MATEUS DE MORAES SERVILHA
O VALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A “DI-VISÃO” PELA POBREZA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO PELA IDENTIFICAÇÃO REGIONAL
NITERÓI/RJ 2012
MATEUS DE MORAES SERVILHA
O VALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A “DI-VISÃO” PELA POBREZA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO PELA IDENTIFICAÇÃO REGIONAL
Tese apresentada ao curso de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental
Pr. Dr. Rogério Haesbaert da Costa - Orientador Universidade Federal Fluminense - UFF
NITERÓI/RJ 2012
MATEUS DE MORAES SERVILHA
O VALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A “DI-VISÃO” PELA POBREZA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO PELA IDENTIFICAÇÃO REGIONAL
Tese apresentada ao curso de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental
Pr. Dr. Rogério Haesbaert da Costa - Orientador Universidade Federal Fluminense - UFF
NITERÓI/RJ 2012
MATEUS DE MORAES SERVILHA
O VALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A “DI-VISÃO” PELA POBREZA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO PELA IDENTIFICAÇÃO REGIONAL Tese apresentada ao curso de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Ordenamento Territorial e Ambiental
NITERÓI/RJ 2010
Este trabalho é dedicado ao músico, cantador, poeta, brincante, educador e amigo Josino Medina, que, com sua “vida-arte”, me incentivou, sempre, a (re)significar, (re)inventar e (re)direcionar meus passos para horizontes maiores.
AGRADECIMENTOS A concretização desta tese de doutorado possui para nós a associação com a realização de um sonho maior. Muitos poderiam imaginar, “sonho de ser doutor...”. Na verdade, o tipo de sonho a que desejo me referir aqui, não segue os lineares caminhos da busca pela esfera do “eu”: minha formação, meu saber, meu trabalho, minhas considerações, minhas conquistas. Agradeço aqui a todos aqueles que estiveram presentes neste trabalho enquanto sujeitos do seu próprio saber, me ensinando os caminhos para a construção de um conhecimento em comunhão. À minha mãe, Maria Teresa Rodrigues de Moraes, que em meio às agruras da vida, me ensina, sempre, acerca de nossa infinita capacidade humana de “dar amor”. Ao meu pai, Valdemar Servilha, “conterrâneo diamantinense”, com amor e alegria por nossas “novas prosas de saber”. Ao querido mestre Ricardo Camargos, a quem este trabalho seria dedicado, não fosse a certeza de que longos anos nos aguardam e esperarei o próximo. À Celina, minha companheira, que me fizeste ressignificar por completo meu retorno às Gerais e, com nosso amor maior, meu sentido “de amanhã”. Aos meus irmãos Marina, Pablo e Flora, Flo ra, exemplos para mim. Ao meu querido que rido tio Maurício, que, de forma tão natural, formou-me nos meandros dos vôos libertário-artísticos e dos limites dos sonhos sensíveis. À turma amada de Pira. À meus sobrinhos, Tiago e André, que me fazem crer, com bagunças matinais (e belas gargalhadas), na certeza da alegria dos futuros horizontes. Ao professor Rogério Haesbaert, ser humano de tão rara existência, pela orientação, paciência, ensinamentos, cumplicidade, dedicação, amizade, responsabilidade e apoio durante minha vida acadêmica e, em especial, na realização deste trabalho. Aos amigos do NUREG, com quem tanto aprendi acerca da arte do “estudar-refletir-debaterrefletir-conhecer”. Aos professores Ivaldo Lima, Jorge Luiz Barbosa e Valter Cruz pelas indispensáveis contribuições para a realização deste trabalho. À irmã Isabella e ao irmão Heitor (e suas lindas e queridas famílias) que conseguiram transformar minha vida carioca no aconchego de sempre. Aos companheiros de “lar” nesses tempos de doutorado, Wesley, Pedro, Carolzinha e Linda, pelo carinho e paciência. Às amizades construídas para a vida ao longo do doutorado, em especial, os irmãos Emerson e Agripino. À turma geográfica do Rio, em especial Manu, Débora, Quental, Dani, Valerya, Leandro, Alanda, Marola e Lya. Aos estudantes da UERJ-FFP e UFVJM, que tanto me ensinaram acerca do sacerdócio do ensino. Aos professores da UERJ-FFP e UFVJM pelo apoio, solidariedade e ensinamentos. Aos companheiros de minhas corridas e efêmeras militâncias durante o tempo de doutorado,
