a carne humana vai habitar sua intimidade. O Espírito de Deus que ungiu Jesus como Cristo de Deus unge o povo como povo messiânico (faz os cristãos) e cria a comunidade dos fiéis como corpo espiritual do Cristo ressuscitado (cf. 1Cor 12). Estamos diante de uma teologia que afirma a divinização do ser humano. O Criador se fez criatura para que o ser humano se fizesse criador de uma nova era para a humanidade na qualidade de pertencente ao Corpo de Cristo. A encarnação divide eticamente a
história em história da carne (fechamento do ser humano em si mesmo) ou do espírito (abertura ao outro, amor). Portanto, ainda que a fé na encarnação traga interrogações de ordem ontológica e antropológica para pensar nas naturezas humana e divina, ela tem, antes de tudo, um apelo ético, tendo em vista que coloca o ser humano em uma radical condição de igualdade e exige a solidariedade como concretização do amor a Deus.
b ) O amor é o humanismo cristão A lei do amor como norma máxima da vida cristã é decorrência coerente da imanentização de Deus em Jesus e no seu Espírito, de tal forma que o amor a Deus e o amor ao semelhante são uma única coisa. O semelhante constitui uma mediação obrigatória para o amor a Deus. Não existe, portanto, a possibilidade de um amor direto a Deus, como explica a Primeira Carta de João. A invisibilidade de Deus é visibilizada no irmão, por meio de quem posso amar a Deus. O amor cristão se mostra como: • Meio de conhecimento de Deus que nega outras vias de conhecimento direto (cf. 1Jo 4,7). • Lei maior maior que constrói a comunidade cristã, no equilíbrio entre o indivíduo e a coletividade (cf. 1Cor 12-14). • Caminho de solidariedade efetiva para com os pobres, com os quais Jesus se identifica (cf. Mt 25,31ss). • Regra fundamental da vida cristã que antecede antecede as práticas rituais e a própria profissão de fé (cf. Mt 5,23-24). • Dom maior que unifica a vida cristã na história e no futuro escatológico (cf. 1Cor 13). As regras de ouro das tradições religiosas, bem como os esforços de formulação de uma ética humanista autônoma, reproduzem o mesmo princípio, que consiste em relacionar amor próprio e mesmo é a regra positiva do Cristianismo. Não há como amor ao outro. Amar outro. Amar o outro como a si mesmo é amar negando a própria vida ou negando a vida do outro. Quem é egoísta não ama nem o semelhante, nem a si mesmo. A superação do egocentrismo e a abertura para o outro são as bases elementares para a prática do amor. O amor é arte, define Erich Fromm. Como toda arte, exige conhecimento e dedicação para resultar em aprendizado. aprendizado.49 De fato, a ética cristã tem o outro, sujeito de dentro e de fora da comunidade, como o parâmetro da vivência da fé com tamanho imperativo que pode salvar ou condenar (cf. Mt 25). Trata-se de uma ética constitutiva do Cristianismo que define o conhecer ou não a Deus, o ser ou não ser cristão e o ser ou não ser salvo. A história do Cristianismo terminou por espiritualizar o amor como um sentimento a ser cultivado entre as pessoas, mas muitas vezes sem consequências práticas na vida das pessoas. No entanto, o amor é uma virtude universal por constituir norma para todos os que pretendem seguir Jesus, mas que se faz na relação concreta com as pessoas, não só em palavra mas também em gestos. Nesse vínculo feito pelo p elo amor entre Deus e o ser humano, localiza-se a ideia do humanismo cristão. A oposição moderna entre teocentrismo e antropocentrismo mostra-se falsa, do ponto de vista teológico, ainda que possa expressar uma configuração política e cultural historicamente verdadeira. Tudo aquilo que promover o amor entre os seres humanos será, necessariamente, divino. Nesse sentido, todo antropocentrismo que permita ao ser humano abrir-se para além de si, para o relacionamento construtivo com os outros, será revelador de Deus e tornar-se-á teocêntrico. Por outro lado, o que negar a vida humana jamais será cristão, mesmo que se
apresente como tal. A prática religiosa que reforçar o narcisismo e esquecer o outro, em nome da experiência religiosa subjetivista, ou que esquecer a subjetividade, em nome de uma ordem burocrática massificadora, impossibilita a relação construtiva entre o eu e o outro outro e, por conseguinte, o amor. Tal prática não seria nem cristã, nem humana. Onde houver amor, o que for humano será cristão e o que for cristão será humano.
CAPÍTULO II
A vida como valor fundamental fundamental A vida constitui o valor mais básico para todos os seres; grandeza que faz encontrar em sua constituição o orgânico e o inorgânico e em sua definição a física e a metafísica, a razão e a fé. A vida define o planeta em sua totalidade, o ser humano em seu processo de hominização e humanização, as relações intercambiáveis entre todos os seres, o reino da necessidade e da liberdade, o começo e o fim de toda a realidade. Além dessa dimensão ontológica, a vida posiciona-se como a grande questão antropológica (a história de fundo da qual emerge o ser humano), existencial (a vinda e a volta ao estado inerte), tecnológica (a produção da subsistência), científica (o domínio das forças da morte e das possibilidades de sobrevivência), psicológica (os desejos de vencer a morte) e teológica (sobre o sentido último do viver e do morrer). A vida revela-se para o ser humano como realidade mais imediata e mistério mais profundo. Sua definição inclui seu oposto, a morte, e, portanto, o inerte de onde ela se arranca com todo viço e para onde retorna implacavelmente. Mostra-se como um momento na história da terra e como um sopro nas histórias individuais, como fragilidade e como força daqueles que a possuem. Encontrar o seu se u sentido é certamente o segredo segred o para a felicidade não só do ser humano, seu gestor, mas também de todos os seres vivos. As tradições sapienciais, de modo particular as religiosas, afirmam que o sentido da vida está conjugado ao sentido da morte e vice-versa. A sua fragilidade e fugacidade não podem ter sentido por si sós, sob pena ou de uma embriaguez hedonista em suas ofertas de bem-estar imediato e efêmero, ou de uma total ausência de significado. É do conjunto da vida, de seu antes e de seu depois, portanto de um extravasamento de seu ciclo orgânico, que pode emergir o seu sentido profundo, seja como visão escatológica que convida para a aposta de fé, em sua origem primeira e em seu fim último, seja como visão histórica que considere o passado e as gerações futuras como um apelo ao significado do gênero humano e de sua responsabilidade pelo que há de vir. Em qualquer um dos casos, a vida emerge como valor incondicional. Portanto, como origem e fim das ações humanas. As tradições religiosas definem nas mais variadas expressões o sentido da vida e, por conseguinte, o itinerário da felicidade, o que fazem articulando como realidade única o viver e o morrer. Em todas elas, há um valor incondicional que distingue o absoluto e o relativo da vida: assumir sua gratuidade e contingência, usufruir de sua felicidade e efemeridade, dominar seu devir e respeitar seu mistério. As grandes cosmovisões religiosas afirmam a vida como valor sagrado, como expressão da própria divindade (animismo, panteísmo), como caminho de purificação (reencarnacionismo) ou como obra da divindade (criacionismo). Podemos dizer, com a licença de Protágoras, que sob todos os aspectos a vida é a medida de todas as coisas. É do fenômeno da vida que emerge a consciência e, portanto, a possibilidade de designar a realidade e trazer à existência o real. Será igualmente dela que advirão sua perdição precoce ou sua preservação pres ervação às gerações futuras. Só o amor à vida, entendida como dom precioso, pode levar à atitude ética de sua preservação; pres ervação; do contrário submergiríamos submer giríamos na certeza de sua s ua fatal sucumbência, conforme assegura a lei do nascimento e da extinção de todos os seres, inclusive dos astros com seus referidos sistemas. Só em nome da vida cuidamos da vida, ou seja, porque ela se mostra como um valor em si mesmo. Cuidar da vida constitui um ato de transcendência
radical que nos lança para além de nossos interesses imediatos: é cuidar de algo que nos antecede como dádiva cósmica, que nos excede em múltiplas espécies e que nos sucederá nas gerações vindouras. A teologia da vida, veremos, considera sua totalidade como origem, meio e fim de nossa condição criatural dentro da grande dádiva do Criador, o qual sai de si e vem “curtir a vida” conosco, assumindo a totalidade de seu ciclo, nascendo, crescendo e morrendo, “para que que todos tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10,10).
1. A condição atual da vida planetária A consciência sobre o valor da vida planetária é relativamente recente; emerge como revisão dos efeitos da modernidade sobre a natureza, bem como dos avanços das ciências que estudam as múltiplas dimensões da vida no sistema da Terra. Acrescentam-se, ainda, os fatos da globalização econômica e das tecnologias informacionais que conectaram em rede mundial as sociedades locais. A consciência planetária se mostra, então, como realidade crescente e irreversível que tenderá a construir mecanismos políticos correspondentes, ou seja, cosmopolíticas que deem conta de gerir a casa comum (eco-logia) em sintonia com uma norma comum (eco-nomia) que a torne sustentável. O antropocentrismo moderno estruturou uma civilização centrada na relação unidirecional sujeito-objeto que afirmou o domínio do homem sobre a natureza. A modernidade ouviu tão somente a voz do sujeito, senhor de todos os direitos, e não a voz da natureza, reduzida unicamente à condição de fonte de riquezas. A posição estabelecida política e culturalmente do ser humano dominador e natureza dominada contou, dominada contou, evidentemente, com mediações científicotecnológicas e político-econômicas para a sua consolidação. A modernidade constituiu uma síndrome composta, portanto, por instrumentos tecnológicos, finalidades econômicas, mediações políticas e princípios culturais que se sedimentam sobre a ideia de progresso pro gresso e bem-estar. Com efeito, trata-se de um sistema instituído sobre os pilares da promessa e da realização. A defasagem entre os dois permite um olhar realista sobre as ambiguidades globais do projeto da modernidade, que prometeu bem-estar universal e não cumpriu, apostou no sujeito autônomo e trouxe o indivíduo consumista e passivo, afirmou o poder da razão e cometeu as maiores irracionalidades. A vida torna-se uma questão central quando a tecnociência afirma-se como poder efetivo de domínio sobre a natureza, bem como instrumento dos poderes econômico e político. Até onde esse domínio pode estender-se sobre a dinâmica da vida? Não se trata de adotar posturas que sacralizem a vida como algo intocável, mas de balizar a ação do ser humano, de forma a preservar a sua integridade e sustentabilidade. s ustentabilidade. Estamos certamente no início de um caminho a ser construído em que o cuidado com a vida se mostra como valor, técnica e arte a serem cultivados por todos os sujeitos, de modo especial por aqueles que têm poder efetivo de interferir sobre o curso da natureza e da história humana. A teologia tem algo a dizer sobre esse assunto por razões fundamentais e emergenciais. Para a vida convergem o pensamento mais tradicional com o mais recente, antigos e novos problemas, abordagens mitológicas e abordagens de ponta das ciências. A vida apresenta-se, também, como eixo do diálogo entre a fé e a ciência (as cosmologias teológicas e as novas cosmologias) e entre as religiões (com suas teologias da criação e suas éticas), do diálogo das religiões com os sujeitos
sociais (com suas organizações em defesa do planeta), da ética com as ciências (nas afirmações de finalidades éticas que possam parametrar as intervenções na natureza nos âmbitos macro e micro) e, por fim, como eixo de diálogo dentro do próprio Cristianismo (a centralidade cósmica de Cristo e as demais questões teológicas). Sabemos hoje que vida é o nome da Terra e de seu futuro. Portanto, ela é o valor universal e incondicional que poderá orientar a consciência planetária na solução dos problemas globais que colocam a convivência humana e a subsistência do planeta.
