COMENTÁRIO DO NOVO TESTAMENTO
Mateus Volume 1 CE WILLIAM HENDRIKSEN
ÍNDICE
Relação de Abreviaturas Introdução aos Evangelhos I. Introdução aos Quatro Evangelhos Mateus, Marcos, Lucas e João II. Introdução aos Três Evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas (os Sinóticos) A. Sua Origem (o Problema Sinótico) B. Sua Confiabilidade
5 9 11 15 15 82
Introdução ao Evangelho Segundo Mateus I. Características II. Autoria, Data e Lugar III. Propósito IV. Tema e Esboço
117 119 137 145 147
THMA GERAL: A obra que lhe deste para fazer
151
I. Seu início ou Inauguração Capítulo 1 Capítulo 2 ('apítulo 3
151 153 211 275
Capítulo 4.1-11
309
II. Seu Progresso ou Continuação Capítulos 4.12—20.34 A. O Grande Ministério Galileu Capítulo 4.12-25 ( apítulos 5—7 - Primeiro Grande Discurso ....
331 332 333 355
( a p í t u l o s 8, 9
543
( apítulo 10 - Segundo Grande Discurso
629
C a p í t u l o 11
681
03
MATEUS Volume 2 Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo
12 13 - Terceiro Grande Discurso 14 15.1-20
B. O Retiro e os Ministérios em Peréia Capítulo 15.21-39 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 - Quarto Grande Discurso Capítulo 19 Capítulo 20 III. Seu Clímax ou Culminação Capítulos 21-28.20 ...
9 63 117 149 168 169 187 227 255 295 329 359
A. A Semana da Paixão Capítulo 21 Capítulo 22 Capítulo 23 - Quinto Grande Discurso Capítulos 24, 25 - Sexto Grande Discurso Capítulo 26 Capítulo 27
360 361 405 441 479 553 619
B. A Ressurreição Capítulo 28
682 683
Bibliografia Selecionada Bibliografia Geral
707 709
04
RELAÇÃO DE ABREVIATURAS <» As abreviaturas de livros da Bíblia são aquelas da tradução Almeida Revista e Atualizada no Brasil. As letras usadas em abreviaturas de outros livros são seguidas de pontos. Nas abreviações de periódicos não constam pontos e elas estão em itálico. Assim é possível distinguir de relance se a abreviatura se refere a um livro ou periódico.
A. Abreviações de Livros A.R.V. A.V. ('.N.T.
American Standard Revised Version Authorized Version (King James) A.T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research ( iram.N.T. F. Blass and A. Debrunner, A Greek Grammar of (Bl.-Debr) the New Testament and Other Early Christian Literature ( Irk.N.T. The Greek New Testament, organizado por Kurt (A-B-M-W) Aland, Matthew Black, Bruce M. Metzger, and Allen Wikgren I S.B.E. International Standard Bible Encyclopedia I..M.T. (Th.) Thayer's Greek-English Lexicon of the Testament I ..N.T. W. F. Arndt and F. W. Gingrich, A Greek-English (A. and G.) Lexicon of the New Testament and Other Early Christian L it er ature 05
MATEUS M.M.
N.A.S.B. (N.T.) N.N N.E.B. N.T.C. R.S.V. S.BK. S.H.E.R.K. Th.D.N.T.
W.B.D. W.H.A.B. B.
The Vocabulary of the Greek Testament Illustrated from the Papyri and Other Non-Literary Sources, por James Hope Moulton and George Milligan New American Standard Bible (New Testament) Novum Testamentum Graece, organizado por D. Eberhard Nestle, revisado por Erwin Nestle e Kurt Aland New English Bible W. Hendriksen, New Testament Commentary Revised Standard Version Strack and Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch The New Schaff Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge Theological Dictionary of the New Testament (organizado por G. Kittel e F. Friedrich, e traduzido do Alemão por G. W. Bromiley Westminster Dictionary of the Bible Westminster Historical Atlas to the Bible
Abreviaturas de Periódicos
ATR
Anglican Theological Review
BG
Bibel und Gemeinde
BJRL
Bulletin of the John Rylands Library
Btr
Bible Translator
BW
Biblical World
BZ
Biblische Zeitschrft
CT
Cuadernos teológicos
CTM
Concordia Theological Monthly
EB
Estúdios bíblicos
EQ
Evangelical Quarterly
ET
Expository Times 06
MATEUS Exp
The Expositor
GTT
Gereformeerd theologisch
TBL
Joiirnaul o f Biblical Literature
JR
Journal of Religion
JTS
Journal of Theological Studies
NedTT
Nederlands theologisch tijdschrifl
NTStud
New Testament Studies; an International Journal publicado trimestralmente sob os auspícios da. Studiorum No vi Testamenti Societcis
PTR
Princeton Theological Review
RSR
Recherches de science religieuse
Th
Theology: A Journal of Historic Christianity
ThG
Theologie un Glaube
TR
Theologia Reformada
TS
Theologische Studien
TSK
Theologische Studien und Kritiken
TT
Theologisch
WTJ
Westminster Theological Journal
ZNW
Zeitschrift
tijdschrifl
tijdschrifl für
die
neutestamentliche
Wissenschaft und die Kunde des Urchristentums
07
INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
I. INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS MATEUS,
MARCOS,
LUCAS E JOÃO
Como ponto de partida, devemos distinguir entre "o evangelho" e "os Evangelhos". O primeiro é a mensagem de Deus aos homens. E as boas novas de Deus, o relato ou história que nos conta o que Deus, por meio da encarnação, das andanças terrenas, dos poderosos feitos, do sofrimento, da morte e ressurreição de seu único Filho, fez para salvar os pecadores. E o evangelho ou "mensagem das boas novas", as alegres notícias de salvação endereçadas a um mundo perdido no pecado. Este é o termo bíblico em seu sentido usual.1 Não o que nós devemos fazer, mas o que Deus em Cristo já fez por nós é a parte mais proeminente dessas boas novas. Todavia, o que os homens devem fazer para serem salvos e assim viverem suas vidas em benefício de seus semelhantes e para a glória de Deus está também certamente incluído (Mt 5.16; 11.25-30; Mc 2.17; 8.34; Lc 5.32; Jo 3.14-18). De acordo com o segundo e último uso (pós-bíblico) do termo, um Evangelho — freqüentemente grafado com E maiúsculo para fazer distinção entre este e o primeiro uso — é um dos quatro livros em que essas boas novas são expostas com autoridade. Desde os primórdios da história escrita da igreja do Novo Testamento tem havido quatro, e somente quatro evangelhos, amplamente reconhecidos. Para enfatizar o fato de que eles apresentam um único e o mesmo evangelho, às vezes são descritos como o "evangelho quádruplo" ou o "instrumento evangélico". Assim Tertuliano, em sua obra Contra Mareião (começada cerca de 207 d.C.) declara: 1
Ver C.N.T. sobre Fp 1.27 para uma análise do conceito "evangelho".
11
MATEUS "Postulamos como nosso princípio que o instrumento evangélico tem apóstolos como seus autores, a quem o próprio Senhor designou para o dever de publicar o evangelho... Desses apóstolos, portanto, João e Mateus são os primeiros a nos infundir a fé, enquanto os homens apostólicos, Lucas e Marcos, a renovam" (IV. 2). Ainda um pouco antes, numa obra que data entre 182-188 d.C., o grande teólogo e viajante, Irineu, resume o que parece ter sido o consenso da igreja toda nos seus dias, nestas palavras: "Não é possível que os Evangelhos possam ser nem mais nem menos do que eles são" (Contra Heresias III.xi.8). Talvez não possamos aceitar a validade de alguns dos fundamentos sobre as quais ele baseia esta conclusão, ou seja, que o mundo está dividido em quatro zonas, que há quatro ventos principais, e que os querubins são descritos, nas Escrituras, como tendo quatro rostos; podemos, entretanto, encontrar nessa declaração a confirmação da posição já expressa, ou seja, que desde os dias mais antigos tem havido quatro, e somente quatro, Evangelhos amplamente reconhecidos. Os títulos dos Evangelhos, como encontrados nos antigos manuscritos gregos, apontam na mesma direção. Embora tais títulos não possam ser datados com absoluta certeza, e não façam parte do documento original, senão que foram subseqüentemente acrescidos por copistas, mostram que, provavelmente, antes do ano 125 d.C. os quatro livros referidos já estavam reunidos numa coleção para uso nas igrejas, aos quais se dava o título: "segundo Mateus", "segundo Marcos", etc. Estritamente falando, a designação "segundo" — "de acordo com" — não indica necessariamente a autoria. Com o sentido de "redigido em harmonia com o ensinamento de" satisfaz o vocabulário empregado. Contudo, há abundante evidência para mostrar que os cristãos primitivos davam ao título uma conotação muito mais ampla, e consideravam a pessoa ali citada como sendo o verdadeiro autor. Criam num só evangelho, proclamado de forma escrita por quatro autores em quatro livros. 12
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
Ora, segundo a tradição, foi o apóstolo João quem escreveu o último dos quatro. Diz Clemente de Alexandria (entre 190-200): Finalmente João, percebendo que os fatos externos já tinham sido evidenciados nos evangelhos, sendo solicitado por seus amigos e inspirado pelo Espírito, compôs um Evangelho espiritual.2 Ora, nesse quarto Evangelho, a estrutura geral, como encontrada nos outros três, é mantida; ou seja, em todos os quatro a vinda de Jesus é descrita em conexão com a obra e o testemunho de João Batista; aí seguem registros da entrada de Cristo na Galiléia, o entusiasmo da multidão e a crescente oposição, a alimentação miraculosa da multidão, a confissão de Pedro, a partida para Jerusalém e a entrada triunfante nela, a ceia do Senhor com seus discípulos, as experiências no horto (embora não se encontre em João o relato da agonia do horto), a prisão, o julgamento e condenação, a crucificação, a morte e ressurreição. Os primeiros três Evangelhos, considerados como um grupo, e o último (João) se complementam entre si. Cada um depende do outro para ser plenamente entendido. Dessa forma é que à luz de Mt 10.5 ("Não tomeis rumo aos gentios"), podemos entender a hesitação de Filipe em trazer os gregos a Jesus (Jo 12.20-22); e que, à luz de Jo 1.15,29,30; 3.30 ("Convém que ele cresça e que eu diminua"), podemos entender o que Jesus disse com referência à "grandeza" de João Batista (Mt 11.11). A razão da viagem a Jerusalém (Mc 10.32), embora seja explicada nos sinóticos (por exemplo, o versículo imediato, 10.33), é ainda mais clara em Jo 11.1 ss. A presença de Pedro no pátio do palácio do sumo sacerdote (Mt 26.58,69ss) é explicada em Jo 18.15,16. O lamento de Cristo, tão repassado de sentimento: "Jerusalém, Jerusalém... quantas vezes quis eu reunir os teus filhos..." (Mt 23.37-39), bem como sua defesa: "Todos os dias eu estava convosco no templo ensinando..." (Mc 14.49), quando os sinóticos dizem tão pouco a respeito desse ministério de Jesus em Jerusalém e no templo, torna-se evidente ao estudar2
Citado por Eusébio, História Eclesiástica, VI.xiv.7.
13
MATEUS mos Jo 2.14; 5.14; 7.14,28 [8.2]; e 10.22,23. A acusação contra Jesus, Mt 26.61 (cf. Mc 14.58): "Este diz: posso destruir o santuário de Deus e reedificá-lo em três dias", torna-se clara quando a lemos em conexão com Jo 2.19. Além disso, o tom das palavras e discursos de Jesus, como relatadas no Evangelho de João, de modo algum é inconsistente com o tom daqueles apresentados nos sinóticos (Jo 3.3, cf. Mt 18.3; Jo 4.35, cf. Mt 9.37; Jo 3.35; 10.15; 14.6, cf. Mt 11.27,28; etc.).3 Apesar das alegações em contrário,4 não se pode apresentar a existência de contradições reais entre João, por um lado, e Mateus, Marcos e Lucas, por outro. Todavia, tanto no estilo quanto no conteúdo o quarto difere dos três em muitos aspectos. Assim, o Evangelho de João descreve, com poucas exceções, a obra de Cristo na Judéia antes que na Galiléia, e dedica muito espaço ao ensinamento do Senhor na forma que não seja de parábolas, mas de primorosos discursos diante de — ou debates com — amigos e/ou inimigos. Porém, é o mesmo Senhor quem está falando em todos os quatro. 3
O tema da relação entre os Sinóticos e João é tratado com mais detalhes e de forma mais completa em C.N.T. sobre João, pp. 12-18; 31-33. Ver também a dimensão que lhe é dedicada em F. C. Grant, The Gospel ofSt. John, Nova York e Londres, 1956; B. F. Westcott. The Gospel according to St. John, Grand Rapids, 1954; e J. E. Davey, The Jesus ofSt. John, Londres, 1958. A elucidação mais recente e completa se encontra em Leon Morris, Studies in the Fourth Gospel, 1969; ver especialmente pp. 15-63. Ver, por exemplo, a tentativa recente feita por T. J. Baarda De Betrouwbaarheidvan de Evangelién, Kampen, 1967, pp. 12ss, onde, por meio de um mapa (p. 13), ele trata os primeiros capítulos do Evangelho de João como se descrevessem viagens consecutivas e diz que, segundo Marcos, Jesus viaja da Galiléia à margem oriental do Jordão (para a alimentação dos cinco mil), porém segundo João foi de Jerusalém (p. 16). Não está Baarda estabelecendo uma contradição entre o Evangelho de João e os Sinóticos que não é justa? Seguramente ele sabe que João seleciona certos eventos importantes que revelam que Jesus é o Cristo, o Filho dc Deus, c que este evangelista não nos está fornecendo uma Vida de Cristo (veja-se Jo 20.30,31). Especificamente, João introduz a narrativa da alimentação miraculosa como segue: "Depois destas coisas", significando simplesmente, "Algum tempo depois", uma expressão muito indefinida, sem implicações cronológicas ou geográficas. Ver C.N.T. sobre Jo 5.1.0 mesmo vale com respeito à pretendida contradição entre os Sinóticos e João no tocante ao dia da crucificação de Cristo. Nunca se pôde provar que haja aqui um verdadeiro conflito. Veja-se a mesma obra. Jo 18.28.
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INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS I I . INTRODUÇÃO AOS T R Ê S EVANGELHOS: M A T E U S , M A R C O S E L U C A S (OS SINÓTICOS)
A. Sua Origem (o Problema Sinótico) Os primeiros três Evangelhos apresentam o mesmo ponto de vista da vida e dos ensinos de nosso Senhor; por isso são chamados Sinóticos (uma visão de conjunto). São semelhantes entre si, no entanto são também diferentes. Segundo revela um estudo detalhado desses Evangelhos, até onde vai essa semelhança? E sua diferença? Que problema cria o resultado de nosso estudo? O mesmo pode ser resolvido? Em concordância com essas perguntas, os quatro títulos principais deste estudo serão: 1. Sua Semelhança, pp. 15-29; 2. Sua Diferença, pp. 25-51; 3. O Problema Resultante, p. 51; 4. Os Elementos Que Entram na Solução, pp. 51-82. 1. Sua Semelhança a. Em conteúdo ou tema Ao fazer um exame, descobre-se que o evangelho de Mateus contém, em substância, quase tudo o que contém o evangelho segundo Marcos; de fato, dos 661 versículos de Marcos, 606 (cerca de 11/12) têm paralelo em Mateus. Também, mais da metade de Marcos (350 vv. — cerca de 53%) está reproduzido em Lucas. Pondo de forma diferente, o material de Marcos que se encontra em Mateus está incluído em cerca de 500 dos 1.068 versículos de Mateus; portanto, alcança pouco menos da metade desse evangelho. Os 1.149 versículos de Lucas têm amplo espaço para os 350 versículos aproveitados de Marcos; de fato, dois terços do Evangelho de Lucas não contêm nenhum material de Marcos. Tornou-se evidente que dos 661 versículos de Marcos, somente 55 não têm paralelo em Mateus. Contudo, desses 55, não menos de 24 estão representados no Evangelho de Lucas. Portanto, a semelhança no conteúdo material é tão grande que Marcos tem apenas 31 versículos que podem com propriedade 15
MATEUS ser chamados seus próprios. Quanto ao conteúdo, estes 31 versículos são como segue: 1.1: 2.27: 3.20,21: 4.26-29: 7.3,4: 7.32-37: 8.22-26: 9.29:
110 tocante ao início do evangelho o sábado feito para o homem, não vice-versa a opinião de alguns de que Jesus estava fora de si a parábola do "crescimento secreto da boa semente" a explicação parentética das purificações dos fariseus a cura do surdo-mudo a cura do cego em Betsaida o dito: "Esta casta não pode sair senão por meio de oração [e jejum]" 9.48,49: a referência ao fogo que não se apaga e o ser salgado com fogo 14.51,52: a história do jovem que fugiu nu.
Os seguintes diagramas são acrescentados para, de forma mais sólida, imprimir estes fatos na mente: B
A = Evangelho de Mateus B = Evangelho de Marcos C = porção do Evangelho de Marcos com paralelo em Lucas D = porção do Evangelho de Marcos sem paralelo em Mateus E = porção do Evangelho de Mateus sem paralelo em Marcos
16
A = Evangelho de Lucas B = Evangelho de Marcos C = porção do Evangelho de Marcos com paralelo em Lucas D = porção do Evangelho de Marcos sem paralelo em Lucas E = porção do Evangelho de Lucas em paralelo em Marcos
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
Ora, a declaração de que os três Sinóticos têm muito em comum não deve ser entendida de forma errônea. Não quer dizer que em cada Evangelho é dedicado igual espaço a cada tema. Ao contrário, os diferentes relatos das obras e palavras de nosso Salvador são registrados com um grau de plenitude amplamente variado. Por exemplo, o registro da tentação de nosso Senhor está muito mais detalhado em Mateus e em Lucas do que em Marcos. Este simplesmente nos informa que o Espírito "impeliu" Jesus para o deserto; que ele permaneceu ali quarenta dias, durante os quais foi tentado por Satanás; que estava com as feras, e que anjos o serviam (1.12,13). Mateus e Lucas, por outro lado, nos dão um relato mais detalhado das três tentações (Mt 4.1-11; Lc 4.1-13). Por outro lado, o relato de Marcos é com freqüência o mais detalhado. Leia-se, por exemplo, a história da cura de um endemoninhado, como registrado em Mc 5.1-20; e compare a mesma com o relato mais condensado em Mt 8.2834 e em Lc 8.26-39. Outra ilustração é Mc 5.21-43; cf. Mt 9.1826; Lc 8.40-56. Feitas essas restrições, podemos afirmar que os três apresentam, cada um do seu próprio modo, a história das peregrinações terrenas de Cristo; isto é, de seu ministério, mormente na Galiléia e seus arredores (em distinção ao Evangelho de João, que põe a ênfase no ministério de Jesus na Judéia, como já ficou indicado). Cada um dos três descreve o princípio ou inauguração, o progresso ou continuação, o clímax ou culminação da grande tarefa que o Mediador consumou. (1) Seu Princípio ou Inauguração. O material comum aos três, e que se refere a este período inicial da obra de Cristo na terra, está incluído em Mc 1.1-13; Mt 1.1-4.11; Lc 3.1-4.13. Intencionalmente usamos a frase "está incluído em", que significa que as referências indicadas designam a extensão do período. Não significa que tudo o que se acha dentro dos limites dessas referências é comum aos três Evangelhos, porque isso não seria verdadeiro. Todavia, no momento estamos tratando daquilo que nos três relatos é território comum. As diferenças serão estudadas posteriormente. 17
MATEUS Conseqüentemente, os três relatos, com maior ou menor variação de detalhes, descreve a vinda, a pregação e o modo de vida do precursor de Cristo, João Batista, sua recepção pelas multidões e seu testemunho concernente a Jesus. Também nos três é registrada a história do batismo de Jesus por João, bem como a das tentações suportadas pelo Senhor no deserto. Contudo, é nada mais do que justo dizer ainda nesta altura que a diferença entre o espaço dedicado a esses temas, em Marcos, por um lado, e respectivamente, em Mateus e Lucas, por outro, é tão grande que esse material também pode ser considerado como pertencente à área que não é de Marcos, mas que é comum a Mateus e Lucas; ver p. 35. (2) Seu Progresso ou Continuação. De acordo com os três relatos, Jesus faz da Galiléia — especialmente Cafarnaum (Mc 1.21; 2.1; cf. Mt 4.13; 8.5; 11.23; Lc 4.23,31; 7.1) — seu quartel-general. Daí, a primeira fase deste período ser com freqüência qualificada como o Grande Ministério Galileu, que está compreendido em Mc 1.14-7.23; Mt 4.12-15.20; e Lc 4.14-9.17. Todos os três relatam que Jesus convida certos pescadores para serem seus seguidores, realiza muitos milagres de cura, acalma uma tempestade, expulsa demônios e ainda restaura a vida à filha do governador da sinagoga de Cafarnaum. Ele se dirige às multidões em parábolas, algumas das quais são comuns aos três Evangelhos, envia os Doze como seus embaixadores, e alimenta miraculosamente os "cinco mil". Porém, já foi rejeitado por seu próprio povo (Mc 6.3; Mt 13.57; Lc 4.28,29).5 A ênfase agora se desloca das multidões para os discípulos; da cidade para as aldeias, o campo e a montanha. Porquanto Jesus se retira com freqüência para as regiões circunvizinhas da Galiléia e para lugares onde possa estar a sós com seus discípulos — essa segunda fase pode ser designada como o Ministério do Retiro. Contudo, isso é apenas um deslocamento na ênfase, 3
Em Lucas, o relato da rejeição de Cristo em Nazaré aparece no princípio (4.16-31); em Marcos e Mateus aparece no final dessa seção (Mc 6.1-6; Mt 13.53-58). Quando se considera Jo 1.11. o arranjo de Lucas aqui não parece tão estranho.
18
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
pois mesmo aqui o senhor não perde o interesse pelo povo como um todo (Mc 8.1; 9.14; etc.) nem em Cafarnaum (Mc 9.33). Mas são especialmente os Doze que estão sendo gradualmente preparados para os estranhos eventos que estão para acontecer: o sofrimento, a morte e a ressurreição do Messias. As vezes é vagamente indicado o lugar ou o dia em que este ensinamento é ministrado, ou onde e quando ocorre o milagre: por exemplo, "as aldeias de Cesaréia de Filipe" (Mc 8.27; Mt 6.13; cf. Lc 9.18), "um monte alto" (Mc 9.2; Mt 17.1; cf. Lc 9.28), "enquanto desciam do monte" (Mc 9.9; Mt 17.9; cf. Lc 9.37). A fase final desse extenso período, como descrito nos sinóticos, apresenta Jesus indo da Galileia para a região dalém do Jordão, ou seja, aPeréia(ver Mc 10.1; Mt 17.1). Não é de se estranhar, pois, que o termo Ministério da Peréia tenha sido usado para descrever a localidade das atividades e viagens de Cristo nesse período. O pequeno grupo, liderado por Jesus, se dirige para o sul. Em seguida, o poder portentoso de Cristo se manifesta em Jericó e suas proximidades. Em decorrência da natureza indefinida de muitas das ocorrências quanto a tempo e lugar, ou, às vezes, da sua completa omissão, nem sempre é possível dizer durante que fase (a segunda ou a terceira) do extenso período um dito foi pronunciado ou um evento ocorreu. Os escritores dos Evangelhos não estão escrevendo um diário. Eles estão muito mais interessados em nos contar o que Jesus fez e ensinou do que em nos dar uma crônica contínua e diária.6 O que é comum a Marcos, Mateus e Lucas, ao descrever as atividades de Cristo durante a segunda e terceira fases (Ministérios do Retiro e da Peréia) está incluído em Mc 7.24-10.52; '' Por essa mesma razão, nunca será possível provar a existência de uma contradição cronológica entre o Evangelho segundo João, de um lado, e os Sinóticos, de outro. Há lugar para um segundo ministério na Judéia (sobre isso, ver João 7.2—10.39 e, talvez, Lc 9.51—13.21 como um todo ou em parte) intervindo entre o ministério do retiro e o da Peréia, assim como há lugar para um primeiro ministério na Judéia entre o ministério da inauguração e o grande ministério da Galiléia. Ver o breve sumário no C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, p. 36; e ver novamente o que se diz acima, na nota de rodapé 4.
19
MATEUS Mt 15.21-20.34; e Lc 9.18-19.28. Contudo, a seção de Lucas difere tão notavelmente da dos outros dois, que merece um tratamento distinto; ver p.30. Não obstante, nas três seções indicadas são registrados assuntos tais como: a pergunta de Cristo dirigida aos discípulos: "Quem dizem os homens que eu sou?", e suas predições e ensinamentos acerca da cruz e da ressurreição ministradas em três ocasiões distintas (Mc 8.31; 9.31; 10.33,34; Mt 16.21; 17.22,23; 20.17-19; Lc 9.22,44; 18.31-34). Os relatos da transfiguração do Senhor no monte e da cura do menino endemoninhado no vale, um epiléptico a quem os discípulos não puderam curar, são também encontrados aqui nos três Evangelhos. O mesmo sucede também com a resposta de Cristo, dramaticamente ilustrada, à pergunta dos discípulos: "Quem de nós é o maior?", e o dito muito consolador: "Deixem que os pequeninos venham a mim, e não tentem impedi-los, porque aos tais pertence o reino de Deus." No relato do "jovem rico", cuja riqueza o fizera cativo de modo tal que se negou a cumprir a exigência de Cristo, é chamada de forma vívida a atenção dos discípulos para o perigo das riquezas. E assim a viagem, alguns de cujos incidentes os três relatam, mas não necessariamente numa completa ordem cronológica, avança para sua conclusão dramática. Em Jericó, Jesus, uma vez mais, revela seu poder de realizar milagres, incluindo aquele da restauração da vista. Assim, o grupinho, tendo Jesus por líder, avança para Jerusalém e para a cruz. (3) Seu Clímax ou Culminação. Os eventos narrados por todos são encontrados em Mc 11-16; Mt 21-28; e Lc 19.2924.53. Essas extensas seções descrevem os acontecimentos que transpiraram durante a semana da paixão, seguidos pela ressurreição. Lucas acrescenta o relato da ascensão. Quase a quinta parte do Evangelho de Lucas é dedicada ao tema dos amargos sofrimentos do Salvador, desde o Getsêmani ao Gólgota,7 e aos eventos que imediatamente os precedem. Em Marcos e Mateus, a proporção é ainda maior; cerca de um terço de cada um desses 7
O nome "Getsêmani" ocorre somente em Mc 14.32 e Mt 26.36, não em Lucas. Semelhantemente, "Gólgota" é encontrado somente em Mc 15.22 e Mt 27.33.
20
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
Evangelhos tem a ver com esses acontecimentos. Além disso, o que é certo com respeito aos Sinóticos não é menos válido para João. Os quatro são "Evangelhos da paixão com uma extensa introdução". 8 É verdade, sem dúvida, que "Jesus de seu trono nas alturas veio a este mundo para morrer". Por conseguinte, em oposição aos pontos de vista diversos e errôneos, nunca será demais pôr ênfase sobre o fato de que aqui não estamos tratando com Vidas de Cristo, e, sim, com Evangelhos, livros que contêm as boas novas de salvação para os homens perdidos no pecado e na desgraça. É especialmente nesses capítulos finais que os três se desenvolvem num paralelismo surpreendente. Os três registram os seguintes eventos: a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, como Príncipe da paz. As multidões, com suas mentes dominadas por antegozos de glórias terrenas, lhe dão boas-vindas com desenfreado entusiasmo. Chegado ao templo, notando que seu grande átrio exterior havia se transformado em mercado, num antro de mafiosos, Jesus o purifica. Quando sua autoridade é desafiada, mui apropriadamente ele inquire de seus críticos se o batismo de João — o batismo praticado por esse mesmo João que tinha dado testemunho daquele que justamente agora está expulsando os mercadores — era divino ou era simplesmente humano em sua origem. Para maior clareza, ele acrescenta a parábola dos lavradores maus. Ele responde às perguntas capciosas de seus oponentes, e por meio de uma pergunta que lhes dirige subentende claramente que o Filho de Davi é nada menos que o Senhor de Davi. Num discurso público — breve em Marcos e Lucas, mas de grande extensão em Mateus — ele adverte as multidões contra os escribas e fariseus, condenando-lhes a hipocrisia. Isso é seguido pelo seu discurso acerca da queda de Jerusalém e do fim do mundo. Os líderes tramam sua morte. Por uma soma de dinheiro, Judas concorda em entregá-lo em suas mãos. Jesus então envia s
M. Kühler, Der sogenannte historische Jesus und de Geschichtliche, biblische Christus, Munique, 1956, p. 591.
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MATEUS discípulos — segundo Marcos, "dois"; segundo Lucas, "Pedro e João" — a fazer os preparativos para a Páscoa. Durante a ceia pascal o traidor é desmascarado. O Mestre prediz que ele será abandonado por todos os discípulos, inclusive Pedro. Apesar dos veementes protestos deste, Jesus mantém sua predição. A instituição da Ceia do Senhor é seguida pelas agonias no Getsêmani. Com um beijo, Judas trai a Jesus. Este deixa-se agarrar. Ele é levado à casa do sumo sacerdote, onde é maltratado e vilipendiado. Segue-se a narrativa das três vezes que Pedro negou Jesus. De manhã muito cedo o Sinédrio condena Jesus. Este é levado perante Pilatos, o governador romano, que o interroga a respeito de seu reino. Ante a chance de uma escolha, a multidão pede o livramento de Barrabás, um perigoso criminoso, de preferência a Jesus; e, instigada pelos principais sacerdotes e anciãos, exige que Jesus seja crucificado. Pilatos, enfim, cede. De caminho para o local de execução, Simão de Cirene é compelido a carregar a cruz de Cristo. Em todos os três Evangelhos algo é dito sobre a inscrição (no cimo da cruz), as zombarias que Jesus suportou e as três horas de trevas. Com um forte clamor, Jesus morre. O véu do templo é partido. O centurião dá seu testemunho. As mulheres que haviam seguido a Jesus desde a Galiléia observam todas essas coisas e em seguida mantêm vigília diante do sepulcro. Este era um sepulcro novo, e pertencia a José de Arimatéia, um dos seguidores de Cristo, que obtivera permissão de Pilatos para remover o corpo de Jesus da cruz e sepultá-lo. Na manhã do primeiro dia da semana, as mulheres, chegando muito cedo, notam que a pedra do sepulcro fora removida. De um mensageiro celestial — ou: de mensageiros celestiais ("dois homens com vestes resplandecentes" — Lucas) — receberam a assombrosa notícia: "Ele ressuscitou". b. Nas palavras gregas idênticas, ou quase idênticas empregadas nos relatos paralelos. E surpreendente como, com quanta freqüência, não apenas o pensamento contido, porém ainda as próprias palavras empre22
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
gadas no original e refletidas na tradução são as mesmas, ou quase as mesmas, nos três relatos. Quem quiser poderá ver isso por si próprio justapondo os três trechos em que a história da purificação de um leproso é narrada (Mc 1.40-44; Mt 8.2-4; e Lc 5.12-14); ou as passagens paralelas em que Jesus defende seus discípulos por festejarem, em vez de jejuarem (Mc 2.1822; Mt 9.14-17; e lc 5.33-39); ou o triplo relato da alimentação dos cinco mil (ver especialmente Mc 6.35-37; Mt 6 14.15, 16; e Lc 12,13; também Mc 6.41-43; Mt 14.19b,20; e Lc 9.16,17). Estes são apenas uns poucos dos exemplos que podem ser apresentados. 9 c. Na ordem dos eventos conforme são registrados nesses três Evangelhos Essa semelhança na seqüência já está implícita no sumário do conteúdo dos três, como demonstrado supra, em 1 .a, (1), (2), (3). Demonstrou-se que, num sentido muito geral, a seqüência é a mesma em todos os três Evangelhos. Por exemplo, isso é evidente a qualquer um que queira comparar a ordem em Mateus e em Marcos e notar que, com respeito ao primeiro, deve-se levar em conta seu método temático e os seis discursos. Ver pp. 4250. E especialmente com respeito ao Evangelho de Lucas, contudo, que alguns vêem uma dificuldade.10 Certo autor que fez um estudo do problema sinótico diz: "Em Lucas, como qualquer um que estudou sabe, é distintamente mais difícil que nos outros evangelhos lembrar o arranjo e ordem dos eventos e se'' B. H. Streeter, The Four Gospel, pp. 160,161, diz que uma proporção de palavras que varia entre 30% e 60% das palavras em Marcos é também encontrada em Mateus e Lucas, enquanto muitas das palavras restantes de Marcos são comuns em Marcos e Mateus e Lucas. De Solages, em sua gigantesca obra, A Greek Synopsis of the Gospels (1.129 páginas!), Leiden, 1959, fornece listas detalhadas e muitos diagramas e tábuas. Ver também W. G. Rushbreah, Synoptic on, e A. Huch, Synopsis of the First Tree Gospels. 111 Todavia, contraste-se com a observação de E. J. Goodspeed, que chama Lucas de "a delícia do harmonista", porém chama Mateus de "seu desespero", Matthew Apostle and Evangelist, Fidadélfía e Toronto, 1959, p. 116. (Daqui em diante quando o nome deste autor for citado seguido de op. cit., a referência é a este livro.)
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MATEUS ções."" Ora, é verdade que para muitos é certamente difícil guardar — e especialmente reter — na memória a ordem exata em que seguem nesse evangelho, o mais extenso dos quatro,12 os diversos eventos do relato dos primeiros tempos de nosso Senhor e seus muitos ditos. O que torna tudo mais difícil é a circunstância de que "duas vezes neste Evangelho, num caso ao longo de dois capítulos, e noutro por mais de oito, ele (Lucas) se afasta de suas fontes, e então, com igual clareza e de forma igualmente despercebida, volta novamente ao seu fio derivado de Marcos".' 3 Por último, porém não menos importante, a ordem dos eventos e o arranjo dos ditos na seção média de Lucas é tão livre, que freqüentemente se torna difícil determinar exatamente quando ou onde esse incidente particular ocorreu ou foi pronunciado aquele oráculo específico. Contudo, embora tudo isso seja facilmente admitido, ainda é possível perceber um notável grau de semelhança na ordem dos eventos como registrados por Marcos e por Lucas. Virtualmente, tudo o que o estudante tem a fazer é a. memorizar a ordem geral dos grandes eventos em Marcos; b. levar em conta que o capítulo 7 e os capítulos 10 a 17 de Lucas contêm pouco material de Marcos; e c. concentrar-se nos números 3 e 8. Com certas modificações, que serão mencionadas em momento oportuno, alguém pode então dizer que para encontrar no Evangelho de Lucas um tema tratado em Marcos é preciso adicionar 3 ao número do capítulo nos primeiros capítulos de Marcos, e 8 nos posteriores. Não se pretende dizer que tudo o que ocorre no Evangelho de Marcos é duplicado em Lucas, nem significa que quando os números 3 e 8 são usados, o capítulo exato é sempre e imediatamente encontrado. Às vezes é preciso avançar um pouco para o capítulo seguinte. Porém, continua sendo verdadeiro que pouco mais de 1/3 do que se encontra em Marcos 1 também 11 12
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J. H. Ropes, The Synoptic Gospels, Cambridge, 1960, p. 72. Embora Mateus tenha 28 capítulos e Lucas apenas 24, na Bíblia Edição Revista e Atualizada no Brasil, Mateus abrange 38 páginas e Lucas 41. Além do mais, como se observou anteriormente, Mateus tem 1.068 versículos e Lucas 1.149. Todavia, aqui se deve dar espaço ao fato de que a decisão de alguém a respeito das diversas variantes poderia alterar bem de leve as cifras. N a p . 73, Ropes se refere indubitavelmente a Lc 6.17—8.3 e 9.51—18.14.
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aparece em Lucas 4 (1+3=4); cerca de 3/4 de Marcos 2 é refletido em Lucas 5 (2+3=5). Teremos agora, uns poucos exemplos onde se adiciona 8 em vez de 3: mais da metade de Marcos 10 é reproduzido em Lucas 18 (10+8=18); cerca de 2/3 de Marcos 11 tem seu eco em Lucas 19 (11+8=19); etc. A similaridade na ordem dos eventos, mesmo entre Marcos e Lucas pode, então, ser ilustrada como segue:14 Paralelo entre Marcos e Lucas Sabendo que um tema é tratado em MARCOS capítulo
o tema e
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Jesus vence o tentador. Ele realiza milagres em Cafarnaum: cura um endemoninhado, a sogra de Simão e muitos outros ao entardecer. Ele parte para um lugar deserto. Todos o buscam. Prega nas sinagogas da GaJiléia.
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adicione e encontre seu paralelo em LUCAS capítulo 4
Naturalmente, a coluna 2 não deve ser considerada como um esboço completo do Evangelho de Marcos. Alguns temas foram propositalmente omitidos porque não se lhe aplica a regra ("Marcos + 3 "ou" Marcos + 8"), visto que têm paralelo em outros lugares no Evangelho de Lucas, ou este os omite. No primeiro caso, o paralelo às vezes ocorre muito perto do capítulo cuja indicação numérica é a soma do capítulo de Marcos + 3 ou + 8; por exemplo, Mc 4.1-20 não tem paralelo em Lc 7, segundo a regra 4 + 3 = 7 , senão em Lc 8.4-15; Mc 11.27-33 não têm o paralelo em Lc 19(11 +8= 19), senão Lc 20.1 -8. Portanto, é claro que se a divisão de nossas Bíblias em capítulos tivesse sido mais coerente, seria mais fácil orientar-se em Lucas, uma vez conhecido Marcos, e seria ainda mais clara a semelhança em material e ordem do conteúdo em toda a sua extensão. Porém, quem disputará o fato de que como um todo Stephen Langton, a quem geralmente se atribui a divisão em capítulos, fez uma tarefa excelente e útil? Quem estaria disposto a criticar com severidade este homem ocupadíssimo, este campeão da lei e da ordem, valente defensor da Carta Magna? Além disso, mesmo como está, espero que a tábua se preste a dois serviços úteis: a. que cumpra o propósito primário de demonstrar que os Sinóticos — neste caso Marcos e Lucas — são deveras muito semelhantes ao registrar a ordem geral dos acontecimentos \eb. que ajude o leitor a descobrir o seu caminho nos evangelhos.
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MATEUS o tema é
adicione e encontre seu paralelo em LUCAS capítulo 5 Ele cura um paralítico, chama Levi (Mateus), e é criticado por associar-se com publicanos. Responde a uma pergunta sobre o jejum. Ele cura um homem que tem uma mão mirrada e escolhe os Doze. (Não há material de Marcos em Lucas 7!) 15 Conta a parábola do Semeador e acalma uma tempestade. Cura o endemoninhado "geraseno", ressuscita a filha de Jairo e cura a mulher que sofria de hemorragia.
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No terceiro Evangelho, depois de 6.12-16 (a designação dos Doze; cf. Mc 3.1319). Lucas deixa por um momento de ser paralelo a Marcos. Neste ponto, o material que não aparece em Marcos se estende desde Lc 6.17—8.3 (ou, como alguns o vêem, desde Lc 6.20—8.3). Lucas introduz o que popularmente é conhecido como "O Sermão do Monte" (6.17-19; cf. Mt 5.1,2). Contudo, compare-se Mt 5.1 ("o monte") com Lc 6.17 ("planura"). Ele apresenta sua visão das Beatitudes (6.20-26; cf. Mt 5.3-12) e das seções cujos temas centrais são "Amai vossos inimigos" (6.2736; cf. Mt 5.43-48); "não julgueis" (6.37-42; cf. Mt 7.1-6); "a árvore é conhecida por seus frutos" (6.43-49; cf. Mt 7.13-29). Lc 7.1-10 contém o relato desse evangelista acerca da cura do servo do centurião (cf. Mt 8.5-13); 7.11-17. o da ressurreição do filho da viúva: 7.18-35. o da pergunta de João Batista e a resposta de Cristo (cf. Mt 11.2-19); 7.36-50. o da unção dos pés de Cristo praticada por uma mulher pecadora; e 8.1-3, o das andanças de Jesus, os Doze e algumas mulheres, "pelas cidades e vilas". Em 8.4ss (a parábola do semeador), o paralelo entre Lucas e Marcos é resumido uma vez mais. De fato, esta "história terrena com significação celestial" é encontrada nos três (cf. Mc 4.1 ss e Ml 13.1 ss).
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INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS Sabendo que um tema é tratado em MARCOS capítulo
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o tema é
Envia os Doze numa missão de pregar e curar. A perplexidade de Herodes. Os Doze regressam de sua missão. A alimentação dos cinco mil. Jesus recebe as criancinhas. História do "jovem rico" e sua aplicação. Jesus prediz o que lhe sucederá em Jerusalém e dá vista a um cego. Jesus entra triunfalmente em Jerusalém e purifica o templo. Os líderes tentam destruí-lo. Ele conta a parábola dos Lavradores Maus (ou: "A vinha"), responde a perguntas capciosas e, por meio de uma contrapergunta, afirma que o Filho de Davi é nada menos que o Senhor de Davi. Sinais do fim da exortação à vigilância.
adicione e encontre seu paralelo em LUCAS capítulo g 16
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"' No Evangelho de Lucas o que segue 9.18 (cf. Mc 6.43; e para Mc 6.44, veja-se Lc 9.14) não é paralelo de Mc 6.4ss, mas •"salta" para o tema discutido em Mc 8.27ss: "Quem dizem os homens que eu sou?", etc. No nono capítulo, tanto de Marcos como de Lucas, são tratados temas tais como: a transfiguração de Cristo, a cura do menino epiléptico, "quem é o maior" e o exorcista desconhecido. Em Lc 9.51, a seção peculiar a Lucas começa e se estende até 18.14. Assim não são relatadas as histórias que se encontram em Mc 6.45—8.26: Jesus anda sobre o mar; responde uma pergunta concernente ao não lavar as mãos; cura a filha de uma mulher sirofenícia; cura um surdo-mudo; responde ao pedido dos fariseus por um sinal do céu; e cura um cego em Betsaida. isso é facilmente lembrado: Marcos 7 não tem paralelo em Lucas, nem Lucas 7 tem paralelo em Marcos. 17 Mais da metade de Lucas 19 é material que não se encontra em Marcos (a história de Zaqueu e a parábola das minas).
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MATEUS o tema é
adicione
Ao aproximar-se a Páscoa, os líderes planejam a morte de Cristo. Preparações são feitas visando à Páscoa. Instituição da "Ceia do Senhor". Predição da traição e negação. O pequeno grupo parte para o Monte das Oliveiras (isto é, Getsêmani). A traição, prisão e o julgamento diante do conselho judaico e a negação de Pedro. Julgamento diante de Pilatos. O povo pede que se liberte Barrabás em detrimento de Jesus. Pede que Jesus seja crucificado. Simão de Cirene. Cenas do Calvário: a inscrição, as zombarias, as três horas de trevas, o alto clamor, a morte, o véu do templo se rasga, o testemunho do centurião, o interesse demonstrado pelas mulheres e a parte que toma José de Arimatéia na retirada do corpo da cruz e em colocá-lo em seu próprio sepulcro. As mulheres observam que a pedra do túmulo fora retirada. Explicação: "Ele ressuscitou".
A semelhança que caracteriza os sinóticos tem sido assim estabelecida. Além disso, dessa forma tem-se tornado um pou18
Lc 24.9-53 (a entrevista de Jesus com Cléopas e seu companheiro, a aparição em Jerusalém e a ascensão) contém muito pouco material que tenha um paralelo nos demais Sinóticos.
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co mais fácil orientar-se no estudo desses três evangelhos. No tocante a Marcos, isso se evidencia imediatamente. Quanto a Lucas, o fato de que os capítulos 1 e 2 contêm as narrativas da natividade, e o capítulo 3 a história acerca de João Batista, acrescida da genealogia de Jesus, já é bem conhecido. A memorização dos temas das parábolas de Lucas (ver p. 38), acrescida de uma leitura freqüente de Lucas 9.51-18.14 facilitará o domínio do conteúdo da seção intermediária desse Evangelho. Para completar o Evangelho, adicione-se a informação dada no esquema acima. Quanto a Mateus, ver pp. 40-48. 2. Sua Diferença a. Em conteúdo ou tema No tocante às parábolas, veja-se abaixo, sob o ponto (7), pp. 36-39. Ainda que, como já ficou demonstrado, num sentido geral o conteúdo seja o mesmo para os três evangelhos, contudo certas histórias e ditos são encontrados somente em Mateus, alguns somente em Marcos, alguns somente em Lucas, alguns somente em Mateus e Marcos, alguns somente em Marcos e Lucas e, por fim, mas não menos importante, alguns em Mateus e Lucas, exaurindo assim todas as possibilidades. (1) Somente em Mateus. As passagens e narrativas que são peculiares a Mateus são: a linhagem genealógica (ou seja, aquela registrada em 1.1-17; cf. Lc 3.23-38); o nascimento de Jesus, como Mateus a narra, e a visita dos magos (1.18-2.23); a relutância de João Batista em batizar Jesus (3.14,15); o estabelecimento de Jesus em Cafarnaum em cumprimento da profecia (4.13-16); seus ensinamentos e curas na Galiléia (4.23-25 em parte); o Sermão do Monte (5.1-8.1), até onde não tem paralelo em Lucas e, em muito menor extensão, em Marcos; a citação de Isaías 53.4 (8.17); a cura de dois cegos e de um endemoninhado (9.27-34; o envio dos Doze (9.35-10.42), na medida em que as frases não são refletidas em Marcos e Lucas; a referência a João Batista como "Elias" (11.14); o prefácio aos "ais" sobre as cidades impenitentes (11.20); o convite "vinde a mim" (11.27-30; 29
MATEUS porém, ver também Le 10.22); "misericórdia quero, e não sacrifício" (12.5-7); a dedução de que as obras de misericórdia são permitidas no sábado (12.11,12; ver, todavia, Lc 14.5); um milagre que leva à exclamação: "Seria este o Filho de Davi?" (12.22,23 em parte); "de seus tesouros tiram-se coisas novas e velhas" (13.51-53); a conduta de Pedro durante uma tempestade (14.28-31); "Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada" (15.12,13); "Mandai-a embora... senhor, ajudame!" (15.23-25); a cura de grandes multidões (15.30,31); "Vocês não podem discernir os sinais dos tempos!" (16.2,3); o fermento dos... saduceus (16.11,12); "Bem-aventurado és, Simão BarJonas" (16.17-19); "Isto jamais te acontecer" (16.22); o medo dos discípulos com relação à transfiguração de Cristo (17.6,7); a descoberta por eles de que "Elias" é João Batista (17.13); o imposto do templo (17.24-27); Jesus e a atitude para com os pequeninos (18.3,4,10,14); exortação a perdoar um irmão em falta, inclusive regras de disciplina (18.15-20); observações com respeito a eunucos (19.10-12); uma citação de Zc 9.9 em conexão com a entrada triunfal em Jerusalém (21.4,5); "Este é Jesus o profeta" (21.10,11); os louvores das crianças (21.14-16); "o reino de Deus será tirado de vocês" (21.43); o último discurso de Cristo no templo, em parte (cap. 23); certas passagens de seu discurso sobre as últimas coisas (cap. 24); "todo aquele que tomar da espada perecerá pela espada" (26.52-54; cf. Jo 18.11); o remorso e o suicídio de Judas, o traidor (27.3-10; cf. At 1.18,19); o sonho e a mensagem da esposa de Pilatos (27.19); a autovindicação de Pilatos, inclusive a responsabilidade do povo pela morte de Jesus (27.24,25); os inimigos citam o Salmo 22.8 não intencionalmente (27.43); vários "milagres do Calvário" (27.5153); aparecimento de Cristo às mulheres (28.9,10); estabelecese a guarda, os soldados fogem e são subornados (27.62,63; 28.24, 11-15); e, finalmente, a partida dos discípulos para a Galiléia, onde Jesus os encontra (28.16-18,20). (2) Somente em Marcos. Veja-se acima, p. 15. (3) Somente em Lucas. O terceiro Evangelho, em sua seção inicial, contém os seguintes e importantes relatos distinti30
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vos: o preâmbulo (1.1-4); o nascimento de João Batista e de Jesus, e a infância deste (1.5-2.52); a nota cronológica com respeito ao ministério de João Batista (3.1,2); perguntas de vários grupos ("que devemos fazer?") e sua resposta (3.10-14); uma genealogia do Messias (3.23-38); o regresso de Jesus à Galiléia (4.14,15; porém, ver Mc 1.14,15; Mt 4.17); uma pesca miraculosa, em sua maior parte peculiar a Lucas (5.1-11); os ditos de Cristo concernentes aos ricos, aos famosos e aos que emprestam (6.24-26,34); a ressurreição do filho da viúva de Naim (7,1117); a atitude para com Jesus por parte daqueles batizados por João e da daqueles batizados por Ele (7.29,30); a unção dos pés de Jesus por uma mulher pecadora no lar de Simão, o fariseu (7.36-39); os que acompanhavam a Jesus (8.1-3); e a sonolência dos discípulos que estavam com Jesus no monte da transfiguração (9.31,32). A seção central deste Evangelho é rica em parábolas; ver item (7), pp. 36-39. Além disso, esta seção tem os seguintes relatos e ditos exclusivos: um exemplo da falta de hospitalidade dos samaritanos (9.51-56); "qualquer um que olha para trás não é apto para o reino" (9.61,62); a missão dos setenta (10.1-24), na medida em que suas frases não têm paralelo noutro evangelho; Jesus recebido em casa de Marta e Maria (10.38-42); "Bemaventurado" — "Bem-aventurados são os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam" (11.27,28); fariseus e escribas censurados na casa de um fariseu (11.37-54; porém, cf. Mc 7.1ss., e várias passagens em Mt 23); "não temam, pequenino rebanho" (12.32,33; porém, vejam-se também Mt 6.20; 19.21;Mc 10.21); Jesus, causador de divisões (12.49-53; porém, cf. Mt 10.34-36); repreensão contra os que interpretam o aspecto do céu e não podem interpretar os sinais dos tempos em que vivem (12.5459; cf. Mt 16.1-3); curas no sábado (13.11-17; 14.1-6); "Sennor, são poucos os que se salvam?" (13.22,23); advertência concernente à porta, que uma vez fechada não se voltará a abrir (13.25-27; cf. Mt 25.11,12); denúncia de "aquela raposa", Herodes Agripa (13.31-33); os escarnecedores repreendidos 31
MATEUS (16.14,15); a cura de dez leprosos, só um deles voltou para agradecer (17.11-19); e a resposta de Cristo à pergunta: "quando o reino de Deus virá?" (17.20-22, 28, 29, 32, 34). Boa parte de 17.20-37 tem paralelo em Mt 24. O que vem em seguida é relatado exclusivamente — ou, em alguns casos, quase exclusivamente — por Lucas na seção final de seu Evangelho: o chamamento de Zaqueu (19.1-10); a solicitação dos fariseus para que Jesus repreendesse seus discípulos e sua resposta (19.39,40); o pranto de Jesus sobre Jerusalém e a predição de sua destruição (19.41-44); diversas passagens de seu discurso sobre "as últimas coisas" (21.19,22,24,26, 28,34-38). Boa parte do capítulo 21 é, não obstante, refletida alhures, especialmente em Mc 13 e Mt 24. As palavras pronunciadas à Mesa do Senhor e registradas exclusivamente (ou quase exclusivamente) pelo terceiro evangelista se encontram em 22.15-18 (porém, ver Mt 26.29); 22.28-32 e 35-38. O relato distintivo das experiências de Cristo no jardim se encontra em 22.43, 44, 48, 49, 51 e 53. O olhar que despertou a memória de Pedro e lhe comoveu o coração se encontra em 22.61. Quanto à versão de Lucas sobre a confissão de Cristo diante do Conselho, ver 22.68,70. De manhã Jesus foi levado primeiro a Pilatos, em seguida a Herodes (23.2,4-12). Foi levado de volta a Pilatos (23.1319; veja-se também Mc 15.6-9). Outros relatos que são principalmente de Lucas no capítulo 23 se referem a: a admoestação de Cristo dirigida a "as filhas de Jerusalém" (vv.27-36; cf. Mc 15.22,24; Mt 27.33-35); o ladrão impenitente e o penitente (vv.39-41); a oração deste e a resposta de Cristo (vv.42,43); a sétima "palavra da cruz" (v.46); e as multidões que voltam para casa batendo no peito (v.48). Há também uma descrição de José de Arimatéia (v.51); um relato sobre seu ato de bondade (v 53; porém, ver Mc 15.46; Mt 27.59,60); uma nota que especifica o dia exato da semana em que Jesus foi descido da cruz e posto no sepulcro de José (v.54); e uma referência às mulheres que preparam especiarias aromáticas e perfumes (v.56). O capítulo final de Lucas tem o seguinte conteúdo peculiar àquele Evange32
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
lho entre os Sinóticos: o efeito que a mensagem das mulheres sobre a ressurreição causa nos apóstolos (vv.10 e 11); a visita que Pedro faz ao sepulcro (v.12; cf. Jo 20.2-10); a conversação do Ressuscitado com Cléopas e seu companheiro (24.13-25; cf., porém, Mc 16.12,13); a oposição aos discípulos no domingo de manhã (24.36-49; porém, cf. Mc 16.14; Jo 20.19-25); e a ascensão (24.50-53; cf., porém, Mc 16.19 e At 1.9-12). (4) Somente em Mateus e Marcos. Antes de tudo, há a referência ao auditório, à alimentação e às vestimentas de João Batista (Mc 1.5,6; Mt 3.4,5). De acordo com Mc 3.7-12 e Mt 12.1521, Jesus cura um número grande de pessoas, porém proíbe publicidade. Este parágrafo também está em sua maior parte limitado a Mateus e Marcos; ver, contudo, Lc 4.41. Todavia, o detalhado relato de Marcos parece estar simplesmente resumido em Mt 12.15,16. Por outro lado, Mateus (vv. 17-21) adiciona a profecia que se acha em Is 12.1-4, adição esta que pode, também, ser apensa ao item (1) acima. Em seguida, há uma referência a muitas parábolas de Cristo (Mc 4.33,34; Mt 13.34). Uma narrativa bem conhecida que fica bem neste título — "somente em Mateus e Marcos" — é aquela que relata a ímpia festa de aniversário de Herodes e, em conexão com isso, a macabra morte de João Batista por decapitação (Mc 6.17-29; mais breve em Mt 14.3-12). Já se chamou nossa atenção para o fato de que Mc 6.458.26 é "a grande omissão de Lucas" (ver p. 26). Com exceção de dois milagres de cura gradual (Mc 7.32-37 e 8.22-26; para o qual ver p. 16), todo esse material pertence também ao paralelo Mateus e Marcos. Inicia-se com a vívida e consoladora história de Jesus caminhando sobre o mar (Mc 6.45-56; Mt 14.22-36). porém, nem tudo isso tem paralelo; por exemplo, Mt 14.28-31 pertence à matéria contida no item (1). Então vem o ensinamento de Cristo concernente à impureza cerimonial (Mc 7.1-23; Mt 15.1-20); a cura da filha de uma mulher siro-fenícia (Mc 7.24-31; Mt 15.21-29); a alimentação dos cinco mil (Mc 8.1-9; Mt 15.30-38); o pedido de um sinal (Mc 8.10-12; Mt 15.3933
MATEUS 16.4); e a advertência contra o fermento dos fariseus (Mc 8.1321; Mt 16.5-12). É digno de dúvida se este título19 deve abranger Mc 9.28,29 (cf. Mt 17.19), porém é verdade que a pergunta dos discípulos — "Por que não pudemos nós expulsá-lo?" (Mc 9.28) — é reproduzida em Mt 17.19. Em conexão com a predição de Cristo de que o Filho do homem ressuscitaria, os discípulos fazem a Jesus uma pergunta referente a Elias (Mc 9.10-13; Mt 17.1013). O ensino de Jesus com respeito ao divórcio e a segundas núpcias é também quase completamente reservado a Marcos (10.1 -12) e Mateus (19.1-12); contudo, veja-se Lc 16.18. Então vem o pedido dos filhos de Zebedeu (Mc 10.35-45; cf. Mt 20.2028; porém, veja-se também Lc 9.48 e 22.25); e a maldição sobre a figueira infrutífera (Mc 11.12-14.20-25; cf. Mt 21.18-22; porém, veja-se Lc 11.9; 17.6). Embora seja verdade que o discurso escatológico de Cristo encontra-se nos três, essa declaração deve ser restringida; por exemplo, a predição concernente aos falsos cristos e aos falsos profetas é confinada aos primeiros dois Evangelhos (Mc 13.21-23; Mt 24.23-25); o mesmo sucede com o fato de que não se poder predizer o dia da segunda vinda de Cristo (Mc 13.32; Mt 24.36). Buscar-se-á debalde no Evangelho de Lucas a unção ocorrida em Betânia. Não se pode encontrá-la em Lc 7.36ss., ainda que muitos pareçam pensar que ela aí esteja. No que respeita aos sinóticos, a história aparece somente em Mc 14.3-9 e Mt 26.6-13. Fora dos Sinóticos ela ocorre também em Jo 12.1-8. A partida para o Monte das Oliveiras, juntamente com uma importante predição, encontra-se também somente em Mc 14.2628; Mt 26.30-32.20 O julgamento no palácio do sumo sacerdote, imediatamente depois da prisão, está extensamente confinado aos dois primeiros Evangelhos (Mc 14.55-65; Mt 26.59-66), embora Lucas, tanto quanto os outros, relate os maus tratos que ''' Como o faz B. H. Streeter. op. cit., p. 196; porém, na página precedente inclui Mc 9.29 na lista de passagens de Marcos que "faltam em Mateus e Marcos". 2 " Presume-se aqui que Lc 22.39 tenha seu próprio paralelo em Mc 14.32 e Mt 26.36.
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Jesus recebeu ali. Sobre o tema do silêncio de Cristo perante Pilatos (Mc 15.2-5; Mt 27.11-14), Lucas mantém silêncio! A escolha que o povo faz de Barrabás, em preferência a Jesus, embora relatada nos três evangelhos, encontra-se com mais detalhes nos dois primeiros (Mc 15.6-11; Mt 27.15-21) do que em Lucas. Dois outros importantes detalhes da história da crucificação estão confinados a Marcos e Mateus, ou seja, a coroa de espinhos (Mc 15.17-20; Mt 27.29-31) e o grito de agonia de Cristo (Mc 15.34-36; Mc 27.46-49). Finalmente, excetuando Lc 24.47, a Grande Comissão está confinada aos dois primeiros Evangelhos. Embora essencialmente a mesma, as duas declarações diferem em certos detalhes (Mc 16.15,16; Mt 28.19-21). (5) Somente em Marcos e Lucas. Os 24 versículos de Marcos que têm paralelo somente em Lucas são os seguintes: a expulsão de um demônio em Cafarnaum (Mc 1.23-28; Lc 4.3337); o propósito de Cristo ao pregar (Mc 1.35-38; Lc 4.42,43); as lâmpadas devem iluminar, e os ouvidos devem ouvir (Mc 4.21-24; Lc 8.16-18); o regresso dos Doze (Mc 6.30; Lc 9.10); o exorcista desconhecido (Mc 9.38-41; Lc 9.45,50); as "casas das viúvas" e "as duas moedas da viúva pobre" (Mc 12.40-44; Lc 20.47; 21.1-4). (6) Somente em Mateus e Lucas. A estimativa é que há cerca de duzentos versículos comuns a ambos. Em seguida damos uns poucos exemplos: MATEUS 3.7-10,12 4.1-11 5.3,4,6,11,12 5.18 5.39-48 (em sua maior parte)
LUCAS 3.7-9,17 4.1-13 6.20-23 6.17 6.27-36 (maior parte)
6.9-13 6.19-21,25-33 7.7-11 8.5-13
11.2-4 12.22-34 11.9-13 7.1-10
TEMA Exemplo da pregação de João Batista A história das tentações de Cristo Algumas das bem-aventuranças Acerca da lei Amai a vossos inimigos, porque também Deus é bom para com os maus. A Oração do Senhor Não estejais ansiosos Exortação à oração História da fé do centurião 35
MATEUS MATEUS 8.19-22 9.37,38 10.26-33 11.2-11,16-19
LUCAS 9.57-60 10.2
12.2-9 7.18-20, 22-28,31-35
TEMA Implicações do discipulado Exortação a orar por obreiros "Vocês valem mais que muitos pardais" História da dúvida de João Batista, e o testemunho de Cristo acerca deste
No tocante à paixão e ressurreição não há narrativas paralelas que sejam peculiares a Mateus e Lucas. (7) Parábolas. As parábolas de nosso Senhor têm sido classificadas de diversas maneiras. Também, elas têm sido contadas de formas diferentes. Em parte se deve ao fato de que "As Bodas do Filho do Rei" (Mt 22.1-14) e "A Grande Ceia" (Lc 14.15-24) são consideradas por alguns como variantes do que foi originalmente a mesma parábola. O texto mais antigo dessa parábola, segundo a teoria, encontra-se em Lucas. De acordo com esse ponto de vista, a revisão dela por Mateus pressupõe a destruição da cidade de Jerusalém (70 d.C.).2' De forma semelhante, a Parábola das Minas (Lc 19.11-27) é considerada por alguns como uma variante da Parábola dos Talentos (Mt 25.14-30).22 21
Ver G. D. Kilpatrick, The Origins of the Gospel according to St. Mathew, Oxford, 1946, p. 6. Algo semelhante é o ponto de vista de G. Bornkamen, Jesus von Nazareth, Stuttgart, 1956, pp. 18ss, e de C. H. Dodd, The Parables of the Kingdom, Londres, 1935, p. 121. R. V. G. Tasker, The Gospel according to St. Mathew (Tyndale New Testament Commentaries), pp. 206 e 207, se une a eles em considerar essa teoria como uma possibilidade. Ainda que ele mesmo considere mais provável a teoria das duas parábolas, ele vê Mt 22.5,6 como uma adição marginal ou glosa incorporada ao texto depois da queda de Jerusalém. 22 De fato, S. MacLean Gilmour produziu um relato que. assim diz ele, "foi básico para ambas as visões", The Gospel according to St. Luke (The Interpreter s Bible), Nova York c Nashville, 1952, Vol. Vlll, p. 327. Esse ponto de vista, de uma forma ou de outra, é compartilhado por muitos outros, entre os quais se encontram JülicherFascher, Weiss, H. Holzmann, Bultmann e Kiostermann. A. Plummer, ao contrário, observa: "E provável que esta [a parábola das minas] seja distinta da parábola dos talentos... E mais provável que Jesus tenha pronunciado semelhantes parábolas em diferentes ocasiões e não que Mateus ou Lucas tenham feito graves confusões quanto ao; detalhes da parábola assim como com respeito ao tempo e lugar em que foram pronunciadas". The Gospel according to St. Luke (International Critical Commentary). Nova York, 1910, p. 437.
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Em ambos esses casos, contudo, as diferenças sobrepujam as semelhanças a uma extensão tal que pareceria não haver justificativa para considerar como uma só as que o texto apresenta como duas. Quanto a Mt 22.1-14 e Lc 14.15-24, nos achamos sobre terreno firme ao desistirmos de todo esforço de "reconstruir", e em ambos os casos aceitamos o texto grego apresentado nas melhores edições do Novo Testamento Grego. Quando fazemos assim, notamos que há, sem dúvida, uma considerável área de semelhança entre as duas parábolas. Em ambos os casos um banquete é preparado, pessoas são convidadas, as quais menosprezam o convite, e então os desvalidos são convidados, enchendo-se assim a casa de hóspedes. Porém, as diferenças não são ainda mais notáveis? A parábola das Bodas — ou Festa clas Bodas — do Filho do Rei (Mt 22.1-14) consiste de três partes distintas (ver comentário sobre essa passagem), das quais a última falta completamente na parábola da Grande Ceia. Na primeira dessas duas parábolas conta-se-nos de um rei que prepara uma festa para o casamento de seu filho; na segunda, sobre um homem que preparou uma grande ceia. Na primeira, os convidados simplesmente "não fizeram caso" do convite; na segunda, apresentaram excusas. Na primeira, alguns dos convidados maltrataram e até mesmo mataram os servos que lhes foram enviados com o convite; esse detalhe está completamente ausente da segunda. Assim também, naturalmente, na parábola de Lucas nada há que corresponda à destruição dos assassinos e de sua cidade, uma ação mencionada na parábola em Mateus. Além disso, o cenário histórico de ambas as parábolas difere amplamente. Jesus contou a parábola da Grande Ceia quando Ele mesmo se achava reclinado numa mesa como convidado. A parábola da Festa das Bodas pertence a uma data posterior, à atividade de Cristo em Jerusalém durante a semana da Paixão. A situação referente à parábola das Minas, comparada com a dos Talentos, é semelhante. É difícil ver como a história de um nobre que dá a cada um de seus servos uma pequena soma 37
MATEUS de dinheiro, em quantidades iguais, possa ter algo a ver com a de um homem que confia quantidades incomparavelmente maiores a seus servos, dando a cada um deles uma soma amplamente diferente! Outra razão para a diferença na contagem final das parábolas é o fato de que ainda não se conseguiu uma resposta aceitável a todos à pergunta: "O que é uma parábola?" Ainda quando se concorda que "uma parábola é um símile ampliado", em distinção a uma alegoria que é "uma metáfora ampliada" — distinção útil, porém não de todo correta — não se conseguiu um acordo unânime. Todavia, a diferença de opinião não é muito importante, já que diz respeito apenas a uns poucos dos títulos que aparecem na seguinte lista: (a) Peculiares a Mateus O joio (13.24-30,36-43) O tesouro escondido (13.44) A pérola de grande preço (13.45,46) A rede (13.47-50 O servo incompassivo (18.23-35) Os trabalhadores na vinha (20.1-16) Os dois filhos (21.28-32) A festa de bodas do Filho do Rei (ou as bodas do Filho do Rei, a festa de bodas, as bodas reais, 22.1-14) As cinco virgens prudentes e as cinco insensatas (25.1-13) Os talentos (25.14-30) (b) Peculiares a Marcos A semente que cresce em secreto (4.26-29) (c) Peculiares a Lucas Os dois devedores (7.40-50) O bom samaritano (10.29-37) O amigo importuno (ou o amigo à meia-noite, 11.5-13) O rico insensato (12.13-21) Os servos vigilantes (12.35-40) A figueira estéril (13.1-9) Os principais assentos (14.7-11) 38
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A O O A
grande ceia (ou o convite desprezado, 14.15-24) construtor desprevenido (14.28-30) rei desprevenido (14.31-33) dracma perdida (15.8-10). Na verdade, é a parábola de uma mulher que procura a sua moeda perdida, e sua alegria ao achá-la. O filho pródigo (inclusive seu irmão mais velho, 15.1132). Na verdade é a parábola do amor saudoso de um pai. O mordomo previdente (ou o mordomo injusto, 16.1-13) O rico e Lázaro (16.19-31) O servo que lavra (ou o servo inútil, 17.7-10) A viúva perseverante (ou o juiz injusto, 18.1-8) O fariseu e o publicano (18.9-14) As minas (19.11-27) (d) Peculiares a Mateus e Lucas Os dois construtores (Mt 7.24-27; Lc 6.47-49) Crianças assentadas nas praças (Mt 11.16-19; Lc 7.31-35) O regresso do espírito imundo (Mt 12.43-45; Lc 11.24-26) O fermento (Mt 13.33; Lc 13.20) A ovelha perdida (Mt 18.12-14; Lc 15.1 -7). É na verdade a parábola da busca da ovelha perdida, pelo pastor, e sua alegria ao achá-la. O servo fiel versus o infiel (Mt24.45-51; Lc 12.42-48) (e) Comuns aos três Evangelhos O semeador (ou os quatro tipos de terrenos, Mc 4.3-9, 14-20; Mt 13.3-9,18-23; Lc 8.4-15) A semente de mostarda (Mc 4.30-32; Mt 13.31,32; Lc 13.18,19) Os arrendatários malvados (ou os meeiros ímpios, ou a vinha, ou, para usar o título antigo, os lavradores malvados, Mc 12.1-9; Mt 21.33-41; Lc 20.9-16) De tudo isso torna-se evidente que, como era válido com respeito aos outros elementos constitutivos do conteúdo ou do tema dos primeiros três Evangelhos, bem como no que concerne 39
MATEUS às parábolas, há considerável variedade na distribuição. Marcos tem somente uma parábola que pode ser estritamente qualificada de sua, Mateus tem dez, Lucas tem dezoito,23 e há nove que aparecem em mais de um Evangelho. Assim, de acordo com essa lista, há 38 parábolas no todo. Ao ampliar-se o conceito de "parábola", alguns acrescentariam várias outras; por exemplo, uma lâmpada debaixo de uma vasilha (Mt 5.14-16 e paralelos), um remendo de pano novo em roupa velha (Mt 9.16, etc.), vinho novo em odres velhos (Mt 9.17, etc.) e muitas outras. Embora o uso da palavra "parábola" seja plenamente legítimo, de modo que o número total fornecido por alguns autores chega a sessenta ou ainda a oitenta, aqui seguimos a definição mais geral de parábola como sendo um relato ilustrativo. b. No vocabulário e estilo Embora seja verdade que com freqüência não só o pensamento, porém as próprias palavras usadas no original e refletidas nas traduções, sejam as mesmas, ou quase as mesmas, nos três Evangelhos, isso, contudo, nem sempre é assim. Onde os relatos são paralelos e registram mais as ações que os ditos de Jesus, Marcos é geralmente (não sempre!) o mais difuso. Dessarte, na história em que Jesus acalma uma tempestade (a registrada em Mc 4.35-41; Mt 8.18,23-27; Lc 8.22-25), Marcos, no original, usa 118 palavras, Lucas 94 e Mateus 85. Como já ficou expresso (ver p. 15), 606 dos versículos de Marcos (de um total de 661) são comprimidos em quinhentos versículos de Mateus. Essa questão de palavras facilmente se desloca para a questão de estilo. Todavia, visto que, com respeito a Marcos e Mateus, este tema virá a lume novamente, 24 no presente contexto só é 21
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Lucas também tem seis milagres não registrados nos outros Sinóticos; Mateus tem apenas três peculiares ao seu Evangelho; Marcos apenas dois. Os seis de Lucas são: a pesca miraculosa (5.1-11). a ressurreição do filho da viúva de Naim (7.1117), duas curas no sábado (a cura da mulher que andava encurvada e do homem que sofria de hidropisia. 13.11 -17 e 14.1 -6), a purificação dos dez leprosos (17.1119) e a restauração da orelha de Malco (22.51). Cf. (3) acima. Para o estilo de Marcos, ver p. 60, para o de Mateus, pp. 60 e 124. Quanto ao estilo de Lucas, consulte-se comentário sobre esse Evangelho.
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necessário assinalar, à guisa de resumo, que o estilo de Marcos é não somente o mais difuso, mas também o mais vívido; o de Mateus é mais sucinto e rebuscado; e o de Lucas é o mais versátil dos três. c. Na "disposição " e na ordem dos eventos registrados Já ficou assinalado que, num sentido bem geral, a seqüência em que se seguem os grandes acontecimentos na peregrinação terrena de Cristo é o mesmo nos três Evangelhos (ver pp. 18-22). Não obstante, há diferenças importantes. Essas aparecem quando alguém segue, em primeiro lugar, o curso da narrativa de Marcos, e então, tendo feito isso cuidadosamente, compara-a com a história tal como é desenvolvida em Mateus e Lucas. Uma ilustração lançará luz sobre esse fato. Os três Evangelhos podem ser contemplados sob o simbolismo de três rios. O primeiro rio é uma corrente que flui velozmente. Seu fluxo avança em torvelinho, e de forma turbulenta, através de terreno escabroso. Revolve-se e se retorce, em curvas abruptas, ora à direita, ora à esquerda. Suas margens exibem uma paisagem exuberante. Assim é o Evangelho de Marcos. Leiam-se os primeiros cinco capítulos. Note-se quão rapidamente a ação se move, embora, naturalmente, Jesus Cristo, poderoso em palavras e feitos, esteja sempre no centro dela. O panorama multicor se desloca rapidamente de uma a outra paisagem, cada qual mais inspiradora. Enfocamos um vislumbre de João Batista, vestido de pelo de camelo. Ele está pregando e batizando. Ele batiza até mesmo aquele que confessa ser infinitamente maior do que ele mesmo (João). Há uma mudança de cenário, e nos é mostrado um deserto onde Satanás é derrotado pelo Descendente da mulher. Esta cena, também, passa quase tão rapidamente quanto foi introduzida. Agora vemos o Senhor proclamando "o evangelho do reino". Quatro pescadores surgem em cena. Eles são convocados a se fazerem "pescadores de homens". Ali seguem cenas em que se revela de forma espantosa o poder do grande Médico, ante o espanto dos espectadores: um homem possuído de um espírito imundo é curado instantaneamente; assim tam41
MATEUS bém sucedeu à sogra de Simão. E agora o sol se põe, e isso não somente no horizonte físico, mas para muitos também sobre os seus dias de tristeza e desgraça: "E ao chegar a noite, ao pôr-dosol, lhe trouxeram todos os que tinham enfermidades e os que eram possuídos por demônios... E ele curou muitos que tinham diversas enfermidades e expulsou muitos demônios." Certamente que foi um belo pôr-do-sol! Em seguida vemos "um lugar solitário". onde "ainda muito cedo" o Médico dos médicos derrama o seu coração em oração. A oração é seguida de pregação, e esta, uma vez mais, é seguida pela cura. Aqui é um endemoninhado de quem é expulso um espírito maligno; ali é um leproso que é purificado; e mais adiante, um paralítico. Os feitos de misericórdia são seguidos de palavras de misericórdia: concernente aos publicanos, ou em defesa da tese de que o sábado foi feito para o homem, e não vice-versa. Outros milagres são rapidamente seguidos pelo chamamento dos Doze, por uma breve exposição sobre "a blasfêmia contra o Espírito santo", por algumas parábolas, pela pacificação de uma tempestade e por novas manifestações de poder curador, inclusive a ressurreição de um morto. Assim o Evangelho de Marcos, à semelhança de um rio turbulento e pitoresco, se precipita impetuoso, até que, no capítulo 16, se aproxima do túmulo, com sua grande pedra removida. Algumas mulheres, amigas de Jesus, fogem após ouvirem que o ocupante do túmulo o deixara vazio, ressuscitara dos mortos! O segundo rio é muito mais sereno. Não se retorce nem serpenteia como o primeiro; antes, flui suave e majestosamente. As vezes até mesmo há um repouso, por assim dizer, criando um lago, permanecendo ali algum tempo, e então fluindo uma vez mais, até que novamente se alargue numa expansão semelhante de águas. Essa ação é repetida diversas vezes antes de o rio chegar ao seu destino. Assim é o Evangelho de Mateus. Esta composição, realmente mui bela, do princípio ao fim; mantém o hábito de deter-se por algum tempo num tema importante, enquanto Marcos está sempre avançando apressadamente, apresentando ante os nossos olhos ora esta cena, ora aquela. E dessa forma que Marcos apresenta João Batista (1.1-6). O 42
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mesmo faz Mateus (3.1-6; cf. Le 3.1-6). Entretanto, enquanto Marcos dedica apenas dois versículos à pregação de João, Mateus se alonga sobre esse tema em não menos que seis versículos; Lucas ainda mais, em doze versículos. Após um breve relato do batismo do próprio Jesus, por João, Marcos sumaria a tentação (1.12,13: novamente em apenas dois versículos). Mateus, não obstante, detém o fluxo dos eventos usando onze versículos para relatar as três tentações de forma distinta (4.1-11: cf. Lc 4.113). Marcos menciona o fato de que Jesus entrou na Galiléia pregando o evangelho de (o reino de) Deus (1.14,15). Porém Mateus, tendo introduzido esse tema (4.17,23), dedica-lhe três capítulos, dando-nos uma amostra dessa pregação (O Sermão do Monte, 5.1-8.1). Marcos, em seu vívido relato de Jesus, passa do milagre à oração, à pregação, ao chamamento dos discípulos, etc., segundo já se demonstrou, sempre se deslocando de um tema para outro. Mateus, por outro lado, agrupa as histórias de seus primeiros milagres numa narrativa quase contínua que se estende ao longo de 68 versículos (8.1-9.34), com duas breves interrupções que num todo compreendem apenas treze versículos (8.19-22; 9.9-17). É evidente que Mateus descobriu novamente um tema e se demora sobre ele. As seguintes colunas paralelas deixarão esclarecido. Começando com Mateus, na primeira coluna, ver como esse evangelista enfeixa vários dos milagres que em Marcos estão espalhados por quatro capítulos. Ele adiciona um que é encontrado também em Lucas (a cura do servo do centurião) e outros dois. A segunda e terceira colunas revelam que em tais casos em que Lucas forma um paralelo com Marcos, o paralelo é geralmente muito estreito, de modo que aqui também é válida a regra mencionada anteriormente (ver pp. 25-28), ou seja, o capítulo de Marcos + 3 — às vezes + 4 — igual ao capítulo de Lucas. Tema Um leproso O servo do centurião A sogra de Pedro Muitos enfermos ao entardecer
Mateus 8.1-4 8.5-13 8.14,15 8.16,17 43
Marcos 1.40-45 1.29,31 1.32-34
Lucas 5.12-16 7.1-10 4.38,39 4.40,41
MATEUS Tema Uma tempestade Endemoninhados gadarenos Um paralítico A mulher com fluxo de sangue A filha de Jairo Os dois cegos Um endemoninhado mudo
Mateus 8.18,23-27 8.28-9.1 9.1-8 9.20-22 9.18,19, 23-26 9.27-31 9.32-34
Marcos 4.35-41 5.1-20 2.1-12 5.25-34 5.22-24, 35-43
Lucas 8.22-25 8.26-39 5.17-26 8.43-48 8.40-42, 49-56
A mesma feição temática é também evidente em Mt 9.3638, onde se enfatiza a necessidade de obreiros, seguida pelo capitulo 10, o qual contém em detalhes a comissão para os obreiros. Contraste-se isso com os poucos versículos empregados por Marcos (6.7ss.) nessa conexão. Jesus é apresentado como que falando por parábolas (Mc 4.1,2; cf. Mt 13.1-3a). Por um momento, mesmo Marcos se torna temático, por assim dizer, e realmente relata algumas dessas parábolas (4.3-32), porém é um historiador impetuoso demais para permanecer aí por muito tempo. Em geral, ele aprecia relatar especialmente os feitos de Jesus, em vez de suas palavras. Por isso, à sua breve reprodução dessas parábolas ele prontamente acrescenta uma conclusão sumariada: "E com muitas parábolas como essas ele (Jesus) lhes falou a palavra" (4.33). Em seguida ele volta ao tema do Jesus operador de milagres em ação, que acalma uma violenta tempestade e igualmente cura um violento endemoninhado. Em contraste, o relato das parábolas feito por Mateus é muito mais extenso (13.3-53). Igualmente, em Mt 18, a pergunta sobre quem era o maior se torna ocasião para um discurso extenso sobre a bondade dispensada aos pequeninos de Cristo, e, em geral, sobre a virtude da compaixão e o exercício do espírito perdoador. Aqui, também, o tratamento em Mc 9 e Lc 9 é mais condensado. A censura contra os escribas e fariseus é sumariada de forma sucinta em Lucas (12.38-40), porém Mateus novamente dedica um capítulo inteiro ao tema (cap. 23). E ainda o discurso 44
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
escatológico de Cristo é cerca de duas vezes e meia mais longo em Mateus (caps. 24 e 25) do que em Marcos (cap. 13). Quando Mateus descobre um tema, ele se demora nele. Quando Marcos descobre uma ação, ele a retrata, e isso de uma maneira interessante e com muitos detalhes, de modo que, como já ficou expresso, em vários desses casos seu relato é o mais longo. O contraste é, todavia, de modo algum absoluto. Marcos, também, tem um alto apreço pelas palavras de Jesus, e narra muitas delas. Porém, sua ênfase é posta na ação, enquanto Mateus a põe no discurso. Quando se apreende a estrutura básica ou sistema de Mateus — rio, lago; rio, lago; etc. —, é muito mais fácil alguém encontrar o caminho nesse evangelho, depois de a direção principal de Marcos ter sido gravada na memória. Para começar, é um fato bem conhecido que a genealogia e a história da natividade não são encontradas no Evangelho de Marcos, porém respectivamente em Mt 1.1-17 (cf. Lc 3.23-38) e 1.18-2.23 (cf. Lc 1 e 2). Marcos começa abruptamente com o relato de João Batista, que se encontra tanto em Mc 1 como em Mt 3. Já ficou demonstrado que Mateus, em seu modo característico, se detém para dar-nos uma amostra bastante extensa da pregação de João, enquanto Marcos dedica apenas um par de versículos a esse tema. Não é surpreendente, pois, que o primeiro capítulo de Marcos tenha também lugar para a história da tentação de Cristo; enquanto, ao contrário, no Evangelho de Mateus é no capítulo 4 que devemos procurá-lo. Igualmente, o chamamento dos primeiros quatro discípulos é encontrado tanto em Mc 1 como em Mt 4. Mt 5 a 7, como quase todos sabemos, contêm o Sermão do Monte, com seu tema: o evangelho do reino. Este discurso, o primeiro entre seis, aparece em Marcos apenas em versículos avulsos. O conteúdo de Mt 8 e 9 já foi notado. Por meio dessas maravilhosas obras Jesus revela seu poder real sobre o universo físico, sobre os espíritos maus e sobre o domínio da doença e da morte. Não é de estranhar que a pregação do evangelho do reino, juntamente com a exibição de milagres do reino, seja seguida por Mt 10, onde se acha o registro do envio dos Doze como 45
MATEUS embaixadores do reino, o segundo grande discurso; pelo capítulo 11, onde se registram as palavras de Cristo em homenagem ao arauto do reino, ou seja, João Batista; pelo capítulo 12, onde se registra a condenação dos inimigos do reino;25 e, finalmente, por Mt 13, onde se registra o terceiro grande discurso, que contém as parábolas do reino. Isto nos conduz ao capítulo 14 do Evangelho de Mateus. Falando em termos gerais — dando lugar, pois, às exceções —, a partir de Mt 14.13 (cf. Mc 6.32) em diante, o relato de Mateus segue em paralelo ao de Marcos de forma bastante estreita. Devese lembrar que, na seção final do Evangelho de Lucas, a chave para orientar-se era "Marcos + 8". Ver pp. 25-28. Para orientarmo-nos no tocante a Mateus, o processo é o mesmo. Todavia, como já foi indicado, de vez em quando Mateus se detém a fim de registrar um discurso de Jesus (o rio se dilata e se converte em lago). Ele faz isso com maior freqüência e em maior extensão do que Marcos e Lucas. Em conseqüência, no tocante a Mateus, à fórmula "Marcos + 8" deve-se acrescentar gradualmente "Marcos + 9", "Marcos + 10", etc. Portanto, note-se o seguinte esquema, no qual, para cada capítulo, indicou-se somente um evento principal: Sabendo que o assunto é um tema é tratado em MARCOS capítulo 6
A alimentação dos 5 mil 26
acrescentar e achar seu paralelo em MATEUS Capítulo 14 8
7
A cura da filha da mulher siro-fenícia
8
15
8
"Quem dizem os homens que eu sou?"
8
16
8
17
A
9
A transfiguração
25
Em Ml 16.1-12 (cf. Mc 8.11-21) esse tema prossegue. ' Em Marcos, a alimentação dos cinco mil e a dos quatro mil se encontram, respectivamente, nos capítulos 6 e 8; em Mateus, respectivamente, nos capítulos 14 e 15.
:<
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INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
Como já ficou demonstrado — e geralmente se sabe —, o capítulo 18 de Mateus é o quarto em que se registra o sexto discurso naquele Evangelho. Nele Jesus enfatiza a necessidade de se demonstrar bondade para com seus "pequeninos", e um espírito perdoador para com todos. O capítulo se encerra com a parábola do servo inclemente. Algumas das passagens desse capítulo têm paralelos em Marcos e em Lucas, porém, como uma unidade individual é peculiar a Mateus. Isso significa, naturalmente, que, a partir de Mt 10, para localizar o paralelo em Mateus, teremos de usar a fórmula "Marcos + 9", em vez de "Marcos + 8". Pelo fato de Mc 10 ser um capítulo muito extenso (52 versículos), enquanto Mt 19 é relativamente curto (trinta versículos), faremos bem em tratar Mc 10 como se fosse dois capítulos (Mc 10a: vv. 1 -31; e Mc 10b: vv.3252).27 para localizar o material de Mc 10b em Mateus, a fórmula será, então, "Marcos + 10". A lista, portanto, prossegue, assim: Sabendo que um tema é tratado em MARCOS capítulo 10a
27
tema é
adicione
e encontre seu paralelo em
o ensino de Cristo sobre o divórcio, os pequeninos e as riquezas terrenas ("o jovem rico")
9
MATEUS capítulo 19
10b
o auto-sacrifício de Cristo ("um resgate por muitos") em contraste com o pedido dos filhos de Zebedeu por posições de glória
10
20
11
Entrada triunfal em Jerusalém e em seu templo (purificação do templo)
10
21
12
Perguntas capciosas e respostas com autoridade
10
22
Notar a estreita similitude entre Mt 19 e Mc I Ga; Mt 19.1 -6 cf. Mc 10.1 -9; Mt 19.712 cf. Mc 10.11.12: Mt 19.13-15 cf. Mc 10.13-16; Mt 19.16-22 cf. Mc 10.17-22: Mt 19.23-26 cf. Mc 10.23-27; e Mt 19.27-30 cf. Mc 10.28-31. Mt 20.1-16 contém
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MATEUS Mateus 23 contém o quinto grande discurso de Cristo: os sete ais, que terminam com um comovente clímax: "Jerusalém, Jerusalém ". Esse material, em sua maior parte, está ausente em Marcos (ver, contudo, Mc 12.38-40). Portanto, tendo o Evangelho de Marcos como ponto de partida, a fórmula para se localizar em Mateus o paralelo com o próximo capítulo de Marcos (=o 13°) agora se converte em "Marcos + 11". Isso resulta no seguinte: 13 |
Sinais do fim e exortações à vigilância
I 11
I 24
Em Mateus, todavia, esse tema geral da vigilância — ou seja, a fidelidade no exercício do dever pessoal, com vistas à segunda vinda de Cristo como Juiz e Galardoador — prossegue no capítulo seguinte, de modo que estes dois capítulos (=24 e 25) contêm o sexto grande discurso de Cristo. O conteúdo do capítulo 25 (a parábola das dez virgens, a dos talentos e mais o majestoso retrato do Grande Juízo) não tem paralelo em Marcos e Lucas. Significa que, para o conteúdo de Marcos 14.15 e 16, como refletido em Mateus, a fórmula agora se converte em "Marcos + 12". E assim temos o seguinte resultado: 14 16 16
Getsêmani Calvário "Ele ressuscitou"
12 12 12
26 27 28
O terceiro rio é também muitíssimo interessante. Consiste de partes que se alternam, de modo que a corrente que está na superfície da terra dá lugar a outra que é subterrânea, que — suponhamos —, por sua vez, surge na superfície, formando outra corrente, a qual então desce, e assim sucessivamente. O fato de que algumas das correntes são subterrâneas não as faz menos interessantes do que aquelas que correm na superfície. Nem as faz necessariamente invisíveis. Algumas de nossas cavernas não a parábola, peculiar a Mateus, dos lavradores na vinha. Dali em diante segue o estreito paralelo, agora entre Ml 19 e Mc 10b. assim: Ml 20.17-19 cf. Mc 10.3234: Mt 20.20-28 cf. Mc 10.35-45: e Ml 20.29-34 cl'. 10.46-52.
48
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
contêm correntes suavemente iluminadas, equipadas para navegar-se em meio a pitorescos ambientes? Este rio, com seus fluxos alternantes, descreve o evangelho de Lucas com seus blocos intercambiantes de material. Sobre isso Lucas difere de Mateus. Este parece que de forma alguma pode separar-se de Marcos. E como se o ex-publicano, de um modo que lhe é peculiar, estivesse completando ou ampliando o esboço de Marcos. Todavia, com Lucas o caso é diferente. De maneira geral podemos dizer que o seu Evangelho consiste de blocos alternantes de materiais marcanos e não-marcanos. Um bloco de material marcano de considerável extensão28 é Lc 5.12-6.16. Ele nos conta de um leproso, de um paralítico, de Levi, do jejum, dos discípulos num trigal no dia de sábado, de um homem com a mão mirrada e do chamamento dos Doze. Todo esse material é encontrado também em Mc 1.40-3.19, em sua maior parte na mesma ordem.29 Aqui segue um bloco nãomarcano (Lc 6.17-8.3); então novamente segue um bloco marcano (Lc 8.4-9.50; cf. Mc 3.31-6.44; 8.27-9.40). Então vem uma extensa seção não-marcana (Lc 9.51-18.14), que, por sua 28
Quanto aos primeiros capítulos de Lucas, não há evidências de um padrão que se segue de forma definida e conseqüente entre os Evangelhos de Marcos e Lucas. Lc 1.1—3.12 (nascimento de Jesus e cronologia do início do ministério de João Batista) não tem paralelo nos outros Evangelhos. Em Lc 3.3-22 (o ministério de João Batista), as passagens que não são exclusivamente de Lucas se assemelham a Mateus tanto — e às vezes muito mais — quanto a Marcos. A genealogia de Jesus em Lucas não tem um real paralelo com os demais Evangelhos (porém, cf. Mt 1.1-17). Lc 4.1-15 (a tentação de Jesus), apenas ligeiramente refletida em Marcos, é muito mais extensa em Mateus, porém, em grande medida, é exclusiva de Lucas em fraseologia e ordem. Lc 4.16-30 (rejeição em Nazaré) é outra vez predominantemente peculiar a Lucas (embora em certa medida tenha paralelo em Mc 6.1-6 e Mt 13.53-58). Lc 4.31-44 (primeiros milagres em Cafarnaum) tem um paralelo definido em Mc 1.2139. É seguido por Lc 5.1-11 (pesca miraculosa e "pescadores homens") que em grande parte é alheio a Marcos. 2 '' Todavia, é verdade que Mc 1.40—3.19 contém ainda mais material, especialmente um informe sobre a missão de cura (3.7-12; cf. Mt 12.15.16), intercalado entre o relato da mão mirrada e o chamamento dos Doze. Também é certo que uma passagem como Mc 3.11 é refletida melhor em Lc 4.41 do que em algum lugar em Lc 5.12— 6.16. Porém, deve-se ter em mente que aqui estamos fazendo a pergunta: "Como Lucas é refletido em Marcos?", antes que: "Como Marcos é refletido em Lucas?"
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MATEUS vez, introduz um bloco marcano (Lc 18.15-43; cf. Mc 10.13-34, 46-52). Lc 19.1-28 (Zaqueu e a parábola das minas) não é marcano. Grande parte (de modo algum todo!) do que segue nos capítulos finais de Lucas tem paralelo em Marcos, porém Lucas 24.13-52 (o diálogo no caminho de Emaús, etc., concluindo com a ascensão de Cristo) é peculiar ao Evangelho de Lucas (ver, contudo, o breve resumo em Mc 16.12,13). Muito mais poderia ser dito sobre as variações na ordem em que os eventos são relatados nos Sinóticos. Porém, com o intuito de assinalar o problema, não será necessário entrar em todos os detalhes. O seguinte deve bastar. Já em Mc 2.23-28, esse evangelista relata o incidente de apanhar espigas no dia de sábado. Mateus não faz menção desse incidente até quase alcançar a metade de seu Evangelho (12.1-8; cf. Lc 6.1-5). Semelhantemente, a cura da mão mirrada está relatado em Mc 3.1-6, mas em Mateus não antes de 12.10-13 (cf. Lc 6.6-10). A rejeição de Cristo em Nazaré está registrada em Lc 4.16-30, mas em Mateus não antes de 13.54-58 (cf. Mc 6.1-6). Em Mateus as três tentações estão alinhadas na seguinte ordem: "Dize a estas pedras que se transformem em pães", "Lança-te abaixo (do pináculo do templo)", e "Prostra-te e me adora" (4.3,6,9). Em Lucas, contudo, inverte-se a ordem da segunda tentação e da terceira (4.7,9). E quanto à seqüência dos ditos de Jesus aí relatados, deve-se notar que, enquanto em Mateus 5 a 7 e Lucas 6.20-49 o Sermão do Monte é apresentado como uma unidade, Lucas também lança suas máximas inspiradas através de vários de seus capítulos; por exemplo, cf. Lc 14.34 com Mt 5.13; cf. Lc 8.16 com Mt 5.15; cf. Lc 11.34 com Mt 6.22; e cf. Lc 11.9 com Mt 7.7. Algo semelhante sucede em conexão com Mateus 10; por exemplo, cf. Lc 12.11 comMt 10.17; cf. Lc 21.16 com Mt 10.21; cf. Lc 12.2 com Mt 10.26; cf. Lc 6.40 com Mt 10.24; e cf. Lc 17.33 com Mt 10.39. também, em conexão com Mateus 18; por exemplo, cf. Lc 9.48 com Mt 18.5; e cf. Lc 17.1,2 com Mt 18.6,7. E assim sucede com freqüência — onde Mateus ajunta (agrupa) Lucas espalha (separa). Ambos estavam plenamente justifíca50
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
dos em assim proceder. Como todos sabemos, oradores, especialmente os que viajam, repetem algumas das coisas que disseram em ocasiões anteriores. 3. O Problema Resultante Os fatos tendo sido ora apresentados, será evidente que o Problema Sinótico consiste no fato de que, quanto ao conteúdo, redação e disposição, há considerável semelhança; todavia, há também uma notável diferença. Se a semelhança fosse distante, não haveria problema. Por outro lado, se as divergências fossem mínimas, haveria uma pronta resposta. Porém, não é bem assim; e já que que a unidade quanto a diversidade se destacam, o problema é real. O sumário precedente também demonstrou: Primeiro, que cada Evangelho tem sua própria estrutura distintiva. Segundo, que quando a estrutura distintiva de cada Evangelho é entendida, o caminho para penetrar-se nos Sinóticos fica muito menos difícil. O que se acha nas páginas precedentes pode ser útil nesse sentido. A leitura repetida e o estudo diligente dos Sinóticos são, naturalmente, ainda mais necessários. Terceiro, que aqueles que escreveram esses Evangelhos não foram menos compiladores, senão compositores; não meros copistas, porém autores. 4. Elementos que Entram Numa Solução Note-se a redação do título acima: não "A solução", como se uma solução cabal fosse possível, mas "Elementos que entram numa Solução". Uma resposta detalhada à pergunta: "Como se originaram esses Evangelhos?" é impossível, pela simples razão de que nenhum dos escritores nos forneceu uma lista de suas fontes, sejam orais ou escritas. Nem mesmo Lucas em seu prólogo (1.1-4) fez isso. Porém, isso não é motivo para desespero. Quem quer que aborde esses sagrados escritos com um coração crente, convencido de que foram compostos sob a direção do Espírito Santo e que nos revelam o Jesus da História e, ao 51
MATEUS mesmo tempo, o Cristo da fé, começa a ver que o que esses livros ensinam é muito mais importante do que exatamente como eles vieram à existência. Essa abordagem da fé é que faz possível a descoberta, pelo menos, de uma solução ampla que, embora deixe muitas perguntas sem resposta, possibilitará respostas a outras, limitando, assim, o campo do desconhecido e do incognoscível.30 a. Teoria da Mútua Dependência Tradicionalmente, supunha-se que o autor do que se considerava o segundo Evangelho escrito teria usado o primeiro Evangelho escrito, e que o escritor do terceiro Evangelho teria usado o primeiro e o segundo. Dessarte, em sua obra The Harmony of the Gospels I.ii.4 (A Harmonia dos Evangelhos), Agostinho, depois de fazer alguns comentários sobre Mateus, prossegue: "Marcos o segue de perto, e parece ser seu acompanhante e abreviador." Avaliação: De modo geral, essa teoria não explica a presença de material que aparece no novo Evangelho e que está faltando no mais antigo. Especificamente, quanto à relação entre Marcos e Mateus, se o propósito de Marcos era nos dar um sumário de Mateus, por que teria deixado intocado, tanto material belo de Mateus? Além disso, não há uma forte e antiga tradição que faz Marcos dependente da pregação de Pedro antes que do Evangelho escrito por Mateus?11 Finalmente, já foi assinalado (p. 16) que naqueles parágrafos onde Mateus e Marcos correm paralelamente é com freqüência Marcos que contém o relato mais detalhado. Calvino estava consciente disso. Ele declara: "A narrativa de Marcos no tocante ao mesmo evento é às vezes mais detalhada. E mais provável, segundo minha opinião... -,u Da mesma opinião é S. Greidanus, que em Bijbelsch Handboek, Vol.II, p. 97 (Kampers. 1935) afirma: "Se o que está narrado nos Evangelhos é aceito como verdadeiro, as perguntas que consideram as possíveis relações entre os Sinóticos não somente assumem uma importância secundária, mas também diminuem em número e são mais fáceis de desemaranhar." 31 Ver pp. 56-63. 94. 95.
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INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
que ele não tenha visto o livro de Mateus quando escreveu o seu próprio; dessa forma, longe está de ter expressamente intentado fazer um resumo."32 Entretanto, embora a teoria da dependência mútua, na forma apresentada por Agostinho e outros, seja inaceitável, poderia ser aceitável de alguma outra forma. Por exemplo, a menos que se tenha entregue irrevogavelmente à teoria de que o Evangelho de Mateus deve preceder a Marcos, visto que Mateus era um dos Doze e Marcos não pertencia a esse círculo íntimo, alguém poderia perguntar: "Se Marcos não usou o Evangelho de Mateus, não poderia Mateus ter usado o de Marcos?" Além disso, não poderia Lucas ter usado os Evangelhos de Mateus e Marcos? b. A Hipótese de Um Evangelho Primitivo G.E. Lessing (em 1776 e 1778) e J. G. Eichhorn (em 1794) argumentaram que os três (evangelistas) utilizaram, independentemente, um evangelho primitivo em aramaico, agora perdido. Avaliação: esta teoria, também, pode ter um elemento de valor. Todavia, qualquer que possa ser a verdade com respeito a um Evangelho primitivo em aramaico,33 e seu possível efeito numa revisão grega posterior, a solução proposta não oferece uma resposta completa. Não explica a extensa variedade em conteúdo, vocabulário e arranjo, que existe entre os três. c. Teoria dos Fragmentos F. Schleiermacher (em 1832) chamou a atenção para o que ele considerava os elos artificiais que conectavam as diversas unidades que compunham os Evangelhos, ou seja, os ditos, discursos, histórias, etc. Assim ele chegou à conclusão de que as fontes usadas pelos Evangelistas consistiam de muitos fragmentos. Os escritores dos Evangelhos tiveram acesso a uma massa de folhas soltas; em cada uma delas estavam alguns assuntos com referência a Jesus. As diferentes formas em que esses frag32
33
Citado do "Argumentum" de Commentarius in Harmoniam Evangelican, Opera Omnio (Brunswick, 1891), XL V.3; versão inglesa(Grand Rapids, 1949) I.xxxviii. Verp. 130.