em especial, Tati, Mirla, Joba, Neto, Paulinho Chinelo, Tobias e Pedralva. Ao querido casal Fernanda e Paraná, pelo enorme apoio durante minha pesquisa e chegada à Diamantina. Aos novos amigos diamantinenses, que compartilharam comigo a etapa de confecção deste trabalho. Aos amigos de “estradas jequitinhonhenses”, em especial, Hefrem, Luciano, Neilton, Niucha, Josino, Márcia, Neca, Ângela, Jô, Marcus, Omar, Eric, João, Marileide, Luis, Tadeu, Frei Chico e Lira. À Universidade Federal de Fluminense por me proporcionar aprendizados acadêmicos. Aos professores do programa de doutorado em geografia da UFF pelos diálogos que me ofereceram ofereceram a oportunidade de aprofundamentos aprofundamentos teóricos e práticos na busca pela compreensão do mundo. À CAPES pelo financiamento de meus estudos. E, por fim, à todos os entrevistados ao longo de minha pesquisa, os “sujeitos do Vale do Jequitinhonha”, Jequitinhonha”, pelos momentos vividos, “ta cedo’s”, abraços, e, em especial, ensinamentos de vida e pela luta, resistência e esperança no por vir.
Árvore (Dércio Marques) Não adianta impedir que a multidão multidão Vá a passos largos atrás de d e uma semente Não adianta proibir que ela descanse descanse Sob a sombra de uma árvore geral Não adianta atravancar atravancar o seu caminho Com águas turvas, mata verde avermelhar Que ela vai se unir Ao mar, ao vento e à gente.
RESUMO Este trabalho consiste no estudo dos processos sociais que produziram o Vale do Jequitinhonha-MG enquanto uma região. O objetivo deste estudo é compreender como discursos e práticas regionais são produzidos, resignificados e legitimados por diferentes grupos sociais no Vale do Jequitinhonha, a partir de uma leitura bourdiana do conceito de região, a ser entendido enquanto uma “di-visão” da realidade. A busca pela compreensão dos processos históricos produtores da emergência do Vale do Jequitinhonha enquanto uma questão regional proporcionou a este trabalho a confecção de seu problema investigativo central: como uma região é produzida por diferentes sujeitos sociais a partir de diferenciadas práticas, racionalidades, representações e identificações. Iniciamos o trabalho com a análise da emergência do Vale do Jequitinhonha como uma região de intervenção do Estado, enquanto um recorte espacial produzido sobre o “outro”, para fins de controle social e territorial. Fez-se necessária a contextualização temporal de tal emergência nos processos de integração, urbanização, industrialização e modernização estadual/nacional. Analisou-se, concomitantemente, o processo de “estigmatização regional”, através do qual, a partir de diagnósticos estatais, meios de comunicação e discursos políticos, a região passou a ser representada enquanto o “Vale da Miséria”. Através das teorias de Pierre Bourdieu acerca da região enquanto uma “di-visão” do mundo e as reflexões de Erving Goffman acerca da produção do estigma e suas possíveis reações sociais, individuais e/ou coletivas, o presente trabalho objetivou analisar a emergência de um “movimento contra-estigma”, através do qual o discurso de “miserabilidade regional” passou ser questionado. O jornal Geraes (jornal regional), os trabalhos de Frei Chico e Lira Marques, assim como determinadas manifestações artísticas (em especial, musicais e poéticas), foram analisados enquanto discursos que apresentaram novas formas de “ressignificação regional”. Em torno da busca por uma problematização/desnaturalização da discursada “pobreza regional”, um movimento cultural de base regional constituiu-se, produzindo, a partir de suas manifestações representacionais acerca da região, uma identificação regional. Esperamos que reflexões como as apresentadas neste trabalho possam contribuir para que a história da produção de fronteiras “espaciaissociais-temporais” possa ser, sempre, (re)contada.