a ) A sustentabilidade do planeta A Terra é hoje um planeta com riscos de continuidade. Evidentemente, o agravante desse fato reside na globalidade do problema. A humanidade já esteve exposta a grandes riscos, seja por catástrofes naturais, seja por condições criadas pelo próprio ser humano. De fato, em várias ocasiões, pandemias ceifaram parte dos habitantes de determinadas regiões. A colonização do novo mundo, particularmente das Américas, e as duas grandes guerras provocaram o aniquilamento de milhões de pessoas, resultado da decisão política de algumas potências detentoras de poder econômico e tecnologias bélicas. A vida do planeta, seja em termos sistêmicos globais, seja na esfera das espécies vivas, encontra-se hoje sob a ameaça de destruição. Já não se trata daquele horizonte sombrio criado pelo clima da Guerra Fria que prenunciava o aniquilamento total e instantâneo da Terra numa hecatombe suicida, mas de um desgaste sistêmico que já pode ser visto a olho nu, bem como demonstrado pelas ciências. O ser humano, com sua capacidade de domínio da natureza, conduziu o planeta a um patamar de insustentabilidade que inclui o aspecto fundamental não somente da ecologia mas também da economia e da política. A Terra, casa (oikós (oikós em grego) comum da vida, já não resiste aos impactos que vem sofrendo por parte das tecnologias modernas, particularmente dos gases liberados na atmosfera. O invólucro da vida — vida — camada camada de ozônio — ozônio — , a calibragem química que possibilita a existência da vida no planeta e o lixo lançado nas águas colocam em risco as bases da matéria viva na Terra. Além disso, em termos sociais e políticos, a convivência humana está posta em risco sempre maior, na medida em que aumenta a distância na distribuição de renda entre os povos do planeta. O capital concentrado nas mãos de poucos afirma-se como modelo econômico mundial, planetarizando sempre mais suas próprias contradições. Já não é mais possível localizar a pobreza em certas geografias e denominá-la como subdesenvolvimento. O processo de mundialização econômica conectou todos os cantos da Terra em um sistema único. Os cofres virtuais do capital financeiro não têm mais limites geopolíticos, enriquecem ou empobrecem planetariamente países, grupos e pessoas. A crise econômica de 2008 revela o limite desse modelo e clama por um direcionamento político e ético externo ao mercado, na busca de um equilíbrio mundial. O mundo globalizado clama — e clamará com mais vigor — por um parâmetro de convivência mundial que permita a justiça e a paz entre os povos. A riqueza de poucos não garante o futuro nem de si mesma. Não há mais razões que façam adiar o enfrentamento da fome e da doença, assim como já não é mais possível escondê-las. Os donos do planeta são conhecidos, bem como suas estratégias. Os países do G7, G20 e de todos os gês que possam organizar-se terão que buscar soluções globais e definitivas para a humanidade. Certamente, a pobreza não será mais responsabilidade nem dos pobres, nem dos países pobres, nem de
governantes pré-modernos, mas sim uma questão de sobrevivência do planeta e, por conseguinte, responsabilidade de todos. Talvez seja esse o resultado jamais esperado da globalização econômica: a explicitação da pobreza como uma questão inerente ao modelo econômico capitalista. A pobreza, com todos os seus males, está hoje mais do que nunca mundializada. Ela apresenta-se como fato nas geografias ricas, resultada de um capitalismo pós-industrial e como um dado exposto aos olhos do mundo pelos meios de comunicação que conectam os fatos planetariamente e em tempo real. A consciência planetária em emergência poderá abrigar em sua lucidez, valor e utopia a superação das contradições humanas de todas as ordens e a construção das condições de vida para o planeta, a começar pela vida de seu protagonista, p rotagonista, o ser humano.
b ) A convergência epistemológica A vida é um todo que pede abordagens que deem conta de sua abrangência, que vai além do humano e do próprio orgânico. Os estudos sobre a história da Terra e de ecologia demonstram a rede complexa em que se insere o fenômeno de vida, tanto em seus desdobramentos no curso evolutivo, quanto nas diferenças e semelhanças que portam as espécies vivas. vivas.50 A teologia, não obstante sua vocação integradora que expõe o sentido radical da realidade, necessita conversar com as diversas disciplinas que parecem mapear um esquema dos aspectos que envolvem o amplo espectro vida, a saber: a pergunta da cosmologia pela origem do universo, a pergunta pela lógica interna da vida feita pela biologia, a pergunta pela finalidade feita pela ética e a pergunta apresentada pela antropologia com relação ao sentido da espécie homo homo.. Evidentemente, a questão filosófica sobre a causa de todas as coisas permanece como parceira indispensável na justificação da teologia, como olhar que contribui com a compreensão do real como um todo. Contudo, vale um esclarecimento prévio que evite a impostação da reflexão “quebra“quebra-galho” para a teologia: como aquele olhar que vem em socorro so corro do limite das ciências, resposta simbólica que cobre com suas imagens e analogias o território inatingível pelas ciências, espécie de suplência temporária que consola a inteligência limitada, até que essa consiga explicar seus problemas cientificamente. A teologia se ocupa não de objetos inatingíveis pela razão mas, ao contrário, de objetos de fé que as ciências podem ou não explicar, e que a mesma razão adota como necessários, pela via da filosofia, concretamente da metafísica, ou pela via da fé, que aposta em significados razoáveis, por suas força significativa e ética. Na questão da vida, a razão é por vocação uma parceira que facilita o diálogo das diversas ciências com a teologia, na medida em que atira o intelecto para a interrogação constante (superando as acomodações), para a construção de significados (em alternativa ao ceticismo) e para o discernimento d iscernimento do bem e do mal (contra os relativismos). r elativismos). No interior da d a própria pró pria dinâmica da razão, a fé emerge como caminho de razoabilidade que contribui com a visão de conjunto, construída pelos significados parciais e pelo sentido de fundo da totalidade do real. Enquanto o racionalismo exige o significado das particularidades e aí se aloca, a razão busca a articulação das partes com o todo, dos significados com o sentido, dos meios com as finalidades. Nessa moldura, em termos radicais, crer pode ser mais racional que duvidar, mesmo quando a dúvida se faz em nome do mais autêntico domínio científico. científico.51 No atual estágio das ciências, com suas traduções tecnológicas e, por decorrência, seus resultados econômicos, políticos e culturais, seria desnecessário dizer algo sobre sua importância
para a humanidade. Nosso corpo é a primeira testemunha de suas eficiências, inserido que está na civilização hiper-racional, na qual tudo se edifica e movimenta-se sob as regras científicas. Contudo, nessa civilização, o ser humano pode perder-se como agulha no palheiro; mergulhado no bem-estar tecnicamente construído, torna-se, muitas vezes, autômato, passivo e temporariamente feliz. Como já vimos no início do presente trabalho, a equação consumismohedonismo torna-se o eixo que movimenta a sociedade e a alma de cada indivíduo consumidor. E a vida vai tornando-se, cada vez mais, pulsão de prazer que evita o mal-estar, imediatismo que adia as interrogações de futuro, conforto que evita a morte. Essa parcialidade que reduz e oculta o significado real e profundo da vida é filho do hiperracionalismo atual. Trata-se de uma parcialidade cientificamente fundamentada: domínio tecnológico das partes que desconsidera o todo da vida. De todas as fragmentações das ciências modernas, esse deve constituir seu resultado mais consistente e duradouro, quando um modus cognoscendi torna-se, cognoscendi torna-se, em tradução direta, um modus vivendi. A epistemologia atual insiste na urgência teórica e ética da retomada do todo, cujo nome mais concreto — concreto — empírico empírico e ético — ético — é é vida. A dinâmica real da vida há que ser recuperada para que possa ser adotada como o valor mais fundamental que a todos agrega em torno de meios e fins comuns. A vida é a realidade fundante de nossa existência e, portanto, objeto a que todas as abordagens devem dedicar-se, ainda que se habilitem em um de seus aspectos. É nesse esforço que as ciências com suas especialidades devem transcender seus territórios epistemológicos e alcançar aquilo que é mais fundamental, mediante o diálogo não só com outras ciências mas também com outras formas de conhecimento que integram o conjunto das representações culturais. Toda ciência deverá ser, em última instância, uma ciência da vida. Quando as ciências, com suas necessárias parcialidades, entram em diálogo umas com as outras, buscam um todo, cuja demarcação última é a própria vida, objeto que engloba em sua amplitude o cosmo com todos os seres.
2. A vida em si mesma A vida se mostra como advento progressivo de uma autonomia dos determinismos da matéria. A passagem do inorgânico ao orgânico marca o início de uma nova fase na história da Terra, em que faz eclodir os seres auto-nomos auto-nomos com capacidade sempre maior de auto-organização, de reprodução, de adaptação e de transcendência. O ser vivo instaura com essas capacidades a diversidade e o movimento que, em perspectiva evolutiva, apresenta-se como um percurso inacabado, marcado sempre por um jogo que combina o previsível com o inédito. O vivo acorda a Terra do sono do inerte e aponta para o sonho do novo que pode vir na perpétua reprodução e modificação das espécies. A escalada da vida é o crescendo da autonomia que se torna cada vez mais plena, do mineral ao vegetal (a autoprogramação), do vegetal fixado na terra ao animal (a autolocomoção) e do animal preso ao habitat ao ao espiritual (a autoconsciência). No ser humano, a autonomia avança como capacidade ilimitada do ponto de vista da consciência humana: como desejo, vontade e ação. Desde as suas formas mais elementares, a vida mostra-se como germe de liberdade; lança a matéria para um movimento de negação de seu estado bruto e inerte, na direção do novo que se refaz em cada espécie, em cada ser e em cada individualidade. A liberdade, plena no ser humano, torna-se senhora da própria vida e, cada vez mais, sua inevitável condutora. A vida deixa de ser
dádiva espontânea, na medida em que, domesticada, pode ser ampliada, reduzida ou mesmo aniquilada em seus recursos. Isso ocorre, de fato, da revolução agrícola à revolução da engenharia genética. Estamos afirmando que o ser humano é o resultado final de um processo de criações bemsucedidas. Para a teologia, esse final ainda não foi concluído, uma vez que a vida tem um destino escatológico. Para muitos cientistas e filósofos, chegamos nesse ponto pela força ocasional de variáveis bem combinadas, e chegaremos ao ponto final do sistema vivo dentro do sistema solar que um dia realizará seu ciclo. Para outros, trata-se de uma evolução com direção interna e que tem seu significado no próprio ser humano.