53
MATEUS mentos foram combinados resultaram nos três Evangelhos tão diferentes. Devido ao fato de que muitas cópias foram feitas do mesmo material, muitas e extensamente distribuídas e usadas pelos três, esses Evangelhos revelariam, não obstante, uma certa medida de unidade em meio ã diversidade. Avaliação: esse ponto de vista pode ser também em parte verdadeiro. E possível, até mesmo provável, que Mateus, o publicano, tivesse tomado notas dos ditos e feitos de Jesus, e que antes que qualquer dos Evangelhos fosse escrito, essas notas de Mateus foram traduzidas do aramaico para o grego, copiadas e distribuídas em ambas as línguas. Ou Mateus mesmo pode têlas escrito em ambas as línguas. Teria também ele distribuído em forma de notas sua própria paráfrase em grego das passagens do Antigo Testamento cumpridas em Cristo? E tais notas primitivas foram usadas pelos três evangelistas"? Não há uma conexão literária entre os três registros que se faz evidente do fato de que há citações do Antigo Testamento numa forma que, mesmo idêntica nos três Sinóticos, difere tanto do Antigo Testamento traduzido literalmente do hebraico como do grego (LXX)? Uma ilustração é Mt 3.3; Mc 1.3; e Lc 3.4. A citação é de Is 40.3. Segundo aparece nessas três passagens do Novo Testamento, as palavras citadas são: Voz de alguém clamando no deserto: Fazei pronto o caminho do Senhor, Fazei direitas as suas veredas. O paralelismo (vejam-se linhas 2 e 3) favorece a seguinte tradução do texto hebreu: Uma voz (está) clamando: No deserto fazei pronto o caminho do Senhor [YHWH], Fazei direita no deserto uma estrada para o nosso Deus. E agora a LXX: Voz de alguém clamando no deserto, Fazei pronto o caminho do Senhor, Fazei direitas as veredas de nosso Deus. Entretanto, embora a teoria literária dos fragmentos possa ser em parte verdadeira, não pode ser considerada como uma 54
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
solução completa do problema Sinótieo. De modo algum é adequada como explicação. Porque, antes de tudo, a teoria descansa sobre uma suposição gratuita, ou seja, que "os elos" são artificiais. Se um dito de Jesus é relatado em mais de uma conexão, significa necessariamente que as palavras que introduzem tal dito, ou as que o conectam com a passagem ou parágrafo seguinte foram criadas ou inseridas num tempo posterior pelo menos num dos relatos? Não é mais natural supor que Jesus mesmo repetia os seus ensinamentos como é feito por muitos oradores itinerantes ainda hoje? Igualmente, eventos semelhantes poderiam muito bem ter ocorrido em ocasiões e cenários diferentes. Os elos, portanto, não são necessariamente artificiais e sem naturalidade. Além disso, como já foi demonstrado, com todas as suas diferenças, os três Sinóticos apresentam uma história, uma narrativa das jornadas terrenas de Cristo, nas quais a seqüência principal dos eventos é a mesma para todos. Teria sido assim se os escritores dos Evangelhos nada possuíssem senão fragmentos avulsos com que trabalhassem? d. A Hipótese da Dupla Fonte e Suas Modificações (1) Breve Descrição Esta teoria foi desenvolvida por K. Lachmann (em 1835) e H. H. J. Holzmann (em 1863). Segundo entendiam eles, e outros depois deles, Marcos foi o primeiro a escrever um Evangelho canónico. Mateus e Lucas, cada um independentemente do outro, fizeram uso de Marcos para a porção narrativa de seus Evangelhos. Para os discursos ou ditos, Mateus e Lucas usaram outro documento. Isso foi inicialmente conhecido com L (Logia). Era descrito como que contendo todo o material ausente em Marcos e comum entre Mateus e Lucas. Naturalmente que não pode haver dúvida de que existe tal material em Mateus-Lucas, que não existe em Marcos. Ver a lista parcial dada acima, às pp. 35-36. Portanto, não pode haver objeção para o uso de L como um símbolo algébrico. Contudo, a Hipótese da Dupla Fonte, ao trocar o símbolo L por Q (Quelle, palavra alemã que significa Fonte), afirma que o material em 55
MATEUS questão foi, de alguma forma, uma fonte escrita realmente usada por Mateus e Lucas na composição de seus Evangelhos. Talvez tenha sido a princípio escrita em aramaico, mas se esse foi o caso, em sua forma revisada veio a ser uma fonte grega muito importante que é base dos Evangelhos gregos de Mateus e Lucas tal como os conhecemos. Esta é a teoria. Essa hipótese de dupla fonte, com muitas revisões e modificações, tem sido aceita por muitos! Os seus dois elementos — a. a prioridade de Marcos e b. "Q" — merecem ser estudadas à parte. (2) A Prioridade de Marcos A convicção de que Mateus e Lucas, cada um independentemente, usaram Marcos é compartilhada por eruditos de todo o mundo. 34 34
De uma lista quase interminável de títulos seleciono apenas os seguintes: * W. C. Allen, A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to St. Mathew (International Critical Commentary), Nova York, 1910. ver especialmente p. xxxv. * B. De Solages, A Greek Synopsis of the Gospels, Leiden, 1959. Em sua obra de 1128 páginas, o renomado erudito católico romano, por um processo matemático, chega à conclusão de que Mateus e Lucas sem dúvida usaram Marcos. Ele declara isso apesar da afirmação da Comissão Bíblica Pontifícia (19 de junho de 1919) de que "Mateus escreveu antes dos outros evangelistas". Todavia, deve-se ter em mente que os líderes católicos romanos fazem distinção entre os decretos que estão relacionados com assuntos de fé e moral, por um lado, e os que ficam fora dessa esfera, por outro. * F. F. Filson, Gospel and Gospels" em S. H. E. R. K..; Vol. 1 de The Twentieth Centwy Suplement, Grand Rapids, p. 470. * E. J. Goodspeed, Mathew Apostle and Evangelist, Filadélfia e Toronto. 1959; ver especialmente pp. 86, 87, 108, 109. * E. P. Groenewald, Die Evangelie volgens Markus (Kommentaar op. die Bybel, Nuwe Testament 11), Pretoria, 1948. Na p. 13 ele chama o Evangelho de Marcos "grondeslag en bron vir Mt. en LK'. (base e fonte para Mateus e Lucas). * J. C. Haw Kins, Home Synopticae, Oxford, 1909. * A. M. Perry. The Growth of the Gospels, um capítulo em The Interpreter's Bible, Nova York e Nashville, 1951; Vol. VII, p. 63. * Herman Ridderbos. "Synoptische Kwestie", Christelijke Encyclopédie, Kampen, 1961; Vol. 6, pp. 305 e 306. * A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, Nova York e Londres, 1930; Vol. I, p. 249. * J. H. Ropes, The Synoptic Gospels, Londres, 1934, pp. 92 e 93. * N. B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels, Grand Rapids, 1963; ver especialmente pp. 73. 76, 115.
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Num sentido limitado (ver pp. 66, 77-82) no que concerne aos três Sinóticos como os temos em grego, essa teoria da prioridade de Marcos pode muito bem ser correta. Isso não significa necessariamente que todos os argumentos apresentados para apoiar esse ponto de vista são válidos.33 Porém, mesmo depois * B. H. Streeter, The Four Gospels, Nova York. 1925, p. 151. * II. G. Wood. "The Priority of Mark", ET (Outubro, 1953). Entre os que não compartilham desse ponto de vista estão os seguintes: * B. C. Butler, The Originality of St. Maíhew, Cambridge, 1951. * J. Chapman, Mathew, Mark and Luke, Londres, 1937. Contrário a toda tradição, este autor considera Pedro "o real autor" do Evangelho de Marcos. Ele defende a prioridade de Mateus ao imaginar que Pedro leu Mateus. * John H. Ludlum, Jr., "More Light on the Synoptic Problem" e "Are We Sure of Marks's Priority?", artigos in Christianity Today; respectivamente, 10 e 24 de novembro de 1958; e 14 e 28 de setembro de 1959. * A H . Mulder, um ardoroso defensor da teoria da tradição oral, com ênfase na pregação de Pedro, deve-se dar o crédito de tratar a teoria da prioridade de Marcos com objetividade e por considerá-la pelo menos mais digna de crédito que a hipótese Q. Além de sua obra Hetsynoptisch Vraagstuk, Delft, 1952, veja-se sua Gids voor het Nieuwe Testament, Kampen, 1962, pp. 71-74. Em sua valiosa obra The New Testament, Its Background. Growth, and Content, Nova York e Nashville, 1965, pp. 80-83, B. M. Metzger sumaria os argumentos que se encontram também nos livros de escritores anteriores. Seria difícil achar qualquer falta no que ele diz sobre este tema na p. 80 ou na p. 81 sob (a). Quanto aos argumentos (b) a (h), note-se o seguinte: Ele mantém que o ponto de vista segundo o qual o Evangelho de Marcos é o mais primitivo dos Sinóticos é correto, porque: (b) Marcos é decididamente menos refinado que Mateus e Lucas. Avaliação: Isso depende do que ele quer dizer exatamente por "decididamente menos refinado". Se quer dizer mais simples em estilo, estou de acordo. Contudo, também concordo com Cecil S. Emden, que em seu instrutivo artigo "St. Mark's Use of the Imperfect Tense", Bible Translator, Vol. V, número 3 (Julho de 1954), apresenta evidências em apoio de sua opinião no sentido de que o estilo de Marcos de modo algum é falto de elegância e carente de habilidade e refinamento literários. Segundo J. H. Ropes, op. cif, p. 98, Marcos "tem domínio de um vocabulário grego amplo e excelente e sabe usar a palavra adequada no lugar preciso"; todavia, às vezes sua sintaxe é "muito peculiar", manifestando um "estilo grego inculto". Quanto ao estilo de Marcos, ver mais adiante nota 37. Ver C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, pp. 66 e 67, uma tentativa de solução diante de uma situação que é algo semelhante. (c) Mateus e Lucas, em passagens que são paralelas a Marcos, omitiram frases difíceis como em Mc 2.26, cf. I Sm 21.1-7; e Mc 10.19, cf. Mt 19.18,19; Lc 18.20. Avaliação: Essas frases de Marcos são realmente tão difíceis que foram omitidas por Mateus e Lucas por essa razão? Para Mc 2.26, ver sobre Mt 12.3; para Mc 10.19, ver sobre Mt 19.18,19.
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MATEUS de eliminar tudo o que questionável, o que permanece proporciona uma sólida evidência, como segue: (a) Concordância quanto ao conteúdo. Como já foi indicado anteriormente (ver pp. 15, 16), quase tudo em Marcos tem paralelo em Mateus; pouco mais da metade de Marcos é também encontrado em Lucas. Já foi demonstrado que nem a hipótese do Evangelho primitivo nem a teoria da mútua dependência na forma que faz Marcos depender de Mateus explicam adequadamente essa concordância. Além disso, no que concerne ao livro como um todo, não seria mais provável uma expansão (d) Em Mateus e Lucas é refletido o aumento gradual do respeito pelos apóstolos, cm comparação com Marcos. As francas declarações deste com referência aos líderes da igreja não mais se encontram nos outros dois Sinóticos. Avaliação: E verdade que as declarações de Marcos a respeito das disputas que houve entre os apóstolos sobre quem era o maior são omitidas completamente por Mateus'.' Mão estão claramente implícitas essas desagradáveis contendas em Mt 18.1-6; 23.1-11? Além disso, visto que não se pode negar que Lucas relata esses lamentáveis conflitos (9.46-48; 22.24-30), o raciocínio implícito nesse argumento não conduziria à conclusão de que também o Evangelho de Lucas antecedeu ao de Mateus? Além do mais, quando se diz que a referência de Marcos (9.32) à incapacidade dos apóstolos para entender os ensinamentos de Jesus revela um nível mais baixo de respeito pelos líderes da igreja que aquele que se encontra em Mateus e Lucas, não é resposta de que a falta de percepção dos discípulos é ensinada claramente em passagens como Mt 16.5-12,22,23; 19.23-26; 26.8,9; e não apenas falta de percepção, mas também falta de uma fé completamente desenvolvida (14.31; 16.8) e compaixão (15.23; 19.13; 20.24; 26.8,9)? Diz-se que Lucas omite a referência de Marcos a Pedro como "Satanás" (8.33). Todavia, essa referência também se encontra em Mateus (16.23). E verdade que Lucas omite a declaração de Marcos (14.71) sobre a vigorosa maldição de Pedro, porém Mateus a inclui (26.74). A insolência de Pedro ao repreender Jesus é relatada em Mt 16.22; a prontidão de "os filhos do trono" ( Tiago e João) para pedir fogo do céu sobre os samaritanos por negar-se a dar-lhes hospitalidade, em Lc 9.54.55. Em conseqüência, este argumento não é antes mais frágil cm apoio do ponto de vista dc que o Evangelho de Marcos é o mais primitivo? (e) Quando o Evangelho de Marcos foi escrito, a reverência por Jesus não alcançara ainda um nível tão elevado como o foi depois, quando Mateus e Lucas, respectivamente, compuseram seus livros. Avaliação: vr o capítulo seguinte, pp. 87-91. (0 Os Evangelhos que foram escritos mais tarde omitem declarações que poderiam ser interpretadas como dando a entender que faltava a Jesus onipotência (Mc 1.45; outros incluem 6.5) ou onisciência (Mc 6.38; 9.16.21,33). Avaliação: Mateus registra outras perguntas que podem igualmente ser construídas como que subentendendo ignorância por parte de Jesus (13.51; 15.34;
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subseqüente do que uma contração? 35-4336 Ora, tudo certamente pareceria apontar na direção da prioridade de Marcos. Todavia, tomado por si mesmo, esse argumento não alcança o nível de uma comprovação verdadeira. Por exemplo, alguém poderia argumentar que a notável concordância em substância não se deve à dependência literária de um documento sobre outro, mas 16.13.15). Algumas perguntas (Mc 5.9.30; 14.14), ainda que ausentes em Mateus, têm paralelo em Lucas (respectivamente 8.30,45; e 22.11). Além disso, se fosse verdade que Mateus omite conscientemente as referências à ignorância por parte de Jesus, por que tanto N.N. como Grk. N.T. (A-B-M-W) ainda incluem no texto de Mt 24.36 as palavras "nem o Filho", dando a entender que Jesus não sabia o momento exato de sua segunda vinda? Não é a razão para a inclusão do fato de que a variante que apóia a omissão carece de suficiente apoio textual? Porém, então este argumento em favor da prioridade de Marcos, como se ele se referisse à ignorância de Cristo, porém Mateus não, desmorona. No tocante a passagens segundo as quais a incredulidade do homem é representada como um impedimento para o progresso da obra da graça, de modo que, humanamente falando, ele não pode receber uma bênção, é Mc 6.5 mais surpreendente que Mt 23.37? Além disso, o fato de Jesus ter aceito voluntariamente as condições que acompanharam sua humilhação, não significa que amiúde ele permitisse que lhe lançassem obstáculos em seu caminho? Assim, em vez de utilizar seu poder onipotente a fim de suprir a pecaminosa preferência da multidão urbana pelos milagres e não pelas palavras, ele simplesmente evitou a cidade (Mc 1.45); assim como, pressionado pela multidão, em vez de evitar o povo de forma milagrosa, ele simplesmente entrou num barco e daí começou a ensinar ao povo (Lc 5.1-3). Portanto quando diante de certas circunstâncias Jesus não pôde fazer algo, é porque não quis fazê-lo. Aqui concordam plenamente Mateus, Marcos e Lucas. (g) Mateus é posterior a Marcos, porque exalta a majestade da pessoa de Cristo insistindo em mais de uma ocasião que o Mestre não somente curava o povo, mas também que o fazia de forma instantânea. Avaliação: Embora seja verdade que em Mt 15.28 e 17.18 nos é dito que os que foram curados o foram "desde aquela hora", e embora a palavra "instantaneamente" ou "imediatamente" seja usada por Mateus em conexões comparáveis (8.3; 20.34), Marcos freqüentemente emprega um advérbio similar em conexão com as curas milagrosas (1.42; 2.12; 5.29,42; 10.52). Portanto, é impossível basear qualquer argumento em favor da prioridade dc Marcos em tais passagens. h) A mudança na seqüência das cláusulas — de "mataram-no e o atiraram para fora da vinha" (Mc 12.8) para "lançaram-no torada vinha e o mataram" (Mt 21.39; Lc 20.15) — refiete uma etapa mais avançada no entendimento teológico em Mateus e em Lucas do que em Marcos. Avaliação: Ver comentário sobre Mt 21.39. Creio que ficou claro que nem todos os argumentos em favor da prioridade de Marcos são igualmente válidos. 36 Cf. o que disse sobre isso E. J. Goodspeed. op. cit., p. 142.
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MATEUS antes à memorização de uma tradução oral estereotipada. Contudo, à medida que se multiplica a evidência — ver itens (b), (c) e (d) —, essa solução se torna cada vez mais improvável, e a teoria da prioridade de Marcos se torna cada vez mais crível. (b) Concordância no vocabulário. Com respeito às palavras usadas, note-se a espantosa concordância entre Mc 1.16-20 e Mt 4.18-22; também entre Mc 2.18-22 e Mt 9.14-17. Comparando Marcos com Lucas, observe-se o estreito paralelo entre Lc 4.31-37 e Mc 1.21-28; e Lc 19.29-35 se assemelha a Mc 11.1-7. Estes são apenas uns poucos exemplos. Isso não significa que Mateus e Lucas simplesmente copiaram Marcos. Ao contrário disso, em meio à notável concordância, percebem-se certas diferenças estilísticas características.37 Cada evangelista tem 37
Entre estas são importantes as seguintes: a. Marcos com freqüência usa uma forma verbai que difere daquela encontrada em Mateus e/ou Lucas. Exemplos: èyyí^txTito (eles se aproximam, Mc 11.1) versus TÍYYlaev (eles se aproximaram, Lc 19.29); no mesmo versículo àjrootéXJi.ei (ele envia) versus àjtéoTeiÂev (ele enviou). Assim também cpépouotv (eles trazem, Mc 11.7) versus fíyayov (eles trouxeram, Lc 19.35); no mesmo versículo é7n.pàÀA,o(KO (eles lançam) versus £7upí\|/avTEÇ (um sinônimo: tendo lançado). Em geral pode-se dizer que em muitas instâncias onde Marcos usa o tempo presente Mateus e Lucas usam o aoristo ou o imperfeito. Ver J.C. Hawkins, Hora e Synopticae, pp. 143-153. b. Outra diferença notável entre Marcos, por um lado, e Mateus e Lucas, por outro, é a preferência dos dois últimos pela partícula 5é em comparação com a firme inclinação de Marcos pelo uso de koú. Assim, no parágrafo de onde estamos tirando exemplos que mostram a diferença na forma verbal (Mc 11.1-7 comparado com Lc 19.29-35), Lucas usa KOÍÍ cinco vezes para introduzir uma frase ou oração. Marcos uma dúzia de vezes. Nesses mesmos sete versículos Lucas usa 8é três vezes (além disso, uma vez no v.36 e uma vez no v.37); Marcos uma só vez (também uma no v.8). c. Em conexão com o generoso uso que Marcos faz de koú, também deve-se mencionar que é característico de Mateus e Lucas que freqüentemente usem um particípio em lugar do verbo conjugado com raí. Em outras palavras, em tais casos os dois favorecem a subordinação nos lugares onde Marcos coordena. d. Tanto Mateus como Lucas com freqüência abreviam independentemente o relato de Marcos. Fazem isso omitindo as palavras, frases e (às vezes) orações inteiras de Marcos que podem ser omitidas sem destruir a idéia principal que se quer dar. Todavia, isso não deve ser interpretado como se as palavras adicionais de Marcos fossem supérfluas ou redundantes. O Espírito Santo teve boas razões para guiar Marcos no uso das palavras. Porém, isso certamente não significa que Mateus
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seu próprio modo de escrever e seu próprio plano. Porém, nas seções paralelas, excetuando-se essas diferenças estilísticas, a. tanto Mateus quanto Lucas assiduamente são paralelos de Marcos, ou b. Ou Mateus ou Lucas se assemelham estreitamente ao Evangelho mais curto. Os dois nunca se apoiam essencialmente um ao outro contra Marcos. Este pareceria ser outro argumento bastante forte em favor da proposição de que Mateus e Lucas usaram independentemente Marcos. (c) Concordância na ordem. Este é, sem dúvida, um dos argumentos mais fortes em favor da prioridade de Marcos. Com o fim de apreciá-lo, o estudante deve ver por si mesmo os fatos, comparando cuidadosamente entre si os Sinóticos. Então se fará evidente que imediatamente depois da descrição da pregação de João (Mc 1.3-8; Mt 3.3-12; Lc 3.4-18), descrição esta que em cada um destes três Evangelhos começa com uma citação de Isaías 40.3 (porém de outro modo revela considerável variação) a ordem da narração de Lucas começa a diferir da de Marcos e Mateus. Enquanto estes dois relatam primeiro a história do batismo de Jesus por instrumentalidade de João (Mc 1.9-11; Mt 3.13-17), Lucas imediatamente relata a prisão de João (3.19,20). Seu breve relato do batismo de Cristo vem em seguida (3.21,22). Quanto ao tema, Marcos e Mateus continuam paralelos entre si, porque agora ambos apresentam a história da tentação de Jesus. Todavia, já ficou elucidado que, quanto ao aspecto material, o "paralelo" é questionável, visto que, no tratamento dessa tentação, os relatos diferem de forma notável quanto à extensão. Não obstante, isso não muda o fato de que a seqüência em que a narrativa é apresentada é a mesma em Marcos e Mateus. Lucas, contudo, se afasta da ordem seguida pelos outros dois, e passa a e Lucas deveriam repetir cada sílaba de Marcos. Eles, guiados pelo mesmo Espírito, se propuseram escrever Evangelhos mais extensos. A meta deles era relatar diversas coisas (histórias, discursos, parábolas etc.) que não se encontram, ou que não se relatam de forma mais completa, em Marcos. A fim de levar a cabo seus ambiciosos planos no limitado espaço de que dispunham, ambos condensaram de forma muito apropriada o relato de Marcos. Ver também B. H. Streeter, op. cit., pp. 179-181. 61
MATEUS apresentar sua genealogia de Jesus (3.23-38). Depois disso ele se junta aos outros com sua descrição singular da tentação (4.113; cf. Mc 1.12,13; Mt 4.1-11). Após uma breve introdução tríplice à história do Grande Ministério Galileu (Mc 1.14,15; Mt 4.12ss.; Lc 4.14,15), Lucas se afasta uma vez mais da seqüência encontrada em Marcos e Mateus, e relata a rejeição em Nazaré (4.16-30). A seqüência da narração em Marcos e Mateus prossegue de forma paralela. Ambos relatam a história do chamamento dos quatro pescadores (Mc 1.16-20; Mt 4.18-22). Isso pode ser comparado com Lc 5.1 -11, que é realmente o relato de uma pesca miraculosa (ver p. 341). Quando chegamos a Lc 4.31 37 (cf. Mc 1.21-28), percebemos que Marcos e Lucas estão novamente juntos, e que desta vez é Mateus quem segue numa seqüência diferente. Mas quando chegamos a Mc 1.39 — a pregação de Cristo em toda a Galiléia e a expulsão de demónios — , percebemos que Mateus está outra vez com Marcos, com um relato ampliado (4.23-25). Em seguida, Mateus apresenta o Sermão do Monte (capítulos 5 a 7). De forma muito notável, imediatamente depois ele volta ao mesmo ponto onde deixara Marcos; de modo que Mc 1.40-45 e Mt 8.1-4 relatam a história da cura de um leproso. Isso é também encontrado em Lc 5.12-16. Tanto em Marcos como em Lucas isso é seguido pelo relato da cura de um paralítico (Mc 2.1-12; Lc 5.17-26), porém é novamente Mateus quem segue, aqui, uma seqüência diferente na narração. Ele agora conta a história do centurião que foi elogiado (8.5-13; Lc 7.1-10). Portanto, a questão a notar-se é esta: Marcos parece ser "o homem do meio". Quando Lucas dele se afasta, Mateus geralmente permanece com ele; quando Mateus o deixa, Lucas quase sempre permanece a seu lado. Significação: em The Fourfold Gospel, Introduction (O Evangelho Quádruplo, Introdução), Cambridge, 1913, pp. 11,12, E. A. Abbott, que certa vez fora diretor de escola, conta como de vez em quando três estudantes — a quem ele chama Primus, Secundus e Tertius — lhe apresentavam trabalhos escritos, cuja 62
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semelhança era bastante para levantar suspeitas. Os estudantes haviam se auxiliado mutuamente? Se fora este o caso, qual deles o fizera? A sólida experiência de Abbott mostrava que não era tão difícil descobrir a resposta. Quando P e T concordavam substancialmente entre si, também concordavam com S. Sempre que P e T diferiam entre si, um deles — às vezes P, às vezes T — ainda concordava com S. Este, conseqüentemente, "era o garoto do meio", aquele que fornecia ajuda aos outros dois. De forma semelhante, uma cuidadosa comparação literária parece indicar que Mateus e Lucas, cada um em seu próprio modo, e em harmonia com o seu próprio propósito, conservando cada um o seu próprio estilo e plano para o seu Evangelho, como já se mostrou previamente, fez uso do livro de Marcos. (d) A questão do estilo. Para os fatos relativos ao estilo de Marcos, ver p. 60, nota de rodapé 37. Esses fatos provam que o modo de escrever de Marcos era o mais vívido e fascinante de todos eles. Também era o mais primitivo, às vezes até mesmo repetitivo, embora nunca a ponto de tornar-se cansativo, grosseiro, irrelevante. Marcos escrevia como se estivesse "colando" seus ouvidos à narrativa assombrosa de uma entusiasta testemunha ocular dos gloriosos feitos de Cristo. E certamente que prestaria atenção a alguém, ou seja, ao apóstolo Pedro. A tradição primitiva — segundo representada por Papias, Irineu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Jerônimo, Eusébio e outros38 — concorda em que houve uma conexão muito estreita entre Pedro e Marcos. "E na mente dos ouvintes de Pedro resplandeceu uma tão grande luz de religião que não ficaram satisfeitos com ouvir uma só vez ou com o ensino não-escrito da divina proclamação [kerygma], senão que, com todas as espécies de súplicas, insistiram com Marcos, cujo Evangelho ainda existe, posto que era seguidor de Pedro, que lhes dessem por escrito um relato dos 38
A evidência patrística se apresenta em diversas enciclopédias e comentários; ver, por exemplo, J. H. Farmer, "Mark, The Gospel According to", artigo em I.S.B.E., Vol. Ill; especialmente pp. 1989-1991. 63
MATEUS ensinamentos que lhes foram transmitidos oralmente [por palavras]; e não cessaram até que prevaleceram sobre o homem; desse modo se tornaram os responsáveis pela Escritura que se chama Evangelho segundo Marcos" (Eusébio, op. cit., II.xv. 1). Há quem pense que em sua Segunda Epístola (1.15) Pedro prometeu que lhes providenciaria um Evangelho. Quem assim pensa é de opinião que o livro de Marcos foi aquele que cumpriu essa promessa. Outros intérpretes, todavia, rejeitam tal ponto de vista. Para o nosso propósito não é necessário tentar resolver essa questão. A relação "pai-filho" entre Pedro e Marcos fica clara nas Escrituras (1 Pe 5.13; cf. At 12.12). Na primeira dessas duas passagens Pedro chama Marcos de "meu filho". Todos os testemunhos mais antigos afirmam que Marcos, ao escrever seu Evangelho, dependeu de Pedro, embora essas fontes sejam discordantes com respeito à extensão de tal dependência. E provável que se possa dizer com segurança (com Papias e outros) que Marcos foi o "intérprete de Pedro". No seu Evangelho ele apresenta a substância da pregação de Pedro. Pedro e Marcos tinham muita coisa em comum. Ambos eram homens de ação, fervor e entusiasmo. No caso de ambos se registra um desvio temporário da senda direita e estreita (a negação por Pedro e a deserção por Marcos), porém ambos também experimentaram a maravilhosa graça (restauradora e transformadora) de seu amoroso Senhor (no caso de Pedro, ver Jo 21.15-17; no caso de Marcos ver Cl 4.10; Fm 24 e 2Tm 4.11). E assim o leitor do Evangelho segundo Marcos sente que está sendo conduzido cada vez para mais perto do cenário da ação, porque por detrás de Marcos está Pedro, e por detrás de Pedro está Jesus Cristo mesmo, em todo o seu poder, sabedoria e amor. Essa aproximação do cenário original é acentuada por outro fato significante, ou seja, que em vários casos Marcos preservou para nós as palavras de Jesus no mesmo idioma em que foram pronunciadas, seja hebraico ou aramaico. O contraste neste respeito entre Marcos, por um lado, e Mateus e Lucas, por ou64
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tro, é notável, especialmente quando em cada caso em que há uma passagem paralela, esta é também examinada. Em conseqüência, note-se o seguinte: Marcos
Mateus
Lucas
boanerges (3.17), interpretado por "filhos do trovão"
10.2
6.14
íalita cumi (5.41), interpretado por "Menina... levanta-te"
9.25
8.54
corbã (7.11), interpretado por "oferenda"
15.5
efatá (7.34), interpretado por "abre-te" Abba (14.36), interpretado por "Pai"
26.39
22.42
Portanto, não é de surpreender que a teoria da prioridade de Marcos tenha encontrado tão ampla aceitação. Do ppnto de vista da comparação literária, a evidência em seu favor poderia parecer conclusiva. Não obstante, objeções são levantadas. A teoria, embora seja hoje aceita por muitos eruditos, não tem convencido a todos. As principais objeções, junto com minhas respostas, são as seguintes: (a) Se tanto Mateus quanto Lucas usaram o nosso atual Evangelho em grego, por que omitiram certo material próprio de Marcos? Ainda mais, como explicar que às vezes Mateus e Lucas, em sua fraseologia, concordam entre si, contrariando Marcos? Esses fatos não apoiam a conclusão de que não fizeram uso de nosso Marcos atual, mas de uma edição anterior (Ur-Marcus)? 65
MATEUS Resposta: o material de Marcos não usado por Mateus é deveras muito pouco, como já foi demonstrado, certamente insuficiente como base para a postulação de um Evangelho de Marcos mais antigo. No tocante às "omissões" bem mais extensas de Lucas, parece-me muito mais crível a idéia de que o escritor do terceiro Evangelho intencionalmente evita a inclusão de certo material de Marcos a fim de deixar lugar, dentro do espaço de um só rolo de papiro, para outro material de importância — por exemplo, muitas belas parábolas que só ele relata — do que a suposição de um Ur-Marcus. Quanto a este não há evidência histórica alguma. Quanto às assim chamadas "concordâncias de Mateus e Lucas contra Marcos", quando a "variação de estilo" não ser uma solução real, poderia Lucas ter usado o Evangelho de Mateus? 39 (b) Essa teoria "degrada Mateus e Lucas à posição de copistas servis, para não dizer plagiários".40 Resposta: De modo algum, porque, como se tem feito notar repetidamente, Mateus e Lucas não copiam Marcos, mas usam seu Evangelho. Como tem sido demonstrado, o estilo, o propósito, a razão para incluir ou excluir material, e o plano básico, continuam ainda sendo suas características. Quanto ao "plágio" ou furto literário, deve-se lembrar que as normas modernas de direitos autorais ainda não existiam. Além disso, se bem lembrarmos que Marcos era o intérprete de Pedro, a próxima pergunta seria: "E onde Pedro foi buscar seu material?" Ele dependeu inteiramente de sua memória? Não seria possível — talvez mesmo provável — que de forma limitada tenha feito uso de anotações feitas ao longo da vida terrena de Cristo? Quem era a pessoa que logicamente poderia tomar essas notas e ter cópias delas em aramaico e grego? Não era y
' No tocante ao tema da "variação de estilo", ver a análise em B. I I. Streeter, op. cit., pp. 179-181; e N.B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels, pp. 60 e 61. No tocante à possibilidade de Lucas ter usado Mateus, ver A. W. Argyle. sua "Evidência" em favor, .IBL (dezembro de 1964), pp. 390-396. 40 Ver John H. Kerr, An Introduction the Study ofthe Books of the New Testament, Chicago. Nova York, Toronto. 1892. pp. 11.
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Mateus? Ver pp. 34, 80, 134, 143. Se isso for considerado, verse-á que, mesmo julgado pelas normas modernas, seria difícil manter contra Mateus a alcunha de plagiário. Em alguma parte do que Mateus leu do Evangelho segundo Marcos, o expublicano poderia muito bem ter detectado um eco de suas próprias anotações. Conseqüentemente, ao falarmos da prioridade de Marcos, devemos ter em mente que esta prioridade não é num sentido absoluto. Ao comparar entre si os Evangelhos considerados como um todo, especialmente no que tange à disposição do material, essa prioridade, como se demonstrou, é bastante convincente, mormente para as porções paralelas. Entretanto, quando investigamos com maior exatidão a origem de determinado dito, relato ou citação de uma passagem do Antigo Testamento (com freqüência de forma modificada), teremos de deixar lugar para a teoria de que até certo ponto a prioridade é de Mateus. Isso, naturalmente, de forma alguma nega o uso que Mateus fez do Evangelho de Marcos. Mateus, ao utilizar Marcos, pode muito bem ter engendrado o propósito de apresentar uma frente unida aos olhos do mundo, para a confirmação da fé. Realmente deveríamos alegrar-nos no fato de que os Evangelhos procedem de uma tradição comum e, portanto, têm muito em comum. Não foi antes um tributo a Marcos, uma verdadeira honra a ele conferida, que Mateus e Lucas tenham conseguido fazer tão bom uso de seu Evangelho primitivo em grego? (c) Essa teoria deixa de fazer justiça à obra do Espírito Santo que guiou os escritores de forma infalível a que escrevessem tudo quanto escreveram. Resposta: não poderia o Espírito Santo também tê-los guiado na seleção e uso de fontes orais e literárias? Isso fica excluído pelo que lemos em Lc 1.1 -4? Não é verdade que já no Antigo Testamento somos repetidamente lembrados de que os escritores inspirados estavam pelo menos familiarizados com materiais escritos que não eram propriamente seus? Leiam-se Nm 21.14; Js 10.13; 2Sm 1.18; lRs 11.41; 14.19,29; lCr 29.29; 2Cr 67
MATEUS 9.29; 12.15; 13.22; 20.34; 32.32. Daniel certamente fez bom liso de sua fonte escrita (Dn 9.1,2). Não é provável que o apóstolo João tenha lido os Sinóticos e que se aproveitasse desse fato na seleção de seu próprio material? (Ver C.N.T., sobre O Evangelho segundo João, p. 32.) E 2Pe 3.16 não sugere que todas as cartas de Paulo já estavam em circulação? Tão certo como a predestinação de forma alguma exclui o esforço e a ação humana (Fp 2.12,13; 2Ts 2.13), assim também a inspiração de modo algum dispensa a investigação inteligente. (d) Em nossas Bíblias em português (e em outras línguas), os Evangelhos se encontram na seguinte ordem: Mateus, Marcos, Lucas e João. Em geral, os manuscritos gregos e as versões antigas confirmam essa mesma seqüência. Os pais da igreja, representados, por exemplo, por Irineu e Orígenes, a apoiam explicitamente. 4 ' De fato, até em tempos comparativamente recentes a prioridade de Mateus era aceita, com pouquíssimas exceções, em toda a igreja cristã. Se consideramos essa ordem como válida, Mateus não pode ter feito uso do Evangelho de Marcos. 41
"Mateus publicou entre os hebreus um Evangelho escrito em sua própria língua, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando em Roma e estabelecendo a igreja. Depois de sua partida, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos entregou por escrito o que Pedro havia pregado. E Lucas também, companheiro de Paulo, escreveu num livro o evangelho que este pregava. Depois João, o discípulo do Senhor, que também se reclinava sobre seu peito, ele mesmo também publicou um Evangelho durante sua residência em Efeso da Ásia" (Irineu, Againsí Heresies 111.i. 1). "No primeiro de seus Comentários sobre o Evangelho segundo Mateus, ao defender o cânon da igreja, ele (Orígenes) dá testemunho de conhecer somente quatro Evangelhos, escrevendo mais ou menos como segue: "... tendo aprendido pela tradição concernente aos quatro Evangelhos, os únicos que são indisputáveis na igreja de Deus debaixo do céu, que primeiro foi escrito aquele segundo o excobrador de impostos, mais tarde apóstolo de Jesus Cristo, Mateus; que o publicou para aqueles que saíram do judaísmo para crer, composto como foi no idioma hebraico; em segundo lugar, aquele segundo Marcos, que escreveu de acordo com as intençõoes de Pedro, a quem também Pedro em sua epístola geral reconhece como seu filho, dizendo: A que está em Babilônia, eleita juntamente convosco, vos saúda, como também Marcos, meu filho. E em terceiro lugar, aquele segundo Lucas, que escreveu para aqueles que dentre os gentios chegaram a crer, o evangelho que foi elogiado por Paulo. Depois de todos eles, aquele segundo João"" (Orígenes, citado por Eusébio. História Eclesiástica VI.xxv,3-6).
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Resposta: em primeiro lugar, não atribuímos defeito à disposição: Mateus, Marcos, Lucas e João, em nossas Bíblias. Ela é excelente. Todavia, ordem de disposição não é necessariamente o mesmo que ordem de origem. Se o fosse, seríamos forçados a concluir que Isaías escreveu antes de Amós, Daniel antes de Oséias, e que Romanos foi composta antes das Epístolas aos Coríntios. Existe hoje algum erudito que defenderia seriamente essa ordem de origem ou de composição? Em segundo lugar, os pais citados, entendidos literalmente, se referem a um Evangelho de Mateus escrito na língua hebraica. Para isso, ver o próximo capítulo, pp. 130-136. Ao defendermos aqui a prioridade de Marcos, estamos nos referindo aos nossos Evangelhos em grego. Em terceiro lugar, ainda com base na suposição de que os Evangelhos aos quais Irineu, Orígenes e outros se referem são em substância os mesmos que nossos atuais Evangelhos em grego e suas traduções modernas fidedignas, a seguinte pergunta ainda teria procedência: "A opinião de que, na ordem de composição, o Evangelho de Mateus predeceu ao de Marcos estava baseada numa comparação literária adequada? Se não, ela é de muita importância na solução dessa questão?" 42 Em quarto lugar, a ordem de disposição a que nos referimos — Mateus, Marcos, Lucas e João — de modo algum é unânime. A declaração de Tertuliano, citada nas pp. 11 -12, pressupõe uma seqüência diferente. Segundo Eusébio (op. cit., vi.xiv. 5,6), Clemente de Alexandria era da opinião de que não apenas Mateus, mas também Lucas, foram escritos antes de Marcos. Quanto a Clemente, não fica claro se ele achava que Mateus precedeu Lucas ou vice-versa. O códice de Beza tem a seqüência Mateus, João, Lucas e Marcos. Em alguns documentos antigos, entre os quatro a prioridade é dada a João.
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A tradição deve ser examinada cuidadosamente. Não deve ser aceita sem uma consideração crítica, nem deve ser rejeitada apressadamente. Cf. N.B. Stonehouse, Origins ofthe Synoptic Gospclx. p. 56.
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MATEUS Portanto, fica evidenciado que não existe uma tradição unânime que defenda a ordem Mateus, Marcos, Lucas e João. Além disso, os pais da igreja não estavam muito interessados nesse assunto. A sua preocupação estava antes centrada em questões tais como autoria, autoridade apostólica e relevância doutrinária. Portanto, a alegação (d) é também de pouco valor como base para a rejeição da prioridade de Marcos. (e) Não é estranho supor que Mateus, um dos Doze, que recebera informações de primeira mão, iria recorrer a um livro escrito por Marcos, um homem que nem mesmo pertenceu ao círculo íntimo dos discípulos? Resposta: Isso se constitui numa espécie de espada de dois gumes. E usada como uma premissa em dois silogismos, com conclusões amplamente opostas. Silogismo 1: a. O apóstolo Mateus, testemunha ocular dos feitos de Cristo e testemunha auricular de suas palavras, escreveu o Evangelho que traz o seu nome. b. Uma testemunha tão pessoal, ao escrever um evangelho, não sentiria qualquer necessidade de recorrer a — ou usar — um evangelho escrito por um homem cuja relação com Cristo não era, de longe, tão estreita. c. Portanto, Mateus não usou Marcos.43 Silogismo 2: a. Uma comparação literária comprova que o Evangelho que por tradição é atribuído a "Mateus" depende de Marcos para uma considerável parte de seu conteúdo. b. Uma testemunha íntima, ao compor um Evangelho, não sentiria necessidade de recorrer a — ou usar — um EvanCf H. C. Thiessen, Intmduction to the New Testament, p. 122. Meu desacordo com Thiessen sobre esse ponto em particular não prejudica a elevada consideração que tenho pelo seu livro. Mesmo no tratamento do problema sinótico, o material com o qual estou completamente de acordo é muito mais do que aquele que não posso de forma alguma endossar.
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gelho escrito por um homem cuja relação com Cristo não era tão estreita. c. Portanto, o apóstolo Mateus, testemunha ocular dos feitos de Cristo e testemunha auricular de suas palavras, não poderia ter escrito o Evangelho que por tradição lhe é atribuído.44 Creio que em ambos os casos a conclusão é insustentável, em razão de a segunda premissa ser defeituosa. Ela não faz justiça ao fato de que, corroborado por uma tradição forte e uniforme, Marcos era "o intérprete" do mesmo apóstolo cujo nome é mencionado primeiro em cada lista bíblica dos Doze, e por quem Mateus, também, devia ter elevada consideração. Além do mais, o Evangelho de Marcos não reflete de fato Cristo, sua pessoa, seus feitos e palavras? E isso não é feito de forma muito viva e interessante? E. J. Goodspeed imagina que quando um exemplar do livro de Marcos caiu nas mãos do velho Mateus, este, como todos os demais, ficou fascinado por ele. 45 Portanto, não é difícil crer que Mateus, em consonância com seu próprio plano distintivo, o tenha usado, ou ampliado, e tenha acrescentado muito material de sua própria experiência e de outras fontes. E não deveríamos sentir-nos gratos pelo fato de ter havido tal unanimidade de espírito entre os autores dos Evangelhos, que tanto Mateus quanto Lucas tivessem tanto deleite em usar o Evangelho de Marcos, sendo que cada um deles o usava de forma peculiar? Portanto, é evidente que nenhum dos argumentos apresentados contra a prioridade de Marcos teve o sucesso de destruir o peso da evidência em seu favor. Um apoio restrito a essa teoria parece ser de bom alvitre. O apoio à prioridade de Marcos poderia também receber respaldo de um fato que provocou comoção mundial pouco depois dos meados deste século (XX). Naturalmente que me refiro à decifração de um fragmento do evangelho de Marcos feita pelo pa" C f . J. H. Ropes, op. cit., pp. 37 e 38. J5 Op. cit., p. 110. 71
MATEUS dre 0'Callighan (parte de 6.52,53). É um dos fragmentos "7Q", ou seja, fragmentos encontrados na caverna 7, perto da comunidade de Qumran. Na época de sua descoberta (1855), o fragmento de Marcos tinha sido datado de aproximadamente 50 d.C. Se essa data é correta, então já existia uma cópia (!) do Evangelho de Marcos cerca de duas décadas depois da morte e ressurreição de Cristo. Portanto o original teria sido escrito mesmo antes do ano 50 d.C. (3) "Q" A teoria de que Mateus e Lucas tiveram, além de Marcos, uma segunda fonte específica, não conseguiu aprovação geral. Mesmo por parte de alguns dos que aceitaram Marcos como uma fonte escrita para uma porção do conteúdo de Mateus e Lucas, "Q" tem sido rejeitado ou pelo menos seriamente questionado.46 A razão dessa frieza para com "Q" não é que alguma coisa nas Escrituras ou na posição conservadora exclua a idéia de que os evangelistas tenham usado fontes adicionais. Antes, baseia-se em razões tais como as que seguem: (a) Temos Marcos, porém não temos nenhum documento independente — existindo separadamente — que contenha material de Mateus e Lucas e que não pertença a Marcos.47 (b) tvQ" é difícil de delinear. Por exemplo, a Oração do Senhor lhe pertence? se a resposta é positiva, qual versão — a de Mateus (6.9ss.) ou a de Lucas (11,2ss.)? As Bem-aventuranças lhe pertencem? porém, pergunta-se outra vez: em que forma — a de Mateus (5.3ss.) ou a de Lucas (6.20ss.)? Muitas ilustrações semelhantes poderiam ser apresentadas. Reconstruir "Q" é simplesmente impossível.48 4f
' '"No estado atual do conhecimento, deve ser considerada como duvidosa a existência de lai documento" (J. H. Ropes. op. cit., p. 68; cf. sua apreciação similar na p. 93). "Há muito menos evidência para o segundo postulado da teoria da dupla fonte, a existência de 'Q' (Herman Ridderbos, Synoptische Kuvestie", artigo em Christelijke Encycíopedie, vol. VI, pp. 306, 306). 47 No que se refere à "referência histórica", a situação em relação com um Mateus em "hebraico" é diferente. Ver pp. 130-132, 155. 48 Assim também A. M. Farrer, "On Dispensing with Q", em D. E. Nineham (org.), Síudies in lhe Gospels, Essays in Memory o/R. II. Lightfoot, Oxford, 1955, p. 57.
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(c) Voltando então à lista parcial (ver pp. 35-36) de passagens que representam o material de Mateus e Lucas ausente em Marcos, se pretende que "Q" consiste dos "ditos de Jesus", como é que material narrativo está também incluído? (Ver Mt 4.1 -11, cf. Lc 4.1-13; Mt 8.5-13, cf. Lc 7.1-10; e também, pelo menos em parte, Mt 11.2ss., cf. Lc 7.18ss.) (d) Consultando novamente a mesma lista, como é possível explicar que a ordem em que as passagens estão registradas varie tanto em Mateus e Lucas que, por exemplo, em Mateus o que se encontra consecutivamente nos capítulos 6, 7 e 8 (respectivamente, "não andem ansiosos", incentivo à oração e a história da fé do centurião) ocorre em Lucas na ordem inversa, capítulos 12, 11 e 7? (e) Se "Q" é concebido — como sói acontecer — como sendo um Evangelho primitivo, poderíamos então perguntar: "Que espécie de Evangelho é esse, que lhe falta a parte mais essencial de todas, ou seja, a história da crucificação e da ressurreição?" As duas respostas que Streeter49 dá a essa objeção são sem dúvida muito fracas: a. A história da Paixão podia facilmente ser ensinada na tradição oral, porém o ensino ético requeria um documento escrito; e b. para os apóstolos, exceto Paulo, a cruz era uma dificuldade. Poderíamos refutar essas respostas, dizendo: a. Evidentemente que os escritores — ou, segundo outros, os "editores" — dos Evangelhos, em sua forma atual, não pensaram que era supérfluo um relato escrito da morte e ressurreição de Cristo; por que o autor de "Q" haveria de pensar de outro modo? Não ficaria abalado diante do comentário de que o seu produto se assemelhava a um corpo acéfalo, a "A natureza imprecisa de seus limites e o silêncio da antigüidade contribuem para a incerteza de sua existência." Assim o expressa Lewis Foster, "The ' Q ' Myth em Synoptic Studies", em The Seminary Review, publicada pelo Cincinnati Bible Seminary, Vol. X, n° 4 (verão de 1964), p. 74. Nesse excelente artigo Foster assinala que a falta de harmonia na presumida dívida a "Q" é tão grande que entre cinco defensores de "Q" havia acordo em menos da metade dos versículos que são reclamados para "Q". -1' Op. cil., p. 292.
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MATEUS uma árvore destituída de fruto? E quanto a b. qualquer que tenha sido o grau de diferença entre Paulo e os demais apóstolos na quantidade de elaboração que deram individualmente à doutrina da cruz e da ressurreição, não é evidente que esses outros, tanto quanto Paulo, se gloriavam na obra mediadora e consumada de Cristo como a única base da esperança do pecador? (Ver At 4.12; IPe 1.3; 3.24; Uo 1.7; Ap 5.9; 7.14; cf. Hb 9.22.) E compreensível, portanto, que o assim chamado documento "Q" não tenha sido geralmente aceito. A fim de resgatar a teoria, tem-se intentado suplementá-la, adicionando-lhe outras fontes ou modificações semelhantes. Por exemplo, em resposta às objeções mencionadas acima — ver especialmente as apensas aos itens (b) e (d) —, alega-se que deve ter havido mais de um texto revisado de "Q". por isso, alguns falam de "QM " e "QLK ". Ou, ainda, antes que o Evangelho segundo Lucas fosse escrito, na forma em que o temos hoje, "Q" já fora combinado com "L", convertendo-se em "protolucas". Portanto, quem quer que tenha escrito o Evangelho conhecido por nós, hoje, como "segundo Mateus", tinha ante seus olhos uma forma de "Q", e o escritor de Lucas fez uso de outra forma. Realmente, cada centro cristão possuía uma recensão diferente de "Q".50 -1" Segundo a teoria de B. I I. Streeter. alguém, talvez o próprio Lucas, reuniu num documento ("L") materiais que anteriormente não tinha sido escritos, especialmente alguns relatos e muitas parábolas. Depois Lucas teria combinado "L" e "Q" para formar o "Protolucas". e inseriu nesse documento longas seções de Marcos. Assim surgiu o nosso terceiro Evangelho. Além do mais, um documento de origem judeucristã. "M", chegou a ser uma das fontes de nosso Mateus. As outras fontes deste foram Marcos e "Q". Portanto, de forma breve, a teoria de Streeter se reduz a isto, que por trás de Mateus e Lucas estão quatro documentos: "M", conectado com — isto é, cncorporado nas tradições de — Jerusalém, Marcos com Roma, "Q" com Antioquia e "L" com Cesarcia. Os primeiros três — "M", Marcos e "Q" — deram origem a Mateus; as últimas três — Marcos "Q" e "L" — a Lucas, porém somente depois que "Q" e "1," já tinham sido combinados no "Protolucas". A fim de completar este resumo, deve-se acrescentar que, segundo a teoria dc Streeter. os primeiros dois capítulos de Mateus provavelmente derivaram de fontes orais, e a fonte de Lucas I e 2 provavelmente foi um documento escrito, possivelmente em hebraico. No livro de Streeter há muito que c de valor e pode ser apoiado mesmo pelo especialista mais conservador. Todavia, a teoria dos quatro documentos recebeu uma forte oposição por ser por demais especulativa. Eu mesmo estou em concor-
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Entretanto, sobrepor uma incerteza a outra não é solução. A introdução de unidades hipotéticas como fontes abre a porta em direção a desertos áridos de hipóteses inverificáveis e, com freqüência, mesmo improváveis. Portanto, deveria admitir-se francamente que para mais da metade do Evangelho de Mateus, e para uma porção consideravelmente maior de Lucas — ou seja, para todo o material que não encontra paralelo em Marcos — a teoria de fontes literárias definidas não tem oferecido qualquer solução. Como diz Ropes (op. cit., p. 93), isto é, deveras, "um pouco mortificante para a erudição". A ênfase unilateral posta na análise literária dos Evangelhos tem produzido o que alguns denominam "recompensas triviais". O resultado tem sido que, ultimamente, o interesse dos eruditos tem-se voltado para rumos diferentes, diríamos mesmo para a direção oposta, ou seja, das fontes escritas para a tradução oral. O que tem resultado nos círculos não-conservadores é o que se verá no próximo capítulo. E conhecido o fato de que entre os conservadores a ênfase sobre a "inspiração verbal" e, em conexão com ela, nas palavras e nos feitos de Jesus proclamados por testemunhos fidedignos e por seus associados — ou seja, "por apóstolos e homens apostólicos" — sempre tem sido marcante. Ultimamente, esse interesse pela palavra falada não diminui ainda. Em conseqüência, em nossa tentativa de encontrar uma solução para o problema sinótico, em seguida nos dirigimos a: e. A Tradição Oral J. C. L. Gieseler (1818) e J. C. Herder (1776, 1797) atribuem à tradição oral as semelhanças existentes entre os sinóticos, ou seja, supõem que, em uma data muito recente, os relatos orais acerca das palavras e obras de Jesus tomaram uma forma defidância com esse juízo. Embora todo o livro de Streeter possa ser lido com proveito, laço referência especialmente às pp. 150,199-201, 207. 208, 218. 219 e 223-272. como as que contêm a essência de sua teoria sumariada. Nesse sentido é também muito instrutivo o artigo de F. V. Filson "Gospel and Gospels" em S. H. F.. R. K; Vol. I de The Twentieth Cenlury Suplement, pp. 469-472. o qual termina com uma excelente bibliografia.
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MATEUS nitivamente fixa. Tiveram muitos seguidores mesmo entre aqueles que não compartilham de algumas das convicções religiosas básicas desses dois homens. Assim, ainda atualmente, em alguns círculos conservadores, o argumento é apresentado mais ou menos na seguinte forma: O ensino mais primitivo não foi por meio da palavra falada? Jesus não prometeu que o Espírito Santo traria à lembrança dos apóstolos todas as palavras que seu Mestre lhe falara? (Ver Jo 14.26.) Seria estranho, pois, que os Sinóticos revelem tão notável semelhança? Se é um fato que há eruditos judeus que conhecem o talmude plenamente e eruditos cristãos que têm depositado na memória o Novo Testamento inteiro, por que causaria estranheza que as primeiras testemunhas e seus seguidores imediatos nos tenham transmitido estes ditos e relatos verbalmente memorizados? Não é verdade que Mateus foi capaz de registrar a partir de observações pessoais quase todas as palavras memoráveis e os feitos de Jesus que inclui em seu Evangelho, e que provavelmente obteve de outros testemunhos, em primeira mão, um conhecimento dos assuntos vitais que ocorreram antes de sua conversão? Não é verdade que o apóstolo Paulo conservava como um tesouro de elevado valor o ensinamento oral de Jesus? (Ver At 20.35; ICo 7.10; 9.14; 11.23-25; e lTs 4.15.) e não é verdade também que entre os primeiros discípulos dos apóstolos perdurou esse interesse pelas palavras de Jesus e pelas palavras de seus seguidores imediatos, de modo que, por exemplo, Papias que, segundo Irineu, era discípulo de João, e que, conforme Eusébio, escreveu: "E não hesitarei em acrescentar às interpretações tudo o que aprendi bem dos anciãos, e que relembro bem, estando confiante em sua verdade. Porque, em desacordo com a maioria, não me comprazo nos que dizem muito, senão nos que ensinam a verdade, nem nos que recitam os mandamentos de outros, senão nos que repetem os mandamentos dados à fé pelo Senhor e derivados da própria verdade. Porém, se veio algum dos que seguiam os anciãos, inquiri nas palavras dos anciãos o que André, ou Pedro, ou Filipe, ou Tomé. ou Tiago, ou João, ou Mateus, ou 76
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qualquer outro dos discípulos do Senhor dissera, e o que Aristiom e o presbítero João,51 ou outro dos discípulos do Senhor, disseram. Porque supondo que a informação dos livros não me ajudaria tanto como a palavra de uma voz viva e permanente" (op. cit„ Ill.xxxiv, 3, 4)? Com base em tudo isso, assim prossegue a teoria, enquanto se admite que Mateus, Marcos e Lucas possam ter usado breves documentos escritos — por exemplo, Mateus pode ter tido acesso a uma primitiva coleção de textos-prova do Antigo Testamento — não há razão para crer que algum dos três evangelistas tenha usado qualquer dos outros dois Evangelhos.52 Avaliação: não se pode negar que haja uma grande medida de verdade nesse ponto de vista. A observação pessoal (por parte de Mateus e João), a memorização, a transmissão verbal daquilo que foi visto e ouvido, fatores tais como esses devem ter exercido um papel muito importante na formação dos Evangelhos. Já durante a antiga dispensação, Deus exigia que se ensinassem aos filhos os estatutos de Deus. Um corpo definido de verdades tinha de ser transmitido de geração a geração. Os israelitas não sofriam de fobia por memorização. Quando Moisés escreveu: "Dêem ouvidos, ó céus, e eu falarei", em seguida ensinou este cântico aos filhos de Israel (Dt 31.22). Semelhantemente, os filhos de Judá aprenderam o Cântico do Arco, a endecha sobre Saul e Jonatas (2Sm 1.18). As coisas que os pais ensinavam a seus filhos não eram escondidos dos netos (SI 78. lss.; Ver também Êx 13.8; Dt 6.7,20-25; 11.19; Js 24.26-28). 53 Deve-se admitir, pois, que não se resolve o problema sinótico pondo toda a ênfase nas relações literárias entre os sinóticos. 51
Ou, "o João já mencionado''; ver C. S. Petrie, "The Authorship o f ' T h e Gospel according to Mathew*: a Reconsideration of External Evidence''. NTSlud 14 (janeiro de 1967). pp. 15-32. 5 - Em I I. C. Thiessen, op. cit.. pp. 121-129. se encontra um excelente resumo dessa teoria da tradição oral. junto com citações daqueles que a aceitam. 53 Ver em C.N.T. sobre 1 e 2 Timóteo e Tito. pp. 334-338, um breve resumo da educação entre os judeus, com uma bibliografia.
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MATEUS Até onde sabemos. Jesus jamais escreveu qualquer de seus ensinos. Ele falava ao povo. No entanto, ele designou os Doze, bem assim a outros, para que fossem e proclamassem as boas novas de salvação de forma ampla. Naturalmente, a princípio essa transmissão era de caráter principalmente oral (Lc 6.12-16; 9.1,2). Após sua ressurreição Jesus se dirigiu outra vez a seus discípulos. Disse-lhes que fossem suas testemunhas perante o povo e lhes ensinassem (Mt 28.16-20; At 1.1-3,8). Grande ênfase era posta no cumprimento de sua tarefa, o que se torna proeminente pelo relato da eleição de Matias para ocupar o lugar de Judas (At 1.21-26). Seguem-se outras passagens que enfatizam a necessidade de testemunhar, e o grande valor de se conservar as tradições: At 2.32; 3.15; 5.32; 10.39-43; 13.31; 22.15; 26.16; Rm 6.17; G1 1.9; ICo 11.2,23,24; 15.8-11,15; Fp 4.9; lTs 4.1; 2Ts 2.15; 2Tm 2.1,2; 4.1-5; Hb 13.7,8; Ap 1.20 (as igrejas são os castiçais); 6.9; 11.1-13 (as duas testemunhas); e 20.4. Mateus mesmo foi uma testemunha ocular (como João também o foi). De acordo com todos os registros, Marcos recebeu sua informação de uma testemunha ocular — Pedro.34 Lucas também teve testemunhas oculares como seus informantes (1.2). Ele passou algum tempo em Cesaréia e em Jerusalém (At 21.8ss.). Portanto, ele deve ter desfrutado de ricas oportunidades para fazer cuidadosas investigações. Não se deve esquecer que Lucas viveu num período em que muitos seguidores pessoais de Cristo ainda eram vivos (ICo 15.6). As testemunhas oculares, por seu turno, tinham recebido sua mensagem do próprio Jesus Cristo. Fora ele quem falara as belas palavras de vida, e que as ilustrara por meio de sua própria vida terrena, de sua morte, ressurreição e ascensão. Proclamara as mesmas boas novas em diferentes regiões do país, apenas variando a maneira de expressá-las conforme suas conveniências pessoais. Foi dele, "a Luz do mundo", que resplandeceu a luz como a de um caleidoscópio. Seus discípulos, cada um com um propósito um pouco diferente e num estilo distinto, cada um dotado com uma personalidade também distinta, proclamou ao M
Ver acima, pp. 63, 64, 68.
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mundo essa mesma mensagem. E claro que esse fator de observação pessoal (por parte de alguns) e de transmissão oral (por parte de todos) deve ser levado em consideração ao explicar-se a unidade em meio à variedade encontrada nos Evangelhos, em lodos os quatro, mas, para o nosso presente propósito, especialmente nos Sinóticos. Tudo isso pode ser admitido, porém não serve como escusa para levar a extremos a teoria da Tradição Oral. De Lc 1.1-4 faz-se evidente que ele reconhece materiais tanto orais como escritos. Não se podem ignorar os resultados de uma cuidadosa comparação literária. O argumento de que Mateus e Lucas poderiam ter usado fontes escritas de porte pequeno, porém que se tivesse usado um relato mais amplo — digamos, todo um evangelho —, isso reduziria a sua estatura à de simples compiladores, e que esse ponto de vista está em conflito com a doutrina da inspiração, é certamente muito fraco. Além disso, temos demonstrado que os evangelistas, cada um de acordo com seu próprio plano, interrompem constantemente a sua narrativa principal, e depois a retomam novamente no mesmo ponto em que a interromperam. "A teoria oral não pode mesmo dar uma explicação dessa liberdade com que os evangelistas variam a ordem de seu registro."55 Além disso, a promessa que se encontra em Jo 14.26 de forma alguma significa que se daria aos escritores dos Evangelhos uma memória miraculosa.56 Ao explicar a maneira como os Sinóticos se originaram, jamais deveríamos pôr a tradição oral em oposição às fontes escritas, como se tratasse de uma escolha mutuamente exclusiva. Ao contrário, de uma maneira adequada ao propósito de cada um e sob a orientação do Espírito santo, cada evangelista fez o melhor uso das melhores fontes, sejam estas orais ou escritas. Portanto, assim sendo, não há muita sabedoria nas seguintes citações? " K. 1". ScoU. The Literature oj the New Teslame.nL p. 28. E interessante observar que, enquanto muitos oponentes à teoria da prioridade de Marcos enfatizam a memória de Mateus, há pelo menos um que explica a ausência em Marcos dos extensos discursos que aparecem em Mateus mediante um apelo à falta de adequação da memória de Pedi-o. Ver .1. Chapman, op. cit., p. 38.
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MATEUS "Parece ser de fato necessário reconhecer a influência desses dois modos de transmissão, ainda quando não tenhamos condições de indicar a porcentagem de influência que se deve atribuir a cada um" (J. C. Hawkins, op. cit., p. 217). "Muito provavelmente as fontes foram em parte literárias (Lc 1.1 -4) e em parte também orais... Esses Evangelhos não são o produto de uma compilação bastante arbitrária de peças literárias já existentes, senão a composição proposital oriunda de uma tradição rica e variada acerca das palavras e obras de Jesus, sua morte e ressurreição" (Herman Riderbos, no artigo ao qual já se fez referência). Em última análise, a pergunta "Qual surgiu primeiro, o Evangelho de Mateus ou o de Marcos?" não é tão importante como a pergunta "Onde os sinóticos buscaram seu material?" Hoje a origem apostólica desse material se torna cada vez mais evidente. Quanto a Mateus, ele mesmo era apóstolo, e provavelmente obtivera a informação concernente aos eventos que precederam ao seu "chamamento" por meio dos apóstolos que fossem chamados antes dele e/ou do próprio Jesus. Isso de forma alguma exclui o uso que certamente ele fez do Evangelho de Marcos. Quanto a Marcos, segundo já foi indicado, a tradição é unânime em seu testemunho de que ele foi intérprete de Pedro. A evidência também indica que, para parte de seu material, ele dependeu de anotações de Mateus. Ora, tanto Pedro como Mateus estavam dentre os doze apóstolos. Quanto a Lucas, há boa razão para se crer que ele, além de ser indiretamente dependente dos apóstolos — o material que ele apresenta tem transitado de Pedro a Marcos, e deste a Lucas —, também, à semelhança de Marcos, recebeu socorro das notas de Mateus. Segundo o parecer de alguns, ele ainda recebeu ajuda (cf. nota de rodapé n° 39) do Evangelho de Mateus.. E L. Cribbs — "St. Luke and the Johannine Tradition", JBL, 90 (dez. de 1971), pp. 422-450 — e anteriormente G. W. Broomfíeld, J. V. Bartlet, J. A. Findlay e outros, têm apontado paralelos verbais entre Lucas e João, outro apóstolo. Seja como for, não pode 80
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haver dúvida sobre o fato de que Lucas obteve seu material — seja ele oral ou escrito — daqueles que "desde o começo foram testemunhas oculares" (Lc 1.2), ou seja, dos apóstolos — inclusive João — e outras testemunhas. A ênfase deve recair sobre este fato: o material que se encontra nos Evangelhos pode ser um fio condutor às primeiras testemunhas. Toda a evidência, inclusive o caráter do idioma utilizado, os costumes que são descritos ou implícitos, os lugares que são citados por nome, o caráter vívido da apresentação apontam para o fato de que aqui estamos lidando com um material muito antigo (ver também pp. 70-72). Realmente, podemos dar um passo além: por meio dessas testemunhas de primeira mão, toda a evidência aponta para o Senhor vivo, Jesus Cristo mesmo. É a ele e a seu Espírito que esses escritos devem sua origem. f. Sumário Conclusivo Sobre a base da composição literária, de Lucas 1.1-4, e da tradição antiga (por exemplo, com referência relacionamento entre Marcos e Pedro), o que segue poderia ser uma declaração razoável daquilo que pode ser uma solução parcial do Problema Sinótico: (1) Por que os três são tão semelhantes? (a) Porque o mesmo Autor Primário, o Espírito Santo, inspirou todos eles, e todos eles registraram as palavras e os feitos do mesmo Senhor Jesus Cristo. (b) Porque os três estão baseados na observação de muitos dos mesmos fatos. (c) Porque os fatos observados foram transmitidos acuradamente, de modo que os três Evangelhos descansam sobre uma tradição oral plenamente harmoniosa. (d) Em parte, também, devido à relação literária, visto que, provavelmente, tanto Mateus como Lucas usaram o Evangelho de Marcos; os três, provavelmente, utilizaram as notas primitivas de Mateus; talvez Lucas tenha também usado o Evangelho de Mateus. 81
MATEUS (2) Por que os três são tão diferentes? (a) Porque Jesus mesmo proclamou o "evangelho do reino" de formas diferentes e em diferentes lugares, e porque realizou leitos semelhantes em diversos lugares. (b) Porque diferentes testemunhas das obras e palavras de Jesus fizeram diferentes observações. Quando três homens inteligentes e honestos vêem o mesmo milagre ou ouvem o mesmo sermão, o que eles vêem e ouvem não será geralmente exatamente a mesma coisa, mas variará de acordo com a respectiva personalidade de cada uma das três testemunhas. (c) Porque a transmissão dessas observações, ainda que harmoniosa, tinha um caráter multiforme. (d) Porque poder-se-ia fazer um uso mais ou menos extenso das notas de Mateus (ver pp. 54, 80, 134, 143), e seu conteúdo poderia ser inserido em vários lugares, segundo o critério do evangelista individual. (e) Porque no uso das fontes, quer orais, quer escritas, cada evangelista exerceu o seu critério orientado pelo Espírito, de acordo com o seu próprio caráter, educação e antecedentes gerais, e com vistas à realização de seu próprio plano e propósito distintos. B. Sua Confiabilidade 1. Fé e Otimismo Os crentes se enchem de profunda reverência sempre que se vêem confrontados com a Palavra de Deus, quer oral ou escrita. Nesta conexão é muito instrutivo 2Rs 22.8,1 Ob-13; 23.13: "E Hilquias, o sumo sacerdote, disse a Safa, o escriba: Encontrei o livro da Lei na casa do SENHOR... E Safão leu diante do rei. E quando o rei ouviu as palavras do livro da Lei, rasgou seus vestidos, e o rei deu ordem a Hilquias, o sacerdote... dizendo: Vai, inquire do S E N H O R por mim, pelo povo e por todo o Judá, acerca das palavras deste livro que encontraste; porque grande é a ira do S E N H O R que acendeu contra nós, porquanto nossos pais não deram ouvidos às palavras deste livro, para fazer segundo tudo o que está escrito a nosso respeito... então o rei mandou reunir todos os anciãos de Judá e de Jerusalém. E o 82
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rei subiu à casa do S E N H O R , e todos os homens de Judá, e todos os habitantes de Jerusalém com ele, e os sacerdotes, e os profetas, e todo o povo, tanto pequenos como grandes: e ele leu aos seus ouvidos todas as palavras do livro do concerto que fora encontrado na casa do S E N H O R , para andarem após o S E N H O R e guardarem seus mandamentos, e seus testemunhos, e seus estatutos, de todo o seu coração, e de toda a sua alma, para confirmarem as palavras deste concerto que fora escrito neste livro: e todo o povo confirmou o concerto." Outro culto muito impressionante está registrado em Ne 8.1 ss., que começa assim: "Ora, quando o sétimo mês chegou, os filhos de Israel estavam em suas cidades. E todo o povo se reuniu como um só homem na praça que ficava fronteira à Porta das Aguas. E disseram a Esdras, o escriba, que trouxesse o livro da lei de Moisés que o S E N H O R dera a Israel, e no primeiro dia do sétimo mês, Esdras, o sacerdote, trouxe a Lei diante da assembléia (que consistia de) homens e mulheres, todos os que eram capazes de entender o que ouviam. E ele leu no livro diante da praça fronteira à Porta das águas, desde manhã bem cedo até meio-dia, na presença de homens e mulheres, todos os que podiam entender; e os ouvidos de todo o povo estavam atentos à leitura do livro da lei. F Esdras, o escriba, estava de pé numa plataforma de madeira que fora feita para aquele propósito, e junto a ele estavam à sua direita [e seguem seis nomes], e à sua esquerda [sete nomes], E Esdras abriu o livro à vista de todo o povo, porquanto ele se achava acima de todo o povo; e quando ele o abriu, todo o povo se pôs de pé..." Observe-se nesses relatos que o auditório ficava em pé enquanto a Escritura era lida, assim como ainda se faz hoje em muitas igrejas. O povo se levanta em reverência a Deus e sua palavra inspirada. Isso implica que a atitude de alguém para com a mensagem divina, quer oral ou escrita, é amplamente determinante quanto às bênçãos que recebe ou deixa de receber. Se a Escritura — e isso inclui os Evangelhos — é ou não a própria palavra de Deus, essa é uma questão que já foi decidida 83
MATEUS pelo próprio Deus: Êx 20.1; 2Sm 23.2; Is 8.20; Ml 4.4; Mt 1.22; At 1.16; 7.38; 13.34; Rm 1.2: 3.2; 4.23; 15.4; ICo 2.4-10; 6.16; 9.10: 14.37; G11.11.12; 3.8,16,22; 4.30; lTs 1.5;2.13;Hb 1.1,2; 3.7:9.8; 10.15; 2Pe 1.21; 3.16; lJo 4.6; Ap 22.19; e finalmente, porém não menos importante, 2Tm 3.14-17: "Toda Escritura (é) inspirada por Deus e útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça, para que o homem de Deus possa estar equipado e plenamente habilitado para toda boa obra" (vv.16 e 17). Os homens que escreveram as sagradas letras foram "levados adiante" pelo Espírito Santo. O mesmo Espírito testifica por meio da Palavra e dentro dela sempre que esta é aceita por corações crentes. E assim que são convencidos da autoridade da Escritura. Cf. Confissão de Fé de Westminster, Capítulo I, parágrafo V.57 O fato de que a atitude básica de uma pessoa para com a palavra de Deus — quer falada ou escrita — determina, em grande medida, o efeito que a confrontação com essa Palavra terá sobre ela, é algo bastante evidente no relato de Lucas a respeito da pregação de Cristo em Nazaré. A atitude do auditório foi de espanto e... de incredulidade (4.22). O que finalmente resultou foi a tentativa de assassinar aquele que falara as palavras de vida (4.28,29). Assim também, ao longo da História, a convicção prévia de que os evangelhos não podem ser verdadeiros leva uma pessoa a procurar neles erros e discrepâncias. Quem quer que aborde esses livros com essa disposição interior de coração e mente exclamará: "Contradição!" sempre que em dois relatos paralelos se veja algo que à primeira vista parece uma discrepância. As contradições são encontradas porque elas são procuradas. Simplesmente recusa-se como inculto qualquer intento honesto de harmonizar os relatos sem interpretá-los de forma forçada ou de uma forma antinatural. O Dr. J. Murray escreve: "Freqüentemente a doutrina da inspiração verbal é re" Ver S. K. Anderson. Óür Dependable Bible, Grand Rapids. 1960. pp. 129-143; além disso, The tnfatible Word, editado por 1V.B. Slonehouse e Paul Woolley. Grand Rapids. 4" edição. 1958. pp. 4 v 14.
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jeitada com arrogante desdém como se fosse ela um remanescente do escolasticismo medieval ou da pós-reforma que tende sempre a petrificar o Cristianismo." Ele chama a nossa atenção para o fato de que esta doutrina é amiúde interpretada erroneamente, como se ela se associasse à teoria do ditado mecânico e, conseqüentemente, como se não desse lugar à "diversidade... naqueles que foram os instrumentos humanos na produção das Escritura".38 Conclui afirmando: "A rejeição da inerrância das Escrituras significa a rejeição do testemunho que o próprio Cristo dá acerca das Escrituras. Finalmente, e mais explicitamente, o problema crucial nesta batalha pela fé é a própria integridade do testemunho de nosso Senhor."59 Quem quer que dedicar tempo a examinar Lc 24.44; Jo 5.39; 10.34,35; 14.26; 16.13, no tocante à natureza e conteúdo do testemunho de Cristo acerca das Escrituras, verá que o dr. Murray tem toda razão ao fazer essa observação. Além disso, a incredulidade gera desespero. A fé, ao contrário, produz otimismo. Os Evangelhos proclamam um Cristo que ressuscitou dentre os mortos e vive para sempre como o Salvador e Amigo dos crentes. Certamente que a fé é a vitória que vence o mundo (lJo 5.4). Por parte daqueles que rejeitam a Palavra de Deus, quer oral ou escrita, ela se tornou objeto de destruição (Jr 36.22,23), de distorção (Mc 14.57,58; Rm 3.8; 6.1; G11.8,9), e de desdém (2Rs 7.1,2; 2Pe 3.4). Isso foi assim nos tempos bíblicos e prossegue nos tempos atuais. No entanto, às vezes a rejeição aparenta ser apenas parcial e/ou se apresenta de forma refinada por homens de grande erudição que, no processo de descartar o que desde muito tem sido aceito como verdadeiro, aqui e ali aparecerão com idéias que de certo modo são de algum valor para o entendimento científico da Bíblia, porém cujo enfoque básico 58
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The Infalible Word, p. 39. inclusive a nota 12. Que esse ataque e representação desfigurada ainda continua é evidente pelo artigo de Warren Weaver. "Can a Scientist Believe in God?" Reader's Digest, maio de 1968, p. 131. Op. cit.. p. 40.
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MATEUS os leva a aceitar conclusões fundamentais que são insustentáveis. Eis o que acontece em tais casos: o que um crítico famoso afirma com tanta ousadia, usualmente num contexto de argumentos aparentemente irrefutáveis, é repudiado por um segundo que de forma semelhante apresenta sua própria teoria como o resultado bem estabelecido de uma investigação de alto nível. Quando, por sua vez, este segundo crítico também morre — ou mesmo enquanto ainda vive! —, eis que surge um terceiro, que com grande entusiasmo advoga ainda outro ponto de vista crítico, que por algum tempo desfruta de grande popularidade, e então, depois de um breve período de incandescência, passa à semelhança do meteoro que segue seu destino inexorável. Visto que o livro que você está lendo é um comentário e não uma obra de Crítica dos Evangelhos, só há lugar para umas poucas ilustrações do que o escritor tem em mente. Entretanto, confio em que a tese primordial será clara. Esta é expressa de forma mui bela em Is 40.6-8 e encerra-se com as palavras: "Secase a erva, e cai a sua flor, mas a palavra do nosso Deus permanece eternamente." 2. Harnack e o Liberalismo a. Descrição Por exemplo, houve um homem chamado Karl Gustav Adolf Harnack, luterano alemão (1851-1930). Era famoso como professor de História da Igreja, como bibliotecário (diretor da Biblioteca Real de Berlin), e como autor, suas brilhantes conferências, proferidas na Universidade de Berlin durante o semestre invernal 1899-1900, atraíram um imenso auditório de estudantes, e foram subseqüentemente publicadas, primeiro em alemão (Das Wesen des Christentums) e mais tarde em inglês (What is Christianity?, Londres, 1901). O espantoso efeito destas e de outras conferências, bem como os muitos fatos sobre a vida e talentos de Harnack, são retratados de forma muitíssimo interessante e, às vezes, talvez até demasiadamente benevolente, por Wilhelm Pauck, em seu livro Harnack and Troeltsch: Two 86
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Historial Teologians, Oxford, 1968. Harnack escreveu muitas outras obras,60 inclusive The origin of the New Testament (tradução de Die Entstehung des Neuen Testament), Londres, 1925, e, a mais famosa de todas, History of Dogma (tradução de Lehrbueh der Dogmengeschichle), 7 volumes, Londres, 1895-1900. Ora, o que este sábio de renome mundial ensina com referência a Jesus e à confiabilidade dos relatos dos Evangelhos? A resposta é que Harnock foi o "Sr. Liberal" de seu tempo. Segundo o ponto de vista liberal, no tempo compreendido pelo período dos Evangelhos nada ocorreu que não possa de fato ser explicado de forma puramente científica. Jesus era mero homem, certamente não o "Filho de Deus" no sentido confessional. Todavia, ele foi um homem muito maravilhoso, o puro e humilde mestre de justiça, apropria encarnação da confiança simples no Pai celestial, com quem estava unido em espírito. Portanto, o que todos de fato necessitam não é de fé em Jesus como Redentor e Senhor ressurreto, e, sim, da fé de Jesus, ou seja, a fé que ele exerceu, porquanto ele não se proclamava a si mesmo, e, sim, ao Pai. Disse Harnack: "O Evangelho, como Jesus o proclamou, tem que ver somente com o Pai, e não com o Filho."61 Segundo esse ponto de vista, o dever do homem é o de ponderar e especialmente o de levar a sério o exemplo e palavras de Jesus, para apropriar-se de seu próprio espírito e, assim enobrecido, alcançar a mais íntima comunhão com Deus. Daí, o que deve nos preocupar não é a mensagem da Páscoa, o relato da ressurreição real e física de Jesus desde o sepulcro, mas a fé da Páscoa. Essa fé de Jesus deve tornar-se o poder dominante em nossa vida. E quanto à confiabilidade dos relatos dos Evangelhos? Da forma como Harnack o vê, o Novo Testamento todo, inclusive os Evangelhos, é uma tradição que encobre e obscurece os verdadeiros fatos históricos.62 O interesse natural pelas palavras e
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Ver uma enumeração dos títulos em S.H.E.R.K., Vol. V, pp. 157,158, e em sua extensão, Twentieth Century Encyclopaedia, Grand Rapids, p. 492. What Is Christianity? p. 144. The Origin of the New Testament, pp. 43.44.
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MATEUS feitos de Jesus, e especialmente na surpreendente forma de sua morte, seguida por informes acerca de sua ressurreição, foi um dos diversos fatores que levaram a igreja primitiva a atribuir a essa morte uma importância salvífica. Contudo, ao fazer isso, a igreja se afastou da ênfase central do próprio ensino de Jesus. Naturalmente que esse novo fator, segundo o qual o evangelho veio a significar as boas novas do plano divino da salvação, que em cumprimento da profecia foi consumado pela morte e ressurreição de Cristo, não surgiu de uma vez. Desenvolveu-se gradualmente. Ele foi levado avante de forma peculiar por Paulo. Historicamente, quanto mais a igreja primitiva se afastava da vida terrena de Jesus, mais erros começaram a eclipsar a verdade. Ora, segundo o ponto de vista liberal, é no Evangelho de Marcos, no qual ressoa a pregação de Pedro, que alcançamos o mais verdadeiro e vívido vislumbre da vida e dos ensinos do Jesus puramente humano. Isso não significa que tudo o que se acha registrado nesse Evangelho é digno de confiança, senão que ele nos habilita a penetrar além da casca e atingir o próprio cerne da verdade no tocante ao Jesus histórico e à fé pela qual ele viveu. Portanto, o evangelho de Marcos é mormente histórico em vez de doutrinário. Ele retrata Jesus como um crente, e não como um objeto de fé. b. Avaliação O caráter duvidoso da reconstrução que o liberalismo tenta fazer da história sagrada é hoje admitido por toda parte. Porém, visto que sua principal fraqueza pertence não só a ele mesmo, mas também às escolas de pensamento que surgiram em oposição a alguns de seus princípios, adiaremos a consideração dessa falha básica até que tenhamos sumariado e avaliado também essas teorias conflitantes. Não obstante, pode-se mencionar de imediato um grave defeito, ou seja, que a reconstrução liberal de Marcos o interpreta mal e grosseiramente, pois esse Evangelho, longe de retratar Jesus como se fosse meramente humano, o descreve como aquele que é realmente o Filho de Deus, objeto de adoração e culto. Na verdade, a Cristologia de Marcos é 88
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essencialmente a mesma de Mateus, Lucas, João, e Paulo! Certamente que em Marcos não se nega, antes se ensina claramente e se pressupõe o lado humano de Cristo (2.16; 3.9,31; 4.38; 6.5; 13.32; 15.37). Porém, de acordo com esse evangelista, as duas naturezas — a humana e a divina (para usar uma terminologia posterior) — estão em perfeita harmonia. Este é um fato que, ao estudar certas passagens, alguém dificilmente deixará de perceber (4.38,39; 6.34,41-43; 8.1-10; 14.32-41; etc.). E a opinião segundo a qual o Evangelho de Marcos enfatiza o lado humano de Jesus com detrimento do lado divino é sem dúvida errônea. Esse evangelista retrata Jesus como sendo na verdade o Filho de Deus. Além disso, essa designação é-lhe aplicada não somente por Marcos (l.l), 6 3 mas também, segundo o próprio Marcos, pelos demônios (3.11; 5.7), pelo centurião (15.39),64 pelo Pai celestial — e isso em conexão tanto com o batismo do Filho (1.11) quanto com sua transfiguração (9.7)65 — e ainda pelo próprio Jesus (14.61,62), e isso num sentido tão elevado que os que o rejeitaram, consideraram tal reivindicação nada menos que uma blasfêmia (14.63,64). Porém, a fim de se chegar a uma conclusão sobre a opinião de Marcos acerca de Jesus, não temos de limitar-nos à consideração dos títulos que esse Evangelista atribui àquele que é tanto o "Filho de Deus" como o "Filho do homem". Também deve-se estudar a narrativa que Marcos faz das palavras e dos feitos des61
Nos comentários sobre Marcos será encontrada uma análise da autenticidade das palavras 8eoo nessa passagem. E bastante dizer agora que o Grk. N.T. (A-B-M-W) inclui essas palavras no texto, ainda que entre parênteses. 64 Ainda que seria errôneo ver nesse título, como pronunciado pelo centurião. todo o sentido que nós cristãos vemos nele — como se estivesse pensando em sua qualidade de filho eterno, essencial e co-igual —, não seria igualmente errôneo interpretá-lo como se sua exclamação não quisesse dizer nada mais que: "Certamente que havia uma fagulha de divindade neste homem"? Esta última explicação desconsidera tanto o contexto (Mc 15.39 completo) como o paralelo de Mt 27.54. O centurião realmente pensava que alguém que nem mesmo era sobre-humano podia causar o tremor de terra, fazer que as rochas fossem partidas e os túmulos abertos etc.? 65 Além disso, o Pai não declarou que por meio do batismo ou da transfiguração Jesus agora se tornara o Filho de Deus. Ao contrário, o Pai o declarou ser "o meu Filho amado", portanto seu Filho, num sentido único.
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MATEUS ta preeminente pessoa. Quando isso é feito, torna-se patente que aqui se aponta para essa filiação no mais elevado sentido. De acordo com Marcos, aquele que ele descreve tem domínio supremo sobre as esferas da enfermidade, dos demônios e da morte. Dessa forma ele cura enfermidades de diversas espécies, expulsa demônios (1.32-34), cura os cegos, os surdos, etc. (8.2226; 10.46-52), purifica os leprosos (1.40-45) e até mesmo ressuscita os mortos (5.21-24,35-43). Ele exerce poder sobre o reino da natureza em geral, porquanto acalma os ventos e as ondas (4.35-41), caminha sobre as águas (6.48), faz com que uma figueira seque (11.13,14,20) e multiplica uns poucos pães para satisfazer a fome de milhares de pessoas (6.30-44; 8.1-10). O seu conhecimento do futuro é tão detalhado e amplo que prediz o que acontecerá a Jerusalém, ao mundo, a seus discípulos (cap. 13) e a si próprio (9.9,31; 10.32-34; 14.17-21). A sua autoridade é tão notável que concede perdão de uma forma que corresponde somente a Deus e a nenhum outro (2.1-12, especialmente vv.5 e 6). O clímax de sua majestade é assim revelada: quando a morte se lhe apresenta, ele ressuscita! (16.6). Quanto à questão de se Marcos retrata este Jesus como o objeto da fé, essa pergunta deve ser também respondida com uma vigorosa afirmação, o que realmente já se acha implícito na resposta anterior. "Jesus Cristo, o Filho de Deus", é introduzido imediatamente como o senhor cuja vinda, segundo as profecias, requer um arauto ou preparador do caminho (1.1-3). Ele é aquele a quem os anjos ministram (1.13). Ele batiza com o Espírito Santo (1.8); é Senhor até mesmo do sábado (2.28); designa seus próprios embaixadores (3.13-19); tem o direito de ser aceito com fé mesmo pelos de "sua própria nação" (implícito em 6.6); tem autoridade de mandar aos homens que o sigam e o recebam (8.34; 9.37); é o mesmo a quem Davi chamou "Senhor" (implícito em 12.37), e como "Filho do homem" virá outra vez nas nuvens com poder e grande glória, quando, então, enviará os anjos a reunir os eleitos (13.26,27).66 w>
Note-se também a expressão "os pequeninos que crêem em mim" (9.42), ainda que em conexão com isso haja uma questão textual com respeito à frase "em mim".
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3. Wrede e o Ceticismo a. Descrição Portanto, não causa surpresa o fato de o ponto de vista liberal com respeito a Marcos ter sido incapaz de manter-se. Mesmo ao tempo da vida de seus principais defensores, já era atacado. Um de seus principais oponentes foi o erudito em Novo Testamento, o alemão William Wrede.67 Em sua vida breve (1859-1906) enfatizou ele repetidas vezes que o ponto de vista segundo o qual o Evangelho de Marcos é principalmente histórico antes que doutrinário, e que não apresenta Jesus como objeto de culto, é um erro. Wrede denuncia esse erro em seu famoso livro Das Messiasgeheimnis in den Evangelien, publicado em 1901; também em sua obra póstuma The Origin of the New Testament (tradução de Die Entstehung der Schriften des Neuen Testament), Londres e Nova York, 1909. Esse livro contém uma série de conferências originalmente dirigidas a leigos. O estilo é vivido e lúcido. Wrede tinha o raro dom de expressar-se em linguagem que todos podiam entender. Ele defende o ponto de vista de que não somente Mateus e Lucas, como também Marcos descreve Jesus Cristo como objeto de fé (pp.52,73, etc.). Ora, se Wrede parasse aqui, teria prestado um relevante serviço à causa da erudição cristã. Não obstante, ele foi além. Argumentou que embora seja verdade que os Evangelhos retratem Jesus como objeto de fé, eles erraram ao fazer isso. Esses Evangelhos, segundo acreditava, nos fornecem vim quadro das opiniões subjetivas da comunidade cristã primitiva. Eles não contêm a história real de Jesus. Em The Origin of the New Testament (p. 73), diz ele: "Mesmo o nosso Evangelho de Marcos, embora possa parecer triste ter de dizê-lo, de forma alguma "7 Para uma lista de todas as obras principais de Wrede, veja-se S.H.E.R.K., Vol. XII, Grand Rapids, p. 444. Em seu Paul (tradução de Paidus), Londres, 1907. Wrede traz um agudo contraste entre Jesus e Paulo. Este, segundo Wrede o viu, não foi discípulo de Jesus, c, sim, o segundo fundador do Cristianismo. J. Gresham Machen refutou essa posição em seu excelente livro The Origin de Pauis Religion. Grand Rapids. 1947.
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MATEUS descreve simplesmente a vida de Jesus tal como foi." Em seu Messiasgeheimnis (Segredo Messiânico) ele descreve o livro de Marcos como sendo em si mesmo contraditório e não confiável. Esse Evangelho nos conta que Jesus realizou os milagres mais estupendos, não obstante proíbe ao povo divulgá-los. Aos discípulos se revela como o Messias, todavia lhes proíbe divulgálo. Por quê? Eis a solução de Wrede: No princípio — ou seja, ao longo da vida terrena de Jesus — este não era considerado como o Messias, nem mesmo pretendera sê-lo. Contudo, a comunidade cristã primitiva creu que por meio da ressurreição Jesus se tornara o Messias, uma crença refletida — segundo Wrede — em At 2.36; Rm 1.4. Então, em retrospectiva, por assim dizer, com a vantagem da crença na messianidade, a igreja deduziu que, se o Jesus que antes de sua morte andou entre os homens era então o Messias em perspectiva, então, mesmo durante esse período anterior, deveria estar consciente de sua dignidade futura, e teria de dar evidências dela. Assim Marcos (e até certo ponto também os outros evangelistas) viu a messianidade nos dias anteriores à crucificação, porém de uma maneira tal que, por ordem do próprio Jesus, ela tinha de ser mantida em secreto nesse tempo. Depois da ressurreição poderia então ser revelada publicamente. Portanto, é evidente que, segundo Wrede, os Evangelhos são manipulações. Não são confiáveis. b. Avaliação Wrede tinha o hábito de apresentar suas conclusões como se fossem o resultado de estudos e pesquisas cuidadosas, isentos da contaminação de mera opinião teológica ou de preconceitos. Ver seu Origin ofthe New Testament, p. 4. Tendo assim criado uma atitude de confiança por parte dos ouvintes e/ou leitores, prossegue, então, afirmando uma boa porção de meras opiniões, apresentando-as como se fossem fatos estabelecidos. Por exemplo, (1) que Paulo era um homem incapaz de ver o lado positivo das coisas, p. 16; (2) que o arrazoado de Paulo em Gálatas 3.16 é puro rabinismo, p. 20; (3) que existe notável di99.
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ferença entre os ensinos de Jesus e os de Paulo, p. 23; (4) que Paulo escreveu uma carta aos laodicenses e que a mesma desapareceu, p. 26; e (5) que Efésios, não escrita por Paulo, é uma mera extensão de Colossenses, pp.40,45.68 Quando, pois, no mesmo livro, ao considerar a origem e a confiabilidade dos Evangelhos, declara: (6) que as histórias da infância de Jesus, em Mateus e Marcos [quis dizer Mateus e Lucas?], devem ser consideradas como mitos desde o início até ao fim, p. 61; e (7) que toda tradição humana implica alteração, p. 70, dando esta como uma das razões por que nossos Evangelhos, inclusive Marcos, não podem ser considerados como fidedignos, temos o direito de questionar o valor de tais afirmações sem fundamento. 4. SchM>eitzer e o Pessimismo a. Descrição O total ceticismo de Wrede, geralmente expresso com característica clareza e vigor, não poderia permanecer despercebido. Houve reações: algumas desfavoráveis, outras favoráveis. Em seguida daremos um exemplo de cada uma. Em primeiro lugar, pois, focalizemos o que poderia considerar-se em grande medida como uma reação desfavorável, ou seja, a de um teólogo protestante nascido em Kayserburg, na província renana de Alta Alsácia, Albert Schweitzer (18751965). Ele não é um desconhecido de nossa época. Artigos de jornais e revistas têm colocado com freqüência seu nome ante a atenção geral do público. Enquanto os que têm a música como sua especialidade se lembrarão sempre dele como o autor de uma grande biografia e comentário sobre Johann Sebastian Bach, obra que ainda é considerada um clássico, a maioria o conheceu especialmente como filantropo, ganhador do Prêmio Nobel, o 68
Analisei lodos esses assuntos nos volumes de C.N.T. Por isso, sobre (1) ver o volume sobre Filipenses. pp. 34-36; sobre (2) ver o volume sobre Gálatas (3.16); (3) também sobre Gl 5.1; (4) Colossenses e Filemom, pp. 241-246; e (5) Efésios, pp. 15-41.
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MATEUS cirurgião missionário que virtualmente se sacrificou pela causa dos pobres e desamparados da África. Foi no ano de 1913 que ele deixou seu pastorado e cátedra para estabelecer o famoso hospital em Lamborene, Gabon (ex-Africa Equatorial francesa). Salvo por algumas conferências e viagens para dar concertos com o fim de levantar dinheiro para esse hospital, ele permaneceu entre os africanos até ao dia de sua morte, aos 90 anos de idade. O valor dos serviços que ele prestou em favor dos flagelados de quase todo tipo — incluindo os afligidos pela doença do sono, pela malária, pela elefantíase e pela lepra — dificilmente pode ser superestimado. Ele se fez muitíssimo amado por milhares de africanos, sendo o seu próprio credo que cada pessoa deveria sacrificar uma porção de seu próprio tempo em favor dos demais. De fato, um dos pontos sobre os quais ele punha grande ênfase era o caráter sagrado não somente da vida humana mas também de toda a vida, até mesmo a ponto, segundo se dizia, de nem mesmo matar os mosquitos do hospital. Todavia, para o nosso propósito, quem requer investigação é especialmente Schweitzer o teológo. Seu breve tratado. The Secret of the Messiahship and the Passion, foi publicado no ano de 1901, o mesmo dia em que também foi publicado Messianic Secret in the Gospels, de Wrede. Essa obra mais breve de Schweitzer foi desenvolvida subseqüentemente em The Quest of the Historical Jesus (tradução de Von Reimarus zu Wrede), 1906. Entre os seus muitos outros escritos de especial interesse para o teólogo estão: Paul and His Interpreters, 1912; The Mystery of the Kingdom, 1914; e Christianity and the Religions of the World.09 Ora, em certo sentido o precursor de Schweitzer foi Wrede. Isso é verdade pelo menos em dois aspectos: (1) Ambos rejeitaram a reconstrução liberal da personalidade de Jesus, antes des'''' Fascinantes e não sem interesse teológico são seus livros sobre temas mais gerais, tais como On the Edge of the Primeval Forest. 1922: The Decay and Restoration of Civilization, 1823; Out of My Life and Thought, 1933; e Indian Thought and Its Development, 1936.
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crita. Aquele Jesus de Nazaré, disse Schweitzer, "é uma figura projetada pelo racionalismo, dotada de vida pelo liberalismo e vestida com uma túnica histórica pela teologia moderna". 70 (2) Ambos enfatizaram o elemento escatológico nos Evangelhos, ou seja, ambos insistiram no fato de que segundo os Evangelhos, a mente de Jesus estava ocupada com os eventos dramáticos que ainda eram futuros. Entretanto, a diferença entre os dois era esta: enquanto Wrede considerava a proeminência do elemento escatológico no pensamento de Jesus como não-histórico, Schweitzer o via como histórico, ou, expressando-o de outra forma, o que Wrede considerava como dogma de Marcos, isto é, o segredo messiânico, Schweitzer o via como uma crença própria de Jesus. Schweitzer, em outras palavras, não tinha paciência com o completo ceticismo de Wrede. Embora ele mesmo rejeitasse os milagres, não via justificativa alguma na recusa de Wrede em aceitar os Evangelhos como sendo principalmente históricos. Jesus foi representado por Marcos como preocupado com o futuro? A própria atmosfera daqueles tempos não estava saturada de escatologia? Por que, pois, seria estranho que Jesus falasse de sua grandeza vindoura e do reino futuro? Além do mais, que boa razão há para considerar-se a descrição que Marcos faz das ardentes esperanças de Jesus como sendo nada mais que uma distorção criada pela comunidade cristã primitiva, e particularmente por Marcos? Entretanto, para que não comecemos a pensar que os próprios pontos de vista de Schweitzer referentes a Jesus e ao reino de Deus estão mais próximos da linha da teologia conservadora que os de Wrede, afirmemos de vez que se transferíssemos a nossa lealdade de Wrede para Schweitzer, estaríamos simplesmente transferindo a responsabilidade do erro de Marcos para o próprio Jesus. Segundo Schweitzer, não foi propriamente Marcos, mas Jesus mesmo quem estava cometendo um trágico erro. Era Jesus quem estava enganado. 70
The Ouest of the Histórica! Jesus, p. 386.
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MATEUS Dos escritos teológicos de Schweitzer — especialmente de The Myslery of lhe Kingdom — derivamos o seguinte sumário da vida de Jesus, segundo os Evangelhos como interpretados pelo cirurgião-músico-teólogo (ou filósofo): O ministério público de Jesus abrangeu apenas um curto período. Iniciou seu ministério na estação da semeadura do verão e o encerrou na Cruz no período da Páscoa do ano seguinte. No seu batismo recebeu a consciência do fato de que viria a ser o Messias. Todavia, como tal ele devia permanecer não-reconhecido até que surgisse uma nova era. No sermão do Monte ele ensina que são bem-aventurados os mansos, os pacificadores, etc., no sentido de que são destinados ao reino que há de vir. Embora, segundo Schweitzer, o espírito desse sermão seja valioso para todos os tempos, pois a ética é a própria essência da religião,71 de forma alguma era o propósito de Jesus estabelecer uma nova moralidade sobre a terra, uma sociedade ética estável que se desenvolvesse gradualmente. Ao contrário disso, o reino sobre o qual Jesus estava pensando chegaria logo, de repente, de forma sobrenatural e por meio de cataclismo cósmico catastrófico, por meio do qual o mal seria completamente vencido. Em conseqüência, a ética que Jesus proclamava era de fato uma "ética provisória", ou seja, uma ética que previa um estado de perfeição que seria introduzida de forma sobrenatural. Jesus ensinou o povo a arrepender-se como uma preparação para esse reino escatológico, que seria divinamente estabelecido. Todavia, sua chegada seria precedida por breve período de aflição pelo qual os crentes teriam de passar. Essa aflição não seria apenas uma provação, mas seria uma expiação, uma satisfação pelos pecados cometidos na presente dispensação. Jesus envia seus discípulos numa jornada missionária e espera a aurora repentina e catastrófica do reino antes que regressassem. Por meio de uma assim chamada refeição miraculosa, ele consagra as multi71
Ainda que Schweitzer tenha combatido o ponto de vista liberal, nada obstante ele permaneceu em alguns aspectos sendo um liberal de coração, como se faz evidente especialmente em The Ouest of the Historical Jesus, p. 397; e em My Life and Thought, pp. 73ss.