PALAVRAS-CHAVE: Região, “Di-visão”, Estigma, Identidade, Representação
ABSTRACT This work is a study of the social processes that made the Vale do Jequitinhonha - MG a region. The objective of this study is to understand how discourses and regional practices are produced, resignified and legitimated by different social groups at Vale do Jequitinhonha, from a “bourdian” definition of the concept of region, to be understood as a “di-vision” on reality. The search for comprehending the historical processes that produced the emergency of Vale do Jequitinhonha as a regional question provided to this work the confection of his central investigative problem: how a region is produced for different social subjects through differential practices, rationalities, representations e identifications. We initiated the work with the analysis of the emergency from Vale do Jequitinhonha as a region for State intervention, while a spacial selection produced over the “other”, under the idea of social and territorial control. It was necessary to contextualize temporally the emergence in the processes of integration, urbanization, industrializing and state/nation modernization. It was anal yzed, in the meantime, the process of “regional stigmatization”, whereby, through states diagnosis, mass media and political speeches, a the region started to be representes as the “Misery Valley”. Through the theories of Pierre Bourdieu about the region as a “di-vision” from the world and the reflexions of Erving Goffman about the stigma producing and its possible social reactions, individuals and/or collective, this study aimed to analyze the emergence of a “counter-stigma movement”, whereby the discourse of “regional miserability” started to be questioned. The “Geraes” paper (regional paper), works from Frei Chico and Lira Marques, so as determined artistic manifestations (specially musical and poetical), where analyzed as discourses that presented new ways of “regional resignification”. Around the search for a problematization/denaturalization of the “regional poverty” in the speech, a cultural movement from regional base was made, producing, through the representational manifestations about the region, a regional identification. We hope that reflexions as the ones showed in this work may contribute for the history of “spacial-social-temporal” frontier producing so as it can always be (re)said.
KEY-WORDS: Region, “Di-vision”, Stigma, Identity, Representation
LISTA DE FIGURAS Figura 1: Zonas Fisiográficas de Minas Gerais segundo o IBGE – 1941................................50 Figura 2: Mapa da área de pesquisa do Estudo Geográfico do Vale do Médio Jequitinhonha................................................................................................................54 Figura 3: Rede rodoviária nacional pavimentada.....................................................................76 Figura 4: Inauguração da estação da ferrovia Bahia-Minas de Araçuaí em 1942....................81 Figura 5: Estação da Bahia-Minas de Araçuaí desativada.......................................................83 Figura 6: Evolução da gênese político-administrativa dos municípios da região do Jequitinhonha............................................................................................................87 Figura 7: Matrículas no curso secundário ginasial – 1965........................................................91 Figura 8: Mapa da situação de cobertura aerofotogramétrica no Vale do Jequitinhonha em 1967.............................................................................................................94 Figura 9: Micro-regiões homogêneas de Minas Gerais segundo o IBGE – 1969...................101 Figura 10: Regiões para fins de planejamento de Minas Gerais segundo a FJP – 1973.........103 Figura 11: JK e Dom Sigaud em reunião do grupo Refloralje em 1973.................................130 Figura 12: JK e Dom Sigaud, segundo Figueiredo et al (2010), “apontando juntos a direção..................................................................................................................................130 Figura 13: Charge de Henfil publicada no jornal Geraes........................................................164 Figura 14: Cartaz de divulgação do “1º Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha”..........................................................................................................170 Figura 15: Fragmento da capa do jornal Geraes publicado em maio de 1984........................175 Figura 16: Fragmento da capa do jornal Geraes publicado em fevereiro de 1984.................176 Figura 17: Frei Chico..............................................................................................................183 Figura 18: Frei Chico e Dona Filó..........................................................................................184 Figura 19: Coral Trovadores do Vale.....................................................................................184