a ) A origem da vida As ciências dedicadas ao estudo da Terra nos fornecem elementos que permitem compreender o surgimento da vida no planeta. O fenômeno da vida aparece como fenômeno intrínseco da Terra e como resultado de um jogo fantástico de fatores que despertam espanto e veneração. A vida eclode dentro do processo da longuíssima duração da formação da Terra em suas condições atuais. Num jogo complexo que combina múltiplos fatores, a Terra prepara as condições para o seu surgimento. A história da Terra mostra que a exatidão dessa combinação é, por um lado, matemática e, por outro, fascinante, devido à sua própria originalidade e precisão. A vida irrompe como resultado preciso e explicável de variáveis químicas, físicas, e gravitacionais. Contudo, a dose exata dessas variáveis que produziram a vida no curso de bilhões e bilhões de anos só pode despertar encantamento, tamanho o seu sucesso: o equilíbrio gravitacional, a posição da Terra em relação ao Sol, a temperatura, a evolução dos gases, o volume de água e as descargas de energia resultaram na eclosão das primeiras células vivas. Desde então, a vida não para; avança em variedade e complexidade até atingir o patamar da interioridade no ser humano. A criatividade esteve presente nesse processo que caminhou para um ponto máximo de autonomia e auto-organização. A matéria originária evoluiu pacientemente de etapas menos complexas para etapas mais complexas. Trata-se de uma evolução contínua, mas, ao mesmo tempo, marcada por saltos para novas formas de auto-organização que nos remetem a interrogações e espantos. Junto com as explicações, encontramos o mistério, e de ambos eclode o encantamento: a contemplação da perfeição. A explicação de todo esse processo pode ser feita a partir do acaso, como o fez Jacques Monod. Monod.52 Contudo, contra o acaso exibem-se as exatidões das variáveis que resultaram na Terra e nos sistemas vivos. O princípio antrópico reclama um significado maior para todo o processo que tem sua conclusão e, portanto, sua finalidade no ser humano. Estamos certamente no território da teologia, que, para além do acaso e da coincidência, busca nos desdobramentos da Terra-vidahomem a condução de uma inteligência criadora e bondosa. bondosa.53
b ) A matéria e o espírito O filósofo judeu Hans Jonas apresenta sua biologia filosófica como um caminho que permite o encontro entre os extremos da matéria e da vida, do determinismo e da liberdade, dos meios e dos fins e, por decorrência, da ciência e da teologia. A vida adquire nessa visão amplitude e profundidade tais que agregam agr egam em um sentido de fundo todo olhar particularizado. Portanto, é do
interior da própria vida que podemos falar em valores e em ética e superar os dualismos criados pelas ciências modernas que tendem a afirmar-se na estrita delimitação de seus objetos imanentes, delegando ao não científico a construção de finalidades éticas. éticas.54 A vida compõe um sistema de múltiplas posições e relações entre o todo e as partes que integram sua totalidade. Talvez essa concepção perpasse todas as formulações construídas ao longo da história para explicar a natureza e o funcionamento da vida nas mais diversas nomenclaturas: o panvitalismo dos povos arcaicos que vê a natureza funcionando pela força espiritual; a Idade Média com sua geografia cósmica sagrada; os modernos com a mecânica do universo e a visão ecológica atual. Em todas essas visões, a ideia de sistema aparece de alguma forma, bem como fica posta a pergunta pela Causa primeira de seu funcionamento e respondida com as distintas imagens de divindade presente em cada uma delas. O espírito e a matéria foram os dois grandes princípios explicativos da vida no decorrer da história da cultura humana, explica Jonas. O espírito, entendido como o princípio transcendente que anima a realidade sensível, independente da conotação religiosa, antropomórfica ou filosófica que recebe nos distintos tempos e espaços, aponta para um princípio unitivo e fundante da realidade sem o qual as coisas não possuem consistência ontológica ou física. De modo semelhante, a consideração da matéria como o princípio que funda e explica todas as coisas conota a vida de uma dimensão que, em última análise, a nivela com o não vivo. É do inerte e para o inerte que o vivo se destina, sendo, portanto, toda realidade resumida em composições e movimentações químicas e físicas. De fato, o dualismo entre matéria e espírito caracterizou as abordagens das ciências modernas, quando essas afirmam sempre mais o princípio da materialidade como a única explicação da vida e relega o espírito em todas as suas expressões para o âmbito da fé ou da superstição. superstição.55 O movimento feito pelo intelecto humano na busca de compreensão da vida encontra a matéria e o espírito como dimensões que compõem uma realidade que vai do inerte ao orgânico e retorna ao inerte, que vai do vegetal ao animal, que se arranca da pura animalidade na emergência da consciência no ser humano. As visões espiritualistas podem negar o dado fundamental da realidade de onde o ser vivo vem e volta. Contudo, as reduções materiais ignoram que a vida é carregada de espírito, do germe da autonomia e da consciência desde suas primeiras manifestações. O estado inerte não explica sua totalidade e nem sua dinâmica de complexificação e interiorização na busca de um estágio de autoconsciência. Os cortes entre a dinâmica intrínseca da matéria e da vida, como etapas qualitativas radicalmente distintas, assim como entre a vida e a consciência, revelam uma direção factual que deve ser considerada pela razão. A afirmação da coincidência de fatores ou do acaso como explicação razoável, se pode responder pela pré-história humana, não responde, porém, pelo ser humano em sua constituição ontológica como ser livre que se descola do reino das necessidades e torna-se o condutor da própria vida. No ser humano, o espírito está onipresente como “medida de d e todas as coisas” e sem ele nenhum discurso pode ser feito sobre nenhuma dimensão da realidade. Qualquer conclusão feita sobre o sentido último do fato da vida é fruto do espírito que, por estar presente a partir de um determinado momento em sua história, pode buscar seu significado, indo além dos mecanismos brutos da matéria que não fala por si mesma e da animalidade que não sabe o que é. A pergunta pelo sentido do ser em distinção ao nada constitui, certamente, a atitude mais elementar, embora pareça a mais sofisticada racionalmente, em que o espírito humano busca o sentido de todas as coisas e insiste em interrogações e respostas: Por que o ser e não o nada? Por
que a vida e não a matéria inerte? Por que a liberdade e não o determinismo animal? Com o ser humano, a dimensão transcendente emerge como aspecto inevitável da matéria, região onde as coisas buscam sua razão e conexão, mesmo que se postule tudo isso como projeção necessária do próprio espírito humano. A matéria produziu gradativamente a imaterialidade que no humano adquire sua máxima expressão e, desde esse topo espiritual, exige que se busque no movimento interior da própria matéria estruturante do universo e da vida as suas conexões com o antes e o depois. O espiritualismo (nas formas dos mitos, dos animismos e dos idealismos filosóficos e teológicos) e o materialismo (elaborado pelas ciências naturais de um modo geral) afirmaram-se como totalidade explicativa do todo, sendo que, no caso do primeiro, sequer sabia das leis da matéria como princípio de realidade. Certamente, o materialismo, com todas as suas razões e expressões, desconsiderou por convicção a necessidade da dimensão espiritual da matéria como algo do passado, fruto de mentes pré-científicas. Contudo, o fato é que a matéria produziu a imaterialidade ativa, o ser humano. É sobre uma moldura epistemológica que busca a inclusão dos dois aspectos em uma única visão que situamos a teologia da vida.
3. A vida em diversas molduras A teologia da vida talvez seja aquela que se ocupa de um objeto material de maior abrangência, se não também de maior profundidade. Por isso mesmo, o conceito pode beirar a redundância, se entendermos Deus como a própria fonte da vida, em qualquer uma das suas acepções. A vida constitui, nesse sentido, objeto de qualquer teologia, seja no sentido formal (Deus é a vida), seja no sentido material (todas as coisas se relacionam de algum modo à vida). No tocante à vida, encontram-se, portanto, na mesma reflexão a perspectiva (o olhar a partir da vida, a partir da fé) e a materialidade (as múltiplas dimensões da vida que se mostram objeto da teologia). Em termos epistemológicos, o arco da reflexão teológica sobre a vida vai da criação à escatologia, da biologia à antropologia, da ontologia à ética. Se, nos aspectos temporal e físico, a vida não significa a totalidade do real, por constituir somente um pequeno momento da história da matéria que engendrou o universo e a Terra, seu lócus possível, em termos gnosiológicos e éticos, mostra-se como totalidade de sentido, da qual toda palavra pode ser pronunciada sobre o todo e as partes, o princípio e o fim da realidade. Como base mais fundamental do existir, a questão da vida remete para: a) o seu antes e o seu depois, o estado inerte da matéria; b) o seu funcionamento empírico imediato, as leis de seu funcionamento; c) os mistérios de sua origem remota, portanto para a física e a metafísica; d) a sua interioridade mais profunda, o sentido mesmo do viver e do morrer; e) a sua finalidade última, onde encontramos a afirmação: “A vida é o bem maior”. Em nossos dias, uma teologia da vida coincide com as preocupações mais convergentes da humanidade, ou ao menos de parte da humanidade, possivelmente aquela parte mais lúcida, mais ética e mais estética, que assume a vida como o grande valor a ser defendido para o futuro do planeta, como dom acolhido acolh ido pela razão e pelo pel o afeto. af eto. A defesa da vida tem sido feita, sobretudo, sobr etudo, em chave ecológica, ao menos enquanto movimento de envergadura universal, tanto por seu potencial agregador de divergências, quanto por sua dimensão planetária. Em prol da vida organizam-se os movimentos ambientalistas, são resgatadas tradições místicas há muito esquecidas, esforçam-se muitos governos em implantar políticas públicas e se juntam em foros mundiais intelectuais das mais diversas áreas de conhecimento. Em todos esses casos, o apelo da
vida parece ter um significado imediato, legítimo e urgente: a sobrevivência do planeta e, obviamente, de tudo o que o integra. Não estamos diante do único aspecto que envolve a ampla e profunda questão qu estão da vida, vida , mas, certamente, diante da mais fundamental e que, precisamente, por sua abrangência real e, por conseguinte, conceitual, pode trazer à tona outros componentes indispensáveis. Nesse quadro macro, encontra-se evidentemente alocada, ainda que de forma implícita, a vida em suas dimensões menores e mesmo microcósmicas, a vida submetida às manipulações econômicas e políticas, a vida subjetiva com suas aspirações, a vida humana onticamente sexuada e racialmente localizada e a vida inseparável do processo de morte. Situada nesse contexto favorável, a teologia pode repetir, talvez com mais legitimidade, sua máxima da qual emanam todas as suas demais questões: Deus questões: Deus é o criador do universo. universo. As coisas velhas e novas contidas nessa profissão de fé encontram-se com as coisas velhas e novas das ciências, estando todas elas desvestidas — ou ao menos maduras para tanto — de suas ingenuidades míticas e de suas prepotências dogmáticas. Por certo, por fidelidade a sua história, a teologia já não pode repetir de modo fundamentalista os relatos criacionais, como se fossem fatos históricos ou verdade física, em oposição ou então em paralelo às ciências modernas. De modo similar, as ciências sabem hoje dos limites de suas explicações, metodologicamente adstritas ao universo constituído, assim como da relatividade de seus modelos explicativos. Com efeito, pensar a vida teologicamente significa enfrentar de maneira direta dois pontos que demarcam ao mesmo tempo seu limite e sua possibilidade, a saber, sua origem e seu fim, filosoficamente sua arché e arché e seu télos, télos, sendo que é precisamente dentre esses pontos radicais que se desdobra o ciclo vital propriamente dito, como tempo historicamente determinado e como meio de realização orgânica direcionado eticamente. Evidentemente, arché e télos télos adquirem significados distintos em função não somente das convicções de fé mas também do olhar científico. Para a ciência, o começo de tudo se mostra como uma questão desafiante que extrapola suas possibilidades de demonstração empírica, a partir do qual resta a demonstração lógica, pela via da dedução, operação que já se encontra no território da pura filosofia e retoma em novo patamar teórico as questões clássicas da metafísica. A causa primeira de todas as coisas é recolocada pela razão que não se conforma com nenhuma causa secundária e, portanto, vai além do que podem observar os telescópios atuais e explicar as fórmulas físicas mais modernas sobre a expansão do universo. Também, do ponto de vista do fim da Terra, as ciências demarcam sua “data” a partir das observações sobre o tempo de existência dos astros astros e, por conseguinte, do Sol. A vida teria naturalmente menor duração que o sistema solar, perecendo em algum momento, esturricada por seu calor em explosiva expansão. O fim do sistema solar será o fim radical de um ciclo cósmico que originou a própria vida, a conclusão global de uma era de bilhões de anos que faz projetar p rojetar em sua duração a temporalidade tempor alidade milimétrica a própria história da 56 vida. vida.