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does para entrarem nesse reino. No Monte da Transfiguração ele revela a três de seus discípulos o segredo de sua messianidade. Alguns o consideraram como o Precursor. Contudo, Jesus agora indica que o reino está muito perto: ele mesmo é o Messias; o Precursor era João Batista. Pela leitura do dêutero-Isaías, Jesus descobre que o reino será estabelecido sem uma tribulação geral precedente, e que, em vez disso, ele mesmo sofrerá por muitos. Todavia, de uma forma geral os seguidores de Cristo não estão conscientes do segredo de sua messianidade. Por isso, a entrada em Jerusalém é uma ovação àquele a quem a multidão reverencia não como o Messias, mas como o Precursor. Judas descobre o segredo da pretensão messiânica de Jesus, e a revela aos principais sacerdotes. Eles planejam sua morte. "Na tarde do dia quatorze de Nisã, enquanto eles comiam o cordeiro pascal ao entardecer, ele bradou em grande voz e morreu." Morreu "sem esperança de introduzir o novo céu e a nova terra". Sua vida findou em tragédia, no mais extremo pessimismo e desilusão, porque o reino não havia chegado. b. Avaliação Ora, nessa apresentação há alguns pontos que merecem certo grau de apreciação: (1) Schweitzer considera históricos muitos dos relatos dos Evangelhos os quais Wrede rejeita. (2) Ele enfatiza que é Deus, e não o homem, quem estabelece o reino; é "o reino de Deus" (cf. Mt 6.10). E (3) ele percebe corretamente que no ensino de Jesus "o reino de Deus" é essencialmente uma entidade escatológica, um estado futuro de bem-aventurança em que a vontade de toda a sociedade redimida estará em completa harmonia com a vontade de Deus (cf. Mt 13.40-43; 19.28,29; 25.34; Mc 9.47; Lc 12.32; 13.28,29; 21.31; cf. ICo 6.9,10; 15.50; G1 5.21; Ef 5.5; 2Ts 1.5; etc.). Todavia, tendo dito isso, devemos também indicar os elementos errôneos: (1) em lugar do final culminante dos Evangelhos, Schweitzer colocou seu próprio anticlímax completamente pessimista; em lugar da vitória, a tragédia. (2) Ele não conseguiu mostrar como se pode harmonizar o seu Jesus escatológico com o seu Jesus liberal. (3) Deve-se perguntar se o Jesus que ele 97
MATEUS retrata, torturado do princípio ao fim por uma obsessão, pode ainda ser considerado como uma pessoa completamente sã. Não é, pois, surpreendente que para alcançar seu título em medicina Schweitzer escrevesse uma dissertação sobre o tema: The Psychiatric Esíimate of Jesus (tradução de Die psychiaírisehe Beurteilung Jesus), Boston, 1948. E (4) a ênfase unilateral de Schweitzer sobre o aspecto escatológico do reino, como se este fosse tudo com respeito a ele, ignora toda a cadeia de passagens em que Jesus frisa o fato de que o reino (ou reinado, governo real) é uma realidade espiritual presente e em contínuo desenvolvimento (Mt 12.28; 19.14; Mc 4.26ss.; 10.15; 12.34; Lc 7.28; 17.20,21). À semelhança da teoria de Harnack e a de Wrede, assim também a de Schweitzer tem sido pesada e, à luz das Escrituras, achada em falta. Além disso, segundo menção anterior, a que provavelmente é a principal fraqueza desse ponto de vista e dos precedentes é reservada para uma discussão posterior. 5. Bultmann e o Radicalismo a. Descrição Logo após a Primeira Guerra Mundial, alguns eruditos alemães começaram a concentrar sua atenção na transmissão oral das palavras de Cristo e dos relatos de suas ações. Começaram a estudar a forma na qual os ensinos de Jesus e as narrativas a respeito deles tinham circulado ao longo do período situado entre sua morte e o tempo em que os Evangelhos foram escritos. Foram animados nessa busca com base no fato de que a ênfase unilateral sobre a análise literária dos Evangelhos produzira tão "triviais recompensas", como foi mostrado no capítulo II A. Entre os eruditos que empreenderam essa nova tarefa dois nomes destacam-se de forma proeminente: Martin Dibelius72 e Rudolf Bultmann. Se Wrede foi cético ou agnóstico, Bultmann pode ser chamado de radical, sem se cometer injustiça. 72
Dibelius foi um teólogo luterano (1883-1947), nascido em Dresden, Saxônia. Depois de ensinar em Berlin (1908-1915), ele aceitou uma indicação como professor de Novo Testamento em Heidelberg (1915). onde permaneceu até sua morte. Ele foi
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Ele nasceu em Wiefelstede, aos 20 de agosto de 1884, região que naquele tempo era o grão-ducado de Oldenburg, Alemanha. Filho mais velho de um ministro evangélico luterano, estudou teologia em Tübingen, Berlim e Marburg. Entre os que fortemente o influenciaram estão: em Tübingen, Karl Miiller, o historiador eclesiástico; e em Berlim, o famoso Adolf Harnack (já considerado anteriormente) e Herman Gunkel, o renomado especialista em Antigo Testamento (1862-1932). Foi Gunkel quem, em associação com J. F. W. Bousset, desenvolveu o enfoque da literatura bíblica como "história da religião", como fica claro nos seus escritos, nos quais, por exemplo, trata o Gênesis como uma coletânea de sagas ou lendas. Esse enfoque conduziu àquilo que ficou conhecido como Crítica da Forma, um termo que hoje muitos associam imediatamente com Díbelius e Bultmann. Em Marburg, foi Johannes Weiss, cuja ênfase escatológica é refletida nos escritos de Bultmann, quem o animou a continuar seus estudos para o doutorado. Outros professores de Marburg, a quem Bultmann se reconhece devedor, foram Adolf Jülicher e Wilhelm Hermann. O estudo preparatório foi seguido pelo ensino. Enquanto ensinava em Breslau, Bultmann escreveu o livro que agitou profundamente o mundo teológico, ou seja: The History of the Synoptic Tradition73 Uma condensação popular dessa obra é: The Study ofthe Synoptic Gospels.74 É nesses livros que Bultmann apresenta suas idéias que são consideradas como Crítica da Forma.
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chamado de "o fundador da Escola da Crítica da Forma''. Além de comentários sobre as epístolas menores de Paulo, livros sobre Jesus e Paulo e vários outros volumes, ele escreveu From Tradition to Gospel (tradução de Die Formgeschichte des Evangeliums), Nova York, 1935. Título em alemão: Die Geschichte der synoptischen Tradition, publicado pela primeira vez em Göttingen, 1921 (3" edição 1957). A tradução inglesa foi publicada em Nova York e Evanston, 1963. Isso se encontra nas pp. 5-75 de um volume em cujo frontispício se lê; "Form Criticism, A New Method of New Testament Research, incluindo The Study of the Synoptic Gospels de Rudolf Bultmann, e Primitive Christianity in the Light of Gospel Research de Karl Kundsin, traduzido por Frederick C. Grant". Foi publicado em Chicago e Nova York, 1934. O original alemão da parte de Bultmann leva o título: Die Erfoschung der Synoptischen Evangelien.
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MATEUS Desde 1921 até sua aposentadoria em 1951, Bultmann foi professor do Novo Testamento e de História Cristã Primitiva em Marburg. Enquanto estava ali, ele aceitou um convite para apresentar uma preleção em Alpirsbach, Alemanha, diante da Sociedade de Teologia Evangélica. O seu artigo: "New Testament and Mythology" está baseado nessa preleção.75 O segundo enfoque de Bultmann ao novo Testamento, ou seja, Demitoligizcição, geralmente se relaciona com esse artigo (e escritos posteriores). Os dois enfoques — a Crítica da forma e a Demitologização — estão, entretanto, estreitamente relacionados entre si. De fato, na opinião de vários escritores, a substância do segundo enfoque já está implícito no primeiro.76 Qual, pois, é a atitude de Bultmann para com o Novo Testamento, mormente para com os Evangelhos? E revelador o fato de que ele qualifica Messianic Secret in the Gospels, de Wrede, de "indubitavelmente a obra mais importante no campo da investigação evangélica na geração recém-passada".77 Em seus escritos sobre a Crítica da Forma, ele desenvolve sua própria argumentação da seguinte forma: ele está convencido de que a tradição original consistiu, em sua maior parte, de breves unidades isoladas, formas fixas, tais como: histórias de milagres (e outras histórias sobre Jesus), apotegmas (histórias curtas que atingem seu clímax em ditos de grande agudeza), parábolas, 75
O artigo apareceu pela primeira vez em 1941. e foi publicado novamente em HansWerner Bartsch (org.) Kerigma und Mythes 1, 1948; versão inglesa, Kerigma and Myth: A Theological Debate, Londres, 1953. 76 No que se refere aos títulos de seus livros, outras obras relativas a Bultmann e outros excelentes materiais sobre Bultmann, discritivos e críticos, me referiria à contribuição de R.D. Knudson em P. E. Hunghes (org.), Criative Minds in Contemporary Theology, Grand Rapids, Mich., 1966, pp. 131-159, com bibliografia nas pp. 160-162. Ver também os valiosos relatos de N.B. Stonehouse em Origins of the Synoptie Gospels, pp. 168- 175; e em Paul before the Areopagus. Grand Rapids, 1957, cap. 5. No que se refere à literatura periódica, ver Bruce M. Metzger (compilados), Index Periodical Literature onChrist and the Gospels, Grand Rapids, 1962, pp. 171-177; 188-191, ever índice, p. 559 sob Bultmann; e sobre a literatura mais recente (livros e artigos), ver as contínuas edições de New Testament Abstracts. 11 The Study of the Synoptic Gospels, p. 22.
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provérbios, profecias, ditos sobre a lei e lendas. Há também um relato mais extenso sobre a Paixão seguido de um relato sobre a Ressurreição. Além disso, ele acredita que muitas dessas unidades tiveram sua origem em fontes externas, ou seja, não de palavras e obras históricas ou reais de Jesus, mas de originais rabínicos e apocalípticos e do helenismo. Ajuntaram-se outras indicações de tempo e de lugar e outros toques interessantes. A narrativa cresceu. Assim, Marcos (9.17) relata que um pai trouxe seu filho endemoninhado a Jesus. Lucas (9.38) acresce que esse filho era único. Novamente, Marcos (3.1) fala de uma mão mirada que fora curada. Lucas (6.6) nos conta que essa era a mão direita. Estudando as unidades, uma a uma, primeiramente vêm as histórias de milagres. Bultmann faz menção delas em conexão com os contos helenísticos, segundo um dos quais um exorcista expulsa um demônio pondo diante do endemoninhado um anel, de modo que este pudesse cheirar uma poderosa raiz que era posta nesse anel; e, segundo outro, um pé picado por uma víbora era curado por meio de um pedacinho da lápide do túmulo de uma virgem. Os apotegmas podem ser divididos em duas classes: (1) os que formulados num ambiente judaico, e (2) os que pertencem ao período helenístico posterior. Os da primeira classe com freqüência consistem de uma pergunta e uma contrapergunta ou parábola breve (ou ambos ao mesmo tempo). Ver Mc 2.19; 3.4, 24-26; etc. Os da segunda classe são introduzidos por palavras tais como: "Interrogado pelos" (Lc 17.20,21). Entretanto, às vezes a vaga conexão entre o dito agudo e a estrutura em que é falado mostra que somente o dito é palavra de Jesus, enquanto que o contexto foi provido posteriormente (Mc 2.15-17; 7.1-23; 10.2-12).
Também as parábolas, segundo Bultmann, devem sua origem a uma situação posterior, pelo menos em parte. As vezes o que originalmente havia sido uma parábola verdadeira, muito breve, com uma única lição central ("terço de comparação"), se 101
MATEUS transformou em alegoria, uma metáfora ampliada na qual cada um dos diversos símbolos possui um significado próprio. Chegou-se mesmo a acrescentar uma interpretação, não oriunda de Jesus, com o fim de satisfazer as necessidades da igreja primitiva. Ver as parábolas do semeador (Mc 4.1-20) e do joio (Mt 13.24-30,36-43). De forma semelhante, muitos dos provérbios são atribuídos a Jesus; por exemplo, "da abundância do coração fala a boca" (Mt 12.34b). Ver Mt 5.34b; 24.28; Lc 12.2,3; 16.20, etc. Segundo o conceito de Bultmann, devemos reconhecer a possibilidade de muitos desses (provérbios) não serem também autênticos. Poderiam ter tido sua origem no saber proverbial judaico (literatura sapiencial). No tocante às profecias, prossegue o erudito alemão, enquanto algumas sem dúvida eram palavras autênticas de Jesus, outras, provavelmente, foram pronunciadas por profetas cristãos que surgiam na igreja primitiva depois da morte de Cristo. A este último tipo pertencem os ditos "Eis que estou à porta e bato" (Ap 3.20); "Eis que venho como ladrão" (Ap 16.15); e assim também nos Evangelhos: "Eis que envio vocês como ovelhas para o meio de lobos" (Mt 10.16a). Em seguida há os ditos sobre a Lei, tais como palavras concernente à pureza (Mc 7.15) e o divórcio (Mc 10.11,12); a antítese "Vocês oyviram... porém eu lhes digo" (Mt 5.21,22), etc.; e as alocuções acerca da esmola, da oração e do jejum (Mt 6.2-18). Ainda que muitos desses ditos igualmente não tivessem sua origem em Jesus, e, sim, na comunidade, todavia o seu espírito é o mesmo de Jesus. Segundo Bultmann, também é produto da comunidade, e não se origina de Jesus, o seguinte: "Não pensem que vim destruir a lei ou os profetas" (Mt 5.17); as regras de disciplina (Mt 16.18,19; 18.15-22); e os mandamentos acerca das missões (Mt 10.5-16), incluindo ainda a Grande Comissão (Mt 28.19,20; cf. Lc 24.49). Diz-se que as lendas são abundantes nas narrativas da Paixão e da Ressurreição. Jesus realmente morreu na Cruz, porém jamais ressuscitou, diz Bultmann. Segundo ele, são também pro102
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duto da fantasia piedosa e do interesse apologético a história das mulheres que choravam (Lc 23.27-31), a da morte de Judas (Mt 27.3-10) e a da guarda ao sepulcro (Mt 27.63-66). Diz-se ainda que outras lendas são aquelas que dizem respeito à tentação e ã transfiguração de Jesus. O registro de seu batismo também não é considerado livre de elementos lendários. De tudo isso o que salta à vista é que para Bultmann os Evangelhos não testificam muito bem da vida e das obras de Jesus. Em vez disso, eles dão testemunho da fé da comunidade cristã primitiva. Devem ser vistos como o resultado de sua "situação na vida"; particularmente, das necessidades resultantes de seus esforços missionários, disciplina, liturgia e instrução catequética. De um modo geral, pois, os fatos históricos acerca do próprio Jesus estão além de nosso alcance. Bultmann afirma que não é possível produzir qualquer evidência positiva da autenticidade de uma única palavra de Jesus.78 Não obstante, ele sustenta que a mensagem de Jesus é evidente numa série consistente de passagens; por exemplo: "Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á" (Mc 8.35). Vejam-se também Lc 9.60,62; 11.31,32; 12.54-56; 14.20,27; etc. Portanto, a Crítica da Forma de Bultmann subentende que para descobrir o que se pode atribuir realmente ao próprio Jesus -— o âmago original de seu ensino, tanto ético quanto escatológico — devemos remover do registro não somente as elaborações ou acréscimos editoriais, mas também tudo quanto reflete situações que surgiram após a crucificação. Diz-se que uma porção substancial dos Evangelhos teve sua origem fora da Palestina. Portanto, para alcançar a autenticidade — as palavras e feitos reais de Jesus — os Evangelhos teriam de ser drasticamente reduzidos. E o corte indicado deve ser executado de conformidade com as leis estabelecidas do folclore e do desenvol78
Para Bultmann não só as palavras de Jesus, mas também sua vida constituem um ponto de interrogação. Ele expressou sua dúvida nestas palavras: "Não podemos saber quase nada sobre a vida e personalidade de Jesus" (Jesus and The Word. p. 8).
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MATEUS vimento literário e histórico. Então se faz evidente que Jesus ensinava que aos olhos de Deus o homem é completamente indigno. Como uma criancinha, assim ele deve receber o perdão e a salvação da parte de seu Pai. Deus é a Realidade final, diante de quem tudo se desvanece, transformando-se em nada. É tãosomente o futuro que pode trazer salvação ao homem. À vista desse futuro, o homem deve agora fazer uma decisão entre o mundo e Deus. Dos escritos de Bultmann sobre a Crítica da Forma ao seu "O Novo Testamento e a Mitologia" há apenas um pequeno passo. De acordo com esse artigo e vários de seus escritos posteriores, o Novo Testamento se expressa numa terminologia mitológica. Além disso, seus mitos são derivados da literatura apocalíptica dos judeus e das lendas gnósticas sobre a redenção. Em harmonia com os tempos em que os escritores do Novo Testamento viveram e as idéias pelas quais foram influenciados, aceitaram o ponto de vista de um universo tridimensional: um céu acima, uma terra abaixo e um inferno debaixo da terra. A vida humana sobre a terra, assim como a própria natureza, é considerada como existindo sob a influência de agentes sobrenaturais, tais como Deus, anjos, Satanás e demónios. Um ser celestial é enviado à terra para trazer salvação ao homem. Essa pessoa gloriosa, Cristo, opera milagres e, para fazer expiação pelos pecados do homem, vence os espíritos maus. Em seguida, este Cristo, embora morto e sepultado, ressuscita. Ainda sobe ao céu, recebe honras ao ser exaltado à mão direita do Pai, de cuja posição de poder e autoridade governa o universo até que retorne em majestade para julgar os vivos e os mortos. Bultmann acredita que atualmente é impossível considerar tais itens como História. Instruído pela ciência, o homem moderno sabe que esse programa corre em rumo contrário à cadeia de causa e efeito. O erudito alemão está convicto, pois, de que uma ressurreição física jamais aconteceu, e que tal crença provavelmente é oriunda de noções gregas de deuses que morrem e ressuscitam. Portanto, para se alcançar a realidade histórica é 104
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precioso penetrar até ao cerne do Novo Testamento, retirandolhe a casca, ou seja, eliminando tudo quanto é de caráter mitológico; daí. o termo demitologização. Não há dúvida de que o liberalismo começou a proceder assim. Contudo, segundo Bultmann, ele não foi suficientemente longe. O liberalismo tinira a opinião de que, eliminando um pouquinho aqui, um pouquinho ali, se chegaria a uma verdadeira "Vida de Jesus". Todavia, tal coisa é inteiramente impossível. Entretanto, o que se disse até aqui poderia nos conduzir a uma má interpretação da real posição de Bultmann, a menos que tenhamos em mente duas restrições: (1) A demitologização, como Bultmann a vê. não é uma descoberta inteiramente nova. Alguns dos filósofos antigos já a aplicavam a suas próprias religiões. Além disso, realmente ela não é uma ferramenta exegética aplicada às escrituras "a partir do exterior". Ao contrário disso, os próprios escritores do Novo Testamento indicaram o caminho. Paulo faz uso dela. Assim também, de forma ainda mais completa, o faz João. (2) quando entendemos a distinção entre a mera "História" (o passado morto) e "Geschichte" (o presente vivo), vemos que embora a forma mitológica na qual os Evangelhos são apresentados deixa de recuperar o passado ("História") para nós, é de vital importância quando se dirige a nós neste momento presente ("Geschichte"), e nos confronta com a necessidade de se fazer uma decisão. Porquanto, quando ele nos proclama o nascimento sobrenatural, a morte e ressurreição do Filho de Deus, de fato nos está dizendo o que deve acontecer em nosso próprio caso. Somos nós que devemos experienciar o novo nascimento, devemos ser crucificados com Cristo e com ele ressuscitar. Nós é que devemos, pela graça e pelo poder de Deus, render a ele todo o nosso ser e toda a nossa existência. A Teologia (a doutrina de Deus), portanto, é realmente Antropologia (a doutrina do homem). Neste ponto vemos a influência que dois homens exerceram sobre Bultmann, cujos nomes ainda não foram menciona105
MATEUS dos: Sõren Kierkegaard79 e Martin Heidegger. Este último ensinou em Marburg de 1922 a 1928; portanto, durante parte do período no qual o próprio Bultmann era professor ali (19211951). O movimento filosófico ou sistema de pensamento que, entre outros, esses dois (Kierkegaard e Heidegger) desenvolveram e promoveram chama-se Existencialismo. Este enfatiza que a existência humana vai além daquilo que se pode descrever em termos puramente científicos ou filosóficos. Ele ressalta fenômenos reais e intensos, tais como a ansiedade, o sofrimento, o sentimento de culpa, etc., com o fim de mostrar a necessidade de se fazer uma decisão ou escolha na qual alguém participa com a sua existência inteira. Por exemplo, quando decidimos emigrar, ou não; casar-nos com determinada pessoa, ou não; ou como enfrentar a morte; ou que resposta dar ao chamado do evangelho; em tais casos o nosso pensamento está em um plano diverso, mais elevado, do que quando tratamos de resolver um problema matemático meramente teórico. Em outras palavras, a reflexão existencial é mais elevada que a reflexão especulativa. n
Ele foi um influente filósofo dinamarquês que, durante sua breve vida cheia de pesares (1813-1855), se viu atingido pela melancolia, tendência que se diz ter herdado de seu pai. Sóren Kierkegaard atacou o Cristianismo formal. Em seu ataque, foi ao extremo de rejeitar não apenas a ortodoxia morta, mas também todo credo. Além disso, não quis ter nenhuma ligação com o Cristianismo organizado. Ele descreveu o assim chamado Cristianismo de sua época como sendo nada mais que epicurismo refinado. A fé genuína, segundo ele a via, era espiritualidade, a relação interior correta do indivíduo com seu Deus. Num momento dc crise uma pessoa decide a favor ou contra Deus. Essa decisão deve ser repetida constantemente. A genuína vida cristã é uma vida de inquietude, de ansiedade. A enorme tensão provocada pelo ataque de Kierkegaard contra o Cristianismo organizado de seu tempo, e particularmente contra seus líderes, o debilitou fisicamente e apressou sua morte. Até onde seu ataque foi dirigido contra tudo o que na religião é puramente formal (por exemplo, uma oração que é simplesmente um fruto dos lábios: um sermão no qual não se pôs o coração, mas que é uma mera recitação; uma igreja que perdeu seu amor e se converteu em uma mera organização; etc.), e visto que enfatizava a religião do coração, sua ênfase suscita uma resposta favorável. Todavia, quando começamos a compreender que ele subjetivou o objetivo, fez vista grossa ao corpo de verdade revelado na Escritura e resumido nos grandes credos do cristianismo, percebemos que ele foi se desviando para um rumo perigoso; porque, que é a religião subjetiva sem o verdadeiramente objetivo? Ver o artigo de F. Nielsen, Kierkegaard, Sõren Aaby em S.H.E.R.K., Vol. VI, pp. 330,331; e também V. Hepp em Chrislelijke Encyciopaedie. Vol. III. pp. 383-387.
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Conseqüentemente, sob tal influência, Bultmann ensina que a verdadeira fé só é possível mediante uma resposta existencial, um encontro com Deus. O momento de tal encontro está cheio de eternidade. O evento salvífíco toma lugar como uma experiência sempre recorrente, toda vez que a Palavra alcança o coração, e o ouvinte, pelo poder do alto, se volta de si mesmo para Deus, do pecado para a santidade. Segundo o modo de ver de Bultmann, isso revela a grande importância do culto público, durante o qual repetidamente Deus confronta o homem com a necessidade de se fazer uma decisão, uma escolha com implicação escatológica, ou seja, com importância para o futuro total daquele que faz a escolha. E assim que os Evangelhos, mesmo em sua forma mitológica, devidamente interpretados, confrontam os ouvintes e alcançam seu real significado. E assim que, na vida da igreja, os homens morrem com Cristo e ressuscitam com ele.80 b. Avaliação Do lado positivo pode-se dizer o seguinte: (1) Dentro dos círculos não-conservadores, a concentração da atenção sobre a tradição oral durante o período precedente à formação dos Evangelhos era como uma conta já vencida havia muito tempo. Certamente que a transmissão oral merece essa ênfase renovada, como sempre foi a posição conservadora. (2) A classificação dos materiais dos Evangelhos, em tipos ou formas, além de ser um auxílio no estudo do possível curso da tradição oral, facilita a comparação com "semelhanças" em outras literaturas, tanto sagradas como seculares. (3) A idéia segundo a qual os Evangelhos não são uma gravação de todas 80
No que tange à relação de Bultmann com Karl Barth, os dois concordam na consideração da verdadeira fé como a resposta adequada à (o que eles consideram) Palavra de Deus. Todavia, com o passar do tempo os pensamentos de ambos começaram a divergir. Knudsen (op. cit., p. 133) chama a atenção para o fato de que uma visita de Barth a Marburgo suscitaria uma calorosa discussão. Ver também Herman Ridderbos, " R u d o l f B u l t m a n n " , Torch and Trumpet, Vol. XV, n° 9 (novembro de 1965), pp. 12-15.
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MATEUS as palavras de Jesus, nem uma reprodução fotográfica de todos os seus atos poderosos, senão, antes, um sumário que foi composto de acordo com as necessidades da igreja, e com um propósito definido em mente, é confirmado por Jo 20.30,31; 21.25. (4) A declaração de que a verdadeira fé é uma atitude e uma atividade na qual é envolvida a personalidade toda, que em conseqüência é uma rendição pessoal e completa que resulta de uma decisão, traz à mente Js 24.15 e as palavras de Jesus registradas em Mc 12.29-31. Se questões como essas tivessem sido combinadas com a fé verdadeira, fé como a de uma criança, fé em toda a revelação objetiva de Deus em Jesus Cristo, como é revelada nas Escrituras, teriam elas se constituído numa contribuição de elevado valor. Porém, infelizmente para o movimento em discussão, as palavras grifadas revelam o que lhe falta. Basicamente, portanto, a nossa avaliação deve ser incisivamente negativa: (1) A semelhança não comprova descendência. A descoberta de paralelos superficiais no folclore e na literatura de nações circunvizinhas não comprova que as unidades dos Evangelhos tiveram sua origem nessas fontes externas ou que foram as mesmas em essência. É até mesmo de todo natural que haja uma certa quantidade de semelhança superficial, pela simples razão de que os escritores dos Evangelhos foram homens de seu tempo. Seus escritos não se originaram no vácuo. Por outro lado, tão logo penetramos a essência interior, começamos a perceber um contraste surpreendente: os milagres realizados por Jesus, como registrados nos Evangelhos, não foram atos mágicos. Os próprios paralelos referidos por Bultmann — tais como a cura produzida por um pedacinho de lápide do túmulo de uma virgem — refutam sua teoria. Fica evidente que Bultmann se deixou influenciar indevidamente pela escola da história da religião. (2) E inteiramente inescusável separar um texto de seu contexto sem apresentar uma sólida razão para assim proceder, e em seguida encaixá-lo num novo contexto. Tal procedimento viola uma das mais importantes regras da sã exegese. 108
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
(3) Não é verdade que a inclusão — ou exclusão — de alguns materiais nos evangelhos segundo as necessidades da igreja primitiva implica distorção. Assim, também, aplicação variada não implica necessariamente alteração essencial. Ao contrário, a inclusão de tantas passagens que expõem os pontos fracos de alguns dos maiores líderes da igreja (Mc 8.31-33; 9.34; 10.35-41; 14.37,66-72 e paralelos nos outros Evangelhos) enfatiza a honestidade e objetividade dos escritores dos Evangelhos. O Espírito Santo está no comando! (4) As adições de Lucas ao relato de Marcos (por exemplo "filho único, mão direita''') não indicam necessariamente a aglomeração de lendas na narrativa simples de Marcos. De acordo com boa parte dos intérpretes, essas adições têm sua origem no fato de que Lucas era um homem muito sensível, solidário, e que era médico; portanto, ele era uma pessoa que, mais que outras, tenderia a tomar nota de tais detalhes e incluí-los em seu relato. Outras, porém, poderiam ter sido as razões. O que especialmente reduz o valor das observações de Bultmann é o fato de que com tanta freqüência é Marcos quem fornece o relato mais detalhado. (5) Bultmann não consegue apresentar qualquer razão sólida para sua teoria de que as parábolas (e bem assim os milagres) foram ampliados muito além de seus originais. Igualmente, ele não consegue ver que mesmo uma parábola com traços alegóricos — um significado próprio para cada símbolo — pode ter uma única lição central. Ver Mc 4.9; cf. Lc 8.8,18. (6) Expulsar os "mitos" pela porta da frente e deixá-los entrar pela porta dos fundos é, sem dúvida, um procedimento muito estranho! (7) A idéia de que o universo é virtualmente um sistema fechado no qual tudo é governado pela lei natural, de modo que os milagres se tornam impossíveis, dificilmente se poderia chamar de ciência moderna. O notável progresso nas descobertas científicas, em vez de reduzir a área que ainda deverá ser explorada, cada vez expande mais a esfera do mistério, o que indica o Deus Vivo e Onipotente. O autêntico homem de ciência sabe 109
MATEUS que há coisas que só serão compreendidas pela fé na infalível revelação especial de Deus. (8) Depois de eliminar quase tudo que pertence à esfera do sobrenatural, incluindo a conceituação bíblica de Deus como o soberano Criador81 e Redentor, o que fica sobrando de Deus? um encontro com tal Deus tem alguma relevância? É mesmo possívell Além disso, no tocante ao elemento de verdade em expressões tais como "decisão constantemente repetida", "encontro", etc., não tem a igreja ao longo dos séculos, sempre quando tinha vida, realçado sempre a necessidade da conversão básica e diária, da fé viva, da constante aplicação dos méritos de Cristo aos corações e vidas dos crentes, ou, mudando um pouco a fraseologia, da apropriação contínua da morte e ressurreição de Cristo? De igual modo, esta igreja viva não destruía a validade dessa ênfase, rejeitando o próprio Deus a quem devia dedicar-se, ou seja, Deus tal como ele é revelado em Cristo segundo o registro inspirado. (9) Segundo os Evangelhos (na verdade, segundo todo o Novo Testamento), "o Cristo da fé" é "o Jesus da História", e vice-versa (Jo 20.31). Como que direito Bultmann separa esses dois? (10) Uma filosofia que recusa render homenagem ao Cristo sem pecado (Jo 8.46), que veio do céu (Jo 6.38); que se deu em resgate pelo pecado (Mt 20.28; Mc 10.45); que ressurgiu dos mortos no terceiro dia (Mc 16.6), subiu e assentou-se à mão direita do Pai, no céu (Lc 24.51; At 2.34), da qual posição ele governa o universo para o bem da igreja (Mt 28.18; Ef 1.22); e que voltará em glória para julgar os vivos e os mortos (At 1.11; Fp 3.20,21; lTs 4.13-18; 2Ts 1.7ss.; Tt 2.13; Ap 1.7; 20.11-15), sim, uma filosofia que recusa render homenagem a este Cristo não é digna de ser chamada cristã (filosofia, teologia ou religião). Basicamente, o bultmanismo e o Cristianismo são antônimos). 6. A Fraqueza Básica Passamos agora a considerar a razão básica para rejeitar as quatro teorias que já foram sumariadas, começando com Harnack sl
Sobre este ponto, ver N.B. Stonehouse. Origins of the Synoptic Gospels, p. 174.
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INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
e o Liberalismo e terminando com Bultmann e o Radicalismo. Nenhuma delas oferece uma explicação satisfatória para os seguintes fatos: a. O testemunho daqueles que viram e ouviram, e seus próprios discípulos, no sentido de que Jesus Cristo realmente é o Senhor ressurreto e vivo. b. O fato de que esse testemunho é muito próximo aos próprios acontecimentos, primitivo demais para que o folclore tivesse surtido efeito ou os mitos pagãos tivessem influenciado a pregação daqueles que proclamaram o Cristo redivivo. Temos, por exemplo, os quatro Evangelhos. O primeiro dos quatro, por tradição unânime, é atribuído a Mateus, um dos doze discípulos de Cristo.82 Uma hoste de testemunhas daquele tempo declara que Marcos, com cujo nome o segundo Evangelho se identifica, era tido como "o intérprete de Pedro", um apóstolo e testemunha. O nome de Pedro é mencionado primeiro em cada lista dos doze apóstolos. (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.14-16; At 1.13). Lucas, ainda que ele mesmo não fosse uma testemunha ocular da história de Jesus, faz menção especial do fato de que pertence ao número dos homens que receberam suas informações daqueles "que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra" (Lc 1.2). E mesmo o último dos quatro Evangelhos, o de João, é evidente que foi escrito por um judeu da Palestina, uma testemunha ocular, alguém que possuía um conhecimento detalhado da topografia da Palestina, mormente de Jerusalém e suas proximidades imediatas, e do templo. O caráter primitivo desse Evangelho tem sido confirmado pelas descobertas arqueológicas. Ver C.N.T., sobre esse Evangelho, pp. 18,19,190. Além disso, os aramaísmos presentes nos quatro Evangelhos criam uma suposição em favor de sua origem primitiva.83 Todos os quatro proclamam o Cristo redivivo! Em con82 83
Para maiores detalhes, ver pp. 121-127. Isso está começando a ser mais e mais reconhecido. Ver, por exemplo, R. H. Gundry, "The Language Milieu of First Century Palestine. Its Bearing on the Authenticity of the Gospel Tradition", JBL 83 (abril de 1964). pp. 404-408.
MATEUS seqüência, antes que alguém tenha o direito de rejeitar o que estes Evangelhos nos contam sobre Jesus Cristo — sua origem, seu ser exaltado, seus milagres, sua morte expiatória, sua ressurreição, etc. —, terá de apresentar provas de que o testemunho dessas testemunhas primitivas não está refletido neles. Além disso, em total concordância com a informação referente ao Salvador ressurreto e eternamente vivo, está o testemunho do apóstolo Paulo; por exemplo, aquele que se encontra em ICo 15. E comumente reconhecido que foi o apóstolo quem escreveu 1 Coríntios. Com toda probabilidade, essa epístola foi composta em alguma ocasião durante o período de 55-57 d.C., isto é, apenas um quarto de século após a morte de Cristo. Não obstante, já nesse tempo tão antigo o apóstolo dá testemunho enfático de sua fé no Salvador ressurreto (ICo 15.20). Não somente isso, mas ele faz referência a uma visita sua a Corinto, feita ainda mais cedo (provavelmente entre os anos 51-53 d.C.84), ocasião em que os coríntios aceitaram este Cristo ressurreto como seu Salvador e Senhor pessoal (15.1). Ainda mais significativo é o fato de que Paulo, nesse capítulo (15.6), nos informa que os "aparecimentos" do Cristo ressurreto, dos quais menciona vários, incluíam também aquele "a mais de quinhentos irmãos ao mesmo tempo". E ele aduz: "a maioria ainda vive, embora alguns já dormem". c. O fato adicional é que, segundo toda a evidência que possuímos, nenhuma das testemunhas mais antigas esperava a ressurreição de Cristo. Ante a morte de seu Mestre, todas se encheram de medo e total desesperança. Veja-se C.N.T., sobre o Evangelho segundo João, pp. 468-471. Não obstante, uns poucos dias depois, proclamam com ousadia o Senhor ressurreto. d. O surgimento abrupto, o crescimento dramático e o poder e influência mundial da igreja, o corpo de Cristo (Mt 28.19; Jo 11.48; 12.19; At 1.8; 17.6; Ef 3.9; Us 1.8-10; Uo 5.4). Ora, tudo isso aponta claramente para a única causa que é capaz de, adequadamente, justificar tão assombrosos resultaw
Quanto a uma verificação dessa cronologia, ver meu livro Bible Survey, pp. 62,63. 1 12
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
dos. Aponta para o fato de que houve — e há — realmente uma pessoa que é Jesus Cristo, o Filho de Deus, que veio do céu para buscar e salvar o perdido, e que enviou seus embaixadores, os apóstolos e aqueles que foram seus seguidores imediatos, a fim de que dessem testemunho da gloriosa redenção realizada por Deus por meio do sofrimento e morte de seu Amado. Isso concorda com o fato de que certamente foi este Cristo "que, após sua paixão, apresentou-se vivo em meio a muitas provas" (At 1.3). Sem dúvida, em última análise, é inteiramente verdadeiro que alguém deve proceder a partir do pressuposto da fé. Se alguém se recusa a aceitar as "provas" das quais fala Atos, não se lhe pode obrigar a aceitar a validade delas. De igual modo, se alguém rejeita o aspecto sobrenatural — inclusive a divindade de Cristo, seu poder de operar maravilhas e sua ressurreição — procede a partir de uma pressuposição específica, ou seja, a da incredulidade. Todavia, existe uma ampla diferença entre essas duas pressuposições. Com base na pressuposição da fé, os relatos referentes a Jesus Cristo e a igreja que ele estabeleceu fazem sentido. A história é coerente. O Filho de Deus realiza atos nos quais a sua divindade é manifestada. Vence até mesmo a morte. Com divino poder, sabedoria e amor estabelece uma igreja e a conduz ao seu alvo predestinado. Por outro lado, com base na incredulidade, o sobrenatural é excluído. Segundo a incredulidade, Jesus, se realmente, viveu na terra, não realizou um único milagre nem ressurgiu dos mortos. Além do mais, segundo essa teoria, as diversas testemunhas pintaram um retrato de Jesus que não passou de um misto de História e de mitologia. Os "mais de quinhentos irmãos" que diz-se terem visto o Cristo ressurreto foram vítimas de uma alucinação em massa ou de alguma outra forma de ilusão coletiva. E fica completamente sem explicação o surgimento repentino da igreja, o seu crescimento dramático e o seu poder que foi capaz de transtornar o mundo. Portanto, não surpreende o fato de que os vários sistemas de ceticismo e incredulidade tenham-se desvanecido um após outro. Os fatos desafiam as teorias. Isso aplica-se igualmente a 113
MATEUS Bultmann. Ele também teve o seu dia. Num artigo muitíssimo interessante e instrutivo,85 Carl F. FI. Flenry fala do "crescente desacordo entre o pós-bultamanismo no tocante ao Jesus histórico". Segundo o seu modo de ver, "o modernismo clássico reinou nos mais influentes centros de formação do pensamento teológico de 1900 a 1930, a teologia dialética de 1930 a 1950, e a teologia existencial de 1950 a 1960". A Palavra de Deus é uma bigorna que não pode ser esmagada. Num monumento erigido em homenagem aos huguenotes estão estas palavras esculpidas: "Dêem golpes de martelo, mãos hostis; seus martelos quebrarão; a bigorna de Deus permanecerá." Porém, não é verdade que os Evangelhos contêm muitas "discrepâncias", ocasiões em que um Evangelho contradiz o outro, ou está em conflito com esta ou aquela passagem do Antigo ou do Novo Testamento? Como devemos tratar tais casos? Existem aqueles que afirmam que jamais deveríamos tentar uma harmonização dos Evangelhos. Sustentam que "a harmonização é nociva". Eis a minha resposta: uma harmonização pode, às vezes, ser nociva, porém não precisa ser assim. Nalgumas ocasiões ela é incorreta, porém perfeitamente natural e legítima em outros casos. Devemos evitar a generalização. Se quatro amigos de minha confiança, homens com uma reputação de integridade, inteligência e bom juízo, têm visto pessoalmente um mesmo incidente, e cada um deles me traz seu relato independente, e descubro que esses relatos contêm pontos que, superficialmente, parecem contradizer uns aos outros, qual é a minha reação natural? Então acuso imediatamente meus amigos de erro? Porventura não faço, quase que instintivamente, um esforço para harmonizar entre si os quatro relatos? Portanto, se julgo que meus amigos têm direito a tal deferência, tratarei com menos respeito os documentos inspirados? Seguramente que a harmonização é nociva se é feita de forma forçada e antinatural, sem a devida consideração para com os respectivos contextos 85
"Where Is Modern Theology Going?" Christianity Today, Vol. XII, n° 11 (março de 1968), pp. 4-7. 1 14
INTRODUÇÃO AOS QUATRO EVANGELHOS
das passagens individuais. Realizar uma harmonização é errôneo se não há a disposição de dizer: "Ainda não foi possível encontrar uma solução real a este difícil problema." Em outros casos, o processo adequado será fazer um esforço honesto em busca de soluções ao harmonizar. A infalibilidade da Palavra não deve ser rejeitada, nem mesmo por insinuação.
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INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
I. CARACTERÍSTICAS
Estas podem ser assim sumariadas. Este Evangelho é: Metódico, ou seja, caracterizado pela ordem. O autor realiza seu trabalho seguindo um plano definido, afirmando que Jesus é, deveras, o Cristo. A natureza desse plano e forma na qual difere da dos demais evangelistas foi considerada nas páginas 40-50. Atraente. Este Evangelho já foi qualificado como "o livro mais importante do mundo" (Renan), "o livro mais ditoso já escrito" (Goodspeed). Além de ser importante e ditoso, ele é também verdadeiramente belo. Lê-lo do princípio ao fim, de uma só assentada, é uma experiência emocionante. O livro é simplesmente irresistível. Logo de início o leitor fica fascinado pelo mistério dos três grupos de quatorze (capítulo 1). A seguir lê-se a excitante história dos sábios que vieram "do Oriente" a fim de prestar homenagem a um menino (capítulo 2). O Sermão do Monte (capítulos 5-7), com suas bem-aventuranças (5.3-12) e a Oração do Senhor (6.9-14), e com suas muitas e preciosas passagens — tais como 5.13-16,27ss., 43-48; 6.19-34; e a última, porém não menos importante, 7.24-27 — nos oferecem uma penetrante visão do próprio coração do Mestre. A comissão aos Doze (capítulo 10) é caracterizada pela grandeza e pela ternura: primeiro, porque aos apóstolos é claramente dito que o fiel cumprimento de seus deveres significará para eles perseguição (v.22); e, segundo, porque recebem a segurança do constante cuidado do Pai e a permanente presença do Filho (v. 40). As parábolas do reino, do capítulo 13, são tanto interessantes quanto reveladoras. As normas que governam a disciplina cristã (capítulo 18) foram e continuam sendo citadas mais e mais, e já têm resultado em bênçãos que não se podem contar nem medir. Para a nossa 119
MATEUS instrução, o capítulo 23 — os sete ais — mostra que o amor do Salvador não é de todo doçura e sorrisos. Ele possui seus aspectos sérios, porque, como seria possível para aquele que insta com os homens para que entrem no reino de seu Pai, olhar com especial favor para aqueles que fecham as portas do reino para que os homens não entrem (Mt 23.13); ou, para quem ajuda as viúvas se agradarem daqueles que lhes devoram as casas? (Mc 12.40). É igualmente o Evangelho de Mateus que contém a dramática descrição do Juízo Final (capítulo 25). O comovente relato da paixão do Salvador teve uma reverente expressão musical na Paixão Segundo São Mateus, de Bach, enquanto a contribuição exclusiva de Mateus ao relato da ressurreição — refirome particularmente à sua passagem mais extensa sobre a guarda (veja-se o comentário sobre 27.62-66; 28.2-4, 11-15) — ainda aguarda uma cristalização adequada na música ou na tela. Voltado para o passado, ou seja, para o Antigo Testamento, com suas muitas predições messiânicas, e que proclama seu cumprimento no presente, isto é, em Jesus Cristo. Mateus contém no mínimo quarenta citações formais, isto é, citações que imediatamente ficam em evidência como tais, sendo amiúde introduzidas por expressões tais como: "o que foi dito... possa ser cumprido", "tendes ouvido o que foi dito", "porque assim está escrito pelo profeta", etc. Note-se o seguinte: Referências em Mateus P a s s a g e n s do AT Is 7.14 1.23 Mq 5.2 2.6 2.15 Os 11.1 (cf. Êx 4.22) 2.18 Jr 31.15 2.23 Is 11.1? (cf. Is 53.2,3) Is 40.3 3.3 4.4 Dt 8.3 SI 91.11,12 4.6 Dt 6.16 4.7 4.10 Dt 5.9; 6.13 Is 9.1,2 4.15,16 120
Ver também
Jo 1.46; 7.52 Mc 1.3; Lc 3.4 Lc 4.4 Lc 4.10,11 Lc 4.12 Lc 4.8
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS Referências em Mateus Passagens do AT 5.21 Êx 20.13; Dt 5.17 5.27 (cf. 19.18) Êx 20.14; Dt 5.18
5.43 (cf. 19.19; 22.39)
Dt Lv Dt Êx Dt Lv
8.17 9.13 (cf. 12.7) 11.10 12.7 (cf. 9.13) 12.18-21 13.14,15 13.35 15.4a (cf. 19.19)
Is 53.4 Os 6.6 Ml 3.1 Os 6.6 Is 42.1-4 Is 6.9,10 SI 78.2 Êx 20.12; Dt 5.16
15.4b
15.8,9 19.4 19.5 19.7 (cf. 5.31) 19.18,19 (cf. 5.43; 22.39)
Êx 21.17; Lv 20.9; Dt 27.16; Pv 20.20; 30.17 Is 29.13 Gn 1.27 Gn 2.24 Dt 24.1 Êx 20.12-16; Lv 19.18; Dt 5.16-20
21.5
Zc 9.9
5.31 (cf. 19.7) 5.33 5.38
24.1 19.12; Nm 30.3; 23.21,22 21.24; Lv 24.20; 19.21 19.18
121
Ver também Mc 10.19; Lc 18.20; Rm 2.22; 13.9; Tg 2.11 M c 10.4
Mc 12.31,33; Lc 10.27; Rm 13 9; G1 5.14; Tg 2.
M c 1.2; Lv 7.27
Jo 12.39-41 Mc 7.10a; 10.19 Lc 18.20; Ef 6.2 Mc 7.10b
Mc 7.6,7 M c 10.6 Mc 10.7 Mc 10.4 Para Mt 19.18, 19a, ver Mc 10.19; Lc 18.20; e para Mt 19.19b; ver as referências dadas em Mt 5.43 Jo 12.15
MATEUS Referências em Mateus Passagens do AT Is 56.7 21.13a
Ver também Mc 11.17a; Lc 19.46a Mc 11.17b; Lc 19.46b
21.13b
Jr 7.11
21.16 21.42
SI 8.2 SI 118.22,23
22.24
Dt 25.5
22.32 22.37
Êx 3.6 Dt 6.5
22.39 (cf. 5.43; 19,18,19)
Lv 19.18
22.44
SI 110.1
23.38,39 24.15 24.29-31 26.31 26.64
SI 118.26; Jr 22.5 Dn 9.27; 11.31; 12.11 Veja-se p. 507 do vol.II Zc 13.7 Mc 14.27 Mc 14.62; Lc SI 110.1; Dn 7.13,14 21.27 Zc 11.12,13 (cf. Jr 32.6-15) SI 22.1 Mc 15.34
27.9,10 27.46
Mc 12.10,11; Lc 20.17; At 4.11; 1 Pe 2.7 Mc 12.19; Lc 20.28 Mc 12.26 Mc 12.30; Lc 10.27a Ver as referências dadas em Mt 5.43 Mc 12.36; At 2.34,35; Hb 1.13 Lc 13.35 Mc 13.14
Além das citações que são claramente identificadas como tais, há outras que, ainda que não tenham a mesma introdução, são imediatamente reconhecidas como citações de frases familiares do Antigo Testamento. Ver Mt 10.35,36; 11.5, 23; 18.16; 21.9,33; 26.15,64; 27.34,35. Algumas talvez não sejam imediatamente reconhecíveis, e entre elas há expressões que serão, talvez, melhor descritas como alusões do que citações: 8.4; 10.21; 12.4,40; 27.39,43,48. 12
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
Voltado para o presente, que revela a vontade de Deus para o aqui e agora; e para o futuro: o seu próprio (sofrimento, morte e ressurreição, etc.), o de seu povo e o do mundo. Em Mateus, Jesus é não somente o cumprimento da profecia; ele mesmo é também, de forma muito específica, o profeta. Como tal, ele é maior do que Jonas (12.39-41; cf. Lc 11.29-32), nos lembra vividamente de Isaías (13.13-15) e cumpre a predição dada a Moisés. Realmente, ele é o glorificado, o que devia vir e a quem o povo precisa ouvir (Dt 18.15-19; Mt 17.5).86 Como o profeta de Deus ele revela a vontade de seu Pai em tudo quanto é, diz e faz. Ao desejarmos ler os grandes discursos de nosso Senhor e Salvador, naturalmente que nos voltamos para o Evangelho de Mateus em primeiro lugar, porque, sejam quais forem os paralelos que os outros Evangelhos contêm, é o expublicano que nos fornece esse material em sua forma mais plena e mais organizada (capítulos 5-7; 10; 13; 18; 23 e 24-25). E novamente Mateus que não somente preservou para nós as predições de Cristo acerca de si mesmo — essas lições referentes à cruz acompanhada pela coroa também se encontram nos demais Evangelhos — mais também nos deixou a predição mais vívida e detalhada do Mestre acerca do curso futuro dos acontecimentos no tocante a Jerusalém, a igreja e o mundo (23.37-25.30), culminando com o majestoso quadro do juízo final, que introduz a miséria eterna e a bem-aventurança eterna (25.31-46). Portanto, pode-se dizer algo em favor do ponto de vista que sustenta que, embora em cada Evangelho Jesus seja retratado como o Messias muitíssimo esperado, enviado pelo Pai e ungido pelo Espírito para ser o nosso Grande Profeta, compassivo Sumo Sacerdote e o Rei Eterno, é o ofício profético o que sobressai de forma proeminente em Mateus, o ofício real em Marcos e o sumo sacerdotal em Lucas. Quanto a Marcos e Lucas, o argumento pertence aos comentários sobre esses Evangelhos. 8Í
' Cf. R. H. Gundry, The Use of the Old Testament in St. Mcithew 's Gospel, Leiden. 1967. tese doutoral aceita pela Universidade de Manchester na primavera de 1961 e reatualizada no verão de 1964. p. 210.
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MATEUS Quanto a Mateus, a mim me parece que F. W. Grosheide tinha razão quando disse: "Segundo alguns, Mateus retrata Jesus especialmente como Rei. Não se pode negar que o vemos surgir de uma dinastia real, que ouvimos da adulteração de seu reino por parte dos judeus e de Pilatos, que ele mesmo se apresenta como o verdadeiro rei de Israel, e que na conclusão ele funciona como rei, possuindo toda a autoridade no céu e na terra. Todavia, na forma como o vemos, isso não é o que distingue o Evangelho de Mateus dos demais... Ao contrário, em nenhum dos Evangelhos sobressai em primeiro plano o aspecto profético de Jesus, de forma tão evidente, como no primeiro. Não só é verdade que Jesus é o cumprimento da profecia, mas ele mesmo — são testemunhas os muitos discursos completos que aparecem em Mateus mais que nos outros — age como profeta com respeito à sua própria obra, especialmente como o profeta de seu próprio sofrimento e morte. Ele é o verdadeiro profeta, o Profeta de Dt 18.18... Nesse Evangelho, como demonstrado por seu próprio conteúdo e organização, é a palavra de Cristo, antes que sua obra, o que recebe ênfase" (Commentaar op het Nieuwe Testament, Kampen, 1954, pp. 14,15). Além do mais, Jesus é o Principal Profeta de Deus, não somente nos discursos, mas ainda nas predições do Antigo Testamento que ele cumpriu! Porventura esse não é o ensino claro de IPe 1.10,11 e d e A p 19.10b? Hebraístico, ou seja, é caracterizado pelos padrões de pensamento e pelo espírito dos hebreus. Segundo o parecer de alguns,87 os quatro Evangelhos na língua Grega — com exceção 87
A teoria segundo a qual um ou todos os quatro Evangelhos foram escritos originalmente em aramaico, um ponto de vista já defendido no século XIX por J. T. Marshall e J. Wellhansen, foi revivida com ênfase ainda mais forte no século XX. Ver especialmente os seguintes livros e artigos: * C. F. Burney, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel, Oxford, 1922. * C. C. Torrey, The Four Gospels, a New Translation; Nova York, 1933. Our Translated Gospels. Nova York. 1936. "The Aramaic of the Gospels", JBL, 61 (1942), pp. 71-85. Documents of the Primitive Church, Nova York, 1941.
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INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
do último capítulo de João e o prólogo de Lucas — são documentos aramaicos que subseqüentemente foram traduzidos para o grego. Os argumentos apresentados em abono desse ponto de vista são principalmente os seguintes: a. o grego está vazado por características do estilo aramaico — ou, pelo menos, semita; b. muitas passagens que agora são obscuras se tornam claras quando consideradas como uma tradução do aramaico original, e quando a tradução pobre encontrada no texto grego é substituída por uma tradução correta. A teoria de forma alguma convence a todos os eruditos.88 Isso não chega a surpreender. Não se pode negar que o aramaico é a base de muito ou de todo o conteúdo dos Evangelhos em grego. Que Jesus geralmente falava em aramaico é questão bastante esclarecida (ver pp. 64-65). Não é provável, pois, que quando suas palavras foram pela primeira vez escritas, o tenham sido no idioma (ou, pelo menos, também no idioma) no qual eram faladas? Certas expressões que são caracteristicamente semíticas, ou que, pelo menos, ocorrem com maior freqüência nas línguas semitas que no grego, também aparecem com freqüência nos Evangelhos.89 * J. A. Montgomery, "Some Aramaisms in the Gospels and Acts", JBL. 46 (1927), pp. 69-73. "Torrey's Aramaic Gospels". JBL, 53 (1934), pp. 79-99. sl< O ataque contra Torrey e seus aliados foi guiado pelos seguintes, entre outros: * O. T. Allis, "The Alleged Aramaic Origin of the Fourth Gospel", PTR, 26 (1928). pp. 531-572. * E. C. Colwell, The Greek of the Fourth Gospel, Chicago, 1931. * E. J. Goodspeed, New Solutions of New Testament Problems, Chicago, 1927. New Chapters in New Testament Study, Nova York, 1937, pp. 141-168. * D. W. Riddle, "The Aramaic Gospels and the Synoptic Problems", JBL, 54 (1935), pp. 127-138. Entre os eruditos foi levado a cabo um vivo debate, um representante de cada campo: "The Riddele-Torrey Debate", CC (18 de julho de 31 outubro de 1934). s '' Assim, "Jesus respondeu e disse", fórmula introdutória usada ainda quando não precede pergunta alguma (Mt 4.4; 8.8; 11.4; Mc 6.37; 7.6; 9.5; Lc 1.35; 4.8; 7.43; Jo 1.48; 2.19; 3.3), nos lembra a fórmula semelhante que se encontra em Gn 18.27; 24.50; 27.37,39; 31.14,31; Êx 4.1; etc. (hebraico); e em Dn 2.15,20,26,47; 3.9.14,25; 4.19; 5.17; 6.13: etc. (aramaico). Além disso, o uso da voz ativa terceira pessoa plural onde o grego usaria mais comumente a terceira pessoa singular na voz passiva,
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MATEUS Não se pode negar que as investigações de Torrey e seus aliados tenham trazido a lume o fato de que é indispensável o estudo do idioma semita (nesse caso, especialmente o hebraico e o aramaico) bem como o grego para uma adequada compreensão do N o v o Testamento. O estudante que se especializa em línguas semitas e se satisfaz com um elementar conhecimento do grego corre o risco de ver semitismos por todo o N o v o Testamento. Por outro lado, quem se confina demais ao estudo do grego não conseguirá perceber o estilo e o sabor semíticos dos Evangelhos. Precisa-se alcançar um equilíbrio adequado de interesses. Quando se consegue isso, também se reconhece que a atmosfera semita ou hebraica dos Evangelhos demonstra que "eles preservam uma antiga tradição palestina, semítica" (F. V. Filson). Não se trata de escritos posteriores cuja origem se situa ao longo do segundo século, conforme os críticos racionalistas costumavam afirmar com tanta confiança, mas documentos que pertencem a u m a época muito primitiva, uma época em que os crentes de língua grega viviam em estreito contato com os que falavam aramaico, e quando muitos dominavam ambos os idiomas (ou, m e s m o três: hebraico, aramaico e grego). Portanto, esses Evangelhos foram escritos ao longo de um tempo em que e traçaria o objeto do verbo ativo pelo sujeito da oração (Lc 12.20) é paralelo ao uso similar no Antigo Testamento. A isso pode-se acrescentar o muito freqüente uso pleonástico de KAÍ e também o uso adversativo; ver artigo sobre essa conjugação em L.N.T. (A. e G.), pp. 392-394. Quanto à presença de palavras semíticas, além das já mencionadas (p. 60), ver também Mt 27.16,20,46; Jo 5.2; 16.20. Os paralelismos que permeiam o Antigo Testamento (SI 1; 19.2; 93.3; Pv 14.34; etc.) também são de ocorrência freqüente nos Evangelhos (Mt 7.6; 10.24,32,33,39,40; 11.28,29; 20.26,27; Lc 1.46,47,52; 2.32; Jo 1.3; 15.9,10; etc.). A fórmula hebraística de transição x a t é y é v e T O ocorre com grande freqüência tanto em Mateus (7.28; 9.10; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1) como em Lucas (1.23,41,59; 2.15,46; 5.12,17; 7.11; 8.1; 9.18,33; 11.1; 14.1; 17.11; 19.5,29; 20.1; 24.4,15,30,51), onde, contudo, é com freqüência substituído por èyévexo Se (1.8; 2.1; 3.21; 6.1; etc.), como esperaríamos nesse Evangelho; ver nota de rodapé 37. Finalmente, outra forte lembrança do uso no Antigo Testamento trasladado para o Novo Testamento é "eis aqui", que ocorre na forma de hinneh e en em quase cada livro do Antigo Testamento (umas cem vezes em Gênesis) e na forma de iScró e Í8e no Novo, profusamente distribuído por todos os Evangelhos (umas sessenta vezes em Mateus).
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS os fatos em torno de Jesus — suas j o r n a d a s terrenas, seus milagres, seus ditos e discursos, sua m o r t e expiatória, sua ressurreição, etc. — estavam ainda frescos na mente de seus discípulos e de seus seguidores imediatos. A s s i m Deus, em sua providência, usa o labor de u m a escola de alta crítica — Torrey e seus aliados — para c o m b a t e r as teorias de outra escola, a daqueles que tentam dar u m a data ulterior aos livros do N o v o Testamento. T u d o isso visando ao aspecto positivo. A teoria aramaica tem t a m b é m o seu aspecto distintamente negativo, c o m o já foi sugerido. Primeiro, geralmente agora se reconhece que essa teoria n ã o c o n s e g u i u provar que por trás de nossos atuais E v a n g e lhos em grego subjazem quatro Evangelhos escritos em aramaico. Há, além do mais, outras f o r m a s de explicar o sabor semita desses livros. M a t e u s , M a r c o s e João eram j u d e u s , e n ã o s o m e n t e estes três, m a s Lucas t a m b é m viveu em íntimo contato c o m os judeus, e todos u s a r a m fontes j u d a i c a s escritas e orais. Q u a n d o os j u d e u s f a l a m ou escrevem em grego, eles não se d e s p o j a m i m e d i a t a m e n t e de suas influências hebraísticas. Os semitismos do N o v o Testamento, portanto, p o d e m ser p a r c i a l m e n t e explicados c o m o sendo variações regionais do grego helenista. O c o n h e c i m e n t o p r o f u n d o do Antigo Testamento hebraico e da sua versão grega (a Septuaginta), assim c o m o o c o n h e c i m e n t o de a l g u m material procedente de fontes aramaicas, orais ou escritas, indubitavelmente contribuíram na p r o d u ç ã o final. E em tudo isso não n e g a m o s que possa ter existido, em a l g u m t e m p o , u m M a t e u s e m aramaico, mais antigo. S i m p l e s m e n t e não sabem o s . E m outro m o m e n t o v e r e m o s m a i s sobre isso. Em segundo lugar, Torrey e seu grupo não só sustentam que n o s s o s E v a n g e l h o s em grego são traduções de originais aramaicos, m a s que, além disso, tentaram provar que eram, em vários casos, traduções inferiores. Entretanto, esse ponto de vista t a m b é m foi decisivamente refutado. Por exemplo, já foi demonstrado que o argumento de Torrey, segundo o qual M a t e u s 5.48, q u a n d o traduzido "Sede, pois, perfeitos...", é errôneo, e que o m e s m o deveria ser traduzido: " S e d e , pois, todo-inclusivos" —
MATEUS é um completo equívoco.90 Mesmo um leitor não familiarizado com o grego e hebraico pode ver, ao comparar Mateus 5.48 com Lv 19.2 e Dt 18.13, que a tradução à qual se acostumou (por meio da leitura de qualquer das versões) não é errônea, e que, como geralmente traduzida, essa passagem se harmoniza com a idéia central de Jesus, ou seja, os filhos devem ser tais como o Pai — cf. Lc 6.35. Nos escritos de Torrey são consideradas muitas outras traduções que se alegam estar equivocadas. Ao serem cuidadosamente examinadas, descobre-se que de forma alguma são errôneas. O fato interessante é que, em muitos casos específicos. os advogados da teoria aramaica, em sua forma extremada, rejeitam entre si as conclusões a que chegaram no tocante a traduções errôneas, segundo se vê na literatura mencionada à p. 83, nota de rodapé 88.91 Como se aplica tudo isso, especificamente, ao Evangelho de Mateus? Já ficou demonstrado que, no seu todo, o grego de Mateus é mais fluente do que o de Marcos, e contém menos palavras aramaicas. Diante de tal fato, o adjetivo "hebraístico" só é aplicável a este Evangelho se alguém define este adjetivo num sentido estritamente lingüístico. Por outro lado, quando a palavra "hebraístico" é empregada num sentido mais amplo, em referência ao mundo conceituai dos judeus, as idéias religiosas que eram proeminentes entre eles devido aos seus antecedentes veterotestamentários e a fraseologia por meio da qual estas idéias foram expressas, o adjetivo é apropriado. O judaísmo do Evangelho de Mateus de forma alguma está confinado a certos traços 911
Ver Torrey. Our Translated Gospels, p. 93ss, e a refutação de D. Daube em BJRL. 29 (1945) p. 3 lss. '" No que respeita a mim, posso testificar que depois de um estudo bem mais completo dos escritos de 'Torrey e seus associados, assim como dos de seus oponentes, estudo exigido como base para escrever um extenso documento sobre esse mesmo tema durante os meus estudos de pós-graduação no Seminário Teológico de Princeton, minha fé na infalibilidade das Escrituras, razoavelmente interpretada, não foi no mínimo abalada, antes foi confirmada. Passagens como Ap 10.7; 15.2; 18.23; e 19.17, todas elas, segundo Torrey, são (ou contêm) más traduções, se põem com muita beleza em harmonia e adquirem um excelente sentido à medida que são interpretadas à luz do contexto, como tentei fazê-lo em meu livro Mais Que Vencedores, Casa Editora Presbiteriana, São Paulo. Nenhuma apresenta má tradução. O mesmo se dá com os Evangelhos e Atos.
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que, em maior ou menor grau, tem em comum com os demais Evangelhos. E muito mais profundo que isso. Por exemplo, nele subjaz a idéia da teleologia divina: o plano de Deus e sua realização na História, a manifestação de uma ênfase mais forte sobre a profecia e seu cumprimento do que é encontrado nos demais Evangelhos. Existe também o deleite que Mateus encontra no conceito sete. Já no primeiro capítulo ele descreve Cristo como o Iniciador do sétimo sete, o clímax dos três grupos de quatorze. Ainda que, na forma apresentada por Mateus, a Oração do Senhor tenha seis petições (6.9-13), entretanto, segundo ele, Jesus proclamou um grupo de sete parábolas do reino (capítulo 13) e pronunciou sete ais sobre os fariseus e escribas (capítulo 23).92 Tudo isso nos faz lembrar de forma marcante da ordenança divina concernente à semana de sete dias (Gn 2.2; Ex 20.10; Dt 5.14), o sábado de semanas (Pentecostes, Lv 23.15), a festa do sétimo mês (Lv 23.24), o sétimo ano (Lv 25.4) e o Ano do Jubileu no final de sete vezes sete anos (Lv 25.8). Para outros setes do Antigo Testamento, ver Gn 4.24; Ex 25.37; Js 6.4,6,8,13,15; Jó 1.2; Dn 4.16,23,25; 9.25; Zc 4.2 — para mencionar apenas uns poucos exemplos. Mateus também usa o termo "reino dos céus" em lugar de "reino de Deus", empregado pelos outros escritores dos Evan1,2
Intencionalmente deixei fora de consideração os sete que Mateus tem em comum com um ou com o restante dos Sinóticos, tais como os outros sete espíritos (12.45), os sete "pães" (15.34s), sete cestos (15.37), perdoar sete ou setenta vezes sete (18.21,22) e os sete irmãos (22.25). Como já foi indicado, em Mateus há suficientes relatos com setes que são distintivos como para considerá-lo um de seus traços peculiares. De propósito ele omite toda menção aos três e cinco de Mateus (ver a lista em W. C. Allen, op. cit., p. Ixx. Poder-se-ia acrescentar alguns mais a essa lista). Uma olhadela nas partes correspondentes de uma concordância completa deveria convencer qualquer um de que esses três e cinco são distribuídos de forma bastante homogênea através dos três Sinóticos, especialmente através de Mateus e Lucas. Pela mesma razão não estou muito impressionado com o esforço de Goodspeed de relacionar a ênfase numérica que ele vê no primeiro Evangelho canónico com o ponto de vista de que em conseqüência provavelmente foi escrito por um cobrador de impostos, um homem que revelava facilidade no manejo dos números e cifras; veja-se op. cit., pp. 21, 22, 24, 25, 36, 58, 59, 70, 71, 76, 112, 113, 133-135. Quanto a isso, ele mesmo parece ter sentido a debilidade de seu argumento; ver p. 87.
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MATEUS gelhos. É verdade que ele não evita essa última expressão (12.28; 21.31), e que não há uma diferença essencial entre as duas designações. Todavia, o fato de que em sua designação mais usual a palavra grega traduzida "céu" está no plural (cf. Gn 1.1, no original), e que a referência ao céu lembra Dn 2.44; 7.13,14, não aponta para a conclusão de que é um hebreu quem está escrevendo essas coisas? Em seu conceito Jesus se apresenta como "o Filho de Davi, o Filho de Abraão" (contraste-se Mt 1.1 com Lc 3.38). O fato de que o advérbio de tempo XOTE (então) ocorre em Mateus cerca de noventa vezes (contraste-se com Marcos, seis vezes; Lucas, quinze vezes; João, dez vezes) é outro vínculo com seu equivalente semítico. Além disso, a constante ênfase que esse Evangelho põe sobre a lei (ver especialmente a extensa seção 5.17-48; cf. 7.12; 12.5; 23.23) não reforça esta conclusão? E se precisarmos de maior evidência, é só lembrar que esse é o único Evangelho em que o título "rei dos judeus", referindo-se a Jesus, não se restringe aos capítulos finais, mas se encontra no próprio começo (2.2). E também o único Evangelho no qual Jesus é referido como aquele que deu o mandamento: "A nenhum caminho dos gentios vos desvieis, nem entreis em qualquer cidade dos samaritanos, antes ireis às ovelhas perdidas da casa de Israel" (10.5,6). E também o único Evangelho em que são registradas as palavras: "Eu fui enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel" (15.24). E o único Evangelho que chama Jerusalém de "a cidade santa" (4.5; 27.53; cf. Ap 21.2). Finalmente, é o único Evangelho no qual não é preciso explicar os costumes judaicos (15.2; contraste-se com Mc 7.3,4), porque os judeus conheciam os seus próprios costumes. A afirmação: "O Evangelho de Mateus tem um aspecto mais judaico que os outros sinóticos 93 é inteiramente correta. E nesse sentido que o chamamos "hebraístico". Porventura existiu um evangelho semítico (em hebraico ou em aramaico) escrito pelo mesmo autor que, segundo esse 93
L. Berkhof, New Testament Introduction, Grand Rapids, 1915, p. 64.
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ponto de vista, produziu em seguida, na língua grega, o que hoje chamamos "Evangelho segundo Mateus"? Eusébio nos conta que foi Papias quem escreveu (numa obra94 agora perdida): "Mateus organizou os oráculos em (o) idioma hebreu, e cada um os traduziu como pôde."95 Algumas avaliações e interpretações divergentes dessa afirmação: 1. Papias estava obviamente equivocado. Ele baseou sua opinião no fato de que Mateus escreveu primeiramente para os judeus. Além disso, pode ter confundido o nosso Mateus em grego com outro documento, como fez Jerônimo, que considerava que o apócrifo Evangelho segundo os Hebreus era o original do Mateus em hebraico. Jamais se encontrou um Mateus em aramaico de uma data anterior ao do Mateus em grego. Se tal Evangelho tivesse existido, certamente suas citações do Antigo Testamento teriam seguido o texto hebreu. O próprio âmago da acusação de Jesus contra os fariseus e escribas (Mt 15.6ss.; Mc 7.8ss.), denunciando-os por anularem a Palavra de Deus em favor de sua tradição, estaria perdido se o texto hebreu fosse seguido. É evidente que tanto Jesus como Mateus estão aqui seguindo o texto do Antigo Testamento como foi traduzido para o grego (ou seja, a LXX). Portanto, a evidência aponta em direção do Evangelho ter sido escrito originalmente não em hebraico (ou aramaico), e, sim, em grego.96 1,4
,;5
Título: Interpretation of the Oracles of the Lord, in flve treatises; op. cit., XI. xxxix. 3-5. A mesma obra, III.xxxix. 16. O grego assim Max6aíoç pèv ow 'EPpaí'5t StaÀÉKTco xà X.óyta cruverá^oao, ipp.f|v£"0aev S ' avtà cbç fjv Sovatòç EKacrcoç. Até parece que cada leitor dessa declaração de Papias fez com ela ''como pediu", ou, talvez em alguns casos, "como convinha aos seus pontos de vista". As traduções que diferem das sugeridas acima são: 'EppaiSi: "no idioma aramaico", "no dialeto hebreu", e "no estilo hebreu",
tà Xôyia: "os ditos". owexáÇaTo: "composto", "coletado", "anotado". flpp.f|vevcjEv: "interpretado." No tocante a esse ponto de vista, ver N.B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels, pp. 87-92.
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MATEUS 2. A semelhança do acima exposto, porém com ênfase no ponto de vista de que a língua original na qual foi escrita a obra que Papias erroneamente atribuiu a Mateus era certamente o hebraico, e as diversas traduções foram para o aramaico e não para o grego.97 3. Papias estava certo. Mateus, depois de escrever seu Evangelho no idioma dos hebreus — resultando no fato de que, ao falar com gregos, cada pessoa, segundo a sua habilidade, o traduziria em seu idioma —, e tendo saído da Palestina para trabalhar em outro lugar, produziu um Evangelho na língua grega com o propósito de destiná-lo "aos judeus da Diáspora"' (Berkhof), ou a "nações estrangeiras" (Thiessen). 98 4. Ao falar de logia, Papias estava pensando nos "ditos de Jesus". Mateus tomara nota deles em aramaico. Quando o expublicano teve acesso ao Evangelho de Marcos, usou-o quase todo, transpondo o seu material toda vez que o achou necessário, e combinando-o com os ditos, discursos ou ensinos de Jesus que ele mesmo, Mateus, havia compilado. O resultado, ao longo do tempo, transformou-se no Evangelho segundo Mateus, em grego.99 5. Papias não quis dizer que Mateus escreveu um Evangelho em hebraico, e, sim, que ele escreveu em estilo hebraico.100 Não tomarei tempo em comentar todos esses pontos de vista separadamente. Umas poucas reflexões serão bastante. Primeiro, ao falar sobre Marcos e seu Evangelho,101 Papias claramente define a palavra "oráculos" (logia)102 como tendo referência a "as coisas ditas ou feitas pelo Senhor", e não somente a "as coisas ditas". Portanto, quando usa esse termo, Papias não está pensando nas palavras ou ditos separados das obras ou feitos. 77
H. Mulder. "Het Synoptisch Vraagstuk", Exegetica (1952), p. 17. L. Berkhof, New Testament Introduetion, pp. 66-69; ef. H. C. Thiessen, op. cit.. p. 137. 99 E. .1. Goodspeed. op. cit., pp. 16,108-110,144. I( "' J. Kürzinger. BZ 4 (1960), pp. 19-38. "" Eusébio, op. cit., lll.xxxix.15. "'2 Sobre Xóytov, ver Th. D.N.T., Vol. IV, pp. 137-141, especialmente pp. 140,141. 98
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Ele está pensando no Evangelho como um todo. E, pois, lógico concluir que quando ele diz "Mateus organizou os oráculos", esteja pensando também no Evangelho de Mateus. Em segundo lugar, devemos distinguir cuidadosamente entre duas perguntas: a. "O nosso Mateus em grego é uma tradução de uma obra semítica anterior (seja hebraico ou aramaico)?" e b. "Existiu uma obra anterior, escrita na língua dos hebreus, um escrito que precedeu ao Mateus em grego, e que teve certa relação com este, servindo como modelo para o mesmo, e/ou talvez ainda, embora num sentido restrito, uma fonte para uma porção de seu conteúdo?" Essas duas perguntas não devem ser confundidas. Teoricamente poderia considerar-se possível responder negativamente à primeira pergunta, porém à segunda tem de ser de forma afirmativa. No tocante à segunda pergunta, a possibilidade de posição neutra não deve ser de todo excluída. No tocante à primeira pergunta, a posição daqueles que consideram os Evangelhos e outras partes do Novo Testamento como tradução de escritos aramaicos já foi discutida e refutada (pp. 124-128). O Mateus em grego, também, não é uma mera tradução do aramaico. Extensivamente, o grego e suas expressões idiomáticas exercem também um papel proeminente. O argumento com base em Mt 15.8,9, tomado como evidência para a acusação encontrada no v.6 (veja-se acima, opinião do item 1), é válido. Ainda quando o que Jesus está dizendo bem que poderia estar implícito também no hebraico, certamente que é muito mais claramente expresso na Septuaginta. O fato de que por sua tradução os fariseus e escribas tinham invalidado a Palavra de Deus porque a tinham substituído por preceitos humanos, preceitos que eles ensinam ao povo, faz lembrar a passagem de Isaías, não tanto como aparece no original hebraico, e, sim, como a versão grega (Septuaginta) do Antigo Testamento. Hebraico (Is 29.13): "Porque este povo se aproxima de mim com sua boca, e com seus lábios me honram, porém afastaram de mim o seu 133
MATEUS coração, e o seu temor para comigo (nada é senão) preceito adquirido de homens, portanto..." Septuaginta: "Este povo se aproxima de mim (e) com seus lábios me honram, porém o seu coração está longe de mim. Mas em vão me adoram, ensinando preceitos de homens e (suas) doutrinas." Mateus 15.8,9 (cf. Mc 7.6,7): "Este povo me honra com seus lábios, porém o seu coração está longe de mim. Mas em vão me adoram, ensinando (como suas) doutrinas, preceitos de homens." Não há nada que torne necessária a proposição de um evangelho escrito em aramaico como fundamento do Mateus em grego. Tal documento jamais foi encontrado. Nenhuma testemunha antiga faz dele citação. Se porventura ele existia, tal não se pode, hoje, estabelecer com qualquer grau de certeza. A forma na qual muitas citações ocorrem nos três sinóticos indica uma base comum para todos. Essa fonte poderia muito bem ser as notas de Mateus.103 Notas semelhantes, escritas pela mesma pessoa, poderiam justificar o restante do material do Evangelho (ou seja, o que não é citação). Como já ficou demonstrado, é provável que Mateus também tenha feito uso do Evangelho de Marcos, o qual, segundo a tradição, derivou da pregação de Pedro, que, por sua vez, em muitos casos pode ter dependido das notas de Mateus. Certamente que temos de levar em conta a própria memória de Mateus, lembrando ele mesmo do que vira e ouvira e do que outros falaram (tradição oral). Com todas estas matérias originais em mãos, seria difícil demonstrar alguma necessidade de um evangelho escrito em aramaico como base para um evangelho em língua grega. Entretanto, isso não prova absolutamente que um tal Evangelho nunca tenha existido, e que Papias e aqueles que porventura Ver também pp. 42, 61, 107. Também referência às notas de Mateus em A.T. Robertson, Word Picture in the New Testament, Nova York e Londres, 1930, Vol. 1, p.xii; E.J. Goodspeed, op. cit„ pp. 80, 86, 88, 108, 142; Wm Hendriksen. Bible Survey, Grand Rapids, 1961, p. 384; e R.H. Guntry, The Use of the Old Testament in St. Mathews's Gospel, pp. xii, 181, 182.
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tenham seguido essa idéia não tivessem razão. Talvez estivessem equivocados, porém a palavra final sobre o assunto ainda não foi escrita. Os argumentos que se têm usado para provar que Papias estava errado não têm convencido a todos. Alguns arrazoam como segue: E difícil entender como o erro de Jerônimo (3407-420 d.C.), um homem que viveu muito depois da morte do último dos apóstolos, pode ser um argumento forte contra a declaração de Papias. Esse Papias foi uma testemunha muito próxima (provavelmente tenha escrito entre 125 e 140), descrito por Irineu como sendo ouvinte de João (o apóstolo) e companheiro de Policarpo. O fato de não haver-se encontrado nem citado um Mateus em aramaico procedente de uma data anterior à composição de Mateus em grego seria um argumento quase aniquilador contra a posição que garante que houve tal documento, não fosse por duas considerações: a: a declaração de Papias e de outros depois dele que atestam sua antiga existência, e b. o fato de que, com o correr do tempo, haveria cada vez menor necessidade de tal livro, o que explicaria o seu completo desaparecimento: "Os missionários cristãos com um livro em aramaico... em suas mãos teriam sido impotentes para fazer propaganda no que era, de fato, um mundo grego ou, melhor, um mundo helenizado."104 Outra objeção contra a teoria de que Papias estava equivocado foi expressa nestas palavras: "Lembremo-nos também de que é inconsistente crer em Papias quando ele diz que Mateus escreveu o Evangelho e não crer em seu testemunho adicional, ou de, que o apóstolo escreveu em hebraico, como fazem alguns estudiosos. Deveras, é quase certo que Pantenus [ver Eusébio, op. cit., v.X, 1-4] estava equivocado quando pensou que havia encontrado o Evangelho em hebraico na índia, e que Jerônimo estava iludido quando imaginou que fizera a tradução em Cesaréia. O que eles viram foi provavelmente uma deturpação do original hebraico, conhecido como 'o Evangelho segun1114
A. Dissmann, Light from the Ancient East (traduzido do alemão por L. R. M. Strachan), Nova York, 1922, p. 65.
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MATEUS do os Hebreus'. Porém, esse possível equívoco não invalida o outro testemunho independente de Jerônimo e de todos os pais antigos, de que Mateus escreveu em hebraico."105 O mesmo autor sugere que o Mateus em grego era "um novo texto revisado do Evangelho".106 E num estudo recente, C. S. Petrie chega à conclusão de que o testemunho de Papias referente ao Evangelho de Mateus repousa em base mais sólida do que as melhores suposições da atualidade.107 Provavelmente não seria tão difícil produzir contra-argumentos. Na opinião do autor deste livro parece não haver evidência suficiente para provar ou para refutar a existência de um Evangelho primitivo segundo Mateus no idioma dos hebreus. Mateus escreveu um Evangelho semítico? Mateus em grego é "um novo texto revisado"? Minha resposta é: "Não sei." E evidente que não se trata da tradução de um evangelho escrito em hebraico ou em aramaico. Quanto ao mais, de uma coisa eu sei: Mateus em grego é hebraístico, no sentido já explicado. Evangelístico, ou seja, tem um amplo propósito missionário. Mateus deixa muitíssimo claro que esse Messias da profecia está relacionado com o mundo todo. Em sua arvore genealógica faz-se menção não somente de um bom número de descendentes diretos de Abraão, mas também de alguns "estrangeiros" como Tamar, Raabe e Rute (1.3,5). Sábios vieram do Oriente a fim de adorar o Menino e trazer-lhe presentes (capítulo 2). Que o evangelho da salvação plenária e gratuita alcança mesmo aqueles que se acham fora das fronteiras de Israel fica evidente à luz das palavras de Cristo: "E eu lhes digo que muitos virão do oriente e do ocidente e se assentarão com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus, porém os filhos do reino serão lançados nas mais longínquas trevas" (8.11,12). E este mesmo Cristo que curou o servo do centurião (8.5-13), elogiou a fé da mulher 1113
L. Berkhof, New Testament Introduction, pp. 69,70. ""' Idem, p. 70. R. V.G. Tasker fala de forma semelhante, The Gospel according to St. Mathew, p. 13. 11,7 C.S. Petrie, "The Authorship of ' T h e Gospel according to M a t h e w ' : a Reconsideration of the Textual Evidence", NTStud 14 (janeiro de 1967), pp. 15-32.
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I N T R O D U Ç Ã O A O EVANGELHO S E G U N D O M A T E U S
cananéia e curou sua filha (15.21-28). Foi Ele quem disse: "O reino de Deus vai ser tomado de vocês e vai ser dado a uma nação que produza seus frutos" (21.43). Disse ainda: "... convidem a quantos encontrarem para a festa das bodas... E o recinto das bodas se encheu de convidados" (22.9,10). O que talvez seja o mandamento de caráter mais abrangente do mundo inteiro encontra-se no capítulo final: "Vão, portanto, e façam discípulos de todas as nações" (28.19,20). Pode-se formular a seguinte pergunta: "Porém, como é possível que o mesmo evangelista — ou que Cristo, o evangelho (as boas-novas de salvação), ou o Evangelho (o livro atribuído a Mateus) — seja ao mesmo tempo hebraístico e evangelístico?" A resposta pode ser encontrada em passagens tais como: At 13.46 e R m 1.16. Após o Gólgota, com um vislumbre antecipado mesmo durante o período imediatamente precedente, há uma só raça eleita, que consiste de todos os que estão "em Cristo", sem importar raça ou nacionalidade. As distinções que caracterizam a era do Antigo Testamento se desvaneceram completamente (Rm 10.12; ICo 7.19; G1 3.9,28,29; Ef 2.14,18; Cl 3.11; IPe 2.9; Ap 7.9; 22.17). Escrito por um homem cujas qualificações correspondiam a essas características. Quem foi esse homem? Isso nos leva à próxima seção: II. AUTORIA, DATA E LUGAR
A opinião de muitos é que o autor do livro que abre a porta da casa do tesouro do Novo Testamento "certamente não foi Mateus, o apóstolo". 108 No que diz respeito à doutrina da inspilus
A. ti. McNeile, The Gospel according to St. Mathew, Londres, 1915. p.xxviii. A mesma idéia é expressa por B. M. Melzger, The New Testament, lis Background, Growth, and Content, pp. 96,97. E.J. Goodspeed, op. cit., p.20. reconhece que por muito tempo ele também tora dessa opinião. Seu livro indica um giro completo. Ele mantém de forma mais ou menos extensa o ponto de vista de que ainda que Mateus não tenha sido o escritor da obra acabada, ele teve algo que ver com ela.
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MATEUS ração, não há objeção a essa opinião. Em lugar algum revela o autor a sua identidade. O que ele escreveu é, e permanece, anônimo. Com Paulo a realidade é outra. Ao destinar uma carta a Filemom, incluiu estas palavras: "Eu, Paulo, o escrevo." De fato, logo no primeiro versículo de cada epístola ele se nomeia como o autor. É verdade que o nome de Mateus ocorre em 9.9 e 10.3, porém em nenhuma dessas passagens ele se qualifica como autor. Além disso, como já se mencionou anteriormente, o título que, como comumente se interpreta, ainda que não de forma estrita, atribui o livro a Mateus como autor, só foi acrescido cerca do ano 125 d.C. Por isso não pertence ao próprio livro inspirado. Deve-se admitir a possibilidade de que o título de um evangelho possa indicar o nome de uma pessoa que, suponhamos, foi responsável pelo menos por uma parte de seu conteúdo. Excelentes eruditos conservadores não encontram dificuldade no título, mesmo quando rejeitam o ponto de vista tradicional segundo o qual o ex-publicano, Mateus, foi o compositor do Evangelho todo. Segundo o seu modo de ver, a relação entre Mateus e este Evangelho deve ser entendida no sentido que, além do que tem em comum com os outros sinóticos, contém também muito que é original em material, propósito e estrutura. Nessa maneira nova e independente de considerá-lo, eles discernem a Ele forneceu a estrutura básica para o escritor dos ditos (iogia) do Senhor, etc. Seja o que for que o verdadeiro Mateus escrevera, posteriormente o utilizou, ampliou e organizou por meio de um compilador ou editor cujo nome se perdeu. O todo foi então designado de "O Evangelho Segundo Mateus". Segundo um autor, a razão para essa atribuição foi que "havia uma tendência irresistível para buscar-lhe sanção apostólica", W.C. Allen. A Criticai and Exegetical Commentary on the üospel according to Mathew (International Criticai Commentary•), p. Ixxxi. Essa razão não é muito convincente. Se o Evangelho em questão é atribuído a Mateus "a fim de encontrar-lhe sanção apostólica", por que o Evangelho mais longo não foi atribuído ao apóstolo Paulo em vez de a Lucas, e o mais breve ao apóstolo Pedro em vez de a Marcos? Segundo A. Plummer, o escritor desse Evangelho "não foi Mateus", e, sim, "um cristão judeu primitivo que não gozava de suficiente importância para que fosse o seu nome dado a um Evangelho". Esse escritor desconhecido usou a mais antiga logia de Mateus ("coleção de fatos referentes a Jesus, que consiste principalmente de seus ditos e das circunstâncias em que foram pronunciados") como fonte (An Exegitical Commentary on the Gospel according to St. Mathew, reimpressão, Grand Rapids, 1953, pp.víii-ix).
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INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
influência permanente de uma testemunha bem específica, ou seja, do apóstolo Mateus.109 Não obstante, nem todos os eruditos estão satisfeitos com a idéia de que o ex-publicano foi o autor apenas no sentido em que foi o responsável por uma parte de seu conteúdo. Em vez disso, eles acreditam que num sentido real Mateus foi o autor ou compositor do livro todo, ainda que ao escrever fizesse amplo uso de fontes.' 10 Os argumentos111 daqueles que aceitam uma conexão bastante remota entre o ex-publicano e o livro que se lhe atribui são os seguintes: 1. O apelo feito à tradição primitiva em abono da proposição de que Mateus mesmo foi o autor de todo o primeiro Evangelho canónico não se justifica, porque a tradição se refere a um escrito em aramaico, e o Mateus em grego nem mesmo chega a ser uma tradução do escrito em aramaico.
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Assim, por exemplo, H.N. Ridderbos, Het Evangelie naar Matheus (Korte Verklaring der Heilige Schrift), Kampen, 1952, pp. 13-15. Doravante, cada vez que o nome deste autor for mencionado e seguido pelas palavras op. cit., a referência é ao seu comentário sobre Mateus. Segundo A. T. Robertson o vê, "não há uma razão plausível por que o apóstolo Mateus não possa ter escrito tanto a Logia em aramaico como o nosso Mateus em grego, a menos que alguém não queira crer que ele podia fazer uso da obra de Marcos no mesmo nível que a sua própria" (Word Pictures, Vol. I, p. xi). R.C.H. Lenski considera Mateus o autor do livro todo, no qual ele incorporou certos ditos hebraicos (Interpretarion ofSt. Mathews Gospel, Columbus, Ohio. 1932, p. 18. (Daqui em diante, quando o nome deste autor for mencionado e seguido de op. cit., a referência é ao seu comentário sobre Mateus.) S. Greijdanus considera Mateus o autor do Evangelho em aramaico, e acredita que alguém o traduziu para o grego (Bijbelsch Handboek, Kampen, 1935, Vol. II, p. 104). N. B. Stonehouse acredita que "a autoria apostólica de Mateus está tão fortemente atestada como qualquer outro fato da história eclesiástica antiga" (Origins of the Synoptic Gospels, pp. 46,47). Como foi dito antes, isso concorda com o que antes escrevera Goodspeed, ainda que nem todas as razões nas quais ele baseou suas opiniões tenham sido aceitas por Stonehouse. Finalmente, R.H. Gundry também defende o ponto de vista de que Mateus foi o escritor da obra que se lhe atribui (op. cit., pp. 181-185). Na p. 182 ele apresenta sua estimativa dos argumentos de Goodspeed. Com essa estimativa estou plenamente de acordo. Para estes argumentos, ver especialmente H.N. Ridderbos, op. cit., p. 13.
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MATEUS Resposta: Se os expoentes da tradição primitiva consideravam Mateus em grego como uma tradução livre, de modo que supunham que o suposto original aramaico e o novo documento eram tidos como um só livro, o qual atribuíam a Mateus, o argumento deles não perde a sua força? Se estas testemunhas primitivas (Papias, Irineu, Orígenes e outros) não o consideravam tradução livre, não devemos, então, concluir que alguns deles, ainda quando com freqüência citavam Mateus em grego, nunca põem em dúvida sua autoria? Além disso, o título "segundo Mateus" não sugere uma tradição muito antiga? Com respeito à evidência sobre a data primitiva do título, ver Goodspeed, op. cit., pp. 37 e 38. 2. E muito duvidoso que Mateus, uma testemunha ocular, tivesse feito um uso tão extenso de um Evangelho escrito por Marcos, um homem que nem mesmo era do círculo dos Doze. Resposta: Este argumento já foi considerado — ver pp. 69-71. 3. O primeiro Evangelho canónico não é nem de longe tão vívido como esperaríamos, se ele tivesse sido composto por uma testemunha ocular. De fato, nem mesmo é tão vívido como o Evangelho de Marcos (ou de João). Resposta: Admite-se prontamente que, entre os sinóticos, Marcos, geralmente, é o mais vívido, como também seria de se esperar em se tratando de um Evangelho escrito pelo intérprete de Pedro. Entretanto, a fim de justificar a presença de descrições vívidas, não só se deve considerar a proximidade ao cenário onde ocorreu a ação, mas também o caráter ou a personalidade do escritor. E provável que Pedro tenha sido um indivíduo mais intenso e vibrante do que Mateus. Talvez Marcos se assemelhasse a Pedro em alguns de seus traços pessoais (ver pp. 6364). Mateus poderia ser de ânimo mais sereno, mais ponderado. No entanto, essa provável diferença em vivacidade não deve ser exagerada. O Evangelho de Mateus não é carente de toques vívidos: 1.20; todo o capítulo 2; 7.24-27; 8.23-27; 14.28-31; 20.116; 22.1-14; 23.1-39; todo o capítulo 25; 27.3-10, 19-21, 24, 25, 50-56, 62-66; 28.2-4, 11-15. 140
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
O que se debateu até aqui é uma posição conservadora acerca da autoria do livro conhecido como "o Evangelho segundo Mateus". Os conservadores estão concordes que, por uma razão ou outra, o título é correto. Concordam também em sustentar que o livro é parte da Palavra de Deus inspirada. A diferença entre eles se restringe a um ponto relativamente secundário. Entretanto, nenhum conservador verdadeiro terá condição de endossar a posição de um erudito radical no tocante á autoria, caráter e conteúdo desse Evangelho. Visto que essa posição é verdadeiramente um ataque à confiabilidade dos Evangelhos, tema que já foi debatido com certa extensão (ver pp. 84-115), pouca coisa se deve acrescentar aqui. Um exemplo típico da conceituação radical no que tange ao Evangelho de Mateus encontra-se num artigo escrito por H. H. Koester da Escola de Divindade de Harvard.112 Esse autor julga que parte do material contido nesse Evangelho é de caráter lendário, nega francamente que um discípulo imediato de Jesus pudesse ter escrito um livro, e expressa como opinião sua que 22.6,7 considera a queda de Jerusalém como tendo já ocorrido. Está também seguro de que as formulações cristológicas, doutrinárias e litúrgicas bem desenvolvidas comprovam que o livro foi escrito por um homem da terceira geração, não antes de 75-100 d.C. Porém, a rejeição de uma narrativa — por exemplo, o nascimento virginal — não comprova que o evento indicado jamais aconteceu. O argumento baseado em 22.6,7 é por demais débil, como já ficou demonstrado (ver p. 36). E um argumento consistente exigiria que se vamos rejeitar a possibilidade da existência de formulações cristológicas, doutrinárias e litúrgicas desenvolvidas antes do ano 75 d.C., teríamos de negar também a autenticidade de todas as epístolas de Paulo (e, de fato, de grande parte do Novo Testamento). 112
"Mathew Gospel according to Saint", Encyclopaedia Britannica, Chicago, Londres, etc., edição de 1969, Vol. XIV, pp. 1117-1118.
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MATEUS Argumentos em defesa da atribuição de "o Evangelho segundo Mateus " a Mateus, um dos Doze Í.Mateus (Mt9.9; 10.3; Mc 3.18; Lc 6.15; At 1.13), também chamado Levi (Mc 2.14; Lc 5.27,29), era, como transparece de seus próprios nomes, um judeu.113 Isso pode explicar o caráter judaico de seu Evangelho. 2. Ao receber o chamado para seguir a Jesus, Mateus era um publicano, ou seja, era um cobrador de impostos em Cafarnaum. A probabilidade é de que estivesse a serviço de Herodes Antipas. Visto que trabalhava na "Galiléia dos gentios", ele tinha de estar familiarizado com as línguas grega e aramaica." 4 O Evangelho segundo Mateus revela que seu autor estava, realmente, familiarizado com mais de um idioma. Assim, as citações que nele se encontram amiúde apresentam uma espécie de paráfrase em que são combinados elementos da Septuaginta grega com elementos aramaicos e derivados do hebraico.115 Além disso, como coletor de impostos, Mateus era obrigado a apresentar relatórios escritos do dinheiro que cobrava. Talvez até mesmo conhecesse algum sistema de taquigrafia.116 Por113
O nome de seu pai era Alfeu (Mc 2.14). Este era também o nome do pai de Tiago o Menor e de José (Mt 10.3; Mc 15.40). Goodspeed identifica esse Alfeu como o pai de Mateus. Como ele o vê, a mãe da família era uma das Marias, e era madrasta de Mateus. Embora sugira que a presença de Mateus nessa família notável poderia ter sido o antecedente para o dramático chamado para o discipulado que ele recebeu (op. cit., pp. 2,6,7). Tudo isso soa um tanto irreal. Não encontro base alguma para isso nas Escrituras. Visto que os Evangelhos não indicam relação familiar entre Mateus e Tiago o Menor (como o fazem entre Tiago e João e entre Pedro e André), não é bem mais provável que não tenha existido tal conexão? Com toda probabilidade. pois, assim como a Bíblia feia em mais de um que leva o nome Golias, Herodes, Jacó, Jeroboão, João, Josué, Judas, Noé, Filipe, Simão, etc., assim também reconhece mais de um Alfeu. Em alguns aspectos vejo que o livro de Goodspeed, Mathew, Apostle and Evangelist, é muito estimulante e informativo, porém noutros aspectos é muito repetitivo e irreal. 114 Ver E. Schürer, Geschichte desjüdischen Volkes in Zeitaltar Jesu Christi, Leipzig, 1901-1909. Vol. 1, pp. 57ss; 84ss. "-1 Isso é elucidado por R. H. Gundry, The Use of the Old Testament in St. Mathew s Gospel, pp. 174-178. "" Goodspeed lança valiosa luz sobre esse tema baseado em papiros descobertos, op. cit., pp. 57-76. Sobre o tema de taquigrafia antiga, ver também G. Milligan, The
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INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
tanto, ele era a pessoa mais indicada para tomar nota das palavras e obras de Cristo. 3. Mateus era não somente um judeu inteligente; era também profundamente religioso, à luz do fato de que quando chamado por Jesus prontamente obedeceu. Diante disso podemos crer que ele tinha um pleno domínio do Antigo Testamento hebraico e sua versão grega, a Septuaginta. Sem dúvida que ele era bem versado nas Escrituras. Então, guiado pelo Espírito, era o tipo de homem habilitado a interpretar passagens do Antigo Testamento de tal maneira que poderia aplicá-lo a novas situações. O Evangelho segundo Mateus está conforme com essa habilidade por parte de Mateus. Os escritores dos outros Evangelhos, podemos muito bem admitir, puderam fazer uso das notas de Mateus. E este, por seu turno, pôde utilizar-se do Evangelho de Marcos. 4. A tradição é unânime em indicar Mateus como o autor. Ela nunca menciona outro. Eusébio, no despontar do século IV, escreveu o seguinte: "Mateus, tendo pregado inicialmente aos hebreus, ao se dispor a sair em busca de outros, transmitiu por escrito em sua língua nativa o Fvangelho segundo ele mesmo, e assim, ao escrever, preveniu para a falta dc sua própria presença" (op. cit., III.xxiv.6). Um pouco antes Orígenes (entre 210-250) se expressou de forma semelhante, e também Irineu, um pouco mais cedo (entre 182-188), (ver acima, nota de rodapé 41 b e 41 a respectivamente). Papias é o mais antigo de todos nessa série de testemunhos (entre 125 e 140), cuja referência a Mateus e seu Evangelho foi citada e discutida (pp. 87-132). Papias foi descrito por Irineu como um ouvinte do apóstolo e companheiro de Policarpo. N. T. Documents, Londres, 1913, pp. 241-247. A taquigrafia era bem conhecida e estava muito difundida mesmo antes do tempo de Mateus, o que é confirmado pelo fato de que já no ano 63 a.C. Marcos Tulius Tiro, amigo de Cícero, inventara um sistema taquigráfico que era ensinado extensamente nas escolas do império, e era usada pelos notan-i no Senado Romano para anotar os discursos dos oradores. E o mundo grego não ficava atrás neste processo, como Mílligan e outros o comprovam.