Figura 20: Coral Trovadores do Vale.....................................................................................185 Figura 21: Lira Marques registrando depoimentos e cantos...................................................186 Figura 22: Frei Chico e Lira apresentando cantos no/do Vale do Jequitinhonha em espaço público...................................................................................................................186 Figura 23: Canoeiro no rio Jequitinhonha...............................................................................204 Figura 24: Frei Chico em palestra intitulada “Cultura popular e resistência” em 2005.........205 Figura 25: Capa do folheto de divulgação dos resultados da expedição................................213 Figura 26: Capa do LP/CD “Jequitinhonha – Notas de Viagem”...........................................216 Figura 27: Encarte do LP/CD “Jequitinhonha – Notas de Viagem”.......................................216 Figura 28: Capa do primeiro LP de Rubinho do Vale............................................................224 Figura 29: Rubinho do Vale no palco.....................................................................................224 Figura 30: Rubinho do Vale se apresentando em praça pública no Vale do Jequitinhonha em 1982...........................................................................................................224 Figura 31: Capa do primeiro LP de Paulinho Pedra Azul......................................................225 Figura 32: Capa do primeiro LP do Coral Trovadores do Vale..............................................226 Figura 33: Contra-capa do primeiro LP do Coral Trovadores do Vale..................................226 Figura 34: Rubinho do Vale no espetáculo “Onhas do Jequi”................................................230 Figura 35: Adão Ventura, Ronald Claver e Paulinho Assunção (da esquerda para a direita) durante o projeto “Jequitinhonha: uma expedição cultural)........................... 237 Figura 36: Apresentação do livro “Nas águas do Jequitinhonha”..........................................238 Figura 37: Paisagem do Jequitinhonha”.................................................................................242 Figura 38: Crianças brincando no rio Jequitinhonha..............................................................242 Figura 39: Mapa do Vale do Jequitinhonha.............................................................................244 Figura 40: Gonzaga Medeiros.................................................................................................247 Figura 41: Tadeu Martina recitando um de seus cordéis........................................................260
LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Mapa da Serra do Espinhaço e Bacia do rio Jequitinhonha........................................46 Mapa 2: Mapa de Localização da BR-116 e a Bacia do Rio Jequitinhonha.............................79 Mapa 3: Ferrovia Central do Brasil e Bacia do rio Jequitinhonha............................................80 Mapa 4: Ferrovia Bahia-Minas e bacia do rio Jequitinhonha...................................................82 Mapa 5: Localização das BRs 116, 135 e 367 e a Bacia do Rio Jequitinhonha.......................85
SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................................14 1. CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA A “EMERGÊNCIA” DE UMA REGIÃO.............20 1.1. O CONCEITO DE REGIÃO (PARTE I) - PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS............................................................................................21 1.2. A COLONIALIDADE DO SABER: SOBRE O “OUTRO”..................................................27 1.3. NORTE/SUL: UMA DICOTOMIA EM CONSTRUÇÃO....................................................33 1.4. MINAS E OS FUNDAMENTOS DO BRASIL MODERNO................................................36
2. VALE DO JEQUITINHONHA: A “EMERGÊNCIA” DE UMA REGIÃO....................42 2.1. FRAGMENTAÇÕES DE UMA REGIÃO NATURAL: A BACIA DO RIO JEQUITINHONHA..................................................................................................44 2.2. NASCE UMA REGIÃO DE INTERVENÇÃO......................................................................49 2.3. O PRIMEIRO DIAGNÓSTICO: UMA ANÁLISE GEOGRÁFICA “PRÉ-REGIONAL”...............................................................................................................51 2.4. A CODEVALE: O DESENVOLVIMENTO REGIONAL COMO “SALVAÇÃO”.............65 3. O “VALE DA MISÉRIA”.......................................................................................................74 3.1. UMA REGIÃO DIAGNOSTICADA.....................................................................................89 3.2. A BUSCA POR UMA “REGIÃO-NOTÍCIA”: ENTRE UMA“REGIÃO-EXÓTICA”, UM “JORNALISMO-DENÚNCIA” E DISCURSOS DE ESPERANÇA...........................113 3.3. OS ESTIGMAS SOCIOESPACIAIS E AS “REDENÇÕES” REGIONAIS: INSTRUMENTOS DE LEGITIMAÇÃO DE UMA DIVISÃO TERRITORIAL DO TRABALHO..................................................................................................................123