Contudo, sabemos que arché e télos portam seus significados filosóficos primordiais como busca da razão de ser da vida e do próprio universo, como demarcações primeiras que fazem jorrar significados e valores para par a a realidade como um todo, sendo que este todo abraça em seu significado mais fundamental as partes que o compõem: o ecossistema, a história, as sociedades e cada indivíduo. Não se trata de um significado paralelo àqueles da
origem e do fim do universo expostos pelas ciências. Ao contrário, pode integrá-los como demarcações físicas que clamam por uma metafísica, como pontos que remetem para abordagens simbólicas sobre o sentido profundo da existência que, no limite, parece não deixar opção de escolha a não a ser aquela radical entre o tudo e o nada. Ainda que em durações infinitamente desproporcionais, a ideia do tempo limitado, ou do fim demarcado, é, de fato, a característica comum de todas as dimensões do que compõem a existência física: tudo tem um início e um fim. O sentido do ser do ser limitado torna-se, limitado torna-se, assim, a questão mais fundamental das buscas e das respostas humanas, quando arché e télos télos se abrem para além de seus significados de começo e fim, no sentido físico-temporal, e adquirem significados como pontos reveladores de uma totalidade absoluta que abarca em si todo o limite imponderável. Já não são pontos cruciais que remetem para a contagem da duração dur ação interna e limitada dos diversos d iversos ciclos da d a matéria e da vida, mas para fora desses mesmos ciclos, na busca da significação do antes e do depois, ou da Causa primeira e da finalidade última. A antiga e a nova metafísica comporão um todo articulado que permite pensar a totalidade de todas as coisas, incluindo no mesmo sistema de sentido o Absoluto e o relativo, o tempo e a eternidade. Mas, em chave teológica o antes e o depois de todas as coisas adquire um significado diferenciado: da arché arché eclode a criação, criação, no télos télos encerra o escatológico. escatológico. É a totalidade de sentido que coloca a questão fundamental do ser (do tudo) e do não ser (do nada). O tudo que aponta para o sentido do conjunto e das partes, para a razão da história do universo que evolui e culmina na vida, para o sentido do nascer e do morrer. O nada que se contenta em dizer que basta observar o real em seu limite imponderável, sabendo que tudo acaba e concluir pelo acaso e pela fatalidade na esfera do biológico e da existência coletiva e individual. Os ciclos do Sol, da vida e de cada pessoa não seriam mais que um barco à deriva no grande mar do universo, do orgânico e da espécie homo homo.. Tanto quanto a visão do todo significativo que possibilita encontrar o Tudo, pela via da razão ou da fé, o niilismo cósmico apresenta-se apresenta -se como uma opção não mais científica. A dedução do acaso como explicação da eclosão da vida é, a rigor, uma opção supracientífica, forjada como recurso explicativo externo ao raciocínio indutivo das ciências que lidam com o universo e com a vida como coisas empíricas. Ela aparece naquele limite em que a razão científica salta da indução de seu objeto para a dedução de suas condições de possibilidade, limite em que o nada clama pelo tudo. A teologia vai articular em um mesmo todo o começo, o meio e o fim das coisas. O cosmo possui um sentido a partir da Revelação de sua finalidade última por parte do próprio Deus que se mostrou ativamente dentro do mundo. O sentido do limite da vida vem precisamente de seu antes e de seu depois.
Portanto, a afirmação da criação e da escatologia não é tão somente ressignificação do início e do fim de todas as coisas, mas ressignificação das diversas temporalidades limitadas com suas dinâmicas internas, enfim em sua totalidade imanente. Criação e escatologia são fontes de significados para as subsequentes histórias do universo, da vida e do ser humano. A história revela em sua imanência e rotina o sentido de seu percurso; em seu devir afirma o que deve vir ou o que deve ser ; torna-se uma sucessividade que adquire princípio e fim orientadores que permitem discernir o bem e o mal e pode, portanto, caminhar em um processo de aperfeiçoamento contínuo.
4. Criador e criação A teologia da criação, ou a cosmologia teológica, compõe uma racionalidade de fé, ou seja, uma visão de totalidade que rejeita o acaso e opta por um significado do processo de formação da vida. Tal racionalidade oferece um amparo para o limite do intelecto que busca as causas onde, paradoxalmente, o próprio objeto, o cosmo, só pode revelar na sua empiricidade a última causa verificável, jamais a causa primeira. As formulações sobre o início e o fim do universo são deduções lógicas matematicamente calculadas, porém sem possibilidade de demonstração empírica. Entretanto, para além dessas formulações ou paira o silêncio que de novo reclama por explicação, ou emerge o mistério que convida a crer no Absoluto que encampa em sua eternidade todo início e todo fim. Dessa questão ocupam-se as tradições religiosas e as metafísicas de ontem e de hoje. Entretanto, a fé na criação tem sua gramática específica, na medida em que emerge do conjunto de significados da tradição judaico-cristã, acolhidos pela fé como Revelação: Deus fala, está presente no âmbito da vida e se relaciona com ela. Portanto, do ponto de vista teológico, é dentro do próprio processo vital que se busca o Deus Criador e não fora dele. Aquilo que a razão poderia solicitar só no limite de suas possibilidades explicativas, a fé acolhe como experiência exp eriência no imediato da vida, na natureza e na história. Deus está presente no antes, no durante e no depois da vida, o que para as ciências pode ser uma causa desnecessária. Certamente, a solicitação metafísica da Causa traduzida em Criador pode esconder em suas construções concepções importantes, próprias da dimensão da fé. A mais fundamental é certamente a distinção entre criação e Criador, base da qual decorrem outras distinções. Nesse sentido, distingue-se da visão panteísta que mistura em uma única realidade Criador e criaturas, do emanatismo que faz brotar a realidade diretamente da divindade ou da visão dualista que nega a Deus o papel de criador da matéria, sendo essa obra de um outro ser de menor grandeza ou de um opositor de Deus. A teologia da criação apresenta essa distinção fundamental entre Criador e criatura, da qual decorrem a autonomia e a positividade da natureza e do ser humano, como realidades que podem falar do Criador pelo esplendor de sua grandeza (cf. Sl 19), mas que, ao mesmo tempo, geme por sua limitação contingente (cf. Rm 8,22). A noção de criação introduz a justa posição entre o naturalismo ingênuo que exalta a criação como bondade intrínseca e o pessimismo que a vê como decadência insolúvel. E no centro da criação está colocado o ser humano como ser livre e responsável por sua condução.
a ) A criação boa, a criatura humana livre e responsável A noção de criação afirma a bondade original de todas as coisas. A poesia da primeira narrativa da criação (cf. Gn 1-2,4) conclui após cada ato criador: e Deus viu que era bom! bom! A criação boa é ato de benevolência divina. Deus cria sem, na verdade, precisar criar. Querer criar é ato de abertura e desdobramento divino para além de sua onipotência; é deixar afetar-se pelo divinamente desnecessário. A criação boa é fruto de pura gratuidade. Enquanto, no movimento da razão das coisas para a sua Arché sua Arché,, a inteligência pede uma causa ou mesmo um Criador na busca de um significado totalizante para a realidade, no movimento interno da fé, ou seja, do Criador para a criação, a mesma razão se cala perante o mistério do desnecessário e do plano obsconditus: obsconditus: a graça da criação e o seu percurso no plano de Deus. Só resta acolher a criação
como bondade absoluta do Ser que quis sair de si e incluir em si a alteridade do distinto de si: a imanência, a matéria, o devir e a liberdade. Deus cria algo distinto de si e com um devir autônomo; uma criação criadora que caminha de um ponto inicial para um ponto de conclusão. O paleontólogo e teólogo Telhard Chardin via o processo evolutivo como um direcionamento para um ponto p onto final, f inal, o ponto pon to ômega quando então todas as coisas seriam concluídas pelo Criador. A criação goza, portanto, de autonomia em relação ao Criador, participa do jogo da liberdade, que evoca a um só tempo a lei interna da natureza (o percurso formativo da matéria inorgânica e da vida, como uma imanência autoexplicativa, na medida em que é cognoscível) e a ação do Criador em seu início, meio e fim, não como causa imediata, mas como Sentido último de um devir que remete permanentemente para além de sua dimensão e dinâmica. É quando a natureza revela em sua grandeza um dinamismo sagrado. A experiência do sagrado como tremendum et fascinosum (“assustador e fascinante”) está certamente associada às forças benéficas e aterradoras da natureza que remetem à busca da origem primeira. Os mitos de criação narram em suas cosmogonias essas metáforas. Contudo, a fé na criação não se identifica tão somente com os mitos de criação que colocam a divindade como início primordial de onde tudo procede e do qual decorrem as ações rituais, como forma de recriação das origens. Os primórdios narrados nos mitos de origem podem isolarse do tempo histórico, tanto da história da natureza sem seu devir criacional, quanto da história da liberdade humana que interfere na natureza. O teólogo alemão Jürge Moltmann classifica essa visão de criação como “sistema fechado”, o que na construção da teologia ocidental, de modo particular na matriz agostiniana, recebe uma esquematização um tanto rígida como criaçãoqueda-redenção, queda-redenção, separando o tempo da graça original do tempo histórico, ou o tempo de Deus do tempo humano. humano.57 A criação entendida como “sistema aberto” integra dialeticamente essas temporalidades como um todo que inclui a graça criacional e a autonomia da natureza e do ser humano. A criação é colocada como o início da história da salvação, de uma relação entre o ser humano e Deus que caminha para frente, para a sua consumação. Nesse sentido, a criação é vista como processo feito arché e télos que télos que se conectam pelo tempo da história, sendo de início, meio e fim, ou seja, como arché e que o fim escatológico tensiona o tempo histórico na busca de sua plena realização. É precisamente nesse espaço histórico atual que o ser humano participa como responsável pela criação do tempo novo, acolhendo a graça da salvação oferecida por Deus. Nesses termos, a teologia da criação é a compreensão da vida em seu processo de origem e desenvolvimento que inseparável da história caminha para uma direção certa, no jogo dialético da graça e do pecado, ou seja, sob a opção livre do ser humano. Santo Agostinho expressa essa dialética ao dizer que “Deus que nos criou sem nós não nos salva sem nós”. A salvação ou danação final da vida planetária se dá no jogo livre da história e não por um início ou fim predeterminados. A criação não constitui, portanto, um problema somente de Deus, mas também do ser humano. Deus cria uma criação capaz de criar e em seu centro coloca o ser humano. Natureza e ser humano são, portanto, co-criadores. A relação de liberdade rege a ação original de Deus como causa permanente de todas as causas. É de fato como ser capaz de decidir e agir na liberdade que o ser humano acolhe sua vocação e a exerce a favor ou contra a vida. Portanto, a temática da criação não significa unicamente a pergunta racional pela causa de todas as coisas, mas a
experiência de fé em um Deus criador que sai de si mesmo e vem habitar em sua própria criação como proximidade que chama o ser humano para a missão de salvaguardar a vida planetária. planetária.58
b ) O Criador é criatura A teologia cristã tem um modo próprio de ver a criação, ao afirmar que Jesus de Nazaré é Deus feito carne. Nesse evento, a gratuidade da criação adquire sua máxima expressão e afeto, quando o Criador se faz criatura. O Deus que não precisava criar, menos ainda necessitaria tornar-se criatura e entrar no ciclo do nascer, crescer e morrer. Desde então, a matéria é atravessada pela espiritualidade, o natural se sobrenaturaliza, o início coincide com o fim, uma vez que o divino irrompe na imanência do devir histórico. A cristologia situa-se, assim, como um dado central na compreensão do desdobramento divino para além de si mesmo, acolhendo em sua identidade o seu “oposto”. A abertura ilimitada do Criador mostra-se, mostra-se, portanto, já não como potência capaz de interferir interfe rir na autonomia da criação, c riação, como poder e força, mas como amor que se identifica radicalmente com a criatura. A criação não é somente a contingência oposta ao Absoluto de Deus, mas o lugar de Deus, onde Ele veio habitar como sua origem e seu fim. De fato, Deus encontra-se na criação, porque a criação já se encontra em Deus, como parte de seu projeto. Jesus J esus Cristo é, nesse sentido, o modelo da criação, “o primogênito de toda criatura” (Cl 1,15), “em quem todas as coisas foram criadas” (Jo 1,3) 1,3) e em Quem todas as coisas receberão sua conclusão definitiva: Cristo será tudo em todos (cf. 1Cor 15,24-28). O Verbo ( Logos) Logos) encarnado é o Logos da criação, o princípio que fornece a direção para a liberdade humana: revela o ser humano, demiurgo da criação que pode renová-la ou destruí-la. O fim último da criação fica antecipado em Jesus Cristo, como nexo indissociável entre o Criador e a criatura: o destino último é a comunhão da criação com Deus.