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MATEUS Há farto testemunho do uso desse Evangelho nos primeiros escritos patrísticos que foram preservados (aqueles atribuídos a Barnabé. Clemente de Roma, Inácio e Policarpo). O Didaquê também aduz o seu testemunho. De fato, alguém pode dizer sem exagero que a evidência externa do uso primitivo desse Evangelho, e de sua atribuição a Mateus tão logo vieram a existir atribuições, é unânime. 5. Seria difícil explicar como, dentro de um período de talvez sessenta anos desde que esse Evangelho foi composto, o nome de seu verdadeiro autor poderia ter-se perdido e ter sido substituído por um nome fictício. 6. Dificilmente poderia ter-se perdido de vista o autor de uma obra tão bela no seu desígnio, tão consistente no seu estilo e tão majestosa no seu conteúdo. 7. O fato de que esse Evangelho foi atribuído a um dos menos conspícuos dentre os doze apóstolos, um homem acerca de quem dificilmente se sabe algo, é outro argumento em favor do caráter fidedigno dessa atribuição. No tocante à data e ao lugar de origem há muito de incerto. O conhecimento que Mateus tinha do hebraico do Antigo Testamento e seu acesso aos rolos hebreus parecem indicar uma data quando a rutura com a sinagoga onde tais rolos eram guardados ainda não era completa, e a Palestina como local ou região geral onde o escrito teve sua origem. Apoiando também esse lugar estão as muitas referências a eventos e situações em Jerusalém e seus arredores, relatados exclusivamente por Mateus (2.3,16; 21.10; 27.3-8, 24, 25, 52, 53, 62-66; 28.4,11-15). A data não pode ser posterior a 70 d.C., porque Jerusalém e seu templo ainda não tinham sido destruídos (24.2,15-28). Todavia, ela deve ter sido suficientemente tardia, para permitir que Mateus usasse o Evangelho de Marcos. Contudo, não sabemos precisamente quando Marcos escreveu o seu livro. Porém, ver p. 70. A declaração de Irineu, avaliada e interpretada de diversas formas (citada na p. 68), segundo a qual Mateus publicou seu Evangelho "enquanto Pedro e Paulo estavam pregando em Roma e es144
INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
tabelecendo a igreja"," 7 parece apontar para uma data não muito anterior a 63 d.C., e provavelmente antes do início da guerra dos judeus. Considero 63-66 d.C. como uma data que talvez não esteja longe de ser exata. Não pode ser muito antes, porque 27.8 e 28.15 dão a entender que desde o Calvário havia transcorrido um longo tempo. I I I . PROPÓSITO
De uma forma geral pode-se dizer que o propósito desse Evangelho foi conquistar plenamente os judeus para Cristo; ou seja, conquistar aqueles ainda não convertidos e fortalecer aqueles já convertidos. O caráter hebraizante do Evangelho de Mateus, como se acha descrito nas páginas precedentes, revela que esse foi o seu alvo. Com o fim de consegui-lo, a ênfase é calcada no fato de que Jesus é deveras o Messias de há muito esperado e amplamente anunciado nas Escrituras hebraicas. Daí, sob a direção providencial de Deus, os livros proféticos do Antigo Testamento são imediatamente seguidos pelo livro do cumprimento das profecias, Mateus. Também, em harmonia com a regra: "ao judeu primeiramente, e também ao grego" (Rm 1.16); e "Sereis minhas testemunhas em Jerusalém... e às partes mais distantes da terra" (At 1.8; cf. Lc 24.47); o mais judaico dos Evangelhos, o Evangelho escrito por um judeu para os judeus é posto em primeiro lugar. Ele é seguido pelo Evangelho segundo Marcos que, embora também fosse judeu, o compôs para os romanos. Lucas, que nem mesmo é um judeu, vem a seguir com o seu Evangelho dirigido aos gregos. Ainda que em todos esses Evangelhos Jesus seja apresentado como o único 117
Muito está ainda obscuro: a. Quando Irineu disse que esse Evangelho foi publicado "entre os hebreus em seu próprio idioma", essa é a sua própria opinião original ou está fazendo eco a Papias? b. Quando disse que a redação desse Evangelho ocorreu no tempo em que "Pedro e Paulo estavam estabelecendo a igreja em Roma", isso é um erro, considerando o fato de que a igreja de Roma não foi fundada por Paulo? Ou deve-se dar às palavras "estavam estabelecendo" um sentido mais figurativo, por exemplo, "fortalecendo"? Ver Fp 1.12-18. c. Pedro estava em Roma durante o lapso de tempo entre a primeira e a segunda prisão de Paulo? Ver IPe 5.15.
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MATEUS Redentor dos pecadores, a sublime verdade de que este Redentor é "o Salvador do mundo", ou seja, dos eleitos de Deus reunidos de toda nação debaixo do céu, é enfatizado no Evangelho de João (1.13; 3.16; 4.42; 10.16; 17.20,21). Assim a ordem dos livros de nosso cânon avança de forma muito bela, partindo do particular para o universal; todavia, o particular já inclui o universal, e o universal permanece, em certo sentido, sempre particular: o evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, todos eles, e somente eles. Em Mateus a ênfase específica é posta no fato de que Jesus é deveras o Cristo das profecias, não somente para que os judeus, ao aceitarem este Filho de Davi como seu Salvador, possam ter vida em seu nome, mas também para que possam defender-se contra os ataques do inimigo, e possam ainda ganhar os gentios. Quando alguém pergunta: "Qual é o propósito desse Evangelho?", o melhor que pode fazer para encontrar a resposta é ler e reler o livro todo. Então a resposta em particular é a seguinte: 1. Transferência do reino das trevas para o reino da luz: a conversão daqueles judeus que ainda não tinham experimentado a mudança espiritual básica. Estes devem lembrar-se dos grandes privilégios que lhes foram concedidos, e também das horríveis conseqüências de fechar os ouvidos ao chamamento de Deus (10.5ss; 11.25-29; 23.37-39). 2. Transformação: Renovação constante da vida por parte daqueles (principalmente) judeus que, pelo poder do Espírito, já se renderam a Cristo. A estes é mostrado como devem conduzir-se para que venham a ser uma bênção para os outros, para a glória do Pai Celestial (4.19; 5.16,43-48; 6.19ss.; 7.1ss.; 24-27; etc.). 3. Vindicação da verdade de Deus contra o ataque dos inimigos cruéis (5.17ss; 6.2ss; cap. 12; 13.10ss e 54-58; 15.1-20; 16.1-4; cap. 23; etc.). 4.Evangelização de todas as nações (8.5.13; 15.21-28; 28.16-20).
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INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS I V . T E M A E ESBOÇO
Como já indicamos anteriormente, a peregrinação terrena de Jesus precisa ser vista primariamente não como um série de coisas que lhe aconteceram, e, sim, como o cumprimento de uma tarefa a ele atribuída. Outras crianças têm nascido. Elas são completamente passivas em seu nascimento. Ele também nasceu, todavia ele também veio. Além disso, ele veio com um propósito: não para receber, e, sim, para dar — dar sua alma em resgate no lugar de muitos (Mt 20.28; Mc 10.45); para buscar e salvar o que se havia perdido (Lc 19.10). Os quatro Evangelhos enfatizam este aspecto de desígnio na vida de Cristo sobre a terra: em Mateus, com todas as passagens referentes ao cumprimento das profecias (ver ainda 10.3436; 20.22); em Marcos (10.38); em Lucas (9.51; 12.50; 22.22,42); e em João (4.4,34; 9.4; 17.4; 19.30). Portanto, um bom tema (ver Jo 17.4b) para a história relatada em todos os Evangelhos e em cada um deles seria: A obra que lhe deste para fazer As divisões principais, como já ficou indicado, seriam as mesmas para os três Sinóticos, ou seja: I. O início da obra II. A continuação da obra III. A consumação da obra Ou, numa fraseologia ligeiramente diferente: I. Seu início ou inauguração II. Seu progresso ou continuação III. Seu clímax ou consumação Em muitos casos, as subdivisões sob cada título serão diferentes para cada um dos três Evangelhos. Para um esboço mais detalhado, ver o conteúdo e os esboços no início dos capítulos.'18 118
Um plano geral mais ou menos similar foi seguido na obra deste autor, C.N.T., sobre o Evangelho segundo João; Ver Vol.I pp. 66,68; Vol. II, pp. 2, 134, 218, 260, 374 e 446.
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COMENTÁRIO AO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
ESBOÇO DO CAPÍTULO 1
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer 1.1-17 1.18-25
A genealogia de Jesus Cristo O nascimento de Jesus Cristo
CAPÍTULO 1 MATEUS
1.1-17
8
1 Registro dos ancestrais de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. 2 A b r a ã o tornou-se o pai d e " 9 Isaque, e Isaque tornou-se o pai de Jacó, e Jacó tornou-se o pai de Judá e seus irmãos; 3 e Judá tornouse o pai de Perez e Zerá por meio de Tamar, e Perez tornou-se o pai de Hesrom, e Hesrom tornou-se o pai de Arão, 4 e Arão tornou-se o pai de Aminadabe, e A m i n a d a b e tornou-se o pai de Naassom, e N a a s s o m tornouse o pai de Salmom. 5 e Salmom tornou-se o pai de Boaz por meio de Raabe; e Boctz tornou-se o pai de O b e d e por meio de Rute, e O b e d e tornou-se o pai de Jessé, 6 e Jessé tornou-se o pai do rei Davi. Davi tornou-se o pai de Salomão por meio da esposa de Urias, 7 e Salomão tornou-se o pai de R o b o ã o , e R o b o ã o tornou-se o pai de Abias, e Abias tornou-se o pai de Asa, 8 e Asa tornou-se o pai de Josafá, e J o s a f á
Aqui o verbo se refere ao fato de que o pai adquire um descendente ao depositar sua semente. Indica-se descendente físico, seja de pai para filho, como no caso do pai de Abraão e o filho de Isaque, ou de pai para neto, ou um descendente físico posterior por meio do filho. No inglês moderno não há um equivalente fácil para o verbo usado no original eyevvriaev. A tradução begat — gerou — (A.V.; A.R.V.) é definitivamente arcaica. A tradução was the father of— foi o pai de — (Beck, Willians. Phillips, R.S.V.. N.E.B., etc.) muda a ênfase da relação de evento passado, como no original, para a descrição de um estado passado. O alemão oferece: Abraham zeugte Isaah; holandês: Abraham verwekte — ou gewon — bak; português: "Abraão gerou a Isaque". Talvez as traduções menos objetáveis em inglês, embora nenhuma delas pareça completamente satisfatória, sejam as seguintes: "To Abraham was bom Issac" ("A Abraão nasceu Isaque") (N.A.S.) "Abraham begot Isaac" ("Abraão gerou a Isaque") (todavia, ver a nota acerca da tradução de Williams). "Abraham became the father of Isaac" ("Abraão tornou-se o pai de Isaque"), favorecida por L.N.T. (A. e G.), p. 154. Entre essas três é difícil fazer uma escolha.
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1.1-17
MATEUS
tornou-se o pai de Jorão, e Jorão tornou-se o pai de Uzias, 9 e Uzias tornouse o pai de Jotão, e Jotão tornou-se o pai de Manassés, e Manassés tornouse o pai de Ezequias, 10 e Ezequias tornou-se o pai de Manassés, e Manassés tornou-se o pai de Amom, e Amom tornou-se o pai de Josias, l le Josias tornou-se o pai de Jeconias e seus irmãos, no tempo da deportação para Babilônia. 12 Depois da deportação para Babilônia: Jeconias tornou-se o pai de Salatiel, e Salatiel tornou-se o pai de Zorobabel, 13e Zorobabel tornou-se o pai de Abiude, e Abiude tornou-se o pai de Eliaquim, e Eliaquem tornou-se o pai de Azor, 14e Azor tornou-se o pai de Sadoque, e Sadoque tornou-se o pai de Aquim, e Aquim tornou-se o pai de Eliúde, 15e Eliúde tornou-se o pai de Eleazar, e Eleazar tornou-se o pai de Natã, e Natã tornou-se o pai de Jacó, 16 e Jacó tornou-se o pai de José, o marido de Maria, de quem nasceu Jesus, chamado o Cristo. 17 Assim, todas as gerações desde Abraão até Davi (foram) quatorze gerações; e desde Davi até á deportação para Babilônia, quatorze gerações; e desde a deportação para Babilônia até Cristo, quatorze gerações.
1.1-17 A Genealogia de Jesus Cristo Cf. Lucas 3.23-38 O Evangelho segundo Mateus se abre com a árvore genealógica de Cristo. Para muitos leitores da atualidade, essa lista de nomes não seria provavelmente de nenhum interesse, e deveria ser passada por alto. Contudo, devemos ter em mente que Mateus escreveu principalmente para os judeus, como já mostramos. Isso também explica o fato de que ele começa a linha de descendência com a pessoa de Abraão, e não recua até Adão como Lucas faz. Ora, para os judeus, as genealogias nunca eram de pouca importância. Depois da conquista de Canaã, era importante determinar o local de residência da família; porque a ocupação da terra era por lei divina segundo as tribos, as famílias e as casas dos pais (Nra 26.52-56; 33.54). Se alguém viesse a estabelecer-se num outro território que não fosse o seu próprio, poderia ser qualificado de desertor (Jz 12.4). Sob certas circunstâncias, a transferência de propriedade requeria acurado conhecimento da linhagem (Rt 3.9,12,13; 4.1 -10). Mais tarde, em Judá a sucessão real estava vinculada à linhagem davídica (lRs 154
MATEUS
1.1-17
11.36; 15.4). Depois da volta da Babilônia uma pessoa que pretendesse possuir prerrogativas sacerdotais tinha de provar sua linhagem sacerdotal. Do contrário, ela ficava excluída do ofício (Ed 2.62). Nos primórdios da nova dispensação, o cumprimento do dever em conexão com o registro geral ou "alistamento" descrito em Lc 2.1-4 requeria conhecimento do rol de ancestrais. Quando levamos tudo isso em consideração, então não nos surpreende o fato de que a Escritura contenha abundante material genealógico. No Antigo Testamento encontra-se nos seguintes capítulos de Gn 5,10,11, 22,25, 29, 30, 35 e 46; deÊx 6; de Nm 1,2,7, 10, 13, 26, 34; de Js 7, 13; de Rt 4; de I S m l , 14; de 2Sm 3, 5, 23; de l R s 4 ; d e lCr 1 a 9, 11, 12, 15, 23 a 27; de 2Cr 23, 29; de Ed 2, 7, 8, 10; de Ne 3, 7, 10, 11, 12. Com referência ao Novo Testamento, aqui em Mt 1.1-17 deparamos com uma genealogia descendente, que segue de José a Jesus. Em Lc 3.23-38 se nos apresenta uma árvore genealógica ascendente. Quando lemos de trás para frente, também termina em Jesus; embora, como muitos afirmam, por via Maria e não José. Essas seções de Mateus e de Lucas não exaurem as referências do Novo Testamento acerca das genealogias. Paulo (lTm 1.4; Tt 3.9) teve de fazer séria advertência contra o excessivo interesse em tais assuntos, interesse esse que surgia do erro de minimizar o fato de que, com a vinda de Cristo e o cumprimento de sua missão, as regulamentações do Antigo Testamento tinham sido abolidas e as profecias em grande parte tinham sido cumpridas. A genealogia apresentada em Mt 1.1 -17 não é simplesmente um apêndice, mas se acha estreitamente relacionada com a substância de todo o capítulo; num sentido mais amplo, ela se relaciona com o conteúdo de todo o livro.120 Assim, no cabeçalho da genealogia (v.l) Jesus Cristo é intitulado "o filho de Davi" (cf. v. 6). Essa expressão reaparece no v. 20, onde é aplicada a José, o "pai" de Jesus (cf. Lc 2.48). Porém, observe-se a forma bas1211
Ver também M.D. Johnson, Thepurpose of the Bíblical Genealogias, Cambridge, 1969.
155
1.7-11
MATEUS
tante cuidadosa em que a relação de José com Jesus é descrita no v.l6. Por esse versículo fica evidente que o evangelista está propositalmente impedindo a possibilidade de que o leitor venha a pensar que José é o pai físico de Cristo. O que ele deixa subentendido a partir dessa genealogia é que, embora Maria seja de fato a mãe de Jesus, José era o seu pai, não no sentido natural, e, sim, somente no sentido legal. E é precisamente esse mesmo ponto que se desenvolve no fascinante relato embutido nos vv. 18-25. Portanto, ali se nos revela que quem é o Filho do homem é também o Filho de Deus. Ele é a genuína semente de Davi e de Abraão, o cumprimento da profecia. Somente ele é a Esperança de Israel e da humanidade. Além disso, esse pensamento central de forma alguma está confinado ao capítulo 1. Antes, em todo o seu Evangelho o autor apresenta a grandeza de Cristo, tal como revelada em sua gloriosa origem e na forma maravilhosa em que ele consumou a tarefa que lhe foi designada pelo Pai. Portanto, o filho de Davi é inquestionavelmente também o Senhor de Davi (22.41-46). Com esse pensamento presente, nos aproximamos agora do v. 1: 1. Registro dos ancestrais de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. E evidente que aqui no v. 1 estamos diante de um cabeçalho. Ele deve ser analisado como o título do Evangelho todo? Evidentemente que não foi interpretado assim nos tempos primordiais, quando um título diferente era concedido ao livro, como se sabe hoje. E, porventura, o cabeçalho de todo o primeiro capítulo? Provavelmente não, visto que 1.18, embora bastante relacionado com 1.1-17, parece ser outro cabeçalho. O melhor procedimento, a meu ver, seria considerar 1.1 como o cabeçalho de toda a genealogia (1.2-17). Isso nos faz lembrar fortemente dos diversos cabeçalhos ou frases introdutórias do livro de Gênesis, porém especialmente de Gn 5.1, que de forma similar introduz uma genealogia. Dessa forma, o que segue nos vv. 2-17, nesse cabeçalho, é denominado biblos geneseos de Jesus Cristo, filho de Davi, etc. A palavra biblos (cf. Bíblia) pode referir-se a um livro, como 156
MATEUS em Josefo, papiros, etc., ou a um livro sagrado; por exemplo, "o livro da vida" (Fp 4.3; Ap 3.5). Contudo, também pode referir-se a um escrito que é menos do que é considerado propriamente um livro. Nesse caso em pauta refere-se claramente a um registro ou lista de nomes. A palavra que vem em seguida — geneseos — é o genitivo da palavra com a qual o leitor está familiarizado, ou seja, gênesis; quando escrita com maiúscula, Gênesis se refere ao livro bíblico "dos começos". Toda a expressão — biblos geneseos — significa, pois, registro do princípio, da origem ou dos ancestrais. Este é o registro dos ancestrais daquele que se chama Jesus Cristo. Nossa palavra portuguesa Jesus é de fato uma palavra latina que vem da palavra grega bastante semelhante — lesous. Esta, por sua vez, é a forma helenizada do nome hebraico Jeshua, forma abreviada de Jehoshua (Js 1.1; Zc 3.1). Esta última forma significa Jeová é salvação. Na forma abreviada — Jeshua — a ênfase recai no verbo; portanto, ele certamente salvará. Isso nos lembra Mt 1.21: "Tu chamarás seu nome Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados." Cf. também Mt 11.27-30; Jo 14.6; At 4.12. Para a ênfase sobre o verbo, ver também Eclesiástico 46.1. Ao nome pessoal — Jesus — acrescenta-se o nome oficial — Cristo. Este é o equivalente grego do nome hebraico — Messias. Isso nos mostra que Aquele a quem se refere foi ungido pelo Espírito Santo (portanto: ordenado, separado e habilitado) para consumar a tarefa de salvar o seu povo. Cf. Is 61.1; Lc 4.18; Hb 1.9. Ele foi ungido para ser o nosso Profeta principal (Dt 18.15; Is 55.4; At 3.22; 7.37); o único Sumo Sacerdote (SI 110.4; Hb 10.12,14); e o Rei eterno (SI 2.6; Zc 9.9; Mt 21.5; 28.18; Lc 1.33). Naturalmente que os nomes Jesus e Cristo, como são empregados aqui, são inseparáveis. Realmente, eles constituem um só e glorioso nome dado ao nosso Salvador. Ora, neste prefácio genealógico Jesus Cristo é chamado "filho de Davi, filho de Abrão". Isso nos faz lembrar a profecia. O interesse pelas genealogias se fortalecem especialmente devido à profe157
MATEUS cia messiânica, segundo a qual o futuro Libertador seria a semente da mulher (Gn 3.15), de Abraão (Gn 22.18), de Judá (Gn 49.10) e de Davi (2Sm 7.12,13). Quanto à questão se é correto chamar Jesus de "semente ou filho de Abraão", parece estar claramente subentendido em passagens como Jo 8.56; Hb 11.13,17-19 que o próprio Abraão não esperava que Isaque fosse a Esperança da humanidade. Ao contrário, o amigo de Deus (Tg 2.23) sabia que o nascimento de Isaque prepararia o caminho para a vinda do Messias. De conformidade com os Evangelhos, e bem assim as epístolas, o Messias seria "o filho por excelência de Abraão", verdade enfatizada diante das acusações hostis (Jo 8.39-41; cf. G1 3.16); sim, Alguém maior que Abraão (Jo 8.58). Ele seria Aquele por intermédio de quem Deus abençoaria todos aqueles que pela graça exerceram a fé de Abraão (Gn 15.6; Rm 4.3; G1 3.6; cf. Jo 3.16). Quanto à predição de que o Esperado seria "a semente ou filho de Davi", não é muito claro que as palavras: "Estabelecerei para sempre o trono de seu reino" (2Sm 7.13) devem referirse a Alguém que é maior que Salomão? Expondo-o de uma maneira diferente, a referência a Salomão não exaure o sentido da passagem. Portanto, não é surpreendente que enquanto se pisavam os átrios da era do cumprimento messiânico, existissem pessoas devotas esperando "a consolação de Israel" (Lc 2.25). Aqui em Mt 1.1 o autor declara que Jesus Cristo é de fato tudo aquilo que seu nome implica: o Salvador divinamente ungido, o cumprimento da profecia, o herdeiro legítimo do trono de Davi e — recuando ainda mais — a verdadeira semente de Abraão. Esforços têm sido empreendidos com o fim de negar, pelo menos até certo ponto, a conexão existente entre Jesus e Davi. Certamente que se admite que José era da casa de Davi (Mt 1.20; Lc 1.27; 2.4,5), porém se questiona se Maria era realmente filha de Davi.121 Não obstante, um estudo cuidadoso de 2Sm 121
Aqueles que o questionam baseiam sua opinião sobre o que acredito ser uma explicação errônea de Lc 1.5,36. Cf. a crítica cortante de Lenski (Interpretation of Lucas, p. 49) da posição de Zahm. Estou de acordo com o pensamento principal dessa crítica.
158
MATEUS 7.12,13; Lc 1.32,69; At 2.30; Rm 1.3; 2Tm 2.8; e Ap 5.5 não deve deixar lugar à dúvida. A própria estrutura da genealogia, aqui em Mateus, conecta Jesus com Davi. Ela consiste de três grupos de quatorze.122 No primeiro grupo nos é transmitida a origem da casa de Davi; no segundo, seu progresso e declínio; no último, seu eclipse. Todavia, mesmo um eclipse não é necessariamente total e nem significa extinção. Ou, mudando de figura, corta-se uma árvore, porém o seu cepo permanece fincado no chão. No presente caso, desse cepo emerge um broto, e esse se converte numa enorme árvore (cf. Is 11.1; Rm 15.12). Em Davi a família de Abraão alcançou a realeza (observe-se o v.6a: "o rei Davi"). Na deportação para Babilônia esse poder real se perdeu. Em Cristo ele é restaurado, só que num sentido muito mais glorioso. Assim, segundo Mateus, Jesus é o clímax dos três quatorze. Dificilmente se pode negar que esses quatorze expressam um simbolismo. Depois de ler muito sobre esse tema, sugiro a seguinte interpretação, reconhecendo minha dívida para com diversos eruditos eminentes que antes de mim tentaram resolver o problema. Sete é a soma de três e quatro, cada um dos quais, independentemente, sugere plenitude. Três, quando usado de forma simbólica, expressa aquilo que tem princípio, meio e fim, e, portanto, está completo. Na Escritura, às vezes esse número é associado a Deus, visto na plenitude de sua glória, a fonte de bênção para os homens. Por isso falamos da tríplice bênção araônica (Nm 6.24-26); o três vezes santo da visão de Isaías (Is 6.1-3); a tríade de bênçãos pronunciada sobre o povo de Deus no desfecho de 2Coríntios; e os favores que emanam do Deus Triúno, por meio dos quais o vidente de Patmos consola: a irmandade (Ap 1.4,5). Quatro, usado de forma simbólica, refere-se às vezes à plenitude da terra e/ou dos céus, com seus quatro ventos (Jr 49.36; Dn 8.8; 11.4; Zc 2.6; Mc 13.27; Ap 7.1). 122
E verdade que, quando acrescidas, as consoantes hebraicas do nome Davi têm um valor numérico de quatorze (4+6+4). Simplesmente não sabemos se esse fato estava no pensamento do evangelista.
159
MATEUS Ora, se ainda três e quatro, tomados separadamente, podem expressar plenitude, sua soma — sete —, quando usada de forma figurativa, leva esse significado de forma não menos enfática. De fato, não somente os judeus atribuíam a esse número um significado especial, nem apenas a cultura semítica em geral, mas também os antigos egípcios, os gregos e os alemães. Todos eles reconheciam os períodos de sete dias das quatro fases da lua. Na Escritura, o sete com freqüência indica a totalidade ordenada por Deus. Quatorze, que é duas vezes sete, também apresenta essa idéia. Portanto, três vezes quatorze = quarenta e dois. Isso equivale a seis sete, e imediatamente introduz o sétimo sete, a plenitude reduplicada, a perfeição. Visto que, na genealogia apresentada por Mateus, Jesus é mencionado no final da lista de três quatorze ou seis sete, e visto que o evangelista não se detém ali, senão que prossegue a bela história do Salvador, não podemos estar tão equivocados ao dizermos que ele o descreve não apenas como Aquele que completa ou cumpre o antigo, mas que também introduz o novo (9.16,17; 26.28,29; cf. Jo 3.34; ICo 11.25; 2Co 3.6; 5.17; Hb 9.15; 10.20; 12.24; Ap 21.5). Nele o novo e o antigo se encontram. Ele é o Alfa e o Omega, o Princípio e o Fim, o coração e o centro de tudo. Fora dele não existe salvação. Ele é o Messias, o autêntico antítipo de Davi. E no curso da história da redenção, como aqui simbolizada em suas três grandes etapas, o plano de Deus, traçado desde a eternidade, foi perfeitamente realizado.123 Nos dias de Mateus, e também depois, os inimigos de Cristo estavam constantemente fazendo afirmações depreciativas acerca da origem de Jesus. Em essência, o que diziam era que, com base em seu humilde nascimento, ele não podia ser o que afirmava ser. Não era ele o filho do carpinteiro? Não conheciam eles seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs? (Mt 13.54-58; Mc 123
Sobre o significado de azia e seus derivados, ver especialmente o seguinte: I.S.B.E., pp. 2157-2163: Th. D.N.T., Vol. II, pp. 627-635; e S.B.K., Vol. I, p. 43; IV, pp. 994, 995. Notar também o que foi dito previamente sobre a afeição de Mateus pelo número sete; p. 129 acima.
160
MATEUS 6.3; Lc 4.22). Alguns argiiiam: "Nós conhecemos a procedência deste homem; no entanto, quando o Cristo vier, ninguém saberá donde ele é" (Jo 7.27). Outros diziam: "Certamente que o Cristo não virá da Galiléia, não é verdade? Não diz a Escritura que o Cristo há de vir da linhagem de Davi e da aldeia de Belém, onde Davi viveu?" (Jo 7.41,42). Às vezes os seus adversários chegavam a sugerir que sua origem era espúria. Diziam eles: "Nós não nascemos de fornicação; temos um pai, que é Deus" (Jo 8.41), como se dissessem: "Nós não nascemos de fornicação como tu nasceste. Com respeito ao nosso pai não existe dúvida justificável, porém quanto a ti o caso é diferente." A insinuação sinistra ou indireta às vezes se convertia em insulto franco, deliberado e maligno: "Não temos razão em dizer que és samaritano e que tens demônio?" (Jo 8.48). Essas afirmações hostis, nas quais não só se negava a origem davídica de Jesus, mas também o seu nascimento legítimo, fosse por meio de afirmações diretas ou indiretas, o fato é que elas continuaram entre os judeus. 124 Portanto, Mateus, por meio dessa genealogia e de sua seqüência (a narrativa do nascimento virginal, vv. 18-25), pretende demonstrar que Jesus, segundo sua natureza humana, é certamente a legítima semente de Davi, em cumprimento da profecia. De José, seu pai legal — e assim do ancestral de José, Davi —, Jesus recebe seu direito ao trono de Davi. De Maria (v.16) — e por meio de Maria, também da linhagem de Davi — Jesus recebe a carne e sangue de Davi. 124
VerT. Walker, Jewish Views of Jesus, Nova York, 1931, especialmente pp. 14-23. Cf. também Laible, Jesus Christus in Talmud; Herfod, Christianity in Talmud and Midrash; Krauss, Das Leben Jesu nach Jüdischen Ouellen. Numa coleção de direito oral não escrita previamente, chamada Tose/ia (que pertence à literatura tanaíba dos judeus), aparece uma história em que Jesus é chamado "filho de Pantera". Os filósofos pagãos também se deixaram influenciar por essas representações caluniosas. Ver especialmente Orígenes, Contra Celso I.xxviii. Atualmente H. J. Schonfield (The Passover Plot, pp. 42, 48, 49. 241, 242) segue o exemplo daqueles que conectam a história do nascimento virginal de Cristo com diversas lendas pagãs; por exemplo, a lenda do deus Júpiter Ammon, que em forma de serpente se casou com Olímpia, o que resultou no nascimento de Alexandre o Grande, como se estes dois nascimentos (o de Cristo e o de Alexandre) tivessem em comum algo que fosse essencial!
161
MATEUS Todavia, a glória não pertence a José nem a Maria. José não merece crédito por seu próprio nascimento como um descendente de Davi, e é plenamente consciente do fato de que nada teve que ver com a concepção de Jesus. Maria, semelhantemente, sabe que o que está acontecendo em seu ventre é obra do Espírito Santo. Ela está pronta para ser "a serva do Senhor" (Lc 1.34,35,38). A glória pertence somente a Deus! E pela graça que o homem é salvo, por meio da fé; e isso não vem do homem mesmo; é dom de Deus (cf. Ef 2.8). Uma vez escrito o cabeçalho, Mateus agora apresenta a seguinte genealogia:125 Os três quatorze em 1 Crônicas
Apresentados em Mateus Primeiro quatorze 1. Abraão 2. Isaque 3.Jacó 4. Judá e seus irmãos
1.1,2 1.2 1.2 1.2
1.27 1.28,34 1.34;2.1 2.1,2
5. Perez e Zerá
1.3
2.4
Ver também Gn 11.26 Gn 21.1-5 Gn 25.26 Gn 29.31-35; 30.1-24; 35.16-18; 49; Êx 1.1-6 Gn 38.24-30; Rt 4.18
Na maioria dos casos, a ortografia dos nomes em Mateus é idêntica ou é muito semelhante à que se encontra na LXX, lCr 1—3. Em lCr 1.3, onde o hebraico tem Israel, a LXX tem Jacó. O mesmo tem Mateus (1.2). Também, tanto a LXX (1 Cr 3.17) como Mateus (1.12) usam a forma Salatiel, onde o hebraico tem Sealtiel. Portanto, parece provável uma certa dependência, direta ou indireta, da LXX, lCr 1—3. Aqui segue a lista completa de nomes como apresentada por Mateus. Onde a forma grega que ele usa difere consideravelmente da hebraica, o nome dado por Mateus aparece entre parênteses. A forma primitiva — isto é, a hebraica transliterada — é a que é usada neste comentário (como, por exemplo, também na A.R. V.). Na segunda coluna, N° 5, o grego Iúxkxçoít naturalmente se refere a Josafá. Na mesma coluna, obviamente o n° 7, o nome grego OÇiari, se refere a Uzias (2Rs 15.13,30; 2Cr26.1 ss; etc.), chamado Azarias noutros lugares (2Rs 14.21; 1 Cr 3.12; etc.). Finalmente, o Jeconias de Mt 1.11,12; 1 Cr 3.16,17; Et 2.6; Jr 24.1; 27.20; 28.4; 29.2 é o Joaquim de 2Rs 24.6,8, etc.; 2Cr 36.8,9 e Jr 52.31; o mesmo Conias de Jr 22.24,28; 37.1.
162
MATEUS Apresentados em Mateus 6. Esrom 1.3 7. Râo (grego: Arão) 8. Aminadabe 9. Naassom 10. Salmom 11. Boaz 12. Obede 13.Jessé 14. O rei Davi
1.3 1.4 1.4 1.4 1.5 1.5 1.5 1.1,6
Segundo quatorze 1. Salomão 2. Roboão 3. Abias 4. Asa (gr.: Asafe) 5. Josafá 6. Jorão 7. Uzias 8. Jotão 9. Acaz 10. Ezequias 11. Manassés 12. Amom (gr.: Amós) 13. Josias 14. Jeconias e seus irmãos
1.6 1.7 1.7 1.7 1.8 1.8 1.8 1.9 1.9 1.9 1.10 1.10 1.10 1.11
Terceiro quatorze 1. Jeconias (para a 1.12 repetição de seu nome, ver sobre 1.12) 2. Sealtiel (gr.: Salatiel) 1.12
3. Zorobabel
1.12
em lCrônicas Ver também 2.5 Gn 46.12; Nm 26,21 Rt 4.18 2.9,25 Rt 4.19 2.10 Rt 4.19 2.10 Rt 4.20 2.11 Rt 4.20 2.11 Rt 4.13,21 2.12 Rt 4.21 2.12 Rt 4.22 2.15 Rt 4.22; 1 Sm 13.11-13 3.5 3.10 3.10 3.10 3.10 3.11 3.12 3.12 3.12 3.12 3.13 3.14 3.14 3.16
2Sm 12.24 lRs 11.43 lRs 14.31 lRs 15.8 lRs 15.24 lRs 22.50 2Rs 14.21; 15.1 2 Rs 15.32 2 Rs 16.1 2Rs 18.1 2Rs 20.21; 21.1 2Rs 21.18,19 2Rs 21.24; 22.1 2Rs 24.6,8,12; Jr 22.30
3.17
2Rs 25.27-30
3.17
Ed 3.2,8; 5.2; Ne 12.1; Ag 1.1,12,14; 2.2-4, 20-23 Ed 3.2,8; 5.2; Ne 12. 1; Ag 1.1,12,14; 2.24, 20-23; Zc 4.6-10
3.19
163
MATEUS
1.7-11
Apresentados em Mateus 4. Abiude 5. Eliaquim 6. Azor 7. Sadoque 8. Aquim 9. Eliúde 10. Eleazar 11. Matã 12.Jacó 13. José, marido de Maria de quem nasceu 14. Jesus, chamado 1.16 Cristo 2. A p r i m e i r a lista de q u a t o r z e n o m e s c o m e ç a a s s i m :
Abraão tornou-se o pai de Isaque, e Isaque tornou-se o pai de Jacó, e Jacó tornou-se o pai de Judá e seus irmãos. Já f i c o u demonstrado que era natural que Mateus, escrev e n d o principalmente para os j u d e u s , começasse c o m Abraão. No fato de Isaque ser gerado por Abraão, há dois elementos: um sobrenatural e um natural. O primeiro é enfatizado por Paulo em G1 4.23; o segundo é enfatizado aqui por Mateus. No que diz respeito ao primeiro, Isaque nasceu c o m o fruto " d a promessa". C o m o r e c o m p e n s a a A b r a ã o por sua fé na p r o m e s s a , D e u s interveio miraculosamente, capacitando Abraão, e m b o r a ele já fosse considerado " c o m o m o r t o " , a produzir s e m e n t e e possibilitando que Sara, outrora estéril, concebesse ( R m 4.19; Hb 11.11,12). Portanto, é verdade que a árvore genealógica, c o m o se acha registrada por Mateus, começa c o m um n a s c i m e n t o sobrenatural, ou seja, o de Isaque, e termina c o m outro, ou seja, o de Cristo. Todavia, os dois não são de f o r m a a l g u m a idênticos, porque, no caso de Isaque, não h o u v e nascimento virginal, c o m o h o u v e no caso de Cristo. No tocante à concepção de Isaque, h o u v e a costumeira f e c u n d a ç ã o do óvulo por m e i o de um pai 164
MATEUS
1.1-17
humano, segundo o usual ao longo de toda esta genealogia, onde se usa o mesmo verbo. Os dois elementos na concepção de Isaque — a. a intervenção sobrenatural revitalizando a virilidade de Abraão; tb. a concepção natural resultante da inseminação — não devem ser confundidos. De outro modo Mt l .2 se chocaria com Gl 4.23. E digno de nota que o nome de Ismael nem sequer é mencionado aqui, embora fosse também filho de Abraão. E este teve outros descendentes (Gn 25.2). Mateus conserva a linha messiânica. Nos poucos casos em que ele menciona também parentes colaterais (vv. 2, 3, l l ) , deve ter havido uma razão especial, ainda que não é certo que em cada caso saibamos qual foi essa razão. Isaque tornou-se o pai de Jacó; e este, no correr do tempo, tornou-se o pai de Judá e seus irmãos. O nome de Judá é designado dentre todos os fdhos de Jacó, porque é por meio dele que a linha messiânica prossegue. Por que isso ocorreu? Não era Rúben o primogênito? Não havia três irmãos mais velhos que Judá? É evidente que a inclusão ou a exclusão da linha de descendentes não é determinada pela idade. Tampouco é determinada pelo mérito humano (ver os vv. 8-10). O que então a determina? Tão-somente a soberana graça eletiva de Deus (Rm 9.16). Entretanto, ainda quando é em Judá que a linha messiânica avança, as palavras "e seus irmãos" são acrescidas. A menção desses irmãos pode ter sido ocasionada pelo fato de que, durante a antiga dispensação, Israel como um todo constituía o povo de Deus, separado de todas as nações do mundo, com o fim de ser e, especialmente em Cristo, chegar a ser uma bênção para todos (Êx 19.3-6; lRs 8.41-43; Is 53, 54 e 60). Em conseqüência, a nação como um todo tinha uma significação messiânica. 3. A linha se estende como segue: Judá tornou-se o pai de Perez e Zerá, por meio de Tamar, e Perez tornou-se o pai de Esrom, e Esrom tornou-se o pai de Rão. Este é o Judá a respeito de quem está escrito: "Judá, teus irmãos te louvarão... O cetro não se arredará de Judá... até que venha Silo..." 165
MATEUS (Gn 49.8-10); o mesmo Judá que, em cumprimento de sua promessa de servir de garantia por seu irmão menor, pronunciou esse comovente discurso no qual ele se oferecia para ser escravo no Egito como substituto de Benjamim. Porém, Mateus não está pensando nessas referências a Judá, e, sim, naquele ato imoral que o fez ser pai de Perez e Zerá por meio de sua própria nora Tamar. Tendo-a confundido com uma meretriz, por estar ela velada quando ocorreu o ato, a deixara grávida. Subseqüentemente, quando lhe informaram que Tamar ficara grávida num ato de prostituição, ele ordenou que a queimassem. A ordem foi revogada quando Tamar apresentou provas de que o próprio Judá era o principal transgressor (Gn 38). Por meio de um canal de iniqüidade como este — "Judá... Perez... por meio de Tamar" — o Salvador, segundo sua natureza humana, se prontificou a passar, marchando das glórias celestiais até á encarnação e prosseguindo presto até a crucificação em lugar de seu povo. Se a nossa visão é esta, então o nosso estudo, mesmo sendo o da genealogia, pode-se converter numa bênção para a mente e o coração. Não sabemos por que ainda se menciona Zerá, o irmão de Perez. Seria porque os irmãos eram gêmeos e, assim, contrariamente à expectativa humana, Zerá nasceu por último, de modo que o direito de primogenitura foi concedido a Perez por uma inesperada disposição da divina providência? (Gn 38.29,30). A resposta a essa indagação é que Jacó e Esaú também eram gêmeos, e com referência a eles Deus também ordenara que se desse o humanamente inesperado: "O mais velho servirá ao mais moço" (Gn 25.23); Entretanto, na genealogia o nome de Esaú nem mesmo é mencionado! A linha prossegue: (Perez) Esrom, Rão. Além da menção nas tábuas genealógicas, nada sabemos sobre Esrom e Rão. Significaria que esses nomes são fictícios? Tal conclusão é inteiramente destituída de apoio. Sob a direção do Espírito Santo, Mateus encetou cuidadoso estudo dos registros. Direta ou indiretamente, põe-se a traçar a informação que reuniu até fontes 166
MATEUS
1 .4
assinaladas no quadro os três quatorze. Além disso, note que a lista Perez, Esrom, Rão, Aminadabe, Naassom, Salmom, Boaz, Obede, Jessé, Davi (Mt l .3-5) é também encontrada em Rt 4.1822. exatamente na mesma ordem. Conseqüentemente, o evangelista possuía excelentes fontes sobre as quais podia basear sua genealogia, ou seja, Gênesis. Êxodo, Números, Rute e os livros de Reis e Crônicas, etc., e talvez as tábuas genealógicas separadas, 126 tanto escritas como orais. Seu relato é plenamente confiável. Esrom e Rão! Para nós esses são meramente nomes. Nem sequer sabemos se eram homens de reputação boa ou ruim. Para Deus, todavia, eles eram importantes para a realização histórica de seu plano em trazer o Messias ao mundo para a redenção do homem. Assim também na igreja muitos há que nunca aparecerão num cabeçalho de periódico. Todavia, embora desconhecidos aqui embaixo, eles são bem conhecidos lá em cima (2Co 6.9). Um dia virá a lume que "os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos" (Mt 20.16). 4. Ao dar continuação à lista, entramos novamente em território um pouco mais familiar: Rão tornou-se o pai de Abinadabe, e Abinadabe tornou-se o pai de Naassom, e Naassom tornou-se o pai de Salmom. Segundo indicou os paralelos em Êxodo e Números, chegamos agora ao tempo do êxodo egípcio e da peregrinação pelo deserto. Abinadabe foi o pai de Eliseba, a esposa de Arão (Êx 6.23). Ao longo da jornada pelo deserto, Naassom, filho de Abinadabe (Nm 1.7; 1 Cr 2.10), foi o líder da tribo de Judá, que acampava ao "lado oriental" (Nm 2.3). Quando o tabernáculo ficou pronto e armado, foi ele que, como representante de sua tribo, ofereceu a primeira oblação (Nm 7.1217). Uma vez em marcha, o estandarte de sua tribo era o primeiro a partir (Nm 10.14). Salmom, o filho de Naassom, casou-se com Raabe, que figura de forma proeminente na história dos m
Deve ter existido muitas dessas listas. A Genealogy ofPriests foi encontrada na cova 6 dos Rolos do Mar Morto (M. Burrows, More Lighi on the Dead Scrolls, Nova York, 1958, p. 407).
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dois homens enviados por Josué "a reconhecer" a terra de Canaã. Neste ponto da informação genealógica passamos aos vv. 5,6a. Salmom tornou-se o pai de Boaz por meio de Raabe, e Boaz tornou-se o pai de Obede por meio de Rute, e Obede tornouse o pai de Jessé, e Jessé tornou-se o pai do rei Davi. Todo estudante da Bíblia está familiarizado com os novos nomes aqui mencionados. Quem, uma vez em círculos cristãos, não sentiu a emoção que emana das histórias sobre Raabe e os espias (Js 2 e 6; Hb 11.31; Tg 2.25); Boaz, Rute e seu fdho Obede (livro de Rute); Jessé e seus filhos (ISm 16); e, por último, porém não menos importante, o rei Davi? (1 Sm 17—31; 2Sm; lRs 1.1—2.4). Não obstante, o propósito de Mateus não é primeiramente trazer à lembrança essas emocionantes histórias, e, sim, fornecer uma lista de ancestrais, a fim de que, em harmonia com a profecia, Jesus Cristo pudesse ser reconhecido como o Filho e ao mesmo tempo o Senhor de Davi. Tudo o mais não pode ter senão uma importância subordinada. Isso também significa que a lista não deve ser utilizada com o propósito de estabelecer conclusões cronológicas; por exemplo, para calcular o tempo transcorrido entre Raabe e Davi. Todavia, se o v. 5 é usado com essa finalidade, na suposição de que nenhum elo messiânico foi omitido, seguiria que Raabe, que viveu no tempo da entrada de Israel em Canaã (Js 2 e 6), foi a trisavô de Davi; porque a seqüência apresentada aqui é Raabe [esposa de Salmom], Boaz, Obede, Jessé, Davi. Esse resultado seria muito difícil de se harmonizar com 1 Rs 6.1, onde, mesmo que se façam as subtrações necessárias, um período consideravelmente longo está subentendido no espaço entre Raabe e Davi. Evidentemente, Mateus não julgou necessário mencionar um representante de cada geração. Tampouco o fizeram os outros escritores (cf. Ed 7.3 com lCr 6.7-9). Isso está em evidência também em Mateus, no estudo do segundo (vv. 6b-ll) e do terceiro quatorze (vv.12-16), como será indicado. O evangelista está interessado em cristologia, não em cronologia. Ele se satisfaz em mostrar que os três catálogos de antecedentes messiânicos, logicamente arranjados 168
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segundo os grandes pontos decisivos na dinastia davídica, alcançam o seu cumprimento em Cristo. Com o fim de alcançar esse alvo, nem ele nem o escritor inspirado do livro de Rute julgaram necessário mencionar cada elo na cadeia genealógica. Registra-se agora a origem da casa davídica. Os próximos quatorze nomes, de Salomão a Jeconias, são reminiscências da glória e do declínio da dinastia. Eles revelam que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, era capaz de conceder a salvação. E Cristo quem salva — unicamente ele! 6b. Davi tornou-se o pai de Salomão por meio da esposa de Urias. Entre os comentaristas costuma-se determinar o caráter todo-inclusivo da genealogia. Por exemplo, diz-se que, ao contrário do uso judaico, esta lista com os seus três quatorze contém nomes tanto de mulheres como de homens. Inclusive, também, de mulheres estrangeiras — Tamar, Raabe e Rute' 27 — e nomes daqueles que, num sentido amplo ou restrito, eram judeus. Geralmente dá-se especial ênfase ao fato de que não somente os bons são incluídos; por exemplo, Abraão, Isaque e Jacó; mas também os maus: Jorão, Acaz e Amom, etc. Alguns desses antepassados foram ímpios em grau inacreditável! Segundo o meu modo de ver, essas opiniões concordam com os fatos, e apoiam as seguintes conclusões: 1. A jactância judaica no tocante à descendência abraâmica equivale a uma atitude injustificável de gloriar-se na carne. Isso é estultície e impiedade. Israel não tinha razão para orgulhar-se de si mesmo. A salvação não é deste mundo, da parte do homem; ela é lá de cima, ela vem de Deus (cf. 2Co 11.17; Fp 3.1-8). 2. Jesus é deveras Aquele desde muito esperado, enviado por Deus para a redenção do homem; porque é ele quem cumpre a profecia concernente à humilde origem do Messias (Is 11.1; 53.2; cf. Mt 2.23; Jo 1.46; 7.52). 127
É evidente que Raabe não era israelita (Js 2.2-21). Rute era "'uma jovem moabita" (Rt 2.6). Gn 38 não afirma especificamente que Tamar era cananéia, todavia isso está provavelmente implícito no contexto de Gênesis (ver vv.1,2,6,11-13). Cf. G. Ch. Halders, Genesis (Korte Verklaring); Vol. 3, p. 94.
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3. Este Jesus Cristo é o Salvador do mundo (Jo 3.16; 4.42). não somente dos judeus. Sem dúvida, há "amplitude na misericórdia de Deus". Aqueles que foram destinados à salvação por meio da fé seriam tomados de todas as nações. O v. 6 acrescenta ênfase a tudo isto. Quanto ao ponto 1 (acima), os leitores são aqui lembrados do fato de que por poder indicar o ilustre rei Davi, seja como ancestral ou como o primeiro rei de sua nação, não oferece base alguma para jactância; pois ele foi o homem que, por meio da mulher de outro homem, isto é, por meio da mulher que ele roubara e, por ter mandado matar esse outro homem, tornara-se o pai do próximo rei. O primeiro fruto da união adulterosa morrera. Mais tarde, nasceu Salomão dessa mesma união. Leia-se sobre a forma escandalosa como Davi planejou e executou a morte de I frias, a fim de que pudesse casar-se com Batseba, a esposa desse homem, com a qual já havia cometido adultério (2Sm 11). Baste-nos a lembrança desse episódio na vida de Davi para que também o ponto 2 seja reforçado. Com respeito ao seu "pai" (somente no sentido legal) — sem dúvida também com respeito à sua mãe (ver vv. 16,18-25 e a genealogia de Lucas, 3.23-3 8) — , Jesus descendeu de um pecador tão enorme como Davi. Finalmente, tal coisa também enfatiza o ponto 3. Mesmo para Davi houve misericórdia; por isso há misericórdia para todo aquele que busca refúgio no antítipo de Davi. Portanto, ao estudarmos toda a genealogia (vv. 1-17), impressionamo-nos com o fato de que mesmo os homens bons necessitam da graça de Deus, pois eles também são pecadores. Indubitavelmente, muitas coisas dignas de elogio são afirmadas com referência a Abraão (Gn 13.8,9; 14.13-16; 15.6; 18.22,23; 22.1-19), porém envolvem-no certas ações vergonhosas (Gn 12.10-20; 16.1-6; 20). O mesmo vale com referência a Isaque: bom (Gn 24.63,67; 26.18-25); mau (25.28; 26.1-11). Com Jacó o caso não muda de figura: bom (28.18-22; 32.1,2,22-32; 35.17; 49.18); mau (Gn 25.27-34; 27.18-24; 37.3). Judá também é um exemplo a imitar (43.8,9; 44.18-34) e a evitar (Gn 38). Davi 170
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é o homem segundo o coração de Deus (ISm 13.14; 17; 18.5; 24.1-7; 25.32-35, 39-42; 26; 2Sm 7.18-29; 9; 12.13; 18.5,33; 23.5; SI 51 e muitos outros Salmos); nada obstante, é um grande pecador (além de 2Sm 11, já considerado, ver também 1 Sm 24.21,22; 2Sm 5.13; 8.2; 12.31; 21.8,9; 24). Para mencionar só mais um, Ezequias "fez o que era reto aos olhos de Jeová, segundo a tudo o que fez Davi seu pai" (2Rs 18.3, e ver todo o capítulo; também 2Rs 19.14-19; 20.2,3; 2Cr 29.2, e todo esse capítulo; também capítulos 30 e 31); porém, ele também não foi irrepreensível (2Rs 20.12-15; 2Cr 32.25). Ninguém foi capaz de salvar a si mesmo. Todos, mesmo as mulheres da lista, tinham necessidade de redenção por meio do sangue do Redentor prometido. Eles também confirmaram isso por meio de suas confissões humildes e impressionantemente emocionantes (Gn 49.18; 2Sm 23.5; 2Rs 19.14-19; SI 51; cf. Dn 9.17-19; Lc 18.13; Rm 7.24,25). Prosseguindo: 7-11. Salomão tornou-se o pai de Roboão, e Roboão tornou-se o pai de Abias, e Abias tornou-se o pai de Asa, e Asa tornou-se o pai de Josafá, e Josafá tornou-se o pai de Jorão, e Jorão tornou-se o pai de IJzias, e Uzias tornou-se o pai de Jotão, e Jotão tornou-se o pai de Acaz, e Acaz tornou-se o pai de Ezequias, e Ezequias tornou-se o pai de Manassés, e Manassés tornou-se o pai de Amom, e Amom tornou-se o pai de Josias, e Josias tornou-se o pai de Jeconias, e seus irmãos, até ao tempo da deportação para Babilônia. Lemos que Salomão "amou o Senhor" (lRs 3.3a), porém logo depois lemos dele que "amou muitas mulheres estrangeiras" ( l R s 11.1-14). O homem cujo começo fora tão promissor, depois fez o que era mau aos olhos do Senhor. Espiritualmente, ele não alcançou a estatura de seu pai, cujo coração se encheu de genuína e pungente tristeza pelo seu pecado. Quanto a Salomão, temos de envidar muito esforço na busca de evidências de genuíno arrependimento. Não obstante, não perdemos a esperança de que antes da sua morte tenha ele se convertido real171
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mente ao Senhor. A nossa opinião é fortalecida por passagens como as seguintes: 2Sm 12.24,25; lRs 3.5-15; 8.22-53; Ne 13.26; Ec 2.1-11; 12.13,14; cf. Jo 10.28; Rm 8.29,30; e Fp 1.6. Contudo, como um bloco a tradição caracteriza Salomão mais pela grandeza e prosperidade que marcou seu reinado e sua "sabedoria" do que mesmo por sua piedade. Quando mais tarde reis foram medidos segundo um padrão espiritual, o instrumento de medida foi sempre a vida de Davi (2Rs 16.2; 18.3; 2Cr 17.3; 28.1; 29.2 etc.), jamais a de Salomão.128 Portanto, notamos que, logo depois da ascensão do poder da dinastia davídica, tiveram início também os sinais de seu declínio. Além disso, esse declínio não foi somente de caráter espiritual, mas também político e material. Depois da morte de Salomão o reino se dividiu. Por conseguinte, todos os outros nomes que aqui são mencionados por Mateus designam seis que governaram somente sobre duas das doze tribos. Muitas coisas boas se registram com referência à pessoa de Asa, Josafá, Uzias, Jotão, Ezequias e Josias. O oposto é verdadeiro com referência aos demais, ainda que é justo afirmar que Manassés se arrependeu em seus últimos dias. Finalmente, com Jeconias (ou Jeoiaquim) acabou-se o que restara da glória de Judá (ver comentário sobre o v. 11). Salta-se à vista de imediato que entre Jorão e Uzias129 três nomes são omitidos. São eles: Acazias (2Rs 8.25; 2Cr 22.1), Joás (2Rs 11.21; 12.1; 2Cr 24.1) e Amazias (2Rs 14.1; 2Cr 25.1). A razão para tais omissões já foi declarada (ver comentário sobre os vv. 5 e 6a). Mateus não nos fornece um registro cronológico, senão um testemunho de que Jesus é deveras o Cristo. Já ficou demonstrado que Mateus tinha abundante fonte de onde extrair suas informações. Além do mais, segundo as claras evidências de todo o seu livro, ele estava plenamente familiarizado com a Escritura do Antigo Testamento. Portanto, 128
Um dos estudos mais deleitosos e completos que se têm o prazer de ler acerca de Salomão é o de J. Scohneveld, Salomo (em holandês), Baarn, Holanda, sem data. 129 Não entre Uzias e Jotão, como declara Lenski, op. cit. p. 30.
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para ele os nomes da lista eram muito mais que meros itens. Eram pessoas com quem, por meio da Escritura e da tradição, ele se tornara muito bem familiarizado. E ainda hoje, se alguém deseja entender essa genealogia à luz desse propósito, deveria passar lentamente através dela, em vez de considerá-la como algo sem valor. Logo descobrirá que, quanto mais a estuda, mais se convencerá de que ela aponta, sem dúvida alguma, para a necessidade da vinda do Redentor. Estava-se preparando o caminho para a sua vinda. Primeiramente, havia uma preparação histórica: a direção de Deus nos eventos que estavam acontecendo; de modo que, por exemplo, o reino de Salomão se dividiu — duas tribos permaneceram com Roboão e dez seguiram Jeroboão. Quão deplorável foi essa ruptura! Desfez-se a unidade política, o governo fortemente centralizado, pelo qual Davi lutara tão tenazmente a fim de trazê-lo à existência. Esborou-se também a consolidação religiosa — um templo para todas as tribos — que Salomão alcançara. O trono perdera seu lustre. Apagara-se a glória! Essa é uma forma de considerá-lo. Enquanto mantemos o verdadeiro elemento dessa apreciação, não devemos esquecernos do ponto de vista divino na forma declarada em l R s 11.11; 12.15b, e especialmente em 11.36. Lemos: "... disse o Senhora Salomão... tirarei de ti este reino e o darei a teu servo... este acontecimento vinha do Senhor... para que Davi, meu servo, tenha sempre uma lâmpada [posteridade, cf. lRs 15.4] diante de mim em Jerusalém." Foi Deus mesmo quem dividiu... a fim de que pudesse salvar. A nação foi "partida" para que a graça pudesse "entrar". Temos aqui outro caso dessa série de separações por meio das quais Jeová elege para si uma certa minoria a fim de usá-la para a realização de seu programa messiânico. O espírito de compromisso de Salomão com respeito a muitos deuses estranhos estava começando a exercer sua sinistra influência sobre o povo. Portanto, novamente fazia-se necessária uma separação, assim como no caso de Abraão e pela mesma razão. No decurso do 173
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tempo essa separação seria seguida pelos cativeiros assírio e babilónico. Então Judá servirá ao único Deus, e fará propaganda de seu culto monoteístico entre os gentios. Para muitos destes o caminho da salvação conduzirá do politeísmo por meio do monoteísmo ao Cristianismo. Houve também a preparação simbólica. A própria mobília do templo de Salomão, o edifício que esteve em Jerusalém durante quase todo o seu primeiro período, não aponta para o fato de que "sem derramamento de sangue, não há remissão"? (Hb 9.22). Mais ainda, não era claro para o judeu devoto e racional que o sangue de animais, em e por si mesmo, jamais faria a verdadeira expiação pelas almas dos homens? (SI 40.6-8). Houve ainda a preparação profética: o ministério de todos os verdadeiros profetas que labutaram durante esse período e que apontaram para o Libertador prometido. Os reis piedosos trabalharam de mãos dadas com profetas fervorosos e impulsivos. Ezequias e Isaías foram amigos (2Cr 32.20); assim o foram Josias e Jeremias (2Cr 35.25). Entre as muitas profecias messiânicas pronunciadas durante esse extenso período estão as seguintes: Is 7.14; 8.8; 9.1,2,6; 11.1-10; 42.1-7; 49.1-9; 50.4-9; 52.13— 53.12; 61.1-3; 62.11; Jr 23.5; 31.15; Os 11.1; e Mq 5.2. Finalmente, a preparação psicológica não deve ser esquecida. Uma verdade estava tornando-se mais e mais abundantemente clara: ninguém pode conquistar a justiça diante de Deus. Israel fracassa, como pode-se perceber pelas vidas dos reis e do povo. Mesmo a lei, ainda que perfeita em si mesma, não pode salvar. O homem fracassa. Unicamente Deus pode salvar. Ele o fará por meio do Mediador vindouro. Assim considerado, fica claro que o caráter messiânico da genealogia de Mateus é evidente não somente pela fórmula matemática — 3x14, como já foi explicado —, mas também por todo o contexto histórico que é representado pelos nomes que o evangelista menciona:
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Assim como no v. 8, acima, os nomes de três reis foram omitidos, também no v. 11, entre Josias e Jeconias (Jeoaquim), Joaquim é deixado fora (veja-se comentário sobre os vv. 5 e 6a). Lemos que "Josias gerou a Jeconias e a seus irmãos". A palavra gerou é aqui relacionada com o avó e não com o pai. Como prova, veja-se lCr 3.15,16, onde Josias, seu filho Jeoaquim e o filho deste, Joaquim ( Jeconias), são mencionados nessa ordem. Em harmonia com os versículos precedentes, não é errôneo traduzir a passagem: "Josias gerou a (ou tornou-se o pai de) Jeconias", pois na Escritura o termo pai tem um uso muito amplo. O termo nem sempre se refere ao "antepassado homem imediato", senão que pode indicar um mais remoto. Assim em 2Rs 18.3 Davi é chamado o pai de Ezequias; e no Novo Testamento, ver Mt 3.9; Lc 1.73; 16.24; Jo 8.39, 53, 56; etc. O mesmo vale com referência à palavra irmãos ("Jeconias e seus irmãos"). Deve-se lembrar que Abrão chamou Ló de seu "irmão" (Gn 14.14,16), embora este tenha sido de fato seu sobrinho (Gn 11.27). É plenamente possível que também aqui em Mt 1.11 a referência seja a parentes num sentido mais amplo, ou seja, aos filhos de Josias, portanto aos irmão literais de Jeoaquim: Jeoacaz (2Cr 36.2) e Zedequias (2Cr 36.10,11; cf. 2Rs 24.17), que eram, portanto, tios de Joaquim (ou Jeconias). Talvez tenham sido referidos aqui cie forma breve por terem também reinado em Jerusalém, ainda que por pouco tempo: o primeiro por três meses; o último por onze anos. Se Joaquim (ou Jeconias) mesmo tinha mais de um irmão no sentido literal e imediato, não podemos derivar essa informação da Escritura. Com a deportação para Babilônia, a promessa de Deus para a casa de Davi se eclipsou. Escura e triste foi a sorte de Joaquim. Não apenas não teve filho que assentasse no trono de Davi (Jr 22.30), mas ele mesmo, sendo um jovem de 18 anos, foi levado cativo para o estrangeiro, o que durou não menos de 37 dolorosos anos! (2Rs 24.8-12; cf. 25.27). No que concerne aos nobres, sacerdotes, artesãos, etc., que o acompanharam, sua partida forçada deve ter sido igualmente 178
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dolorosa. Zedequias, o terceiro füho de Josias, foi o último rei de Judá. Desprezando as advertências dos profetas Jeremias e Ezequiel, e depositando sua confiança no Egito, rebelou-se contra o rei de Babilônia. Em conseqüência, o exército caldeu veio e destruiu Jerusalém, inclusive o majestoso templo de Salomão. O trágico fim de Zedequias é vividamente descrito em 2Rs 25.47. O povo, exceto a parte mais pobre, foi levado para Babilônia (2Rs 25.11). A principal razão para o exílio babilónico é dada em 2Cr 36.14ss; em uma palavra: a impenitência em franco e obstinado desprezo por todas as advertências proféticas. O período total da opressão babilónica, começando com a deportação que ocorreu cerca de 605 a.C., incluindo também as transmigrações que ocorreram nos anos 597 e 586 a.C., e terminando no ano 536 a.C. — por conseguinte, um total de "setenta anos" (Jr 25.11,12; 29.10; Dn 9.2) —, podem se caracterizar (em parte) da seguinte forma: Primeiramente, foram anos de falsa esperança. Os primeiros exilados confiaram em que as condições mudariam, e que logo voltariam à sua terra. O templo de Jeová em Jerusalém não estava ainda de pé? Jeremias enviou uma carta a essas pessoas iludidas, e disse-lhes que não confiassem em seus falsos profetas, mas que construíssem casas e plantassem pomares; ou seja, que fizessem planos para uma longa permanência em Babilônia (Jr 29; cf. Ez 17.11-24). Em segundo lugar, foram anos de desesperança. Jerusalém caiu no ano 586, o templo foi destruído, o grosso da nação deportado. Muitos anos passaram sem qualquer sinal de retorno e restauração, como se Jeová tivesse se esquecido de seu povo. O Salmo 137 é uma expressão vívida do sentimento do povo. De Davi a Joaquim (Jeconias), que triste decadência! Como Judá deve ter suspirado por libertação! Finalmente, chegou o tempo das esperanças reavivadas. As tristezas não duraram para sempre. Ainda que a noite era escura e triste, havia centelhas de luz mesmo ao longo do exílio. Ou, mudando de figura, ainda que o sol de Davi se eclipsara, o eclipse não foi total. Isto pode 179
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ser visto no v.12, o qual introduz a terceira série de quatorze, como segue: Depois da deportação para Babilônia, Jeconias tornou-se o pai de Sealtiel, e Sealtiel tornou-se o pai de Zorobabel. Há boa razão para se crer que Jeconias deva ser contado duas vezes; primeiramente, como o último da segunda série de quatorze; então, como o primeiro da série final. A primeira vista, a decisão de contá-lo duas vezes pode parecer um método completamente injustificável de esquivar-se de uma "discrepância" do Evangelho, que consiste nisto, que a terceira lista, que se supõe ser igual às demais, deve conter quatorze nomes (v.17), teria somente treze.' 30 Contudo, um pouco de estudo do que a Escritura nos diz de Jeconias logo nos revela que se apresentam dois quadros agudamente contrastantes das experiências desse rei. Em 2Rs 24.8-12, como já foi indicado, tudo é escuro. Sobre Jeconias se pronuncia a maldição de ficar sem filhos (Jr 22.30). Porém, em seu encarceramento, as coisas as11,1
Alguns tentam resolver o problema por meio da conjectura de que originalmente (seja no autógrafo grego ou em algum Mateus primitivo em hebraico, do qual o texto grego foi uma suposta revisão; ver pp. 97-101) o v. 11 diz: "Josias tornou-se o pai de Joaquim" (em vez de "tornou-se o pai de Jeconias"). Mais adiante, no v.12, o nome Joaquim foi mudado para o seu equivalente Jeconias; e visto que os nomes Jeoaquim e Joaquim são semelhantes, o nome no v.l 1 também foi mudado para Jeconias. Se agora queremos restaurar o texto original, temos de mudar, no v.ll, o nome Jeconias para Joaquim. Se se adotasse essa emenda, o nome de Jeconias não seria mencionado até ao v. 12. Haveria de ser contado somente uma vez. e a mudança resultaria em séries de quatorze nomes em cada uma das listas. Desse modo procede o argumento. Por tentadora que pareça essa solução, especialmente em virtude da grande semelhança entre os nomes de um filho real e um neto real do rei Josias. está repleta de dificuldades. Em primeiro lugar, a melhor evidência textual apóia o texto na forma que está, isto é, sem substituir o nome de Jeconias pelo de Joaquim no v . l l . Além disso, a mudança proposta no v. 11 precisaria de uma alteração muito mais extensa; porque em todos os casos anteriores, começando primeiro com Isaque no v.2. e estendendo até Josias nos vv. 10 e 11, cada nome é mencionado duas vezes, primeiro como filho e em seguida como pai. O mesmo vale para a lista que segue nos vv. 12-16. que termina com Jacó. pai de José. Por isso, para ser consistente, em vez do que temos agora: "Josias tornou-se o pai de Jeconias e seus irmãos", o texto "restaurado"(?) diria: "Josias tornou-se o pai de Joaquim e seus irmãos, e Joaquim tornou-se o pai de Jeconias". Isso seria a mudança não de umas poucas letras ou simplesmente de uma palavra; significaria o acréscimo de toda uma oração. Faltaria completamente uma justificativa para uma emenda tão radical.
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sumem um melhor aspecto: Jeconias, o exilado, tem filhos, num dos quais a linha messiânica tem prosseguimento (1 Cr 3.17,18). Relendo Jr 22.30, começamos a entender que a predição de que ficaria sem filhos não significava outra coisa senão que nenhum de seus filhos ocuparia o trono terreno de Davi. Ora, essa mudança favorável entre o Jeconias antes de sua deportação e aquele depois da deportação, é em si mesmo provavelmente suficiente para justificar que seja ele contado duas vezes. Se mais é necessário, considere-se também 2Rs 25.27-30. Cf. Jr 52.31-34. Jeconias é solto da prisão, é tratado com humanidade na corte de Evil-Merodaque, rei de Babilônia, em cuja mesa comia regularmente, e se lhe concede uma mesada vitalícia. Concede-selhe ainda "um trono acima dos tronos dos reis que se achavam com ele em Babilônia". Um contraste mais agudo é dificilmente concebível. Naturalmente Mateus conhecia tudo isso. Por todo o seu Evangelho Mateus está constantemente provando que ele está bem familiarizado com suas fontes. Portanto, não é natural supor que, em virtude desses dois quadros tão agudamente contrastantes, Mateus conte Jeconias duas vezes? O filho de Jeconias, na linha messiânica, foi Salatiel. O "filho" (neto? ver 1 Cr 3.17-19) deste foi Zorobabel (Ed 3.2). Tanto Mateus como Lucas (este em 3.27) incluem Salatiel e Zorobabel em suas tábuas genealógicas. Nesses dois homens as linhas ancestrais de José, como registradas por Mateus, e de Maria, como provavelmente transmitidas por Lucas, convergem e logo divergem novamente.131 Pouco antes de 536 a.C. Babilônia caiu, e o império persa tomou o lugar do babilónico. O novo rei permitiu que os exilados hebreus regressassem à sua terra natal (Ed 1). Quando Ciro publicou seu decreto, somente um remanescente retornou (Ed 2.64). O sumo sacerdote Josué (ou Jesua) era o cabeça do sacerdócio. Zorobabel, a mesma pessoa mencionada nas duas genealo131
Talvez seja impossível determinar a forma exata como ocorreu isso em conexão com Salatiel e Zorobabel. VerR. D. Wilson, artigo Zorobabel, I.S.B.E., Vol. V. p. 3147: ver também o meu livro Bible Survey, pp. 136-138.
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1.13-16a
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gias neotestamentárias, foi designado chefe da administração civil; em outras palavras, era o governador, e como tal era o contato entre os judeus e os governadores persas. Sob a direção desses dois maravilhosos administradores, os que voltaram edificaram o altar do holocausto e lançaram o fundamento do templo (Ed 3.1-6). Os samaritanos zelosos e seus aliados interromperam a obra (Ed 4). Porém, no segundo ano de Dario, ou seja, cerca do ano 520 a.C., o profeta Ageu incentivou a reconstrução do próprio templo. Zacarias uniu-se a ele, e grandemente encorajou os construtores por meio de suas surpreendentes e belas predições messiânicas (3.6-10; 6.9-13; 9.9; 11.12,13; 12.10). Em uma dessas (6.9-13) vemos não somente a preparação profética, mas também a preparação tipológica para a vinda de Cristo; porque o sumo sacerdote Josué é claramente um tipo daquele que merece ser "coroado com muitas coroas". Porém, a preparação histórica tampouco está ausente; porque, guiando a mão dos governadores persas, com suas sábias políticas para com as nações conquistadas, permitindo-as retornarem aos seus próprios países, o decreto de Deus era firme, segundo o qual o Messias deveria nascer em Belém da Judéia (Mq 5.2). Isso explica a necessidade do regresso. Zorobabel, o descendente de Jeconias, deve fixar sua residência na terra da qual seus ancestrais foram expulsos, a fim de que, na linha de sua semente e sobre solo santo, pudessem nascer tanto José como Maria. 13-16a. A tábua de ancestrais prossegue: Zorobabel tornou-se o pai de Abiúde, e Abiúde tornou-se o pai de Eliaquim, e Eliaquim tornou-se o pai de Azor, e Azor tornou-se o pai de Zadoque, e Zadoque tornou-se o pai de Aquim, e Aquim tornou-se o pai de Eliúde, e Eliúde tornou-se o pai de Eliázer, e Eliázer tornou-se o pai de Natã, e Natã tornou-se o pai de Jacó, e Jacó tornou-se o pai de José. O período do exílio babilónico foi seguido pelo domínio medo-persa (536-333 a.C.), como já foi indicado. Este, por sua vez, foi sucedido pela soberania greco-macedônia e egípcia (333182
MATEUS
1.13-16a
200) e seu resultante — a hegemonia síria e (depois de uma amarga luta) macabéia (200-63). Então vieram os romanos. Visto que a maior parte do período coberto pelos vv. 13 -16 pertence à história intertestamentária, não causa surpresa que os homens cujos nomes são citados não aparecem noutra parte da Escritura. Eles viveram em meio a circunstâncias difíceis, sob o domínio de reis estrangeiros e entre vizinhos hostis. As vezes a perseguição se abateu ferozmente, especialmente durante a guerra dos Macabeus. Se todos os ancestrais aqui mencionados permaneceram fiéis à fé não sabemos. Mesmo um nome formoso — por exemplo, Eliúde = "Deus é o meu louvor", ou Eleazar = "Deus é o meu auxílio" — nem sempre necessariamente indica que aquele que o recebia era um homem de confiança pura no verdadeiro e único Deus; ainda que com freqüência provavelmente expresse o desejo fervoroso de pais devotos com referência ao seu filho recém-nascido. Todavia, sabemos que Zorobabel, mencionado nos vv.12 e 13, recebe elevados elogios na Escritura (Ed 5.1,2; Ag 1.12-15; 2.20-23; Zc 4.1 -10). As palavras: "Naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, tomar-te-ei, ó Zorobabel, filho de Salatiel, meu servo, diz o Senhor, e te farei como um anel de selar; porque te escolhi, diz o Senhor dos Exércitos" (Ag 2.23) põem este governador da Judéia, temente a Deus. sob a proteção especial de Deus, de modo que, quando rugem os tumultos por toda parte, sua segurança é garantida. Não indicam elas, também, que este servo eleito de Deus é um tipo do Messias, amado pelo Pai? E no tocante ao último da lista, José, Mateus vai mostrar que o marido de Maria era, sem dúvida, um homem de excelentes qualidades, alguém cuja confiança estava no Senhor, alguém que estava sempre disposto a obedecer. Depois do que foi dito anteriormente (ver pp. 148-151), já não nos surpreende que, para o período que se inicia com o que Lucas considera como o pai de Salatiel e termina com Jesus, este evangelista apresente 23 nomes; Mateus, por outro lado. t ai.
1.7-11
MATEUS
para o mesmo (ou aproximadamente o mesmo) período oferece somente quatorze. Ele novamente passa por alto os nomes de alguns ancestrais. A pergunta: "Donde Mateus extraiu sua informação?" já foi respondida (ver pp. 143-147). Pode-se acrescentar que, quanto à preservação das listas genealógicas (provavelmente escritas e orais), maior evidência é fornecida pelo fato de que Lucas sabia que Zacarias, pai de João Batista, era "do turno de Abias", e era casado com uma "das filhas de Arão" (Lc 1.5). Ele também sabia que José era "da casa e família de Davi" (2.4); e que a profetisa Ana era "da tribo de Aser" (2.36). Semelhantemente, Paulo sabia que ele mesmo era "da tribo de Benjamim" (Rm 11.1; Fp 3.5). Portanto, é evidente que a consciência de uma distinção entre as tribos continua no período neotestamentário, e que o povo sabia de que tribo e família cada um era pertencente. Os sacerdotes e os demais também devem ter conservado os registros, e estes foram transmitidos de geração a geração.132 Josefo foi capaz de dar a sua própria genealogia. Ele nos conta que a encontrou nos "registros públicos (The Life 1.6). Ver também sua obra Contra Apion 1.30. 16b. Depois das palavras "Jacó tornou-se o pai de José", Mateus acrescenta: marido de Maria, de quem nasceu Jesus, chamado Cristo. A verdade com referência ao nascimento virginal do Salvador é introduzida em linguagem simples e clara. Ela está implícita antes que expressa de forma plena. Agora não nos é dito que José tornou-se o pai de ou gerou a Jesus. O contraste marcante entre a extensa série de gerou... gerou... gerou... ^ t o r nou-se...] e a omissão abrupta desta palavra aqui em 1.16b põe em relevo, tão fortemente como nada poderia fazê-lo, o fato de que, em conexão com o nascimento do filho primogênito de 132
A conservação de tais listas era um costume muito antigo, que de modo algum estava limitado aos judeus. Os assírios tinham suas listas de reis, igualmente os babilônios; ver C.W. Ceram, Gods, Graves and Schoíars, Nova York, 1968, pp. 272, 314. 315. (Temos o mesmo editado em português pela Editora Melhoramentos, sob o título: Deuses, Túmulos e Sábios. Nota do tradutor.)
184
MATEUS
1.22,23
Maria, não houve um ato masculino de gerar que pudesse ser atribuído a José ou, no que diz respeito ao assunto, a qualquer outro ser humano. Isso nos lembra Gn 5, onde, depois de uma série de "e morreu" que começa no v. 5 e se repete a cada três versículos dali em diante, seis ocorrências ao todo, subitamente lemos com referência a Enoque: "e já não era, porque Deus o tomou" (v. 24). José é chamado "marido de Maria". A maneira na qual ele chegou a ser seu marido está relatado nos vv. 18-25. Para o presente é bastante saber que José, um carpinteiro de Nazaré (Mt 13.55; Mc 6.3), foi deveras o marido de Maria, porém nada teve que ver com a concepção de Jesus. Em sentido físico foi "de Maria", e não "de José", que Jesus nasceu. José foi o "pai" da criança unicamente em sentido legal. O sentido legal também era importante. Por meio de José, um filho de Davi, o direito ao trono de Davi foi transferido para Jesus, filho de Maria, assim chamado em virtude de ser ele quem salvaria o seu povo de seus pecados (1.21). Deus o separou e o qualificou para realizar essa tarefa, sendo ele o Ungido de Deus, o Cristo (Is 61.1; cf. Lc 4.18-21; e ver comentário sobre Mt 1.1). 17. O registro dos ancestrais é sumariado nas palavras: Assim todas as gerações de Abraão a Davi (foram) quatorze gerações; e de Davi à deportação para Babilônia, quatorze gerações; e da deportação para Babilônia a Cristo, quatorze gerações. Resta muito pouco a dizer, uma vez que ficou explicado o significado dessa tríade de quatorze gerações, e o caráter legítimo do número quatorze, em vez de treze, com referência a terceiro grupo, já foi substanciado. Acrescenta-se apenas isto: como sempre, assim também aqui, a palavra todas deve ser interpretada à luz do seu contexto; daí, o significado é: todas as gerações abrangidas no registro de ancestrais. Aqui ocorre, pela primeira vez em Mateus, a palavra "gerações". É uma "etapa" na sucessão de descendência natural, um "conjunto" de ancestrais. "A soma total de contemporâneos" é provavelmente o significado em 11.16; 12.39,41,42,45; 16.4; 185
1.22,23
MATEUS
17.17; 23.36. Deste significado é fácil a transição para uma nação (judia) ou povo (24.34). Assim também o é para o período abrangido por uma geração; ver C.N.T., sobre Ef 3.20,21. 18 Ora, o nascimento de Jesus Cristo aconteceu assim: Quando sua mãe Maria se desposou com José, antes que começassem a viver juntos, achou-se ela grávida pelo Espírito Santo. 19 Ora, José, seu esposo, resolvido fazer o que era justo e não querendo expô-la ao vexame público, tinha em vista divorciar-se dela em silêncio. 20 Porém, enquanto ele refletia sobre isto, o que aconteceu? Um anjo do Senhor lhe apareceu durante um sonho e disse: "José, filho de Davi, não hesites em receber Maria, tua esposa, em tua casa, porque o que foi gerado nela é do Espírito Santo. 21 Ela dará à luz um filho, e chamarás o seu nome Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados." 22 Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi falado pelo Senhor por meio do profeta: 23 Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome será Emanuel, que traduzido é Deus conosco. 24 Ao despertar-se de seu sonho, José fez o que o anjo do Senhor lhe ordenara, e levou sua esposa para casa, 25 porém não teve relações sexuais com ela até que ela deu à luz um filho; e o chamou Jesus.
1.18-25
O Nascimento de Jesus Cristo Cf. Lucas 2.1-7
18. O que já estava implícito na genealogia é aqui claramente ensinado: Ora, o nascimento de Jesus Cristo aconteceu assim: Quando sua mãe Maria se desposou com José, antes que começassem a viver juntos, achou-se ela grávida pelo Espírito Santo. Maria "havia sido desposada" — solenemente prometida em matrimônio — por José. A festa de núpcias e o viver juntos era uma questão de tempo. Mateus toma como ponto de partida um tempo pouco depois ao dos esponsais. Essa cerimônia entre os judeus não deve ser confundida com o compromisso matrimonial moderno. Era muito mais sério e comprometedor. O noivo e a noiva juravam fidelidade mútua na presença de testemunhas. Num sentido restrito, isso era essencialmente o matrimônio. Assim também nesse caso, como se faz claro do fato de que desde aquele momento José é chamado esposo de Maria (v.19); 186
MATEUS
1.22,23
Maria é chamada esposa de José (v.20). Segundo a lei do Antigo Testamento, a infidelidade de uma mulher desposada era castigada com a morte (Dt 22.23,24). Todavia, ainda que os dois estivessem agora legalmente "desposados", considerava-se próprio que passasse um intervalo de tempo antes que marido e mulher começassem a viver juntos na mesma casa. Ora, foi antes que José e Maria começassem então a viver juntos, com tudo o que implica o viver doméstico e as relações sexuais, que Maria descobriu estar grávida. Ela ainda era virgem, e não estava "casada" no sentido pleno da palavra. Ela entendeu imediatamente que a causa de sua condição vinha da poderosa operação comunicadora de vida da parte do Espírito Santo. Ela o soube porque o anjo Gabriel lhe contara que tal iria acontecer (Lc 1.2635). Ela sabia que não fora José quem a engravidara. Naturalmente que José tomou ciência da condição de Maria. A sua reação é assim descrita: 19. Ora, José, seu esposo, resolvido fazer o que era justo e não querendo expô-la ao vexame público, tinha em vista divorciar-se dela em silêncio. Ignorando a razão da condição de Maria e tirando a conclusão natural, isto é, que Maria lhe fora infiel, José não conseguia ver uma forma clara de levar Maria para casa e viver com ela na relação costumeira de casados. Não quebrara ela o seu solene juramento? José deve ter sofrido muito sobre o que fazer corretamente em tais circunstâncias. Ele amava Maria e queria tê-la consigo como sua esposa, porém, acima de tudo, ele era um homem justo (cf. Jó 1.8; Lc 1.6), um homem de princípios, que de todo o coração queria viver de conformidade com a vontade de Deus, o Deus que levava tão a sério a quebra dos votos matrimoniais. Contudo, José era também um homem bom. Segundo o costume da época, duas avenidas se abriam diante dele: a. estabelecer uma demanda judicial contra Maria; ou b. entregar-lhe uma carta de divórcio, despedindo-a silenciosamente, ou seja, sem envolvê-la em qualquer procedimento judicial (ver Dt 24.1,3 e Mt 5.32). A primeira alternativa (a.), ainda que na prática já não houvesse sentido na morte por apedrejamento, porquanto a lei fora modificada por tantas restrições humanas que essa possibi187
1.22,23
MATEUS
lidade poderia ser descartada sem medo, todavia exporia Maria à ignomínia pública, o que por todos os meios José queria evitar. Conseqüentemente, decidiu ele pela última alternativa (b.), ou seja, despedi-la em silêncio, mesmo que isso não fosse de todo agradável diante do seu forte afeto por ela, como o revela o v. 20. Porém, enquanto ele refletia sobre isto, o que aconteceu?133 Um anjo do Senhor lhe apareceu durante um sonho e disse: José, filho de Davi, não em hesites receber Maria, tua esposa, em tua casa, porque o que foi gerado nela é do Espírito Santo. Embora José houvesse se decidido quanto à atitude a tomar, parece-lhe impossível dar o passo decisivo na solução do caso. Enquanto essas coisas giravam em sua mente, ele cai no sono e começa a sonhar. Num ato dramaticamente repentino, durante esse sonho um anjo — não se nos revela o seu nome (nem em 2.13,19); contraste-se Lc 1.19,26 — aparece e lhe comunica a informação que já fora dada a Maria (Lc 1.35), ou seja, que Maria concebera pelo poder do Espírito Santo e não pelas vias naturais. Para fortalecê-lo e confortá-lo, o anjo se lhe dirige como filho de Davi. José, no cumprimento da promessa messiânica, considerado como herdeiro legal de Davi e como quem transmite esta honra a Jesus, não é passado por alto, nem aqui nem na genealogia precedente, que em certo sentido era realmente a árvore genealógica de José. O anjo diz a José que não hesitasse ou temesse em assumir Maria, sua esposa, e que a levasse para sua casa. As palavras "não hesites" subentendem 133
O original iSou apresenta um problema. Muitos tradutores modernos ignoram completamente a palavra. Alguns consistentemente a reproduzem por meio da expressão "eis aqui". O uso tão freqüente de tal expressão provavelmente não seja a melhor solução. Todavia, a tradução perde algo da vivacidade do original se ela é simplesmente ignorada, especialmente quando, como aqui em 1.20, a aparição repentina de um anjo oferece uma cena cheia de dramaticidade. O seguinte não seria um bom procedimento: traduzir i5ou de diversas formas dependendo do grau de vivacidade implícito no contexto correspondente? Minha tradução, neste caso — o método de pergunta e resposta —, é uma forma de reter e reproduzir o caráter chamativo do original. Deixa o caminho aberto para uma variedade de traduções diferentes em outras passagens tais como: "eis aqui", "vede", "olhai", "ouvi", "repentinamente", "era uma vez", etc., quase qualquer expressão que desperte interesse.
188
MATEUS
1.22,23
que havia algo no mais profundo do coração de José que revelava que ele queria realmente recebê-la, porém não se atrevia? Então, que ele não temesse cumprir o seu desejo e o de Maria, porquanto o único obstáculo fora retirado: Maria não fora infiel ! José pode confiar em levar sua esposa para sua casa; de fato, éIhe ordenado fazê-lo. O conteúdo dessa revelação angélica deve ter sido o seguinte: a. Mui assustador, porque, à parte da revelação especial, a idéia de um nascimento virginal não se encontra em lugar algum na literatura judaica antiga. 134 Quanto a Is 7.14, ver pp. 192-201. Os judeus eram crentes firmes no matrimônio e na família, com tudo o que isso implica (Gn 1.27,28; 9.1; 24.60; 25.21; 30.1; SI 127.3-5; Pv 5.18). No tocante à opinião de que a idéia de um nascimento virginal foi extraída de fontes pagãs, ver p. 204. Tal idéia não tem nenhum apoio de evidência sólida. Para José, então, a idéia de uma concepção virginal era algo completamente novo. Ele jamais a teria aceito se a informação não viesse dos lábios de um anjo vindo de Deus. b. Mui consolador. Ele deve ter-se enchido de alegria, por Maria e por si mesmo. Compreendeu que agora poderia ser o protetor de Maria, fazendo provisões para suas necessidades físicas e em defesa de sua honra contra toda e qualquer calúnia maldosa. O filho, igualmente, agora teria um "pai". Sobretudo, envolvida nessa verdade do nascimento virginal está a garantia da salvação para o povo de Deus, porquanto à parte desta espécie de nascimento torna-se difícil entender como Cristo poderia ser seu Salvador. Ver pp. 182,183. A mensagem do anjo prossegue: 21. Ela dará à luz um filho, e chamarás o seu nome Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados. Todos se interessam pelo nascimento deste menino: a. O Espírito Santo, pelo exercício de cujo poder a criança é concebida; b. Maria, que, sendo o instrumento voluntário do Espírito na concepção e no nascimento da criança, torna-se "bendita entre as mulheres" (cf. Mt 1.21 com Le 1.42); e c. José que, tal como Maria (Lc 1.31), recebe ordem de dar 134
Sobre isso, ver S.BK., Vol. IV, p. 49.
189
1.22,23
MATEUS
nome ao menino; todavia, não pode ser qualquer nome, senão o nome Jesus. Esse nome já foi explicado (ver comentário sobre 1.1), mas ainda quando não tivesse sido explicado, não existiria explicação mais adequada que a oferecida pelo próprio anjo, ou seja: "ele salvará". A quem salvará? Não a todos, mas ao "seu povo" (cf. Jo 3.16), "suas ovelhas" (Jo 10.11). E sempre Deus, unicamente Deus que, em seu Filho e por meio dele, salva o seu povo. Enquanto alguns confiam em carros e outros em cavalos (SI 20.7), na força física, no conhecimento, na reputação, no prestígio, na posição, na tecnologia grandiosa e impressionante, nos amigos influentes e nos generais intrépidos, nenhuma dessas coisas, operando singularmente ou em conjunto com todas as demais, é capaz de livrar o homem de seu principal inimigo, o inimigo que pouco a pouco vai consumindo o seu próprio coração, ou seja: o pecado; ou, como aqui, os pecados, de pensamentos, de palavras e de atos; os de omissão, os de comissão e os de disposição interior. Todas aquelas várias formas em que o homem "erra o alvo", ou seja, a glória de Deus. Limpar corações e vidas requer nada menos que a morte redentora de Jesus e o poder santifícador de seu Espírito. A ênfase marcante e prevalecente que, desde o Antigo Testamento, é posta no fato de que Deus é soberano, e que somente ele pode salvar, pode ser percebida claramente nas seguintes passagens: Gn 49.18; 2Rs 19.15-19; 2Cr 14.11; 20.5-12; SI 3.8; 25.5; 37.39; 62.1; 81.1; Is 12.2; Jr 3.23; Lm 3.26; Dn 4.35; Mq 7.7; Hc 3.18; Zc 4.6; e um grande número de outras passagens igualmente claras e preciosas. No Novo Testamento a ênfase não é menos forte; por exemplo: Mt 19.28; 28.18; Lc 12.32; 18.13,27; Jo 14.6; At 4.12; Ef 2.8; Fp 2.12,13; Ap 1.18; 3.7; 5.9; 19.1,6,16; etc. Ser salvo significa: a. ser emancipado do maior de todos os males — a culpa, a corrupção, o poder e o castigo do pecado; b. receber a posse do maior de todos os bens. Ainda que nessa passagem somente o lado negativo seja expresso, ou seja, salvar do pecado, o lado positivo é imediatamente subentendido. Alguém não pode ser salvo de algo sem que também seja salvo 190
MATEUS
1.22,23
para algo: a verdadeira felicidade, a paz com Deus que transcende a todo entendimento, a liberdade, a alegria inefável e cheia de glória, as orações respondidas, um testemunho eficaz, a segurança da salvação, etc. Sobre o conceito salvação, ver C.N.T., sobre ITm 1.15. A promessa do anjo a José, pois, é esta: que esta criança deve chamar-se Jesus — que, em síntese, significa Salvador —, porque no sentido mais pleno e mais glorioso salvará o seu povo dos seus pecados. Termina a mensagem do anjo. Mateus mesmo resume agora o seu relato, mostrando que o nascimento virginal desta gloriosa criança que será o Salvador é o cumprimento da profecia. Ele diz: 22,23. Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por meio do profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome será Emanuel, que traduzido é Deus conosco. Essa é a primeira de uma longa série de profecias a que Mateus faz referência a fim de mostrar que Jesus é realmente o Messias há muito esperado. Para a lista completa, ver pp 120122. Como já foi previamente indicado, o propósito do evangelista é trazer à mente de seus leitores, judeus em sua maioria, essas predições, e que pudessem abraçar Jesus por meio de uma fé viva, e pudessem proclamar a judeus e a gent-os as boas novas de salvação por meio deste Mediador. A fórmula introdutória "Tudo isto aconteceu para que..." (v.22) deixa claro que, como Mateus por inspiração o vê, quaisquer que tenham sido os cumprimentos antecipados dessas predições ao longo da antiga dispensação, elas alcançam a sua consumação em Jesus Cristo, e tão-somente nele. Isso não subentende que todas essas profecias tivessem seu cumprimento inicial além do cumprimento final que as coroa. Cada caso terá de ser decidido com base em seu próprio mérito. A fórmula introdutória também traz a lume que a profecia a ser citada tem sua origem no próprio Deus, não na mente do profeta. De fato, no presente caso o nome do profeta nem sequer é mencionado! As palavras foram ditas pelo Senhor por meio do profeta. Este agiu como instrumento de Deus. 191
1.22,23
MATEUS O Fundo Histórico de Isaías
Voltando agora à própria citação (v. 23), obviamente foi tomada de Is 7.14.135 Convém fazer uma breve revisão dos antecedentes históricos: Um pouco mais de sete séculos antes de Cristo o trono de Acaz, rei de Judá, foi ameaçado por uma coligação do rei de Israel (Peca) e do rei da Síria (Rezin). A ameaça desses dois conspiradores consistia em destruir a dinastia de Davi e estabelecer um rei de sua própria escolha, "o filho de Tabeel" (Is 7.6). O que seria dessa gloriosa promessa se esse complô tivesse êxito? E o que seria da predição messiânica de 2Sm 7.12 e 13? O Redentor nasceria como o filho e herdeiro legal de Davi? Tudo isso estava em jogo (ver Ap 12.4). Ante essa conjuntura crítica, Isaías é enviado a Acaz para admoestá-lo a depositar sua confiança em Jeová, e pedir um sinal do cuidado protetor de Deus. Deveria pedir esse sinal, esse milagre, mesmo que fosse da maior profundeza ou da maior altura. Mas o ímpio Acaz, que depositou sua confiança na Assíria e não em Jeová, simulou uma escusa piedosa e num arremedo de humildade recusou o sinal. O profeta, revelando sua indignação (7.13), pronunciou o oráculo do Senhor nas palavras: "Portanto, o Senhor mesmo vos dará136 um sinal: eis que a137 'almah conceberá, etc." 135
Com a LXX Mateus traduz ha-almah: ij 7iap9évoç. Em vez de K c d e a e i ç , "chamarás"' da LXX, e qara 'th, "ela chamará" (a menos que seja interpretado com um participio feminino), Mateus escreve (segundo o melhor texto) K a ^ é o o w i v , "chamarão" = "será chamado (seu nome)". Mateus compreende que não somente no apreço de Maria, mas no de todos os crentes, Jesus é "Deus conosco". O modo como Mateus cita não representa um afastamento essencial do original hebraico; a menos que o seu uso de KaÀ.éaowiv seja considerado assim, o que pessoalmente não creio.
130
Note-se o plural: o sinal não é somente para Acaz, mas também para toda a casa de Davi e, num sentido, para todo aquele que lê ou ouve a seu respeito. Se o artigo, que aparece tanto no hebraico como no grego (tanto no grego da LXX de Is 7.14 como em Mt 1.23), deve ser reproduzido em português por meio do artigo definido "a" e não do indefinido "uma", é difícil de determinar, em virtude de que o uso idiomático nem sempre é o mesmo em nosso idioma como o é no hebraico e no grego. Pelo contexto inteiro de Is 7.14 e também de Mt 1.23 dá-se a impressão de que tem-se em vista uma virgem Çalmah) definida, e não qualquer
137
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MATEUS
1.22,23
Entre aqueles que crêem no nascimento virginal de Cristo há dois grupos principais de intérpretes acerca de Is 7.14: a. aqueles que defendem a teoria da dupla referência, e b. aqueles que defendem a teoria da referência única. Segundo o primeiro grupo, a profecia tem referência direta aos eventos e circunstâncias contemporâneos, ou seja, ao que aconteceu durante os dias de Acaz e Isaías. Todavia, indireta e finalmente, ela se cumpriu no nascimento virginal de Cristo. De acordo com o segundo grupo — o ponto de vista da referência única —, a passagem tem um único significado: ela se refere direta e imediatamente ao "nascimento virginal" de Cristo; mais precisamente, à sua concepção no ventre de Maria sem o concurso da união sexual, e ao nascimento que se seguiu a essa concepção. Teoria da Dupla Referência'3H Segundo esta teoria, no contexto de Isaías não há qualquer referência a um nascimento miraculoso ou "virgem". Ao falar de uma 'almah, o profeta se referia a uma jovem na idade casadoura que, tendo-se casado, conceberia e daria à luz um filho e lhe poria o nome de Emanuel, que significa "Deus conosco". Ao dar tal nome à criança, ela estaria confessando sua confiança em Deus. Ela estaria dizendo que mesmo em meio aos tempos de tribulação estaria firmemente convencida de que o Senhor não abandonaria o seu povo, mas que lhe proveria o sus'almah. Por isso, ao lado de vários outros tradutores dou a preferência a "a", sem, contudo, dar um peso decisivo a esse argumento. 138 Entre os muitos cujos nomes poderiam figurar na lista — porquanto é um ponto de vista muito popular — menciono somente os seguintes como representativos. Todavia, deve-se entafizar que nos diversos detalhes estes autores apresentam pontos de vista variados: * Charles R. Erdman, Exposition of the Gospel according to Mathew, Filadélfia, 1920, p. 26. * A. W. Evan, art. Immanuel, I.S.B.E., Vol. Ill, pp. 1457, 1458. * G. H. A. Ewald, The Prophets ofthe Old Testament. Londres, 1875-81, Vol. II. p. 84s. * J. Ridderbos, Jesaja (Korte Verklaring), Kampen, 1962, Vol. I, p. 64. * R. V. G. Tasher, The Gospel according to St. Matthew (Tyndale New Testament Commentaries), Grand Rapids, 1961.
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MATEUS
tento e o protegeria de seus inimigos. Está claro, desse ponto de vista, que o nome Emanuel não descreve a criança, e, sim, a mãe. Isso a caracteriza como uma mulher de fé em Deus. Todavia, prossegue a teoria, Mateus estava plenamente certo ao aplicar essas palavras de Isaías a um evento de longo alcance, ou seja, o nascimento miraculoso daquele que é o próprio Emanuel. Ou, pondo de outra forma, ainda que Is 7.14 não faça referência direta à concepção e ao nascimento do Messias, todavia, em seu sentido mais profundo, a passagem não atingiu a sua plenitude senão quando se cumpriu nele. Argumentos em Apoio da Teoria da Dupla Referência 1. Se a intenção de Isaías era a de sublinhar a virgindade da mãe da criança, teria ele usado o termo bethulah e não 'almah. Uma 'almah é uma jovem na idade casadoura. Podemos imaginar a jovem de Is 7.14 como sendo antes de tudo ainda solteira, que é o sentido mais usual do termo; então, casando-se e, de um modo muito natural, concebendo e dando à luz um filho. Em parte alguma Isaías chama à mãe uma bethulah ou virgem. 2. É verdade que Mateus, ao traduzir Is 7.14, usa o termo virgem. Todavia, deve-se ter em mente que o evangelista com freqüência se afasta da tradução literal quando cita ou se refere às profecias do Antigo Testamento. Compare-se, por exemplo, Mt 4.15 com Is 9.1,2. Portanto, o uso que Mateus faz do termo virgem não prova que Isaías tinha em mente uma virgem. Naturalmente, Mateus tinha pleno direito de aplicar essa passagem ao nascimento virginal de Cristo. Em Cristo Is 7.14 atinge o seu cumprimento último. 3. E natural supor que o nome Emanuel, como usado por Isaías, descreva a disposição ou pensamento da mãe, sua confiança em Deus, antes que o caráter do filho ou o seu papel na vida. O mesmo não pode ser dito acerca da origem de diversos outros nomes, tais como o de Rúben, Simeão, Levi, Judá (Gn 29.31-35), José (Gn 30.24), Benoni e Benjamim (Gn 35.18), para mencionar apenas uns poucos? Em todos eles o nome des194
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creve o doador antes que o receptor. Portanto, é evidente que também em Is 7.14 não é preciso considerar o nome Emanuel como descritivo do receptor, como se Emanuel fosse um sinônimo de Messias, e como se sua mãe fosse a virgem Maria. Esse não pode ter sido o significado primário desses termos. Trata-se de uma interpretação ou aplicação posterior, a de Mateus, e como tal é plenamente justificada. 4. O v. 16 revela que a profecia de Isaías não faz referência a um futuro distante, senão aos dias de Acaz. É em seu próprio tempo e logo depois que os reinos ou regiões, cujos governantes ele aborrece, serão destruídos. Ora, uma vez que o v. 16 (e também o 15) está em conexão mais estreita possível com o v.14, como, pois, pode o v. 14 referir-se ao nascimento virginal de Cristo, um evento que ocorreu mais de sete séculos depois? Teoria da Referência Única Esta teoria não nega que as palavras de Is 7.14 apontavam para os dias de Acaz. Ao contrário, ela insiste nesse ponto. Todavia, ela defende o fato de que, mesmo no contexto de Isaías, a mãe desse filho é definitivamente uma virgem, ou seja, Maria, e que o filho é o Messias. L 'Esta visão do profeta se estende para além dos eventos em questão... e ela vê neste Filho que nasceria, este Filho que seria dado — que não pode ser outro senão o Rei Messiânico —, a segurança do cumprimento das promessas de Davi e a esperança para o futuro do mundo." 139 "Se Is 7.14 se referisse a uma mulher casada, provavelmente faria uso de um termo distinto de 'almah, e isso de forma mui natural... Por que um nascimento ordinário seria considerado como um 'sinal'?... Porém, não é simplesmente o uso desta única palavra [sinal] o que nos leva a esperar algo miraculoso naquilo que o profeta passa a assumir. Igualmente sugestiva é a forma como o sinal é introduzido. A passagem toda está expresJames Or. The Virgin Birth of Christ, Nova York, 1924, ver pp. 133-136.