4. A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE REGIONAL...............................................141 4.1. DO ORGULHO SERTANEJO À IDENTIFICAÇÃO REGIONAL....................................143 4.2. UM MOVIMENTO CULTURAL DE BASE REGIONAL.................................................146 4.3. O JORNAL GERAES: JUVENTUDE E BUSCA POR UMA REALIDADE REGIONAL..................................................................................................151 4.4. ENCONTROS... A CULTURA ENQUANTO UM ELEMENTO DE UNIDADE REGIONAL.......................................................................................................182 4.4.1. Frei Chico e Lira Marques: educação e religiosidade populares....................182 4.4.2. Os “Procurados” encontram a “Moça do coral”..............................................187 4.5. DA CCVJ À FECAJE: UM MOVIMENTO CULTURAL DE BASE REGIONAL ORGANIZADO...............................................................................................192
5. UMA REGIÃO DIZÍVEL PELA ARTE.............................................................................199 5.1. UM VALE (EN)CANTADO................................................................................................200 5.2. UMA REGIÃO RECITADA EM POESIAS........................................................................232
6. QUEM PRECISA DE “REGIÃO”?.....................................................................................276 6.1. “SER DO VALE”: UMA IDENTIFICAÇÃO REGIONAL................................................277 6.2. UMA REGIÃO DE SUJEITOS OU UMA “REGIÃO-OBJETO”?.....................................294 6.3. O CONCEITO DE REGIÃO (PARTE II) - REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS.............320 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................334 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................342
Introdução Iniciamos a realização deste trabalho alicerçados em experiências passadas, acadêmicas e não-acadêmicas, relacionadas ao “espaço-objeto” por nós elaborado. Ao longo de nossa graduação demos início à primeira pesquisa “de fôlego” de nossa trajetória acadêmica: “O Vale (en)cantado: música, identidade e espaço no Jequitinhonha”, com a qual recebemos o título de bachareal e licenciado em geografia. Ingressamo-nos no mestrado (em extensão rural) com um projeto intitulado “Identidade, representação e arte: um estudo sobre o rio Jequitinhonha”. Ao longo do curso redirecionamos nossos objetivos científicos para uma pesquisa sobre “As relações de trocas materiais e simbólicas no Mercado Municipal de Araçuaí - MG”, título final de nossa dissertação. Ingressamo-nos no doutorado em geografia da Universidade Federal Fluminense com o projeto “Identidades, representações e racionalidades: um estudo socioespacial sobre práticas e conflitos sociais associados ao rio Jequitinhonha”, que, num segundo momento de releitura ao final do primeiro semestre como doutorando, transformou-se em “Do ‘Vale da Miséria’ ao ‘Vale da Cultura’: um estudo sobre a identidade regional e suas (re)significações no Vale do Jequitinhonha – MG”. Como de dificuldades e “nós” conceituais surgem, a nosso ver, as ideias mais promissoras, foram em tais situações que este trabalho foi germinado. Percebemos uma limitação conceitual significativa em todos nossos trabalhos e projetos anteriormente realizados que não podia ser, novamente, “varrida para debaixo do tapete”. O Vale do Jequitinhonha é uma região? Partíamos da premissa de que tal questão já havia sido por nós respondida; de que o mesmo caracterizar-se-ia enquanto uma região sem um anterior aprofundamento acerca dos processos socioespaciais que nos permitiriam, ou não, assim denominá-lo. Encontrava-me (ainda encontro-me) em meio a um vasto grupo de pesquisadores que, apesar de certas vezes discordantes, se identificavam no objetivo maior de estudar o Vale do Jequitinhonha. Analisar o Vale do Jequitinhonha significa, acima de tudo, na perspectiva deste trabalho, a busca pelo entendimento acerca da “emergência de uma região”. Um espaço, uma determinada área da superfície terrestre, que, ao longo de um conjunto de processos sociais, passou a ser tratado como uma região. Não falamos aqui de um espaço natural, uma bacia hidrográfica, a bacia do rio Jequitinhonha, mas de uma região produzida a partir de constructos sociais, um espaço geográfico.