c ) A vida glorificada A morte de Jesus expressa a radicalidade da imanência de Deus que completa em si o ciclo intrínseco da vida: o nascer e o morrer. Por conseguinte, a ressurreição emblematiza a saída de todo ciclo fechado que encerra a vida no parêntese limitado do inorgânico para o inorgânico. A vida adquire um significado que transcende sua temporalidade orgânica, seja como história do cosmo vivo, seja como história da vida pessoal. O Cristo ressuscitado antecipa o destino final da matéria criada: a comunhão das criaturas com o Criador. A matéria explicita um sentido de fundo, para além de seus limites físicos e orgânicos: torna-se uma casa (oikós (oikós)) comum para todos (eco-logia) eco-logia) com uma regra comum para os seres humanos (eco (eco-nomia). -nomia). A páscoa de Jesus é passagem da morte para a vida, rememoram os cristãos a cada ano e em cada eucaristia. O sentido cósmico dessa passagem faz transmutar para a dimensão do eterno as delimitações temporais que demarcam o final físico da terra e do céu, assim como o final da vida. Com efeito, a habitação de Deus nas criaturas alcança sua plenitude com a presença de seu Espírito, dom do Ressuscitado, derramado sobre o mundo. A teologia do Espírito retoma em chave cristológica a tradição judaica que atribui ao Espírito de Deus a origem e manutenção da vida. “Se retiras teu sopro as coisas coisas voltam ao pó. Envias teu sopro, as coisas são criadas e a face da terra se renova” (Sl 104). A era do Espírito significa a presença divina no íntimo da criação, força que vence a morte, advogado que conduz à verdade, união que supera a divisão. A presença do Espírito do Ressuscitado que vivifica a matéria fará sua glorificação final. Explica Paulo: “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, Ele
dará vida também aos vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita habita em vós” (Rm 8,11). O Espírito de Deus é a imanência divina no mundo, dentro da vida e de cada pessoa; seu lugar são todos os lugares, seu templo é cada pessoa, sua ação é a ação das pessoas que o acolhem. A terra está cheia do Espírito, repete a tradição cristã. A cada ser humano está posta a possibilidade de d e acolher o Espírito e assumir sua missão na obra obr a da criação e conduzi-la em sua liberdade para a libertação. O encontro entre as visões científica e teológica sobre a vida nos permite afirmar uma convergência espiritual, ou seja, espírito e matéria caminham para uma aliança definitiva que supera todos os dualismos religiosos ou racionais. A história da vida mostra uma evolução da matéria do determinismo para a autonomia, da imanência fechada para a transcendência sempre mais elevada que no ser humano se plenifica como liberdade, consciência e ação. A teologia da criação narra a história do Deus que vem em direção da matéria; torna-se criatura, imanentiza-se em seu Espírito e materializa-se como pão para ser comido pelos homens. A transcendência da matéria encontra-se com a imanência divina, abrindo a vida para a sua plenitude. Desde esse ponto de encontro, o ser humano se lança na aventura da liberdade como gestor da vida, dom maior do Criador.
5. Escatologia e ética Do ponto de vista da fé cristã, a vida em todas as suas dimensões é transparência do que há de vir em seu encontro com o Criador. Aquilo que a vida será já está inaugurado com a imanência de Deus em Jesus Cristo e na transcendência da matéria com a Ressurreição e envio de seu Espírito. O fim da história e o destino da matéria já estão revelados e cabe ao ser humano acolher o Espírito de liberdade e agir em prol da vida. Portanto, o fim da história conhecido pela fé possibilita a construção dos meios para que a vida seja mais plena. A comunhão das criaturas com Deus já não se apresenta somente como futuro, mas como realidade atual que exige atitudes coerentes e projetos concretos. Esse é o sentido original e profundo da comunidade de fé, a Igreja: ser a semente da comunhão entre os povos a serviço da vida. A ética cristã tem esse fundamento escatológico: os meios históricos de realização da vida são direcionados por um fim e para um fim que é a comunhão de toda a criação com o Criador. Tudo o que ferir essa comunhão ou colocar a vida em risco deve ser objeto de negação dos que acreditam no Deus criador que veio fundir-se com a criação e atraí-la para si. O mundo não está à deriva no tempo demarcado de sua existência cósmica e nem cada pessoa em seu ciclo nascimento-morte. A vida precária é vida eterna, o tempo contingente transita para o eschaton, eschaton, o tempo absoluto, a corrupção fatal é glorificação. A vida torna-se, desse modo, um valor absoluto que deve ser defendido e preservado em sua totalidade. O universo da fé acima descrito não nega a ciência, nem provoca ações paralelas àquelas políticas em prol da vida. Ao contrário, a vida eterna é a própria vida material redimensionada pela fé, e a espiritualidade não constitui um mundo superior ou posterior a esse presente que vivemos, mas eclode de dentro dele como princípio capaz de orientá-lo orientá -lo para etapas mais elaboradas de convivência entre os seres vivos e de modo determinante entre os seres livres, transitivos e ativos que somos nós humanos.
a ) A vida como valor
Portanto, o futuro que liberta a matéria de toda prisão em si mesma, ou de sua inerente aniquilação (a inevitável volta ao pó), já adveio no tempo de sua duração como afirmação de seu destino. Da esfera da vida emerge de “baixo para cima” (a tr anscendência anscendência progressiva da matéria) e “de cima para baixo” (a imanência de Deus) o seu significado profundo. A vida revela-se como sagrada, como nó que amarra a totalidade de sentido do universo, seu antes e seu depois, sua precariedade e sua eternidade como mistério único da criatura relacionada ao Criador. A vida é a expressão de uma bondade criadora que deve ser conduzida com cuidado por seu co-criador, o ser humano. Portanto, o sistema vivo, em chave teológica, a criação, pronunciada como Boa, pelo Criador Cri ador torna-se a referência para todas as ações humanas e para as ações de todos os homens. De fato, o valor da vida constitui o que se pode pensar de mais comum, universal e fundamental para todos. Seu fundamento ecológico agrega de modo inter-relacionado todos os seres vivos, em comunhão de origem, de sustentação e de destino. Qualquer outro imperativo parece particularizar-se perante essa grandeza fundante, inclusive os imperativos jurídicos divinos, instituídos pelas religiões ou aquele construído unicamente sobre o ser humano como valor em si mesmo, como no caso da ética moderna. Aquém e além da vida não se poderá fundamentar nenhum valor que se queira de fato universal, uma vez que é somente a partir de seu significado profundo que inclui seu antes e seu depois e, portanto, a sua negação, que se pode projetar um significado amplo o suficiente para situar todos os demais significados, a começar o significado da existência humana. Fora do sistema vivo todo antropocentrismo se mostra parcial, frágil, senão arbitrário. O inegável valor do ser humano é referenciado pela vida que lhe produziu como sua própria autonomia e consciência e, por conseguinte, como seu protagonista responsável. Sob este dado material-espiritual e científico-teológico submetem-se todas as finalidades e todos os meios que o ser humano venha a criar na condução da história. Também, em torno da vida, as tradições religiosas construíram suas regras fundamentais, ainda que essas apareçam em formulações de caráter antropocêntrico. O ser humano, alteridade concreta, com suas necessidades vitais e seus desejos reais, torna-se o parâmetro de ação. A norma universal que coloca o sujeito como centro de discernimento do bem e do mal chama certamente o sujeito para a ausculta de suas necessidades e desejos mais fundamentais — fundamentais — a sobrevivência e as necessidades biológicas e, decorrentes dessas, a dor e o prazer, a carência e a posse, a satisfação e o desejo — desejo — como como algo universal próprio da espécie viva e que se eleva, por conseguinte, como direito de todos. As regras de ouro das éticas religiosas instituídas a partir da relação intersubjetiva equiparam os sujeitos em dignidade e direito de viver. É também nesse horizonte que o não matar torna-se uma regra comum das grandes tradições religiosas, assim como a impostação da justiça como meta a ser construída pelas ações humanas. De fato, o instinto mais fundamental do ser humano e de todas as espécies que é o viver pelo viver se mostra como a continuidade da vida, antes e depois de qualquer norma ou lei que se possa instituir sobre os comportamentos humanos. Nesse ponto, a mais elementar materialidade coincide com a mais radical teologia e rezam juntas a lei maior: escolher a vida e evitar a morte. morte. As narrativas e promessas escatológicas de todas as tradições religiosas oferecem a vitória da vida sobre a morte. Certamente, se a morte não fosse inserida em um horizonte de aniquilamento, ainda que num futuro porvir, ela imporia sua legitimidade sobre a vida, como relatividade da vida e, portanto, como possibilidade de aniquilamento da vida por parte do mais forte. O valor da
vida nega a morte como regra, mata a morte em cada gesto de preservação da vida, seja do ponto de vista material, seja do ponto de vista simbólico. O matar a fome e fome e o matar o desejo permitem desejo permitem à vida continuar existindo na força da sobrevivência e da reprodução. Também, negar a vitória da morte sobre a vida abre a história da matéria viva para a sua continuidade, para além dos limites de seu início e de seu fim. O futuro bom que há de vir abre a história para a busca incessante de seu ser-mais.