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sa em termos tais como a induzir o leitor a sentir um profundo mistério quando compreende a mulher e seu filho."140 Em apoio de sua própria posição, esta segunda teoria, a da referência única, apresenta as seguintes Respostas aos Argumentos da Teoria da Dupla Referência Resposta a 1. Quanto a 'almah versus bethulah: é um fato que a segunda significa virgem em Gn 24.16; Lv 21.3; Jz 21.12; enquanto J1 1.8 provavelmente se refira a uma mulher que não é virgem, uma viúva que durante os primeiros anos de sua vida matrimonial tivesse perdido seu marido, por quem agora pranteia.'41 Por outro lado, uma 'almah, em todas as passagens nas quais essa palavra é usada de forma indisputável, significa donzela (Gn 24.43; Êx 2.8; SI 68.25; Pv 30.19; Ct 1.3; 6.8). Refere-se a uma jovem, como Rebeca, antes mesmo de ver a Isaque, e como Miriam, irmã de Moisés. A inferência lógica provavelmente seja que também aqui em Is 7.14 o significado é basicamente o mesmo. O desafio de Lutero ainda permanece: "Se um judeu ou um cristão puder provar-me que em alguma passagem da Escritura 'almah significa mulher casada, eu lhe darei 100 florins, embora somente Deus saiba onde poderei encontrá-los." Ora, o fato de que uma jovem solteira se torna grávida e dá à luz um filho é introduzido aqui em Is 7.11-14 como algo maravilhoso, como algo sobre o qual ainda não se ouviu. Os leitores são estimulados a esperar um anúncio de algo completamente assombroso. Certamente é muito difícil, ao interpretar Is 7.14, para alguém crer que a jovem aqui indicada possa conceber por um ato de imoralidade.142 A conclusão inevitável é 140
J. Gresham Machen, The Virgin Birth ofChrist, Nova York e Londres, 1930. (Grand Rapids. 1965), ver pp. 288-291. Pode- se encontrar o mesmo argumento, baseado no uso da palavra "sinal", em Justino o Mártir, Diálogo com Trifo. ch. 84, escrito nos meados do segundo século. 141 Assim também R. C. Foster, Studies in the Life ofChrist, Introduction and Early Ministiy. Grand Rapids, 1966, p. 165. Na literatura pré-mosaica essas duas palavras eram às vezes usadas de forma intercambiável. Ver R. H. Gundry, The Use of lhe Old Testament in St. Mathew s Gospel, p. 227. 142 'todavia, mesmo isso se tem sugerido de forma séria, ou seja, pelo dr. Naegelsbach, Lange. Commentary on the ftoly Scriptures, Nova York, 1878, reimpressão em
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que ela era virgem quando concebeu: nenhum homem a levara a esse estado. Podemos acrescentar a opinião de dois renomados eruditos em Antigo Testamento a fim de obter mais confirmação desta posição: "A palavra 'almah... jamais é usada para uma mulher casada, nem na Bíblia nem em qualquer outro lugar. A nova evidência de Rasshamra é notavelmente interessante nesse ponto." Com referência a bethulah, diz esse autor: "A palavra em questão é ambígua. Significa uma virgem, uma virgem desposada ou uma mulher casada? Estou convencido de que pode significar qualquer uma das três." E prossegue: "Isaías [em 7.14] usou a única palavra no idioma hebreu ['almah] que jamais é empregada em referência a uma mulher casada." Ainda mais: "A palavra 'almah se aproxima mais de moça, donzela. A palavra virgem, entretanto, enfatiza o caráter sobrenatural do nascimento, e por isso deve ser preferida. Em nenhum caso a palavra dessa passagem deve ser traduzida pela expressão vaga e débil mulher jovem ,"143 "Agora quero afirmar sem delonga que a tradução mulher jovem (em Is 7.14) deve ser rejeitada." O autor dessa afirmação mostra, pois, que a palavra 'almah, sempre que ocorra no Antigo Testamento, indica as pessoas do sexo feminino que ainda não entraram na relação comumente associada com o casamento. Ele chama a atenção para passagens como o título do Salmo 46 e 1 Cr 15.20, as quais nada provam em sentido contrário, porquanto a palavra usada nessas passagens "não é suficientemente clara". Além disso, ele mostra que o argumento segundo o qual bethulah deve significar "virgem" não se coaduna com os fatos. Nesta conexão ele faz referência a J11.8 (já discutida; ver p. 196, acima). Ele prossegue: "Por essas razões, é definitiva-
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Grand Rapids, sem data, vol. sobre Isaías, pp. 123-125. Fala de "uma mulher caída" e "um filho ilegítimo". Qualquer refutação é desnecessária! Edward J. Young, artigo sobre "The Virgin Bisth", em The Banner, 15 de abril de 1955. Cf. suas observações em Studies in Isaiah, Grand Rapids, 1954, pp. 161185. 144. G. Ch. Aalders, GTT n° 5 (1953), pp. 132, 133. Ver também R. D. Wilson, PTR n° 24 (1926), pp. 308-316. 197
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mente precário fazer uso da palavra mulher jovem em Is 7.14, como tradução de 'almah."U4 Conclusão: O argumento segundo o qual se a intenção de Isaías fosse sublinhar a virgindade, ele faria uso de bethulah em vez de 'almah não convence. A tradução "virgem" se coaduna melhor com o contexto. Resposta a 2. Quanto à referência que Mateus faz de Is 7.14, se Isaías estava deveras referindo-se a uma virgem, como ficou demonstrado na resposta acima, não há discrepância alguma entre Is 7.14 e Mt 1.23. Por outro lado, se Isaías estava pensando numa mulher casada que, com a ajuda de seu esposo, concebeu e deu à luz um filho, é difícil ver como Mateus podia considerar o nascimento de Cristo "da virgem Maria" como um cumprimento de Is 7.14. A 'almah mencionada em Is 7.14 não pode ser ao mesmo tempo virgem e não-virgem. Além disso, é claro que como 'almah é que ela concebe e dá à luz um filho.145 O intérprete não tem o direito, como às vezes se faz, de introduzir em primeiro lugar uma mulher jovem e solteira e em seguida, sub-repticiamente, por assim dizer, casá-la antes que conceba e dê à luz um filho. Admite-se livremente que, sob a direção do Espírito Santo, Mateus e os demais escritores do Novo Testamento às vezes faziam de uma passagem uso diferente daquele que a passagem tinha originalmente, mas que a nova aplicação a uma nova situação não é de forma alguma contraditória. Quanto a Mt 4.15 (em confronto com Is 9.1), ver comentário sobre essa passagem. Resposta a 3. Quanto à estreita relação entre (a) um nome e seu doador, ao invés de (b) um nome e seu receptor ou pessoa que o leva, ainda que amiúde se dê o primeiro caso, há também muitas instâncias nas quais o segundo caso é válido: Eva (Gn 3.20), Noé (Gn 5.29), Abrão e Abraão (Gn 17.5), Sarai e Sara (Gn 17.15), Esaú (Gn 25.25), Jacó e Israel (Gn 27.36; 32.28), Noemi e Mara (Rt 1.20), Nabal (1 Sm 25.3,25), Jesus (Mt 1.21), Pedro (Mt 16.18) e Barnabé (At 4.36). É legítima, pois, a se144
G. Ch. Aalders, GTT N° 5 (1953), pp. 132, 133. Ver também R. D. Wilson, PTR N° 24 (1926), pp. 308-316. 145 Assim também R. H. Gundry, op. cit.. pp. 226,227. 198
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guinte pergunta: "A qual dessas duas classes de nomes' 46 pertence Emanuel?" Evidentemente ao último caso, como o indica a conexão entre Is 7.14; 8.8; e 9.6. Esse Emanuel de 7.14 e 8.8 é o filho que nasceu, o filho que é dado, sobre cujos ombros repousa o principado, e cujo nome é "Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz" (9.6. Ver também 11.1 ss.). Há também uma estreita conexão entre essas passagens de Isaías e Mq 5.2 (cf. Is 7.14 com Mq 5.3), onde a mesma pessoa é descrita como Aquele "cujas origens são desde os tempos antigos, desde a eternidade", e onde é predito que o seu nascimento seria em Belém. De forma clara, o nome Emanuel descreve Aquele que o leva, ou seja, o Messias! "Em toda a Escritura os nomes são dados amiúde como significando o caráter, e isso é especialmente proeminente em conexão com revelação de Deus aos homens, e a revelação da vinda do Messias que se desenvolve gradualmente certamente não é uma exceção; desde a semente da mulher (Gn 3.15) até ao "Senhor Jesus' (Ap 22.20), o Messias é constantemente revelado pelos nomes que lhe são atribuídos. Tendo em mente essa tendência geral da revelação e a conexão considerada entre 7.14 e 9.6 e 8.8, juntamente com o método enfático de apresentá-la, torna-se evidente que Emanuel, 'Deus conosco', se refere ao caráter do menino, e em conseqüência é outro nome a dar testemunho da Deidade do Messias."147 Ora, se é verdade que o nome 146
De modo algum essas duas são as únicas classes de fontes de nomes. O nome poderia ser ocasionado por um acontecimento (Icabode). ou por circunstâncias que concorrem para o nascimento do menino (Saul. que significa pedido, ou Elisama. Deus ouviu). Também são freqüentes os patronímicos (Bar-Jesus). Havia matronímicos (Bat-Sheba). Muitos nomes expressavam também uma relação peculiar com Jeová (Josué e muitos outros) ou com Deus (Eli). Em alguns eram trocados El (Deus) e Jeová (Elias: Jeová e Deus). Em vários nomes os motivos que subjazem à origem sobrepõem. Este é um tema amplo. Ver mais a respeito em C.N.T. sobre Filipenses, pp. 138. 139. Ver ainda .I.D. Davis, artigo "Mames, Proper", I.S.B.E.. Vol. IV, pp. 2113- 2117; A. F. Key. "The Giving of Proper Names in the Testament", JBL (março de 1964), pp. 55-59.
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Earl S. Kalland, The Deiíy of the Old Testament Messiah. With Special Reference to Iiis Fulfdlment in Jesus of Nazareth, tese doutoral apresentada à faculdade de Gordon College of Theology and Missions, 1942 (arquivo da Biblioteca do Seminário Teológico Gordon-Conwell), p. 104.
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Emanuel mencionado em Is 7.14 se refere ao Messias, como já ficou estabelecido, não é igualmente verdade que a virgem que, pelo poder do Espírito Santo, concebeu e deu à luz um filho é deveras Maria? Resposta a 4. Quanto à relação entre os vv.14 e 16, podese entender que Isaías está dizendo: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho... Antes que este menino, que o meu olho profético já antevê nascido, saberá rejeitar o mal e escolher o bem — isto é, dentro de pouco tempo — a terra cujos dois reis aborreces será abandonada." "Esta interpretação, cremos nós, de modo algum é impossível... as objeções feitas a ela se dissolvem completamente quando se lê a exaltada linguagem do profeta na forma em que se deve ler a linguagem de uma visão profética.'" 48 Descrever o futuro como se este já fosse presente é característica de Isaías. Pode alguém ler Isaías 53 sem ser surpreendido pelo fato de que o profeta, por divina inspiração, escreve como se os detalhes da humilhação de Cristo e sua conseqüente exaltação estivessem acontecendo diante de seus próprios olhos, sim, como se já tivessem acontecido? Porém, ainda quando para alguns esta resposta ao ponto 4 não pareça convincente, é preciso ter em mente que Mateus não está citando Is 7.16 e, sim, Is 7.14. Seja qual for a explicação correta do v. 16, a conclusão inevitável parece ser que Is 7.14 se refere claramente ao Messias: as passagens com as quais está indubitavelmente ligada (Is 8.8; 9.6; 11.1-5; Mq 5.2ss) como que formando uma corrente inquebrável, são enfaticamente messiânicas para argumentar de outra forma. A profecia de Is 7.16 se cumpriu. Tiglate-Pileser veio pouco tempo depois que a predição foi pronunciada. Ele levou um grupo dos habitantes do reino de Peca e não fez nenhuma objeção quando Peca foi assassinado por Oséias (2Rs 15.29,30). Também avançou contra o reino de Rezin, tomou Damasco, sua capital, deportou seu povo e matou Rezin (2Rs 16.9). 148
J. Greshan Machen, The Virgin Birth, p. 292. Semelhantemente J. Orr, op. cit., p. 135.
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Não foi este cumprimento literal da profecia um sinal claro e evidente por meio do qual Acaz e toda a casa de Davi podiam estar seguros de que o Senhor estava montando guarda sobre a realização de seu próprio plano referente à promessa messiânica? Não foi o fracasso dos dois inimigos, Peca e Rezin, em sua intenção de acabar com a dinastia de Davi, um sinal claro de que a linhagem davídica do Messias seria protegida, de modo que a predição messiânica que se encontra em 2Sm 7.12 e 13 e noutros lugares pudesse cumprir-se, ou seja, que o Redentor vindouro pudesse nascer como filho e herdeiro legal de Davi? Assim posto, faz-se claro que a profecia do v. 14 se enquadra de forma belíssima dentro deste contexto. Não há necessidade de introduzir-se nesta passagem uma suposta referência a Abi, a esposa de Acaz, e seu filho Ezequias (2Rs 18.2); ou à esposa de Isaías e um de seus filhos; ou a alguns de seus contemporâneos.149 A virgem é Maria. Emanuel é Cristo. A Citação Que Mateus Faz de Isaías 7.14 Mateus, pois, tem toda razão de apelar para Is 7.14, e afirmar que a gravidez de Maria pelo poder do Espírito Santo, sem o concurso de José, foi o cumprimento dessa predição. Foi incluído também na antiga profecia que o nome desse filho seria Emanuel e foi reafirmado substancialmente em Is 9.6: "Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu... e o seu nome será... o Deus Forte." Há muito pouca diferença de significado entre "nos (ou para nós)... o Deus Forte" e "Deus conosco", que é o significado literal de Emanuel. 149
"Não somente seria bastante difícil demonstrar que qualquer uma dessas pode de forma correta ser chamada uma 'ahnah, senão que há várias outras dificuldades que assediam a qualquer um que tenta identificar a'almah de Is 7.14 com qualquer pessoa contemporânea de Acaz e Isaías. Esses obstáculos foram claramente assinalados por J.G. Machen, op. cit., pp. 289, 290; J. Orr, op. cit., p. 135; e E. S. Kalland, op. cit., pp. 105-107. E justo afirmar que de forma alguma todos os defensores da dupla referência tentam identificar a 'almah primária e/ou seu filho. Todavia, alguns o fazem. Uma ilustração recente disto é R.V.G. Tasker, op. cit., p. 34, que sugere que o filho é Ezequias.
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Portanto, José recebe a garantia de que este menino concebido no ventre de Maria é Deus. "Na humanidade velada vemos a divindade."' Ele é Deus "manifestado na carne" (lTm 3.16). "Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Cl 2.9). Em Emanuel Deus veio habitar conosco. "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai" (Jo 1.14). Ninguém jamais será capaz de sondar as riquezas desta graça pela qual Deus, por meio de Emanuel, veio habitar com os pecadores. Com o fim de dizer algo pelo menos como caminho de uma explicação ulterior, é provável que seja melhor obter esta informação do próprio Evangelho de Mateus. Significa que, em Cristo, Deus veio habitar com os doentes, para curá-los (4.23) com os endemoninhados, para libertá-los (4.24) com os pobres em espírito, etc., para abençoá-los (5.1-12) com os preocupados, para livrá-los das preocupações (6.25-34) com os censuradores, para admoestá-los (7.1-5) com os leprosos, para purificá-los (8.1 -4) com os enfermos, para curá-los (8.14-17) com os famintos, para alimentá-los (14.13-21; 15.32-39) com os inválidos, para restaurá-los (12.13; 15.31) e, acima de tudo, com os perdidos, para buscá-ios e salvá-los (18.11)
A nobre convicção de que, para ajudar os oprimidos, alguém deve estar disposto a viver e lutar ao seu lado e compartilhar de sua sorte, tem levado muitas pessoas solidárias a fazer sacrifícios heróicos. Não foi isso precisamente o que levou Francisco de Assis a abraçar os próprios leprosos de quem ele antes se afastava com repugnância? Levou William Booth a pregar o evangelho aos habitantes dos bairros pobres de Londres e a assisti-los de todas as maneiras? Tantos missionários se fizeram escravos literalmente falando a fim de conquistar os escravos para Cristo? E Paulo, que fazia todas as coisas a todos os ho202
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mens com o fim de poder, de alguma forma e por todos os meios, salvar alguns? Esses homens merecem de nós a mais profunda admiração. Todavia, nenhum de seus atos de autonegação pode comparar-se com os atos de Emanuel que, embora fosse infinitamente rico, fez-se pobre, tomou a nossa natureza humana, penetrou a nossa atmosfera poluída pelo pecado sem se manchar pelo mesmo pecado, assumiu em si mesmo nossa culpa, levou nossas tristezas e nossas dores, foi ferido por nossas transgressões e, moído por nossas iniqüidades, voltou para o céu a fim de preparar para nós um lugar, enviou o seu Espírito para o nosso coração, governa o universo inteiro em nosso favor, não somente faz intercessão por nós, mas ainda "vive para sempre fazendo intercessão por nós" (Hb 7.25), e virá pela segunda vez para levar-nos não apenas "para o céu", mas, com muito mais ternura, "para si mesmo" (Jo 14.3). Deveras, este é Aquele que se fez pobre para que, por meio de sua pobreza, pudéssemos ser ricos. Este é Emanuel, Deus CONOSCO! A Origem da Idéia do Nascimento Virginal Agora que a verdade acerca do nascimento virginal de Cristo foi exposta, surge a seguinte pergunta: "De onde se originou essa idéia?". Já foi enfatizada a improbabilidade de que, à parte da revelação especial, a idéia tenha-se originado entre os judeus. Pode surgir a seguinte pergunta: "Teria ela, porventura, surgido da mitologia pagã?". Diz-se-nos que nos dias dos profetas e dos apóstolos a atmosfera era carregada de histórias de nascimentos virginais, tanto que a inclusão de uma lenda como essas na Santa Escritura não deveria ser considerada como algo surpreendente. Contudo, como já foi provado por muitos escritores, desde Tertuliano e Orígenes até aos nossos dias, entre os repugnantes relatos pagãos e as narrativas puras escritas por Mateus e Lucas não há qualquer similaridade essencial. Os primeiros estão caracterizados pela grosseira indecência, pela esquálida falta de elegância e pelos adornos espalhafatosos; os últimos são caracterizados pela intocável dignidade, pela encantadora delicadeza e inusitada simplicidade; mais pela mode203
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ração do que peia displicência. Quando um deus, inflamado pela lascívia, violenta uma garota ou comete adultério com um mulher casada, o resultado, se houver concepção, não é um nascimento virginal. Se a mulher era virgem antes, já não é depois da ocorrência. Uma vez mais fazemos referência — ver referência anterior a p. 161 — à lenda do assim chamado nascimento virginal de Alexandre o Grande: E-nos dito que uma serpente estava certa vez compartilhando do leito de Olímpia, a esposa de Filipe da Macedónia. (Deve-se entender que Zeus, o primeiro ofensor em tais casos de coabitação, e outros deuses também, podiam assumir a forma de répteis, aves, e até mesmo da espuma do mar.) Quando Filipe descobriu o que sucedera, arrefeceu-se o seu ardor sexual. Daí, o produto da estranha união, ou seja, Alexandre, não foi um fdho de Filipe, e, sim, de Zeus. Neste ponto a lenda é dividida. Segundo uma versão, Olímpia, ao enviar seu fdho em sua grande expedição, revelou-lhe o segredo de sua concepção, e aconselhou-o a inspirar-se em propósitos dignos de seu nascimento. Segundo outra versão, ela envergonhou-se de sua história e, repudiando-a, disse: "Alexandre precisa deixar de caluniar-me diante de Hera [a esposa legítima de Zeus].'" 50 Pode alguém em sã consciência crer que a pura e bela história do nascimento virginal se derivou de ou foi sugerida por ato tão sujo como essa torpe lenda? Além disso, acima de tudo, ainda que a história fosse verdadeira, Olímpia não era de forma alguma uma "virgem" antes de conceber Alexandre e nem tampouco poderia sê-lo depois. A analogia se destrói completamente. Qual, pois, é a origem real da narrativa? Há somente uma resposta: Mateus e Lucas contam a história porque ela realmente aconteceu. Da parte de Maria, seja direta ou indiretamente, e neste último caso de uma fonte muito próxima a Maria, o evangelista recebeu a informação correta. O Espírito Santo cuidou para que ela lhes fosse contada e eles a escrevessem de forma infalível em dois relatos plenamente harmoniosos (Mt 1511
Plutarco. Lives (vol. VII de Loeb Classical Library), alexander II e 111.1,2.
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1.18-23; Lc 1.26-3 8), e que também no restante do Novo Testamento nada existe que conflite com ela. Marcos introduz Jesus Cristo como "o Filho de Deus" (1.1); João, como "o Verbo que se fez carne" (assumiu a natureza humana), "o unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade" (1.14); e Paulo, como "o segundo homem é do céu" (1 Co 15.47). Cf. também Rm8.3; Fp2.7. 151 Foi plenamente natural que Mateus descobrisse o liame entre a passagem de Is 7.14 e a informação que recebera da família a que Jesus pertencia. Durante o século II antes de Cristo, quando se fez a tradução grega mais antiga ainda existente dos livros proféticos do Antigo Testamento, uma porção importante da qual veio a ser conhecida como Septuaginta, a palavra hebraica ha- 'almah foi traduzida f] raxpQévoç, isto é, "a virgem". Essa, de passagem, é a única tradução pré-cristã dessa palavra hebraica por nós conhecida. Teria Mateus sido influenciado pela tradução LXX? Se este é o caso, então não se pode discordar dele. Porém, deve-se ter em mente que em muitas passagens é especialmente este evangelista quem mostra que de forma alguma é ele servilmente dependente da LXX. Ele pôde ler o original hebraico, e sabe que no contexto em questão ha-'almah significa "a virgem". A Importância Doutrinária Às vezes é dito que a doutrina do nascimento virginal não é essencial, uma vez que, se Deus quisesse fazê-lo, ele poderia ter feito que seu Filho fosse concebido e nascido de alguma outra forma. Resposta: O que Deus poderia ou não ter feito é uma questão especulativa em que não é preciso entrar. Todavia, o fato é que Jesus foi "concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria". Como ficou demonstrado, este artigo do Credo dos Apóstolos está firmemente radicado na Escritura. Além do mais, ele inextricavelmente combina com o restante da verdade revelada. "O Cristo sobrenatural e a salvação sobrenatural levam consigo, por conseqüência inevitável, o nascimento inevi151
Acerca de Gl 4.4. ver C.N.T. sobre essa passagem.
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tável."' 52 Além disso, se Cristo tivesse sido o filho de José e Maria por geração ordinária não teria ele sido uma pessoa humana e, como tal, um participante da culpa de Adão, e, por isso, um pecador, incapaz de salvar a si mesmo, daí também incapaz de livrar outros de seus pecados? Para que pudesse nos salvar, o Redentor tinha de ser Deus e homem, homem sem pecado, numa só pessoa. A doutrina do nascimento virginal satisfaz a todas essas exigências. Ela nos revela Jesus Cristo, uma pessoa divina com duas naturezas: a. divina; b. humana sem pecado. Considerar todas as maravilhosas obras realizadas por Jesus sem pressupor uma origem sobrenatural seria deveras difícil! E então existiu essa vida inteira sem pecado. Conta-se a história de um descrente que perguntou a um cristão: "Se eu lhe dissesse que nesta cidade nasceu uma criança sem pai você acreditaria?" O cristão respondeu: "Sim, se ele vivesse como Jesus viveu." 24,25. A história é assim encerrada: Ao despertar do sonho, José fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e levou sua esposa para sua casa, porém não teve relações sexuais com ela até que deu à luz um filho; e o chamou Jesus. O significado das palavras "levou sua esposa para sua casa" fica elucidado quando a expressão é confrontada com o v. 18: "antes de começarem a viver juntos". Ver comentário sobre este versículo, bem como o v. 20, acima. Embora José e Maria agora estivessem juntos na mesma casa, não praticaram relações sexuais um com o outro até que Maria deu à luz a Jesus. Por que isso foi assim não nos é relatado. Essa decisão teria sido motivada pela elevada consideração que o casal tinha por aquele que fora concebido? Ou se abstiveram para evitar qualquer alegação de que o próprio José era o pai da criança? Seja o que for que tenha levado o casal a evitar relações sexuais, há razão suficiente para crer que depois do nascimento da criança a abstenção foi interrompida. Essa conclusão não pode ser baseada simplesmente na negativa ligada à partícula "até". Este vocábulo 152
B.B. Warfield, Christology and Criticism. Nova York, 1929, p. 452.
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nem sempre introduz um acontecimento (neste caso: ela deu à luz um filho) pelo qual a situação anterior (o casal não teve relações sexuais) é invertida (agora começaram a ter relações sexuais).153 Nada obstante, também é verdade que amiúde, em tais casos, sugere-se uma completa inversão na situação. Cada caso deve ser julgado segundo os seus próprios méritos. No presente caso, a posição que se opõe à perpétua virgindade de Maria é corroborada pelas seguintes considerações: a. Em consonância com o Antigo e Novo Testamentos, a vivência sexual entre o casal — marido e esposa — é divinamente aprovada (Gn 1.28; 9.1; 24.60; Pv 5.18; SI 127.3; 1 Co 7.5,9). Naturalmente, mesmo aqui, como em todas as coisas, a continência deve ser exercida. A incontinência é definitivamente condenada (ICo 7.5; G1 5.22,23). Porém, não se atribui santidade especial à abstenção total ou ao celibato, b. É-nos dito, de forma iniludível, que Jesus teve irmãos e irmãs, evidentemente membros com ele da mesma família (Mt 12.46,47; Mc 3.31,32; 6.3; Lc 8.19,20; Jo 2.12; 7.3,5,10; At 1.14). c. Lc 2.7 nos informa que Jesus foi o "primogénito" de Maria. Ainda que em e por si mesmo este terceiro argumento não seja suficiente para provar que Jesus teve irmãos uterinos, em conexão com os argumentos a. e b. a evidência se torna conclusiva. O peso da prova paira inteiramente sobre aqueles que negam que, depois do nascimento de Cristo, José e Maria entraram em todas as relações comumente associadas ao matrimônio. Ao despertar do sonho, José fez precisamente o que o anjo lhe ordenara. Não só levou sua esposa para casa consigo, mas também, ao nascer o menino, ele o chamou Jesus. Certamente que, ao fazer isso, José e Maria agiram em perfeita sintonia (cf. Lc 1.31,38). Sumário do Capítulo I Este capítulo consiste de duas seções: vv.1-17 e vv. 18-25. A primeira contém o registro dos ancestrais de Jesus Cristo. Ela 153
Acerca de "ate", ver também Wm. Hendriksen, Israel and the Bible. Grand Rapids, 1968. pp. 27.28.
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nos revela que José, "pai" de Jesus no sentido legal, era descendente de Davi e Abraão. Por meio de José, "filho de Davi" (v. 20), o direito ao trono de Davi foi transferido para Jesus, o "filho de Davi" muito mais glorioso (v.l). A genealogia consiste de três vezes quatorze gerações. Na primeira série de quatorze nos é revelada a origem da casa de Davi e de sua glória real; na segunda, sua ascensão e declínio; na terceira, seu eclipse. Porém, este eclipse não é nem total nem final. No encerramento da terceira série de quatorze o sol brilha com muito mais intensidade do que nunca antes, ou seja, na pessoa de Jesus Cristo, que é tanto filho como Senhor de Davi. O Salvador é aqui retratado como Aquele que não só cumpre o antigo, mas também como quem introduz o novo. Completa o sexto e introduz o sétimo. Ele é a realização da esperança e o incentivo para a ação. Contra toda e qualquer calúnia, Mateus demonstra, por meio da árvore genealógica, que Jesus é deveras a legítima semente de Davi. A genealogia contém os nomes de vários reis e indivíduos: tanto mulheres como homens, tanto pagãos de nascença como judeus; aqueles que fizeram o que é agradável aos olhos do Senhor e aqueles que não o fizeram. Jesus Cristo é importante não só para judeus, mas também para toda a raça humana e para todas as suas classes, categorias ou subdivisões. Ele é verdadeiramente "o Salvador do mundo" (cf. Jo 4.42; Uo 4.14), Aquele que salva, pela graça soberana, a quem nele deposita a sua confiança (Jo 3.16; Ef 2.8). Em estrita harmonia com essa genealogia, que cuidadosamente evita fazer de José o pai de Jesus no sentido físico, a segunda seção contém a narrativa do nascimento virginal de Cristo. Aprendemos que quando José e Maria estavam desposados, e Maria ainda não tinha sido levada para a casa de José, ela "achou-se grávida de um filho por meio do Espírito Santo". José então descobre que ela está grávida, porém desconhece a causa. Sendo um homem justo, então se convence de que o casamento deve ser dissolvido até o ponto em que ele existiu. Porém, sendo também um homem de coração piedoso, imediatamente desistiu da idéia de uma ação legal contra Maria. Ele resolve, pois, 208
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Cap. 1
dar-lhe uma carta de divórcio, despedindo-a de forma sigilosa e não expondo-a à vergonha pública. Revolvendo o problema em sua mente, ele cai em profundo sono. Enquanto dorme, ele sonha que um anjo lhe aparece e lhe transmite uma notícia emocionante, ou seja, que é pelo poder do Espírito Santo que Maria concebeu; que ele, José, não deve hesitar em tomar Maria e levála para sua casa; e que a criança, ao nascer, deve chamar-se Jesus, isto é, Aquele que salvará seu povo de seus pecados. Guiado pelo Espírito, Mateus vê esse nascimento virginal de Jesus como um cumprimento de Is 7.14: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome será Emanuel." Em Jesus Cristo, Deus deveras habita com o seu povo, comunicando-lhe a alegria da salvação, com tudo quanto isso implica; ver p. 202. Ao despertar do sonho, José faz segundo o anjo do Senhor lhe ordenara. Ele leva Maria para sua casa, porém se abstém das relações sexuais até que ela deu à luz um filho, a quem chamou Jesus. A rejeição da origem sobrenatural de Cristo deixa sem explicação essa vida sobrenatural e seus feitos sobrenaturais. Também, deixa sem explicação a própria possibilidade da salvação do homem. Essa salvação é garantida somente quando a iniciativa é tomada por Deus, e não pelo homem!
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ESBOÇO DO CAPÍTULO 2
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer 2.1-12 2.13-15 2.16-18 2.19-23
Os sábios do Oriente A fuga para o Egito A matança das crianças A volta do Egito e o estabelecimento em Nazaré
CAPÍTULO 2 MATEUS
2
£.1-12.
1 Ora, quando Jesus nasceu em Belém da Judéia, nos dias do
rei Herodes, eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém, 2 dizendo: "Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela em sua nascente e viemos adorá-lo" 3 Quando o rei Herodes ouviu isso, atemorizou-se, e com ele toda a Jerusalém. 4 E tendo convocado todos os principais sacerdotes e escribas do povo, procurou ele saber deles onde o Cristo nasceria. 5 Eles lhe disseram: "Em Belém da Judéia; pois assim está escrito pelo profeta: 6 'E tu, Belém, terra de Judá, Não és de modo algum a menor entre os príncipes de Judá; Porque de ti sairá um governador Que pastoreará o meu povo Israel.'" 7 Então Herodes convocou secretamente os magos e indagou deles o tempo em que a estrela teve a sua aparição. 8 E enviou-os a Belém, dizendo: ' i d e e averiguai c u i d a d o s a m e n t e a respeito da c r i a n ç a , e q u a n d o a encontrardes, informai-me, para que eu também possa ir adorá-la." 9 Assim, após ouvir o rei, seguiram seu caminho, e eis que a estrela que viram em sua nascente seguia adiante deles até que se deteve sobre (o lugar) onde a criancinha estava. 10 Ao verem a estrela, eles se alegraram. 11 Tendo entrado na casa, viram a criancinha com Maria, sua mãe, e se prostraram em terra e a adoraram. Em seguida abriram seus cofres e a presentearam com ofertas: ouro e incenso e mirra. 12 E tendo sido advertidos em sonho a não retornarem a Herodes, voltaram ao seu país por um caminho diferente.
2.1-12 Os Magos do Oriente De conformidade com a promessa de Deus (2Sm 7.12,13), Jesus é o herdeiro legítimo do trono de Davi. O capítulo 1 trouxe isso a lume. Ele é o Filho cujo trono será "estabelecido para 91 1
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sempre" (ef. 2Sm 7.13 com Lc 1.32,33). Portanto, convinha que lhe fosse atribuída homenagem real, e isso não só por parte dos judeus, mas também dos gentios, porquanto ele é o Senhor de todos (Mt 28.16-20), e o chamamento do evangelho se dirige a todos, sem levar em consideração raça ou nacionalidade. Assim vemos que existe uma estreita conexão entre os capítulos 1 e 2 do Evangelho de Mateus: o capítulo 1 revelou que Jesus merece honra real. e o capítulo 2 revela que ele a recebe. Este capítulo começa assim: 1. Ora, quando Jesus nasceu em Belém da Judéia nos dias do rei Herodes, eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém. Aqui há dois fatos que de outro modo não seriam registrados: a: que ele nasceu em Belém, e b. que esse evento se deu nos dias do rei Herodes. A especificação de que esta Belém ficava na Judéia não serve tanto para distingui-la da Belém que fica a oeste de Nazaré, na tribo de Zebulom (e portanto na Galiléia), quanto para tornar claro que a profecia de Miquéias foi deveras cumprida no nascimento de Jesus. Ver comentário sobre os vv. 5 e 6. Uma comparação entre 2.1 e 2.19 apóia o ponto de vista de que o nascimento de Jesus ocorreu um pouco antes da morte de Herodes. Visto que Herodes morreu pouco depois de um eclipse lunar,154 nos fins de março ou princípios de abril do ano 4 a.C., pode ser correta a data de 5 a.C., no final do ano, para o nascimento de Cristo. 1 " Logo depois do nascimento de Jesus, chegaram a Jerusalém uns "magos". Sua inesperada aparição despertou considerável interesse, acerca do qual Mateus quer que seus leitores sejam participantes; por isso escreve: "eis".156 Literalmente, os estranhos viajores eram chamados magoi (singular magos) no Ver Josefo, Antigüidades, XVII. 167. Outros argumentos em apoio dessa data encontram-se em Wm. Hendriksen, Bible Survey, pp. 59-62. Visto que a computação do ano do nascimento de Cristo e o de sua crucificação é, até certo ponto, interdependente, ver também o artigo de M.H. Sheperd, "Are Both the Synoptics and John Correct about the Date of Jesus' Death?", JBL 80 junho 1961), pp. 123-132. I5Í ' Ver nota 133. 153
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2.1
original grego, de onde vem o latim magi (singular magus)\ termo este que se acha em quase todas as versões portuguesas. Quem, pois, eram esses magos? De onde vinham? A expressão "do Oriente" é bastante indefinida. Vinham das regiões habitadas pelos medos e persas, como alguns pensam, ou de Babilônia, como outros afirmam com tanta confiança? O termo grego é realmente uma transliteração do original iraniano. Quando apareceu pela primeira vez nos escritos de Heródoto, a palavra se referia a uma tribo dos medos. Pressupõe-se que, devido à habilidade que essa tribo derivou do estudo das estrelas, o nome magi começou subseqüentemente a aplicar-se mais geralmente a toda a casta sacerdotal dos medos e persas. O mago estava profundamente interessado na religião e em vários campos do interesse humano relacionados com ela, inclusive o estudo das estrelas e suas supostas influências sobre os eventos humanos. Embora muitas de suas teorias sejam consideradas atualmente como de baixo nível de conhecimento científico (e isso com toda justiça) e mais próximas da superstição, e embora sua religião dificilmente possa ser considerada como uma aproximação do Cristianismo — não havia nela lugar para a redenção do pecado por meio de um sacrifício expiatório —, os magos de forma alguma eram simples charlatães ridículos. Geralmente criam em um só Deus, no dever do homem de praticar o bem e de evitar o mal, na necessidade da oração e na nobreza do trabalho, especialmente da agricultura. Porém, é este também o significado da palavra magi segundo o seu uso em Mt 2? Alguns respondem afirmativamente. Acreditam que os magos que vieram do Oriente e chegaram a Jerusalém eram medos ou persas. Em apoio dessa crença apontam não somente para a origem iraniana da palavra magoi ou magis, mas também para o fato de que, como são apresentados na arte cristã primitiva que foi preservada, os viajores de terras longínquas usavam túnicas persas. Além disso, escritores antigos como Clemente de Alexandria, Diodoro de Tarso, Crisósto213
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mo, Cirilo de Alexandria, Juvêncio, Prudêneio e outros concordam que os magos vieram da Pérsia. Não é também um fato que nas diversas dispersões dos judeus que ocorreram nos séculos VIII ao VI a.C. não poucos foram deportados para "as cidades dos medos" e para os países circunvizinhos? (ver 2Rs 17.6; cf. lCr 5.26; Et 1.1; 9.2; At 2.9-11). Não é provável, pois, que esses judeus monoteístas tenham feito propaganda de sua expectativa messiânica entre os seus vizinhos igualmente monoteístas, com o resultado de que quando a estrela do Messias apareceu alguns desses magos ou persas se dirigiram à terra da Judéia a fim de honrarem o recém-nascido "rei dos judeus"? Esta é uma teoria interessante, com forte apoio na tradição, mas que não encontrou aceitação universal. Orígenes acreditava que os magos vinham da Caldéia. Muitos concordam com ele. Uma razão para isso é que os caldeus ou babilônios também tinham seus "magos" (Dn 2.2,10,27, etc.). Por meio da influência de Daniel e seus amigos (ver Dn 2.48; 5.11), esses magos e seus associados, fossem sábios ou não, foram postos em contato com o único Deus vivo e verdadeiro, e, naturalmente, também com a esperança messiânica. Ainda que grande parte da sabedoria desses conselheiros do rei de Babilônia era de valor, como o livro de Daniel claramente o demonstra, e ainda que seja verdade que entre os judeus existia um dito: "Qualquer que aprenda algo de um mago é digno de morte,157 não obstante foi o estudo das estrelas pelos astrólogos babilônios — talvez devêssemos dizer astrônomos —, ainda que deficitário em muitos sentidos, possui o crédito de haver estabelecido os fundamentos do sistema planetário mundial, a computação do tempo e o calendário.158 Conclusão: Sabemos muito pouco acerca dos magos mencionados em Mt 2. Todavia, pelas descrições de suas ações, sabemos que eram merecedores do qualificativo de "sábios". A melhor direção a seguir parece ser a de aderirmos estritamente 157 I5S
S.B.K., Vol. I. p. 76. C. W. Ceram, Deuses, Túmulos e Sábios, Edições Melhoramentos, São Paulo.
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ao texto e reconhecermos que esses magos vieram do "Oriente", com toda probabilidade de uma das duas áreas favorecidas.159 Não ficou registrado quantos magos havia. O fato de oferecerem à criança três presentes (2.11) tem suscitado a teoria de que havia três homens. E duvidoso se essa inferência é justificada, embora certamente seja possível que o seu número seja três. Simplesmente não sabemos. Tampouco existe qualquer base, nem mesmo no SI 72.10 e em Is 60.3, para a afirmação de que esses homens eram "reis". O verso que se canta "nós três reis do Oriente" pertence à mesma vasta coleção de lendárias tradições natalinas à qual pertence também o cântico "Mas o pequeno Senhor Jesus não chora...", e muitos outros casos semelhantes de fantasia. Acrescentem-se igualmente os nomes místicos desses magos: Melquior, Baltazar e Gaspar; a crença de que um veio da índia, um do Egito e o outro da Grécia; que foram subseqüentemente batizados por Tomé; e que seus ossos foram descobertos por Santa Helena, foram depositados na igreja de Santa Sofia em Constantinopla, foram transferidos para Milão e foram, finalmente, levados para a grande catedral de Colônia. Deveras é preciso ser muito crédulo para aceitar-se tudo isso! Antes de deixar este assunto, deve-se enfatizar que no original a palavra magos (latim, magus) é também usada num sentido diferente, embora estreitamente relacionado, ou seja, mágico, alguém que pratica a magia. A relação dessas duas palavras gregas bem como as de língua portuguesa salta à vista imediatamente. A palavra mago neste sentido desfavorável (mágico) é usada em At 13.6,8, em referência a um falso profeta, um judeu LW
Nas fontes consultadas não pude encontrar comprovação alguma da afirmação de Lenski (op. cit.. p. 58): "Mcdo-Pérsia fica excluída porque a carta dos magos desse território não se distinguia por seu estudo das estrelas", nem para a afirmação categórica: "'Esses magos vinham de Babilônia". Consultei todos os parágrafos em Heródoto, a quem se faz referência em Loeb Classical Lihrary; ver Heródoto, Vol. I, índice, p. 502: além do mais, o livro de C.W. Ceram na nota anterior; os artigos Zoroaster and Zoroastrianism em S.H.E.R.K.. Vol. 12, pp. 522-535: e em Ene. Brit., edição 1969, Vol. 23, pp. 1011-1016; e na mesma obra também o artigo sobre Magi, Vol. 14, pp. 469, 470.
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de nome Barjesus. A raiz da palavra iraniana, da qual mago é uma transliteração do grego, significa grande. E cognata do grego megas e do latim magnus, como refletidas em diversas palavras em português, por exemplo, megafone (alto-falante de boca para reforçar a voz) e magnificar (engrandecer). Alguém pode ser grande em sua própria avaliação e aos olhos de admiradores enganados. Assim era Barjesus. Alguém pode também ser verdadeiramente grande, ou seja, grande aos olhos de Deus. Assim eram os magos cuja história é relatada em Mt 2, acerca de quem se nos diz agora que estavam 2. dizendo: Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Se a súbita aparição desses estrangeiros agita os cidadãos de Jerusalém, quanto mais a pergunta que formulam repetidas vezes. Nem por um momento os magos expressam qualquer dúvida com referência ao fato do nascimento recente daquele a quem denominam "o rei dos judeus". Para eles o nascimento é real e o título é verdadeiro. O que eles desejam é encontrar resposta à pergunta: "Onde ele está?" A menos que recebam essa informação, não podem cumprir o propósito de sua longa e árdua jornada. Isso fica evidente pelo que segue: Porque vimos a sua estrela em sua nascente e viemos adorá-lo. Dificilmente podese evitar duas perguntas: Primeira, qual era a natureza dessa estrela?; segunda, como foi que os magos a relacionaram com o nascimento do rei dos judeus? Quanto à primeira, várias respostas são dadas; por exemplo: a. era uma "estrela" genuína (no sentido em que o sol também é uma estrela) de extraordinária radiância; b. o planeta Júpiter, associado com freqüência com o nascimento de reis e denominado, portanto, o planeta rei; c. a conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixe; d. um cometa agindo errante mente; e. uma luminária caindo do céu abaixo; e f. a estrela do destino, da esperança, uma estrela guiando alguém para dentro do coração, etc. A resposta f. pode ser imediatamente descartada, porquanto é evidente que a notável luminária era um objeto físico que 216
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podia ser visto e observado pelos olhos humanos (vv.2,7,9,10). Não era um monitor subjetivo nem uma ilusão ótica. Quanto às perguntas a.—e., pode-se objetar contra cada uma delas, porém deveria bastar-nos a declaração geral no sentido de que a natureza do objeto astronômico não é indicada no texto. Daí, simplesmente não sabemos. Mesmo a resposta e. — "uma luminária que caía do céu abaixo" —, mesmo estando definitivamente em mais estreita harmonia com o v.9 do que as respostas a.—d., dificilmente se harmonizaria com o v.2, especialmente com a frase "em sua nascente", que é a expressão grega muito comum para o primeiro surgimento de uma estrela no horizonte.160 Portanto, alguém poderia dizer que no v.2, seja o que for que os magos viram, se comporta como alguém esperaria normalmente de uma estrela, porém que no v.9 (ver comentário sobre esse versículo) se comporta de um modo bem diferente. Somos deixados no escuro, e não deveríamos intentar uma explicação mais ampla no sentido de identificar esse fenômeno astral. Basta-nos dizer que a sabedoria e a bondade de Deus são evidentes pelo fato de que ele "falou" a esses estudiosos das estrelas numa linguagem que eles podiam entender, ou seja, a de uma "estrela". Com referência à segunda pergunta não faremos melhor. Ainda que pode-se presumir com certa segurança que os magos aprenderam dos judeus a esperar a vinda de um Libertador, expectativa que provavelmente estava amplamente difundida naqueles dias e que de forma alguma estava limitada aos judeus (cf. Jo 4.25),161 fica sem sentido a relação que eles estabelecem 160
Note-se que èv i f i àvaioÀ.ri (v.2), que pode ser traduzido "Em seu nascimento", não é o mesmo que à7iò àvoci:oÀ.cõv (v. 1), "no Oriente". 161 É claro que, sobre a base de numerosas profecias (Gn 3.15; 9.26; 22.18; 49.10; Dt 18.15-18; 2Sm 7.12,13; SI 72 e muitos outros salmos; Is 7.14; 8.8; 9.6 e muitas outras passagens em Isaías e nos demais livros proféticos), os judeus esperavam o Messias (Mt 11.3; Lc 1.68-79; 2.25,30,38; 3.15; Jo7.42). Ver também passagens nos escritos pseudoepigráficos, por exemplo, Similitudes de Enoque capítulos 37—71; Salmos de Salomão 14.2; 18.5, etc. (Não obstante, alguns consideram que as predições descritivas nas Similitudes são interpolações cristãs posteriores, mas isso não foi comprovado.) No tocante a outras fontes exirabíblicas, ver o que é dito sobre a esperança
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entre seu nascimento e o surgimento de determinada estrela, denominada "sua estrela". Teria recebido alguma informação acerca do tempo quando, com base na interpretação que alguém fez de Dn 9.25, nasceria Aquele a quem os judeus esperavam? messiânica em Josefo. Guerras, VI.312; Seutônio, Vespasiano IV; Tácito, Histórias V. 13; c Virgílio, Eclogue IV. Contudo, todos eles estão expostos a mais de uma interpretação, e a autenticidade de alguns está em disputa. Por outro lado, poderse-ia considerar como certo que os judeus não mantiveram em segredo a sua esperança messiânica. Entre a população não-judaica do mundo antes e no começo da nova dispensaçào, a esperança da vinda de melhores coisas em relação com um grande Libertador não era uma possessão exclusiva da mulher samaritana e seus vizinhos. Deve ter sido algo bem mais amplo. Todavia, mesmo entre os judeus o caráter dessa esperança de modo algum era o mesmo em todos. Pois muitos esperavam que "o filho de Davi" fosse principalmente um Libertador da opressão e da dor terrena (cf. Lc 19.38,41,42). Contudo outros esperavam a remissão de seus pecados por intermédio dele (Lc 1.77). Esta última observação conduz a umas poucas ponderações a respeito da esperança messiânica segundo os Rolos do Mar Morlo. Pouco depois de sua descoberta, o mosteiro de Qumran. de onde são originários, foi proclamado cuidadosamente como a própria lbnte da religião cristã. E. Wilson, em seu livro Os Rolos do Mar Morto, afirmava: "este mosteiro,... mais que Belém ou Nazaré, talvez seja o berço do Cristianismo". Contudo, outras avaliações foram mais cautelosas: ver, por exemplo, Dupont-Sommer, The Jewish Sect of Oumran and the Essenes, New Sludies on lhe Dead Sea Scrolls (versão inglesa), Londres, 1954, em que (p. 161 s) o autor é cauteloso em indicar que ele não identifica de todo Jesus Cristo com o Mestre de Justiça (de Qumran). Nessa conexão são também de grande valor os livros de Millar Burrovvs, The Dead Sea Scrolls, Nova York, 1956, e More Light on the Dead Sea Scrolls, Nova York, 1958. Na p. 60 este último autor discute a teoria da possível conexão entre a esperança messiânica na Sociedade de Qumran e essa esperança no ensino de João Batista. No tocante à esperança messiânica de Qumran, tem-se demonstrado definidamente que o seu "Mestre de Justiça" de forma alguma é uma descrição preditiva de Cristo. E. J. Young estava plenamente certo quando, em seu excelente artigo: "The Teacher of Rightousness and Jesus Christ", WTJ 18 (maio de 1956), p. 145, afirmou: "Não importa quais sejam as semelhanças formais entre o Cristianismo e os Rolos, ou entre Cristo e o Mestre de Justiça, há diferenças tão profundas que é impossível explicá-las satisfatoriamente. Jesus falou como nenhum homem até então falara, pela simples razão de que ele era diferente de qualquer outro homem." A tudo isso deve-se acrescentar a conclusão a que J. Jeremias chegou. Em seu artigo (traduzido do alemão), "The Theological Significance of the Dead Sea Scrolls". CTM 39 (agosto. 1968), pp. 557-571, ele indica que a principal diferença entre o ensino dos Rolos, de um lado, e o de Jesus, de outro, é que. segundo o que Jesus ensina, Deus se preocupa com os pecadores, e não com aqueles que. por meios humanos, tentam obter a justificação.
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E isso tornaria mais fácil para eles relacionarem o aparecimento de tão notável estrela com o cumprimento da esperança messiânica? A estrela apareceu naquele setor particular do céu que eles relacionavam com os acontecimentos na Judéia? Tinham eles ouvido acerca da profecia de Balaão: "Uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro..."? (Nm 24.17). Há quem diga que esta passagem, se é que os magos a conheciam, a qual é ainda pergunta, não poderia ter exercido influência sobre eles, visto que a palavra "estrela" é aqui usada num sentido metafórico em referência a uma pessoa, e não a uma radiante luminária celestial. Esse raciocínio é correto? Deve-se ter em mente que há expressões que originalmente requeriam uma interpretação figurada e em seguida tinham de ser tomadas literalmente. O Novo Testamento está repleto de exemplos. Veja-se C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, p. 125. Os magos, também, poderiam ter relacionado Nm 24.17 com o aparecimento de uma estrela literal que anunciava o nascimento do rei dos judeus. A passagem não pode ser legitimamente usada em apoio de nenhuma das duas partes do argumento. Além do mais, segundo uma lenda rabínica, na noite em que Abraão nasceu os servos de Terá e os magos de Ninrade chegaram para a celebração do nascimento. Ao saírem da casa de Terá aquela noite, viram uma estrela brilhante. Em seu curso pelo céu, ela devorou outras quatro estrelas. Ao verem isso, estes homens interpretaram como significando que o recém-nascido seria poderoso, etc.lf'2 Portanto, alguns argüiriam que, quando apareceu outra estrela brilhante muitos séculos depois, a um grupo semelhante de magos, estes viram na radiante luminária um sinal definido de que nascera outra pessoa majestosa, "o rei dos judeus". Todavia, é óbvio que todas essas opiniões no tocante ao como e ao porquê os magos relacionaram o aparecimento da estrela com o nascimento do Messias não passam de conjecturas. O fato é que não temos a resposta. Continuamos no escuro. '"2 S.BK., Vol. 1, p. 77 e 78.
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Contudo, é precisamente esse fato que faz a história de Mateus tão bela e instrutiva. Tudo mais é deixado fora do quadro a fim de que toda a ênfase seja calcada naquilo que é o mais importante: Viemos para adorá-lo. Não se nos dá uma descrição detalhada da estrela. Não se nos diz como os magos relacionaram a estrela com o nascimento. Não se nos diz quantos magos eram, como estavam vestidos, como morreram, ou onde foram sepultados. Tudo isso, e muito mais, foi intencionalmente deixado envolto em sombra com o fim de que contra esse fundo escuro a luz pudesse brilhar com muito maior resplendor. Esses magos, quem quer que tenham sido, de onde quer que tenham vindo, vieram para adorá-lol No presente caso, como se evidencia pelo v. 11, isso significa nada menos que a intenção deles era prostrar-se diante do Rei messiânico em humilde adoração. A todos os que lêem ou ouvem essa história, Mateus está dizendo que eles também devem fazem o mesmo. Se mesmo o mundo gentílico lhe tributa adoração, não deveriam os judeus — que receberam os oráculos de Deus — também fazê-lo? E para os gentios há esta mensagem de alento: o Rei dos judeus deseja também ser o seu Rei. Quem ousaria criticar Rembrandt pelo contraste de luz e sombra (o efeito claro, escuro) de sua grande obra-prima popularmente conhecida como A Ronda Noturnal É Rembrandt quem mostra em suas melhores pinturas que captou o espírito dos escritores inspirados dos Evangelhos. 3. Quando o rei Herodes ouviu isso, atemorizou-se, e com ele toda a Jerusalém. Por meio da conexão entre os vv. 2 e 3 fica em evidência o fato de que os magos não se dirigiram imediatamente ao palácio de Herodes. Foi de forma indireta que o rei ficou a par dos acontecimentos. Foi informado de que estranhos tinham chegado de terras distantes, perguntando pelo paradeiro de uma criança recém-nascida, a quem chamavam "o rei dos judeus". Ao ouvir tal notícia, Herodes se sentiu atemorizado, apavorado. O verbo usado no original é muito descritivo. Literalmente, na voz ativa, esse verbo significa fazer tremer, agitar, perturbar, alvoroçar, como quando se diz que o rei do 220
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Egito é semelhante a um monstro que agita ou turva as águas com seus pés, contaminando os rios (Ez 32.2). Figuradamente se refere a perturbar ou pôr-se em confusão e alarma de mente e/ou coração; aqui em Mt 2.3 o significado é, naturalmente, ficar turbado ou aterrorizado. Assim os discípulos se turbaram quando imaginaram ver um fantasma (Mt 14.26); Zacarias, quando viu um anjo (Lc 1.12). Ver também Jo 14.1. Não surpreende que um homem com a natureza interior e a disposição de Herodes se alarmasse com a simples menção de um rei dos judeus além dele mesmo. Não era ele, Herodes, o único "rei dos judeus"? Não recebera ele esse título de Roma? Não levara meses, até anos de lutas para que seu título fosse feito uma realidade? Então, era essa outra tentativa para destronálo? Esse rumor acerca de outro rei dos judeus não suscitaria desordens em prol da liberdade entre os fanáticos que o odiavam tão profundamente e que já lhe haviam causado tantos aborrecimentos? Herodes fica agitado e aborrecido. Está convencido de que, a menos que tome medidas radicais, seus piores temores se concretizarão. Porém, ele não vai deixar-se vencer. Em sua mente depravada um plano perverso começa a tomar forma. O rei estava equivocado. Pelo relato de Mateus não parece que a população hierosolmitana se mostrasse profundamente impressionada pela pergunta dos magos. Nada estava sendo planejado que possuísse a natureza de uma revolta. Não obstante, "toda a Jerusalém" estava deveras alarmada, pois o povo aprendera por meio de longa e dolorosa experiência que não havia limites na ira e sede de vingança de um Herodes completamente alarmado. Todos estavam assustados ante o prenúncio de novas atrocidades que se lhes deparavam. Como o demonstram os fatos futuros, eles tinham razão de estar assim assustados. Este pode muito bem ser o lugar adequado para responderse à pergunta: qual era o caráter desse homem a quem, para darlhe os méritos dos grandes talentos que indubitavelmente possuía e distingui-los de todos os que levavam o mesmo nome, com freqüência era denominado "Herodes o Grande"? Já se fez 221
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referência à revolta dos macabeus (ver p. 183). No ano 198 a.C. a Palestina ficou sujeita à Síria. A nação dominante, que se achava em dificuldades com Roma e era forçada a pagar uma pesada multa por seu infrutífero intento de intrometer-se nos planos da cidade do Tíber, impusera um pesado tributo sobre os judeus. Quando cerca do ano 175 a.C. Antíoco Epifanes se fez rei, as condições pioraram. Enquanto Antíoco dirigia uma expedição contra o Egito, os judeus se regozijaram ao ganhar credibilidade o falso rumor da morte do rei. Ao regressar, Antíoco massacrou milhares e vendeu tantos outros como escravos. Depois de uma nova tentativa para tomar Alexandria, Antíoco se viu frustrado pelos romanos no exato momento em que considerava a vitória final já ao seu alcance. Novamente decidiu dar vasão à sua ira sobre os judeus. Seu general Apolônio, no ano 168 a.C., esperou o dia de sábado; então caiu sobre a cidade indefesa e a devastou, matando gente à direita e à esquerda. Antíoco Epifanes e seus auxiliares decidiram arrancar pelas raízes a religião judaica. Tomaram várias medidas para a realização de seu propósito. Contaminaram o altar do holocausto, sacrificando suínos sobre ele, e destruíram todas as escrituras sagradas ao alcance de suas mãos. Por esse tempo de grave aflição e angústia, os santos clamaram a Jeová em busca de ajuda. Suas orações foram ouvidas. A revelação chegou. Em Modin, não distante de Jerusalém, vivia um velho sacerdote, Matatias. Quando o comissionado de Antíoco lhe pediu que tomasse a seu cargo o oferecimento de um sacrifício pagão, o sacerdote não somente se recusou, mas matou tanto o comissionado como um judeu apóstata que estava para cumprir a exigência. Esse foi o início da revolta que ocorreu naquele tempo. Depois da morte de Matatias, seu filho Judas, um humilde filho de Deus e um gênio militar, alcançou vitórias que constituem um clássico na ciência de estratégia. Ele esteve sempre lutando contra forças grandemente superiores. Sua coragem era leonina e sua rapidez incrível. Como resultado de seus triunfos, cerca do ano 165 a.C. o templo de Jerusalém foi purificado e 222
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reconsagrado a Jeová, o qual fora consagrado a Zeus pelo ímpio Antíoco. Esta reconsagração deu origem a "a festa das luminárias" (Chanukah) celebrada pelos judeus desde então. Ver C.N.T. sobre Jo 10.22a. Os judeus reconquistaram sua liberdade religiosa. Depois da morte de Judas, seu irmão Jonatas, tão ousado quanto o próprio Judas, governou por algum tempo e obteve notáveis vitórias. Em sua tentativa de ludibriar os siros, ele mesmo foi ludibriado e executado. Sob o filho seguinte de Matatias, Simão, um administrador muito sábio, iniciou-se um período verdadeiramente glorioso. Ver I Macabeus capítulo 14. Porém, no ano 135 a.C. Simão foi perfidamente assassinado por seu próprio genro. Os governantes macabeus que vieram em seguida se imbuíram do espírito helenístico. Puseram maior ênfase sobre a vida secular do que sobre a espiritual. O filho de Simão, João Hircano, foi o primeiro desses governantes. Ainda que fosse sumo sacerdote: bem como governante civil, ele era um guerreiro de primeira classe. Ao norte ele conquistou Samaria e destruiu o templo samaritano construído sobre o monte Gerisin. Ao sul ele manteve Edom em sujeição. Se Hircano podia ser qualificado de governante de mérito questionável, seu filho, Alexandre Janeu (Jonatas), foi muito pior. Suas mãos recendiam a sangue. Um fato ocorrido durante o seu reinado não deve ficar sem menção porque teve conseqüências de longo alcance. Tendo seu pai conquistado Edom, como já foi mencionado, Alexandre designou a Antipas governador de Edom, cujo filho Antípater iria exercer importante papel na história dos judeus. Isso seria ainda mais verdadeiro cora respeito ao filho de Antípater, o mesmo Herodes mencionado em Mt 2 e Lc 1, e em nenhum outro lugar no Novo Testamento. Depois da morte de Alexandre, sua viúva Alexandra assumiu a liderança. Depois da morte desta, seus filhos Hircano II e Aristóbulo disputaram o trono. Alguns do povo se puseram ao lado de Hircano II, que era o mais velho; outros se puseram ao lado de Aristóbulo, que era o mais forte dos dois. Houve tam223
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bém um terceiro partido que consistia daqueles que aspiravam a abolição da monarquia e o estabelecimento de uma forma de governo em que os sacerdotes governariam o país de acordo com a lei de Jeová. Os três partidos apelaram para Roma. Ao impacientar-se Aristóbulo com a delonga de Roma em chegar a uma decisão final, decidiu ele tomar o assunto em suas próprias mãos. O resultado foi que Pompeu invadiu a Judéia e capturou Jerusalém no ano 63 a.C. Enquanto Hircano II e Aristóbulo lutavam pelo domínio, o então mencionado Antípater, agora governador de Edom, procurou tirar vantagem da confusa situação. Antípater e seu filho Herodes eram caracterizados por sua astúcia. Buscavam o favor de quem quer que estivesse à testa do governo romano. Assim que o governo mudava de mãos, imediatamente mudavam eles de lealdade e derramavam presentes e gentilezas sobre o homem que "até ontem" era objeto de sua oposição. E assim, com o correr do tempo, aconteceu que quando os judeus não puderam resolver seus próprios assuntos, o edomita Antípater foi feito pelos romanos procurador da Judéia, e lhe foi permitido designar a seu próprio filho Herodes tetrarca da Galiléia. Isso se deu no ano 47 a.C. Em 40 a.C., a Palestina foi invadida pelos portos, eclodiu a guerra civil e Herodes fugiu para Roma. Então o senado romano designou Herodes rei da Judéia. Foi-lhe dado um exército para que conquistasse seu próprio reino com a espada. Essa não foi uma tarefa fácil. Todavia, essa era a sua maior ambição. Depois de enfrentar vigorosa e inexorável oposição, tanto de longe como de perto, finalmente triunfou no ano 37 a.C. Segundo Josefo, ao morrer (4 a.C.) Herodes estaria com 70 anos, pelo que deve ter nascido por volta do ano 74 a.C. Já teria passado seu sexagésimo nono aniversário quando os magos chegaram a Jerusalém; porém, a data exata de sua chegada é incerta. Depois do ano 37 a.C., o imperador Augusto ampliou o território de Herodes até incluir toda a Palestina, ainda as regiões limítrofes, o que hoje é conhecido como Jordânia, Síria e Líbano. Deveras chegara ele a ser "o rei dos judeus". Em meio a 224
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lutas ferozes e prolongadas, apegou-se zelosamente à sua posição de autoridade até ao dia de sua morte. Por raça e nacionalidade, Herodes não era judeu, ainda que, às vezes, por razões políticas egoísticas, ele fomentava o ponto de vista, proposto por outros, de que ele era de nobre e rica descendência judaica. Porém, como foi declarado anteriormente, seu pai, Antípater, era edomita. Também Cipros, sua mãe, era nabatéia, isto é, ela procedia de um reino árabe ao oriente e suleste da Palestina. Quando os edomitas (ou idumeus) foram conquistados por João Hircano, a religião judaica, em certo sentido, lhes foi imposta. Portanto, não causa surpresa que às vezes se diz que Herodes "praticava a religião judaica". Se alguém está disposto a interpretar o termo "religião judaica" num sentido suficientemente amplo que inclua uma profunda devoção à cultura helenista, a declaração provavelmente seria correta. Segundo a descrição de Josefo,163 Herodes era capaz, astuto e cruel. Que ele era capaz é algo indubitavelmente admitido. A rapidez com que, embora ainda muito jovem governador da Galiléia, destruiu os bandos de guerrilhas que faziam incursões contra as cidades e faziam pilhagem nos campos, sua eficiência na coíetagem de tributos para Roma, a habilidade oratória que revelava quando se dirigia aos soldados sob seu comando ou diante do povo de Jerusalém, sua diplomacia sutil e a decisão "3 Para a fonte referente a Herodes, deve-se ler Frávio Josefo, Guerra dos Judeus, Livro I; também, pelo mesmo autor, Antigüidades dos Judeus, livros XIV. XV, XVI e XVII. Para uma real compreensão de Herodes, as obras de Josefo são indispensáveis, ainda que, às vezes, sejam difíceis de penetrar, mormente à vista das muitas inconseqtiências e inclinações às conclusões tendenciosas. Ver também S. I I. Perowne, The Life and Times of Herod the Great, Nova York, 1956; G. J. D. Harlders, Het Romeinsche Imperium en het Nieuwe Testamenl, Kampen, 1936; S. Sandmel, Herod, Profde of a Tyrant, Filadélfia e Nova York, 1967. Embora o livro de Sandmel lance luz sobre vários temas, seja fácil de ler e esteja bem estruturado, é naturalmente — o autor é judeu — oposto ao ponto de vista cristão. Sandmel fala de '"compreensível, porém extravagante, difamação de Herodes na tradição cristã" (p. 270). Pode-se encontrar material bibliográfico adicional no último título e também no rodapé dos artigos pertinentes em enciclopédias bíblicas, religiosas e gerais. Reconheço minha dúvida para com todas essas fontes pelo resumo aqui apresentado, especialmente às obras de Josefo.
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com que convertia as derrotas em vitórias eram algumas das qualidades que faziam dele o tipo de monarca que o imperador romano admirava. Ele foi também um grande construtor. Como tal deu um teatro a Jerusalém. Fora da cidade construiu um anfiteatro e um hipódromo. No extremo ocidental da cidade construiu um luxuoso palácio para si mesmo, com três torres famosas, denominadas respectivamente Hípico, Fasael e Mariana. Em honra de seu imperador Augusto, seu benfeitor, instituiu e presidiu jogos qüinqüenais, porquanto era ele amante dos esportes. E verdade que, com essa fase de sua atividade, Herodes de forma alguma conquistou as boas graças de todos os judeus. De fato, o seu entusiasmo pelas atividades atléticas enfureceu a muitos dos mais devotos, que as consideravam como expressão de uma mentalidade mundana, um mau exemplo para a juventude e uma flagrante profanação da religião pura. Segundo eles viam, o lugar proeminente dedicado à figura do imperador no anfiteatro, assim como os muitos troféus expostos nas paredes, estavam em conflito com a lei divina que proibia as imagens. Até mesmo uma tentativa foi levada avante para assassinar o rei, porém fracassou. Os dez conspiradores foram torturados e em seguida executados. Com o fim de acrescentar lustre ao seu nome e, caso fosse possível, conquistar as graças do povo, Herodes se propôs reconstruir e ampliar e embelezar grandemente o santuário de Jerusalém, aquele que às vezes é referido como "o segundo templo" ou "o templo de Zorobabel", construído no ano 516 a.C., setenta anos depois da destruição do primeiro (ver Ed 5.2ss; Ag 1.13-15). Em um eloqüente discurso feito ao povo, o rei, se é que podemos confiar em Josefo, divulgou seu plano de "fazer um retorno de gratidão a Deus, da maneira mais piedosa, pelas bênçãos que eu recebi dele, que me deu este reino, e de fazer isso construindo um templo tão completo como eu possa fazêlo". Começou a edificá-lo cerca do ano 19 a.C. Muito depois de sua morte ainda não havia sido completado inteiramente. Ver 226
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C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, p. 126. A grandeza e a beleza desse templo, que Herodes começou a edificar e que fez considerável progresso, é evidente de Mt 24.1,2; Mc 13.1,2; e Lc 21.5,6. Ver, além disso, comentário sobre 4.5; 21.12,13, 23; 24.1-3. As atividades construtoras do rei de forma alguma ficaram limitadas a Jerusalém e sua circunvizinhança. Ele restaurou e adornou de forma magnificente a antiga cidade de Samaria, dando-lhe o nome de Sebaste em honra do imperador. Seu templo, também consagrado ao imperador e que exibia uma estátua gigantesca de Augusto, coroava o ponto mais alto da cidade. Na costa entre Jope (hoje Jafa) e Haifa construiu ele o magnificente porto de Cesaréia, que logo depois chegou a ser a capital da Palestina romana. Dentro dos limites de seu país, construiu e embelezou muitas outras cidades. Fora da Palestina, lugares como Antioquia, Beirute, Damasco, Tiro, Sidom, Rode e mesmo Atenas se beneficiaram de seu ânimo e capacidade construtora e de suscitar beleza. Ao falar da capacidade de Herodes como governante, é justo mencionar um evento importante ocorrido durante os anos 13 e 14 de seu reinado. Houve uma longa seca que afetou tanto a Judéia como a Síria, resultando em fome tal que é descrita como a maior desde os dias de Acabe. O tesouro real ficou vazio em virtude do dinheiro gasto principalmente no extenso programa de construção do rei. A maioria do povo, que jamais fora rica, perdeu tudo o que possuía. Como resultado, foi comprovado ao limite máximo a habilidade e a obrigação de Herodes de prover auxílio. Porém, uma vez mais sua demonstração de ser um homem de recursos esteve à altura das circunstâncias. Diz Josefo: "Ele diminuiu o rico mobiliário de seu palácio, de ouro e prata... e enviou o dinheiro a Petrônio, que fora posto por César como prefeito do Egito." Petrônio e Herodes eram amigos. E notável que uma vez mais, como antes (cf. Gn 31 e 42), durante a fome o socorro veio do Egito. O rei forneceu alimento a todos em condições que cada família podia dispor, fazendo sábias dis227
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tinções segundo a capacidade de pagamento. Em decorrência da seca, grande parte das ovelhas e das cabras tinha perecido, de forma que as vestimentas para o inverno se tornaram escassas. Herodes também importou e distribuiu a roupa necessária. Além disso, cuidou para que os agricultores tivessem as sementes necessárias. Naturalmente, ele mesmo se beneficiou com esse programa de socorro. Por algum tempo ele chegou a conquistar uma certa popularidade. Ele tomou providência para que o povo soubesse que aquele socorro vinha "dele mesmo"! Era de se esperar que Herodes agisse exatamente assim. Todavia, além de capaz ele era também astuto. Ele era ardiloso, não-confiável. O epíteto depreciativo — "essa raposa" — dado pelo Senhor a Herodes Antipas (Lc 13.32) podia muito bem ser aplicado também a seu pai, Herodes o Grande. Ele sabia que os judeus o consideravam como estrangeiro, visto que, como já foi indicado, ele não era judeu. Estava plenamente consciente do fato de que seus súditos preferiam muito mais ser governados por um asmoneu, um descendente direto dos macabeus. Assim ele via como ameaça a si mesmo e ao seu trono a existência de algum asmoneu proeminente. Ele possuía não menos que dez esposas e uma dúzia de filhos. Sobressaindo dentre todas as suas esposas via-se Mariana I (no futuro simplesmente chamada Mariana),164 uma legítima asmonéia. Levando em conta o que mais tarde lhe fez, provavelmente seja incorreto dizer, como é dito com freqüência, que ele estava profundamente apaixonado por ela. Deve ter sido antes de tudo uma questão de paixão, uma afeição emocional, ou, na melhor das hipóteses, uma forte ligação amorosa. Além do mais, o casamento com ela foi um passo astucioso, porquanto por meio dessa união Herodes tentava alcançar uma boa posição entre os judeus e de legitimar seu domínio sobre eles. Todavia, ao compreender que seus súditos não o queriam nem confiavam nele, então planejou a destruição de toda a casa asmonéia. Mas o fez de uma forma muitíssimo vil. IM
Ela é chamada Mariana I para distingui-la de Mariana II, com quem o rei se casou depois da morte da primeira Mariana. Ver diagrama na p. 268.
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Antes de prosseguir neste assunto, seria bom lembrar o leitor do que foi escrito nas pp. 223-225, e fornecer a árvore genealógica de Mariana; isto é, apenas o que é necessário para a compreensão do que segue. Matatias
I
Simão
\
João Hircano
I
Alexandre Janeu Hircano II
I
Alexandra
que se casou com
\
que se casou com Alexandra Aristóbulo Alexandre Antígono
seus filhos foram: Mariana
e
Aristóbulo.
Quando, como resultado dos rogos de Mariana, esposa de Herodes, e de Alexandra, sua mãe, o rei concordou em designar Aristóbulo, o irmão de Mariana, ao cargo de sumo sacerdote, Herodes começou a inteirar-se do fato de que o belo jovem, especialmente quando exercia seu ofício sagrado, era muito querido do povo, o qual "associava os bons desejos às alegres aclamações que lhe faziam" (Josefo). Herodes se sentiu excessivamente ofendido, e resolveu imediatamente dar cabo de seu cunhado. Todavia, o ato deveria ser praticado de tal forma que ninguém jamais fosse capaz de provar que o próprio rei era o assassino. Então o jovem, e com ele muitos outros, foi convidado a uma festa de natação no rio Jordão perto de Jericó. O dia estava muito quente. Inicialmente, o rei e o sumo sacerdote permaneceram à margem do rio, como se estivesse abaixo de sua 229
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dignidade entrar na água com o vulgo. Porém, finalmente Herodes convenceu Aristóbulo a entrar na água. Depois de algum tempo, alguns jovens, designados pelo rei para este propósito (segundo Josefo), mergulharam o sumo sacerdote e o seguraram debaixo da água, como se estivessem brincando. Seguraram-no lá embaixo até que se afogou. Herodes preparou um magnificente funeral e derramou copiosas lágrimas em público! Poder-se-iam dar muitas ilustrações adicionais acerca da conduta traiçoeira do rei. Sua própria natureza estava empregnada de dolo. O assassinato de Aristóbulo, irmão de Mariana, também revela quão cruel era Herodes. Sua crueldade estava sendo constantemente alimentada por seu arrogante egoísmo e sua mórbida desconfiança de todo aquele que, segundo o critério de Herodes, poderia aspirar substituí-lo no trono. Ele bem sabia que muitos judeus o odiavam. Consideravam-no como o instrumento utilizado por um poder estrangeiro com o fim de conserválos sob escravidão e roubar-lhes sua subsistência. Eles entendiam plenamente que o seu judaísmo era uma farsa e que de coração não passava de um pagão. Ele amava o poder mais que qualquer outra coisa. Portanto, a menor suspeita de que alguém surgira que pudesse privá-lo do trono provocava nele uma reação imediata: "Ele deve morrer!" Esses tenebrosos e sinistros impulsos de sua natureza cresceram nele em virtude de nunca ter orado pedindo graça e energia espirituais para subjugá-los. Assim, à medida que avançava em idade, também progredia em depravação mental e moral até que se viu completamente arruinado. E razoável que sua ira se dirigisse especialmente contra os asmoneus, porquanto era para eles que o povo, aberta ou secretamente, olhava com esperança de libertação. Com o diagrama da p. 229 diante dos olhos, vejamos o que aconteceu à árvore genealógica de Mariana: Começando no alto da lista e avançando paulatinamente para baixo, primeiro encontramos Matatias (ver p. 223). No ano 167 a.C., ele morreu em virtude dos rigores da revolta que ele mesmo iniciou tão nobremente. Descendo um degrau ou geração, notamos que em 135 a.C. Simão, filho 230
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de Matatias, foi traiçoeiramente assassinado pelo seu genro. Ainda mais abaixo, João Hircano, depois de reinar por quase três décadas, morreu pacificamente em 105 a.C. Seu filho, Alexandre Janeu, cruel e sanguinário — certa vez ordenou a execução de 50.000 de seu próprio povo —, morreu no ano 78 a.C. de uma enfermidade incurável. Sua viúva, Alexandra, governou nove anos e morreu no ano 69 a.C. Em seguida descemos para os dias do primeiro triunvirato. Crasso, Pompeu e Júlio César tinham dividido o governo do império romano entre eles. Eles "caem" nessa ordem: primeiro Crasso, em seguida Pompeu e, finalmente, Júlio. No ano 49 a.C., Aristóbulo, filho de Janeu, foi envenenado por partidários de Pompeu. Alexandre, filho de Aristóbulo, foi decapitado. Agora Herodes surge no cenário. São os dias do segundo triunvirato: Lépido, Antônio e Otávio. Durante a amarga luta pela posse de Jerusalém, Herodes, no ano 37 a.C., tendo enviado presentes a Antônio, seu amigo de longa tragetória, toma providências para que Antígono, outro asmoneu, fosse executado. Este mesmo Antígono, filho de Aristóbulo, havia mutilado seu tio (ver diagrama), o fraco sumo sacerdote Hircano II, com o fim de desqualificá-lo para exercer o sumo sacardócio e para minar qualquer influência política expressa que ele pudesse exercer, ou outros pudessem exercer em seu favor. Pouco depois, em 35 a.C., Aristóbulo, irmão de Mariana (por conseguinte, não se deve confundi-lo com o filho de Alexandre Juneu), morre afogado, como acabamos de relatar (ver p. 230). E fácil imaginar como Alexandra e Mariana se sentiram a esse respeito. Podia o rei culpá-las por nutrirem desconfiança a seu respeito? Alexandra escreve uma carta à rainha egípcia, Cleópatra, informando-a do assassinato de Aristóbulo. Cleópatra, por sua vez, transmite o fato a Antônio, que ordena a Herodes a encontrar-se com ele e prestar-lhe conta. Antes de partir, Herodes instrui José, que era seu tio e cunhado (esposo de Salomé, irmã de Herodes), a matar Mariana, caso ele, o rei, não voltasse com vida. Ao voltar Herodes a salvo, Salomé, que passou a odiar seu 231
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esposo, informa a seu irmão que José revelou intenção indébita para com Mariana. Herodes mandou matar José. Mariana nega qualquer culpa, e por um espaço de tempo ela e seu esposo se reconciliam. Porém isso não durou muito. No ano 30 a.C., Herodes viu no ancião e mutilado Hircano II uma ameaça ao trono e ordenou que fosse executado. Por esse tempo, qualquer amor que Maria ainda nutria por seu esposo transformou-se em ódio, pois agora o que ela via nele era somente o assassino de seu irmão Aristóbulo e de seu avô Hircano II. Em setembro do ano 31 a.C., aconteceu a histórica batalha naval de Actium. Antônio, que se divorciara de Otávia, irmã de Otávio, para casar-se com a sedutora e impiedosa rainha egípcia, Cleópatra (ex-amante de Júlio César), fora derrotado. No ano seguinte, agosto de 30 a.C., Antônio e Cleópatra se suicidaram. Ver o vívido e imaginoso drama de Shakespeare, Antônio e Cleópatra. Essas mortes foram um severo golpe para Herodes, que consistentemente se pusera ao lado de Antônio e ainda lhe oferecera sua ajuda. O rei dos judeus teve medo que Otávio, agora imperador Augusto, pudesse despojá-lo de seu trono e quem sabe ainda o punisse com a morte. Então Herodes programa uma viagem com o fim de fazer um humilde apelo diante daquele a quem até o presente se opusera. Antes de partir, dá instruções a um subordinado, Sohemo, para que matasse Mariana e Alexandra caso ele, o rei, encontrasse a morte.165 Diante de Augusto, de uma maneira muito sagaz, ele não oculta sua anterior lealdade a Antônio, porém ainda a enfatiza, culminando seu apelo com as palavras: "Para contigo serei o mesmo amigo leal." Essa estratégia teve êxito. Em triunfo, tendo o seu título real reafirmado, ele regressa na esperança de que sua esposa o rece165
Notar o paralelo entre esse incidente e o relatado no parágrafo anterior. Esse mesmo paralelo parece ter produzido alguma confusão nos relatos dados por Josefo. Cf. Guerra dos Judeus, I. 441-444 com Antigüidades, XV.62-87. Ver também S. Sandmel, op. cit., pp. 164, 165. Com Sandmel pressupus que é somente em conexão com o comparecimento de Herodes diante do imperador Augusto que Mariana soube da ordem de ser ela decapitada caso seu marido não voltasse com vida.
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berá de braços abertos. Todavia, nesse ínterim ela soube das instruções que Sohemo recebera a seu respeito. Assim, de sua parte as boas-vindas não são nada entusiásticas. Ao tentar descobrir a razão de tal frieza, Herodes ouve que existe relações íntimas entre Mariana e Sohemo. Este é executado. Depois de um falso julgamento, no ano 29 a.C., Mariana é declarada culpada de adultério. Ela também é morta. O patético remorso subseqüente de Herodes não lhe devolve a vida. No ano seguinte, 28 a.C., a mãe de Mariana, a intrigante Alexandra, é igualmente executada. Assim, do diagrama da p. 229 foram riscados os nomes de todos os asmoneus que, de fato ou apenas na mente enfermiça do rei, eram considerados uma ameaça ao seu poder. Porém, dois filhos de Herodes com Mariana, isto é, Alexandre e Aristóbulo, ainda estão vivos. Ver o diagrama da p. 268. Seguramente, Herodes não irá intentar contra seus próprios filhos! Sim, mesmo eles não serão poupados, caso o rei se convença de que seus filhos de alguma forma também se constituem numa ameaça ao seu título de "rei dos judeus". E assim, no ano 8 a.C., depois de complôs e contra-complôs, esses dois filhos são também eliminados.166 E isso ainda não é o fim dos horrores. Herodes vai de mal a pior. Sua ganância de poder, sua tenebrosa suspeita e quase insana sede de vingança o fizeram escravo até o dia em que o mataram. Cinco dias antes de sua morte, ele assassina o outro filho. Porém, uma vez que isso ocorreu depois da visita dos magos, merece uma referência mais explícita um pouco mais adiante. Ver p. 265. Não estaríamos sendo injustos com Herodes ao descrevêlo como um tirano cruel e sanguinário, uma pessoa crescentemente ímpia, dada ao ato de desfazer-se de quem, segundo ele, pudesse privá-lo de seu poder à medida que transcorriam os anos? Não houve circunstâncias atenuantes? Não seria possível argumentar do ponto de vista médico que, especialmente em seus Não obstante, é interessante notar que por meio de Aristóbulo a linha asmoniana adquire nova vida, agora corrompida pela linha herodiana, de modo que Herodes o Grande não teve tanto êxito como pode ter imaginado. Ver diagrama na p. 268.
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anos finais, o rei fosse atingido por grave endurecimento das artérias? Não lhe causou a redução do fluxo sangüíneo do cérebro uma perda de sua capacidade prévia de dominar seus maus instintos? Além do mais, não é verdade que Herodes não estava sozinho em seus desígnios destrutivos? Não estava constantemente sendo aguilhoado por sua igualmente ímpia irmã Salomé,167 que morava no palácio, assim como sua sogra Alexandra, outra causadora de dificuldades? Não era igualmente culpada a cobiçosa rainha Cleópatra de agravar as coisas por sua desautorizada interferência? O primogênito de Herodes, Antípater, não era um intrigante de primeira ordem? Não eram da mesma estirpe os filhos de Herodes com Mariana? Não era a corte do rei um verdadeiro foco de secretas conspirações? Admitido que Herodes era um grande pecador, não foi ele também vítima dos pecados de outros? Tudo isso deve ser levado em conta, porém nada tira ou o isenta de sua responsabilidade pessoal. Segundo a Escritura, uma das virtudes capitais é o autocontrole ou domínio próprio, que é o fruto da operação do Espírito no coração (Pv 25.28; At 24.25; G1 5.23; 2Pe 1.6). Notavelmente tocantes e sempre válidas são as palavras de Rm 6.12: "Não reine [ou seja rei, tenha domínio], portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às vossas paixões." Herodes, que vivera tão sequioso de ser e permanecer como rei, na verdade não passava de um escravo, e isso por sua própria escolha! Esse é provavelmente o último ano do reinado e da vida de Herodes. Ele se acha profundamente alarmado por causa da chegada dos magos, perguntando: "Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela em seu levante e viemos "'7 Não deve ser confundida com sua sobrinha-neta, a filha de Herodias, a quem se faz referência em Mt 14.3-11 e Mc 6.17-28, mas que não é mencionada pelo nome nos Evangelhos. Ver Josefo, Antigüidades, XV1II.133. Essa Salomé foi aquela que. como prêmio por sua dança, obteve a cabeça de João Batista. Com referência à segunda Salomé, ver diagrama na p. 268. Houve ainda outra Salomé, uma que não pertence a esse grupo. Ela era uma das santas mulheres que seguiram Jesus na Galiléia e lhe ministravam (Mc 16.1,2; ver comentário sobre Mt 27.56).
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adorá-lo." E compreensível que toda a Jerusalém se sinta igualmente muitíssimo abalada. Ao ouvir a má notícia, o velho rei reaviva as últimas brasas de sua energia moribunda e entra em ação. De fato, ele se torna muito ativo: reúne, convoca, envia, perscruta, se ira, mata... e então morre! Ver vv. 4, 7, 8, 16, 19 e 22. Imediatamente salta à vista que a descrição aqui apresentada concorda com o que encontramos nas fontes extracanônicas. Em essência, pois, o seguinte deve ser o correto: Herodes não era vítima das circunstâncias; ele era um assassino. A minuciosidade que ele demonstra só é comparável com a ira viva da qual é ele produto. Note-se sua hipocrisia: "Para que eu também vá adorá-lo" (v.8); e sua crueldade: a destruição das criancinhas de Belém (v.16). Com esse quadro em mente, agora nos sentimos preparados para encarar o v. 4. E tendo convocado todos os principais sacerdotes e escribas do povo, procurou ele saber deles onde o Cristo nasceria. Visto que Herodes estava vivendo dias em que a esperança de livramento por meio da vinda e obra de um Messias prometido estava nos corações e lábios de muitos, ele compreendeu que "o rei dos judeus" e "o Messias" eram uma e a mesma pessoa. Com a sua pergunta os magos deixaram Herodes muitíssimo perturbado. Todavia, ele é um homem muitíssimo astuto para não compreender que expulsar ou matar esses homens deixaria ileso e sem descobrir quem se considerava um potencial pretendente ao trono. Além de tudo, quem Herodes deve destruir não são os magos, e, sim, o Messias, o rei dos judeus. Mas para fazê-lo, antes ele precisa identificar esse misterioso indivíduo. Ele está suficientemente familiarizado com a religião judaica para saber que em algum lugar nos oráculos antigos havia uma predição direta acerca do lugar onde o Messias deveria nascer. Assim Herodes precisa saber que lugar é esse, porque essa descoberta será um passo seguro para a descoberta da criança e para a sua eliminação. Herodes sabe exatamente aonde ir em busca da desejada informação. Ele reúne os oficiais representantes dos judeus: "to235
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dos os principais sacerdotes e escribas do povo", que é, provavelmente, todo o Sanedrim.m Esta era a suprema corte dos judeus. Contanto que não interferisse nas prerrogativas do governo romano que, por exemplo, transferiu a decisão final sobre as sentenças de morte dessa corte, ela era a autoridade última não somente em questões estritamente religiosas, mas também em questões civis e criminais.169 Os principais sacerdotes consistiam do sumo sacerdote em exercício, daqueles que anteriormente ocuparam esse alto ofício e outros dignitários de cujas alas o sumo sacerdote era escolhido. Os escribas eram os homens das letras, aqueles que estudavam e ensinavam a lei de Deus, as autoridades na religião judaica. Portanto, a esse corpo de homens Herodes submete a pergunta referente ao lugar em que, segundo a Escritura (implícito), o Cristo nasceria. 5,6. Eles lhe disseram: Em Belém da Judéia; pois assim está escrito pelo profeta: E tu, Belém de Judá, Não és de modo algum a menor entre os príncipes de Judá; Porque de ti sairá um governador Que pastoreará o meu povo Israel. Da parte do supremo concílio não há hesitação. Entre os judeus era um fato bem conhecido que o Messias viria de Belém (Jo 7.42). As palavras de Mt 2.6 são tomadas de Mq 5.2 (citação parcial). Ainda que a citação de Mq 5.2 não seja literal — a mu168
O ponto de vista de E. Johnson, Interpretei• s Bible, Nova York e Nashville, 1951. vol. VII, sobre Mateus e Marcos, p. 258, segundo o qual Herodes simplesmente consultou uns poucos membros do Sanedrin, não recomenda a si mesmo. Tivesse sido a intenção de Mateus transmitir tal idéia, ele o teria leito (cf. Jo 1.19,24). A redação dá a impressão de algo muito oficial: parece que Herodes, por intermédio do sumo sacerdote, convoca o Sanedrin em sessão plenária. Note-se "todo". E usado o mesmo verbo de Jo 11.47, onde os principais sacerdotes e os fariseus convocam (ou: reúnem) o especificamente mencionado Sanedrin 169 Ver M. Wolff, "De Samenstellingen het karakter van het groote ouvçõotov te Jeruzalem voor het jaar 70 n.Chr." 77" 51 (1917), pp. 299-320. Ver também comentário sobre 16.21.
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dança principal é que no lugar de "que és pequena para estar entre" temos "não és de modo algum a menor entre" —, ela está de acordo com a essência, porquanto em ambos os casos o significado é: "Tu, Belém, ainda que sejas pequena,170 de modo algum és a menor, porque o governador de Israel virá de ti." Portanto, segundo a visão de Miquéias, e segundo o interpretam agora as autoridades judaicas, e Mateus concorda, nas reuniões tribais onde cada cidade e aldeia era representada por meio de seu chefe ou príncipe, Belém, ainda que pequena em população, é muito importante em virtude de o Grande Líder de Israel estar destinado a nascer ali. A linha final de Mt 2.6 se assemelha grandemente ao que se encontra em 2Sm 5.2. Segundo o contexto ali, as tribos de Israel vêm a Davi com o pedido unânime para que ele seja o seu pai. Para reforçar o seu apelo, eles citam as palavras que Deus, em ocasião anterior, dirigira a Davi, ou seja: "Tu apascentarás o meu povo de Israel." Para o Sanedrin, com o qual Mateus está plenamente de acordo, essas palavras são agora aplicadas ao Grande Filho e Senhor de Davi, ou seja, o Messias. Segundo a Escritura, Davi foi um tipo de Cristo de diversas formas, por exemplo, a. nasceu em Belém: ISm 16.4,12,13; cf. Lc 2.4,7; b. foi "amado ", que é o próprio significado do nome "Davi"; ver também ISm 13.14; cf. Mt 3.17; c. foi o ungido de Deus: ISm 16.13; cf. SI 2.2; Is 61.1; Lc 4.18,21; d. recebeu posição e honra reais, já implícito na unção; ver também 2Sm 7.13; cf. Lc 1.32,33; e e. cada um teve de seguir o caminho da amarga humilhação à gloriosa exaltação: 2Sm 15.23; 22.17-20; cf. Jo 18.1; Mt 28.18; etc. Portanto, essa aplicação de 2Sm 5.2 ao Messias era plenamente justificável. O que é com freqüência passado por alto é o fato de que nem o rei Herodes nem o Sanedrin Judaico, em momento algum, duvidaram de que a referência de Mq 5.2 e a referência final de 2Sm 5.2 eram a uma pessoa (não a uma nação), ou seja, 1711
Mesmo nos dias de Herodes o Grande, Belém era apenas um grupo de pequenas habitações. Ver L. H. Grollenber. Atlas cia Bíblia, Nova York. etc., 1956, p. 125.
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o Messias. Quando alguém lê essas preciosas passagens do Antigo Testamento — e isso inclui também Gn 3.15; 22.18; 49.10; 2Sm 7.12,13; Is 7.14; 8.8; 9.6, e muitas outras — sem ver Cristo nelas, não está ele lendo-as cegamente? Ver Lc 24.25-27,32. Muitíssimo belo e consolador é o que é dito acerca do Messias-Cristo nas palavras: "Tu apascentarás o meu povo de Israel." Aqui o pastor é rei. Porém, esse rei não é um tirano cruel. Na apreciação daqueles a quem Deus ternamente chama "meu povo" (cf. Jo 21.5-17), esse rei não é apenas preeminente, mas também providente. Para eles a palavra "pastor" sugere não apenas solenidade, mas também solicitude (Is 40.11; Mt 18.12,13; Lc 15.3-7; Jo 10.11,14,27-29; Hb 13.20; IPe 2.25; 5.4; Ap 7.17). 7. Então Herodes convocou secretamente os magos e indagou deles o tempo em que a estrela teve o seu aparecimento. A primeira reunião, aquela entre o rei e o Sanedrin, não podia ser mantida em secreto em decorrência da sua própria natureza. Porém, adicionar à primeira uma segunda reunião pública suscitaria ainda mais suspeitas e temores entre o povo além do que já possuíam. Essa pode muito bem ser a razão por que Herodes convocou os magos secretamente, o que implica não somente que a ordem de apresentar-se diante dele foi expressa secretamente, mas também que a reunião foi secreta. Com base a. no que já foi dito com respeito à duplicidade do rei (ver pp. 229ss) e b. numa comparação entre os vv.8 e 16 e o que eles revelam, estamos plenamente justificados para afirmar que, nessa reunião privativa com os magos, Herodes ocultou suas verdadeiras intenções. Ele não lhes perguntou: "Que idade pensais ter a criança agora?", e, sim, "Quando foi que a estrela apareceu pela primeira vez?" Para o benefício dos magos ele simulou um profundo interesse em sua especialidade, as estrelas, enquanto o seu real interesse estava na criança, a quem queria destruir. Naturalmente, quanto mais pudesse ele saber acerca de seu potencial competidor, tal como ele o via, mais fácil seria identificá238
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lo e matá-lo. Ele já conhecia o lugar de seu nascimento (vv.46). Agora, com base no tempo do aparecimento da estrela, ele se considera apto a adivinhar a idade aproximada da criança. 8. E os enviou a Belém, dizendo: Ide e averiguai cuidadosamente a respeito da criança, e quando a encontrardes, informaime... O rei agora envia os magos a Belém com seus detetives privativos, ordenando-lhes: a. para proceder a uma busca exaustiva da criança, e na hipótese de que a busca fosse bem-sucedida, b. informá-lo. Com uma astúcia diabólica, porém característica dele, acrescenta: para que eu também possa ir adorá-la. A narrativa se volta agora para os magos: 9. Assim, após ouvir o rei, seguiram seu caminho, e eis que a estrela que viram em seu levante seguia adiante deles. Enquanto ainda estavam em seu próprio país, os magos viram surgir essa maravilhosa estrela (v.2). Agora (v.9), súbita e dramaticamente — note-se: "eis" — a vêem novamente. Onde estivera a estrela desde então (v.2) até agora (v.9)? Não somos informados. Entregamo-nos a especulação imaginosa quando dizemos que por meio de seu reaparecimento a cada noite a estrela conduzira esses homens por todo o caminho desde o Oriente até Jerusalém. Se esse fora o caso, o texto não estaria assim redigido: "E eis que a estrela os guiara por todo o caminho até Jerusalém", em vez de: "E eis que a estrela que viram em seu levante"? Se há alguma conclusão válida, parece ser que a estrela, vista em seu levante, reaparece pela primeira vez. Seja como for, um fato é afirmado com grande clareza: essa estrela agora ia adiante deles. A maravilha luminosa realmente se movia de norte a sul, de Jerusalém a Belém! Que maneira inusitada de uma estrela se comportar! Não obstante, isso é o que Mateus afirma. Em sua interpretação, os comentaristas diferem amplamente. Segundo alguns, a estrela realmente não indicava o caminho. De uma forma não-científica, Mateus está simplesmente declarando a impressão que a estrela exerce em nós. Quando viajamos, elas parecem viajar conosco. Quando paramos, elas parecem parar 239
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também. Não foi a estrela, e, sim, Herodes quem indicou o caminho para Belém.171 Outros são de opinião diretamente oposta. R.C.H. Lenski escreve: "A estrela se movia como um guia; a estrela chegou, a estrela parou. Tudo isso é perfeitamente simples, absolutamente miraculoso, distinto de qualquer estrela que haja existido. Porém, o que aconteceu com essa estrela? É-nos dito que ela jamais se moveu... a estrela só pareceu parar quando os magos pararam."172 Sobre este ponto estou de acordo com Lenski. E inteiramente certo que o rei Herodes enviara os magos a Belém (v.8), ao que deve acrescentar-se que Deus, por meio de Miquéias, como citado pelo Sanedrin judaico, concentrara a atenção de Herodes sobre Belém como o lugar de nascimento do Messias (vv. 4-6). Porém aqui, como acontece com freqüência, Deus fez uso de dois meios: uma revelação geral (a estrela) e uma revelação especial (a profecia de Mq 5.2). Quando ambas estão presentes, sempre coincidem. Além disso, não creio que para os magos a estrela tenha feito o que as estrelas costumam exatamente fazer conosco. Se isso foi tudo o que aconteceu, não seria melhor dizer que os magos, em sua viagem, guiaram a estrela? Não podemos explicálo, porém essa estrela realmente ia adiante dos magos até que se deteve sobre (o lugar) onde a criancinha estava. Literalmente, Mateus diz: "até que, tendo chegado, ela parou sobre onde estava a criancinha." A estrela apontou para a própria casa! Portanto, segundo se descreve no v.9, a inusitada e maravilhosa estrela deve ter pairado muito baixo. Afirmar que de alguma outra forma os magos descobriram o local onde a criança estava,173 não faz justiça ao texto, como eu o vejo. 10. Ao verem a estrela, eles se alegraram. Literalmente: "Alegraram-se excessivamente com grande alegria." Ver Is 66.10; Jo 3.29; e lTs 3.9, para expressões semelhantes. A taça de sua alegria transbordava. Vejamos algumas razões pos171 172 173
Cf. Herman Ridderbos, op. cit., p. 42. Op. cit., pp. 67, 68. Herman Ridderbos, op. cit., p. 42. Aqui também concordo com Lenski.
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síveis para essa exuberante alegria: a. tornaram a ver a sua "velha amiga", a mesma estrela que observaram em seu nascente, a mesma que, corretamente interpretado, se pusera em seu caminho para saudar o rei recém-nascido; b. agora discerniam claramente que Deus os guiava por intermédio destes dois meios: a estrela e a palavra profética; c. sabiam que logo alcançariam o seu destino e prestariam homenagem ao Messias, o rei dos judeus cuja vinda tinha que ver com os gentios também. A jornada dos magos atinge seu clímax no v.ll. Tendo entrado na casa, viram a criancinha com Maria, sua mãe, e se prostraram em terra e a adoraram. As cenas da natividade retratam a chegada dos magos. Não obstante, com freqüência eles são representados de pé ou de joelhos, na companhia dos pastores e num estábulo. Obviamente, isso é incorreto. Segundo o evangelista Lucas, quando os pastores chegaram, o nenê ainda estava "deitado na manjedoura" (Lc 2.16). Eles foram imediatamente, naquela mesma noite (Lc 2.8,15). A pequena família, José, Maria e a criança, continua a viver em relativa pobreza pelo menos durante quarenta dias, como é evidente de Lc 2.2224; cf. Lc 12.2-8. Se os magos do Oriente, com seus preciosos presentes, chegaram dentro desse período de quarenta dias, então no quadragésimo dia a oferta de purificação de Maria provavelmente teria sido algo melhor que "um par de rolas e dois pombinhos". E evidente que José e sua família já tinham deixado o estábulo, talvez logo depois do nascimento da criança, e certamente antes da chegada dos magos. Agora não estão mais num refúgio de animais, senão que vivem numa casa para seres humanos (com alguns parentes?). Quase unanimamente os tradutores concordam com a tradução (os magos) "tendo entrado na casa", 174 ou algo semelhante.175 174
A. T. Robertson considera esta "casa'" como a hospedaria em distinção do "estábulo onde estavam o gado e os jumentos, o qual poderia estar debaixo da pousada na encosta da colina", Word Picíures, Vol. I, p. 19. Nesse caso, Mateus não teria escrito "hospedaria" ou "pousada" (como Lucas; ver 2.7) em vez de "casa"? 175 Entretanto, recentemente sugeriu-se que a palavra grega oixta, usada aqui em 2.11, deveria ser traduzida por "vila" em vez de "casa". Ver S. Bartina, "Casa o
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Tendo entrado, os magos vêem "a criancinha com Maria sua mãe". Note-se que sempre que a mãe e a criança são mencionadas juntas (vv. 11, 13, 14, 20 e 21), a criança é sempre mencionada primeiro. E sobre a criancinha que o interesse principal é concentrado. Não poderia ser de outra forma, porquanto foi neste pequenino que Deus se encarnou: Velada em carne se vê a Divindade; Salve a Deidade encarnada! (Charles Wesley) Até onde os magos entendiam esta verdade não sabemos. Porém sabemos, sim, que ao verem-no se prostraram em terra e o adoraram; literalmente: "e tendo caído, se prostraram diante dele". Reverenciaram-no como o Messias, o rei dos judeus. E verdade que o verbo empregado no original e aqui traduzido "adoraram" nem sempre indica um ato de reverência prestado a Deus, o Criador e Redentor. As vezes é à criatura — Pedro (At 10.25); ou à igreja em Filadélfia (Ap 3.9) — antes que ao Criador, a quem se rende homenagem. Porém, quando assim se procede, esses são considerados como que estando em estreita relação com Deus, de modo que este fala e opera por meio deles. Todavia, se em tais casos o adorador não faz essa distinção, e passa a considerar o mero homem como se estivesse em paridade com Deus, com toda certeza receberá a reprimenda. Assim, quando Cornélio prostrou-se aos pés de Pedro e o caserio? Los magos en Belém (Mt 2.11; 10.12-14)", EstBib (março-abril, 1966), pp. 355-357. Não posso aceitar essa nova sugestão. Parece muito mais razoável supor que Mateus nos quer dizer que quando os magos entraram na casa foi que eles viram o menino com Maria sua mãe e não quando entraram na aldeia. Além disso, a adoração que renderam ao menino e a abertura dos tesouros sugerem uma atmosfera doméstica antes que um lugar ao ar livre. Se se objeta que é preciso ler nas entrelinhas com referência à entrada na casa, de modo que a idéia seria: "Uma vez entrado na aldeia e tendo-se informado a respeito da casa, entraram e viram...", minha pergunta seria: "O leitor interpretaria assim o texto pela metade? Se um escritor tão capaz e tão lúcido como Mateus quisesse transmitir tal idéia, não a teria expresso?" Além disso, o sentido usual de oi^ia no Novo Testamento é casa. considerada como um edifício (Mt 7.24-27; 24.43; Mc 10.29,30; 13.34: etc.); habitação ou moradia (2Co 5.1); ou casa, família (Mt 12.25; Mc 3.25; Jo 4.53: etc.). Não posso ver nenhuma razão plausível no presente caso para afastar-se desse sentido geral e adotar, ao contrário, a tradução vila, aldeia.