14
Hoje, depois de tanto sobre essa região dizermos, naturalizou-se aos nossos ouvidos o discurso de sua existência. Alguns questionamentos tornam-se assim imprescindíveis. Que especificidades do Vale do Jequitinhonha fizeram/fazem dele uma região? Que fronteiras, ao dividirem o espaço, produziram/produzem a separação/diferenciação entre o Vale do Jequitinhonha e outros espaços? Perguntamo-nos, em questionamento basilar: “O Vale do Jequitinhonha sempre existiu?”. Trabalharemos aqui com o conceito de região compreendido enquanto um processo socioespacial produzido a partir de diferentes sujeitos sociais, articulados em torno de diferentes, por vezes convergentes, objetivos e práticas. A busca pela compreensão dos processos históricos produtores da emergência do Vale do Jequitinhonha enquanto uma questão regional leva-nos ao problema central a ser investigado por este trabalho: como uma região é produzida por diferentes sujeitos sociais a partir de diferenciadas práticas, racionalidades, representações e identificações? Com o objetivo geral de compreender como discursos e práticas regionais são produzidos, resignificados e legitimados por diferentes grupos sociais no Vale do Jequitinhonha, coube ao trabalho uma metodologia de pesquisa ampla e variada. Apresentaremos aqui, de forma breve, a pesquisa de campo realizada para a produção da tese para, em seguida, apresentarmos, de forma conjunta, a estrutura do trabalho, assim como os procedimentos teórico-metodológicos referentes a cada etapa do trabalho. Uma viagem de campo de cinco meses de duração foi realizada entre os meses de janeiro e junho de 2011 1. Foram percorridas 23 cidades, nas quais foram realizadas 97 entrevistas semi-estruturadas com diferentes atores sociais presentes na região. Dialogamos com técnicos de órgãos públicos (locais, estadual e nacional), tais como secretarias municipais, a Emater, o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais (Idene), a Superintendência Regional do Meio Ambiente (Supram – Vale do Jequitinhonha) e a Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Governo Federal; com técnicos de entidades sociais, tais como o Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), a Cáritas Diocesana de Araçuaí e o Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha (Campo Vale); com lideranças sindicais, tais como sindicatos de trabalhadores rurais e de servidores públicos municipais; com Tadeu Martins, um dos fundadores do jornal Geraes (jornal regional) e do Festivale (principal evento cultural regional do Vale do Jequitinhonha); com artistas inseridos no movimento cultural da região, tais como Lira Marques, Dona Zezinha, Ângela Freire, João Morais, Luciano Silveira, Josino Medina, Zé 1
A viagem de campo foi custeada, em sua totalidade, pela bolsa de doutorado e apoio financeiro familiar.