b ) A ética da vida Portanto, de dentro da teologia da vida emerge a ética da vida. A leitura do surgimento da vida em termos diacrônicos, de seus limites físicos e metafísicos e de sua originalidade que provoca assombro foi posta em diálogo com a fé no Criador C riador que sai de si e cria por gratuidade e, mais, vem habitar e na criação e se faz criatura. Ademais, a visão escatológica da história que abre o hoje para o futuro possibilita uma nova articulação entre os meios históricos e o fim em termos propriamente éticos. A criação por amor exige um parceiro na criação, uma alteridade incluída como co-responsável no plano do Criador. Estamos diante de um programa ético, de um projeto que exige discernimento, decisão e ação por parte do parceiro amoroso. O lado antropológico da teologia da criação é o ser humano livre e responsável. O sujeito que crê tem uma tarefa em relação ao mundo concreto e, portanto, em relação a tudo que ele contém. Cuidar da vida como parceiro do Criador é sua grande tarefa, tão material quanto espiritual, tão sagrada quanto profana. A terra, casa de todos os seres vivos, transcende as casas religiosas de cada credo e apresenta-se como missão para todos os que acolhem o Espírito de vida doado pelo Ressuscitado. A morte há de ser enfrentada com a vida. Eis a obrigação dos que acolhem o Espírito de vida e que no instante da ação concreta agrega as diferenças na busca do bem comum de todos. Vimos que a visão da criação como um sistema aberto vê o ato criacional de Deus não como um início anterior à história humana, mas como um ato que inclui o seu início, a história e sua consumação. consumação.59 A visão de criação como sistema fechado gera uma concepção de história como algo acabado pós-criacional lançado ao domínio do homem imagem e semelhança de Deus e com a missão de dominá-la. A modernidade concretizou essa teologia em termos econômicos, políticos e tecnológicos, regida por uma racionalidade de domínio do sujeito do sujeito humano sobre o objeto objeto natureza. O resultado foi a destruição da natureza, a submissão do ecológico ao econômico. A inserção do ser humano em um processo criacional em curso na história presente e com responsabilidade sobre o futuro instaura uma racionalidade biocêntrica que supera o logos dominador, aliando a razão ao afeto, o uso da natureza ao cuidado, o conhecimento à escuta. Além do mais, a vitória da vida sobre a morte mostra-se como dado escatológico a ser traduzido em ações históricas; em outros termos, o conhecimento dos fins possibilita a escolha dos meios, a fé e a esperança no futuro pedem ações concretas. Assim, a ética coloca-se como caminho histórico de realização da criação na direção da nova criação, da comunhão plena de todas as criaturas com o Criador. Essa conversão ética fundamental resgata a vida como grande valor. A ética da vida é uma ética da comunhão. O ser humano continua sendo o principal sujeito da Terra, aquele que tem condição de conduzi-la à destruição final ou a salvação final. A construção da justiça universal passa pela conversão da vontade de poder do ser humano em vontade de solidariedade. O ser
humano é o produto final da matéria que pode conhecer e cuidar da vida, sem sacrificar a razão em nome da intocabilidade da vida e sem sacrificar a vida em nome da razão ilimitada. A vida tem um nome concreto em nossos dias: a Terra. É dela que a vida emergiu, é nela que ela existe e é a partir dela que sua sorte futura está lançada. O amor à Terra como valor fundamental é a base real da ética da vida e, por conseguinte, da autêntica fé na criação. Desse valor supremo, explica Leonardo Boff, advêm dois princípios fundamentais: a solidariedade planetária e o contrato generacional. generacional.60 O primeiro decorre da própria natureza da vida, hoje explicada pelas ciências como um sistema integrado de todos os seres, incluindo os próprios seres inorgânicos. Nesse sistema, os seres se completam em grande rede de retroalimentação em que o morrer e o viver fazem parte do mesmo processo de autopreservação. A interdependência de todos os seres, além de regra orgânica, ou por isso mesmo, deve ser regra ética. É quando a solidariedade cósmica confere direitos a todos os seres de ter o seu lugar na Terra e de participar da vida plenamente, vivendo e morrendo. A afirmação da justiça social é parte integrante e central na ética da vida. Sendo o ser humano aquele que deve cuidar da criação, se a vida lhe for negada ele não poderá cuidar da vida dos outros. A destruição da vida humana leva à destruição da vida da Terra. O ser humano é fonte de construtividade ou de destrutividade no meio em que reside e atua. A solidariedade planetária não se faz como ingenuidade ambiental que ignora a centralidade do ser humano na natureza com todas as suas capacidades de compreensão e domínio e nem como uma espiritualidade cósmica sem mediação política. Ao contrário ela efetiva-se na mudança de postura nas consciências, bem como na transformação dos modelos econômicos atuais estruturados sobre a acumulação. Com efeito, da solidariedade com a Terra decorre o segundo princípio, ainda mais radical que solicita empenho em relação ao futuro. A dedicação ao futuro das gerações que hão de vir se torna fundamental e eticamente instigante. O futuro exige dedicação gratuita, algo semelhante à paternidade que deposita no filho empenho e cuidado sem esperar retorno. É apostar na vida como valor perene que vai além dos interesses atuais de manter a sustentabilidade da Terra, talvez para evitar catástrofes e sofrimentos. A perpetuação da vida depende das decisões atuais, para além de todos os interesses imediatos de ordem or dem pessoal ou coletiva.
Na incondicionalidade do valor da vida encontram-se os pragmáticos e os crentes. Aqueles, por preservarem a Terra Terr a em nome da sobrevivência, ainda que motivados pelo instinto de vida ou pelo interesse de não sofrer. Esses, por acreditarem que a vida é um dom do Criador e que, na condição de criaturas, são por ela responsáveis. Nesse sentido, a convergência ética em torno da vida se torna possível. A afirmação de fé de que a vida deve vencer a morte pode morte pode tornar-se um projeto ético que envolva indistintamente todos os sujeitos de boa vontade política, em nome da própria vida. Em nome desse valor maior, encontrar-se-ão encontrar -se-ão em projetos e estratégias concretas concr etas os crentes e os não crentes. O cuidado com a vida em todas as suas dimensões e manifestações, significará, certamente, encantamento e respeito pelo sistema vivo, administração responsável de suas dádivas e educação das futuras gerações.
Esperar e cuidar
Dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos os homens têm a mesma natureza e a mesma origem; redimidos por Cristo, todos gozam da mesma vocação e destinação divina: deve-se portanto reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos. Na verdade nem todos os homens se equiparam na capacidade física, que é variada, e nas forças intelectuais e morais, que são diversas. Contudo qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja ela social ou cultural, ou funde-se no sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião deve ser superada ou eliminada, porque contrária ao plano de Deus. É de se lamentar realmente que aqueles direitos fundamentais da pessoa não sejam ainda garantidos por toda a parte. parte.1 A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva, com uma comunidade de vida única. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável, com todos os seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global, com seus recursos finitos, é uma preocupação comum de todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado. sagrado.2 A globalização está ainda buscando sua expressão institucional. Ela será seguramente ecocêntrica. Colocará no centro não este ou aquele país ou bloco geopolítico e econômico, esta ou aquela cultura, mas a Terra, entendida como um macrossistema orgânico, um superorganismo vivo, Gaia, ao qual todas as instituições devem servir e estar subordinadas. A esse centro pertence a humanidade, composta por filhos e filhas da Terra, humanidade entendida como a própria Terra que alcançou o estágio de sentimento, de pensamento reflexo, de responsabilidade e de amorização […]. A partir destas imbricações, nos damos conta de que tudo depende da salvaguarda da Terra e da manutenção das condições de sua vida e reprodução. Nenhum outro projeto tem sentido, pois lhe falta a pré-condição fundamental, exatamente a sobrevivência da Terra e dos filhos e filhas da Terra […]. A demanda agora é por um éthos que éthos que seja adequado adequado ao novo patamar da história, que é global e planetário. […] Importa projetarmos um éthos éthos que seja, realmente, expressão da globalização e da planetarização da experiência humana, assentado sobre uma nova sensibilidade, o páthos, páthos, 3 estruturador de uma nova plataforma civilizatória. civilizatória. Spes, n. 29. CONCÍLIO VATICANO II, Gaudim et Spes, Carta da Terra. 3 BOFF , Ethos mundial , pp. 24-25. 1 2
Considerações finais A teologia fala o idioma comum do conhecimento, embora, relegada ao interior das Igrejas, tenha se tornado, em muitos casos, um idioma estranho ao mundo acadêmico. Salvas as exceções, as universidades atuais ainda não incorporaram no rol de seus conhecimentos produzidos e transmitidos a abordagem teológica. Como verificamos, os tempos modernos mode rnos a fez estranha a seus propósitos e valores culturais, científicos e econômicos. Certamente, o idioma teológico apresenta peculiaridades incomuns em relação àquelas usuais no mundo universitário e na sociedade de um modo geral, ainda que possamos perceber teologias subsistentes nas convicções pessoais e nos significados culturais atuais, com maior vigor que se possa imaginar. Também é verdade que as ciências diversas edificam suas metodologias sobre certos pressupostos carregados de fé, embora não incluam esses pressupostos na regras e no exercício de seus métodos. No entanto, estamos diante de um idioma com regras comuns a outros que se designam conhecimento, o que se verifica não somente por sua história milenar, mas também em seus métodos e múltiplos paradigmas constituídos até o momento. E não somente a ignorância histórica pode desconhecer tais regras. Com igual força, certos dogmas consolidados nos tempos modernos reduzem qualquer assunto relacionado à fé ao interior das confissões religiosas, de forma a negar-lhe, a priori, priori, legitimidade científica. Nesse sentido, a legitimidade da teologia passa mais pelo político que pelo acadêmico, como, de fato, têm demonstrado as normas e a práxis dos d os órgãos do Ministério da Educação no referente refer ente aos bacharelados de teologia. De fato, a teologia foi legalizada como curso superior em nome da liberdade de as instituições organizarem seus cursos e não em nome de sua consistência teórica e metodológica, e foi diferenciada dos demais conhecimentos como coisa de Igreja que não deve sofrer interferência do Estado. O presente roteiro de estudos quis trilhar um caminho de diálogo com o mundo universitário, marcado pela pluralidade de paradigmas e, ao mesmo tempo, pela apologia do saber legítimo, ou seja, dos métodos e das teorias capazes de expor seus objetos e de elucidar, portanto, a realidade. Em termos profundos, como caminho da teologia, busca a verdade das coisas. As ciências possuem naturalmente suas verdades e cada qual q ual se destina a essa finalidade última, não só como um conjunto de regras específicas que visam a certos resultados corretos e mais ou menos seguros, mas também como horizonte que transcende o imediato e se projeta como meta permanente, como sentido s entido global das coisas e como co mo destino último do ser humano e do d o mundo. mund o. Estamos diante da verdade que extrapola todos os domínios e explicações teóricas e convida para a investigação constante e para a consciência dos limites de todos os paradigmas teóricos e metodológicos. Nesse horizonte horizo nte amplo, os conhecimentos podem encontrar-se encontra r-se como conquista e como limite e completarem-se no diálogo. É quando, do ponto de vista epistemológico, toda diversidade se abre para a unidade e toda unidade se mostra na diversidade. Já não se trata de uma unidade que seja um ponto de contato superior ou definitivo, mas de um processo sistêmico que busca nas partes diversas o todo, assim como no todo a diversidade das partes. De fato, se na baixa Idade Média a teologia apresentou-se como regente mor de um sistema que obtinha sua unidade na própria verdade de Deus, donde se podia edificar uma necessária complementaridade de