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adorou, este lhe disse: "Ergue-te, que eu também sou homem" (At 10.26). Quando João, o autor do livro de Apocalipse, se prostra a fim de adorar o anjo, seu guia, ele recebe uma advertência semelhante (Ap 22.8,9; cf. 19.10). Todavia, aos magos não é dito que não o fizessem. Eles podem ter feito mais progresso na verdadeira fé do que imaginamos. Segundo Mt 2.12, Deus, que lhes falara previamente por meio de uma estrela e (indiretamente) por meio de Miquéias, lhes fala igualmente em sonho. Além disso, como já foi assinalado previamente, os crentes que viviam no limiar da nova dispensação provavelmente lhes falaram sobre a vinda do Messias. Equipados com todo esse conhecimento, santificados os seus corações como se evidencia em todo o relato, bem que poderíamos pensar neles como homens que renderam ao Cristo infante o tipo de homenagem que em certo sentido bem real era agradável a Deus. Nesse menino eles de certo modo vêem a Deus e o adoram! Eles prestaram a homenagem adequada. Agora oferecem os presentes adequados (cf. SI 72.10; cf. Is 60.3; SI 87). Lemos: Em seguida abriram seus cofres e o presentearam com ofertas: ouro e incenso e mirra. Eles são aqui descritos não somente como sendo ricos, mas também como homens de coração ardoroso e adorativo. Esses homens lhe oferecem seus tesouros: o seu propósito é o de honrar a criança. Nos comentários, às vezes é designado um uso para cada um desses presentes. Provavelmente haja uma boa razão para isso. Não obstante, não seria fora de lugar começar mostrando que em geral a Escritura designa mais de um uso para cada um desses produtos. Por exemplo, o ouro foi utilizado extensamente na construção do tabernáculo e seus móveis (Ex 25—31; 35—40), do templo e seus pertences (lRs 5—7; 2Cr 2—5). Todavia, ele não se limitou aos usos sagrados. Ele foi também usado na forma de braceletes (Gn 24.22), colares (Nm 31.50) e brincos (Êx 32.2,3). Lemos sobre os "deuses de ouro" (Ex 20.23), um dos quais era o "bezerro de ouro" que Arão fez (Ex 32.4), embora negasse 243
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que o "fizera": ele simplesmente lançara o ouro ao fogo, "e saiu este bezerro!" (Êx 32.24). Tiago diz que o ouro e a prata do rico avarento estão enferrujados (5.3). Numa visão de João, o ouro serve ao propósito pouco sagrado de adornar a grande meretriz (Ap 17.4,5). Freqüentemente a palavra ouro é usada em comparações para ensinar aos homens que existem coisas muito mais preciosas que o ouro (SI 19.10; 119.72, 127; Pv 8.10,19). Quanto ao incenso (literalmente incenso puro), a palavra usada no Antigo Testamento é derivada de uma raiz que significa branco. Faz-se uma incisão no córtice de certa árvore do gênero boswellia, que cresce nas rochas calcárias do sul da Arábia e Somália (África oriental). O suco fresco resultante tem uma cor branca ou leitosa; daí o seu nome.176 Ora, o incenso também tem diversos usos. Ele é mencionado em conexão com manjares de flor de farinha (Lv 2.1,2,15,16) e procissões de bodas (Ct 3.6). Também aparece numa lista de artigos de comércio (Ap 18.13). A mirra provavelmente era derivada de uma pequena árvore de madeira odorífera, ou seja, balsamodentro da Arábia. Ela era usada com o propósito de perfumar uma cama (Pv 7.17) ou uma vestimenta (SI 45.8). Era prescrita para algumas damas jovens, com o fim de torná-las mais desejáveis (Et 2.12). Era também usada profusamente nas procissões matrimoniais (Ct 3.6). Misturada com vinho, ela servia como anestésico (Mc 15.23). Finalmente, era usada na preparação de um corpo para a sepultura (Jo 19.39,40). Essa lista de usos múltiplos é algo incompleto à luz de qualquer concordância. Contudo, isso é suficiente para demonstrar o fato de que, segundo a Escritura (tanto do Antigo como do Novo Testamento), cada um dos três presentes oferecidos pelos magos serve para mais de um propósito. Ora, se isso é correto, que justificativa tinha Orígenes (e muitos outros depois dele) para afirmar que os magos trouxeram "ouro para um rei; mirra 176
A raiz hebraica íbn como em Labão (tio e sogro de Jacó) e no monte Líbano, assim chamado em virtude da brancura ou da neve de seu pico oriental. A palavra grega é semelhante l í p a v o ç (Mt 2.11; Ap 18.13).
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para um mortal; e incenso para Deus"?' 77 Essa representação não é uma simplificação exagerada? Superficialmente, tal idéia pareceria correta. Contudo, quando toda a lista de passagens em que aparecem os três elementos é melhor observada, torna-se evidente que (pelo menos) há um elemento importante de verdade na observação de Orígenes. Começando com o ouro, é notável quão freqüentemente na Escritura esse precioso metal se associa deveras com a realeza: com o rei, a rainha, o vice-rei e o príncipe. José, um vice-rei, usa uma corrente de ouro ao pescoço (Gn 41.42) Assim faz Daniel com o terceiro governador (Dn 5.7,29). Da mesma forma Daniel, como o primeiro e o maior numa lista de reis terrenos, é representado por uma cabeça de ouro (Dn 2.32,38). O rei de Rabá usa uma coroa de ouro (2Sm 12.30). Da mesma forma o autor do Salmo 21, em cujo título é identificado como sendo de Davi. Os príncipes possuem ouro (Jó 3.15). O Salmo 45.9 fala de "a rainha com ouro de Ofir". Aquele que a si mesmo chama "rei de Jerusalém" é um colecionador de ouro e prata (Ec 2.8). E o rei Assuero estende o seu cetro de ouro para a rainha Ester (Et 4.11; 5.2; 8.4). Como se isso não bastasse, pode-se acrescentar que o rei Salomão não só tinha vasos de ouro para beber e um trono de marfim coberto de ouro, mas que se achava rodeado de ouro de tal forma que, em sete versículos onde se descreve a sua riqueza (lRs 10.14-18,21,22), o ouro é mencionado dez vezes. Portanto, vemos que para quem está familiarizado com os livros do Antigo Testamento, o ouro quase que imediatamente sugere realeza. Quanto ao incenso, na maioria dos casos em que a palavra ocorre no Antigo Testamento, é mencionada em conexão com o serviço prestado a Jeová. Era armazenado num cômodo do santuário (lCr 9.29; Ne 13.5), e é freqüentemente mencionado em conexão com manjares de flor de farinha, como um aditivo (Lv 2.1,2,15,16; 6.15). De acordo com Ex 30.34, ele entrava como um ingrediente na composição do perfume aromático, com 177
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respeito ao qual se declara especificamente que não é para o povo, mas somente para Jeová (Ex 30.37). No Antigo Testamento, a palavra básica incenso ocorre mais de uma centena de vezes.'78 No Novo Testamento ela é encontrada em Lc 1.9-11 e Ap 8.3,4. Sempre que ela ocorre é em referência ao serviço prestado a Deus. Ao oferecer incenso, tiravam-se carvões acesos do altar do holocausto e eram colocados no altar do incenso, o altar de ouro que estava no lugar santo imediatamente em frente do Santo dos Santos. O incenso era derramado sobre esses carvões. A fumaça aromática que se elevava ao céu simbolizava as orações e ações de graças dos sacerdotes e do povo. O incenso era definitivamente uma oferenda feita a Deus (ver Lc 1,9s; Ap 5.8; 8.3). O incenso, bem como o perfume aromático em geral, sugere imediatamente Deus. Portanto, ele lhe pertence, e somente a ele. Mesmo quando é ele oferecido aos ídolos, Deus ainda o chama de "meu perfume" (Ez 16.18). Portanto, é evidente que, como o ouro e o rei vão juntos, assim também o incenso e Deus. Quanto à mirra, em mais de uma dúzia de passagens do Antigo Testamento, onde ela ocorre, é mencionada em conexão com o serviço de Jeová em apenas uma instância. Ela entra na composição do óleo da unção (Ex 30.22-33). Quanto ao mais, como já ficou indicado, ela era um perfume usado por e no interesse de um homem mortal, para fazer sua vida mais prazerosa, sua dor menos cruel e sua sepultura menos repulsiva. Portanto, fica estabelecido que Orígenes tinha boas razões para afirmar que os magos trouxeram "ouro para um rei; mirra para um mortal; e incenso para Deus". Um poeta famoso escreveu: Não o que damos, mas o que compartilhamos, Porque a oferta sem o doador é vazia. (Lowell) Aqui em Mateus 2 temos uma ilustração de genuínos doadores. Eles não hesitaram em empreender uma longa e árdua viagem (provavelmente de mais de mil milhas [cerca de 1.600 km]). 178
Entretanto, !'bhonah, que em geral as versões em português traduzem "incenso" em Is 43.23; 66.3; Jr 6.20; 17.26; 41.5, pode ser também traduzido "abismo".
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para render homenagem a quem, para a maioria do povo, deve ter sido considerado apenas como um nenê. Além disso, ele era um menino de humilde nascimento, pertencente a uma nação que perdera sua liberdade. Todavia, esses homens importantes não só se prostraram diante dele, mas também presentearam-no com dádivas que eram não somente generosas, mas também realmente apropriadas; ouro, para aquele que de fato era rei — sim, "Rei dos reis e Senhor dos senhores" —, incenso para aquele que de fato era Deus — em quem habita a plenitude da divindade — e mirra para aquele que de fato é também homem, destinado à morte, e isso com base em sua própria decisão. Não sabemos até que ponto os magos entenderam isso. Basta-nos dizer que sua vinda, a adoração que prestaram e as dádivas que ofereceram foram aceitas aos olhos de Deus. A lição principal de Mateus para os judeus que foram os primeiros a ler seu Evangelho, ou ouvir sua leitura, era lembrar-lhes o fato de que essa salvação, ainda que tem o seu início com os judeus, não termina aí. Os gentios devem ser igualmente conquistados para Cristo. A vinda dos magos foi sem dúvida uma lição para os judeus... e para os homens de cada nacionalidade e raça, uma lição que deve-se conservar na memória: se mesmo os magos, com o seu limitado conhecimento, fizeram isso por Cristo, então, por que nós, tão altamente privilegiados, não o fazemos? 12. E tendo sido advertidos em sonho a não retornar a Herodes, voltaram ao seu país por um caminho diferente. Com freqüência é difícil para pessoas completamente honestas compreender os hipócritas, e para as generosas compreender as maquinações das pessoas egoístas. Não surpreende, pois, que os magos não pudessem perceber as verdadeiras intenções de Herodes quando lhes disse: "informai-me, para que eu também possa ir adorá-lo." Porém, embora os olhos dos magos não fossem bastante argutos para descobrir o disfarce do rei, diante de Deus nada está oculto (Hb 4.13). Ele não quer que os magos sofram dano algum, nem quer que a vida de seu Filho seja eliminada antes que ele tenha terminado a obra que seu Pai lhe deu 247
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para realizar. Então os magos precisam ser avisados (v.12), e igualmente José (v. 13). Em cada caso o aviso chega durante um sonho. Uma vez instruídos para não retornarem a Herodes, os magos se retiram para o seu próprio país seguindo outra rota. Prontamente vem à mente o caminho de Jericó e do Jordão, porém tal sugestão não é mais que uma conjectura. Em seu relato da natividade, Mateus faz menção dos sonhos como um meio de revelação divina a. a José (em 1.20; 2.13, 19, 22) e b. aos magos (em 2.12). A narrativa da Paixão registra o sonho da esposa de Pilatos (27.19). O Antigo Testamento relata os sonhos de Abimeleque (Gn 20.3,6,7); de Jacó (Gn 28.10-17; 31.10,11); de Labão (31.24); de José, irmão de Benjamim (37.5-11); do copeiro e do padeiro (capítulo 40); de Faraó (capítulo 41); de uma midianita (Jz 7.13-15); do rei Salomão (1 Rs 3.5 -15); de Nabucodonosor (Dn 2 e 4); e de Daniel (capítulo 7).179 Freqüentemente enfatizava-se o que era visto no sonho, ou seja, a visão. Diante do que agora sabemos sobre sonhos, é razoável crer que os magos foram realmente "avisados" num sonho? Comumente pensamos de um sonho como algo pelo qual nós mesmos somos totalmente responsáveis, ou seja, o sonho reflete de uma forma mais ou menos distorcida o que previamente tem estado em nossa mente. A seqüência de experiências do sonho é construída com sensações, imagens e pensamentos que permaneceram em alguém. O sonho pode ser muito vívido, uma experiência viva, seja motivo de alegria ou de alarma. Diz-se que a maioria dos sonhos ocorre no momento em que caímos no sono ou no momento em que despertamos. Visto que o raciocínio consciente do dia não está mais sob controle, e num estado de consciência suspensa e em que a imaginação entra em ação, as diversas sensações, imagens e pensamentos com freqüência se combinam e voltam a combinar-se de uma forma rara. Em muitos casos o sonho, de breve duração, é logo esqueci179
Provavelmente a experiência de Abraão descrita em Gn 15.12-16 devesse ser acrescentada, mas alguns prefeririam não chamá-la de sonho.
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do.180 Isso não deve preocupar-nos. Não dizem alguns filólogos que as palavras träumen (sonhar) e trügen (enganar) derivam da mesma raiz? Não nos ensina a própria Escritura que "na multidão dos sonhos há futilidade"? (Ec 5.7). Se naquele tempo isso era verdade, quanto mais agoral Para contrariar essa pobre estimativa dos sonhos, alguns apelam para as declarações que se fazem em favor das percepções extra-sensoriais. Por exemplo, uma senhora sonha que seu irmão cometeu suicídio. Tarde da noite ela e seu esposo se dirigem à casa do irmão e descobre seu corpo morto.181 Casos como esse são numerosos. Contudo, antes que qualquer conclusão possa basear-se nesses casos, todas as pessoas que tiveram sonhos semelhantes e que não foram subseqüentemente provados pela realidade teriam de registrar também suas experiências. Certamente que nem todos os pesadelos refletem a realidade! Primeiro é preciso estabelecer critérios cientificamente adequados para julgar de uma forma objetiva tais informes. Pode-se formular a seguinte pergunta: "Mas se os sonhos dos tempos bíblicos eram freqüentemente significativos, por que não (ou, por que não tão clara e enfaticamente) hoje?" A resposta é que, visto que temos a plena revelação de Deus em Jesus Cristo, os sonhos como meios de revelação divina não são mais necessários. Nos tempos de antanho Deus falou de forma fragmentária e variada. Um desses fragmentos e métodos pelos quais ele se revelou foi o sonho. Nestes últimos dias, especialmente agora que a plena revelação em Jesus Cristo ficou registrada e o Espírito Santo foi derramado, Deus nos falou uma vez por todas em seu Filho (ver Hb 1.1,2a). E razoável, portanto, crer que os magos, menos privilegiados que nós, foram avisados por meio de um sonho, mas que para nós os sonhos perderam muito da importância e significado que uma vez tiveram. I8
" Para provar esse ponto alguns escritores às vezes se referem a Dn 2.8: "... vedes que o que eu disse está resolvido" (Atualizada), interpretado como querendo dizer: "o sonho se me foi da mente, o esqueci". Uma tradução melhor seria: "Vedes que o decreto está firmemente resolvido de meu lado, isso se não fizerdes..." Em parte alguma de Dn 2 há evidência de que Nabucodonosor tenha esquecido o sonho. 181 .1. B. Rhine, New Frontiers of the Mind, Nova York e Toronto, 1937; ver especialmente pp. 10, 11; 255-259.
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A tudo isso deve-se somar mais um fato. Na maioria dos relatos de sonhos interessantes já mencionados, a Escritura distintamente acrescenta que o sonho, longe de ser o resultado das experiências pessoais do dia, equivalia a uma mensagem divina. As vezes aquele que sonhava parecia estar consciente disso mesmo durante o sonho; noutras ocasiões ele o reconhecia ao despertar; ou alguém lho contava no processo de interpretar o sonho. Dessa forma não lemos meramente que Abimeleque sonhou, mas que Deus veio a Abimeleque num sonho. E igualmente dito que ele veio a Labão. Jacó, em seu sonho em Betei, ouve o Senhor a lhe falar, dizendo: "Eu sou Jeová..." Por meio do sonho de Faraó Deus revelou-lhe o que estava para fazer. Jeová apareceu a Salomão em sonho, dizendo: "O que eu devo dar-te?" No sonho de Nabucodonosor referente à árvore, eraIhe revelado o decreto do Altíssimo. Com toda probabilidade foi um anjo que interpretou para Daniel o seu sonho, mostrando-lhe que também nesse caso o conteúdo do sonho era algo de que Daniel mesmo não era exclusivamente responsável. Finalmente, declara-se que pelo menos em três dos quatro casos em que se relata um sonho de José, marido de Maria, foi um anjo quem lhe falou em sonho. Assim também os magos foram divinamente avisados por meio de um sonho. Se apesar de todas essas considerações e do cumprimento desses sonhos bíblicos o cético ainda insistir em considerá-los como estando inteiramente no mesmo nível de nossos próprios sonhos, a responsabilidade é inteiramente dele. Ele terá criado para si mesmo um problema cuja solução será impossível enquanto ele mantiver seu ceticismo. 13 Ora, quando eles se retiraram, o que aconteceu? Um anjo do Senhor apareceu a José em sonho, dizendo: "Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito, e permanece lá até que eu te diga (que voltes), porque Herodes vai procurar pelo menino a fim de destruí-lo." 14 Então ele se levantou de noite, tomou consigo o menino e sua mãe e partiu para o Egito, 15 onde permaneceu até a morte de Herodes; para que se cumprisse o que falou o Senhor por meio do profeta, dizendo: "Do Egito chamei meu filho."
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2.19,20
2.13-15 A Fuga para o Egito 13. Ora, quando eles se retiraram, o que aconteceu?182 Um anjo do Senhor apareceu a José em sonho, dizendo: Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egito e permanece lá até que eu te diga (que voltes), porque Herodes vai procurar pelo menino a fim de destruí-lo. José e Maria devem ter-se sentido grandemente consolados pela chegada dos magos e pelo que eles fizeram. Era uma confirmação de todas as coisas maravilhosas que haviam sido anteriormente ditas acerca da criança: por um anjo a José (Mt 1.20,21); pelo anjo Gabriel a Maria (Lc 1.26-35); por Isabel a Maria (Lc 1.42); pelos pastores quando relataram a Maria e José o que ouviram dos anjos no campo perto de Belém (Lc 2.8-19); e por Simão ao dirigir-se a Maria e José (Lc 2.25-33). Não obstante, Simão também falara sobre uma espada que traspassaria a alma de Maria (Lc 2.34,35). Estava já começando a traspassá-la, porque em sonho (ver comentário sobre o versículo precedente, Mt 2.12) José ouve a voz angelical dizendo-lhe que se levantasse imediatamente e fugisse para o Egito com o menino e sua mãe; a razão: era iminente uma ação cruel por parte de Herodes, isto é, a procura pelo menino com o fim de eliminá-lo. Nessa ordem de levantar-se apressadamente e fugir para o Egito revela-se o cuidado protetor de Deus, a crueldade de Herodes e outra etapa na humilhação do menino — para as etapas anteriores, ver Jo 1.14; 2Co 8.9; Lc 2.7; 2.24. Por que a fuga tinha de ser para o Egitol Resposta: a. o Egito não era tão longe, isto é, não tão longe como Babilônia ou Pérsia; b. muitos judeus viviam lá (Jr 43.7; 44.1; At 2.10), de modo que não se deve ignorar a possibilidade de que a sagrada família pudesse viver por algum tempo entre conhecidos; c. o Egito ficava fora da jurisdição de Herodes; e d. assim a profecia de Oséias (11.1) poderia cumprir-se afinal (ver mais adiante comentário sobre o v. 15). 182
Quanto a i5oú, ver nota de rodapé 133.
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2.14,15
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Poder-se-ia apresentar a seguinte objeção: "Por que Deus não usou algum outro meio para frustrar o hediondo plano de Herodes? Por exemplo, por que simplesmente não matou Herodes?" A resposta é a seguinte: "Não temos o direito de questionar os caminhos da soberana providência de Deus" (ver Rm 9.19,20; cf. Dn 4.35; outra vez Rm 8.28). 14. Então ele se levantou de noite, tomou consigo o menino e sua mãe e partiu para o Egito. Aqui, novamente, como em 1.24, José "fez como o anjo do Senhor lhe ordenara". Levantou-se de noite, e com a criança e sua mãe partiram para uma terra estranha, com ordens de permanecer lá até que o anjo voltasse a aparecer, o que certamente foi-lhe muito difícil. Porém, José era o tipo de pessoa que obedece sem fazer perguntas. Assim, na escuridão da noite ele foge de Belém em direção do Egito, 15.... onde permaneceu até a morte de Herodes. Quanto aos detalhes da chegada ao Egito, da procura de alojamento, etc., nada se registra. Muito menos sabemos quanto tempo a sagrada família permaneceu ali. De todas as opiniões que se têm expresso acerca desse tema, aquela segundo a qual o nascimento de Jesus ocorreu no último ano da vida de Herodes,183 e a volta do Egito ocorreu pouco depois da morte desse rei ("onde permaneceu até a morte de Herodes"), parece ser a melhor. Notese que o relato da matança das criancinhas (vv. 16-18), que deve ter ocorrido logo depois da partida dos magos, é seguida imediatamente pela declaração: "Ora, quando Herodes morreu." E prossegue: para que se cumprisse o que falou o Senhor por meio do profeta, dizendo: Do Egito chamei meu filho. De uma forma notavelmente bela, a profecia de Oséias apresenta o grandioso amor de Deus, um amor que regenera e restaura. Diz-se-nos que o profeta se casara com uma mulher chamada Gômer. Todavia, sua esposa não lhe era fiel. Ela se transformou numa "esposa adúltera". Ela seguiu após outros amores e concebeu filhos de adultério. Se a "mulher" mencionada no terceiro capítulo de Oséias é Gômer, o que é uma l!
° Ver Sandmel, op. cit., p. 261.
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conjectura razoável, então o resto da história é como segue: Oséias, em vez de rejeitar completamente sua esposa infiel, se esgueira pelos antros da ignomínia, compra Gômer por quinze peças de prata e um ômer e meio de cevada, e misericordiosamente a restaura à sua primeira posição de honra. Nessa profecia, a idéia principal na história de Oséias e Gômer é aplicada a Israel. Assim como Oséias se casou com Gômer, Jeová se tornou o esposo de Israel. Como Gômer foi infiel a Oséias, assim Israel se tornou infiel a Jeová. Como Gômer foi escravizada pelos seus amantes, assim os israelitas seriam escravizados por aquelas mesmas nações em que puseram sua confiança. Assim como em seu terno amor Oséias restaurou Gômer, Jeová também restauraria o remanescente de Israel. Para mostrar a grandeza de seu amor, Jeová, pela boca de Oséias, lembra a Israel que quando ele ainda gemia sob o jugo da escravidão egípcia, Deus já havia posto o seu amor sobre a nação: "Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei meu filho" (Os 11.1). Outras passagens onde esse maravilhoso amor é lindamente expresso são: Dt 32.8-10 — "Porque a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança. Achou-o numa terra deserta... guardou-o como a menina dos seus olhos"; e Is 63.9 — "Em toda a angústia deles foi ele angustiado...". Talvez a mais relevante em conexão tanto com Os 11.1 como com Mt 2.15 seja Êx 4.22: "Israel é meu filho, meu primogênito"; cf. também Ez 16.8: "... e entrei em aliança contigo, diz o Senhor Deus; e passaste a ser minha." Ao citar Os 11.1 e aplicá-lo a Cristo, é evidente que Mateus está considerando Israel como um tipo do Messias. Jesus Cristo, também, é o Filho de Deus. E verdade que ele o faz no sentido trinitário e mais profundo do termo (cf. Jo 1.14). Assim como Faraó, esse rei cruel, tentara destruir Israel, outro rei, chamado Herodes, não menos cruel, tenta agora destruir Cristo. Porém, assim como, a caminho do Egito, durante sua permanência na casa da servidão e em seu êxodo Jeová protegera seu povo, também protege seu Filho, não só a caminho do Egito e 253
2.15
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durante sua residência temporária lá, mas também em seu regresso. O Messias estava, por assim dizer, recapitulando a história de seu povo Israel. Não obstante, não é suficiente dizer que Israel era um tipo de Cristo. O liame entre ambos é muito mais estreito do que o termo "tipo" subentende. Cristo viria de Israel em sua natureza humana. Se Israel tivesse sido destruído no Egito, as profecias messiânicas (Gn 22.18; 26.4; 28.14; 49.10) não se cumpririam. Portanto, é sem sombra de dúvida que quando Israel foi eficazmente chamado do Egito, Cristo também o foi. Por isso, Mateus está plenamente certo em dizer: "para que se cumprisse o que foi dito pelo Senhor por meio do profeta: "Do Egito chamei meu filho." Entre as passagens mais espantosas em que Cristo e seu povo são postos em estreitíssima união está At 22.7: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" Ver também Mt 10.25; Mc 13.13; Jo 15.18-21; 2Co 1.5,10; G1 6.17; Cl 1.24; Hb 11.26; Ap 3.12,21; 4.4; cf. 14.14; 12.13; 14.1; 17.14; 19.11; cf. 19.14; 20.4. lóEntão Herodes, quando viu que fora enganado pelos magos, ficou em extremo furioso, e ordenou que todas as crianças do sexo masculino de Belém e regiões circunvizinhas fossem mortas, todas aquelas de dois anos para baixo, segundo o tempo em que ele indagara dos magos. 17Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias: 18 "Ouviu-se uma voz em Ramá, gemidos e grande lamento, Raquel lamentando-se por seus filhos, e recusa ser consolada, porque já não existem."
2.16-18 A matança das criancinhas Com toda probabilidade, não levou muitos dias para que Herodes concluísse que jamais tornaria a ver os magos. Depois que o deixaram, talvez tenha esperado um ou dois dias. Agora compreendeu que a sua ordem: "Quando o tiverdes encontrado, informai-me" não fora obedecida. 16. Então Herodes, quando viu que fora enganado pelos magos, ficou em extremo furioso, e ordenou que todas as crianças do sexo masculino de Belém e regiões circunvizinhas fossem mortas, todas aquelas de dois anos para baixo, segundo o tempo em que inda254
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gara dos magos. Herodes está convencido de que fora enganado184 pelos magos. Então acendeu-se sua ira. Uma vez que em toda a sua vida não exerceu o autodomínio, agora não tem mais condições de controlar suas paixões. Numa explosão de violência ele ordena a morte de todos os meninos de Belém e seus arredores, todos aqueles de dois anos para baixo. A ordem é executada. Os soldados de Herodes entram nas casas e, com suas adagas afiadas, matam todos esses pequeninos. Como o pecado escraviza os homens, e quão inconsistentes se tornam! Herodes deveria estar zangado era consigo mesmo, pois havia sido ele quem cometera o engano. Ao fazê-lo, é provável que tenha rido da simplicidade dos magos, que, segundo pensava, realmente acreditavam que ele, o grande rei Herodes, iria a Belém curvar-se pessoalmente diante de um nenê judeu, pretendente ao trono! Agora que sua astúcia se voltou contra si mesmo — o fato de os magos não voltarem a ele ferira o seu orgulho —. o cruel tirano está irado com aqueles a quem ele mesmo tentou ludibriar. Como o pecado transforma os homens em néscios! Herodes é realmente incapaz de compreender que uma mão suprema está movendo as peças e os peões no tabuleiro de xadrez da vida. Não compreendeu ele que o Deus que levou a primeira tentativa ao fracasso (v.8), de tal forma que os magos nunca mais voltaram a ele, faria fracassar a segunda tentativa (v.16), de modo que, enquanto as criancinhas eram assassinadas em Belém, o verdadeiro objeto dos desígnios destrutivos de Herodes já estava a salvo a caminho do Egito? Se o rei lera alguma vez o Salmo 2, sem dúvida que jamais o levou a sério. Cf. também Ap 17.14. Em conexão com o relato da matança das criancinhas não se deve ignorar vários erros ou procedimentos que são alvo de freqüente discussão: 184
Nos Evangelhos a palavra èfinaíÇa) comumente tem o sentido de zombar, escarnecer, ridicularizar(Mt27.29,31; Mc 10.34; 15.20;Lc 14.29; 22.63; 23.36). Entretanto, o sentido enganar está representado pela tradução LXX de Jr 10.15, onde os ídolos são qualificados de "obras de engano". Talvez ambas a.s idéias estejam combinadas aqui em Mt 2.16, já que a palavra trapaceado pode incluir a idéia de engano e a de zombar no sentido de ridicularizar, talvez seja a melhor tradução.
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2.14,15
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1. Títulos questionáveis? Em algumas Bíblias o título dessa seção (Mt 2.16-18) é "A matança dos inocentes". Quando esta palavra — "inocentes" — é tomada num sentido bem amplo como indicativo de pessoas que são inculpáveis (cf. Jo 1.47) e inofensivas, ou que não são culpadas do crime de que são acusadas, tal emprego é indubitavelmente correto. Nesse sentido relativo, nós também falamos corretamente de "crianças inocentes", e esse uso do termo não pode ser proibido. Por outro lado, se o termo pretende indicar aqueles que são livres de todo pecado ou culpa, qualquer que seja ela, então ele entra em contradição com o claro ensino da Escritura. As criancinhas são também culpadas em Adão. O pecado, tanto o hereditário como o atual, as atingiu também (Jó 14.4; SI 51.5; Rm 5.12,18,19; ICo 15.22; Ef 2.3). Se as criancinhas precisam ser salvas, essa salvação não lhes é concedida sobre a base de sua suposta inocência, e, sim, pela aplicação que lhes é feita dos méritos de Cristo,185 Portanto, visto que o título "A matança dos inocentes" é bastante ambíguo, não seria melhor substituir a palavra inocentes por criancinhas? Se o termo inocentes pode ser bom, criancinhas não seria melhor? Ainda outro título é digno de connsideração: "A matança dos primeiros mártires." Diz Irineu: "Por esta razão ele (o Senhor) subitamente removeu aquelas criancinhas que pertenciam à casa de Davi, cuja feliz sorte foi ter nascido naquele tempo, para que pudesse enviá-las antecipadamente ao seu reino. Visto que ele mesmo era uma criancinha, providenciou para que criancinhas humanas fossem mártires, mortas, segundo a Escritura, pela causa de Cristo, que nasceu em Belém da Judéia, na cidade de Davi."186 Desde muito cedo a igreja começou a considerar essas criancinhas como os primeiros mártires. Assim nasceu a festa dos santos inocentes, celebrada na Igreja Grega em 29 de de185
Sobre a outra pergunta: "São salvos todos os que morrem na infância?'', ver o livro deste autor, A Vida Futura Segundo a Bíblia, editado em português por esta Editora. 186 Contra Heresias Ill.xvi, 4.
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zembro (calendário juliano) e na Igreja Latina em 28 de dezembro. Contudo, geralmente pensamos que um mártir é "alguém que sofreu ou morreu por suas convicções cristãs". Conseqüentemente, esse termo dificilmente seria aplicável a criancinhas. 2. Concepção errônea. No curso da História tem havido quem sustente que Herodes mandou matar milhares de crianças. De fato, seu grande número tem sido identificado com os 144 mil de Ap 14.1.187 Não há justificativa para isso. Numa cidade tão pequena como era Belém naquele tempo, mesmo que se somem seus arredores imediatos, como se deve fazer (ver 2.16), poderia o número dos mortos subir a mais de quinze ou vinte? 3. Avaliação incorreta. Há quem expresse a opinião de que a morte dessas criancinhas era um castigo para seus pais pelo fato de não terem prestado adoração a Cristo. Objeção: Não existe no texto nenhuma palavra que abone tal idéia. 4. Inferência injustificável. Pelas palavras "todas aquelas de 2 anos para baixo, segundo o tempo em que ele indagara dos magos" infere-se que Jesus teria uns 2 anos quando ocorreu a matança das crianças. Não obstante, essa conclusão é questionável. Diz A. Edersheim: "Nosso Senhor nasceu antes da morte de Herodes, e a julgar pela história do Evangelho, muito pouco antes desse evento."188 Essa afirmação tem todas as probabilidades de ser correta, como o indicam as seguintes datas: Jo 2.20 afirma que quando Jesus assistiu a primeira Páscoa (2.13) e purificou o templo (2.14-16) essa estrutura estivera em construção ao longo de 46 anos. De Josefo ficamos sabendo que a obra foi iniciada mais ou menos no ano 19 a.C.189 Isso nos levaria à primavera do ano 27 d.C. como o ano da primeira Páscoa. Porém, o batismo de Jesus e seu primeiro aparecimento público ocorreram um pouco antes (ver Jo 1.32—2.12), provavelmente por 187
Ver L. M. Sweet, artigo "Innocents, Massacre of the", I.S.B.E., 1898, Vol. II, p. 1471. 188 The Life and Times of Jesus the Messiah, Nova York, Londres e Bombay, 1898, Vol. II, p. 704. 189 Antigüidades XV, 380.
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volta de dezembro do ano 26 d.C. Lc 3.23 nos informa que naquele tempo Jesus tinha cerca de 30 anos de idade. Portanto, o seu nascimento pode ter ocorrido em dezembro do ano 5 a.C. Não podemos permitir uma margem de erro de mais de um ano. Além disso, como se afirmou anteriormente, a impressão que Mateus 2 produz é que o nascimento de Jesus, a vinda dos magos, a fuga para o Egito e a matança das crianças ocorreram bem pouco antes da morte de Herodes, ou seja, antes do dia 4 de abril do ano 4 a.C. Essa apresentação não deve ser considerada como uma argumentação em defesa de que é indiscutível a exatidão da celebração do natal no dia 25 de dezembro.190 É um fato bem conhecido que tal costume não teve origem antes do terceiro ou quarto século. Até onde nós sabemos, Jesus poderia ter nascido em algum outro mês. Outubro? Novembro? Não sabemos. Por outro lado, a data de dezembro não deve ser rejeitada simplesmente por acreditar-se que nessa época do ano não poderia haver "pastores na mesma região, no campo, guardando de noite o seu rebanho" (Lc 2.8). Numa carta datada de 16 de janeiro de 1967, o especialista em Novo Testamento, dr. Harry Mulder, da Holanda, escreve: "Durante os breves recessos natalinos minha esposa e eu viajamos de Beirute (onde ele estava ensinando naquele tempo) a Jerusalém. Em relação a isso posso responder à sua pergunta referente à presença de ovelhas nas vizinhanças de Belém no mês de dezembro. Na véspera de natal reuniu-se uma multidão para cantar canções natalinas no Campo dos Pastores. Unimonos à multidão e participamos dos cânticos. Ali, bem próximo a nós, estavam aconchegados alguns rebanhos de ovelhas. Nem mesmo faltavam os cordeirinhos. Era uma cena comovente. Por1911
Não obstante, é interessante a defesa dessa data baseada na divisão dos sacerdotes em 24 turnos (lCr 24) — Zacarias, o pai de João Batista, pertencia ao oitavo (Lc 1.5; cf. lCr 24.10) — e no fato de que, segundo o Talmude, a destruição do templo se deu em 4 e 5 de agosto de 70 d.C., no exato momento em que o ciclo sacerdotal de 168 dias (24x7) se completava. Ver A. Fahling, The Life of Christ, St. Louis, 1936, p. 732. Mas talvez esse cálculo esteja baseado em uma ou duas suposições que não podem ser comprovadas.
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tanto, é decididamente possível que o Senhor Jesus tenha nascido em dezembro. Contudo, talvez seja interessante mencionar em conexão com isso que os morenos monges cópticos, cujos humildes albergues estão localizados no coração da antiga cidade, celebram o natal a cada mês no terraço da Igreja do Santo Sepulcro, porquanto não se sabe exatamente em que mês nosso Senhor nasceu. O tempo em Jerusalém era lindo, e igualmente em Belém. Passamos umas poucas horas nos campos de Efrata, e não nos sentimos incomodados pelo frio nem por qualquer coisa semelhante." 19 ' Isso nos conduz de volta à pergunta: "Mt 2.16 quer dizer que Jesus teria cerca de 2 anos de idade quando se deu a matança das criancinhas?" Talvez essa pergunta possa ser melhor respondida com uma contrapergunta: "Baseando nossa resposta no que temos descoberto sobre o rei Herodes (ver pp. 220-240), o tirano orgulhoso e cruel, que estava sempre pronto a destruir a quem quer que se tornasse suspeito e que se constituísse uma ameaça ao seu poder, que fora repreendido diversas vezes pelo governo romano em decorrência de suas horrendas barbaridades, e que nesse exato momento estava lívido de ira, qual das duas interpretações seguintes de sua ordem aos soldados expressa melhor o que ele queria dizer?: a. "Visto que me informei dos magos que o chamado "rei dos judeus" tem cerca de 2 anos de idade, então matem todos os meninos de 2 anos para baixo." ou b. "Visto que me informei de fonte insuspeita que o aspirante em potencial ao meu trono tem cerca de dois meses de idade, então, para que me certifique que não escapará, matem todos meninos de 2 anos para baixo." 1,1
Na página 364 de sua muito interessante novela histórica Pontius Pilate, Garden City, Nova York, 1968, livro cuja leitura é um prazer, Paul L. Maier apela para Lc 3.1,2 em contradição à cronologia que, junto com outros, compartilho. Contudo, uma análise detalhada dessa passagem corresponde a um comentário sobre Lucas. Para o momento, devo limitar-me a fazer referência à minha própria tentativa de solução; ver Bible Survey, Grand Rapids, 1961, p. 415. Ver também nesse mesmo livro, pp. 59- 62. 9SQ
2.14,15
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A resposta é óbvia. Quando chegava ao ponto de matar, Herodes sempre se amparava numa ampla margem de segurança. Conseqüentemente, não existe em Mt 2.16 nada que contradiga a evidência cronologicamente sólida tomada do restante de Mt 2, Lc 3.23 e Jo 2.20.192 5. Rejeição inescusável. Há quem rejeite toda essa história. Ela é considerada como uma descrição preconcebida da pessoa de Herodes, uma expressão do sentimento hostil de toda a igreja contra ele.193 Todavia, como tudo se fez evidente agora, o relato coincide com o retrato da vida de Herodes, especialmente com a desordem mental e moral que caracterizou os últimos dias do rei. E certo que o tirano que matou alguns de seus próprios fdhos ao considerar que eles poderiam reivindicar o trono, não hesitaria em matar os filhos de outras pessoas ao suspeitar que entre eles poderia haver um que, a não ser que fosse destruído, um dia se tornasse culpado do mesmo crime! A seção se encerra com uma citação de Jr 31.15, como segue: 17,18. Então se cumpriu o que fora dito pelo profeta Jeremias: "Ouviu-se uma voz em Ramá, gemidos e grande lamento, Raquel lamentando-se por seus filhos, e recusa ser consolada, porque já não existem." Para entender-se essa citação é preciso ter em mente que no tempo do Antigo Testamento Ramá (a moderna er-Ram) estava localizada no limite entre os dois reinos — Israel e Judá (lRs 15.17; 2Cr 16.1). Ela estava situada a cinco quilômetros ao norte de Jerusalém. Era o local onde os conquistadores estrangeiros ordenavam à multidão derrotada que se reunisse para 1.2
1.3
Como se declarou antes, deve-se permitir uma margem de um ano. Por isso. na pergunta b. "'dois meses" poderia ser mudado para "um ano e dois meses". Não vejo como seria possível uma margem maior do que essa sobre a base do restante dos dados bíblicos. Com base na impressão que Mt 2 deixou em mim, assim como em outros (ver p. 257), também sou a favor de "dois meses" e não de "um ano e dois meses". Assim, por exemplo, Sandmel, op. cit., pp. 261 e 262.
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2.17,18
ser deportada para regiões longínquas. Por causa de sua localização, ela podia representar ambos os reinos. Essa última declaração vale também para Raquel, a esposa mais querida de Jacó. Ela também, visto que deu à luz a José, pai de Efraim e Manassés, estava habilitada a representar Israel, o reino das dez tribos (às vezes simplesmente chamado "Efraim"); e já que também deu à luz a Benjamim, estava habilitada a simbolizar Judá, o reino das duas tribos (Judá e Benjamim). Figuradamente, aqui em Jr 31.15 Raquel é retratada como estando ainda viva. E como se ela estivesse contemplando as desventuradas multidões reunidas em Ramá. Ela ouve os seus lamentos até que ela mesma se põe a prantear. Ela geme amargamente, porque está sendo privada de seus filhos: primeiro Israel parte para o exílio (2Rs 17.5,6), em seguida Judá (2Cr 36.17,20). Ela que vivia tão ansiosa para ter filhos — "Dá-me filhos, senão morrerei" (Gn 30.1) —, agora vê como alguns deles são mortos e outros são levados para terras estranhas. Quão amargas são suas lágrimas; quão forte e duradouro o seu lamento! Uma potência mundial — primeiro Assíria, depois Babilônia — lhe roubou o que lhe era mais querido. Não obstante, havia motivo de respeito. Realmente, o trigésimo primeiro capítulo de Jeremias, de onde Mateus extraiu essas palavras,194 está repleto de expressões de consolação. Esse consolo se refere tanto a Israel como a Judá (Jr 31.27,31; cf. 33.14), ou seja, à plenitude do remanescente (31.7). Jeová amou a seu povo com um amor eterno (31.3). Portanto, quem os espalhou também os ajuntará (31.10). Então, Raquel deve estancar seu pranto (31.16). Não é Efraim o filho querido de Jeová? (31.20). Não fará ele uma nova aliança com o seu povo (31.31), perdoando-lhe toda a sua iniqüidade e não mais lembrando de seus pecados? (31.34). O remanescente certamente voltará, e 194
A citação é quase literalmente com o hebraico. A diferença principal é a repetição no original hebraico (Jr 31.14 no texto hebraico) das palavras "por seus filhos"; daí, "Raquel chorando por seus filhos; ela recusa ser consolada por seus filhos". Essa diferença não é essencial porque a frase em questão também está implícita na última linha de Mt 2.18. 9ÍÍ1
2.17,18
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com que propósito? Simplesmente para reconstruir as cidades? (31.38). Não, será com o propósito de trazer "o Renovo de Justiça". Será ele a executar a justiça e o juízo na terra (33.14,15). O paralelo produzido por Mateus é muito claro. Em decorrência da matança das crianças de Belém, ele pinta Raquel chorando outra vez, essencialmente pela mesma razão. Esses filhos também já não existem. Dessa vez a potência mundial que os destruiu não foi Assíria nem Babilônia, e, sim, Edom, representado pelo cruel rei Herodes. Os meninos de Belém, de 2 anos para baixo, foram assassinados. O menino que era o alvo principal da ira de Herodes foi levado para o exílio. Ele está fugindo para o Egito. Não obstante, também no presente caso há uma ampla medida de consolação, se quem foi despojado pelo menos o leve a sério. Esse consolo está centrado no mesmo "Renovo de Justiça" mencionado por Jeremias. Ele voltará prontamente ao Egito a fim de salvar a todos aqueles que depositam nele a sua confiança. Então Raquel não deve mais desanimarse. Ao regressar, o Soberano nascido em Belém um dia pronunciará as consoladoras palavras: "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei" (Mt 11.28). Também dirá: "Deixai vir a mim os pequeninos; não os impeçais; porque a eles pertence o reino de Deus" (Mt 19.14). 19 Ora, ao morrer Herodes, o que aconteceu? Um anjo do Senhor apareceu a José em sonho, no Egito, dizendo: 20 "Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, porque os que procuravam a vida do menino já morreram." 21 Então ele se levantou e tomou o menino e sua mãe e veio à terra de Israel. 22 Porém, ao ouvir que Arquelau agora reinava sobre a Judeia no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ficar ali, e, advertido em sonho, partiu para a região da Galiléia. 23 Ao chegar ali, estabeleceu-se numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas, que ele (Jesus) seria chamado nazareno.
2.19-23 A volta do Egito e o estabelecimento em Nazaré 19,20. Ora, ao morrer Herodes... Ao que parece, a sagrada família não demorou muito tempo no Egito antes que ocorresse a morte de Herodes. Josefo, com grandes detalhes, relata os eventos ocorridos durante a enfermidade final do rei. Visto
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2.19,20
que naquele tempo a patologia e a diagnose ainda jaziam em seu estado infantil, seria bastante arriscado diagnosticar sua enfermidade usando a terminologia moderna, ou, talvez melhor, a complicação de enfermidades que levou o tirano à morte. Há quem nos lembre que Herodes fora um entusiasta desportista e conjectura que uma hipertensão cardíaca teve algo que ver com o seu falecimento. Em estreita conexão com isso, outros têm descrito a sua enfermidade como um caso muito avançado de arterioesclerose. Alguns falam de uma enfermidade do coração e hidropsia em decorrência de uma disfunção renal. Tem-se mencionado também a cirrose hepática. Josefo, ao enumerar os sintomas, fala de intestinos ulcerosos, de escrato putrefato e dominado por vermes, problema respiratório, convulsões constantes, etc. Nem os médicos nem os banhos quentes o conduziram à recuperação. Pouco antes de sua morte, o rei, ao compreender quanto era odiado pelos judeus, e que o anúncio de sua morte seria recebido com júbilo expediu a ordem para que "todos os homens principais de toda a nação judaica" se apresentassem diante dele. Todos quantos vieram foram aprisionados no hipódromo de Jericó por causa de sua ordem. Então disse ele à sua fraudulenta irmã Salomé e ao marido dela, Alexas, que o que mais o aborrecia é que ele morreria sem ser pranteado; portanto, o que eles deveriam fazer era que em sua morte fossem executados todos os líderes presos, para que assim houvesse pranto, se não por sua morte, ao menos em sua morte. Então concordaram. Entretanto, uma vez morto, a autoridade de Herodes para o cumprimento do acordo também cessara, de modo que não ocorreu o massacre. Antípater, o filho mais velho de Herodes, por meio de sua esposa Dóris (ver diagrama na p. 268), se queixara à sua mãe de que Herodes estava estendendo tanto sua existência terrena que ele, Antípater, estaria velho antes de alcançar o poder. Posteriormente, obteve-se testemunho segundo o qual Antípater chegara a estar profundamente envolvido num complô para envenenar seu pai. Levado ajuízo, negou o envolvimento, porém foi declarado culpado. Salomé insistiu com seu irmão para que exe263
2.14,15
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cutasse Antípater. Roma deu sua permissão. Tudo isso aconteceu quando Herodes enfrentava a aproximação de sua morte. Em meio aos seus problemas familiares, em suas agonias físicas e torturas mentais, subitamente Herodes tentou matar-se com a faca com que descascava uma maçã. Um primo em alerta, vendo o que estava para acontecer, o impediu. O forte grito do primo, ecoando pelo palácio, foi intepretado como se Herodes de fato tivesse morrido. Antípater, ao ouvir a notícia e acreditando que assim acontecera, animou-se e tentou subornar o carcereiro, pedindo-lhe que o pusesse em liberdade, com a promessa de grandes recompensas. O rei moribundo foi informado da ocorrência, e ordenou a imediata execução de seu filho. A ordem foi cumprida. Assim Herodes acrescentou outro filho à lista de seus próprios rebentos cuja execução ele próprio ordenou. Cinco dias depois, ele mesmo expirou. Arquelau, filho de Herodes e Maltace (ver diagrama na p. 268), providenciou para que seu pai tivesse um funeral esplendoroso. Seu cadáver foi envolvido em púrpura. Na cabeça lhe puseram uma coroa de ouro, em sua mão um cetro. O ataúde em que seu corpo repousava era de ouro maciço, com fileiras de pedras preciosas. Quinhentos escravos levavam perfumes. Ao longo do caminho que, através do deserto, leva de Belém a Jericó, ainda podem ser vistas as ruínas solitárias de Herodíon, local de sua sepultura. Josefo sintetiza a vida de Herodes com estas palavras: "Ele foi um homem de grande barbaridade para com todos os homens sem distinção, e um escravo de suas paixões." E o texto prossegue: (Ora, ao morrer Herodes) o que aconteceu? Um anjo do Senhor apareceu a José em sonho, no Egito, dizendo: "Levanta-te, toma o menino e sua mãe. Até aqui, exceto a frase "no Egito", que é acrescida, a sentença é idêntica à de 2.13. No meio daquele versículo o anjo prometeu que voltaria quando chegasse o tempo de José deixar o Egito. Agora aquela promessa está se cumprindo. Com respeito aos sonhos como meio de revelação, ver o comentário sobre 2.12. E prossegue: e vai para a terra de Israel, porque os que procura264
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2.19,20
vam a vida do menino já morreram. Herodes estava morto. José deveria entender que todos os demais que pudessem querer a morte do menino também estavam mortos.195 Observe-se o caráter por demais geral dessa ordem: não se diz a José aonde ir na terra de Israel. Essa revelação virá um pouco depois (no v.22b). Prossegue: 21. Então ele se levantou e tomou o menino e sua mãe e veio à terra de Israel. Como sempre, José obedece. Ao chegar à terra de Israel, provavelmente teria ele tentado estabelecer-se em Belém, onde antes de empreender a fuga para o Egito deve ter encontrado muitos amigos, parentes e uma chance de trabalho. E igualmente provável que ele e Maria assim tivessem decidido em virtude de seu fdho. Não estava perto Jerusalém, "a cidade santa", o centro da vida religiosa dos judeus, e o templo não estava ali? Entretanto, algo acontece e muda os planos de José: 22. Porém, ao ouvir que Arquelau agora reinava sobre a Judéia no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ficar ali, e, advertido em sonho, partiu para a região da Galiléia. Para compreender-se esse versículo é preciso lembrar que, antes de sua morte, o rei Herodes o Grande fez um testamento, o qual mudou diversas vezes. O governo romano aceitou os termos da revisão final a fim de executá-lo. Essa foi a razão por que, ao morrer seu pai, Herodes Antipas, filho por meio de Maltace, tornou-se tetrarca da Galiléia e Peréia; Arquelau, outro filho da mesma mulher, foi feito etnarca da Judéia, Samaria e Iduméia; e Filipe, filho de Herodes com Cleópatra de Jerusalém (não confundi-la com a belíssima Cleópatra do Egito), tornou-se tetrarca dos territórios do norte: Ituréia, Traconites, Gaulanites, Auranites e Batanéia. Os títulos rei, etnarca e tetrarca são nessa sentença mencionados na ordem descendente de autoridade e prestígio. Ao ouvir José que Arquelau agora reinava sobre a Judéia no lugar de seu pai, então teve medo de estabelecer-se ali. A O plural "os que estavam" em vez de "o que estava" é difícil. Tem-se sugerido "Herodes e seus soldados". Porém, foram mortos todos os soldados? Em Gram. N.T. (BI-Dehr), parágrafo 141, é mencionada a expressão "plural alusivo". Talvez o anjo quisesse enfatizar que agora não há absolutamente ninguém procurando destruir o menino. Para o significado de \|/t>X"n ("vida"), ver comentário sobre 6.25.
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2.15
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razão para esse medo se tornará evidente pelo seguinte: enquanto Herodes o Grande ainda vivia, ordenou ele que fosse afixada sobre a porta principal do templo uma grande águia dourada. Para os judeus que levavam a sério sua religião, isso se constituiu numa abominação, porquanto: a. era uma violação de Ex 20.4, segundo eles o interpretavam; e b. era em extremo repulsivo por causa da proeminência que os romanos davam a essa ave. Os soldados romanos levavam em seus estandartes imagens da águia imperial. Em seus templos, tais imagens eram também exibidas. Para os gregos e os romanos, igualmente, não havia uma íntima relação entre Zeus (Júpiter) e a águia, em certo sentido fazendo com que esta fosse partícipe da divindade? Dois famosos mestres judeus, Judas e Matias, homens considerados por todos como autoridades na lei de Deus, excitaram seus alunos a destruírem a águia que estava sobre a porta do templo. Alguns desses jovens estavam ansiosos para pôr em prática tal estímulo, sem se importarem com o que lhes poderia custar. Ao meio-dia subiram ao teto do templo e começaram a lançar abaixo a águia e a fazê-la em pedaços com seus machados. Esses jovens foram presos e conduzidos à presença de Herodes. Com o fim de evitar uma insurreição em Jerusalém, o enfermo rei os enviou a Jericó para serem julgados. O rei, dolorosamente combalido, também compareceu. Os jovens foram punidos de forma suave, porém seus mestres foram executados e sepultados de forma desonrosa. Herodes o Grande morreu. Em seguida, durante a páscoa, eclodiu uma grande rebelião em Jerusalém devido ao assassinato desses dois amados mestres da lei. Arquelau, que agora era o rei, parecia ter herdado a natureza de seu pai. Ele usou um método muito duro para abafar a rebelião, o que levou cerca de mil pessoas à morte, entre elas grande número de peregrinos que visitavam Jerusalém para assistir à festa. Antes de deixarmos Arquelau, é preciso mencionar que mesmo após a partida de José para a Galiléia, ele prosseguiu sendo um rei cruel. Como resultado, os líderes judeus e samaritanos se queixaram a Roma, e o etnarca foi deposto no nono ano de seu reinado (6 d.C.). Em seu lugar, Roma então designou 266
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2.19,20
"governadores". O mais conhecido desses, Pôncio Pilatos, foi quem sentenciou Jesus a ser crucificado (Mt 27.2,26). Essa crueldade de Arquelau explica por que José reconsiderou o seu estabelecimento na Judéia. Não obstante, como foi mencionado anteriormente, Belém atraía José como um bom lugar onde viver. Provavelmente lhe foi difícil tomar uma decisão definitiva. Sua hesitação é desfeita com um sonho. Dessa vez não se menciona um anjo como em suas três experiências anteriores com sonhos. Nesse último sonho ele é instruído a ir para a Galiléia. Ele obedece. 23. Ao chegar ali, estabeleceu-se numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas, que ele (Jesus) seria chamado nazareno. Isso pode ser parafraseado da seguinte forma: "Ao chegar à Galiléia, por sua própria decisão, porém dirigido pela providência divina, José regressou ao lugar de sua anterior residência, Nazaré (Lc 2.4), porque nesse ato de voltar a viver em Nazaré cumpria-se uma predição do Antigo Testamento, isto é, que o Messias seria desprezado e rejeitado pelos homens. Nazaré era considerada de pouca importância, bem como todos os seus habitantes, os nazarenos." Que o Antigo Testamento realmente prediz a baixa condição do Messias e sua rejeição pelos homens, pode-se ver claramente pelas seguintes passagens: SI 22.6-8,13; 69.8,20.21; Is 11.1; 49.7; 53.2,3,8; Dn 9.26. Que durante sua peregrinação terrena Jesus foi conhecido como um homem desprezado por Nazaré, e não como um belemita, faz-se evidente pelas seguintes passagens, entre outras tantas: Jo 1.45,46; 7.42. Realmente ele foi "desprezado e rejeitado pelos homens" (Mt 12.24; 27.21 23,63; Lc 23.11; Jo l . U ; 5.18; 6.66; 9.22,24), como o foram também os seus seguidores, os nazarenos (At 24.5). Portanto, novamente aqui houve um cumprimento definido da profecia; todavia, não de uma passagem específica, mas de "os profetas" em geral.196 Pontos de vista objetáveis: I. Mateus está pensando numa passagem definida, is 11.1, onde a palavra nelser é utilizada para indicar A azare. Resposta: Nào há uma conexão etmológiea entre essa palavra hebraica e NaÇapét.
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Cap. 2
Quando comparamos a natividade descrita por Mateus e a de Lucas, dificilmente deixamos de perceber a sublime harmonia dos relatos inspirados. Mateus demonstra como o nascimento de Cristo em Belém foi paulatinamente esquecido. O ato criminoso de Herodes fez com que a sagrada família fosse para o Egito e voltasse logo para Nazaré. Assim Mateus relata que Jesus, embora nascesse em Belém (Mt 2.1), foi chamado nazareno (Mt 2.23; 21.11; 26.71; Jo 1.45,46; 7.42). Lucas, por outro lado, demonstra que Jesus, ainda que criado em Nazaré (2.4,51), nasceu em Belém (2.4,7). Ambos os lugares (Belém e Nazaré) são combinados para demonstrar que Jesus é verdadeiramente o Cristo das profecias (Mt 2.5,6; 2.23). Sumário do Capítulo 2 1. Os magos do Oriente (vv.1-12) A viagem que empreenderam (v. 1) Magos do "Oriente" (Medo-Pérsia? Babilônia?) chegam a Jerusalém. Não sabemos quantos eram, como se vestiam, seus nomes, sua história posterior, a data de sua morte nem o lugar onde foram sepultados. A pergunta que formularam (v.2). Eles inquirem: "Onde está o recém-nascido rei dos judeus?" Uma "estrela" extraordinária, que viram quando apareceu pela Além disso, Mateus não diz "o profeta", e, sim, "os profetas". Não acrescenta a palavra "dizendo", como se fosse citar uma passagem definida. Portanto, com toda probabilidade, aqui õxt não deve ser reproduzido com aspas como se fosse uma citação, nem traduzido "que", mas "porque". Tudo isso não significa que Is 11.1 deva ser excluída da lista de passagens... às quais Mateus faz referência. Sem dúvida deve ser incluída, mas não por causa de uma suposta referência direta a Nazaré; antes, porquejunto com outras passagens faladahumilde origem do Messias. Não obstante, é preciso acrescentar imediatamente que qualificar Jesus de "o nazareno" ou "homem de Nazaré" não implica necessariamente desprezo. De fato, na maioria dos casos não possui uma conotação desfavorável, quer na forma de N a Ç a p a t o (Mt 26.71, etc.) ou de Na^aprivóç (Mc 1.24, etc.). Jesus mesmo o usa para referir-se a si mesmo (At 22.8). 2. Nazareno=nazireu, pessoa especialmente consagrada a Deus. Ver Nm 6. Resposta: O contexto relaciona nazareno com Nazaré e não com alguma idéia especial de consagração.
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Cap. 2
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primeira vez no horizonte, fora corretamente interpretada por eles como indicativa do nascimento do Messias, o rei dos judeus. A natureza exata dessa luminária permanece desconhecida. E igualmente obscura a forma como relacionaram a estrela com o nascimento de Cristo. O fato importante é que os magos vieram de longe para adorar o rei recém-nascido. Para que o adorassem, primeiro teriam de encontrá-lo. O alarma que despertaram (v.3) O rei Herodes, astuto, invejoso, cruel, suspeitoso, com um vasto antecedente criminal após si, que, mesmo quando se aproxima o fim de sua vida, ainda alimenta intenções sinistras contra aqueles que poderiam esconder o desejo de destroná-lo, se assusta quando ouve a pergunta dos magos. Toda Jerusalém fica igualmente perturbada, procurando saber quem e quantos serão vítimas da louca fúria do rei nessa ocasião. As reuniões que suscitaram (vv.4-8) Não que eles mesmos tenham convocado essas reuniões, senão que sua chegada e sua pergunta as ocasionam ou resultam nelas. Ambas são convocadas por iniciativa do rei patologicamente amedrontado. A primeira é uma reunião do rei com a Suprema Corte judaica, o Sanedrin. Dessa elite o rei procura saber onde, segundo as profecias, o Cristo nasceria. A fim de exterminar o seu competidor em potencial, Herodes precisa saber onde encontrá-lo! A resposta lhe é fornecida: "Em Belém." O rei e a Corte se asseguram, e Mateus concorda com eles, que a passagem do Antigo Testamento (Mq 5.2) se refere a uma pessoa definida, que entraria no cenário da História, não nos dias do profeta, mas muito tempo depois. Munido da informação desejada, o rei convoca secretamente uma reunião com os magos. Ocultando sua intenção, pergunta aos magos quando foi que a estrela apareceu pela primeira vez. Ele quer saber a idade do menino, pois quanto mais souber a seu respeito maiores chances terá de matá-lo! Uma vez obtido os dados necessários referentes ao tempo e lugar, Herodes, voltando-se para os magos, os envia a Belém e falsamente acrescenta: 270
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"Ide e averiguai cuidadosamente sobre o menino, e quando o tiverdes encontrado, informai-me, para que eu também vá adorá-lo." O direcionamento que experimentaram (vv.9 e 10) Ao pôr-se a caminho, de repente os magos voltam a ver a estrela e se enchem de alegria. Ela os guia à própria casa onde o menino está alojado. A adoração que renderam (v. 11) Ao entrar na casa, eles vêem "o menino com Maria sua mãe". Note-se a ordem: primeiro, o menino. Prostram-se em terra e rendem-lhe adoração. Em seguida erguem-se, abrem seus cofres e oferecem presentes ao menino: "ouro para um rei; mirra para quem vai morrer; e incenso para Deus" (Orígenes). Não nos é dito até que ponto os próprios magos entenderam a natureza daquele diante de quem se prostraram, nem nos é revelado até onde perceberam a adequacidade dos presentes. Indubitavelmente, sua adoração e seus presentes foram aceitáveis a Deus. A advertência que ouviram (v.12) Por meio de um sonho os magos são instruídos a não voltarem a Herodes. Atendem à advertência e retornam ao seu país seguindo uma rota diferente (Jericó e o Jordão?). Pergunta-se: Ao procederem assim, não quebraram sua promessa feita ao rei? Responde-se: a. Não se pode provar que tenham feito uma promessa (ver v.9). b. Se a fizeram, é erróneo quebrar uma promessa obtida com dolo? Principal lição: Os gentios, tanto quanto os judeus, estão incluídos no plano redentor de Deus (Mt 8.11; 28.19; cf. Rm 10.12).
2. A fuga para o Egito (vv.13-15) Ordenada (v. 13) A espada de que Simão falou (Lc 2.34,35) já está começando a atravessar a alma de Maria, pois em sonho um anjo disse a José que se levantasse e fugisse para o Egito, com o menino e com a mãe deste, e lá permanecesse até novo aviso. Razão: Herodes está procurando destruir o menino. O Egito não 271
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estava longe. Lá viviam muitos judeus. Ficava fora dos domínios de Herodes. Nesse versículo revela-se o terno cuidado de Deus, a crueldade abismante de Herodes e um estágio na humilhação vicária do menino. Empreendida (v. 14) A história da natividade apresenta José obedecendo até mesmo às ordens mais difíceis. Levanta-se de noite e, com o menino e sua mãe, se encaminha ao Egito. Esclarecida (v. 15) Nessa fuga para o Egito e no regresso subseqüente, Mateus vê um cumprimento de Os 11.1: "Do Egito chamei o meu filho." Na época do êxodo estava sendo chamado do Egito não somente o povo de Israel, mas também, em certo sentido, o Messias, porquanto, se Israel tivesse sido destruído no Egito, teriam ficado sem cumprimento as profecias messiânicas como Gn 22.18; 26.4; 28.14 e 49.10. Na volta de Cristo do Egito (Mt 2.20,21), pressupondo a fuga para o Egito e a breve permanência lá (vv.13-15), repetia-se a história, agora com referência ao Cristo encarnado. A experiência de Israel no Egito estava sendo recapitulada em Cristo. E consolador saber que na história da redenção tudo segue um curso em consonância com o plano eterno de Deus. E por isso que a salvação descansa sobre um sólido fundamento. 3. A matança das criancinhas (vv. 16-18) O fato em si (v. 16) A partida dos magos fez com que Herodes ficasse em extremo furioso. A sua ordem todos os meninos de Belém e circunvizinhança, de 2 anos para baixo, são mortos. Quanta crueldade! E quão inútil! Porquanto o objeto principal da ira do rei já tinha escapado. Há quem rejeite a historicidade desse relato, e que o considere somente como a expressão da atitude hostil da igreja primitiva para com Herodes. Entretanto, o relato de Mateus está em harmonia com o retrato do rei proveniente de outras fontes. 272
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O fato à luz da profecia (vv. 17 e 18) Nesse massacre Mateus contempla um cumprimento de Jr 31.15: Raquel chorando por seus fdhos e recusando ser consolada. Ver a explicação nas pp. 260-262. Contraste entre "Herodes, o rei dos judeus" e "Jesus, o rei dos judeus". Jesus Herodes egoísta e astuto entregue a Satanás
Cruel, mesmo com os pequeninos perde tudo
abnegado e disposto ao auto-sacrifício (Mt 16.24; 20.28; c f . J o 10.11,15) vencedor de Satanás (Mt 4.1 -11; cf. Jo 12.31,32) Salvador (Mt 1.21; cf. Lc 19.10; Jo 3.16; 1 Tm 1.15) bondoso, também com os pequeninos (Mt 15.32; 19.14; Lc 23.24) mantém tudo sob controle (Mt 11.27; 28.18)
4. A volta do Egito e o estabelecimento em Nazaré (w. 19-23) A ordem para o retorno (vv. 19 e 20) De acordo com sua promessa, o anjo volta, e em sonho ordena que José regresse à terra de Israel, uma vez que Herodes já morreu. O próprio retorno (v.21) Com sua família, José entra na Judéia, provavelmente se dirigindo a Belém. O estabelecimento em Belém (vv.22 e 23) José ouve que Arquelau, tão cruel quanto seu pai, está agora reinando na Judéia. Então, advertido em sonho, retira-se para a Galiléia, estabelecendo-se no lugar onde outrora residira. Por isso Jesus chegaria a ser conhecido como cidadão da menosprezada Nazaré (um "nazareno"), tornando-se assim "desprezado e rejeitado pelos homens" (Is 53.3; cf. 11.1; SI 22.6,7,13; etc.).
273
E S B O Ç O DO C A P Í T U L O 3
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer 3.1-12 3.13-17
O ministério de João Batista O batismo de Jesus
CAPÍTULO 3
3
MATEUS
5.1-12
1 Ora, naqueles dias João Batista apareceu em público, pre-
gando no deserto da Judéia, dizendo: 2 "Convertam-se, 197 porque o reino dos céus está próximo." 3 Foi a seu respeito que o profeta Isaías falou, quando disse: "Uma voz de alguém clamando no deserto: 'Preparem o caminho do Senhor, Endireitem suas veredas.'" 4 Ora, este João usava um vestuário feito de pelos de camelo e um cinto de couro em sua cintura; e sua comida era gafanhotos e mel silvestre. 5 Então lhe saiu ao encontro Jerusalém, toda a Judéia e toda a circunvizinhança do Jordão. 6 Confessando seus pecados, eram batizados por ele no rio Jordão. 7 Porém, quando ele viu muitos dos fariseus e saduceus vindo ao batismo, então lhes disse: "Filhos de víboras! Quem os advertiu a fugir da ira que se aproxima (que se derrama)? 8 Produzam, pois, frutos que se coadunem com a conversão; 9 e não presumem em dizer-vos a si mesmos: 'Temos Abraão por nosso pai', porque eu lhes digo que Deus é capaz de suscitar filhos a Abraão aqui destas pedras. 10 O machado já está posto na raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo. 11 Eu mesmo vos batizo com água com vistas à conversão; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu — eu não sou digno de tirar suas sandálias —; ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. l2Ele tem a pá de joeirar em sua mão, e limpará completamente a sua eira. Ele recolherá o grão no celeiro, porém queimará a palha com fogo inextinguível."
3.1-12
O Ministério de João Batista
C f . M a r c o s 1.3-8; L u c a s 3 . 4 - 1 8 ; J o ã o 1.6-8,15-28 1 9 8 N o s c a p í t u l o s 1 e 2, M a t e u s n o s r e v e l o u a g r a n d e z a de Cristo, o l e g í t i m o F i l h o d e D a v i , A q u e l e a q u e m até m e s m o o s m a 197 198
Ou; "Fazei uma reviravolta completa na mente e no coração." Ver a exposição. Essas referências aos demais Evangelhos são indicadas simplesmente com o propósito de comparação. Não pretendem produzir a idéia de que o conteúdo inteiro de Mt 3.1-12 tem paralelo ou mesmo seja refletido nos demais Evangelhos. Não se demonstra o grau ou montante de semelhança.
1.22,23
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gos do Oriente renderam adoração. É natural que um rei, especialmente este rei, tenha um arauto que proclame sua chegada. Esse arauto foi João Batista. 1. Ora, naqueles dias João Batista apareceu em público, pregando no deserto da Judéia. A expressão "naqueles dias" é por demais indefinida, e provavelmente não signifique mais que "nos dias da peregrinação terrena de Cristo". Ver uma nota cronológica mais precisa em Lc 3.1,2. Se João, assim como Jesus (Lc 3.23), tinha cerca de 30 anos quando pela primeira vez apareceu em público, e uma vez que ele era mais velho que Jesus em cerca de seis meses (Lc 1.26,36), e já que Jesus provavelmente iniciou seu ministério no final do ano 26 d.C. ou no princípio de 27,'" foi provavelmente durante o verão do mesmo ano que João começou a pregar às multidões. Tudo em João era surpreendente: seu aparecimento repentino, seu modo de vestir, sua alimentação, sua pregação e seu batismo. O evangelista Lucas descreve, primeiro, com grande detalhe (1.5-25, 41, 57-79) a forma milagrosa como João nasceu do sacerdote Zacarias e sua esposa Isabel, a qual também era da linhagem sacerdotal. Assim, em uma única breve nota, Lucas cobre o período todo entre o nascimento de João e o início de seu ministério: "E o menino crescia e se fortalecia em espírito, e viveu no deserto até ao dia em que apareceu em público diante de Israel" (1.80). Naquele dia, de repente lá estava ele, plenamente adulto, enfrentando uma grande multidão, trazendo à lembrança, com seu espantoso aparecimento, a pessoa de Elias (lRs 17.1). Ele estava pregando "no deserto da Judéia", termo indicativo das ondulantes terras estéreis existentes entre a região montanhosa da Judéia para o oeste, e o Mar Morto e o baixo Jordão para o Oriente, e que se estende para o norte até perto do pont * onde o Jaboque desagua no Jordão. E uma região deveras desolada, um vasto espaço ondulante de solo esbranquicento cober199
Ver comentário sobre 2.1. 276
MATEUS
1.22,23
to de pedregulhos, pedras partidas e rochas.200 Aqui e ali se vê um matagal em cuja sombra se arrastam víboras (ver v.7). Não obstante, faz-se evidente na base de Mt 3.5 (cf. Jo 1.28) que a atividade de João se estendia até à margem oriental do Jordão. Incluía toda a região circundante — isto é, ambas as margens desta parte — do Jordão.201 Ele pregava, dizendo: 2. Convertam-se... Sua mensagem não era prolixa, porém concisa; não era complacente, porém perscrutadora da alma; não era bajuladora, porém assustadora, pelo menos em grau considerável. Ele era um pregador de condenação iminente (ver vv. 7 e 10), uma catástrofe que só poderia ser evitada mediante uma reviravolta radical do coração e da mente. A essência de sua mensagem está aqui no v.2. Não obstante, a tradução que se encontra em muitas das nossas versões, ou seja, "Arrependei-vos", provavelmente não seja a melhor. Ela tem sido qualificada como a. "infeliz" (W. D. Chamberlain); b. uma tradução que "não faz justiça ao original, visto que atribui uma proeminência indevida ao elemento emocional" (L. Berkhof); c. "uma tradução dolorosamente equivocada" (A. T. Robertson); e ainda d. "a pior tradução de todas" (J. A. Broadus). Concordo com a. e b., porém percebo que c. e d. são por demais duros. A tradução não é tão ruim assim! A idéia de arrependimento está definitivamente incluída na concisa advertência de João Batista. Ele enfatiza a genuína tristeza pelo pecado e.uma sincera resolução de romper com o passado pecaminoso (ver especialmente 3.6 e Lc 3.13-14). Porém, o arrependimento, ainda que básico, é apenas um lado da moeda. Ele pode ser denominado de o aspecto negativo. O lado positivo é a produção de frutos (Mt 3.8,10). A palavra usada no original202 olha tanto para 20
" Ver L. H. Grollenberg, op. cit.. mapa 2 confrontando com p. 11; também lâmina 25 à p . 16. 2I " Assim diz literalmente no original: fi Tcepí^rapoç TOO 'IopSávou. Ver também R. W. Funk, "'The Wilderness' - , JBL LXXV111, Parte III (setembro, 1959), pp. 205-214. 2112 pexavoeue, seg. per. pi. pres. imp. de peTcxvoéco. O verbo aparece cinco vezes em Mateus (3.2; 4.17; 11.20,21; 12.41), duas vezes em Marcos, nove vezes em Lucas, cinco em Atos, uma em 2 Coríntios (12.21) e onze vezes no livro de Apocalipse. O substantivo cognato petávoia é também de ocorrência freqüente, começando com Mt 3.8,11.
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trás como para adiante. Portanto, a tradução "convertei-vos" é provavelmente melhor que "arrependei-vos". Além disso, a conversão afeta não só as emoções, mas também a mente e a vontade. No original, o termo usado por João Batista indica uma mudança radical de mente e coração, que conduz a uma mudança completa de vidam Cf. 2Co 7.8-10; 2Tm 2.25. Essa insistência na conversão não nos traz à lembrança a pessoa de Elias? (1 Rs 18.18,21,37;M14.5,6;Mt 11.14; 17.12,13;Mc9.11-13;Lc 1.17). E preciso frisar ainda que embora João atribuísse considerável importância ao batismo, batizasse a muitos e, portanto, fosse chamado "o Batista", ele não considera que esse rito tivesse algum significado salvífico sem a transformação fundamental de vida indicada pela conversão. E nisso que ele punha maior ênfase (ver especialmente vv.7 e 8). As palavras "convertei-vos" João acresce: porque o reino dos céus está próximo. O conceito de "reino dos céus" será considerado detalhadamente em conexão com 4.23. Aqui basta declarar que João queria dizer que estava começando a dispensação na qual, pelo cumprimento das profecias messiânicas (ver pp. 120-122), o reino dos céus (ou o reinado de Deus), no coração e na vida dos homens, começaria a manifestar-se de uma forma muito mais poderosa do que jamais aconteceu; em certo sentido já tinha chegado. Grandes bênçãos estavam reservadas para todos aqueles que, pela graça soberana, confessassem e abandonassem seus pecados e começassem a viver para a glória de Deus. Por outro lado, a condenação estava prestes a cair sobre os impenitentes. Como soberano Senhor, Deus estava prestes a manifestar-se de forma mais ativa, tanto para a salvação como para a condenação. João Batista punha ênfase nesta última (vv. 7,8,10-12), ainda que, com certeza, não omitiu a primeira (v.12). Para escapar à punição e receber a bênção, 210
Ver W. D. Chamberlain, The Meaning of Repentance, Filadélfia, 1943, p. 22. B.B. Warfield define pexávora como "a mudança interior da mente que a tristeza induz e que em si mesma induz a uma vida reformada", Biblical and Theological Studies, Filadélfia, 1952, p. 366.
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homens precisavam experimentar a mudança radical que já foi descrita. Mateus prossegue: 3. Foi a seu respeito que o profeta Isaías falou, quando disse: "Uma voz de alguém clamando no deserto: 'Preparem o caminho do Senhor, Endireitem suas veredas.'"204 Is 40.3-5 retrata simbolicamente a chegada do Senhor com o propósito de guiar a procissão dos judeus que voltariam com júbilo à sua terra depois de longos anos de cativeiro. No deserto sírio, entre a Babilônia e a Palestina, o caminho deveria ser preparado para a vinda do Senhor. Então, um arauto clama ao povo: "Preparem no deserto o caminho do Senhor, Endireitem no deserto uma estrada para o nosso Deus." Esta figura do arauto é por Mateus aplicada a João, como arauto de Cristo. Ao dizer: "Eu sou a voz...", João revela que endossa essa interpretação (Jo 1.23). Jesus igualmente a endossa (Mt 11.10). Isso revela que a libertação concedida aos judeus quando, na última parte do sexto século a.C. e depois, voltaram ao seu próprio país, era apenas uma figura da libertação muito mais gloriosa que estava reservada para todos quantos aceitassem a Cristo como seu Salvador e Senhor. Em outras palavras, a profecia de Isaías referente à voz que clamava não teve um cumprimento pleno até que o precursor do Messias e também o próprio Senhor entrassem em cena.20i 204
205
Ver também p. 54. Nos Evangelhos (Mt 3.3; Mc 1.3; Lc 3.4) e no texto consideravelmente diferente da Septuaginta, a frase "no deserto" modifica "de alguém que clama" e não "preparai", como sucede na acentuação massorética do texto hebraico de Is 40.3, construção também apoiada pelo paralelismo: "no deserto preparai" e "endireitai no deserto". Contudo, essa diferença entre os Evangelhos e o texto hebraico é sem importância, pois é natural supor que aquele que clama no deserto, como porta-voz daquele que o enviou, quer que se prepare um caminho no deserto. O fato de que o que é dito de Jeová no Antigo Testamento é atribuído a Cristo no Novo Testamento não deveria causar estranheza. No tocante aos casos semelhantes dessa transição de Jeová para Cristo, verEx 13.21, cf. I Co 10.4; Is 6.1, cf. Jo 12.41; SI 68.18, cf. Ef 4.8; e SI 102.25-27, cf. Hb 1.10-12. É em Emanuel que Deus veio habitar com o seu povo.
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O caráter adequado da aplicação de Is 40.3 a João Batista é evidente pelo seguinte: a. João estava pregando no deserto (v. 1); e b. a tarefa que lhe foi designada desde os dias de sua infância (Lc 1.76,77), sim, mesmo antes (Lc 1.17; Ml 3.1), era exatamente esta, ou seja, a de arauto do Messias, o preparador de seu caminho. Ele seria a "voz" do Senhor ao povo, tudo isso, porém não mais que isso (cf. Jo 3.22-30). Como tal ele deve não só anunciar a vinda e a presença de Cristo, mas também exortar o povo a preparar o caminho do Senhor, ou seja, pela graça e o poder de Deus efetuar uma mudança completa da mente e do coração (ver v.2). Isso significa que eles devem endireitar as suas veredas, ou seja, eles devem proporcionar ao Senhor um livre acesso ao seu coração e sua vida. Devem endireitar o que antes era torto, o que não estava alinhado com a santa vontade de Deus. Devem eliminar todos os obstáculos que entulhavam o seu caminho; obstruções tais como justiça própria, falsa segurança ("temos por pai a Abraão", v.9), avareza, crueldade, calúnia, etc. (Lc 3.13,14). É evidente que em Isaías e na pregação de João como se acha registrado em Mateus, "o deserto", através do qual deve-se preparar um caminho para o Senhor, é, em última análise, o coração do povo que estava inclinado para o mal. Ainda que o sentido literal não esteja ausente, ele está embutido no figurativo. A idéia básica é certamente o deserto literal. "Porém, a própria visão do deserto [literal] deve ter exercido um efeito poderoso sobre o coração tolo e endurecido dos homens, levando-os a perceber que estavam num estado de morte e a aceitar a promessa de salvação que ora se lhes estendia" (João Calvino, sobre Mt 3.3). A maneira de viver de João Batista é assim descrito: 4. Ora, este João usava um vestuário feito de peJos de camelo, e um cinto de couro em sua cintura; e sua comida era gafanhotos e mel silvestre. A longa vestimenta de João, tecida de pelos de camelo, nos lembra o manto de Elias, embora com uma diferença na descrição (cf. Mt 3.4 com 2Rs 1.8). A rústica 280
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vestimenta bem que poderia ser considerada como símbolo do ofício profético. Zc 13.4 (cf. ISm 28.14) parece apontar para essa direção. Em todo caso, uma roupa assim era adequada para o deserto. Era durável e econômica. Jesus faz especial menção do fato de João não usar roupa fina (Mt 11.8). Ele não fora criado como um pequeno príncipe e nunca se vestira com elegância. O modo rústico de João se vestir harmonizava-se com sua mensagem. Imagine-se um "homem de vestes delicadas" (Mt 11.8) como um pregador de arrependimento!206 As vestes rústicas harmonizavam-se com o papel desse austero pregador. O cinto de couro em sua cintura não só evitava que a túnica se soltasse e se rasgasse, mas também lhe facilitava o caminhar. Em relação a isso, ver também C.N.T. sobre Ef 6.14. O alimento de João era tão simples como suas vestes. Ele se mantinha com gafanhotos e mel silvestre, por certo o tipo de comida que se podia encontrar no deserto. O mel do tipo que é encontrado em estado silvestre não apresenta problema. Não era um simples adoçante (o açúcar, como o conhecemos hoje, então, era, algo bem mais raro), e, sim, um alimento. No deserto ele podia ser encontrado debaixo das cavidades das rochas ou dentro delas (Dt 32.13). É bastante conhecido o papel exercido pelo mel nas histórias de Sansão (Jz 14.8,9,18) e de Jonatas (ISm 14.25,26,29), por isso não há necessidade de maior explicação. Porém, gafanhotos! E bem possível que alguém estremeça só de pensar em comê-los, tendo retirado suas pernas e asas, tostado ou assado seus corpos e adicionando-lhes um pouco de sal. Não obstante, é evidente de Lv 11.22 que o Senhor permitia — e, por implicação, encorajava — os israelitas a comerem quatro espécies de insetos que, popularmente, denominamos de "gafanhotos". Ainda hoje certas tribos árabes os degustam. E por que não? Ainda está em vigência o dito latino "De gustibus non disputandum est" ("Gostos não se discutem"). Os que se deleitam comendo camarões, mexilhões, ostras e pernas de 2llf
' Um pregador de arrependimento. O arrependimento, como já ficou indicado (pp. 277-278), certamente estava incluído na mensagem de João. Era até mesmo básico. 281
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rãs não deveriam estranhar os que comem gafanhotos. Ver também p. 307. Todavia, não é necessário concluir que o v. 4 nos forneça um r e s u m o c o m p l e t o da dieta de João Batista. A questão principal é que pelo seu m o d o simples de vida, colocado em evidência por m e i o de sua m a n e i r a de c o m e r e vestir, ele apresentava um protesto vivo contra t o d o egoísmo, autotolerância, frivolidade, negligência e falsa segurança c o m que tantas pessoas se lançavam em d i r e ç ã o de sua própria condenação, e assim faziam c o m o j u í z o e s t a n d o tão iminente (ver vv.7,10,12; cf. Mt 24.37-39; e Lc 17.27-29)
A enérgica e corajosa pregação de João era eficaz: 5. Então lhe saiu ao encontro Jerusalém, toda a Judeia e toda a circunvizinhança do Jordão. Em número cada vez mais elevado, a população de Jerusalém, os habitantes da Judeia em geral e os que viviam em ambas as margens do Jordão saíam a ver e a ouvir João Batista (ver comentário sobre o v. 1). "Todos" o consideravam um profeta (Mt 21.26). Mateus prossegue: 6. Confessando seus pecados, eram batizados por ele no rio Jordão. Sem a confissão de pecados não havia batismo! Para aqueles que realmente se arrependiam de seu estado pecaminoso e sua conduta ímpia, o batismo, e jamais um crisma em operação independente, era um sinal e selo visíveis da graça invisível (cf. Rm 4.11), a graça do perdão dos pecados e da adoção na própria família de Deus. Contrariando a opinião de alguns207 que crêem que não havia conexão alguma entre o batismo de prosélitos — ou seja, o batismo de gentios que se convertiam ao judaísmo — e o batismo de João, a teoria oposta parece ter de seu lado o peso da evidência. O rabino Hillel viveu com toda a certeza nos meados do século I a.C. e no primeiro quarto do século I d.C. O rabino Shammai foi seu contemporâneo. Seus respectivos seguidores davam respostas contraditórias à pergunta: "E possível que um não-judeu que se faz prosélito na tarde anterior á Páscoa partici1,17
Por exemplo, Lenski, õp- cit.. p. 99.
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pe da ceia pascal?" A escola de Shammai respondia que esse convertido "devia tomar um banho", e então podia participar. A escola de Hillel negava isso. Não é razoável crer que essas duas respostas contraditórias apontam para os dois mestres que se opunham entre si? Portanto, parece que o batismo de prosélito precedeu o batismo proposto e administrado por João Batista. Há também outra razão pela qual é difícil crer que o batismo de João e o batismo cristão,208 que o seguiu imediatamente, que em cada caso simbolizavam uma transformação radical e de uma vez para sempre no estilo de vida, precedeu historicamente o batismo de prosélitos. É plenamente concebível que este, como rito judaico, tivesse sido copiado pelos judeus de algo semelhante ao que se praticava entre os cristãos, seus mais amargos inimigos? Conclusão: "O batismo de prosélitos tem de ter precedido o batismo cristão."209 Como já se indicou de forma implícita, o batismo de prosélitos não era um rito cerimonial que se repetia constantemente, mas era um ato legal celebrado de uma vez por todas e por meio do qual a pessoa era recebida na comunhão religiosa do judaísmo. Em conseqüência, quando semelhantemente João Batista exortou os judeus a que se convertessem e fossem batizados, eles devem ter-se conscientizado do fato de que tal batismo, se recebido de forma apropriada, simbolizaria uma renúncia explícita e pública ao seu modo anterior de vida. O que era novo e surpreendente para os ouvintes de João Batista não era o rito do batismo como tal, como símbolo de mudança radical, e, sim, o fato de que essa transformação fundamental e seu sinal e selo eram requeridos não só dos gentios que adotassem a religião judaica, como no caso do batismo de prosélitos, mas também dos filhos de Abraão! Eles, igualmente, eram imundos! Eles 2 s
" Para a relação entre o batismo de João e o batismo cristão, ver L. Berkhof, Teologia Sistemática, pp. 623,624. De forma adequada, F. F. Bruce chama o primeiro de expectação e o segundo de cumprimento. 2115 Para esse arrazoamento, ver Th. D.N.T., A. Oepke, artigo b£ptw, Vol. I, p. 535; K. G. Kuhn, artigo 7tooor|A,OToç, Vol. VI, pp. 738, 739.
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também deviam reconhecer isso francamente! Eles também tinham de experimentar uma reviravolta básica de mente e coração! Todavia, muitos confessaram seus pecados e foram batizados no rio Jordão. Não podemos pressupor qual porcentagem deles aceitou o batismo em sã consciência, nem qual proporção se batizou sem sentir uma genuína tristeza de coração. O v.7 nos revela que existia um real perigo de hipocrisia. 7. Porém, quando ele viu muitos dos fariseus e saduceus vindo para o batismo210, então lhes disse: Filhos de víboras! Fariseus e Saduceus Sua origem O modo e o tempo exatos em que surgiram esses partidos são obscuros. Contudo, há razões para crer que os fariseus eram os sucessores dos hasidhim, ou seja, os pios ou santos. Estes eram aqueles judeus que, durante e mesmo antes da revolta dos macabeus (ver pp. 183,223), se opuseram à adoção da cultura e dos costumes gregos. E compreensível que, enquanto os macabeus em sua luta heróica foram motivados principalmente por questões religiosas, eles tiveram o pleno apoio dos hasidhim; porém quando, especialmente nos dias de João Hircano e daqueles que o seguiram, a ênfase dos governantes judeus se desviou da esfera religiosa para a secular, os hasidhim ou perderam o interesse e se retiraram, ou mesmo se opuseram ativamente aos descendentes das mesmas pessoas a quem anteriormente tinham apoiado. Os fariseus, cujo significado é separatistas, em sua origem podem muito bem ter sido os hasidhim reformados ou reorganizados sob outro nome. Eles se separaram não apenas dos pagãos, dos publicanos e pecadores, mas também, em geral, das multidões judaicas indiferentes, as quais, com menosprezo, denominavam "o povo que não conhece a lei" ; lo 7.49). Eles se esforçavam arduamente para não contaminar-se ou manchar-se por meio da associação com alguém ou com algo que pudesse torná-los cerimonialmente impuros. 2111
Ou: "por seu batismo", porém a evidência textual em favor dessa variante não parece ser decisiva. Essencialmente, não há diferença. 78/1
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Em muitos aspectos, os saduceus eram precisamente o oposto dos fariseus. Eram acomodados, homens que, embora ostensivamente ainda se apegassem à lei de Deus, realmente não eram hostis à difusão do helenismo. Eram o partido sacerdotal, o partido ao qual os sumos sacerdotes geralmente pertenciam. Não surpreende o fato de que o nome saduceu tenha-se derivado popularmente de Zadoque (LXX: Sadok), etimologia que pode ser correta. Esse Zadoque foi o homem que durante o reinado de Davi compartilhou o sumo sacerdócio com Abiatar (2Sm 8.17; 15.24; lRs 1.35), e foi feito sumo sacerdote único por Salomão (lRs 2.35). Os descendentes de Zadoque mantiveram o sumo sacerdócio até aos dias dos macabeus. Oposição mútua entre eles Em At 23.6-8 é apresentado com clareza uma questão importante em que se chocavam os dois partidos: "Paulo, percebendo que uma seção do Sinédrio era composta de saduceus e outra de fariseus, levantou sua voz e disselhes: 'Irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseus. E com respeito à esperança da ressurreição dos mortos que estou sendo julgado.'" E quando ele disse isso, suscitou-se uma dissensão entre os fariseus e os saduceus, e a assembléia se dividiu. Pois os saduceus dizem que não há ressurreição nem anjo nem espírito, enquanto que os fariseus admitem tudo isso." De Josefo descobrimos que os saduceus negavam a imortalidade da alma, além de negar a ressurreição do corpo. Sustentavam que a alma perecia quando o corpo expirava. Outra questão que os mantinha indo em direções opostas era com referência ao cânon. Os fariseus reconheciam dois critérios ou padrões de doutrina e disciplina. O Antigo Testamento escrito e as tradições orais. No tocante às tradições, eles criam que essas adições à — que na realidade às vezes não passavam de interpretações de — lei escrita foram dadas por Moisés aos anciãos e que mais tarde foram transmitidas oralmente através das gerações. Eles produziram tão grande volume dessas tradições, e deram-lhes tão grande importância, que com freqüência "deixavam sem efeito a Palavra de Deus" (Mt 15.6; Mc 7.13). 285
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Os saduceus, contrariamente, nada aceitavam além das Escrituras. Consideravam o Pentateuco superior aos profetas, etc. Finalmente, caso se possa confiar em Josefo, que com a idade de 19 anos se uniu aos fariseus de forma pública, havia mais um agudo contraste: os fariseus criam não só na liberdade do homem e em sua responsabilidade com respeito às suas próprias ações, mas também no decreto divino; os saduceus rejeitavamo decreto (Josefo, Guerra Judaica II. 162-166; Antigüidades XIII.171-173, 297, 298; XVIII.12-17). Cooperação entre eles Apesar das diferenças tão notáveis, basicamente muitos desses fariseus e saduceus estavam em perfeito acordo entre si, porque em última análise ambos tentavam alcançar a segurança por seus próprios esforços: seja que essa segurança consistisse de possessões terrenas deste lado do túmulo, como ocorria com os saduceus, muitos dos quais eram ricos proprietários de terra e/ou beneficiários do comércio realizado nos átrios do templo; ou, do outro lado do túmulo (pelo menos também do outro lado), como era o caso dos fariseus que, com todas as suas forças, tentavam abrir por merecimentos passagem para o céu. Em ambos os casos a religião era uma conformação exterior, por meio do auto-esforço para atingir-se um certo nível. Portanto, não deveria ser motivo de surpresa que, quando Jesus surgiu no cenário da História com sua ênfase sobre a religião do coração e em Deus como o único autor da salvação, fosse ele rejeitado por ambos os grupos: pelos fariseus, porque ele os censurava por limparem o exterior do copo e do prato (Mt 23.25), e, enquanto dizimavam a hortelã, o endro e o cominho, negligenciavam as questões mais importantes da lei: "a justiça, a misericórdia e a fidelidade" (Mt 23.23); e pelos saduceus, porque, ao purificar o templo, ele censurou o golpe financeiro que praticavam, e provavelmente também porque viram ameaçado o status quo da nação e a posição de influência que desfrutavam pelas exigências de Jesus. Além disso, é compreensível que tanto os fariseus como os saduceus nutrissem inveja de Jesus (Mt 27.18). 286
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Por fim, os fariseus e saduceus cooperam entre si para matarem Jesus (16.1,6,11; 22.15,23; 26.3,4,59; 27.20). Mesmo depois, combinam seus esforços na tentativa de evitar a crença em sua ressurreição (27.62). Não é de estranhar, pois, que às vezes Jesus de um só fôlego condenasse a ambos os grupos (16.6ss). Ora, de acordo com o texto em foco (3.7), os fariseus e saduceus se aproximam de João Batista solicitando que os batize. Isso pode parecer estranho. Embora nem todos os comentaristas concordem entre si, à luz de tudo o que ficou dito sobre os dois grupos, o seu comportamento no presente caso provavelmente possa ser melhor explicado pelo prisma de seu egoísmo. Eles não queriam perder sua influência sobre a multidão que ora se reunia em torno de João Batista para ser batizada. Se esse era o lugar onde a ação estava, eles queriam fazer parte dela para assumirem, se possível fosse, a liderança. Porém, submeter-se ao rito do batismo não implicava confissão de pecado? Muito bem, se necessário fosse, estavam dispostos a condescender a fim de vencer. Naturalmente que não eram sinceros, nem estavam realmente arrependidos, nem estavam desejosos de passar por uma mudança radical de mente e coração. Eram velhacos, hipócritas. Cf. Mt 16.1; 22.15. E por esse prisma que podemos compreender a severa repreensão de João Batista: "Filhos de víboras!" João estava familiarizado com as cobras do deserto. Ainda que bem pequenas em tamanho, elas eram muito enganosas. As vezes eram facilmente confundíveis com galhos.secos. Todavia, de repente, atacavam e picavam (cf. At 28.3). Portanto, a comparação era oportuna. 2 " Satanás, esse terrível enganador (Jo 8.44), não é igual211
A idéia de que esses fariseus e saduceus foram chamados "filhos de víboras", em vez de simplesmente "víboras", porque eles entraram nos pecados de seus pais (Lenski. op. cit., p. 103). provavelmente seja um refinamento excessivo. A expressão "filhos de víboras" pode muito bem estar cm consonância com outros semitismos. tais como "filhos dos profetas", "filhos de belial". "filhos da música", etc. Aqui em 3.7 a tradução "víboras" pode não ser errônea.
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mente denominado de serpente ? (Ap 12.9; 20.2). Não são esses sectários os seus instrumentos? João acrescenta: Quem os advertiu a fugir da ira que se aproxima (que se derrama)? Em relação a isso, as seguintes idéias merecem atenção: Primeiramente, essa ira ou indignação determinada repousa, por natureza, sobre o homem não-regenerado (Ef 2.3). Ela pertence mesmo ao tempo presente (Jo 3.18,36; Rm 1.18). Segundo, o derramamento final dessa ira está reservado para o futuro (Ef 5.6; Cl 3.6; 2Ts 1.8,9; Ap 14.10). Terceiro, essa manifestação final da ira (Sf 1.15; 2.2) está vinculada com a (segunda) vinda do Messias (Ml 3.2,3; 4.1,5). Quarto, sem uma conversão genuína o homem não pode escapar dela: "Quem os advertiu a fugir...?" Provavelmente isso signifique: "Quem iludiu você ao ponto de pensar que é possível evadir-se de Deus e, quem os animou a tentar fazê-lo?" Cf. SI 139; Jn 1.3. Quinto, para o verdadeiro arrependimento, realmente só há um caminho de escape: 8. Produzam, pois, frutos que se coadunem com a conversão. Como já indicamos (ver comentário sobre o v.2), o arrependimento, se é genuíno, deve ser acompanhado pelos frutos. Uma confissão de pecado meramente exterior de nada adiantará. Um mero desejo de batizar-se, como se esse rito fosse uma espécie de talismã que opera maravilhas, não tem valor positivo. Tem de haver uma mudança interior que se expresse exteriormente na conduta que glorifica a Deus, fruto que coadune com a conversão. De acordo com Lc 3.10-14, deve incluir virtudes tais como generosidade, justiça, ponderação e contentamento; de acordo com Mt 23.23, justiça, misericórdia e fidelidade; e em vista da maneira como João Batista se dirige descritivamente a estes fariseus e saduceus ("Filhos de víboras"), deve haver retidão. Com referência a produzir fruto, ver Mt 5.20-23; 7.16-19; 12.33; 13.8,23; 16.6,11,12; cap. 23; Lc 13.6-9; Jo 15.1-16; G1 5.22,23; Ef 5.9; Fp 1.22; 4.17; Cl 1.6; Hb 12.11; 13.15; e Tg 3.18. 288
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A deplorável ausência de fruto por parte daqueles a quem a Palavra é dirigida é evidente também pelo v. 9. e não presumem em dizer-vos a si mesmos: Temos Abraão por nosso pai, porque eu lhes digo que Deus é capaz de suscitar filhos a Abraão aqui destas pedras. A razão pela qual esses fariseus e saduceus caminhavam para a condenação estava no fato de que confiavam, para sua segurança eterna, no fato de serem descendentes de Abraão. Cf. G1 3.1-9 e ver C.N.T. sobre esses versículos. João Batista estava plenamente consciente do fato de que a descendência física não garante a ninguém ser verdadeiro filho de Abraão. Ele também sabia que de forma inteiramente independente de tal linhagem, Deus poderia dar filhos a Abraão se assim o quisesse. O Deus que foi capaz de criar Adão do pó da terra era também capaz de criar filhos para Abraão a partir das pedras do deserto para as quais João provavelmente apontava. Provável implicação simbólica: Deus pode mudar os corações de pedra em corações obedientes (Ez 36.26), sem considerar a nacionalidade desses corações de pedra. No que respeita à salvação, as antigas distinções foram desaparecendo gradualmente. Isso não significa que não havia distinção na ordem na qual essa salvação estava sendo proclamada e na qual a igreja estava sendo congregada. A seqüência histórica, um reflexo do plano de Deus desde a eternidade, certamente era "ao judeu primeiro e também ao grego" (Rm 1.16; cf. At 13.46; Rm 3.1,2; 9.1-5). Essa ordem também é evidente no Evangelho de Mateus (10.6; 15.24). Porém, o alvorecer de um novo dia, um dia em que não mais haveria distinção entre judeu e grego, estava despontando. Ver Mt 2.1-12; 8.11,12; 22.114; 28.19,20; At 10.34-48; Rm 9.7,8; 10.12,13; ICo 7.19; G13.7,16,17,29; 4.21-31; 6.15,16; Ef 2.14-18; Fp 3.2,3; Cl 3.11; e Ap 7.9,14,15. Com referência aos impenitentes, João Batista prossegue no v.lO. O machado já212 está posto na raiz das árvores. O juízo está perto. O machado está na frente de Ttpóç, ou, como 212
Note-se a posição de r[Sr| no início da oração.