15
Pereira e Mestre Antônio; com pesquisadores que se dedicaram/dedicam a estudar o Vale do Jequitinhonha, tais como Claudenir Fávero, Luis Santiago, Marcelo Tibães, Wander Conceição, João Antônio de Paula e Jose Carlos Machado. As entrevistas estão inseridas no trabalho, em grande parte, indiretamente, através das reflexões produzidas e, em especial, do compartilhamento de informações imprescindíveis para o delineamento e a estruturação da tese. No primeiro capítulo, analisaremos as condições históricas para a emergência de uma região. Iniciamos a análise apresentando uma discussão teórico-metodológica acerca do conceito de região, para, em seguida, interpretarmos, com as contribuições de autores como Rogério Haesbaert, Carlos Walter Porto-Gonçalves e Anibal Quijano, a “colonialidade do saber” a partir dos processos socioespaciais de delimitação, conhecimento e adjetivação do “outro”. Em seguida, analisamos, em especial a partir das teorias de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a histórica dicotomização entre “Norte” e “Sul” do país associando-a ao posterior processo de modernização do estado de Minas Gerais. No segundo capítulo, será analisado o processo de emergência do Vale do Jequitinhonha enquanto uma região de intervenção do Estado. Autores como Francisco de Oliveira, Iná Elias de Castro, Rogério Haesbaert, Milton Santos e Ricardo Ribeiro contribuíram significativamente para as reflexões, questionamentos e inferências produzidas neste capítulo. A partir de reflexões históricas, buscaremos analisar o processo através do qual uma fragmentada área de uma bacia hidrográfica transformou-se no espaço referência para a criação de uma agência de desenvolvimento regional. Elites políticas concentraram-se socioespacialmente no país produzindo o espaço geográfico a partir de “áreas centrais de decisão e produção”, desde o período colonial brasileiro, para fins de controle, expansão territorial, delimitações de fronteiras e exploração de recursos naturais e humanos, delimitando, desta forma, regiões segundo suas condições históricas de suas incorporações a uma divisão territorial do trabalho. O Vale do Jequitinhonha institucionalizou-se enquanto região no período de intensificação dos processos de modernização, urbanização, industrialização e integração do estado de Minas Gerais e do país. Os governos de Vargas e JK, os modelos de desenvolvimento regional incorporados à política brasileira (tais como a Sudene, a Sudam e a Codevasf), a necessidade de uma “Minas moderna”, são alguns dos elementos que antecedem,
16
e ajudam portanto a compreender, o processo de delimitação de uma região estatal intitulada “Vale do Jequitinhonha”. É-nos possível compreender o Vale do Jequitinhonha enquanto questão regional a partir de análises acerca de processos sociais e xclusivamente intraregionais? Acreditamos que não. Corroboramos aqui com as preocupações de muitos dos autores referenciados neste trabalho acerca da necessidade de análises que superem a escala regional na busca por sua compreensão. Buscamos, portanto, uma revisão bibliográfica acerca da história dos processos sociais, econômicos, políticos e culturais ocorridos no hoje Vale do Jequitinhonha, associando-a a teorias acerca dos contextos estadual, nacional e internacional referentes aos mesmos períodos históricos. Dessa forma, espaço e tempo tornam-se indissociáveis, através da simultaneidade temporal de processos trans-escalares. No terceiro capítulo, será analisado um grande número de diagnósticos estatais produzidos sobre a, nesse momento já institucionalizada, região estatal. Buscamos, em tais análises, acima de tudo, uma interpretação que nos possibilitasse compreender como uma realidade regional tornou-se parte do discurso do Estado, diferenciando uma área do espaço anteriormente não diferenciada, e, em especial, como tal região tornou-se internacionalmente reconhecida enquanto o “Vale da Miséria”. Os discursos que estigmatizaram o Vale do Jequitinhonha a partir de seus males e pobrezas reafirmaram-se como um dos focos centrais deste trabalho. A presença de tais apontamentos foi investigada nos diagnósticos estatais, assim como nas representações acerca da região presentes nos meios de comunicação e nos discursos públicos de políticos regionais/estaduais. A produção de estigmas, por fim, serão interpretadas associadas a discursos de “redenção regional” enquanto legitimadores da incorporação de uma “região” a uma divisão territorial do trabalho. No capítulo 4, buscaremos apresentar os sujeitos até