abordagens, hoje ela se apresenta como instigamento para a busca de horizontes mais amplos capazes de inserir em uma mesma compreensão o ser humano e suas múltiplas dimensões. Nesse sentido, a tão almejada busca de conhecimento do todo, mediante a prática interdisciplinar e, sobretudo, transdisciplinar, abre para a teologia um novo território que pode permitir a inclusão no âmbito da razão aquelas dimensões negadas pelas ciências modernas, em nome da empiricidade do conhecimento. Contudo, dos sólidos limites empíricos, a razão clama hoje pela interação de outras formas de saber aptas a desvelar o ser humano em suas múltiplas dimensões e a resgatar formas de considerar a realidade em sua totalidade. Não se trata de reeditar a metafísica na sua acepção e estrutura clássicas, mas de abrir-se para além dos limites empíricos impostos aos objetos de conhecimento e considerar o sentido profundo e amplo da vida em suas dimensões material e espiritual. Não parece ser outra coisa a ousadia do pensar a partir de Deus. Deus. A unidade de visão teológica como conhecimento a partir de agrega de agrega em sua formalidade a diversidade inerente ao real, busca nos dados revelados o olhar hermenêutico que não dispensa as ciências com seus olhares específicos, mas, ao contrário, as inclui como forma de desvelar a natureza particular das coisas. Com efeito, a compreensão do mundo a partir de Deus inclui a verdade da fé e da razão como modos de ver a única realidade e de buscar a única verdade, quando então a diversidade empírica e a unidade transcendente se confluem na busca de uma mesma “síntese superior”, como expressou o Papa João Paulo II ao tratar da identidade da universidade católica. católica.61 A teologia apresenta-se, assim, como uma compreensão da realidade que supera, por um lado, a profissão de fé individualizada e em última instância incomunicável e, por outro lado, as representações mítico-religiosas objetivadas nos tecidos culturais tradicionais. É a expressão racional da institucionalização da cultura ocidental que vai situar toda individualidade em uma sociedade objetivamente instituída, que codifica os dados da fé em cânones sagrados — os textos, as doutrinas e os dogmas — dogmas — e e codifica a razão em regras lógicas: os métodos, as teorias e os sistemas. É nesse âmbito objetivo que a teologia pode reivindicar sua legitimidade como um modo de conhecer a realidade e se submete ao teste do rigor teórico e metodológico no âmbito da universidade, o que a credencia como conhecimento público igual aos demais, para além de suas fontes estritamente confessionais. O conhecer a partir da fé fé não constitui, desse modo, uma forma inferior de conhecimento, mas apenas um conhecimento específico que inclui em suas regras metodológicas os seus pressupostos de fé. No âmbito da universidade, a teologia pode ensinar a crer e a duvidar. Talvez seja essa sua missão precípua, ainda que não exclusiva. Ainda que as ciências de um modo geral nos ensinem a crer em algo e a duvidar de algo, de sua parte, a teologia oferece proposições valorativas para a práxis do conhecimento que permitem afirmar o significado profundo das coisas investigadas pela razão: r azão: de onde vêm e para onde se direcionam. O princípio p rincípio e o fim da atividade científica, ainda que dispensáveis metodologicamente, se põem como dados que fazem parte da mesma atividade, historicamente situada e pessoalmente comprometida. Essa leitura ética da atividade científica nos ensina a crer com a razão, sabendo que a neutralidade não se sustenta e que a mesma razão que investiga sem pensar no interior de seu ato em valores necessita de direção. Por outro lado, a fé pode ensinar a duvidar dos rumos da razão em nome da precariedade da história e dos próprios conhecimentos. A fé, ao afirmar que a verdade coincide com o próprio Deus, introduz um princípio escatológico nas buscas da razão, afirmando que a relatividade dos
paradigmas cognitivos constitui não somente registros dos limites do conhecimento, mas também o significado profundo da própria história sempre provisória; diz da condição criatural do ser humano inserido na longa escala da vida e medida de todas as coisas, em termos racionais e éticos; diz ainda que na condição de criatura o ser humano jamais será Deus e, na radical igualdade com os semelhantes, tem a missão de construir a civilização da justiça, em termos sociais e ecológicos. Ensinar a nossa condição criatural parece ser desde sempre a missão central da teologia. Entre a visão religiosa que afirma a divindade do mundo e a decadência humana ou ainda a visão ateia que nega o sentido transcendente das coisas, a teologia busca a justa posição do ser humano no mundo. É quando o teocentrismo encontra-se com o antropocentrismo sem antagonismos e permite ao ser humano encontrar-se consigo mesmo e com os outros em uma determinada posição na história: com autonomia e responsabilidade. A afirmação da condição criatural significa, então, um modo de compreender a realidade, uma forma de conhecimento da totalidade do real que distingue as dimensões transcendentes e imanentes, que afirma um significado para o ser humano e para o mundo, bem como um destino para ambos. Não se trata de uma gnose que se mostra por si mesma redentora na medida em que sua verdade for conhecida, mas da Revelação de uma condição que exige de cada pessoa posicionamento e decisão. Assumir-se como criatura é assumir uma missão no mundo que implica renegar todas as formas de deificação e absolutismos e, portanto, todas as formas de idolatria. Portanto, a distinção fundamental entre Deus o ser humano e o mundo compõe uma estrutura elementar para o conhecimento e para a ética. Não se trata tão somente de uma cosmovisão com decorrências dogmáticas, rituais e disciplinares para as tradições religiosas monoteístas, mas de um modo de interpretar a realidade e atuar sobre ela. A fé em Deus adquire, nesses termos, significado gnosiológico e político que pode interessar não somente ao fiel explícito, mas também a todos aqueles que buscam a verdade e querem pautar sua ação a partir dela. Conhecer as coisas a partir de Deus pode ser um modo coerente e convincente de entender o sentido daquilo que as ciências não podem entender, por limite de objeto e por especificidade metodológica. A autonomia das ciências em relação à fé não constitui, portanto, uma concessão da fé às evidências das ciências, assim como o reconhecimento da esfera da fé não poderá ser uma rendição das ciências mediante o inexplicável ou o insolucionável. Os objetos de fé e de ciências não se opõem e não se diferenciam como coisas distintas por natureza, mas como uma mesma realidade interpretada por distintos ângulos, a depender das intencionalidades, dos pressupostos e das finalidades do sujeito que busca entender. Nesse sentido, o idioma teológico pode falar de novo sobre s obre os objetos dos do s quais ocupam as ciências, assim as sim como as ciências podem ocupar-se das questões interpretadas pela fé. Os resultados diferenciados dessas leituras não são idênticos e nem pretendem convergir conceitualmente para que possam se apresentar como legítimos. A teologia assume para além das posturas conciliaristas, o propósito de construir pontes entre esses olhares distintos, expondo suas especificidades, suas convergências e suas complementaridades. A condição criatural do ser humano conduz à consciência da contingência humana. As buscas humanas carregam o drama do dinamismo da transcendência, que, por um lado, lança o ser humano para além de seus limites na busca de complemento e felicidade e, por outro, exige o limite do desejo que move essa ação, desejo jamais satisfeito plenamente. Não basta, portanto, desejar, é preciso saber do limite do desejo. Saber-se contingente implica igualmente saber-se
limitado nas afirmações e nas construções históricas. As ações humanas não produzirão o acabamento da história em termos sociais e políticos. A fé permite o exercício da crítica utópica permanente das construções humanas, de forma a evitar as absolutizações de modelos que terminam por estagnar as buscas dos horizontes mais amplos e das experiências mais profundas. Em travessia permanente, a criatura avança para o Criador como horizonte final que faz da história uma construção sempre provisória. Nenhuma instituição histórica esgota o sentido último do ser humano e da vida, em nome de qualquer verdade científica, política ou religiosa. A teologia presta um serviço ao ser humano ao justificar sua justa posição no mundo na condição de criatura. Nesse sentido, critica as cristalizações da razão e da fé que inibem as possibilidades de o ser humano ser mais e buscar a vida plena. Sabedora dos limites dos conhecimentos, a teologia nega todas as formas de dogmatismo que possam deificar os saberes, assim como os relativismos que negam a possibilidade de se falar de uma verdade que possa orientar a ação humana na história. A ciência está creditada no âmbito da fé como caminho necessário de busca da verdade, sem o que nenhuma formulação sobre o sentido da vida teria comunicabilidade suficiente e nem mesmo consistência, em termos racionais. A afirmação da possibilidade de conhecer o mundo imanente e imediato e o mundo transcendente, pelas vias da razão e da fé, demarca a estrutura mais fundamental do encontro resultado da tradição judaico-cristã com a razão grega. O ser humano não está à deriva na busca da objetividade das coisas, assim como do sentido radical a elas subjacente. Na comunidade científica, a teologia constrói pontes e não territórios. Busca a ligação entre os conhecimentos a cada horizonte que se desponta inédito com as novas descobertas; tem a missão de ligar as diversidades epistemológicas sem unificá-las, de falar de novo sobre o já falado sem repetir e de zelar pela busca permanente da verdade. A universidade institui as muitas verdades sobre as coisas a partir dos resultados das ciências e, concomitantemente, dos métodos que essas fornecem aos futuros profissionais como caminho razoável e seguro de domínio intelectual e tecnológico sobre determinados aspectos da realidade. A teologia pode contribuir com a explicitação das verdades particulares relacionadas a cada objeto e ciência, assim como seu sentido derradeiro. Por outro lado, pode receber das ciências os modos de se achegar ao interior de seus objetos e tornar-se mais precisa em suas abordagens, na medida em que amplia o conhecimento sobre a natureza e a dinâmica sobre a particularidade das coisas. A ideia de complementaridade dos conhecimentos se aplica à teologia, assim como às demais ciências no âmbito da comunidade científico-acadêmica. Nesse contexto, a teologia renova-se em seus objetos, em seus métodos e na própria compreensão de suas fontes. É quando podemos falar em ciência teológica, sem superioridade ou inferioridade em relação às demais ciências. De sua parte, a teologia ocupa-se da própria ciência sem idealizações sapienciais que venham elevar ingenuamente a razão humana como capaz de conhecer a verdade e sem condenações apocalípticas que condenem a mesma como provocadora da perdição geral. A ciência é um ato de capacidade, liberdade e responsabilidade humana. A razão é um projeto ético que pode produzir o bem ou mal para a humanidade. A racionalidade teológica, em nome de sua fonte última que promete salvação e felicidade para todas as criaturas, afirma que as ciências são meios e não fins em si mesmas; alcançam as explicações sobre seus objetos particulares, jamais a verdade definitiva e total.