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diríamos, "perante" a raiz, com intenção sinistra, pronto para derrubar uma árvore após outra. Portanto, agora mesmo é o momento propício para arrepender-se e crer. Sobre isso, ver também SI 95.7,8; Is 55.6; Lc 13.7,9; 17.32; Jo 15.6; Rm 13.11; 2Co 6.2; lJo 2.18; Ap 1.3. Prosseguindo: toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada no fogo. Podese fazer a seguinte pergunta: "Porém, estava realmente tão perto o dia da manifestação final da ira de Deus? Não é verdade que já se passaram muitos séculos desde que João Batista pronunciou essas palavras, e ainda o Senhor não voltou para executar o juízo?" E preciso ter em mente os seguintes fatos: Primeiro, João Batista nos faz lembrar dos profetas do Antigo Testamento que, ao falarem dos últimos dias ou da era messiânica, às vezes olhavam para o futuro como o viajante olha para as montanhas distantes. Ele imagina que o cume de uma montanha se ergue imediatamente após o outro, quando na realidade estão a vários quilômetros de distância um do outro. As duas vindas de Cristo são vistas como se fossem uma só. Assim lemos: "Do tronco de Jessé sairá um rebento... [e ele] ferirá a terra" (Is 1 1 . 1 - 4 ) . " O Espírito do S E N H O R Deus está sobre mim, porque o S E N H O R me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos ... e o dia da vingança do nosso Deus..." (Is 61.1,2). "E acontecerá depois que derramarei o meu Espírito sobre toda carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos filhos sonharão e vossos jovens terão visões... O sol se converterá em trevas e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do S E N H O R " (J1 2.28-31). Cf. Ml 3.1,2. Isso tem sido denominado de "perspectiva profética". Segundo, a queda de Jerusalém (70 d.C.) se aproximava de forma perigosamente iminente, e prenunciava o juízo final. Terceiro, a falta de arrependimento leva à tendência de deixar uma pessoa empedernida, de modo que, com freqüência, é deixada em sua presente condição de perdição. Sem arrependimento genuíno, a morte e o juízo, para tal pessoa, são irrevogáveis e estão "à porta". 290
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Quarto, "para com o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia" (2Pe 3.8). Quinto, como revelam as referências apresentadas acima (a começar com o SI 95.7 e 8), de modo algum João foi o único a enfatizar a iminência do juízo e a necessidade de uma conversão imediata. Portanto, se entendemos que João Batista está errado nessa questão, também teríamos de acusar os salmistas, os profetas, os apóstolos e mesmo o próprio Senhor! Seguramente que nenhum crente verdadeiro está disposto a fazer isso. Em sexto lugar, tudo isso não significa necessariamente que João Batista mesmo tenha visto o presente e o futuro na sua perspectiva verdadeira. Ver comentário sobre 11.1-3. Apenas significa que o Espírito Santo o guiou de tal maneira que, em sua pregação como se acha aqui registrada, ele tinha perfeito direito de dizer o que disse. O "fogo" no qual são lançadas as árvores sem fruto, decerto é um símbolo do derramamento final da ira de Deus sobre os ímpios. Ver também Ml 4.1; Mt 13.40; Jo 15.6. Jesus falou sobre "a Geena de fogo" (Mt 5.22,29; 18.9; Mc 9.47). Esse fogo é inextinguível (Mt 3.12; 18.8; Mc 9.43; Lc 3.17). A questão não é simplesmente que existe um fogo inextinguível na Geena, mas que Deus queima o ímpio com um fogo inextinguível, o fogo que foi preparado tanto para os ímpios quanto para o diabo e seus anjos (Mt 3.12; 25.41).213 Pode-se formular a seguinte pergunta: "Se João Batista, pois, era, em grande medida, um pregador do inferno e da condenação, como explicar que, pela determinação divina, ele deveria chamar-se João (Lc 1.13), ou seja, "O Senhor é gracioso "? Resposta: Avisar o povo de que a condenação paira sobre ele e que certamente o alcançará a menos que se arrependa e creia, não é um ato mui gracioso? Essa ação divina não revela 213
Outras questões quanto ao significado de Gehenna e de Hades, quanto ao aniquilamento total ou o castigo eterno, quanto a se esse fogo deve ter um sentido literal ou simbólico, quanto a se Deus está presente ou ausente no inferno, etc., são abordados por este autor em seu livro: A Vida Futura Segundo a Bíblia, pp. 8292; 221-226. Ver também abaixo, comentário sobre 3.12 e sobre 5.22,29.
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que Deus não é cruel, nem tem prazer em castigar, e, sim, que ele é um Deus longânimo? Não mostrou ele essa sua paciência aos antidiluvianos (Gn 6.8; IPe 3.20); a Ló (Gn 19.12-22); a Davi (2Sm 23.5); aos israelitas (Êx 33.12-17; Is 5.1,2; 63.9; Jr 8.20; Ez 10.18,19 — a demora do carro-trono —; 18.23; 33.11); e a Simão Pedro (Jo 21.15-17)? Não é o mesmo atributo divino gloriosamente revelado na parábola da figueira estéril (Lc 13.8 — "deixa-a ainda este ano"); em 2Pe 3.9 ("Deus é longânimo para convosco"); em Rm 9.22 ("Deus suportou com muita longanimidade"); em Ap 2.21 ("eu lhe darei tempo para que se arrependa"); e em Ap 8.1 ("houve silêncio no céu por cerca de meia hora")? Voltando-se agora para a multidão toda, João prossegue: 11. Eu mesmo os batizo com água com vistas à conversão. Porém, esta frase, "com vistas à conversão", não contradiz a idéia de que o homem deve já ter-se convertido antes mesmo de ser batizado, verdade claramente implícita nos vv.6-10? Resposta: Não precisamente, porquanto, pelo batismo, a verdadeira conversão é poderosamente estimulada e acrescentada. A pessoa que recebe o batismo de uma forma apropriada — isto é, fazendo a Deus uma promessa procedente de uma consciência esclarecida (IPe 3.21) —, compreendendo o significado do sinal e selo externos, se entregará a Deus, com tanto maior gratidão, de todo o seu coração. Além do mais, como poderia ter outro efeito a ponderação sobre a graça de Deus que adota, perdoa e purifica, simbolizada pelo sinal e selo do batismo? Para tal pessoa, o sinal e selo externos, aplicados ao corpo, e a graça interior, aplicada ao coração, vão juntos. Entre as passagens bíblicas que comprovam esse argumento estão: "Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados... Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós um espírito novo..." (Ez 36.25,26); "aproximeno-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo os corações purificados de má consciência, e lavado o corpo com água pura" (Hb 10.22). Esse duplo aspecto da conversão — a. como já presente mesmo antes do próprio batismo, e b. como aumentada por meio 292
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dele — é também expresso belissimamente em várias Formas para o Batismo de Adultos, dentre as quais citamos a seguinte: "Ele (o batismo) chega a ser um meio eficaz de salvação, não por alguma virtude que haja nele ou naquele que o administra, mas somente pela bênção de Cristo e pela operação de seu Espírito naqueles que pela fé o recebem" (Constituição da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América, Filadélfia, 1941, p. 448). Todavia, em última análise, esse rico resultado não é efetuado por aquele que administra o rito do batismo, nem mesmo quando o nome dessa pessoa é João Batista. Tudo o que João pode fazer é persuadir os seus ouvintes quanto à necessidade de conversão. No que concerne ao batismo, ele pode proporcionar o sinal, porém é necessário Alguém mais poderoso do que João para proporcionar a coisa significada. Por isso, depois de dizer: "Eu vos batizo com água com vistas à conversão", João prossegue: mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu — eu não sou digno de tirar suas sandálias —; ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo. Foi necessário que João apresentasse esse contraste, pois o povo já começava a indagar se porventura ele não seria o Cristo (Lc 3.15; cf. Jo 1.19,20; 3.25-36). Portanto, João está dizendo que o contraste entre ele e Aquele que cronologicamente vinha após ele era tão grande, que ele, João, nem mesmo era digno de desatar (isso somente em Mc 1.7 e Lc 3.16), tirar e levar214 as sandálias de seu sucessor; equivale dizer que para Alguém tão grande, ele próprio nem mesmo era digno de prestar os serviços de um escravo. É verdade que no caminho da vida, Jesus, não somente em seu nascimento, mas também no início de seu ministério público, viera após João (Lc 1.26,36; 3.23). Porém, entre Cristo e João havia uma diferença qualitativa como a que existe entre o infinito e o finito, o eterno e o temporal, a luz original do sol e a luz refletida da lua (cf. Jo 1.15-17). 214
Para os vários usos de PaaxáÇco, ver C.N.T. sobre Gálatas, nota de rodapé 171.
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João batiza com água; Jesus batizará com o Espirito.215 Ele fará com que seu Espírito e os dons que procedem deste venham sobre seus seguidores (At 1.8), sejam derramados sobre eles (At 2.17,33), e caiam sobre eles (At 10.44; 11.15). Ora, é verdade que toda vez que uma pessoa é retirada das trevas e posta na maravilhosa luz de Deus, ela está sendo batizada com o Espírito Santo e com fogo. Calvino, ao comentar Mt 3.11, chama a atenção para o fato de que Cristo é quem concede o Espírito de regeneração, e que, como o fogo, este Espírito nos purifica retirando a nossa imundícia. Contudo, de acordo com as próprias palavras de Cristo (At 1.5,8), lembradas por Pedro (At 11.16), num sentido especial essa predição se cumpriu no dia de Pentecostes e com a era que ela introduziu. Foi então que, pela vinda do Espírito, as mentes dos seguidores de Cristo foram enriquecidas com uma iluminação sem precedentes (lJo 2.20); suas vontades se fortaleceram, como nunca antes, com uma animação contagiante (At 4.13,19,20,33; 5.29); e seus corações se inundaram com uma afeição ardente a um grau até então desconhecido (At 2.44-47; 3.6; 4.32). A menção do fogo ("Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo") ajusta essa aplicação ao Pentecostes, quando "apareceram línguas repartidas como de fogo, pousando sobre cada um deles" (At 2.3). A chama ilumina. O fogo purifica. O Espírito faz as duas coisas. Não obstante, pelo contexto (anterior e posterior, ver vv.10 e 12) e pela profecia de Joel referente ao Pentecostes (J12.30; cf. At 2.19), considerada no contexto deste último (ver J1 2.31), parece que o cumprimento final das palavras de João aguarda a segunda vinda gloriosa de Cristo para purificar a terra com fogo (2Pe 3.7,12; cf. Ml 3.2; 2Ts 1.8). Nas Escrituras, com freqüência o fogo simboliza a ira.2]b Mas o fogo também indica a obra da graça (Is 6.6,7; Zc 13 9, 215
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Literalmente, "com Espírito". A palavra Kveúpatt, como tfSa-ti, não leva artigo a fim de delinear de forma tão aguda quanto possível o contraste entre a. o que João mesmo estava fazendo, e b. o que Cristo faria por meio do Espírito, e assim enfatizar a qualidade incomparável da obra do Espírito. Ver as passagens na lista das pp. 297-298, que começa com Dt 9.3.
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Ml 3.3; IPe 1.7). Portanto, não é estranho que esse termo possa ser usado num sentido favorável como indicativo das bênçãos do Pentecostes e da nova dispensação, e num sentido desfavorável como indicativo dos terrores do futuro dia do juízo. É Cristo quem purifica os justos e expurga a terra de suas escórias — os ímpios. Além disso, se os profetas do Antigo Testamento, como será mostrado (p. 661), por meio da perspectiva profética, combinam entre si eventos que correspondem à primeira vinda de Cristo (tomada em seu sentido completo, incluindo o Pentecostes) com os da segunda, por que não se pode atribuir a mesma característica também ao estilo de João Batista, que de muitas formas se parecia com esses profetas? Portanto, é evidente que é forte o argumento em favor da interpretação segundo a qual a palavra fogo, aqui em 3.11, se refere tanto ao Pentecostes como ao juízo final. 2 ' 7 O caráter razoável da explicação, segundo a qual o batismo com fogo inclui uma referência ao juízo final, também se faz evidente pelo v.12, que igualmente se refere àquele grande dia. Ele tem a pá de joeirar em sua mão, e limpará completamente sua eira. A figura subjacente é a de um espaço liso onde se limpa o trigo. Esse espaço tanto pode ser natural como artificial. No primeiro caso, é a superfície plana de uma rocha no cume de uma colina, exposta ao vento. Se é o segundo caso, é uma área semelhantemente exposta, de uns dez a quinze metros de diâmetro, a qual era preparada pela remoção das pedras do solo, umedecendo-o e socando-o até ficar compacto e liso, fazendo o centro mais baixo que as bordas, cercando as extremidades com pedras com o fim de reter o grão dentro. Primeiro, os bois pisam as espigas com o grão (de trigo ou cevada), aquela porção que foi espalhada nessa área, puxando uma espécie de 217
Com respeito a essa pergunta, os comentaristas estão divididos em três grupos: a. aqueles que interpretam "fogo" como se referindo apenas ao juízo final (por exemplo, F. W. Grosheide): b. aqueles que o relacionam exclusivamente com o Pentecoste (por exemplo, R. C. H. Lenski); e c. aqueles que o relacionam com ambos os casos (por exemplo, H. N. Ridderbos). Segundo o meu modo de ver, pelas razões dadas, a última posição é a correta.
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trenó em cujo fundo são postas pedras por meio das quais os grãos são separados dos talos. A moinha (o que fica da espiga, a casca do grão, o restolho, pequenos pedaços de palha) ainda permanece misturada com os grãos. Então começa o processo de joeiramento, referido no v. 12. Porção após porção, o grão debulhado é lançado ao ar por meio de uma pá equipada com dois ou mais garfos, permitindo que o vento da tarde, que geralmente sopra do Mediterrâneo durante os meses de maio a setembro, leve a moinha. O grão, mais pesado que a moinha, cai verticalmente na eira. Assim o grão é separado da moinha. A obra de joeiramento não pára enquanto a eira não estiver completamente limpa. Da mesma forma, Cristo limpará completamente sua eira, ou seja, o lugar onde ele, em sua segunda vinda, executará o juízo. Ninguém escapará de sua detecção. Mesmo agora ele já se acha completamente equipado com tudo quanto necessita para a realização da tarefa de separar os bons dos maus.218 Prossegue: Ele recolherá o grão no celeiro, porém queimará a palha com fogo inextinguível. Voltando outra vez à figura subjacente, o grão descascado e joeirado é conduzido ao celeiro; literalmente, ao lugar onde as coisas são guardadas (ou, armazenadas). O grão é armazenado em virtude de ser algo muito valioso, muito precioso. Da figura subjacente passamos para a realidade. Até mesmo a morte dos crentes é descrita nas Escrituras de uma forma mui consoladora. Ela "é preciosa aos olhos do S E N H O R " ( S I 116.15); é ser "levado pelos anjos para o seio de Abraão" (Lc 16.22); é ir para o paraíso (Lc 23.43); é uma bendita partida (Fp 1.23); é estar em casa com o Senhor (2Co 5.8); é lucro (Fp 1.21); é muitíssimo melhor (Fp 1.23); é dormir no Senhor (Jo 11.11; lTs 4.13). Então, certamente que o estágio 2111
Alguns comentaristas chamam a atenção para o fato de que a separação não tem lugar agora, e, sim, no final da dispensação. Ver Mt 13.30; Ap 14.14-20. Embora essa seja a verdade em si, não a questão na qual João Batista põe a ênfase. Antes, ele enfatiza a iminência do juizo ("Sua pá de joeirar está em sua mão"), a fim de que os homens se arrependam e creiam.
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final na glorificação dos filhos de Deus, com corpo e alma participando então dessa bênção, será preciosíssimo: ir para "a casa onde há muitas moradas" (Jo 14.2), ser bem-vindo à própria presença de Cristo ("voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que onde eu estou estejais vós também" — Jo 14.3), viver para sempre no novo céu e na nova terra, donde será tirada toda mancha de pecado e toda sombra de maldição; onde habitará a justiça (2Pe 3.13); onde "Deus mesmo estará com eles como seu Deus, e eles serão seu povo. Então Deus enxugará toda lágrima dos olhos deles" (Ap 21.1-5); e onde se cumprirá finalmente a profecia de Is 11.6-9 ("o lobo e o cordeiro habitarão juntos, etc.") e de Ap 21.9—22.5 (a nova Jerusalém). Uma vez mais, voltamos à figura subjacente. Do grão passamos agora à moinha (palha). Esta, tendo caído nalgum lugar, ou lugares, longe do grão, é recolhida e queimada. Assim também sucede com os ímpios: separados dos bons, serão lançados no inferno, lugar onde o fogo não se apaga. Ali, o seu castigo é interminável. Não se trata propriamente de que há sempre um fogo queimando na Geena, e, sim, de que os ímpios são queimados com fogo inextinguível, o fogo que foi preparado tanto para eles como para o diabo e seus anjos (Mt 25.41). O seu verme nunca morre (Mc 9.48). A sua vergonha é eterna (Dn 12.2). Eternas também são suas prisões (Jd 6.7). Serão atormentados com fogo e enxofre... e a fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, de modo que não têm descanso nem de dia nem de noite (Ap 14.9-11; cf. 19.3; 20.10). Em que sentido esse "fogo" deve ser entendido? Resposta: embora a idéia de um fogo que em algum sentido é físico não deva ser excluída, segundo as Escrituras o sentido literal não exaure o significado. O fogo eterno foi preparado "para o diabo e seus anjos". Ora, estes são espíritos, e não podem ser atingidos pelo fogo físico. Além disso, as Escrituras mesmas apontam para o significado simbólico, ou seja, o fogo da ira divina que repousa sobre os impenitentes, e, conseqüentemente, para a sua angústia (Dt 9.3; 32.22; SI 11.5,6; 18.8; 21.9; 89.46; 297
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Is 5.24,25; Jr 4.4; Na 1.6; Ml 3.2; Mt 5.22; Hb 10.27; 12.29; 2Pe 3.7; Ap 14.10,11; 15.2). A advertência de João Batista, embora pareça horrível e espantosa, está saturada de misericórdia, como já foi explicado (verp. 291). 13 E n t ã o Jesus a p a r e c e u p u b l i c a m e n t e , ( v i n d o ) da Galiléia p a r a o Jordão, c o m o f i m de ser b a t i z a d o por ele. 14 P o r é m J o ã o t e n t a v a dissuadilo, d i z e n d o : " E u é que d e v o ser b a t i z a d o p o r ti, e tu vens a m i m ? " 15 M a s Jesus r e s p o n d e u - l h e : " P e r m i t e - m e esta vez, p o r q u e é c o n v e n i e n t e que deste m o d o c u m p r a m o s p l e n a m e n t e t o d a a e x i g ê n c i a da j u s t i ç a . " E n t ã o ele o consentiu. 16 E imediatamente, q u a n d o foi batizado e saiu da água, eis que os céus se abriram e ele (João) viu o Espírito de D e u s d e s c e n d o c o m o uma p o m b a e p o u s a n d o sobre ele (Jesus). 17 E então ouviu-se uma v o z do céu que dizia: " E s t e é o meu Filho, o A m a d o , em q u e m tenho prazer."
3.13-17 O Batismo de Jesus Cf. Marcos 1.9-11; Lucas 3.21,22; João 1.32-34 13. Então Jesus apareceu publicamente, (vindo) da Galiléia para o Jordão, com o fim de ser batizado por ele. No tocante ao tempo e lugar, Mateus registra as circunstâncias do batismo de Cristo de forma indefinida: "Então... ao Jordão." Em harmonia com o contexto anterior (vv.1-12) e com o que provavelmente sej a a correta interpretação de Lc 3.21, a palavra "então" provavelmente signifique: "no auge da atividade batizadora de João". No tocante à informação obtida de outras passagens com referência ao tempo aqui referido, ver pp. 212, 276. Com base nessas outras passagens, a conclusão que parece merecer respaldo é que provavelmente foi durante a última parte do ano 26 d.C., ou nos primeiros dias do ano 27 quando Jesus foi até João para ser por ele batizado. 2 ' 9 2
" Todavia, há aqueles que, com base em sua interpretação de Lc 3.21, acreditam que podem fornecer um detalhe homilético adicional; ou seja, que Jesus estava pacientemente esperando até que todos os demais tivessem sido batizados. Propositalmente, ele quis ser o último na fila, revelando assim sua humildade como uma lição para todos. Com Phillips eles traduzem 3.21: "Quando todo o povo tinha se batizado." Fazer isso, contudo, é dar mais sentido ao aoristo infinitivo articular de Lucas èv ra> Pa7ma0fjvai do que se pode convenientemente dar.
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Jesus veio "da Galiléia" (assim diz Mateus). Marcos é um pouco mais definido ao dizer "de Nazaré da Galiléia". João acrescenta que nesse tempo João Batista batizava "em Betânia, doutro lado do Jordão" (1.28), que provavelmente não ficava perto do Mar Morto, e, sim, mais para o norte. Ver C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, p. 93. O ministério público de Jesus começa aqui; a expressão "apareceu publicamente" (v. 13) é a mesma usada em conexão com o princípio da obra de João Batista (v. 1). Jesus veio ao Jordão com o propósito específico de ser batizado por João. Ele se apresenta e, com um gesto e/ou com uma palavra, solicita que fosse batizado. A reação de João está registrada no v.14. Porém João tentava dissuadi-lo... João está chocado. Provavelmente arrazoasse assim-, "O quê! Alguém com tanta dignidade e santidade pede para ser batizado ? Naturalmente que não será por mim, alguém tão inferior em posição e santidade. Não deve ser. Não pode ser! Ao contrário, eu é que devo ser batizado por ele!" Assim João se volta para Jesus, dizendo: Eu é que devo220 ser batizado por ti, e tu vens a mim? João e Jesus eram parentes (Lc 1.36). Isabel, a mãe de João, estava bem informada em relação ao primogênito de Maria, acerca de quem se referira ela como "meu Senhor" (Lc 1.42,43). Seria difícil conceber que ela não tivesse compartilhado seus conhecimentos com seu filho. O próprio fato de João suspeitar que a pessoa que agora tem diante de si para ser batizada era o Messias de quem falara antes (vv. 11 e 12) o faz protestar com tanta energia. Diante de tudo isso, como devemos explicar a informação posterior de João Batista: "Eu mesmo não o conhecia"? (Jo 1.31). E satisfatório dizer que João, nascido e criado na Judéia, e tendo passado tantos anos no deserto (Lc 1.80), poderia nunca ter 2211
No original, "eu" é expresso plenamente como um pronome separado, e está numa posição enfática no início da oração; daí, ''sou eu". Quanto a "eu é quem necessita" ou "eu é que necessito", é um assunto de preferência pessoal. Ver B. e C. Evans, A Dictionary of Contemporary American Usage, Nova York, 1957, p. 23.
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visto Jesus antes, que se criara na Galileia? Dificilmente, pois embora isso certamente pode ser levado em conta, João 1.33 indica que quando o precursor disse: "eu mesmo não o conhecia", estava pensando principalmente em algo mais, algo mais elevado que o mero conhecimento físico. Com toda probabilidade, ele quis dizer que ainda não lhe fora revelado divinamente que essa pessoa era o próprio Cristo. Não obstante, uma promessa lhe fora dada, ou seja, "sobre quem vires descer o Espírito, e que repousa sobre ele, este é o que batiza com o Espírito Santo". Em seu esforço para afastar o pedido de Jesus, arrazoando que o menor é que devia ser abençoado pelo maior (cf. Hb 7.7), não vice-versa, João dá expressão à sua consciência da necessidade de ser batizado por Jesus: "eu é que devo ser batizado por ti." Embora já tivesse recebido o Espírito Santo (Lc 1.15), ele deseja receber em maior medida sua presença e seus dons. Por outro lado, o que Jesus ainda não possuía e que poderia receber dele, João Batista: "e tu vens a mim?" 15. Mas Jesus respondeu-lhe: Permite-me esta vez, porque é conveniente que deste modo cumpramos plenamente toda a exigência da justiça.22' Esta passagem nos revela como Jesus venceu os escrúpulos de João. Porém, por que ele disse: "Permite-me esta vez " e "cumpramos plenamente toda a exigência da justiça "? A resposta não nos foi revelada de forma específica. Contudo, à luz de todo o contexto e também de outras passagens relevantes, como será indicado, pode ser que Jesus estivesse pensando em algo mais ou menos assim: "Como regra geral, o que tu dizes é verdade, mas neste momento específico de tua e de minha vida, quando estou para começar meu ministério público, é conveniente que, por meio do meu batismo, eu reafirme minha resolução (cf. SI 40.6,8; Ef 1.4; Hb 7.22; IPe 1.20; Ap 13.8) de 'tirar o pecado do mundo' (Jo 1.29). Além disso, deve-se cumprir a promessa que a ti foi dada (Jo 1.33), para que de forma mais persuasiva e adequada possas procla221
Literalmente, "para cumprir toda justiça".
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mar-me ao povo. Pelas razões estabelecidas, é conveniente que assim cumpramos toda a exigência da justiça; a exigência da justiça do que eu reafirmo, e a exigência da justiça de que tu batizes e proclames ." Não poderia ser isso o que nosso Senhor tinha em mente? Pode-se suscitar a seguinte objeção: a água do batismo simbolizava a remoção da imundícia, ou seja, do pecado; e uma vez que Jesus não era pecador, ele não tinha necessidade de ser batizado, e nem podia sê-lo com propriedade. A resposta é que, acima de tudo, ele tinha pecado — o nosso. Essa resposta tem por base passagens como Is 53.6 ("Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos"); Mt 20.28; Mc 10.45; Jo 10.11; 2Co 5.21; e IPe 3.18. Não se deve passar por alto, tampouco, que pelo que estava implícito em seu próprio batismo (Jo 1.29) Jesus validava o batismo de João, porque este último não teria tido sentido sem o primeiro. João Batista estava profundamente impressionado com a majestade daquele que falava. Estava convicto de que Jesus tinha razão. As objeções foram finalmente superadas. Por isso temos esta terminação: Então ele o consentiu. 16. E imediatamente, quando foi batizado e saiu da água, eis que os céus se abriram...!222 O modo do batismo — se Jesus estava de pé no Jordão, tendo os seus pés na água e João derramando ou esborrifando água em sua cabeça, ou tendo todo o seu corpo submerso — não nos é indicado nessa passagem. É natural supor que ele tenha descido até ao barranco do rio e que, pelo menos, tenha dado alguns passos para dentro da água. 111
Creio que há boas razões para construir-se o original grego de modo que o advérbio ET)0úç, ainda que gramaticalmente pertença a
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O v. 16 nos informa que, uma vez batizado, Jesus saiu novamente da água. Isso é tudo o que sabemos. O Espírito Santo não nos quis fornecer detalhes mais específicos acerca do modo como o batismo era praticado durante o período abrangido pelo Novo Testamento. O que é mesmo importante, tão importante que Mateus dirige a nossa especial atenção para isso, ao introduzi-lo com "eis que", é que os céus se abriram. Isso não foi uma experiência puramente subjetiva no coração de Jesus. Foi certamente um milagre, o qual ocorreu diante dos olhos de todos os que estavam presentes ali com João e Jesus. Ezequiel, igualmente, não viu os céus abertos?! (Ez 1.1). Não se deu o mesmo com Estêvão? (At 7.56). Também com João em Patmos? (Ap 4.1; 11.19; 19.11; cf. Is 64.1; 2Co 12.1-4). Prossegue, e ele (João) viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e pousando sobre ele. Cf. Mc 1.10; Lc 3.22; Jo 1.32-34. De repente, os céus se "abrem de par em par", e João viu o Espírito Santo! Naturalmente que o Espírito mesmo não possui corpo e não pode ser visto com os olhos físicos. Porém, diz-se-nos claramente que a terceira Pessoa da Trindade se manifestou a João sob o simbolismo de uma pomba. O que foi fisicamente visto foi uma forma corpórea semelhante a uma pomba. Ela foi vista descendo sobre Jesus. Não é claro por que Deus escolheu a forma de uma pomba para representar o Espírito Santo. Alguns comentaristas lembram a pureza e a candura ou graciosidade da pomba, propriedades que em grau infinito caracterizam o Espírito e, portanto, também a Cristo (cf. SI 68.14; Ct 2.14; 5.2; Mt 10.16). Assim equipado e qualificado, Cristo estava em condições de assumir a dificílima tarefa que o Pai lhe dera para fazer. Para salvar-nos do pecado, ele mesmo precisava ser puro. Para suportar o tormento, perdoar nossas iniqüidades e ter paciência com nossas fraquezas, precisava ser bondoso, manso e gracioso. Isso também ele possuiu numa medida superabundante, e ele disse aos seus seguidores que pela graça e poder de Deus, eles deveriam adquirir e exercer os mesmos dons (Mt 11.29,30; 302
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12.19; 21.4,5;Lc23.34; 2Co 10.1;Fp 2.5-8; IPe 1.19; 2.21-25; e no Antigo Testamento: Is 40.11; 42.23; 53.7; e Zc 9.9). João Batista observou que a forma de uma pomba, simbolizando o Espírito, permaneceu por algum tempo sobre Jesus (Jo 1.32,33). Não desapareceu imediatamente. Isso aconteceu para estabelecer na mente de João, e da igreja toda através dos tempos, não apenas que este Jesus era deveras o Cristo, mas também que o Espírito agora repousava sobre ele permanentemente, capacitando-o plenamente para a sua tarefa mais difícil, porém também mais gloriosa. Seria constantemente lembrado que, embora a natureza divina de Cristo não precisasse ser fortalecida, e realmente não pudesse sê-lo, não sucedia o mesmo com referência à sua natureza humana. Esta podia e precisava ser fortalecida (Mt 14.23; 17.1-5; 26.36-46; cf. Mc 14.36; Jo 12.27,28; e especialmente Hb 5 . 8).223 O fato de que aqui lhe fora concedida a unção do Espírito Santo (SI 45.7; Is 61.1-3; Lc 3.22; 4.1,18-21), de modo algum constitui um conflito com a sua concepção pelo poder do mesmo Espírito (Mt 1.20; Lc 1.35). Os dois fatos se harmonizam de forma muitíssimo bela. Até aqui ouvimos sobre a solicitação do Filho para ser batizado, e, em decorrência, sobre o seu próprio batismo, no qual reafirmou a sua total disposição de tomar sobre si e levar "o pecado do mundo" (Jo 1.29); também ouvimos do Espírito que desceu sobre ele, capacitando-o para uma tarefa tão tremenda e tão sublime. E plenamente apropriado que se junte aqui a voz do Pai que externa a sua plena aquiescência e beneplácito, para que se faça plenamente evidente que na obra de salvar os pecadores, como em toda a obra divina, que os três são um só. Por isso, segue-se o v.17. E então ouviu-se uma voz do céu que dizia: Este é o meu Filho, o Amado, em quem tenho prazer. Os três são sempre um; por exemplo, o Filho morre por "aqueles que" (literalmente, segundo o melhor texto, por "aquilo que") o Pai lhe deu (Jo 10.29); e estes são os mesmos que o 223
A propósito disso, com freqüência também se faz referência a Lc 22.42,43. Todavia. ali há um problema textual.
303
2.14,15
MATEUS
Espírito conduz à glória (Jo 14.16,17; 16.14; Rm 8.26-30). Assim também aqui: os três são um só. Os céus precisam se abrir para que Jesus mesmo possa ouvir a voz, como está representada em Mc 1.11 e Lc 3.22 ("Tu és meu Filho, o Amado"), mas também para que João Batista a ouça (daí, "Este ..."), equipado para ser uma testemunha mais idônea das coisas que viu e ouviu (cf. Jo 1.33,34). Como já foi indicado, em conexão com a reafirmação voluntária do Filho de sua prazerosa entrega à tarefa de conduzir uma carga tão infinitamente pesada, essa voz de deleite e aprovação era plenamente oportuna. De quem era essa voz? Quem falou não é designado.324 E isso nem mesmo era necessário, porquanto a própria fraseologia ("meu Filho, o Amado") que fala como sendo, naturalmente, o Pai. Além disso, não somente em sua qualidade oficial como Messias, mas também como Filho por geração eterna, Aquele que participa plenamente da essência divina juntamente com o Pai e o Espírito, ele é o Amado do Pai (Jo 1.14; 3.16; 10.17; 17.23). Não há amor mais sublime do que aquele que o Pai sente pelo seu Filho. Em concordância com o adjetivo verbal (iagapetos = amado) aqui empregado, este amor tem raízes tão profundas, é tão amplo, tão incomensurável como o coração do próprio Deus. E também tão inteligente e tão pleno de propósitos como a mente do próprio Deus. Ele é pleno de ternura, de vastidão, de infinitude!225 Não apenas isso, senão que este amor é também eterno; ou seja, ele é intemporal, e se eleva acima de todos os limites do que é temporal. Embora haja quem discorde, a tradução "em quem eu tenho prazer " deve ser considerada correta.226 Nos re224
Quanto ao tema do beneplácito de Deus, essa de forma alguma é a única passagem onde não é citado pelo nome Aquele que exerce este beneplácito: por exemnlo ver também Lc 2.14; Fp 2.13; e Cl 1.19. Ef 1.5 deixa bastante claro de quem é o beneplácito referido. Assim o faz o contexto em cada um dos demais casos. 225 Quanto à diferença entre ayarako e
304
MATEUS
Cap. 2
cessos tranqüilos da eternidade, o Filho era o objeto do inexaurível deleite do Pai (cf. Pv 8.30). A reafirmação do Filho, por meio do batismo, de seu propósito de derramar seu sangue por um mundo perdido em pecado em nada contribuiu para enfraquecer esse amor. Isso é o que o Pai está dizendo a seu Filho. Isso é o que ele está dizendo também a João... e a todos nós. Quão pleno de conforto é esse parágrafo! Conforto não somente para o Filho e para João, mas também para todo filho de Deus, pois ele indica que não somente o Filho ama aos seus seguidores o bastante para sofrer os horrores do inferno em seu lugar, mas que também o Espírito coopera plenamente, fortalecendo-o para essa mesma tarefa, e que o Pai, em lugar de reprovar Aquele que a empreende, está tão contente com ele que sente necessidade de descerrar o próprio céu para que sua voz de deleite e aprovação possa ser ouvida na terra!227 Os três estão igualmente interessados em nossa salvação, e os três são um só. Sumário do Capítulo 3 Os vv. 1-12 registram o aparecimento repentino do arauto ou preparador do caminho de Cristo, em cumprimento da profecia de Is 40.3. João é retratado como pregador e batizador no deserto da Judéia. A partir da Judéia e dos seus arredores se reúnem enormes multidões para ouvi-lo e vê-lo. O repentino aparecimento de João, seu modo ascético de vida e sua mensagem de condenação iminente, da qual só se podia escapar por meio de uma mudança favorável de mente e coração ("converteivos..."), provoca uma resposta de muitos que, confessando seus pecados, são batizados no Jordão. Entre aqueles que se apresentam para o batismo estão também muitos fariseus (legalistas perversos e ostentosos) e saduceus (sacerdotes e proprietários ricos e mundanos). "Filhos de víboras!" — exclama João. O restante de suas palavras podem ser assim parafraseadas: "Quem levou vocês a pensar que po111
Acerca de todo o tema do batismo de Cristo, ler também o seguinte: A. B. Bruce, "The Baptism of Jesus", Exp. 5" série. 7 (1898). pp. 187-201; e W. E. Bundy. "The Meaning of Jesus' Baptism", JR. 7 (1927), pp. 56-71.
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Cap. 3
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dem escapar do juízo de Deus sem uma conversão de mente e coração? Portanto, produzam frutos que se harmonizem com uma verdadeira conversão. Não confiem na vossa descendência física de Abraão, como se tal coisa pudesse salvá-los. Se Deus quer filhos de Abraão dignos desse nome, ele não precisa de vocês. Ele pode suscitar filhos para Abraão destas pedras que jazem por aqui." João frisa que o machado já está posto na raiz da árvore; ou seja, a condenação é iminente. A ação divina de efetuar a separação final entre o precioso grão e a moinha sem valor (o penitente e o impenitente) é iminente. O grão está destinado ao celeiro; a moinha, ao fogo. Para o genuinamente convertido, "o reino dos céus", com suas inumeráveis bênçãos, está ao alcance da mão. Isso significa: o domínio de Deus que opera nas vidas, nos corações e em tudo quanto está influenciado por eles, e que age até mesmo na existência física do homem, está prestes a manifestar-se mais poderosa e gloriosamente do que nunca. Todavia, deve ficar entendido que nem a felicidade nem o infortúnio estão à disposição pessoal do próprio João. Ao contrário, tudo o que ele pode fazer (além de pregar) é batizar com água. Alguém muito mais digno está para aparecer em cena; em certo sentido ele já chegou. É ele quem batizará com o Espírito Santo e com fogo, uma predição que inclui o Pentecostes e o juízo final numa só expressão de amplo alcance. Os vv. 13-17 relatam que no auge da atividade de João, Jesus surge publicamente e solicita que João o batize. Quando o arauto objeta, julgando-se indigno, e sugerindo que ele próprio deveria ser batizado por Aquele para cuja vinda ele preparara o caminho, Jesus vence os escrúpulos dele, dizendo-lhe: "Permite-me esta vez, porque é conveniente que deste modo cumpramos plenamente toda a exigência da justiça." Era justo que quem prometera oferecer-se em resgate por muitos ratificasse esta promessa submetendo-se ao batismo, reafirmando desse modo o seu desejo e decisão de tomar sobre si e tirar o pecado do mun306
MATEUS
Cap. 2
do. A água do batismo significa e sela a lavagem dos pecados, e Jesus, por meio desse sacramento, se revela como o portador do pecado. Conseqüentemente, era também correto que João, que estava cumprindo sua tarefa em obediência a Deus e em cumprimento da profecia, batizasse Jesus. Para a execução de sua tarefa infinitamente difícil, era mister que o Mediador fosse ungido pelo Espírito Santo, pois devese ter em mente que o Filho de Deus era também o Filho do homem. A segunda pessoa da Trindade, sendo verdadeiramente divina, possui duas naturezas: a divina e a humana. A natureza divina não necessita de fortalecimento, porém a natureza humana, sim. Portanto, todas as qualificações necessárias foram conferidas ao Mediador quando, em seu batismo, o Espírito Santo, simbolizado pela forma de uma pomba, desceu sobre ele em plena medida. A presente reafirmação pelo Filho do seu desejo de levar sobre si uma tarefa que compreende tantos sofrimentos desperta uma imediata resposta de amor do coração do Pai, de modo que os céus se abrem e ouve-se uma voz, dizendo: "Este é o meu Filho, o Amado, em quem tenho prazer." Não se pode imaginar um sinal e selo de aprovação mais gloriosos. Assim o Pai, o Filho e o Espírito Santo cooperam entre si para levar a efeito a salvação do homem. Nota adicional sobre 3.4: "E sua comida era gafanhotos..." A aversão em comer insetos, ricos em proteínas, pode ser apenas cultural. Em outros países os insetos fazem parte da dieta. Na Cidade do México pode-se comprar gafanhotos assados e salgados. Os insetos comestíveis protegem os aborígenes australianos da fome. E mesmo nos Estados Unidos da América há mercados de alimentos finos e exclusivos que vendem abelhas e formigas revestidas de chocolate. Não é possível que João Batista estivesse um pouco à frente de nós, no sentido que, que os gafanhotos e outros insetos poderem preencher uma necessidade futura? 307
ESBOÇO DO CAPÍTULO 4 . 1 - 1 1
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer A tentação de Jesus no deserto
CAPÍTULO 4 . 1 - 1 1 MATEUS
4
4.1-11
1 Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser
tentado pelo diabo. 2 Depois de ficar sem comer por quarenta dias e quarenta noites, ele teve fome. 3 O tentador veio e lhe disse: "Visto que és o Filho de Deus, dize a estas pedras que se convertam em pão." 4 Porém ele respondeu e disse: "Está escrito: 'Não é só de pão que o homem viverá, mas, sim, de toda palavra que sai da boca de Deus."' 5 Então o diabo o levou à cidade santa, e o colocou no pináculo do templo, 6 e lhe disse: "Visto que és o Filho de Deus, lança-te abaixo; porque está escrito: 'Ele dará instruções a seus anjos a teu respeito', e 'Em suas mãos eles te conduzirão, para que o teu pé não tropece contra uma pedra.'" 7 Jesus lhe disse: "Também está escrito: 'Não porás o Senhor teu Deus à prova.'" 8 Novamente o diabo o levou a uma montanha muito alta, mostroulhe todos os reinos do mundo em seu esplendor, 9 e lhe disse: "Tudo isto eu te darei se te prostrares diante de mim e me adorares." 10 Então Jesus lhe disse: "Vai-te, Satanás, porque está escrito 'Tu adorarás ao Senhor teu Deus, e somente a ele servirás.'" 11 Então o diabo o deixou, e eis que vieram anjos e lhe prestavam seus serviços.
4.1-11 A Tentação de Jesus no Deserto Cf. Marcos 1.12,13; Lucas 4.1-13 Sua relação com o precedente e o que segue Em 1.1—3.12 enfatiza-se a realeza de Cristo. Em 3.13, todavia, há uma alteração: o rei se transforma naquele que leva 309
4.21,22
MATEUS
o pecado. Por meio do seu batismo ele reafirma sua resolução de oferecer-se em resgate por muitos. Conseqüentemente, este rei é também um sacerdote. Ele é "sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque" (SI 110.4; Hb 6.20). Oferecer-se a si mesmo subentende sofrimento. Ele sofre vicariamente. Uma das formas assumidas por esse sofrimento é a tentação (4.1-11): "Ele sofreu ao ser tentado" (Hb 2.18). No entanto, deve-se ressaltar que, embora a ênfase passe do ofício real para o sacerdotal, o ofício real de forma alguma é desconsiderado ou olvidado. No presente parágrafo, Jesus surge em cena não apenas como o sacerdote que "sofre ao ser tentado", mas também de forma bem definida como o rei que oferece combate ao seu principal oponente e o subjuga. Tampouco o ofício profético é desconsiderado; pois por meio de toda a sua reação e especificamente por meio de sua tríplice citação das Escrituras, Jesus também exerce funções nesse sentido. Realmente, nesse mesmo capítulo, a ênfase gradualmente se desloca para Cristo, não apenas como aquele que cura, mas também como mestre e pregador (v.23); e imediatamente vem o Sermão do Monte (capítulos 5 a 7). Já ficou assinalado que o Evangelho de Mateus, mais que qualquer outro, enfatiza Cristo como profeta (p. 109). E impossível, pois, separar os três ofícios exercidos pelo Senhor. Eles podem ser vistos como que constituindo um só ofício messiânico tríplice. 1. Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. O próprio vocabulário do presente parágrafo revela sua estreita conexão com o precedente: João "viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e pousando sobre ele" (3.16).
"Então Jesus foi levado pelo Espírito" (4.1)
"E eis uma voz do céu, dizendo: 'Este é o meu Filho, o Amado...'" (3.17).
"Se és o Filho de Deus..." (4.3).
310
MATEUS
4.1
Jesus foi levado da margem do Jordão, onde fora batizado, para as terras altas adjacentes. Ele foi levado pela direção do Espírito, esse mesmo Espírito, que não somente sabia que era necessária sua experiência com a tentação, mas cuja presença ativa e plenária também qualificou Jesus para triunfar sobre ela. Ele foi levado "ao deserto" (ver comentário sobre 3.1), onde estava "com as feras" (Mc 1.13). Aqui ele foi tentado pelo diabolos, ou seja, o diabo, que significa caluniador, acusador (Jó 1.9; Zc 3.1,2; cf. Ap 12.9,10), e (pela influência da Septuaginta que oferece diabolos como tradução de Satanás) também adversário (IPe 5.8). É evidente que Mateus cria na existência de um "príncipe do mal" pessoal. Igualmente criam os demais apóstolos e escritores inspirados, bem como o próprio Jesus. Além das referências de Mt 4.1,5,8; 13.39; 25.41, e as outras já mencionadas, ver Jo 8.44; 13.2; At 10.38; Ef 4.27; 6.11; Tg 4.7; lJo 3.8,10; Jd 9; Ap 2.10; e 20.2. Tendo sido expulso do céu, o diabo se encheu de fúria e inveja. Seu ódio é dirigido contra Deus e seu povo; especialmente contra Deus quando está prestes a revelar-se em Jesus Cristo para a salvação. Em conseqüência, o seu propósito é enganar e seduzir seu grande Inimigo, o Messias, a fim de que, ao lado deste, possa também destruir o seu reino (ver 4.23). Os métodos do diabo são muito sutis (Ef 6.11). Sobre esse tema, ver C.N.T. sobre Efésios 6.11. Seu Caráter Em relação à tentação de Cristo, algumas perguntas, que são antes filosóficas, são constantemente formuladas: Primeira: "Era possível que o Salvador sucumbisse à tentação?" A resposta é: "Absolutamente não." Ele era sem pecado, e nem mesmo podia pecar (Is 53.9; Jo 8.46; 2Co 5.21). De fato, ele transbordava de bondade positiva, como santidade, amor perdoador, desejo de curar e de compartilhar o verdadeiro conhecimento de Deus, etc. (Is 53.5; Mt 5.43-48; 14.14; 15.2,3; Lc 23.34; At 10.38). 311
4.21,22
MATEUS
Segunda: "Se ele era incapaz de pecar, sua tentação foi real?" Sim, "ele foi tentado em todos os pontos (ou: em todos os sentidos) assim como nós o somos, porém sem pecado", ou seja, sem cair empeçado (Hb 4.15). Ele experienciou as diversas tentações a que estão sujeitos os homens em geral, inclusive mesmo os crentes. Em todas essas experiências ele foi pressionado por Satanás a crer que poderia receber uma coisa boa cometendo um ato mau. Todavia, Hb 4.15 não pode significar que o processo psicológico envolvido em ser tentado era exatamente o mesmo para Jesus como o é para os homens em geral. Para estes, inclusive os crentes, primeiro se faz presente a voz tentadora ou o sussurro interior de Satanás, incitando-os a pecar. Porém é também inerente neles o desejo interior ("concupiscência") que estimula o tentado a dar ouvido às insinuações do diabo. Assim o homem, "atraído e enganado por seu próprio desejo pecaminoso" (Tg 1.14), peca. Com Cristo o caso era diferente. O estímulo exterior — exterior no sentido em que não se originou na própria alma do Senhor, e, sim, em que foi a voz de outro — estava ali, porém incentivo mau interior, o desejo de cooperar com essa voz proveniente do exterior, não. Não obstante, mesmo para Cristo a tentação foi real — ou seja, o sentimento de necessidade, a consciência da insistência de Satanás a que ele (Cristo) satisfizesse essa necessidade, o conhecimento de ter de resistir ao tentador e a luta que isso suscitou. A alma de nosso Senhor não era dura como o granito nem fria como um bloco de gelo. Era uma alma plenamente humana, profundamente sensível, afetada e afligida por toda espécie de sofrimento. Foi Cristo mesmo quem disse: "Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize" (Lc 12.50). Jesus era capaz de expressar afeição (Mt 19.13,14), simpatia (23.37; Jo 11.35), compaixão (Mt 12.32), ira (17.17), gratidão (11.25) e profundo anelo pela salvação dos pecadores (11.28; 23.37; Lc 15; 19.10; Jo 7.37) para a glória do Pai (Jo 17.1-5). Sendo não somente Deus, 312
MATEUS
4.1
mas também homem, ele sabia o que era sentir cansaço (Jo 4.6) e sede (4.7; 19.28). Portanto, não deveria realmente causar-nos surpresa o fato de que, após um jejum de quarenta dias, tivesse fome, tanto assim que a proposta de transformar pedras em pães se constituía numa verdadeira tentação para ele. Não obstante, se formulará a seguinte pergunta: "Porém, essa mesma mente tão sensível e perscrutadora de Cristo não poderia imediatamente discernir que as três propostas (ver vv. 3, 6 e 9) eram más, uma vez que vinham de Satanás?" Certo autor pergunta: "Como o mal poderia ser-lhe atraente? E se não lhe era atraente, onde residia a tentação?" (A. Plummer). Devese admitir que é impossível responder a esta pergunta de tal modo que agora tudo fique plenamente claro. O tema da tentação do Salvador perfeito é envolto em mistério. Porém, isso não é verdade com relação à doutrina em geral? De fato, "o mistério é o elemento vital da dogmática. A verdade que Deus revelou concernente a si mesmo, na natureza e nas Escrituras, ultrapassa muitíssimo a concepção e a compreensão humanas". 228 Somos incapazes de analisar minuciosamente o que ocorreu no coração de Cristo enquanto era ele tentado. Porém, tampouco sabemos como o pecado se originou no coração sem pecado de Adão, como a culpa do pecador pode ser "imputada" ao Salvador, como a justiça deste pode ser transferida aos seus seguidores, como nosso Senhor pode ser onisciente (com respeito à sua natureza divina) e não-onisciente (segundo a sua natureza humana), ao mesmo tempo, etc. Não deveria surpreender-nos, pois, que a tentação de Cristo, seja no deserto ou posteriormente, ultrapasse o nosso entendimento. Com base no relato inspirado, cremos que foi uma experiência real e intensa. E quanto ao fato de que as profundas verdades contidas nas Escrituras transcendem a nossa compreensão, não é exatamente o que devemos esperar, uma vez que a Bíblia é verdadeiramente a Palavra de Deusl 228
H. Bavinck, The Doctrine of God (tradução minha do holandês para o inglês), Grand Rapids, 1955, p. 13. 313
4.21,22
MATEUS Seu Progresso Paulatino Primeira tentação
2. Depois de ficar sem comer por quarenta dias e quarenta noites, ele teve fome. As experiências de Moisés no Monte Horebe (Êx 34.2,28; Dt 9.9,18) e as de Elias em sua jornada para o mesmo Monte (lRs 19.8) nos vêm à mente de imediato. Lc 4.2 nos revela que o jejum de Cristo foi total, não parcial. Não é razoável concluir que o Senhor tenha usado esses quarenta dias para preparar-se à obra que o Pai lhe dera para realizar, e que Jesus mesmo voluntariamente tomara sobre si, e que essa preparação ele a fez por meio da oração e meditação? Calvino disse, comentando 4.1,2: "Havia duas razões porque Cristo se retirou para o deserto: Primeiro, que, após um jejum de quarenta dias, pudesse ele surgir como um novo homem, ou, antes, como um homem celestial, para desincumbir-se de seu ofício. Segundo, para que pudesse ser provado pela tentação e passar por um aprendizado antes de empreender uma tarefa tão árdua e tão sublime." Isso nos lembra Moisés diante da sarça ardente (Êx 3.1—4.17) e Paulo em seu retiro no deserto da Arábia. Ver C.N.T. sobre Gálatas 1.17.229 229
Para um ponto de vista notavelmente diferente, ver Lenski, op. cit., p. 136. Ele crê que Jesus foi tentado ao longo dos quarenta dias, e que isso foi o que o fez esquecer a comida, e que esse período não foi um retiro para ter comunhão com Deus. Ele baseia o seu ponto de vista, em grande medida, no uso do particípio presente peirazÒmenoj em Mc 1.13 e Lc 4.2, interpretando isso como que significando que Jesus estava sendo tentado durante todo o período dos quarenta dias, ponto de vista que se encontra também em muitos outros comentários; por exemplo, J. M. Gibson, The Gospel of St. Matthews (The Expositor's Bible), Grand Rapids, 1943, Vol. 4, p. 700; S. Greijdanus, Het Heilig Evangelie naar de Beschrijving van Lucas (Kommentaar op het Nieuwe Testament), Amsterdã, 1940, Vol. I, p. 193; e E. P. Groenewald, Die Evangelie volgens Markus, p. 30. Embora essa explicação do particípio é sem dúvida possível, e indicaria que "as três tentações relatadas vieram como uma espécie de clímax de uma série muito mais longa de tentações, não é a única possível. O sentido também poderia ser "... o deserto, onde estava sendo tentado pelo diabo". Uma interpretação razoável do relato na forma apresentada pelos Evangelhos (bem abreviado em Marcos) poderia ser a seguinte: a. Jesus é levado pelo Espírito ao deserto com o propósito de ser provado; b. ele permanece ali quarenta dias durante os quais jejua; c. no final 314
MATEUS
5.1-7.28
Uma vez que Jesus, além de divino, é perfeitamente humano, certamente que não causa surpresa o fato de que, no final desses quarenta dias, tenha sentido fome. O diabo, naturalmente, seleciona esse momento como sua oportunidade áurea. Então a história prossegue: 3. O tentador veio e lhe disse: Visto que és o Filho de Deus, dize a estas pedras que se convertam em pão.230 É evidente que a tentação veio de fora: "o tentador veio a ele". Como já foi indicado, somente desse modo se nos permite pensar de Cristo como sendo tentado. Em lTs 3.5, o príncipe do mal é igualmente chamado "o tentador", e assim, por implicação, também em Mt4.1;Mc 1.13; Lc 4.2; e 1 Co 7.5. Sua vileza consiste especialmente nisto: primeiro ele leva um homem a pecar; em seguida, quando o tentado segue seu conselho, o tentador se transforma em acusador! Além disso, ele prosseguirá acusando o caído mesmo depois de este já ter sido perdoado (Zc 3.1-5; Ap 12.10). Deve ter sido no espírito de zombaria que o tentador pronunciou as palavras: "Visto231 que és Filho de Deus...". Provavelmente queria dizer: "Visto que isso é o que o Pai te disse no batismo (3.17), e é isso o que crês, faze uso de tua majestosa dignidade, e não mais te tortures pela fome." Filho de Deus...
230
231
desse período sente muita fome; ed. o diabo aproveita esta oportunidade (a fome e a condição debilitada de Cristo) para tentá-lo. Esta interpretação também, segundo o meu parecer, faz plena justiça ao sentido do particípio presente. O relato de Mateus, lido separadamente, não sugere que Jesus tenha sido tentado durante todo o período de quarenta dias. A última teoria resulta de uma das duas interpretações possíveis do relato de Marcos c Lucas, e é então sobreposto a Mateus. Uma vez feito isso, somam-se vários outros pensamentos, tais como aquele em que Jesus, constantemente tentado, não teve tempo para pensar em comida, ou na comunhão com Deus por meio da oração. Essa é uma oração condicional da Primeira Classe (supõe-se que a condição seja fiel aos fatos): ei com o indicativo (aqui no presente) na prótase, e o imperativo eiró usado como (segundo aoristo de \éya>) na apódase. Satanás não nega que Jesus seja o Filho de Deus, mas o desafia a demonstrá-lo. ei em sentido causal, como ocorre com freqüência (Mt 6.30; 7.11; cf. Lc 11.13; 12.28; Jo 12.23; 10.35; etc.). 315
4.21,22
MATEUS
faminto. Que ridículo! Se, pois, és o Filho de Deus,232 dize a estas pedras que se transformem em pão.233 Naturalmente que foi um intento ímpio a. de provocar a queda de "o último Adão" (ICo 15.45) justamente como o primeiro Adão caíra, em ambos os casos em conexão com o consumo de alimento. Não foi uma das razões porque o Espírito fez com que Jesus fosse provado, a fim de que, como Representante e Salvador de todo o seu povo, triunfasse por eles sobre a tentação ao invés de sucumbir diante dela assim como sucedeu com o primeiro Adão? Além disso, por parte do tentador esse era um esforço sinistro, b. de destruir a confiança do Filho na vontade e poder do Pai para sustentá-lo. O que o tentador estava pedindo a Jesus era que desconfiasse do Pai, e assumisse inteiramente o controle dessas coisas. Como já dissemos acima, embora haja profundidades que não possamos sondar, não se pode negar que essa tentação foi muitíssimo real para Jesus. Ele tinha consciência de estar revestido com poder para realizar milagres. Aqui, igualmente, tinha ele a oportunidade de usar esse poder em seu próprio benefício. Certamente que ele estava em extremo faminto naquele momento. A realidade da tentação e a severidade da prova talvez se tornem ainda mais nitidamente palpáveis quando a situação do 232
232
A tradução "Filho de Deus" é de Beck e de Williams. Também é correta "o Filho de Deus" (A.V., A.R.V., N.A.S., R.S.V., N.E.B., etc.). As versões em português trazem com e sem o artigo. E verdade que DÍÓÇ não é precedido de artigo, porém não se pode dar muita importância a isso, porque a. mesmo sem o artigo, DÍÓÇ TOÜ ©eoO, considerado como título, é definido; e b. se, como é geralmente pressuposto, Satanás está fazendo eco da voz do Pai no batismo, ele deve estar pensando na designação definida, porque 3.17 traz ó uióç. Portanto, não estou de acordo com Lenski, quando diz que, ao omitir o artigo, Satanás está "astutamente modificando a palavra do Pai" (op. cit., p. 138). Ou "pão caseiro". O original usa o plural em ambos os casos, de modo qut i.: provável que Satanás estivesse pensando em "pedras... pães". Em sua forma talvez tivessem certa semelhança. Por outro lado, o contexto parece implicar que a ênfase não está tanto na forma, mas, antes, na substância pão, empregada para saciar a fome. Por isso, com a maioria das traduções prefiro (no texto inglês) a tradução bread. Loaves é incorreto, visto que esta palavra inglesa ("pão de forma") geralmente tem um sentido completamente distinto do original. 316
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5.1-7.28
último Adão é confrontada com a do primeiro. Ambos foram tentados por Satanás. Porém, a diferença na gravidade da prova surge do seguinte tríplice contraste: a. Em nenhum lugar de Gn 3.1-7 lemos que o Adão do Antigo Testamento ficasse sem comer durante algum tempo. Jesus, ao contrário, jejuou durante quarenta dias. Ele ficou em extremo faminto. b. Mesmo que o pai da raça humana tivesse ficado faminto, ele poderia facilmente satisfazer essa fome, porquanto a ele fora dito: "De toda árvore do jardim comerás livremente" (Gn 2.16). Nenhuma provisão assim fora feita em favor de Cristo. c. Quando o esposo de Eva foi tentado, tinha ele tudo em seu favor, porquanto vivia no paraíso. Jesus, no momento de sua tentação, enfrentava esse horrível deserto! Não obstante, ele vence a tentação: 4. Porém ele respondeu e disse: Está escrito: Não é só de pão que o homem viverá, mas, sim, de toda palavra que sai da boca de Deus. Note-se a expressão "Está escrito", não somente aqui, no v.4, mas também nos vv. 7 e 10, todas as vezes com uma referência ao mesmo Livro, Deuteronômio, o qual, como é claro, Jesus considerava não como "uma fraude piedosa", mas, sim, como a própria Palavra de Deus. Outras passagens que expressam a elevada consideração que Cristo tinha pelas Escrituras são Lc 24.25-27, 44-47; Jo 5.39; e 10.35. Para ele as Escrituras do Antigo Testamento, na forma como ele mesmo as interpretava, eram evidentemente a pedra de toque da verdade para a vida e a doutrina, o tribunal supremo de apelação para a razão. A primeira citação é de Dt 8.3. Ela retrata Moisés lembrando a Israel do terno cuidado de Deus pelo seu povo durante quarenta anos de jornada pelo deserto. Particularmente, ela mostra como o Senhor os alimentara com o maná, outrora completamente desconhecido deles e de seus pais, para ensinar-lhes "que não só de pão viverá o homem, mas de tudo o que procede da boca do SENHOR, disso viverá o homem". 317
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Portanto, o que Jesus quis dizer pode ser assim parafraseado: "Tentador, você está com a falsa suposição de que, para que um homem sacie sua fome e continue vivendo, é absolutamente necessário o pão. Contra essa idéia errônea, agora declaro que a única fonte indispensável da vida e bem-estar do homem, e para mim mesmo, é o poder de meu Pai que é criativo, energizante e sustentador." A expressão "toda palavra que sai da boca de Deus"234 se refere à palavra de seu poder. É a onipotência de Deus exercida na criação e na preservação. E a sua palavra de ordem eficaz; por exemplo: "E disse Deus: Haja luz, e houve luz" (Gn 1.3); "Pela palavra do S E N H O R OS céus foram feitos" ( S I 33.6). Da parte de Jesus, essa resposta à proposta de Satanás foi uma expressão de confiança filial no cuidado do Pai. Certamente que, neste momento de prova, Aquele que providenciou o maná quando não havia pão, e que um pouco antes havia dito: "Este é o meu Filho... em quem tenho prazer" não desampararia o seu Amado. Segunda tentação 5,6. "Então confias em teu Pai?" — disse o tentador. "Muito bem, então provemo-lo": Então o diabo o levou à cidade santa, e o colocou no pináculo do templo, e lhe disse: Visto que és o Filho de Deus, lança-te abaixo; porque está escrito: Ele dará instruções a seus anjos a teu respeito, e Em suas mãos eles te conduzirão, para que o teu pé não tropece contra uma pedra. 234
Indubitavelmente, essa versão é um reflexo da Septuaginta. E difícil decidir se esse texto expandido é preferível ao mais breve ("toda palavra de Deus"). O Códice D traz o texto mais breve. Cf. Lc 4.4. Visto que o texto ocidental geralmente é caracterizado pelas adições em vez das subtrações, alega-se que neste caso sua preferência pelo texto mais breve demonstra que o texto original não continha a leitura mais longa. Essencialmente, o sentido continua sendo o mesmo; pois. seja "toda palavra de Deus", "toda palavra que sai da boca de Deus", ou "tudo que procede da boca de Jeová" (texto hebraico), todas se referem à onipotência de Deus manifestada ativamente na criação e preservação de todas as coisas. 318
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Há quem veja uma discrepância entre Mateus e Lucas, visto que a ordem em que Mt 4.5-10 registra as duas últimas tentações é invertida em Lc 4.5-12. A resposta é que, enquanto Mateus realmente parece apresentar uma certa seqüência histórica, como é evidente não somente do uso que faz do termo "então" (v.5), e do v.ll ("Então o diabo o deixou"), mas também, como já se notou, da íntima relação entre a primeira e a segunda tentações; Lucas, ao contrário, nem sequer sugere tal seqüência. Ele simplesmente conecta as três tentações por meio da conjunção "e" (4.5,9), porém não diz nem subentende de forma alguma que estão apresentadas em sua ordem histórica. De forma que não existe discrepância. As palavras "o diabo o levou" são encontradas também no v.8, onde consideraremos a questão de como elas devem ser entendidas. Não nos surpreendemos que Mateus, o judeu, chame Jerusalém "a cidade santa" (cf. 27.53). A intenção era que ela fosse justamente isso (SI 46.4; 48.1-3,9-14; 122; 137; Mt 5.35). Muitas lembranças queridas estão associadas a Jerusalém, ou Sião. Não era ela a cidade onde Davi, o grande ancestral de Cristo, estabelecera seu trono? Não prometera Deus que ali estabeleceria sua morada? Aqui estava o templo com seu "lugar santo" e o "santo dos santos". Esta era a cidade para a qual se dirigiam as tribos para dar graças ao nome do S E N H O R . Com a permissão de Deus, o diabo conduziu Jesus a essa cidade, e o colocou no próprio pináculo (literalmente, asa) do muro exterior de todo o complexo do templo. O local exato não nos é fornecido. Pode ter sido a parte superior do teto do pórtico real de Herodes, que dá para o Vale do Cedrom, com uma altura de cerca de 150 metros, "uma altura que provoca vertigem", segundo indica Josefo (Antigüidades, XV.412). Esse locai estava situado a sudeste do átrio do templo, talvez no lugar ou perto dele, onde, segundo a tradição, foi lançado Tiago, o irmão do Senhor. Ver o relato muito interessante na História Eclesiástica de Eusébio, ILxxii.235 235
At 12.2 faz referência à morte de outro Tiago, ou seja, o irmão de João. Ver, contudo, Lenski, op. cit., p. 144. 319
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"Visto que és o Filho de Deus", diz o tentador (exatamente como no v.3), "lança-te abaixo." O seu raciocínio provavelmente seguia esta linha: "Assim poderás demonstrar tua confiança na proteção do Pai, confiança que por implicação acabas de confessar (v.4). Além disso, se as Escrituras, que citas com tanta prontidão, são a verdade, não sofrerás nenhum prejuízo, porque está escrito: 'Ele dará instruções aos anjos a teu respeito.' Não impedirão simplesmente atua queda. Não, farão mais que isso. Com muita ternura te tomarão em suas mãos, para que, usando apenas sandálias, não te firas ao bater o teu pé em alguma pedra afiada das que abundam no fundo desse abismo." A passagem citada é do SI 91.11,12. Na forma como está traduzida aqui em Mt 4.6, ela segue a Septuaginta (SI 90.11,12). Contudo, na forma citada pelo diabo, há uma omissão que alguns consideram importante, outros não. Segundo o hebraico, o SI 91.11 termina com as palavras "para guardar-te em todos os teus caminhos". Mt 4.6 nada contém que corresponda a isso. Lc 4.10 apenas traz "para guardar-te". Dessa forma, em ambos estes Evangelhos as palavras "em todos os teus caminhos" são omitidas. Quando essas palavras são incluídas, Deus promete proteger os homens justos em todos os seus caminhos justos; pois tais são os caminhos do homem que habita no lugar secreto do Altíssimo, e mora à sombra do Onipotente, e que encontrou o seu refúgio do S E N H O R , em quem pôs o seu amor. Conseqüentemente, eles são os caminhos do santo (Pv 2.8), do homem bom (Pv 2.20). E a esse homem que se aplicam as palavras: "Ele dará instruções aos seus anjos, a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos." Quando estas palavras — "em todos os teus caminhos" — são omitidas, não se torna mais fácil interpretar a passagem como se fosse uma promessa do SENHOR de proteger o justo não importe o que este façal Interpretada dessa forma, a passagem parece corresponder mais de perto com aquilo que o diabo queria que Jesus fizesse. Não obstante, esse ponto é, provavelmente, de menor importância, uma vez que aquilo que Satanás omite é muito mais 320
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que umas poucas palavras numa citação. Ele omite qualquer referência à verdade bíblica de que Deus não perdoa, antes condena e castiga, a temeridade, o brincar com a providência, o lançar-se impetuosamente ao perigo de forma injustificada (Gn 13.10,11; SI 19.13; Et 5.14; 7.9,10; Dn 4.28-33; 5.22,23; Rm 1.30; 2Pe 2.10). A obediência à proposta de Satanás era tentadora, porquanto, que homem existe que, ao ser solicitado que comprove um argumento que fizera, não sinta que deve fazê-lo imediatamente sem primeiro perguntar a si mesmo: "Que direito tem o meu incitador de pedir-me que faça tal comprovação?" Jesus, contudo, não cai nessa armadilha. Ele percebe que fazer o que Satanás está pedindo, equivaleria a trocar a fé pela presunção, a submissão à orientação divina pela insolência. Significaria nada menos que arriscar-se à autodestruição. A falsa confiança no Pai, que o diabo exigia de Jesus nesta segunda tentação, não era melhor que a desconfiança que lhe propusera na primeira,236 Equivaleria a fazer experiência com o Pai. Uma tradição rabínica afirma: "Quando o rei, o Messias, se revela, então ele vem e se coloca em pé no teto do lugar santo."237 Com base nessa tradição, alguns comentaristas são da opinião de que o tentador estava tentando convencer Jesus de que, ao lançar-se do pináculo do templo, se firmaria como o legítimo Messias, pois, depois de uma aterrissagem milagrosa e a salvo, a multidão, ao observar sua descida com espanto, exclamaria: "Vede, ele não se feriu. Só pode ser o Messias!" Para Jesus, assim prossegue o argumento, esse teria sido um caminho fácil para o sucesso. A cruz seria evitada, a coroa seria obtida sem luta ou agonia. E uma teoria interessante. Todavia, nada há que lhe preste o menor apoio. Nem mesmo se faz menção de espectadores no relato do Evangelho. Além disso, Jesus, em sua resposta, não 23f
' Ver a magnífica afirmação que Lenski faz a respeito, op. cit., p. 146, ao pé da página. 237 S. BK., Vol. 1, p. 151. 321
4.21,22
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faz referência a nada desse tipo. Portanto, creio que o melhor é desfazer-nos de toda essa idéia. Lc 16.31 também é um argumento contra. A razão porque Jesus peremptoriamente rejeita a proposta do diabo já foi apresentada. Ela é claramente expressa no v. 7. Jesus lhe disse: Também está escrito: Não porás o Senhor teu Deus à prova.2'8 Esta é uma citação de Dt 6.16, que reflete a situação dos israelitas descrita em Ex 17.1-7, como, num lugar chamado Massá e Meribá, puseram o Senhor à prova e se rebelaram contra Moisés em virtude da falta de água. Acusaram Moisés de havê-los tirado cruelmente do Egito, a eles, a seus filhos, seu gado, levando-os ao deserto para serem todos destruídos. Estavam quase a ponto de apedrejá-lo e, em vez de "fazer conhecidas todas as suas necessidades e desejos diante do trono do Pai", à semelhança de um filho, insolente e provocadoramente desafiaram a Deus, dizendo: "o S E N H O R está ou não está entre nós?" Jesus sabe que um mau comportamento semelhante de sua parte equivaleria a uma grave transgressão, ou seja, ao expor-se desnecessariamente a um perigo a fim de ver qual seria a reação do Pai, se estaria ou não com ele. Ele sabe que isso nada tem que ver com a confiança humilde no cuidado protetor prometido no Salmo 91. Portanto, de forma muito apropriada responde ao tentador com Dt 6.16. Toda a vida diária que nos rodeia nos oferece abundantes ilustrações de uma falsa confiança, semelhante à que o diabo pedia que Jesus demonstrasse. Uma pessoa fervorosamente su238
Depois dos singulares do v.6, é bastante natural que no v.7 o verbo citado esteja também no singular, em vez de no plural como se acha no Deuteronômio hebraico. Além disso, na Septuaginta a passagem de Deuteronômio está no singular. O verbo usado em Mt 4.7 não é o mesmo usado em 4.1, ainda que ambos estejam estreitamente relacionados. O verbo no v. 1 é o aoristo infinitivo passivo de 7CEipáÇ(ú o do v.7 é a segunda pessoa singular futuro do indicativo ativo de ÉKTceipáÇco. Algumas versões inglesas (A.V., R.S.V., N.A.S. no texto, Phillips), e provavelmente todas as versões portuguesas, usam o mesmo verbo em ambos os casos. Outras versões inglesas (A.R.V., Williams, Goodespeed, Weymonth, Berkeley, Beck, N.A.S., na margem, e N.E. B.) refletem o original de forma mais exata usando no v.7 um verbo distinto do usado no v. 1. 322
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plica ao Senhor que lhe conceda a bênção da saúde; entretanto, deixa de observar as normas da saúde. Ou pede que Deus salve a sua alma; entretanto, negligencia o uso dos meios de graça, tais como o estudo das Escrituras, a freqüência à igreja, a participação dos sacramentos, o viver para o bem do próximo e para a glória de Deus. Ainda, alguém suplicará ao Senhor pelo bemestar físico e espiritual de seus filhos, porém ele mesmo deixa de levá-los ao caminho do Senhor. Um membro da igreja, ao ser advertido por ter assistido a um espetáculo pecaminoso, defendeu-se, dizendo: "Não posso negar que estive lá, porém, enquanto assistia, eu orava sem cessar: 'Desvia os meus olhos para que não vejam a vaidade...'" (SI 119.37). A tudo isso a resposta é: "Não tentarás ao Senhor teu Deus." Terceira Tentação E agora o diabo deixa cair sua máscara e, tendo fracassado miseravelmente nas duas primeiras tentativas de vencer seu inimigo, arrisca tudo numa tentativa final, brutal e desesperada para alcançar seu propósito: 8,9. Novamente o diabo o levou a uma montanha muito alta, mostrou-lhe todos os reinos do mundo em seu esplendor, e lhe disse: Tudo isto eu te darei se te prostrares diante de mim e me adorares. Como solucionar o impasse: na segunda tentação, o diabo leva Jesus à cidade santa e o coloca no pináculo do templo, e agora, na terceira tentação, Satanás o leva a uma montanha muito alta? Alguns insistem em que tudo isso deve ser entendido de forma literal: "A transferência de Jesus ao templo foi física... 'o levou consigo' e 'o colocou' significa que o diabo produziu a força motriz."239 Exatamente como podemos conceber tal coisa não nos é explicado. Assumiu o diabo um corpo físico (Gn 3.1; cf. Jo 8.44) e ambos — Jesus e o diabo, caminharam lado a lado pelo deserto, entraram em Jerusalém e subiram ao pináculo do templo? Como chegaram ao alto de uma montanha de onde o diabo pôde mostrar a Jesus "todos os reinos do mundo e seu 239
Lenski, op. cil., pp. 143, 144; ver também p. 149. 323
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esplendor"? Que montanha em toda a circunvizinhança do deserto da Judéia ou de Jerusalém poderia ter sido? Teriam planado suavemente pelo céu, como se fosse o diabo uma espécie de máquina? Teriam voado juntos até o próprio monte Everest? Ainda que tenha sido assim, não seria preciso um milagre que permitisse ao diabo mostrar dali, a Jesus, todos os reinos do mundo, e isso não de uma forma vaga, mas plenamente clara, tanto que "todo o seu esplendor (glória)" se fez plenamente visível; e isto não pouco a pouco durante um longo período, e, sim, como Lucas acrescenta, "num momento"? Essa não é de forma alguma uma questão de crer ou não nas Escrituras. E simplesmente uma questão de como interpretar melhor o que aceitamos plenamente. O autor desse comentário não conseguiu encontrar uma solução capaz de satisfazer mais do que a de Calvino. Em seu comentário, refletindo antes sobre a segunda tentação e logo a seguir sobre a terceira, ele observa: "Pergunta-se, foi ele [Jesus] realmente conduzido a esse ponto elevado, ou isso aconteceu em forma de visão? ... O que é aduzido, ou seja, que todos os reinos do mundo foram apresentados ante os olhos de Cristo... num momento... concorda com a idéia de uma visão melhor do que com qualquer outra teoria. Num assunto que é duvidoso, e onde a ignorância não produz riscos, prefiro antes suspender o meu juízo do que proporcionar aos que são contenciosos uma desculpa para debater." Calvino se revela muito cuidadoso. E claro que ele favorece a idéia da visão. Por outro lado, ele não quer impô-la, deixando lugar para qualquer outra interpretação razoável que alguém possa oferecer. Apenas desejo acrescentar que as Escrituras contêm duas passagens comparáveis nas quais nos é dito que alguém é "posto" ou "levado" a um alto monte. Elas são Ez 40.2 e Ap 21 TO.240 Ezequiel declara nitidamente que isso aconteceu "nas visões de Deus". Quanto ao vidente de Patmos, as visões lhe foram mostradas enquanto ele se achava "no Espírito" (Ap 240
Outras passagens que falam de uma montanha alta, revelam nos contextos que são de uma natureza muitíssimo diferente (Is 40.9; 57.7; Jr 3.6; Mt 17.1; Mc 9.2). 324
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1.10). Foi "no Espírito" que ele foi conduzido a uma montanha grande e alta. Portanto, o ponto de vista de Calvino é digno de séria consideração.241 A objeção que se faz de que, se as tentações (sejam só a segunda e a terceira, ou talvez, melhor, as três) ocorreram a Jesus durante visões, elas não foram reais, não tem fundamento. A experiência de Ezequiel não foi real, mesmo que tenha ocorrido por meio de uma visão? A descrição que João faz da Jerusalém de ouro, porque lhe veio em forma de visão, está destituída de valor? Além disso, se mesmo um sonho pode ser tão vívido que se registraram casos de pessoas que morreram em conseqüência, diremos, pois, que a realidade das experiências de tentação de Cristo se vê diminuída de alguma forma, porque foi em visões que o tentador veio e se dirigiu a ele? Esse ponto de vista não deve ser confundido com aquele segundo o qual as tentações foram de natureza meramente subjetivas. Não, mesmo se o diabo viesse a Jesus em forma de visão, o grande adversário era muito real, e era ele, e não o Senhor, quem dizia: "Dize a estas pedras que se transformem em pão", "lança-te abaixo" e "prostra-se diante de mim". Se foi numa visão que se exigiu que o Senhor fizesse essas coisas, podemos estar certos de que o que ocorreu na visão era tão real à sua mente como se não houvera nenhuma visão, como se tudo tivesse ocorrido literalmente. Do topo de uma montanha altíssima (numa visão ou não, não importa) o diabo descerra aos olhos de Jesus todos os reinos do mundo e (ou em) seu esplendor. Tudo isso é vividamente exibido diante de Jesus; de acordo com Lucas (como já vimos), em apenas um momento muito significativo! A fim de se obter uma concepção do que deveria estar incluído no panorama que foi descerrado aos olhos do Senhor, seria sensato ler cuidadosamente as três passagens seguintes: 2Cr 9.9-28, Ec 2.1-11 e Ap 18.12,13. Satanás ofereceu a Cristo todas essas riquezas, tudo pelo preço de uma só genuflexão. Se Jesus apenas se lançasse 241
A esse respeito, ver também a excelente matéria em H. N. Ridderbos, op. cit., pp. 69-72. 325
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em terra e adorasse (ver 2.11; cf. 2.2,8) ao diabo, tudo passaria ser de Jesus. Tudo seria possessão sua e estaria sob sua autoridade (cf. Lc 4.6). Já se perguntou se Satanás era de fato o possuidor de todas essas coisas, e se de fato estava ele no controle de todas elas, a ponto de poder ele oferecê-las a quem bem o desejasse. Às vezes essa pergunta é respondida na afirmativa, apelando-se para Ef 2.2, onde Satanás é caracterizado como "o príncipe da potestade do ar"; Ef 6.12, que fala de "as forças espirituais do mal nas regiões celestiais"; 1 Jo 5.19, que afirma que "o mundo todo está posto em (o poder de) o maligno"; e ainda Lc 4.6, onde o grande adversário se auto-apresenta como o proprietário legai e governante de tudo. Esses intérpretes se apoiam no fato de que Jesus, em sua resposta (Mt 4.10), não disputou, de modo específico, a reivindicação de Satanás. Essas passagens realmente comprovam aquilo que aqueles que apelam para elas querem comprovar? Creio que não. As primeiras três simplesmente provam que Satanás exerce uma influência muito forte e maligna sobre a vida de todas as pessoas e espíritos ímpios que o reconhecem como seu senhor. Porém, tais referências certamente não comprovam que o diabo seja o proprietário e governante máximo das nações, com o direito e o poder de dispor delas e de suas riquezas como bem lhe aprouver, de tal modo que o próprio Cristo, pelo menos durante a presente dispensação, tivesse de conformar-se com uma posição inferior a Satanás. A verdade é bem o contrário, como se pode demonstrar sobejamente por meio de passagens como estas: Gn 3.15; SI 2; Mt 11.27; 28.18; Rm 16.20; Ef 1.20-23; Cl 2.15; Ap 12; 20. 3.4,10. Se alguém argumentar que algumas dessas passagens se referem ao poder outorgado a Cristo em sua exaltação, a resposta é que, mesmo durante a humilhação de Cristo, Satanás não podia fazer mais do que Cristo lhe permitia, como o comprova Mt 4.11 e os Evangelhos em geral testificam (a expulsão de demônios; Mt 12.29; Lc 10.18; Jo 12.31). E no tocante à jactância de Satanás (Lc 4.6), ela é absurda demais 326
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para merecer uma resposta. Porém, se algum tipo de resposta for necessário, então que seja Jo 8.44. Portanto, pode parecer, no nível superficial, que a terceira tentação não tenha se constituído em tentação nenhuma para Cristo. Jesus sabia que o diabo estava mentindo; ou seja, que o príncipe do mal não tem reinos encantados para dar. Não há dúvida de que o Senhor também sabia que, ainda que Satanás os possuísse, não teria cumprido sua promessa. Em que sentido, pois, podemos afirmar que também a terceira tentativa de Satanás foi uma tentação genuína para Cristo? Segundo o meu modo de ver, ainda que a forma específica em que foi feita a proposta nada contivesse que a fizesse recomendável à mente e ao coração do Salvador, não obstante a sugestão implícita de tentar obter a coroa sem suportar a cruz teria fomentado nele uma amarga luta. Certamente que não foi uma luta que o envolvesse em pecado ou que pudesse levá-lo a ponto de cometer pecado, mas não deixou de ser um estado de agonia. De que outro modo explicaríamos as palavras pronunciadas no Getsêmani: "Meu Pai, se possível, passa de mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e, sim, como tu queres" (Mt 26.39)? Ou, como podemos explicar Lc 12.50? Portanto, é evidente que para Cristo essa tentação, também, foi muito real. Satanás recebeu a resposta que merecia: 10. Então Jesus lhe disse: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Tu adorarás ao Senhor teu Deus, e somente a ele servirás. A expressão "Vai-te, Satanás", uma ordem que foi obedecida (ver v. 11), não somente revela a repugnância de Cristo pela proposta do maligno, mas também a sua supremacia sobre o mesmo. A resposta é um reflexo de Dt 6.3.242 Também revela 242
Embora as palavras de Jesus não sejam uma tradução precisa de qualquer passagem em particular, nem do original hebraico nem da Septuaginta. elas estão em completa harmonia com o sentido de ambos, porque em ambos aparece a seguinte passagem: "O SENHOR, teu Deus, temerás, e a ele servirás..." (Dt 6.13), seguida pelo v.14: "Não seguirás outros deuses"; "Não as adorarás [ou seja, imagens esculpidas] nem lhes darás culto; porque eu. SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso" (Dt 327
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um forte contraste entre Cristo, que está sempre fazendo o que seu Pai quer que ele faça (Jo 5.30; 6.38), e Satanás, cujo propósito é exatamente o oposto (Gn 2.17; cf. 3.4; Zc 3.1,2; Jo 8.44; l i s 2.18; IPe 5.8; Uo 3.8; Ap 12; 20.8,9); e que corresponde verdadeiramente ao significado do nome com que Jesus se lhe dirige — adversário. A vista da ordem de Cristo, Satanás se afasta completamente vencido, como está declarado no v.ll. Então o diabo o deixou. Por algum tempo ele se absteve de tramar outros ataques, aguardando até quando outra oportunidade se apresentasse (Lc 4.13). Que ele tenha retomado os seus ataques, certamente que se faz evidente por meio de passagens tais como Mt 16.23; Lc 22.28. À luz de Hb 2.18, ver também Mt 26.36-46; Mc 3.21,31; 8.32,33. As visões — se é que o foram — se desvanecem. Jesus está consciente de estar no deserto. Prossegue: e eis que vieram anjos e lhe prestavam seus serviços. Que espécie de serviço foi prestado, não se nos diz. Os comentaristas que rejeitam a idéia de visão dizem que, entre outras coisas, os anjos agora ajudam Jesus em sua descida daquela montanha muito alta onde a terceira tentação se consumara.241 Talvez seja preferível a declaração geral de que os anjos foram enviados pelo Pai para providenciarem tudo quanto o Filho necessitasse. Parece razoável concluir que isso também incluía a alimentação corporal. Suas lições 1. Devemos resistir ao diabo apelando para as Escrituras, como Jesus fez por três vezes consecutivas.
243
5.9); ao que se pode acrescentar: "De lá buscarás ao SENHOR, teu Deus, e o acharás, quando o buscares de todo o teu coração c de toda a tua alma" (Dt 4.29). Embora em nenhuma dessas passagens ocorra a palavra "só" (de Mt 4.10), em cada caso ela se acha implícita dc forma iniludível: nos dois primeiros casos ein virtude do contexto; no último caso em virtude da frase: "de todo o teu coração e... alma". A palavra "só", contudo, aparece em ISm 7.3 ("servi a ele só"). Isso também pode ter influenciado Mt 4.10. Notar a mesma seqüência adorar... servir em Mt 4.10 e em Dt 5.9. Além do mais, as palavras de Cristo — "Ao Senhor teu Deus adorarás" — são uma resposta direta ao "Adora-me" de Satanás. Lenski, op. cit„ p. 154. 328
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2. Descansemos seguros no fato de que Jesus, como representante de seu povo, prestou vicariamente a obediência que Adão, como representante da humanidade, deixou de prestar. 3. Recebamos conforto do fato de que temos um Sumo Sacerdote que, tendo sido, ele mesmo, tentado, está habilitado a socorrer-nos em nossas tentações (Hb 4.14-16). 4. Observemos bem que, ao negar-se a dar ouvidos ao diabo, Jesus recebe as mesmas bênçãos que Satanás lhe oferecera. Todavia, é num sentido muito mais glorioso, e com o favor do Pai repousando sobre ele, que Jesus recebe forças para resistir fisicamente, o ministério dos anjos e a autoridade sobre os reinos do mundo. Sumário do Capítulo 4.1 -11 Adão, ao ser tentado, fracassou. Cristo também precisa agora ser tentado, a fim de que, por meio de sua vitória sobre a tentação e sobre o tentador, ele possa desfazer os resultados do fracasso de Adão em benefício de todos os que nele crêem. Assim o Espírito, que desceu sobre Jesus ao ser ele batizado, e jamais o deixará, o leva ao deserto para ser tentado pelo diabo. As três tentações ocorreram no final de um jejum de quarenta dias, de modo que Jesus estava muito faminto. "Visto que és o Filho de Deus", diz-lhe Satanás, provavelmente significando: "Visto que isso é o que o Pai te disse em teu batismo, e é o que crês, dize a estas pedras (do deserto) que se transformem em pão." Por que deveria ele prosseguir confiando no Pai por mais algum tempo? Por que, como o Filho de Deus, revestido de poder, não deveria ele mesmo assumir o controle? Citando Dt 8.3, Jesus responde: "Não é só de pão que o homem viverá, mas de toda palavra que sai da boca de Deus." A vida não depende primariamente de pão, mas do poder sustentador e do amor de Deus. Jesus é o próprio Filho de Deus; por isso, o Pai proverá para ele e o sustentará. "Comprova que confias nele", parece dizer-lhe Satanás, "lançando-te do pináculo do templo." Com o fim de encorajá-lo à ação, o diabo cita o Salmo 91.11,12, como se essa passagem 329
Cap. 4
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justificasse a precipitação, substituindo a presunção pela fé. Jesus rejeita o ataque citando Dt 6.16: "'Também está escrito: Não porás o Senhor teu Deus à prova." Finalmente, o que poderia ter sido a maior de todas as tentações: Satanás está disposto a ceder seu domínio, sua poderosa influência, esses reinos juntamente com todas as suas gloriosas riquezas, para que Jesus os possuísse e os controlasse; isso, pelo menos, é o que ele disse. Ele fará isso com uma única condição: que "te prostres diante de mim e me adores". O Messias não precisa, de forma alguma, sofrer: nem coroa de espinhos, nem ignomínia, nem cruz. A resposta vem como uma flecha: "Vaite, Satanás, porque está escrito: 'Ao Senhor teu Deus adorarás, e somente a ele servirás.'" Então, o diabo deixa Jesus por algum tempo. Os anjos vieram e prestaram seus serviços ao Vencedor. As lições a serem extraídas dessa tentação estão sumariadas nas pp. 328-329.
330
CAPÍTULO 4 . 1 2 - 2 5 MATEUS
4
4.12
12 Ora, ao ouvir que João fora encarcerado, ele retirou-se para
a Galiléia. 13 D e i x a n d o N a z a r é , ele foi e se e s t a b e l e c e u em C a f a r n a u m , j u n t o ao mar, no território de Z e b u l o m e Naftali, 14 para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías: 15 "Terra de Zebulom e terra de Naftali, Em direção ao mar, além do Jordão, Galiléia dos gentios, 16 O povo que jazia em trevas Viu uma grande luz; E sobre os que jaziam na terra da sombra da morte Resplandeceu a luz." 17 Desde esse tempo começou Jesus a pregar e a dizer: "Convertemse porque o reino do céu está próximo."
4.12-17 O Início do Grande Ministério Galileu
Os vv. 13-16 são peculiares a Mateus; ver, acima, pp. 2930. No tocante aos vv.12 e 17, ver também Mt 11.2; 14.3-5; Mc 1.14,15; 6.17-20; Lc 3.19,20; 4.14,15; e cf. Jo 4.1-3,43,44. 12. Ora, ao ouvir [Jesus] que João fora encarcerado, ele retirou-se para a Galiléia. Uma nova seção do Evangelho de Mateus tem início aqui. Portanto, teria sido muito apropriado se um novo capítulo tivesse início aqui. Mateus não indica qualquer conexão cronológica entre este versículo e o material precedente (o relato do batismo e a tentação). É provável que tenha havido um intervalo de cerca de um ano, durante o qual 333
4.21,22
MATEUS
ocorreram os eventos relatados em Jo 1.19—4.42.244 Se este é o caso, a data em que Jesus saiu para a Galiléia com o fim de dar início ao Grande Ministério Galileu foi provavelmente em torno de dezembro do ano de 27 d.C., ou um pouco depois. Porém, embora tão separado dos acontecimentos precedentes, o que Mateus está para dizer-nos está estreitamente relacionado em substância material com o precedente. Tanto a preparação como a inauguração da obra que o Pai deu a Jesus para que a realizasse chegou ao fim. O início já se completou. Já se estabeleceu a identidade de Jesus como o Filho de Davi que, ao mesmo tempo, é também o Senhor de Davi (cap. 1). Dos magos ele recebeu a honra devida Aquele que é o Rei dos reis e Senhor dos senhores (cap.2). Ele foi proclamado como soberano, e por meio de seu batismo confirmou sua decisão de tomar sobre si o pecado do mundo (cap. 3). Comprovou que é digno, pois no deserto triunfou sobre o diabo, vencendo como nosso representante onde Adão fracassara. Portanto, agora nada o impede de levar a bom termo a tarefa designada e que voluntariamente ele assumiu. Conseqüentemente, eis que chegou o momento de Jesus retirar-se da Judéia e dirigir-se para a Galiléia. Isso aconteceu em cumprimento da profecia, como Mateus agora registra (vv. 1416). Porém, como o v.12 revela, essa retirada também teve algo que ver com o encarceramento de João Batista. Este, como já ficou demonstrado, fez o seu primeiro aparecimento público no verão do ano 26 d.C. E agora, uns dezoito meses mais tarde, é aprisionado pela razão declarada em 14.3,4. Os líderes judeus, especialmente aqueles de Jerusalém, que se encheram de inveja Baseio essa probabilidade na suposição de que a saída em direção à Galiléia e a entrada na Galiléia para iniciar o Grande Ministério na Galiléia, mencionado aqui em Mateus, é o mesmo ao qual faz referência Jo 4.3,43. Em João isso foi seguido pouco depois pelo que provavelmente foi a segunda festa da Páscoa do ministério público de Cristo (Jo 5.1); seria, pois, a Páscoa do ano 28 d.C., precedida, um ano antes, pela primeira Páscoa, m e n c i o n a d a em Jo 2.13,23. Ver também pp. 257, 276: C.N.T., sobre o Evangelho de João, pp. 36, 173, 188, 189; e meu Bible Survey, pp. 61, 62, 69. 334
MATEUS
5.1-7.28
nos dias da grande popularidade de João, e a respeito de quem João fizera declarações bem pouco lisonjeiras (3.7), devem terse regozijado. Mas tal alegria foi de curta duração, pois aos ouvidos dos líderes chegaram outras notícias, ou seja, que as multidões que cercavam Jesus eram mais numerosas que aquelas que tinham seguido o arauto dele. De fato, mesmo antes da prisão de João, Jesus suplantara a este no apreço popular (Jo 3.2226). Daí, do ponto de vista dos líderes, a situação estava se tornando cada vez pior. Ora, quando o Senhor soube que João fora preso (Mt 4.12), e que os fariseus, com o seu quartel-general em Jerusalém, ouviram que Jesus estava conquistando e batizando (por meio de seus discípulos) mais discípulos que João (4.1), então saiu da Judéia e se dirigiu para a Galiléia. Por que ele assim procedeu? A Galiléia não estava sendo governada por Herodes Antipas, o tetrarca que encarcerou João Batista? E verdade, mas deve-se ter em mente que esse erro judicial foi motivado por uma razão muito especial: não nos é dito que Jesus tenha pessoalmente repreendido Herodes, como João o fez. Quando, depois da execranda morte de João, Herodes se convence de que Jesus é "João Batista ressurreto dos mortos", Jesus também se afasta, até certo ponto, das vistas imediatas desse rei (Mt 14.1,2,13). Nc momento indicado em 4.12, não era de Herodes Antipas de quem Jesus precisava afastar-se e, sim, dos líderes religiosos judeus habitantes da Judéia. Todavia, a pergunta a ser formulada bem que poderia ser: "Mas, depois de tudo, por que Jesus tinha de afastar-se? Seria por medo? Faltava coragem?" Para longe tal pensamento! A verdadeira razão era a seguinte: Jesus estava bem consciente do fato de que sua própria grande "popularidade" na região da Judéia traria um ressentimento tal por parte dos líderes religiosos que, no curso natural dos acontecimentos, poderia levar a uma crise prematura. O Senhor sabia que para cada evento em sua vida havia um tempo determinado no decreto de Deus. E sabia também que o momento apropriado para sua morte ainda não havia chegado. Tão logo chegasse esse 335
4.21,22
MATEUS
momento, ele voluntariamente entregaria sua vida (Jo 10.18; 13.1; 14.31). Então o faria, porém não antes. Por isso, agora tinha ele de sair da Judéia. Para onde foi Jesus quando chegou à Galiléia? Dirigiu-se diretamente ao que fora até ali seu lar em Nazaré? Mateus sabe que é isso o que os leitores de seu Evangelho esperariam que Jesus fizesse (2.23). Não obstante, o Senhor faz exatamente o contrário. Embora, por certo, não tenha se esquecido de Nazaré, e lhe fará uma visita em momento oportuno (13.53-58; Mc 6.16; Lc 4.16-30), Nazaré não será seu quartel-general. Ela deixou de ser o seu domicílio. Isso está indicado no v. 13. Deixando Nazaré, ele foi e se estabeleceu em Cafarnaum, junto ao mar, no território de Zebulom e Naftali. Cafarnaum pode significar vila de Naum. De qualquer modo, não é de todo certo que o lugar tenha recebido o nome por causa do profeta do Antigo Testamento que predisse a destruição de Nínive. Originalmente, a referência poderia ser a algum outro Naum. Ou, já que Naum, por outro lado, significa compassivo, o nome pode também ser interpretado como "vila de compaixão" ou "de consolação". O fato é que ninguém sabe. Todavia, o que fica estabelecido é que noutro tempo Mateus, o escritor deste Evangelho, tivera sua coletoria nesse lugar. Como já foi indicado (Mt 9.9), Mateus era "publicano", ou seja, cobrador de impostos ou inspetor tributário. Foi nas vizinhanças dessa aldeia que Jesus chamou seus primeiros discípulos (Jo 1.35-42). Foi aqui, igualmente, que Pedro e André, Tiago e João foram subseqüentemente convidados a tornar-se "pescadores de homens" (Mt 4.18-22). Cafarnaum se transformou no centro das atividades de Cristo, o seu quartel-general ao longo de seu Grande Ministério Galileu. Foi aqui que Cristo realizou muitos milagres (11.23; cf. 8.5-17; 9.1-8, 18-34; 12.9-13; 17.24-27; Lc 4.23,31-37; 7.1-10), freqüentou regularmente a sinagoga e pronunciou várias mensagens, inclusive o discurso sobre o Pão da Vida (Jo 6.24-65). Mateus chegou mesmo a chamar Cafarnaum de "cidade de" Cristo (9.1). Foram desenterradas as ruínas de uma sinagoga em Cafarnaum. Ela foi em parte restaurada. A sua estrutura data do se336
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5.1-7.28
gundo ou terceiro século d.C. Imagina-se que uma casa de adoração mais antiga, provavelmente a mesma que fora doada pelo centurião que amava a nação judaica (Mt 8.5,6; Lc 7.5,6), e onde Jesus ensinou, jaz sepultada sob os fundamentos da sinagoga já descoberta. É evidente que um destacamento de soldados ocupou Cafarnaum. A história de um oficial do rei, cujo filho Jesus curou (Jo 4.46-54), pode servir de indicação de que Cafarnaum foi também um centro de administração política. Em 1905, iniciaram-se escavações em Tell Hum na costa norte ocidental do Mar da Galiléia. Foram completadas pelos franciscanos, os quais apresentaram evidências para mostrar que Tell Hum é o local da antiga Cafarnaum, situada cerca de quatro quilômetros para o oeste do lugar onde o rio Jordão, descendo do norte, deságua no mar. Para Jesus e seus discípulos a localização era estratégica, porquanto a partir desse ponto em (o que era) no antigo território de Zebulom e Naftali havia um fácil acesso à maioria das aldeias da Galiléia e da circunvizinhança. Elas poderiam ser alcançadas por terra — porquanto Cafarnaum estava situada na costa muito povoada e na rota comercial que ligava Damasco com o Mediterrâneo — ou também por mar. Devido ao fato de que, apesar de todas as obras de misericórdia e poder que Jesus realizou aqui, e de todas as palavras de graça que saíram de seus lábios, os habitantes de Cafarnaum, em geral, permaneceram impenitentes, Jesus predisse a condenação dessa cidade, como será explicado adiante (ver comentário sobre Mt 11.23,24). Quanto à destruição da própria cidade, o que ocorreu aqui foi tão chocante, que durante séculos a própria localização de Cafarnaum foi matéria de debate.243 245
A seguinte literatura sobre Cafarnaum foi consultada: W.H.A.B., p. 86; G.E. Wright, Biblical Archaeology, Filadélfia, Londres, 1957, p. 237, com foto da sinagoga descoberta em Cafarnaum; E. G. Kraeling, Rand McNally Bible Atlas, 1966, Nova York, Chicago, São Francisco, pp. 373-379; L. Fl. Grollenberg, op. cit., consultar índice, p. 146; W. Ewing, artigo sobre Cafarnaum em I.S.B.E., Vol. I, pp. 566, 567; e J.S. Irvine. artigo sobre Cafarnaum em Encyclopaedia Britânico, edição 1969, Vol. IV, p. 826. 337
4.14-16
MATEUS
Guiado pelo Espírito, Mateus nos dá sua própria versão de Is 9.1,2, na qual considera o estabelecimento de Cristo em Cafarnaum como outro cumprimento profético; desta vez 14-16. ... para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías: Terra de Zebulom e terra de Naftali, Em direção ao mar, além do Jordão, Galiléia dos gentios, O povo que jazia em trevas Viu uma grande luz; E sobre os que jaziam na terra da sombra da morte Resplandeceu a luz.246 Em sua graça soberana Deus fez algo totalmente inesperado. Ele enviou seu Filho não principalmente à aristocracia de Jerusalém, mas especialmente às desprezadas, dolorosamente afligidas e em grande parte ignorantes massas da Galiléia, uma população mista gentílico-judaica. Foi na Galiléia e sua vizinhança que Jesus passou a maior parte de sua vida encarnada sobre a terra. Foi aí que ele cresceu; também daí foi que posteriormente viajou de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, em suas missões de misericórdia, repartindo conforto e cura, e acima de tudo procurando salvar os perdidos. Foi aí onde percorreu as praias e falou às multidões. Foi nessa região que ele reuniu em torno de si um grupo de discípulos. Foi dessa porção norte da Palestina que suas belas palavras de vida, de admoesta-4
MATEUS
5.1-7.28
ção e consolo foram espalhadas profusamente e transmitidas de pais a filhos. É de todo provável que os cinco itens mencionados no v. 15 se refiram a cinco seções diferentes da Grande Galiléia. Ver um mapa bíblico que mostre essas seções. A terra de Zebulom ficava a oeste do Mar da Galiléia, e se limitava ao norte com a terra de Naftali. A região em direção ao mar ficava a oeste destas, e se estendia do norte para o sul ao longo do Mediterrâneo. Além do Jordão indica o território que fica a oriente do Jordão. A região que, em decorrência do forte elemento pagão infiltrado em sua população, era chamada Galiléia dos gentios (Galil no Antigo Testamento), era a parte norte do que anteriormente se chamava Naftali. Uma de suas principais cidades nos tempos do Antigo Testamento era Quedes (Js 20.7; 2.1.32). O nome Galil (Is 9.1) foi mudado para Galiléia-, e, dessa forma alterado, se transformou na designação de toda a grande província governada por Herodes Antipas. É evidente que o termo "terra", no v.5, se refere primariamente ao povo que a habitava. Cf. Jr 22.29: "Ó terra, terra, terra, ouve a palavra do Senhor." Isso se aplica também às outras três designações, "em direção ao mar...". Toda a população dessa quíntupla parte norte da Palestina é descrita como "povo que se assenta em trevas" e como "os que se assentam na terra da sombra da morte". Durante séculos, os que viviam nesse extenso território estiveram expostos à agressão política e militar do norte (Síria, Assíria, etc.) e à corrosiva influência moral e religiosa de um ambiente pagão. Foram invadidos e ameaçados numa escala muito maior do que o povo de Jerusalém e circunvizinhança (ver 2Rs 15.29; Is 8.4). Sem dúvida, que para muitos dos habitantes da Galiléia as palavras registradas em 2Rs 17.33, com referência específica aos samaritanos, poderiam igualmente aplicáveis aos galileus: "De maneira que temiam o Senhor e, ao mesmo tempo, serviam aos seus próprios deuses...." Sentar-se em trevas e na terra da sombra da morte indica uma condição de perigo, medo, desesperança, desalento, sem 339
4.14-16
MATEUS
nenhum auxílio humano avista. A designação trevas, nas Escrituras, quando usada figurativamente, se refere a uma ou mais das seguintes características: ilusão (cegueira de mente e coração; cf. 2Co 4.4,6; Ef 4.18); depravação (At 26.18); desalento (Is 9.2; ver seu contexto, v.3). Ainda que essas três qualidades provavelmente estejam enquadradas aqui, é possível que a ênfase esteja na última das três (desalento, desesperança), como já foi explicado. O antônimo de trevas é luz, que, portanto, aponta para a genuína sabedoria (o verdadeiro conhecimento de Deus, SI 36.9), vida para a glória de Deus (Ef 4.15,24; 5.14) e riso (alegria, SI 97.11). E provável que os três estejam incluídos, mas aqui também a ênfase está provavelmente no último dos três. Conseqüentemente, o real significado da citação é este, que Jesus Cristo, por meio de sua presença, palavras, atos de misericórdia e poder encheria os corações de todos os seus seguidores galileus com a alegria da salvação. Não mais seriam fustigados pela tristeza e desespero. Quando Jesus entra na Galiléia e inicia seu grande ministério ali, adquirem vida as palavras de um hino popular: O mundo todo estava perdido nas trevas do pecado, Mas Jesus é a luz do mundo! Mateus conclui este parágrafo, afirmando: 17. Desde esse tempo começou Jesus a pregar e a dizer: Convertei-vos porque o reino do céu está próximo. Os seguintes pontos devem ser observados: a. Em essência, ainda que não em detalhe, a mensagem de Cristo é a mesma de João Batista, comprovado pelo fato de que em 3.2 a proclamação do arauto foi resumida em palavras idênticas. Portanto, é desnecessário repetir a explicação já apresentada; porém, ver também o comentário sobre 4.23. b. Com relação ao contexto precedente (4.13-16), o significado aqui no v.17 é que Jesus agora começa a levar este evangelho do reino a regiões que João Batista não penetrara em qualquer extensão. As boas novas estão começando a expandir-se 340
MATEUS
5.1-7.28
para território mais amplo. A exigência de que os homens se convertam ecoa por regiões onde ainda não se fizera ouvir. c. O fato de que a vinda de Cristo sem dúvida trouxe tremendas mudanças sobre a terra, de forma que milhões de pessoas têm sido transportadas do domínio das trevas para o reino da luz, comprova que a proclamação "o reino dos céus está próximo" está plenamente justificada. d. Esta mensagem não foi proclamada imediatamente ou de uma vez por todas ao mundo inteiro. Desde o princípio sua difusão seria progressiva: deveria alcançar primeiramente os judeus (10.5,6), em seguida, paulatinamente, também todas as nações (24.14; 28.19; At 13.46; Rm 1.16). Portanto, não causa estranheza que o anúncio "o reino dos céus está próximo" se ouve primeiro dos lábios de João Batista, em seguida é confirmado por Jesus, e por ordem de Cristo é repetido pelos discípulos (Mt 10.7), com a intenção de que, finalmente, alcançasse o mundo inteiro: todas as nações. Então virá o fim. 18 Enquanto caminhava junto ao Mar da Galiléia, viu ele dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, lançando uma rede ao mar, porque eram pescadores. 19 Disse-lhes ele: "Venham, sigam-me, e os farei pescadores de homens." 20 Imediatamente deixaram suas redes e o seguiram. 21 E saindo dali, viu ele outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, no barco com seu pai, Zebedeu, r e m e n d a n d o suas redes; e ele os chamou. 22 E imediatamente eles deixaram o b a r c o e seu pai, e o seguiram.