então ausentes do processo de produção da região. Não existiram outras vozes e práticas em torno do processo de emergência do Vale do Jequitinhonha? Existiram; em especial, em resposta ao estigma de “Vale da Miséria”. As teorias de Pierre Bourdieu acerca da região enquanto uma “di-visão” do mundo e as reflexões de Erving Goffman acerca da produção do estigma e suas possíveis reações sociais, individuais e/ou coletivas, foram de enorme relevância para a concretização deste capítulo. A caracterização de uma parcela do espaço homogeneizada no imaginário coletivo internacional a partir de sua miséria produziu reações de diferentes grupos sociais intra-regionais. “Somos da miséria?”; “Nossa pobreza é diferente das pobrezas existentes em 17
outras localidades?”; “Somos iguais em nossa pobreza?”; “Se temos pobreza, e temos, quais as suas razões?”. Entre os mais significativos dos questionamentos estão: “Se não somos somente da miséria, o que somos?”; “O que é o Vale do Jequitinhonha?”; “Quem somos nós do Vale do Jequitinhonha?”. Para a confecção deste capítulo, selecionamos, a partir de diferentes relatos de entrevistados ao longo da pesquisa de campo, as iniciativas mais relevantes para a construção de uma consciência regional alicerçada nos movimentos populares regionais que buscavam, entre outras coisas e acima de tudo, construir novas representações acerca do Vale do Jequitinhonha, tido então como “Vale da Miséria”. O Geraes, jornal regional produzido entre 1978 e 1985 por um grupo de jovens nascidos no Vale do Jequitinhonha, será analisado por nós através da leitura de todas as suas edições 24 edições, de forma que pudéssemos associálas aos eventos culturais regionais promovidos pelo jornal. Analisaremos, conjuntamente, a participação de Frei Chico e Lira Marques como referências centrais na construção de um movimento cultural de base regional no Vale do Jequitinhonha. Durante o processo de articulação e organização de entidades e grupos sociais de base regional, a cultura tornou-se o elemento unificador que produziu um processo contínuo (presente de forma significativa ainda hoje) de construção de uma identidade regional. No quinto capítulo, apresentaremos uma análise acerca das dizibilidades e visibilidades acerca da região produzidas por diferentes manifestações artísticas. Músicas e poesias foram interpretadas enquanto “discursos regionais” que, a partir de novos sujeitos e racionalidades, permitiram o fortalecimento da produção de uma identidade regional, assim como de novas representações acerca do Vale do Jequitinhonha. O sexto capítulo contará com uma reflexão acerca do conceito de identidade, buscando interpretar a emergência de uma identidade no/do Vale do Jequitinhonha, o sentimento de “ser do Vale”, enquanto uma identificação regional. Em seguida, uma reflexão acerca das práticas estatais que invisibilizaram os atores sociais coletivos presentes na região, produzindo objetos onde, a nosso ver, existiam sujeitos, será apresentada. Posteriormente, finalizamos o capítulo com uma discussão epistemológica acerca do conceito de região. No capítulo 7, por fim, as considerações finais da tese serão apresentadas ao leitor, alicerçadas na correlação entre as teorias e reflexões teóricas e as observações sobre os processos sociais correlacionados à construção da região do Vale do Jequitinhonha. Temos aqui a convicção das limitações deste estudo frente à complexidade social do objeto estudado 18
e de que, mais que conclusões, serão propostas reflexões para que, através de futuros estudos, a história da produção dos recortes socioespaciais regionais desse país possa ser (re)contada.
19
1. CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA A “EMERGÊNCIA” DE UMA REGIÃO
“Mesmo que alguns admitam ignorar a região como um dos ‘conceitos-chave’ da Geografia (...), as questões básicas envolvendo o debate sobre a regionalização, quais sejam, a diferenciação (mais concreta) e o ‘recortamento’ (analítico) do espaço, continuam firmes. Se a região e a regionalização não desapareceram, não é somente porque a diferenciação e/ou a ‘desequalização’ do mundo continuam fortes, mas também porque, numa visão mais integrada e vivida e não simplesmente funcional e classificatória de região, continuam vivos os movimentos, as identidades, as representações e as políticas ditas regionais” (Rogério Haesbaert).
20
MATEUS DE MORAES SERVILHA
O VALE DO JEQUITINHONHA ENTRE A “DI-VISÃO” PELA POBREZA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO PELA IDENTIFICAÇÃO REGIONAL
NITERÓI/RJ 2012