Glossário Antropomorfismo: Literalmente “forma humana”. humana”. Refere-se à atribuição de qualidades humanas a objetos ou seres não humanos como plantas, animais ou mesmo Deus. Axis mundi: Tradução literal “eixo do mundo”. Designa o processo de sacralização do espaço a partir do religioso, quando um determinado ponto é adotado como centro estruturador do entorno a partir de alguma entidade ou de um lugar teofânico. Concílio: Reunião Concílio: Reunião de bispos que tem como objetivo deliberar sobre questões eclesiais. Concupiscência: Concupiscência: Inclinação desordenada para os bens materiais. Na teologia clássica refere-se à tendência humana para os bens materiais adquirida após a ruptura do homem com Deus. Confessional: Confessional: Que professa fé. Termo usado para designar uma identidade religiosa expressa publicamente. Deísmo: Deísmo: Sistema que adota uma visão racional de Deus, porém sem fundamentos em nenhum tipo de revelação aderida pela fé. Endógeno: O que é originado no interior de um mesmo sistema. “Exógeno”, o que é originado de outro sistema. Epistemologia: Ciência Epistemologia: Ciência que estuda as ciências, investigando as possibilidades e os limites de seus objetos, métodos e resultados. Escatologia: Escatologia: Estudo teológico sobre o fim último das coisas, nomeadamente sobre a morte, e o pós-morte de cada pessoa, bem como sobre o destino final do conjunto da criação. Escolástica: Escolástica: Refere-se à filosofia-teologia ensinada nas escolas escolas medievais a partir do século IX. Passou a designar o sistema teórico, metodológico e curricular desenvolvido nas Universidades do século XIII, que tem como eixo central a relação entre fé e razão. Estoicismo/estoicos: Estoicismo/estoicos: Corrente filosófica grega fundada por Zenão de Cício caracterizada sobretudo pela questão moral, sendo a ataraxia o ideal a ser alcançado pelo sábio perante os sofrimentos. Gnose: Gnose: Etimologicamente significa conhecimento. A gnose designa propriamente conhecimento religioso de um modo geral, podendo conotar os grupos gnósticos ou (gnósticos ou gnosticismo) gnosticismo) presentes nos primeiros séculos do Cristianismo que postulavam a salvação pela via do conhecimento religioso. Gnoseologia/gnosiologia: Gnoseologia/gnosiologia: Termo clássico empregado para designar a teoria do conhecimento que muitas vezes é utilizado como sinônimo de epistemologia. In illo tempore: Literalmente “naquele tempo”. Expressão técnica da fenomenologia da religião para designar o tempo das origens da ação primordial dos deuses e que fornece o fundamento transcendente dos sistemas mítico-religiosos. Logos: Termo grego que literalmente quer dizer “ palavra”. No sentido filosófico diz respeito à capacidade de pensar conscientemente sobre uma determinada coisa. Magia: Palavra Magia: Palavra de origem persa, magis, magis, que significa “sábio”. A magia caracteriza-se caracteriza-se pela prática que visa manipular o curso da natureza e da história, tendo em vista a
obtenção de algum benefício. Diferentemente da prática racional, que pretende expor as causas para depois manipulá-la, como no caso da tecnologia, a magia se afirma como ritual, gesto ou postura que por si mesmos produzem algum efeito sem revelar a causa. Maniqueísmo: Maniqueísmo: Religião fundada por Mani no século III visando resgatar o antigo zoroastrismo. Sua doutrina básica é o dualismo entre a matéria e o espírito, o bem o mal. Metafísica: Tradição Metafísica: Tradição filosófica que remonta à obra aristotélica (o livro que vinha depois do livro sobre a física) e que ganha na Idade Média a conotação epistemológica de estudo das questões o que está além da física: a causa, a substância, o ser e Deus. Com a tradição escolástica torna-se um sistema de pensamento que inclui o estudo do ser (ontologia), do mundo (cosmologia), da alma (psicologia racional) e de Deus (teologia racional). Mito: Mito: Cosmovisão estruturada na linguagem simbólica que descreve a origem, o funcionamento e o fim da realidade a partir de fatos primordiais e personagens sobrenaturais, mostrando-se em narrativas, personagens, mediações e ações diferenciadas em cada cultura. Neotomismo: Neotomismo: Corrente filosófica e teológica que retoma o pensamento de Tomás de Aquino a partir do século XVIII e recebe a oficialização por parte do Papa Leão XIII com a Encíclica Aeterni Encíclica Aeterni Patris em Patris em 1879. Paideia: Expressão Paideia: Expressão adotada pelo filósofo alemão Werner Jaeger para designar o projeto de formação do ser humano na sociedade da Grécia antiga. Etimologicamente refere-se a educação. Patrística: Patrística: Designa a teologia e a filosofia elaboradas pelos primeiros pensadores da Igreja, considerados os pais (Padres) do pensamento cristão circunscrito do período que vai da conclusão dos escritos neotestamentários a Santo Agostinho. Paradigma: Modelo, Paradigma: Modelo, padrão. Na epistemologia designa os modelos teórico-metodológicos formulados pelas ciências para explicar a realidade em questão. Platonismo/neoplatonismo: Referente ao pensamento de Platão, sendo que o Platonismo/neoplatonismo: Neoplatonismo designa a retomada do pensamento pensament o de Platão P latão feita por Plotino (204270 a.C.) e que vai exercer influência nas teologias judaica e cristã, de modo especial em Alexandria. Sensus fidei: Literalmente “senso de fé”. Designa a fé comum professada professada pelos cristãos que expressa objetivamente a verdade da fé. Símbolo: Do Símbolo: Do grego, simballo grego, simballo,, significa “aquilo que une”. O símbolo é aquilo que remete para um significado que está para além de sua realidade r ealidade imediata. Soteriologia: Disciplina Soteriologia: Disciplina teológica que tem como objeto a temática da salvação. Trinitário: Referente Trinitário: Referente às três pessoas divinas (Pai, Filho e Espírito Santo) da tradição cristã.
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Notas TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica, teológica, Q I, Art. 3. Ecclesiae, n. 17. Cf. JOÃO PAULO II, Constituição Apostólica Ex Apostólica Ex Corde Ecclesiae, 3 Cf. JOÃO PAULO II, Encíclica Fides Encíclica Fides et Ratio, Ratio, n. 83. 4 Cf. GIDDENS, As GIDDENS, As consequências da modernidade, modernidade, pp. 83-114. 5 Cf. FREIRE, Pedagogia FREIRE, Pedagogia da autonomia, autonomia, passim. 6 Cf. SEVERINO, Metodologia SEVERINO, Metodologia do trabalho científico, científico, pp. 31-32. 7 Cf. JAEGER, Cristianismo primitivo y paideia griega, passim. griega, passim. 8 Cf. ASZTALOS, A faculdade de teologia. In: RIDDER-SYMOENS (org.), Uma história da universidade na Europa, Europa, v. 1, pp. 412-413. 412-413. 9 Cf. ULLMANN, A ULLMANN, A universidade medieval , pp. 99-105. 10 LIPOVETSKY, A LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal , pp. 151ss. 11 TARNAS, A TARNAS, A epopeia do pensamento ocidental , p. 305. 12 Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Gaudium et Spes, Spes, n. 62. 13 Cf. JONAS, O princípio responsabilidade, responsabilidade, pp. 71-72. 14 Cf. KÜNG, Projeto KÜNG, Projeto de ética mundial , passim. 15 HAIGHT, Dinâmica HAIGHT, Dinâmica da teologia, teologia, pp. 147-187. 16 Cf. BERGER, O dossel sagrado, sagrado, pp. 15-41. 17 mente, pp. 264ss. Cf. MITHEN, A MITHEN, A pré-história da mente, 18 Ibid., pp. 264-268. 19 Cf. ELIADE, Mito ELIADE, Mito e realidade, realidade, pp. 7-23. 20 Cf. ARMSTRONG, A ARMSTRONG, A grande transformação, transformação, passim. 21 Cf. Sobretudo as pp. 37-38. 22 Ibid., p. 524. 23 modernidade, pp. 83-113. Cf. GIDDENS, As GIDDENS, As consequências da modernidade, 24 Cf. TILLICH, Dinâmica TILLICH, Dinâmica da fé, fé, pp. 68-72. 25 Cf. CROATTO, As CROATTO, As linguagens da experiência religiosa, religiosa, pp. 46-47. 26 CABANAS, Las CABANAS, Las creencias y la educación, educación, pp. 24-26. 27 Cf. WEBER, A WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, capitalismo, Introdução. 28 Cf. WEBER, Economía WEBER, Economía y sociedad , pp. 173-200. 29 Cf. VILANOVA, Historia VILANOVA, Historia de la teología cristiana, cristiana, v. 1, pp. 146-147. 30 griega, passim. Cf. JAEGER, Cristianismo primitivo y paideia griega, 31 Cf. LIMA VAZ, Raízes VAZ, Raízes da modernidade, modernidade, passim. 32 Cf. KUHN, A KUHN, A estrutura das revoluções científicas. científicas. 33 Cf. JAPIASSU, Nem JAPIASSU, Nem tudo é relativo, relativo, passim. 34 Cf. MORIN, Os sete saberes necessários à educação do fu turo, turo , pp. 36-39. 35 consciência , pp. 107-123. Cf. MORIN, Ciência com consciência, 36 Cf. BOFF, Éthos BOFF, Éthos mundial . 37 Cf. ESTRADA, Imagens ESTRADA, Imagens de Deus, Deus, pp. 17-34. 38 Cf. BOFF, O pensar sacramental, pp. 515-541. 39 Cf. JASPERS, La JASPERS, La fe ante la revelación, revelación, passim. 40 Cf. WEBER, Economía WEBER, Economía y sociedad , pp. 20-21. 41 Cf. LIBANIO, Crer e crescer , pp. 19-49. 42 Cf. LÖWY, As LÖWY, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen Münchhausen,, pp. 70-78. 43 Cf. ibid., pp. 22-32. 44 Cf. COMTE, Catecismo positivista. positivista. 45 Cf. JAPIASSU, O mito da neutralidade científica, científica, pp. 83-104. 46 Cf. GESCHÉ, O ser humano, humano, pp. 13-27. 47 Cf. MESTERS, Paraíso MESTERS, Paraíso terrestre, terrestre, passim. 48 Cf. BOFF, O destino do homem e do mundo, mundo , pp. 36-43. 1 2
Cf. FROMM, A FROMM, A arte de amar , passim. Cf. STEIGER, Compreender a história da vida, vida , passim. 51 Cf. LADRIÈRE, A LADRIÈRE, A fé cristã e o destino da razão, razão, pp. 37-56. 52 Cf. MONOD, O acaso e a necessidade. necessidade . 53 Cf. MALDAMÉ, Cristo para o universo, universo, pp. 73-82. 54 Cf. JONAS, O princípio vida, vida, passim. 55 Cf. ibid., pp. 11-48. 56 Cf. GLEISER, O fim da terra e do céu, céu , passim. 57 Cf. MOLTMANN, Ciência e sabedoria, sabedoria, pp. 51-72. 58 Cf. GESCHÉ, O cosmo, cosmo, pp. 41-71. 59 Cf. MOLTMANN, Ciência e sabedoria, sabedoria, pp. 57-75. 60 Cf. BOFF, Ética BOFF, Ética da vida, vida, pp. 120-123. 61 Cf. JOÃO PAULO II, Constituição Apostólica Ex Apostólica Ex Corde Ecclesiae, Ecclesiae, n. 16. 49 50
Autor
é Professor Associado do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP, Professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores. Bacharel pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. Assunção e Mestre em Teologia pelo Pontifício Ateneu Santo Anselmo, Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e Livre-docente em Teologia pela PUC-SP. João
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