4.18-22
A Chamada de Quatro Pescadores
Cf. Marcos 1.16-20; e para Mateus 4.19b e Marcos 1.17b, cf. Lucas 5.10b 18-20. Enquanto caminhava junto ao Mar da Galiléia, viu ele dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, lançando uma rede ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes ele: "Venham, sigam-me, e vos farei pescadores de homens." Imediatamente deixaram suas redes e o seguiram. 341
4.18-20
MATEUS
Como ficou expresso na explanação do v.17 (ver especialmente alínea d, acima), o maravilhoso evangelho do reino não era apenas para os homens que viviam nos dias do ministério terreno de Cristo. Ele foi destinado a todas as épocas. Portanto, não nos surpreende o fato de que, logo no início de seu ministério, Jesus escolhesse homens que, por meio de seu testemunho tanto oral como escrito, perpetuasse sua obra e proclamasse sua mensagem. Naquele tempo não era algo inusitado um mestre ter não só um auditório geral, mas também um grupo de companheiros íntimos ou discípulos. Sócrates não possuíra discípulos? Não os possuíra também João Batista? Os fariseus? Os rabinos? Os discípulos de Cristo iriam se tornar os elos entre Jesus e sua igreja. Iriam ser o fundamento de pedras preciosas para a Jerusalém de ouro (Ap 21.19,20). Considerar, por exemplo, a importância de homens como Mateus, João e Pedro na formação dos Evangelhos, que são as nossas principais fontes de informação sobre Jesus Cristo. Assim, enquanto caminha pelas praias do Mar da Galiléia, Jesus convida alguns homens para acompanhá-lo. Houve vários chamados para o discipulado e para o apostolado estreitamente relacionado: a. O mencionado em Jo 1.35-51. Ver C.N.T., sobre esses versículos. b. O mencionado aqui (Mt 4.18-22; Mc 1.16-20). c. O mencionado em Lc 5.1-11. d. O mencionado em Mt 9.9-13; Mc 2.13-17; Lc 5.27-32. e. O mencionado em Mt 10.1-4; Mc 3.13-19; Lc 6.12-16. Os cinco convites diferiam, provavelmente da seguinte forma (explicando de a a b de acordo com a lista acima): a. Provavelmente em fevereiro de 27 d.C. esse chamado tenha se estendido a André e a um discípulo anônimo, com toda probabilidade João, convidando-os a aceitar Jesus de Nazaré como o Messias e a ser seus seguidores espirituais. André trouxe seu irmão Simão (Pedro) a Jesus. João provavelmente prestou o mesmo serviço a seu próprio irmão Tiago. Quase imedia342
MATEUS
5.1-7.28
tamente depois, Filipe e (por seu intermédio) Natanael foram acrescentados à lista. Ainda que ocasionalmente acompanhassem Jesus em suas andanças, os discípulos prosseguiram em suas ocupações seculares. b. Isso aconteceu aproximadamente um ano mais tarde; portanto, em fevereiro de 28 d.C. Os quatro discípulos referidos em Jo 1.35-41 (Pedro, André, Tiago e João) agora se tornaram companheiros mais firmes do Senhor, e estão mais conscientes do fato de que estão sendo treinados para o apostolado, ou seja, para serem "pescadores de homens". Contudo, mesmo agora Mt 4.20 e 22 dificilmente pode ser interpretado como significando que se despediram de forma definitiva de sua ocupação secular como pescadores. Algo mais será dito a respeito da alínea b., daqui a pouco. c. Isso acontece pouco depois. Compreende a história da pesca miraculosa. Lc 5.10b se assemelha a Mt 4.19b e Mc 1.17b; isto é, "pescarás homens" e "vos farei pescadores de homens" são semelhantes entre si, ainda que não idênticos, visto que Mateus e Marcos enfatizam o esforço, enquanto a passagem de Lucas enfatiza o êxito. Contudo, afora essa semelhança, os dois relatos são completamente distintos. No relato Mateus/Marcos Jesus está caminhando junto ao mar; em Lucas ele está parado. No primeiro, Simão e André, Tiago e João são todos mencionados nominalmente. Também são todos eles abordados por Jesus. No relato do médico amado, Jesus dirige suas palavras somente a Pedro. André nem mesmo é mencionado, embora pudesse estar presente. No primeiro relato, Simão e André estão lançando uma rede ao mar, isto é, estão pescando; Tiago e João estão remendando suas redes. Em Lucas, os pescadores estão lavando suas redes. No primeiro, Pedro e André deixam suas redes e seguem Jesus; semelhantemente, Tiago e João deixam o barco e seu pai e seguem o Mestre. Porém, em Lucas, os discípulos deixam tudo, durante todo o período do ministério terreno de Cristo que precede a crucificação, despedindo-se definitivamente de suas ocupações como pescadores e seguindo Jesus permanentemente. 343
4.14-16
MATEUS
d. Esta foi a vocação de Mateus (Levi), o publicano, o escritor deste Evangelho. Provavelmente ocorreu bem pouco depois de c. Comprovação: ver Lc 5.11,27. Mateus também, ao seguir Jesus, "deixou tudo". e. Este diz respeito ao grupo todo dos Doze. Para todos eles esta é a chamada formal para o discipulado e apostolado. Provavelmente houve um breve intervalo entre Mc 3.13 -19 (cf. Lc 5.27-32) e Mt lO.lss. Os homens a quem Jesus elegeu para serem seus companheiros imediatos necessitam ser treinados para o apostolado. Simão, o inconstante, deve converter-se em Pedro, a rocha. Algo semelhante era verdade com respeito a todos. Quando pela primeira vez encontramos esses homens, e em certo sentido, ainda bem mais tarde, eles revelam carência de um profundo discernimento espiritual (Mt 13.6; 15.33; 16.7-12,22,23; 17.10-13; 19.10-12,23-30; 24.3); de aguda simpatia (14.15,16,23; 19.1315); de profunda humildade (18.1-4); de um alegre espírito de perdão (18.21,22); de um perseverante espírito de oração (17.1621); e de uma inquebrantável coragem (26.56,69-75). Não obstante, requeria-se da parte deles um grau de coragem para tornar-se seguidores de Cristo, e para, por causa disso, enfrentar a oposição de muitos, inclusive dos líderes religiosos. Ver mais detalhes sobre os Doze, no comentário sobre Mt 10.1-4. A propósito disso, um fato não deve ser desconsiderado. A decisão deles de pôr-se ao lado de Jesus revela a grandeza dele: a força compelidora da influência dele sobre a mente e o coração dos homens, de modo que quando ele chama eles o seguem imediatamente. A amplitude da compreensão dele e a magnitude do poder dele também são aqui reveladas. Não é estupendo que Cristo estivesse disposto e capaz de tomar indivíduos tão comuns, como quatro pescadores, etc., iletrados e, apesar de todas as deficiências e superstições deles, transformá-los em instrumentos para a salvação de muitos, fazer deles líderes que, por meio de seu testemunho, transtornariam o mundo? 344
MATEUS
5.1-7.28
Os quatro mencionados nos vv. 18-22 são: Pedro, o impetuoso (Mt 14.28-33; 16.22,23; 26.33-35; Jo 18.10), que se tornou o líder dos Doze, e é mencionado primeiro em todas as listas de apóstolos (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.14-16; e At 1.13). André, irmão de Pedro, que está sempre levando pessoas a Jesus (Jo 1.40-42; 6.8,9; cf. Mt 14.18; Jo 12.22). Tiago, filho de Zebedeu, o primeiro dos Doze a usar a coroa de mártir (At 12.1,2). João, seu irmão, que é chamado "o discípulo a quem Jesus amava" (Jo 13.23; 19.26; etc.). Certamente que o Senhor amava a todos "os seus" de forma muito intensa (Jo 13.1,2), porém entre Jesus e João os laços de afeto e compreensão eram os mais ternos de todos.247 Vejamos agora um pouco mais de detalhes nos vv. 18-20. Pedro e André estavam lançando uma rede no mar. Mateus usa três palavras diferentes para rede. Uma é diktuon, usada nos vv. 20 e 21. É a palavra mais ampla ou geral de todas, e que pode referir-se a qualquer espécie de rede, mesmo uma rede para caçar ou uma rede para apanhar pássaros. Entretanto, no Novo Testamento se limita a redes de pescar de toda e qualquer descrição. A sagene é a rede de arrastão ou rede varredoura. E usada muito apropriadamente em Mt 13.47; ver o comentário sobre esse texto. A terceira é aquela usada em 4.18 (e Mc 1.16), a amfiblestron, ou seja, a tarrafa, ou rede de lanço. Quando é lançada com perícia por sobre os ombros, forma um círculo ao cair nágua, e por causa das peças de chumbo que tem nas bordas se afunda rapidamente, apanhando os peixes que nadam embaixo.248 Esse era o tipo de rede com que Pedro e André pescavam quando Jesus, caminhando junto ao mar, lhes disse: "Vinde, segui-me, e eu vos farei pescadores de homens." O Senhor exerce 247
Pode-se aprender muito de A.B. Bruce, The Training of the Twelve, Garden City, Nova York, 1928; e de C.E. Macartney, Of Them He Chose Twelve, Fidadélfia, 1927. 248 Ver R. C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, 1948, par. lxiv. 345
4.21,22
MATEUS
sua soberania sobre esses homens, nem mesmo permitindo-lhes concluir seu trabalho. Devem estar prontos para segui-lo imediatamente ao ouvirem o chamado dele. Cf. 8.21,22; 10.37. Pedro e André eram originários de Betsaida (Jo 1.45), porém Pedro se transferira recentemente para Cafarnaum (Mt 4.13; 8.5,14,15; Mc 1.21,29,30; Lc 4.31,33,38). Até essas alturas, esses homens tinham passado a conhecer Jesus, pois um ano transcorrera desde o inesquecível evento registrado em Jo 1.35-42. Por isso, ao lhes dizer agora (Mt 4.19): "Vinde, segui-me, e eu vos farei pescadores de homens", eles imediatamente deixam suas redes e o seguem, animados pela promessa de seu Senhor de treiná-los para uma tarefa muito superior mesmo àquela tão honrosa de que ora se achavam entregues. Em vez de pescar peixes para a mesa, devem agora recrutar homens para o reino. Não deve escapar à nossa observação que, com a promessa "vos farei pescadores de homens", Jesus põe o selo de sua aprovação sobre as palavras do escritor inspirado do livro de Provérbios: "O que ganha almas é sábio" (Pv 11.30); confirma Dn 12.3: "Os que a muitos conduzirem à justiça [resplandecerão] como as estrelas, sempre e eternamente"; acrescenta sua própria autoridade à surpreendente declaração de Paulo: "Fiz de tudo para com todos, a fim de que, de um modo ou de outro, eu possa salvar alguns" (ICo 9.22); e antecipa seu próprio convite glorioso: "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso" (Mt 11.28). Dois outros discípulos de Jesus receberam o mesmo mandamento e promessa: 21, 22. Saindo dali, viu ele outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, no barco com seu pai, Zebedeu, remendando suas redes; e ele os chamou. E imediatamente eles deixaram o barco e seu pai, e o seguiram. Esses dois não estão pescando como Pedro e André; estão, sim, remendando suas redes. Recebem o mesmo chamado. Eles também devem estar prontos, dessa vez, para entrar na nova relação (estágio b, p. 343), isto é, uma transição de a., da comunhão temporária com Cristo (o estágio de Jo 1.39), a c., 346
MATEUS
5.1-7.28
para o discipulado permanente eom o abandono de sua vocação secular (o estágio de Lc 5.11). Eles devem deixar imediatamente o barco e seu pai para seguir Jesus. Não fica excluída a possibilidade de pescarem um pouco de vez em quando enquanto Jesus mantém seu quartel-general em Cafarnaum, como Lc 5.10 claramente o demonstra. Todavia, está chegando o tempo quando serem pescadores de homens será sua ocupação permanente (Lc 5.11). Desde agora devem começar a preparar-se seriamente para o apostolado. Tiago e João obedecem imediatamente. Deixam o barco e seu pai. E o negócio de Zebedeu? Permanece intacto. Zebedeu não é pobre. Possui servos que continuarão a ajudá-lo em seu negócio, de forma que sempre que seus filhos não puderem estar com ele devido à sua associação cada vez mais estreita com Cristo, ele poderá depender desses servos para encontrar a forma de preencher a vaga (Mc 1.20). Tem-se feito provisão para cada necessidade. 23 E ele percorreu toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas e pregando o evangelho do reino, e curando toda doença e toda enfermidade entre o povo. 24 Então as notícias a seu respeito se espalharam por toda a Síria; e lhe traziam todos os afligidos, molestados por toda espécie de doenças e tormentos, endemoninhados, epilépticos e paralíticos; e ele os curava. 25 Grandes multidões o seguiam, da Galiléia, Decápolis, Jerusalém e Judéia, e dalém do Jordão.
4.23-25
Ensino, Pregação e Curas de Cristo Cf. Marcos 1.39; Lucas 4.44
23. O tipo de obra que Jesus realizou durante seu Grande Ministério Galileu é agora brevemente resumido. Não ficou limitado a Cafarnaum, pois lemos: E ele percorreu toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas e pregando o evangelho do reino, e curando toda doença e toda enfermidade entre o povo. A atividade de Jesus diferia da de João, e isso de diversas maneiras: a. João pregava ao ar livre; Jesus também pregava nas sinagogas; b. João pregava; Jesus também ensina347
4.21,22
MATEUS
va; c. em sua pregação João enfatizava a necessidade de arrependimento em vista do juízo iminente; Jesus, ainda que não negligenciando isso, pôs maior ênfase na mensagem positiva: proclamava o evangelho do reino (ver C.N.T. sobre Fp 1.27 e 28); d. "João veio não comendo nem bebendo; o Filho do homem veio comendo e bebendo" (11.18 e 19); e, finalmente, e. João pregava e batizava; Jesus pregava e realizava milagres de cura. Há diferença entre pregação e ensino, embora seja verdade que boa pregação é também ensino. Não obstante, a ênfase não é a mesma. O termo usado no original — pregar — significa introduzir, anunciar, proclamar (ver C.N.T. sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, p. 310). Por outro lado, ensinar indica a tarefa de comunicar uma informação mais detalhada a respeito da proclamação que fora feita. Jesus fez pleno uso de sua oportunidade de pregar e ensinar nas sinagogas (13.53-58; Mc 6.1-6; Lc 4.16-31). Na frase "o evangelho do reino", o que significa "reino"? Não há necessidade de se repetir o que já foi dito a respeito (ver p. 130, e também comentário sobre 3.2 e 4.17). Em sua conotação mais ampla, as expressões "o reino dos céus", "o reino de Deus", ou simplesmente "o reino" (quando o contexto deixa claro que está em pauta "o reino dos céus ou de Deus") indicam a realeza de Deus, seu governo ou soberania, reconhecido nos corações e que opera na vida de seu povo, efetuando neles sua completa salvação, sua constituição como uma igreja, e finalmente como um universo redimido. Notar especialmente os quatro conceitos: a. A realeza, o governo ou a soberania reconhecida de Deus. Esse poderia ser o significado em Lc 17.21: "O reino de Deus está dentro de vós", e é o significado em Mt 6.10: "Venha o teu reino, seja feita a tua vontade...." b. A completa salvação, isto é, todas as bênçãos espirituais e materiais — ou seja, bênçãos para a alma e para o corpo — que resultam quando Deus é Rei em nosso coração, reconhecido e obedecido como tal. Em consonância com o contexto, esse 348
MATEUS
5.1-7.28
é o significado em Mc 10.25,26: "É mais fácil... do que entrar um rico no reino de Deus. E eles... diziam: 'Quem, pois, pode ser salvo?"'. c. A igreja: a comunidade de homens em cujos corações Deus é reconhecido como Rei. "Reino de Deus" e "igreja", quando usados neste sentido, são quase equivalentes entre si. Este é o significado em Mt 16.18,19: "... e sobre esta rocha edificarei minha igreja... Eu te darei as chaves do reino dos céus." d. O universo redimido: o novo céu e a nova terra com toda a sua glória; algo ainda futuro: a realização final do poder salvífico de Deus. Assim em Mt 25.34: "... herdai o reino preparado para vós...". Esses quatro significados não são separados e sem relação entre si. Todos eles procedem da idéia central do reino de Deus, da supremacia de Deus na esfera do poder salvífico. O reino ou reinado (o termo grego possui ambos os significados) dos céus é semelhante a uma semente de mostarda que se desenvolve gradualmente; por isso, é ao mesmo tempo presente e futuro (Mc 4.26-29). É presente — estudar Mt 5.3; 12.28; 19.14; Mc 10.15; 12.34; Lc 7.28; 17.20,21; Jo 3.3-5; 18.36. É futuro — estudar Mt 7.21,22; 25.34; 26.29. Jesus falou da obra da salvação como sendo o reino ou reinado dos céus para indicar o caráter, a origem e o propósito sobrenaturais de nossa salvação. Nossa salvação tem início no céu e deve redundar em glória para o Pai que está no céu. Por isso, ao usar esse termo Cristo defendia a verdade, tão preciosa para todos os crentes, de que tudo está subordinado à glória de Deus. Jesus não só pregou e ensinou; ele também curou. Nenhuma doença foi demasiadamente difícil para ele curar, nenhuma enfermidade foi tão complicada que ele não pudesse mitigar; daí, "toda (espécie de) doença e toda (espécie de) enfermidade". Os milagres de cura que Cristo realizou tinham um significado tríplice: a. confirmavam sua mensagem (Jo 14.11); b. revelavam que de fato ele era o Messias das profecias (Is 35.5; 349
4.21,22
MATEUS
53.4,5; 61.1; Mt 11.2-6); e c. comprovavam que, em certo sentido, o reino já havia chegado, porque, como já se indicou, o conceito de reino inclui bênçãos tanto para o corpo como para a alma. Os Evangelhos, por toda parte, estabelecem uma relação muito estreita entre os conceitos de reino e milagres (Mt 9.35; 10.7,8; 12.28; Lc 9.1,2; e cf. também At 8.6,7,12). O caráter universal das obras de cura é também exibido pelo fato de que Jesus percorria toda a Galiléia, a Galiléia com sua mistura de judeus e gentios, e curava "toda doença e toda enfermidade entre o povo", sem, no entanto, nunca ter perguntado a um doente: "Tu és judeu ou gentio?" Ele curava a todos, sem distinção de raça ou nacionalidade. Verdadeiramente ele era — e é! — "o Salvador do mundo" (Jo 4.42; lJo 4.14). O resultado de toda essa atividade curadora na Galiléia é indicado no v. 24. Então as notícias a seu respeito se espalharam por toda a Síria. As notícias se espalharam rapidamente, tanto que chegaram à Síria. E evidente que o termo "Síria", nesse contexto, não pode significar toda a província romana, que até 70 d.C. incluía a Palestina, mas, antes, significa a região ao norte da Galiléia que abrangia Antioquia e Damasco. Muitos judeus haviam se estabelecido nessas cidades ao norte; alguns voluntariamente, outros por remoção obrigatórias de uma região para outra. Laços econômicos, sociais e religiosos ligavam os corações desses judeus aos de seus parentes e amigos na Galiléia e na Judéia. Além disso, havia boas estradas entre as diversas cidades. Já vimos que Cafarnaum, na Galiléia, estava situada na estrada que descia de Damasco. Antioquia e Damasco estavam igualmente conectadas entre si. Além disso, havia a estrada costeira que descia de Antioquia e passava por Tiro, Galiléia e Gaza em direção ao Egito.249 Portanto, não é de todo surpreendente que de longe e de perto também essas regiões do norte trouxessem a Jesus os seus 2W
Todas essas estradas, e muitas outras, são descritas de forma vívida e aparecem em mapas em W. R. Von Hagen, The Roads That Led to Rome, Cleveland e Nova York, 1967, pp. 18,19; ver especialmente o mapa das pp. 18,19. 350
MATEUS
5.1-7.28
aflitos, para que os curasse: e lhe traziam todos os afligidos ., molestados por toda espécie de doenças e tormentos., endemoninhados, epilépticos e paralíticos; e ele os curava. "Doenças e tormentos" é o termo geral, que mostra q u e Jesus podia curar toda doença, não importando qual fosse. As dores fugiam diante de um toque seu, ou mesmo simplesmente ao som de sua palavra de poder. Particular menção é feita a t r ê s grupos: endemoninhados, epilépticos e paralíticos. Para o t e m a da possessão demoníaca, ver o comentário sobre 9.32-34. Paraa o presente momento só é necessário indicar que endemoninhados; encabeça a lista, e bem apropriadamente, porquanto a possessão demoníaca era considerada a causa de várias outras aflições (9.33; 12.22; 17.15,18; Mc 9.25; Lc 13.10-12,16). A palavra que, em harmonia com muitos tradutores e c o mentaristas, traduzi por epilépticos, etimologicamente é conectada com a lua. Conseqüentemente, alguns preferem traduzir "pessoas afetadas pela lua" ou "lunáticos". Contudo, 17.15, onde é usada a mesma palavra e essa enfermidade é descrita graficamente parece bastante evidente que a referência é aos que s o friam de acessos; daí, epilépticos. Ainda que a derivação da p a lavra seja importante, não deve prevalecer sobre a descriçãodetalhada da enfermidade. A questão em pauta é que esses também foram curados imediatamente pelo Mestre, curados ds uma. vez por todas. E esse foi também o caso dos paralíticos. Exemplos surpreedentes de tais curas estão registrados em 8.5-13 (cf. Lc 7.1-10) e em 9.1-8 (cf. Mc 2.1-12 e Lc 5.17-26). Portanto, fica evidente que o Filho de Deus estava partindo para a guerra. Ele estava destruindo as obras do diabo, ensinando e pregando, expulsando demônios e curando as doenças pelo poder do Espírito, assim curando tanto a alma como o corpo, e estabelecendo cada vez mais o reino de Deus sobre a terra (Mt 12.28). Resultado final: 25. Grandes multidões o seguiam, da Galiléia, Decápolis, Jerusalém e Judéia, e dalém do Jordão. Naturalmente, da Galiléia. Todavia, também de Decápolis, ou 351
Cap. 4
MATEUS
seja, da região das dez cidades, uma federação que, em sua maior parte, se estendia para o nordeste de Samaria, e até certo ponto ainda para o nordeste da Galiléia, e que consistia das seguintes cidades: Damasco, Kanata, Dion, Hippos, Gadara, Abila, Citópolis, Pella, Geresa e Filadélfia. Jerusalém também, e na realidade toda a Judéia, ouviu o que estava acontecendo no norte. Assim, também do sul pessoas vinham avolumar as multidões que seguiam a Jesus. Ouviram suas palavras e viram — e em muitos casos foram beneficiados por — seus milagres. Até mesmo Peréia, a região oriental do Jordão e, em sua maior parte, o sul de Decápolis enviou seus representantes. As multidões devem ter sido imensas! Sumário do Capítulo 4.12-25 4.12-17. Este breve parágrafo descreve o início do Grande Ministério Galileu. Talvez um ano depois dos acontecimentos registrados em 3.13—4.11 (batismo e tentação) Jesus "se retirou para a Galiléia". Ele se afastou de Nazaré, que fora seu lar até à idade de 30 anos, e se estabeleceu em Cafarnaum, situada na costa a noroeste do Mar da Galiléia. Ele fez isso em cumprimento de Is 9.1,2. Além disso, João Batista fora encarcerado, e a atenção da população da Judéia, no meio da qual Jesus estivera trabalhando por algum tempo, agora se concentrou plenamente em seu grande Benfeitor, aquele que lhe fora apresentado pelo próprio João Batista. Jesus, por sua vez, sabia que se permanecesse mais tempo no sul, com os fariseus e saduceus ciumentos, provocaria uma crise prematura. Por isso retirou-se para a Galiléia. Ele não deveria morrer antes do tempo determinado. Na Galiléia ele fez de Cafarnaum o seu quartel-general, e dali ele atravessou todo o território nortista, ensinando, pregando e curando, de tal forma que a luz da salvação raiou sobre os que anteriormente habitavam nas trevas da desesperança, e o reino dos céus começou a prosperar sobre a terra. 352
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5.1-7.28
4.18-22. Enquanto caminhava junto ao Mar da Galiléia, Jesus chamou a si Pedro e André, que estavam pescando quando ouviram Jesus dizer-lhes: "Vinde, segui-me, e eu vos farei pescadores de homens." Eles imediatamente obedeceram. O mesmo fizeram Tiago e João, que um pouco mais tarde receberam um chamado semelhante, enquanto remendavam as redes. Esses quatro já conheciam o Mestre talvez havia um ano, e tinham passado algum tempo em sua companhia. Todavia, agora começam a preparar-se seriamente para o apostolado, ou seja, para serem enviados a proclamar as boas novas. 4.23-25. A fama do ensino, da pregação e das obras de cura de Cristo se espalhou até muito longe. A Síria, para o norte, a Decápolis e a Peréia, para o Oriente, e ainda a Judéia, para o sul, estavam representadas nas grandes multidões que seguiam Jesus em suas jornadas pela Galiléia. Ele curou todos os atormentados, incluindo até mesmo os endemoninhados, os epiléticos e os paralíticos. Curava-os imediata e completamente. Não se fazia necessário um segundo tratamento. Restaurava-os porque lhes era solidário e os amava. Entre os muitos retratos artísticos do poder curador de Cristo, merecem menção especial os seguintes: A pintura de A. Deitrich, intitulada "Cristo, tem misericórdia de nós" (impressão e descrição em Cynthia P. Macrs, Christ and the Fine Arls, Nova York, 1959, pp. 248-250); a pintura de J. M. F. H. Hofmann, "Cristo curando os enfermos" (cópia e interpretação em Albert Bailey, The Gospel in Art, Boston, 1946, pp. 188-192); e, por último, porém não menos importante, centrando-se sobre o mesmo tema, Rembrandt van Rijn, em sua inesquecivelmente bela gravura denominada "a gravura dos cem florins" (reprodução e notas marginais explicativas em Robert Wallace e os editores dos Livros Time-Life, The World of Rembrandt, Nova York, 1968, pp. 154-157).
353
E S B O Ç O DOS C A P Í T U L O S 5 — 7
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer O Sermão do Monte O Primeiro Grande Discurso
CAPÍTULOS 5 — 7 MATEUS
5
5.1-7.29
1 Ao ver as multidões, ele subiu ao monte; e, tendo-se senta-
do, seus discípulos se aproximaram dele. 2 Então abriu sua boca e começou a ensiná-los, dizendo: 3 "Bem-aventurados (são) os pobres em espírito porque deles é o reino dos céus. 4 "Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. 5 "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. 6 "Bem-aventurados os famintos e os sedentos por justiça, porque eles serão plenamente saciados. 7 "Bem-aventurados os misericordiosos, porque receberão misericórdia. 8 "Bem-aventurados os de coração puro, porque eles verão a Deus. 9 "Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. 11 "Bem-aventurados são vocês quando alguém, por minha causa, os insultar e os perseguir e disser falsamente toda espécie de males contra vocês. 12 Regozijem-se, sim, encham-se de alegria incontida, porque a sua recompensa é grande nos céus, pois da mesma forma eles perseguiram os profetas que viveram antes do tempo de vocês. 13 "Vocês são o sal da terra; porém, se o sal tornar-se insípido, o que fazer para que salgue novamente? Então já não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisoteado pelos homens. 14 "Vocês são a luz do mundo. Uma cidade situada sobre uma colina não pode ficar escondida. 15 Tampouco os homens acendem uma lâmpada e a colocam debaixo do cesto de medida, e, sim, no candelabro, e assim ilumina a todos os que se acham na casa. 16 Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem a seu Pai que está no céu. 355
5.1-7.28
MATEUS
17 N ã o pensem que vim para pôr de lado a lei ou os profetas. N ã o vim para repudiar, e, sim, para cumprir. 18 Porque solenemente lhes declaro: Até que o céu e a t e r r a desapareçam, não desaparecerá da lei, nem m e s m o a menor das letras, nem sequer uma vírgula sem que tudo (o que ela exige) se cumpra. 19 Portanto, quem quer que anule um dos menores destes mandamentos, e assim os ensine aos homens, será c h a m a d o o menor no reino dos céus; porém, quem quer que os pratique e os ensine, será chamado grande no reino dos céus. 20 Porque eu digo a v o c ê s que, a não ser que a sua justiça exceda à dos escribas e fariseus, certamente vocês j a m a i s entrarão no reino dos céus. 21 "Vocês ouviram o que foi dito pelos homens de outrora: ' N ã o matarás, e qualquer que mata merece ser punido (com a morte).' 22 Eu, porém, lhes digo que qualquer um que se ire contra seu irmão merece ser punido (com a morte). E quem quer que diga a seu irmão: 'Estúpido!' m e r e c e ser condenado (à morte) pela suprema corte. E quem quer que diga: 'Idiota!' merece ser lançado no inferno de fogo. 2 5 0 23 "Portanto, se quando você levar sua oferta ao altar, você se lembrar que seu irmão tem uma queixa 2 5 1 contra você, 24 deixe a sua oferta ali diante do altar, e vá primeiro reconciliar-se com seu irmão; então, volta e apresente a sua oferta. 25 Faça as pazes rapidamente com o seu adversário, enquanto você ainda tem oportunidade de tratar com ele, 252 a fim de que o teu adversário não lhe entregue ao juiz, e o j u i z ao carcereiro, e você seja lançado na prisão. 26 Solenemente lhe declaro, você j a m a i s sairá desse lugar até que tenha pago o último centavo. 27 "Vocês ouviram o que foi dito: ' N ã o cometa adultério. 28 Eu, porém, lhes digo que todo aquele que olha para uma mulher com o desejo de possuí-la, em seu coração já cometeu adultério com ela. 29 Portanto, se o seu olho direito o induz a pecar, 2 5 ' arranque-o e lance-o longe de si. E melhor que você perca um de seus membros do que todo o seu corpo seja lançado no inferno. 30 E se a sua mão direita o induz a pecar, corte-a e lance-a longe de si. E melhor perder um de seus membros do que todo o seu corpo seja lançado no inferno. 31 " T a m b é m foi dito: 'Todo aquele que se divorcia de sua esposa, dêlhe um certificado de divórcio.' 32 Eu, porém, lhes digo que todo aquele 2511
2,1
252
233
Na tradução e explicação dos vv.21 e 22 fui ajudado pelo artigo de J. Jeremias sobre ,akf, Th. D.N.T., Vol. VI, pp.973-976. Entretanto, uma comparação revelará também algumas diferenças. Literalmente, "tem algo contra ti". Contudo, esta tradução pode facilmente conduzir a uma interpretação errônea. Ver a explicação a respeito. Portanto, prefiro a tradução favorecida também por N.E.B. Literalmente, "enquanto estás no caminho com ele", ou seja, antes que seja muito tarde. Ou: te serve de armadilha, e igualmente no v.30. 356
MATEUS
5.1-7.28
que se divorcia de sua esposa, exceto com base em (sua) infidelidade, 2 5 4 a expõe ao adultério; e quem quer que se case com a divorciada se envolve em adultério. 33 "Ademais, vocês ouviram o que foi dito pelos h o m e n s de outrora: ' N ã o quebre o seu j u r a m e n t o , mas guarde os votos que fez ao Senhor.' 34 Eu, porém, lhes digo: N ã o j u r e m de f o r m a alguma, nem pelo céu, p o r q u e é o trono de Deus; 35 nem pela terra, porque é o seu estrado; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. 36 N e m j u r e m por sua cabeça, porque não podem fazer um só cabelo preto ou branco. 37 Se a sua palavra for ' s i m ' , que seja simplesmente ' s i m ' ; se for ' n ã o ' , que seja simplesmente ' n ã o ' . Qualquer coisa além disso vem do maligno. 38 "Vocês ouviram o que foi dito: ' U m olho por um olho e um dente por um dente.' 39 Eu, porém, lhes digo: N ã o resistam ao perverso; antes, àquele que o esbofeteia na face direita, ofereça-lhe também a outra. 40 E se alguém quiser processá-lo para tomar-lhe a camisa, deixe-lhe t a m b é m a sua blusa. 41 E quem o forçar a andar com ele uma milha, vá com ele duas. 42 Ao que lhe pede (algo), de-lhe; e ao que quer tomar-lhe empréstimo, não lho negues. 43 "Vocês ouviram o que foi dito: ' A m e ao seu próximo e odeie ao seu inimigo.' 44 Eu, porém, lhes digo, amem seus inimigos e orem pelos que os perseguem, 45 para que possam ser filhos de seu Pai que está nos céus, p o r q u e ele faz nascer o seu sol sobre os m a u s e os bons, e envia chuva sobre j u s t o s e injustos. 46 Pois se vocês a m a m aos que os a m a m , qual é a sua r e c o m p e n s a ? Os publicanos não fazem o mesmo? 47 E se, c o m saudações cordiais, vocês se aproximam somente de seus irmãos, o que estão fazendo de excepcional? Os gentios não fazem o mesmo? 48 Portanto, vocês devem ser perfeitos c o m o perfeito é o seu Pai celestial.
6
1 "Cuidai para que não pratiquem a sua justiça diante do povo,
com o fim de atrair sua atenção; caso contrário vocês não terão qualquer recompensa diante de seu Pai que está nos céus. 2 Então, quando vocês derem aos pobres, n ã o o anunciem publicamente c o m toques de trombeta, 2 5 5 c o m o os hipócritas têm o hábito de fazer nas sinagogas e nos becos a fim de grangear a admiração do povo. Solenemente lhes declaro que eles já receberam a sua plena recompensa. 3 Porém, q u a n d o você fizer caridade, não deixe sua mão esquerda saber o que a sua direita está fazendo, 4 para que os seus atos de caridade possam ser (realizados) em secreto; e o seu Pai que vê em secreto recompensará a você. 5 "Igualmente, quando vocês orarem, não sejam c o m o os hipócritas, 254 Ou: fornicação. porque se deleitam em dizer suas orações em pé nas sinagogas e nas esqui255 Ou: Não toques uma trombeta diante de ti. 357
5.1-7.28
MATEUS
nas das ruas, com o fim de serem vistos pelo povo. Eu solenemente lhes declaro que v o c ê s j á receberam sua plena recompensa. 6 Você, porém, quando orar, entre em seu quarto mais privativo, e uma vez fechada a porta, ore a seu Pai que está em secreto; e seu Pai que vê em secreto o recompensará. 7 Além do mais, orando, não balbuciem c o m o os pagãos, 2 5 6 p o r q u e acreditam que serão ouvidos em virtude de sua verbosidade. 8 N ã o sejam, pois, como eles, porque seu Pai sabe o de que vocês têm necessidade (mesmo) antes que peçam a ele. 9 Assim, pois, é c o m o vocês devem orar: 'Pai nosso que estás no céu. Santificado seja o teu nome. 10 Venha o teu reino, Seja feita a tua vontade Assim na terra c o m o no céu. 11 O pão nosso diário dá-nos hoje, 2 5 7 12 E perdoa as nossas dívidas C o m o também p e r d o a m o s os nossos devedores. 13 E não nos conduzas à provação, Mas livra-nos do mal. 258 [Porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. A m é m . ] ' 14 "Porque, se vocês perdoarem aos homens as suas transgressões, seu Pai celestial t a m b é m os perdoará. 15 Porém, se não perdoarem aos homens, t a m p o u c o seu Pai celestial perdoará as transgressões de vocês. 16 "E quando vocês j e j u a r e m , não sejam corno os hipócritas, com aparência de mau humor, porque eles fazem que seus rostos pareçam disformes para que as (outras) pessoas possam ver que estão j e j u a n d o . Eu solenemente lhes declaro que já receberam sua plena recompensa. 17 Você, porém, quando jejuar, unja a sua cabeça e lave o seu rosto, 18 para que não sejam os homens que vejam que você está j e j u a n d o , mas (somente) seu Pai que está em secreto veja que você está j e j u a n d o . E seu Pai que vê em secreto te recompensará. 19 " N ã o ajuntem para si mesmos 2 5 9 tesouros sobre a terra, onde a t r a ç a e a f e r r u g e m c o n s o m e m , e o n d e os ladrões e s c a v a m e r o u b a m . 20 Porém, ajuntem para vocês m e s m o s tesouros no céu, onde nem a traça n e m a ferrugem c o n s o m e m , e onde os ladrões não escavam nem roubam. 21 Porque onde estiver o seu tesouro, aí estará t a m b é m o seu coração. 22 "O olho é a lâmpada do corpo. Portanto, se o seu olho é sadio, todo o seu corpo será iluminado. 23 Porém, se o seu olho está em más condições, 256 257 258 259
Ou: Ou: Ou: Ou:
Como os gentios fazem. Dá-nos hoje o nosso pão para hoje; ou: ... o nosso pão necessário. Do mal. Parai de ajuntar para vós mesmos. 358
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todo o seu corpo será escuro. Então, se a (própria) luz em você são trevas, quão grandes (são) essas trevas! 24 "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se devotará a um e desprezará o outro. Vocês não p o d e m servir a Deus e a M a m m o n . 25 "Portanto, lhes digo: N ã o estejam ansiosos 2 6 0 por sua vida, sobre o que vão comer ou o que vão beber, nem por seu corpo, sobre o que vão vestir. N ã o é a vida mais importante que comida e o corpo mais importante que roupas? 26 Olhem para as aves do ar. Elas não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros, todavia seu Pai celestial as alimenta. Vocês são de mais valor do que elas, não é verdade? 27 E quem dentre vocês é capaz, com esforço ansioso, de acrescentar (ainda que seja) um cúbito à extensão de sua vida? 28 Além disso, por que viver ansioso pela roupa? C o n s i d e r e m os lírios do campo, c o m o crescem; não labutam nem tecem. 29 Eu, porém, lhes digo que nem m e s m o Salomão em todo o seu esplendor se adornou 2 6 1 como um destes. 30 Ora, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje está viva e amanhã é lançada na fornalha, com certeza não vestirá a vocês mesmos, oh, homens de p e q u e n a fé!? 31 Portanto, não fiquem ansiosos, dizendo: 'O que iremos c o m e r ? ' ou 'O que iremos b e b e r ? ' ou 'O que iremos vestir?' 32 Porque por todas estas coisas anseiam os gentios; além disso, o Pai celestial de vocês sabe que vocês têm necessidade de tudo isso. 33 Entretanto, busquem antes o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas serão concedidas por vocês c o m o uma dádiva especial. 34 Portanto, não f i q u e m aflitos pelo amanhã, porque o amanhã, ficará aflito por si mesmo. C a d a dia, por si mesmo, tem bastante problema.
7
1 " N ã o critiquem dos outros, para que vocês m e s m o s não
sejam criticados. 2 Porque, de acordo com o j u í z o com que criticarem (os outros), vocês mesmos serão julgados; e de a c o r d o com a m e d i d a com que vocês medirem (os outros), vocês serão medidos. 3 E por que você nota a p e q u e n a m a n c h a no olho de teu irmão, e nem (mesm o ) enxerga a viga que está no seu p r ó p r i o olho? 4 Ou c o m o p o d e dizer ao seu irmão: ' D e i x e - m e tirar a pequena m a n c h a de seu olho', e n q u a n t o você tem uma viga no seu próprio olho? 5 Hipócrita! antes de tudo, tire a viga do seu próprio olho, e em seguida você verá suficientemente claro para tirar a pequena m a n c h a do olho de seu irmão. 6 N ã o dêem aos cães o q u e é santo, e nem lancem suas pérolas diante dos porcos, para que não as pisoteiem, e se voltem e façam vocês em pedaços. 7 "Peçam, e dar-se-lhes-á; busquem, e encontrarão; batam, e abrir-se2611 Ou: Deixai de estar ansiosos; ou: Deixai a preocupação. lhes-á. 8 Porque todo aquele que pede, recebe; e aquele que busca, encon261 Ou: Não se vestiu. 359
5.1-7.28
MATEUS
tra; e ao que bate, abrir-se-lhe-á. 9 Ou que homem há entre vocês que, quando seu filho lhe pede pão, lhe dará uma pedra? 10 Ou, também, (se o filho) pedir peixe, lhe dará uma serpente? 11 Portanto, se vocês, sendo maus, sabem dar boas dádivas aos seus filhos, quanto mais seu Pai celestial dará boas coisas àqueles que lhas pedem! 12 Portanto, tudo quanto vocês querem que as (outras) pessoas façam por vós, fazei igualmente por elas, porque esta é a lei e os profetas. 13 "Entrem pela porta estreita; porque larga (é) a porta e espaçoso o caminho que c o n d u z à destruição, e muitos são aqueles que entram por ele. 14 Porque estreita (é) a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são aqueles que o encontram. 15 "Acautelem-se dos falsos profetas, que vêm a vocês com vestimentas de ovelhas, porém interiormente são lobos devoradores. 16 Pelos seus frutos vocês os reconhecerão. Colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? 17 Assim, toda árvore sadia gera bom fruto, porém a árvore enferma gera fruto imprestável. 18 U m a árvore sadia não pode gerar fruto imprestável, nem pode uma árvore e n f e r m a gerar bom fruto. 19 Toda árvore que não p r o d u z b o m fruto é cortada e lançada ao fogo. 20 Portanto, por seus frutos vocês os reconhecerão. 21 " N e m todo o que me diz 'Senhor, S e n h o r ' entrará no reino do céu, e, sim, aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que (está) no céu. 22 Muitos me dirão naquele dia: 'Senhor, Senhor, em teu nome não profetizamos, e em teu nome não expulsamos demônios, e em teu nome não realizamos muitas obras portentosas?' 23 Então lhes direi francamente: ' J a m a i s os conheci; afastem-se de mim, vocês, desprezadores da lei!' 24 " T o d o aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as p õ e em prática será c o m o um homem ajuizado, que construiu sua casa sobre a rocha. 25 Derramou-se a chuva, e vieram as inundações, enquanto sopravam os ventos e abateram contra aquela casa, porém não caiu, porque fora fundada sobre a rocha. 26 E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as põe em prática será c o m o um h o m e m desajuizado, que construiu sua casa na areia. 27 Derramou-se a chuva e vieram as inundações, enquanto sopravam os ventos e se chocaram contra aquela casa; e ela caiu, e o estrondo produzido foi tremendo." 2 6 2 28 Ora, quando terminou estas palavras, as multidões estavam aturdidas com o seu ensinamento, 29 porque as ensinava c o m o quem tem autoridade, porém não c o m o os escribas deles.
262
Ou: E sua queda foi grande. 360
MATEUS 5.1 —7.29
5.1-7.28
O Sermão do Monte
Cf. Lucas 6.17-49 De acordo com o que foi mencionado anteriormente (ver pp. 42-45), é característico de Mateus introduzir um tema e em seguida expandi-lo. O rio se expande, formando um lago. Assim também aqui. A pregação de Cristo e sua obra de curas foram introduzidas (respectivamente 4.12-17,23a e 4.23b,24). Assim, agora nos é apresentada uma amostra desse ensinamento em 5.1—7.29; da obra de curas, em 8.1—9.34. Primeiro, pois, o Sermão do Monte. Provavelmente ele foi pronunciado na primavera do ano 28, após Jesus ter passado uma noite em oração (Lc 6.12). A oração foi seguida pela escolha dos doze discípulos (Mc 3.13-19; Lc 6.13-16; ver sobre Mt 10.1-4). Esta, por sua vez, foi seguida pela cura de muitos enfermos (Lc 6.17-19). O sermão veio em seguida (Lc 6.19,20). Introdução ao Sermão Como o título popular indica, Jesus se achava "no monte" quando pregou este sermão: 5.1,2. Ao ver as multidões, ele subiu ao monte; e, tendo-se sentado, seus discípulos se aproximaram dele. E então abriu sua boca e começou a ensinálos, dizendo... Na base de Mt 8.5 e Lc 7.1, sugere-se que o monte referido estava nas vizinhanças de Cafarnaum. O artigo definido ("o" monte, não simplesmente "um" monte) provavelmente indica que a referência é a um monte bem conhecido. Era o Chifres de Hatin, assim chamado em virtude de seus picos se assemelharem a dois chifres vistos de longe? Essa elevação está localizada cerca de seis quilômetros e meio a oeste do Mar da Galiléia e cerca de treze quilômetros a sudeste de Cafarnaum. Ou foi ainda mais perto de Cafarnaum, a sudeste da cidade? Se for isso, a referência poderia ser à serena e verdejante colina que fica ao ocidente de Tabgha.263 2a
Ver Howard La Fay, "Where Jesus Walked", National Geographic, Vol. 132, No. 6 (Dezembro de 1967), p. 763. 361
4.5,6
MATEUS
Em relação à localização do sermão há ainda outro problema. De acordo com Lucas, o sermão foi pronunciado "num lugar plano" (6.17), mas, de acordo com Mateus, "sobre um monte". A aparente contradição desaparece, seja admitindo que Jesus pronunciou seu discurso num planalto ou que, tendo escolhido seus discípulos no cume do monte, desceu com eles para a planície onde curou os enfermos e, em seguida, com os discípulos, voltou para o cume do monte (ver Mc 3.13; Lc 6.17; e Mt 5.1, nessa ordem). Se o segundo ponto de vista for adotado, tudo indica que na planície ele parou para curar os enfermos; no alto do monte ele se sentou, segundo o costume da época (Mc 4.1; 9.35; 13.3; Lc 4.20), para pronunciar o sermão. Seja qual for o ponto de vista que alguém adote, é evidente que nenhum conflito entre Mateus e Lucas pode ser comprovado. Mt 5.1—7.29 e Lc 6.17-49 claramente dão a impressão de que todos os ditos contidos nestas duas seções foram pronunciados de uma só vez e constituem um só sermão. O discurso todo é antecedido por: "E ele abriu sua boca e começou a ensinálos, dizendo" (Mt 5.2; cf. Lc 6.20). Encerra-se com as palavras: "Ora, quando Jesus terminou estes ditos..." (Mt 7.28; cf. Lc 7.1). E claro que o sermão registrado por Mateus e o relatado por Lucas são o mesmíssimo. Em ambos o cenário histórico é o mesmo, ou seja, em ambos os Evangelhos o sermão é precedido pelo relato de uma grande multidão que se reúne em torno de Jesus para ser curada. O mesmo é seguido — seja imediatamente, como em Lucas, ou quase imediatamente, como em Mateus — pela história da cura do servo do centurião. Além disso, a seqüência das idéias, em considerável extensão, é a mesma em ambos: as bem-aventuranças, a supremacia da lei do amor e a parábola dos dois construtores. Cf. Mt 5.3-12 com Lc 6.20-23: Mt 5.43-48 com Lc 6.37-38; e Mt 7.24-27 com Lc 6.47-49. Não obstante, admita-se que os dois relatos de forma alguma são idênticos. De fato, a narrativa de Mateus é mais de três vezes mais extensa que a de Lucas. Isso revela que os escritores dos Evangelhos não eram meros copistas. Cada um deles escreveu 362
MATEUS
5.1-7.28
de acordo com os seus próprios antecedentes, caráter e dom. Talvez seja ainda mais importante notar que cada um escreveu em harmonia com o seu próprio propósito específico. Assim, não surpreende o fato de que Mateus inclua vários temas que eram de especial interesse para os seus leitores judeus a quem ele tentava alcançar para Cristo (por exemplo, 5.17-42; 6.1-6,1618). Visto que Lucas não estava escrevendo primariamente para judeus, ele omite esses temas. Por outro lado, o relato de Lucas contém material (6.24-26,38-40) que não se encontra numa forma idêntica em Mateus. (Mesmo aqui às vezes há alguma semelhança; cf. Lc 6.38 com Mt 7.2b.) Como foi indicado previamente (ver p. 55), não só é possível, mas até mesmo muito provável, que muitos dos ditos que se encontram no Sermão do Monte foram repetidos enquanto o Senhor viajava de um lugar a outro. O Monte das Bem-aventuranças tem sido com freqüência comparado e contrastado com o Monte Horebe, onde Moisés recebeu a lei de Deus. De um lado, o Monte Horebe: frio, desolado, estéril, quase inacessível, situado no meio de um deserto insuportável com suas serpentes ardentes. De outro lado, o Monte das Bem-aventuranças com suas paisagens prazenteiras e seus declives verdejantes, como se estendesse as cordiais boas-vindas a todos e distribuísse deleites por meio de seus lírios, margaridas, jacintos e anémonas. No Horebe: Deus aparece entre trovões e relâmpagos, e o povo dominado pelo terror. Na Galiléia: Emanuel, com a graça e a verdade fluindo de seus lábios, assentado no meio de seus discípulos que ouvem sem medo ou tremor. Contudo, devemos ser cuidadosos. Não obstante ser verdade que do Monte Horebe o Senhor revelou sua grandeza e sua glória, a lei foi dada num contexto de amor (ver Ex 20.2; Dt 5.2,3,6,28,29,32,33; 6.3-5). Além disso, o que fora proclamado no Sinai não é rejeitado por Jesus Cristo, senão que ele lhe emprestou a sua mais profunda interpretação espiritual (cf. Mt 5.17). Há quem alegue que quando Jesus pronunciou este sermão, ele não tinha, direta ou indiretamente, em vista a igreja de 363
5.1,2
MATEUS
hoje, e que seus preceitos não podem ser praticados nos dias atuais, e que eles são "irrelevantes" para as condições prevalecentes nos dias modernos. Objeções: este ponto de vista só pode ser mantido quando ele é acoplado a uma interpretação grosseiramente literal de passagens tais como 5.29,30,34. Todavia, a própria força do sermão é dirigida contra esse erro de interpretação (ver 5.21-48). Durante todo o seu ministério, Jesus se opunha a isto. Amigos e inimigos de Jesus estavam sempre tomando literalmente essas preciosas declarações do Mestre, as quais eram para ser entendidas de forma figurada (Jo 2.19,20; 3.3,4; 4.10.11,32,33; 6.51,52; 11.11-13; 14.4,6). Além disso, nem mesmo Jesus cumpriu todos esses preceitos literalmente; cfi, por exemplo, Mt 5.34 com 26.63,64, que mostram que em circunstâncias apropriadas o Senhor não se opunha ao juramento. É evidente que os diversos ensinamentos aqui apresentados devem ser interpretados à luz de seus contextos específicos e de acordo com o seu amplo propósito espiritual. Quando isso é feito, se fará evidente que Cristo, em seu discurso, aborda os princípios fundamentais de conduta que, segundo o seu próprio testemunho, permanecem os mesmos em todas as épocas (Mt 5.17,18). Mesmo em suas orações, Jesus recusou limitar seu horizonte às pessoas que viviam durante o tempo da própria peregrinação terrena de Jesus (Jo 17.20,21). A sabedoria de Cristo se aplica tanto hoje como ontem. Tanto agora como outrora existem os pobres em espírito, etc., e eles são declarados bem-aventurados (5.1-12). Hoje, igualmente, os crentes no Senhor Jesus Cristo são o sal da terra e a luz do mundo (5.13,14). Da mesma forma, nesta presente época, não somente o ato exterior de homicídio, mas também a disposição interior de ódio que poderia conduzir ao homicídio são dignos de punição aos olhos de Deus (5.21,22). Hoje, assim como outrora, o adultério é um assunto, não somente de ato exterior, mas também do coração corrompido e do olho concupiscente (5.23-26). Não é verdade que este discurso só tem significado para uma época e não para outra, ou que só pode ser aplicado a 364
MATEUS
5.1-7.28
certa classe de pessoas — aos ainda não-convertidos, por exemplo — e não às demais. Os princípios aqui enunciados são aplicáveis sempre e a todos. O descrente deve ouvi-lo para que possa reconhecer sua total incapacidade de guardar esses preceitos, e ser levado a correr para o refúgio de Cristo (Mt 11.28-30; Jo 3.16). O crente deve levar a sério as lições aqui ensinadas, a fim de que, na força do Senhor e por meio de sua graça, possa começar a obedecê-las "movido por gratidão". A atitude de swèestimar este discurso, como se ele pudesse ser aplicado apenas a certos grupos ou a homens que viveram durante certo período da História, deve ser condenada. Entretanto, o mesmo se dá com a atitude de super estimá-lo. Tal atitude equivale a isto: "Não cremos em teologia; cremos, sim, no Sermão do Monte. Ele contém tudo o que precisamos saber para vivermos como cristãos. Ele não possui teologia sangrenta, nem doutrina, mas somente ética." Resposta: E certamente um procedimento muito arbitrário aceitar o Sermão do Monte e, contudo, rejeitar os ditos do mesmo Jesus que exige fé nele como Salvador presente e Juiz futuro (Mt 16.16-20; 22.42-45; 25.31-46; Jo 14.1ss; etc.), os quais ensinam claramente a doutrina da expiação pelo sangue (Mt 20.28; Mc 10.45; Jo 6.53,55; etc.). Além disso, o próprio Sermão do Monte não declara a majestade de Cristo? Ver, especialmente, 5.17; 7.21-23,28,29. A razão porque a doutrina da expiação não é aqui especificamente enunciada pode bem ser que os discípulos ainda não estivessem prontos para recebê-la. Ela estava reservada para mais tarde. Porém, seja qual for a razão, não temos nenhum direito de selecionar e escolher entre os ensinos de Cristo, rejeitando um e aceitando outro. Além do mais, o caminho aqui descrito e o caminho da cruz não se conflitam, senão que se harmonizam de forma muitíssimo bela (cf. Mt 5.3-5,10-12 com 16.24-26; Jo 15.20). Essencialmente, ambos são um só caminho.
365
5.1,2
MATEUS Sumário do Sermão
O sermão em si é bem-organizado. Isso é verdade com referência a todos os discursos pronunciados por nosso Senhor e registrados nos Evangelhos. Os pregadores precisam tomar nota desse fato no preparo dos sermões deles. Jesus jamais divagava. Ele escolhia um tema. No presente caso, o tema é obviamente o evangelho do reino (4.23). Ao longo de todo o discurso esse reino é mencionado repetidas vezes (5.3,10,19,20; 6.10,33; 7.21). O significado desse conceito já foi indicado (ver sobre 4.23). O sermão tem também suas divisões ou "itens" bem definidos. Estes não são rígidos ou formais — "os ossos não chamam a atenção" —, porém orgânicos, de modo que uma subdivisão gradualmente avança ou se combina com outra. Primeiro, Jesus fala dos cidadãos do reino (5.12-16), descrevendo seu caráter, bem-aventurança (vv.2-12) e sua relação com o mundo (vv. 13-16). Eles são o sal da terra e a luz do mundo. Em segundo lugar, o Senhor apresenta a justiça do reino, o alto padrão de vida exigido pelo Rei (5.17—7.12). Já demonstramos que essa justiça está em plena concordância com os princípios morais enunciados no Antigo Testamento (5.17-19), porém não está em concordância com a interpretação e aplicação correntes e tradicionais (rabínicas) da lei de Deus (vv.20-48). Ela é superior à justiça dos escribas e fariseus dos dias de Jesus, bem assim à dos antigos intérpretes judeus. Esse contraste é assinalado com respeito a vários dos mandamentos do Antigo Testamento. A essência da justiça do reino com respeito à relação do homem com Deus equivale a isto: "Ama a Deus acima de tudo" (cap.6). Exige-se uma devoção correta (sem ostentação) para com Deus e uma confiança ilimitada nele. Esta devoção secreta e sincera do coração, em lugar de atos meramente externos para atrair a atenção das pessoas e granjear sua admiração, deve revelar-se em assuntos tais como dar, orar e jejuar (vv.1-18). E, quanto à confiança ilimitada em Deus, esta é incompatível com o culto prestado a Mamom e com a preocupação, e tem por base 366
MATEUS
5.1-7.28
a segurança de que, aos que buscam o reino de Deus e sua justiça, todas as coisas necessárias lhes serão graciosamente concedidas (vv.19- 34). A essência da justiça do reino com respeito à relação do homem com o homem é esta: ''Ama ao teu próximo como a ti mesmo" (7.1-12). Isso implica ausência de um espírito crítico e discriminativo no julgamento. A sabedoria para julgar de forma correta, bem como a tudo quanto alguém necessita, é obtida por meio da oração. O v.12 contém a versão própria de Cristo da "regra áurea". Em terceiro lugar, Jesus conclui seu sermão com uma ardente exortação a que se entre no reino (vv. 13-27). Ele descreve o início do caminho (vv.13 e 14), o avanço no caminho (vv.1520) e aponta para o fim do caminho: o que finalmente acontece aos que simplesmente dizem em contraste com os que fazem (vv.21-23); ou, aos que simplesmente ouvem em contraste com os que fazem (vv.24- 27). Estes últimos quatro versículos contêm a notável e vívida parábola dos Dois Construtores: o homem sábio que edifica sua casa sobre a rocha, em contraste com o insensato que edifica sua casa na areia. O efeito do sermão sobre os ouvintes é descrito nos vv. 28 e 29. O Cenário No transcurso do Grande Ministério Galileu, Jesus freqüentemente se dirigia às multidões. Assim também acontece aqui (5.1). Ao contemplar as grandes multidões, o seu coração sempre se enchia de compaixão, daquele desejo de socorrê-las em suas necessidades (9.36; 14.14; 15.32; Mc 6.34; 8.2; Lc 9.13). Se estavam famintas, ele as alimentava. Quando lhe traziam os seus enfermos, ele curava todos quantos se achavam dominados pelas aflições. Assim também, quando tinham necessidade de ensinamento, o que sempre acontecia, ele as ensinava. A passagem que ora focalizamos faz menção de "as multidões" contempladas por ele e de "seus discípulos" que vinham ao seu encontro. Marcos faz menção de "doze" (3.4); Lucas, de "uma 367
5.1,2
MATEUS
grande multidão de discípulos" (6.17, cf. v.20). Talvez nos seja permitido pintar a cena da seguinte forma: os Doze formavam um círculo imediato em torno do Salvador; mais para fora estava um grande número de outros discípulos; e, em derredor desses dois círculos, uma grande multidão de outros ouvintes interessados e desejosos de aprender. Jesus principia o seu discurso com os preciosos ditos que têm comunicado conforto e otimismo aos angustiados através dos séculos, e que, em virtude da repetição de "Bem-aventurados", tornaram-se conhecidos como "as Bem-aventuranças". Os cidadãos do reino: seu caráter, sua bem-aventurança (as Bem-aventuranças) e sua relação com o mundo: sal e luz Os ouvintes de Jesus daquele dia devem ter se sentido fascinados desde o início. Devem ter-se sentido dominados já pela primeira expressão, pois Jesus dizia coisas que aparentemente pareciam absurdas. Estava dizendo que não eram os ricos, os bem-humorados, os bem-alimentados e os que não eram acometidos de opressão que deviam considerar-se felizes, e, sim, os pobres, os que choram, os famintos e sedentos e os perseguidos. Certamente que aqui em Mateus — mais que em Lucas — algumas dessas descrições foram modificadas. Por isso, não necessariamente toda pessoa pobre, senão que os pobres em espírito, e não os famintos e sedentos sem qualificação, mas os que têm fome e sede de justiça é que são os bem-aventurados. Porém permanece o fato de que aqui houve uma inversão de todas as avaliações humanas. A natureza paradoxal dos ditos se faz ainda mais clara quando o significado do predicado "bem-aventurado" é considerado. Note-se que ele está presente no início de cada período, e ocorre não menos que nove vezes em rápida sucessão, produzindo nove, ou, se os vv.10-12 forem combinados entre si em virtude da semelhança no pensamento, oito bem-aventuranças. Doravante elas serão consideradas um grupo de oito. 368
MATEUS
5.1-7.28
Não se pode questionar o grande peso da ênfase sobre a palavra bem-aventurado. No espírito dos salmistas do Antigo Testamento, o Senhor está dizendo: "Quão grande é a bemaventurança dos pobres em espírito, dos que choram, dos mansos!", etc. Lembre-se da exuberante exclamação de Davi no Salmo 32.1: "Bem-aventurado (aquele cuja) — ou Quão grande bem-aventurança (daquele cuja) — iniqüidade (é) perdoada, (cujo) pecado (é) coberto! Os ditos de Mt 5.1-12 devem ter ressoado do monte com uma tremenda força emocional. O que o Orador está fazendo é nada menos que isto: ele está afirmando que, ainda que todos considerem que seus seguidores são os mais infelizes e desafortunados, e ainda que eles mesmos de forma alguma estejam sempre cheios de otimismo com referência à sua própria condição, diante do céu e pelas normas do reino eles são realmente felizes; sim, "felizes" no sentido mais elevado do termo; daí, superlativamente bem-aventurados.264 Isso é verdadeiro não apenas em virtude das bênçãos reservadas para eles no futuro — também estão implícitas; ver especialmente 5.12: "grande é o vosso galardão no céu" —, mas também em virtude de seu presente estado. O favor do céu já repousa sobre eles. Mesmo neste momento a luz de sua glória futura está começando a envolvêlos. Mesmo agora, não importa quão desprezados possam ser, este favor é real, porque o Espírito de glória e de Deus repousa sobre eles (IPe 4.14). Cada bem-aventurança consiste de três partes: a. uma atribuição de bem-aventurança ("bem-aventurados"); b. uma descrição da pessoa a quem se aplica a atribuição, ou seja, de seu caráter ou condição ("os pobres em espírito", "os que choram", etc.); e c. uma declaração da razão dessa bem-aventurança ("porque deles é o reino do céu", "porque serão consolados..."). 264
Cf. SI 1.1; 2.12; 32.2; 33.12; 34.8: 40.4; 41.4; etc. A ênfase e todo o sentido do predicado inicial são expressos de forma mui bela no holandês (Síatenvertaling) ao traduzir Welgelukzalig (bem-feliz-abençoado). Uma boa porção de informação útil se encontra no artigo mak£rioj por F. Hauck, Th. D.N.T., Vol. IV, pp. 367-370. 369
5.1,2
MATEUS
Os que estão constantemente procurando contradições e discrepâncias nas Escrituras vêem conflito entre Mateus e Lucas em seu relato das bem-aventuranças. Ora, é verdade que há diferenças. Assim, Mateus 5 registra (pelo menos) oito bemaventuranças; Lucas 6, apenas quatro, seguidas de quatro ais. Além disso, em Mateus, os ditos, com a exceção do último, estão na terceira pessoa; em Lucas, na segunda. Finalmente, onde em Mateus se lê "pobres em espírito'''' (5.3), em Lucas simplesmente se lê "vós, os pobres" (6.20; cf. também Mt 5.6 com Lc 6.21). Portanto, alguém poderia dizer que na versão de Mateus a ênfase é posta na qualidade espiritual dos cidadãos do reino; em Lucas a condição exterior é posta um pouco mais no primeiro plano. Porém, podem-se considerar tais diferenças como contradições? De forma alguma! Em parte alguma Lucas nos diz que Jesus pronunciou somente quatro bem-aventuranças. Além disso, é plenamente possível que Jesus tenha usado tanto a terceira como a segunda pessoa; ou que, embora estivesse empregando a terceira pessoa, ele estava olhando para os seus discípulos imediatos ("E erguendo seus olhos para seus discípulos, dizia" — Lc 6.20), de modo que seu próprio gesto indicava que esse conforto era dirigido especialmente a eles. De qualquer forma, não estava Lucas plenamente justificado ao usar a segunda pessoa ("ms, os pobres")? Finalmente, Jesus certamente não quis dizer, e nem poderia ter pretendido dizer, que toda pessoa que é pobre de possessões terrenas é por essa única razão considerada "bem-aventurada". O que está implícito, mesmo no relato de Lucas, é que, ainda que com respeito às possessões terrenas a pessoa pode ser em extremo pobre, todavia, em virtude de sua fé no "Filho do homem" (Lc 6.22), seu é o reino do céu. Conclusão: não existe qualquer conflito real. Ver também o que se disse anteriormente sobre essas alegadas contradições e discrepâncias (pp. 113, 114). Quase nem é necessário afirmar que quando Jesus fala sobre os pobres em espírito, os que choram, os mansos etc., ele não está fazendo referência a oito diferentes tipos de pessoas: 370
MATEUS
5.1-7.28
alguns pobres em espírito, outros que choram e ainda outros que são mansos, etc., porém a um mesmo grupo. Além disso, ao descrever aqueles que pertencem a esse grupo, ele está, ao mesmo tempo, oferecendo uma descrição do reino ao qual pertencem, mostrando que o mesmo não é de caráter terreno, e, sim, celestial; não é um império físico, e, sim, nitidamente espiritual, em que o Deus único e verdadeiro, o Pai de Jesus Cristo, é reconhecido e adorado como Soberano. Cf. Lc 17.21; Jo 18.36; Rm 14.17. Tem-se argumentado que as qualidades mencionadas nessas bem-aventuranças são por demais passivas e abnegadas para enfrentarem as exigências da época em que vivemos. Não está o mundo afundando-se num marasmo de degradação moral e espiritual? O progresso religioso não tem cedido lugar ao progresso científico? Portanto, em vez da vida de privação demonstrada aqui, não é antes a intensa atividade cristã, o profundo comprometimento nos programas de missão e na reforma social, o importante para hoje? Não é o espírito enérgico de empresa em vez da tímida, descolorida e antes pusilânime pobreza em espírito, choro, mansidão, pureza de coração, etc., a verdadeira solução dos nossos problemas? Resposta: O mundo de Elias também era muitíssimo ímpio. Não obstante, o Senhor não se achava no vento, nem no terremoto, nem no fogo, mas em "um sibilo ameno e suave" (literalmente, "um som de suave quietude"). A Zacarias veio a seguinte mensagem: "Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos exércitos" (Zc 4.6). A palavra do Senhor nos veio por meio de Isaías: "Em vos converterdes e em sossegardes está a vossa salvação; na tranqüilidade e na confiança a vossa força..." (Is 30.15). Quem pensa levianamente sobre as qualidades mencionadas nessas bem-aventuranças deve ser coerente. Que jamais volte a falar de "condescender para vencer", sobre "a qualidade da misericórdia... abençoando ao que dá e ao que recebe" e sobre "a pena é mais poderosa que a espada". Igualmente, que jamais se entusiasme com o conteúdo 371
5.11,12
MATEUS
de ICo 13. Envolvimento em programas de ação cristã? Claro que sim, desde que o seu propósito principal seja a glória de Deus! (Mt 5.16; ICo 10.31). Estendendo ajuda aos necessitados e desprivilegiados de toda e qualquer raça, seja por meio de ação individual ou de grupo? Decididamente, com a mesma condição. Ler Gn 47; Pv 14.21; 19.17; Mt 25.34-40; 2Co 8.1 -9; Ef 2.10; Tg 2.6, 8, 13; 5.1-6, para mencionar apenas umas poucas da longa lista de passagens em que tal esforço é prescrito e mesmo enfatizado. Todavia, é só quando "o coração é reto", ou seja, quando tal esforço é efetuado para o benefício de outrem e, assim, para a glória de Deus, e não para angariar a aprovação dos homens ou para a edificação do próprio ego, que o céu o recompensará. Fazer pretensas boas obras por segundas (intenções) más, com um espírito de hipocrisia, é o que é condenado no Sermão do Monte (ver especialmente Mt 6.1-18). O que se condena é alguém pregar o que não pratica (ver Mt 23.4; Lc 11.46). Jamais deveríamos esquecer que quando Jesus aqui impetra uma bênção sobre os mansos, ele o faz na qualidade de Aquele que, em si mesmo, foi o mais manso de todos os homens (Mt 11.29; 12.17-21, cf.. Is 42.1-4; Mt 21.5, cf. Zc 9.9). Assim também, quando se promete misericórdia aos misericordiosos, quem faz a promessa é Aquele que é supremamente misericordioso (Lc 23.34). Quando os puros de coração recebem a certeza de que verão a Deus, Aquele que comunicou esta certeza é também o mesmo que era apto para perguntar: "Quem de vós me convence de pecado?" (Jo 8.46). E quando os pacificadores são honrados com o título "filhos de Deus", é o supremo Pacificador (Is 9.6; Jo 14.27; 20.19-21; Ef 2.14) quem lhes confere este título. As qualidades que o Senhor requer dos outros, ele mesmo possui em grau infinito. Esta é uma das razões por que o seu ensino era e é tão dinâmico. Isso é válido também para o Cristianismo. Um "Cristianismo" destituído das qualidades que nos são apresentadas nessas bem-aventuranças é carente de vitalidade. Por outro lado, um Cristianismo que entesoura e exi372
MATEUS
5.1,2
be estas graças em tudo o que é e faz é um canal de bênção para a humanidade. Uma última pergunta requer uma resposta: Devemos conceber essas bem-aventuranças como muitos grãos de areia separados uns dos outros, ou são elas antes como uma corrente de eventos em que cada elo, ou, pelo menos, cada grupo de elos, está organicamente conectado com os demais? É a seqüência em que uma segue a outra de tal forma que a oitava pode perfeitamente ser a primeira, e a sexta pode mudar de lugar com a segunda, ou há um arranjo discernivelmente ordenado? Em alguns comentários essa pergunta nem sequer é ventilada. Ora, há que admitir-se que existe uma certa medida de justaposição; compare-se, por exemplo, "os pobres em espírito" com "os mansos". De fato, seria impossível comprovar que aqui existe uma rígida progressão, passo a passo, de tal modo que cada bemaventurança (depois da primeira) indicaria uma etapa ascendente no desenvolvimento do caráter cristão ou da experiência cristã. Ainda que pudesse ser comprovado, seria talvez impossível comprovar que misericordiosos, puros de coração e pacificadores representem uma seqüência que caminha para um clímax. Não obstante, não é difícil detectar uma tendência geral de progresso, grupo por grupo. Assim observamos que tanto aqui em Mateus como também em Lucas se impetra primeiro uma bem-aventurança sobre "os pobres em espírito" (assim em Mateus) ou simplesmente "vós, os pobres" (em Lucas). Também, em ambos estes Evangelhos, toda a série termina com uma exortação a que os filhos de Deus, vituperados e perseguidos, se regozijem. Além disso, alhures o Senhor também, ao descrever o estado e a condição do homem, começa onde as bem-aventuranças começam. Jesus descreve de forma coerente o pecador como estando desde o princípio morto por natureza (Mt 8.22; Lc 9.60; 15.24,32; Jo 6.53; 11.25,26), completamente perdido (Mt 10.6; 15.24; 18.11; Lc 15.4,6,9,24,32; 19.10) e necessitado, não de simples reforma, porém de novo nascimento (Jo 3.3,5). Ele deve arrepender373
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se (Mt 4.17; Le 13.3,5), no sentido já explicado (ver pp. 277280). E, pois, estranho que as primeiras três bem-aventuranças sejam aquelas em que esse homem que é declarado bem-aventurado seja o mesmo que reconhece sua própria pobreza e carência, como, por exemplo, o pródigo da parábola popularmente conhecida como a do Filho Pródigo? (Ver Lc 15, especialmente o v. 17.) Então, quando o pródigo reconhece quão desgraçada é a sua condição e se enche de tristeza ao meditar no fato de que ele mesmo é culpado disso, não mostra ter fome e sede de uma oportunidade de dizer: "Pai, pequei contra o céu e contra ti"? O objetivo principal desse anseio não é o restabelecimento um relacionamento certo com Deus? Compare-se a quarta bemaventurança com esse anelo por justiça. E agora, tendo recebido misericórdia, não será, por sua vez, misericordioso e, portanto, beneficiário de mais misericórdia além daquelajá recebida? (Mt 5.44-48; 18.21-35; Lc 6.36). E não estará ele ainda, pela graça e pelo poder de Deus, disposto a ser puro de coração, confiando em Deus com pureza de propósito? (Mt 6.22; Lc 11.34). E, tendo recebido ele mesmo a paz que excede a todo entendimento, não se transformará em pacificador? (Mc 9.50; Lc 10.5,6; Fp 2.1ss.). Em outras palavras, não se lhe aplicarão as bemaventuranças cinco, seis e sete? Finalmente, note-se que a bem-aventurança pronunciada sobre os que sofrem perseguição por causa de Cristo está situada no final de toda a série, como a bem-aventurança oitava e final. Não é isso também assim na vida? Geralmente não é a pessoa que meramente "criou juízo" que é assim perseguida, mas, antes, aquele indivíduo que já começou a revelar-se exteriormente como um novo homem. Assim também na parábola do Filho Pródigo, quase no fim da história, onde é mencionado a indignação do irmão mais velho, justo aos seus próprios olhos, ante o regresso do arrependido (Lc 15.30). Semelhantemente, o discurso de Cristo no Cenáculo termina (justamente antes da tocantemente bela oração sacerdotal) com as palavras: "No mundo passais por aflições; mas tende bom ânimo. Eu venci o mundo" (Jo 16.33). Cf. Mt 10.13b-42 depois de 10.1-13a. 374
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Portanto, é evidente que. pelo menos em sua tendência geral, as bem-aventuranças seguem o curso real do desenvolvimento da nova vida, e que, de modo global, a seqüência encontrada aqui é paralela à que se encontra alhures nos ditos e discursos do Senhor. Porém, ainda que esses pronunciamentos revelem o princípio e o progresso posterior da fé dos cidadãos do reino, e a perseguição à qual esta fé está sujeita, mostrando-nos os vários traços do caráter cristão em seu desenvolvimento (até certo ponto) sucessivo, todavia, como o botão já contém a flor, assim a graça mais inicial, a consciência da pobreza espiritual, já contém todas as demais em seu seio, e ela mesma nunca está perdida, mas, antes, é realçada em beleza e atrativo por meio de sua combinação com as demais virtudes. A Primeira Bem-Aventurança 3. Bem-aventurados (são) os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus. O mundo diz exatamente o oposto: "Bem-aventurados são os ricos", etc. Jesus diz: "Bem-aventurados são os pobres, os que choram, os mansos." Motivo: a condição exterior de alguém poderia ser muitíssimo invejável; no entanto, no final ela se desvanece como um sonho. Deus jamais fez uma alma tão pequena que fique satisfeita com o mundo inteiro. Todavia, são eternos o estado interior e o caráter da alma. Cf. Lc 12.15; 1 Co 7.31. Entretanto, Jesus não proclama que essas pessoas são bemaventuradas em virtude de serem pobres de bens materiais, ainda que, em sua maioria, também o sejam. São chamadas de bemaventuradas por serem pobres em espírito, não em espiritualidade, porém "com respeito a" seus respectivos espíritos; ou seja, são aquelas que se convenceram de sua pobreza espiritual. Tornaram-se conscientes de sua miséria e necessidade. Seu velho orgulho foi quebrado. Puseram-se a clamar: "O Deus, sê propício a mim, pecador" (Lc 18.13). São de um espírito contrito e tremente diante da Palavra de Deus (Is 66.2; cf. 57.15).265 Per261
Se a palavra empregada aqui para pobre (TI-CCOXÓÇ) é usada em seu sentido primário e básico, como pode ter sido o caso, indicaria não o pobre, ou seja, alguém que precisa trabalhar diariamente por sua sobrevivência (rávriç), mas o mendigo, al-
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cebam sua total incapacidade (Rm 7.24), não esperam nada de si mesmas, e, sim, esperam tudo de Deus. Deles — e tão-somente deles! —, desde agora, é o reino dos céus, ou seja, a completa salvação, a soma total das bênçãos que resultam quando se reconhece Deus como Rei sobre o coração e a vida. Ver a definição sob o item b. da exposição de 4.23. E deles mesmo agora, em princípio. Portanto, são declarados bem-aventurados. O livro do Apocalipse contém duas passagens vívidas que mostram, respectivamente: a. como pode alguém ser pobre embora se julgue rico, e b. como pode uma pessoa ser rica em meio à sua pobreza. Jesus Cristo, o ressurreto e exaltado, o visitador da igreja, se dirige à insensível Laodicéia da seguinte maneira: "Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca. Pois dizes: Sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu infeliz: miserável, pobre [ou: mendicante], cego e nu!" (Ap 3.16,17). Entretanto, ele se deleita com a igreja de Esmirna, dizendo: "Conheço a tua tribulação (ou aflição), a tua pobreza, mas tu és rico" (Ap 2.9). Como, pois, pode o pobre ser considerado rico? A resposta se encontra em passagens extremamente significativas, como: "tenho fartura" (Jacó a Esaú, Gn 33.11); e "todas as coisas cooguém que depende de outros para o seu sustento. Tenha-se em mente Lázaro da parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31; notar especialmente os vv.20 e 21). Sobre essa distinção entre 7RAOXÓÇ E TCÉVTIÇ ver R. C. Trench, op. cit., par. xxxvi. Contudo, a possível diferença de significado não deve ser enfatizada, visto que 7TTfo%óç também pode significar pobre sem implicar necessariamente que a pessoa assim denominada seja um mendigo paupérrimo (Mt26.11; Mc 14.7; Lc 14.13,21; etc.). Além disso, TIÉVTIÇ ocorre somente uma vez em todo o Novo Testamento (2Co 9.9); por outro lado, mm%òç, ocorre mais de trinta vezes. Isso, por si mesmo, dificilmente forneceria o material suficiente sobre o qual basear uma distinção de significado. Por outro lado, em razão da conceituaçâo que Cristo tem do pecador em seu estado natural (ver acima p. 374), depois de tudo ele poderia ter usado aqui (Mt 5.3) a palavra jrctoxóç em seu sentido primário: alguém completamente desamparado, desprovido de todo meio de sustento próprio, com a idéia adicional no presente caso de que ele mesmo sabe que esse é o fato. No sentido espiritual (note-se "pobre em espírito"), esse significado se enquadra perfeitamente no contexto.
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peram para o bem daqueles que amam a Deus" (Rm 8.28). Para maior confirmação dessa gloriosa verdade, ver SI 23; 63.1; 73.2326; 81.10; 116; Pv 15.16; 16.8,19; 19.1; Jo 1.16; 14.1-3; 17.24; Rm 8.31-39; ICo 3.21-23; 2Co 4.8; Ef 1.3; IPe 1.3-9; Uo 5.4; Ap 7.9-17; 17.14; 21.1-7. A Segunda Bem-Aventurança 4. Os pobres em espírito são também os que choram. E este aspecto de sua vida e conduta que surge em primeiro plano na segunda bem-aventurança: "Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados." De fato, bem-aventurada é aquela pessoa que, tendo dito: "Eu aqui pereço de fome", prossegue dizendo: "Pai, pequei contra ti." As pessoas choram por muitas razões: enfermidade, dor, luto, perda material, orgulho ferido, etc. No presente contexto, contudo, o que se vê é um tipo de choro basicamente diferente. É o pranto daqueles que reconhecem sua bancarrota espiritual (primeira bem-aventurança) e sentem — ou em breve vão sentir — fome e sede de justiça (quarta bem-aventurança) — eis a ênfase aqui. Sem dúvida, quando uma pessoa deplora seu estado pecaminoso, também lamenta as conseqüências do mesmo (Ap 21.4). Das muitas angústias da vida, inclusive a física, nenhuma será excluída. Porém, são incluídas somente em seu caráter de resultados do pecado. Conseqüentemente, de forma alguma se qualificam aqui de bem-aventurados a todos quantos choram. Cf. 2Co 7.10). Não é necessário, contudo, limitar esse choro ao que ocorre em decorrência dos próprios pecados individuais de uma pessoa: aqueles pelos quais pessoalmente ofendeu a Deus. Esse tipo de tristeza pode ser deveras pungente (SI 51.4). Sem dúvida, porém, mais do que isso é incluído. O regenerado aprende a amar a Deus de tal forma que começará a chorar diante de "todas as obras ímpias que os ímpios têm cometido de uma forma muito ímpia" (Jd 15). O seu pranto, pois, está centrado em Deus, não no homem. Eles "suspiram e clamam" não somente diante de seus próprios pecados, não somente ante a soma destes com o poder dos ímpios em oprimir os justos (Hc 1.4; 2Tm 3.12), mas "por causa da transgressão do cativeiro" (Ez 9.4). Dilacera377
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lhes o fato de que Deus, o seu próprio Deus a quem amam, está sendo desonrado. Cf. SI 139.21. Esse tipo de tristeza — "para a glória de Deus" — é também notavelmente expresso em SI 119.136: "Torrentes de água nascem dos meus olhos, porque os homens não guardam a tua lei." Ver também Ed 10.6. Em um comovente capítulo, ao prantear e fazer confissão de pecado. Daniel combina seus pecados pessoais com os de seu povo (Dn 9.1- 20; ver especialmente o v.20). Ao proceder assim, ele roga: "Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atendenos e age; não te retardes, por amor de ti mesmo, ó Deus meu; porque a tua cidade e o teu povo são chamados pelo teu nome" (v.19). A poderosa onda de emoção que caracteriza a efusão do coração expressa em SI 119 e Dn 9 se coaduna com o presente contexto, pois a palavra traduzida por chorar, na segunda bemaventurança, indica uma tristeza que emana do coração, toma posse da pessoa toda e se manifesta exteriormente. 266 A bem-aventurança dessas pessoas consiste nisto: serão consoladas. A tristeza piedosa faz a alma olhar para Deus. Deus, por sua vez, confere consolo aos que buscam para si a ajuda dele. É ele quem perdoa, liberta, fortalece e acalma (SI 30.5; 50.15; Is 55.6,7; Mq 7.18-20; Mt 11.28-30). Assim as lágrimas, como as gotas de chuva, caem na terra e sobem na forma de flores (SI 126.5; Ec 7.3; Jo 14; ver C.N.T. sobre esse capítulo tão confortante; ICo 10.13; 2Co 1.3,4; Ap 7.14-17; 21.4). Às vezes o consolo consiste em que a própria aflição é removida (2Cr 20.1-30; 32.9-23; SI 116; SI 38; At 12.5ss.; etc.). Entretanto, com freqüência a aflição permanece por algum tempo, mas um peso de glória supera a dor (2Co 4.17; 12.8,9). Meditar também em Rm 8.28; melhor ainda, Rm 8.28-39. Esse consolo se encontra lindamente sumariado no item Dia do Senhor 1 do Catecismo de Heidelberg: "Pergunta: Qual é o seu consolo tanto na vida como na morte? Resposta: Que eu, de corpo e alma, tanto na vida como na morte, não pertenço a mim mesmo, mas pertenço ao meu fiel 1( h
' Sobre 7iev9éco, ver R.C. Trench, op. cit., par. Ixv.
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Salvador Jesus Cristo que, com o seu precioso sangue, fez plena satisfação por meus pecados e me livrou de todo o poder do diabo, e de tal maneira me guarda que sem a vontade de meu Pai celestial nem um só cabelo de minha cabeça pode cair; antes, é necessário que todas as coisas sirvam para a minha salvação. Por isso também me assegura, por meio de seu Espírito Santo, a vida eterna, e me faz pronto e disposto a viver doravante segundo sua santa vontade." Adicionar a isso 2Tm 1.12; 4.7,8; Ap 17.14; 19.7. A Terceira Bem-Aventurança 5. Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Há bem pouca diferença entre ser "pobre em espírito" e ser "manso". Não obstante, existe uma ligeira distinção, ou seja, que a primeira designação descreve o homem mais como é ele em si mesmo, ou seja, de coração quebrantado, enquanto a segunda o retrata mais especificamente em sua relação com Deus e com seu semelhante. O que se diz aqui sobre o indivíduo manso é um eco de SI 37.11 (ver também os vv. 22,29,34 do mesmo salmo). Portanto, a fim de sabermos o que se quer dizer pela expressão "os mansos", faremos bem derivando desse salmo o conteúdo desse conceito. Ele descreve a pessoa que não se ressente. Ela não guarda rancor. Longe de seguir ruminando as injúrias recebidas, ela encontra seu refúgio no Senhor e confia-lhe inteiramente o seu caminho. Tudo ela faz em virtude do fato de que já morreu para toda a pretensão de ser justa em si mesma. Ela sabe que não pode reivindicar qualquer merecimento diante de Deus (cf. SI 34.18; 51.17). Visto que o favor de Deus significa tudo para tal pessoa, ela aprendeu a suportar com alegria "o espólio de seus bens... sabendo que uma herança melhor e durável a aguarda" (Hb 10.34). Contudo, mansidão não é sinônimo de fraqueza. A mansidão não consiste em falta de firmeza de caráter, uma característica da pessoa que está pronta a curvar-se ao sabor de toda brisa. Mansidão é submissão ante qualquer provação, a disposição de sofrer dano ao invés de causá-lo. A pessoa mansa deixa tudo nas mãos daquele que ama e que se importa. 379
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A bem-aventurança dos mansos consiste em que "eles herdarão a terra". Em certo sentido herdam-na desde já, e isso por várias razões: a. por não darem a devida atenção ao seu próprio enriquecimento, mas, antes, em cumprir seu dever diante de Deus, e em cumprir sua tarefa na terra; em outras palavras, ao buscar em primeiro lugar e acima de tudo o reino de Deus e a sua justiça, "todas essas coisas" (comida, roupa, etc.) lhes são graciosamente concedidas como um dom especial (Mt 6.33). A lei do resultado indireto de forma alguma é letra morta. b. Sua própria mansidão os faz uma bênção para os seus semelhantes, alguns dos quais também os abençoarão (Mc 10.30; At 2.44,45; 16.15; Fp 4.18). c. Talvez possuam apenas uma pequena porção desta terra ou de bens terrenos, porém uma pequena porção com a bênção de Deus repousando sobre ela é muito mais que as maiores riquezas sem a bênção de Deus. Exceto num sentido muito formal e legal, um homem cuja alma é atingida pelo medo do juízo vindouro possui realmente seus bens teirenos? Ele os possui no sentido de desfrutá-los? Certamente que não! Não é ele quem os possui, e, sim, são eles que o possuem a elel Uma comparação de duas passagens do livro de Isaías revela quem são de fato os que herdarão a terra: "Tu, Senhor, conservarás em perfeita paz àquele cujo propósito é firme; porque ele confia em ti" (Is 26.3). "Para os perversos, todavia, não há paz, diz o Senhor" (Is 48.22). Não são os homens do mundo, e, sim, são os mansos os que sabem que Rm 8.28 é a plena verdade. Portanto, eles — e somente eles! — são os que possuem a terra. Entretanto, o cumprimento mais pleno da promessa está reservado para o futuro, quando, na volta de Cristo em glória, os mansos herdarão o novo céu e a nova terra, o universo renovado, e no qual habitará a justiça para sempre (Ap 21.1 ss). Herdar a terra indica o seguinte: a. O cidadão do reino tem direito, pela graça, a esta possessão. b. Ele certamente a receberá como um tesouro inalienável; c. Ele não precisará — e nem mesmo pode — ganhá-la por merecimento próprio. 380
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A Quarta Bem-Aventurança Das profundezas de sua consciência de pobreza espiritual, de seu pranto pelo pecado e de sua mansidão, os cidadãos do reino clamam a Deus pela plena satisfação de sua necessidade espiritual básica, ou seja, a justiça. A quarta bem-aventurança, portanto, segue de forma bastante natural: 6. Bem-aventurados os famintos e os sedentos por justiça, porque eles serão plenamente saciados. Esta justiça consiste em uma perfeita conformidade com a santa lei de Deus, ou seja, com a sua vontade. E antes de tudo uma justiça por imputação: "Ele [Abraão] creu no Senhor, e isso lhe foi computado para justiça" (Gn 15.6). O homem é incapaz de merecer esse direito diante de Deus. Nenhuma soma de boas obras poderá expiar seu pecado. De fato, "Todas as nossas justiças [são] como trapo de imundícia" (Is 64.6). Nenhum tipo de purificação humana, seja cerimonial ou de outro tipo, pode lavar o pecado: "Pelo que ainda que te laves com salitre, e amontoes potassa, continua a mácula da tua iniqüidade perante mim, diz o Senhor Deus" (Jr 2.22). Nenhuma soma de sacrifícios é capaz de extirpar a culpa humana: "Sacrifícios e ofertas não quiseste; abriste os meus ouvidos; holocaustos e ofertas pelo pecado não requeres" (SI 40.6). Nenhum mero ser humano é capaz de fazer expiação pelo pecado de seu irmão: "Ao irmão, verdadeiramente, ninguém o pode redimir, nem pagar por ele a Deus o seu resgate" (SI 49.7). De fato, no tocante ao próprio homem, a situação é inteiramente sem remédio. Sua necessidade principal, básica e irremediável é estar ele em perfeita harmonia com Deus; e este é também o alvo que ele jamais poderá atingir: "como pode o homem ser justo para com Deus?" (Jó 9.2). Nessa situação irremediável e horrível foi que o Filho de Deus, de sua glória e soberania, entrou. Foi ele (juntamente com o Pai e o Espírito, o único e verdadeiro Deus) que veio para o resgate, quando todos os demais meios fracassaram. "Então eu disse: eis aqui estou, no rolo do livro está escrito a meu respeito; agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração está a tua lei" (SI 40.7,8). A maneira como o resgate do 381
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pecador seria realizado e a salvação providenciada está claramente retratada em Is 53: "Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos" (vv.5 e 6). E assim Emanuel foi destinado a ser "o Senhor justiça nossa" (Jr 23.6). Por intermédio dele, como uma redenção, os pecados de seu povo foram livremente perdoados, de tal modo que Davi podia cantar: "Bemaventurado é aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é coberto" (SI 32.1). Tudo isso, naturalmente, era do conhecimento de Jesus quando disse: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça." Mesmo durante a sua vivência terrena ele era plenamente conhecedor de sua função como Substituto. Não foi precisamente com a finalidade de exercer esse ofício que ele deixou o seu lar celestial? (2Co 8.9). Ver também comentário sobre Mt 20.28 (cf. Mc 10.45). E não era precisamente em favor de seu povo que ele iria derramar o seu sangue? (Lc 22.19,20; ICo 11.24,25; cf. Jo 10.11,28; At 20.28; Ef 1.7,14; Cl 1.14; Hb 9.12; IPe 1.19; Ap 5.9). Além disso, o fato de que a justiça do homem está baseada na misericórdia de Deus e não nas obras ou méritos humanos é uma verdade que não carecia esperar por Paulo (Rm 4.3,9; G13.6) para ser descoberta. Não apenas Moisés (Gn 15.6) e Davi (SI 32.1) a conheciam, mas certamente também Jesus. Ele claramente a ensinou na inesquecível parábola de O Fariseu e o Publicam (Lc 18.9-14; ver especialmente os vv.13 e 14). E verdade que o ensino do Antigo Testamento e o de Jesus prepararam o caminho para uma exposição mais detalhada e mais ampla dessa doutrina pelo apóstolo dos gentios. Não obstante, é evidente que aqui em Mt 5.6 Cristo se refere a uma justiça não meramente por imputação, mas também por comunicação; refere-se não meramente a uma condição ju382
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rídica, mas também a uma conduta ética; pode-se ver isso de forma clara por meio de Mt 6.1: "Cuidem para que não pratiquem a sua justiça diante do povo", e ver também Mt 5.10,2048. As duas (justiças) são inseparáveis. Embora seja impossível que as boas obras justifiquem alguém, é igualmente impossível que uma pessoa justificada possa viver sem praticar boas obras. O termo "justiça", na forma usada por Cristo, é, portanto, muito abrangente, envolvendo tanto a de caráter forense como a de caráter ético. A relação entre a justiça apresentada por Cristo e a "justiça dos fariseus" está em que a primeira é interior, e a segunda é geralmente exterior; a primeira é do coração, a segunda é predominantemente de aparência exterior; a primeira é genuína, a segunda é com muita freqüência um produto falsificado. Cf. Mt 5.20—6.18. "Porque eles serão plenamente saciados" (literalmente: "cheios").267 Notar, contudo, que não se trata daqueles que meramente sentem que "algo vai mal", mas somente aqueles que têm "fome e sede" de justiça é que serão cheios. A justiça imputada e comunicada por Deus deve ser um objeto de inter so desejo, de ardente anelo e de busca incansável. Cf.Sl 42.1: "Como suspira a corça pelas correntes das águas...". Cf. Is 55.1; Am 8.11; Jo 4.34; 6.35; 7.37; Ap 22.17. Como esta fome e sede de justiça serão plenamente saciadas? Pela imputação dos méritos de Cristo. Assim obtemos uma justiça de condição. Pela obra santificadora do Espírito Santo. Assim obtemos uma justiça de condição interior e conduta exterior. Cf. Rm 8.3-5; 2Co 3.18; 2Ts 2.13. Estas duas (justiças) são inseparáveis: aqueles por quem Cristo morreu são sar tifica267
O verbo xoptáÇco (aqui 3" pes. pl. fut. ind. pas.: xoptocoSriaovTai, ainda que primeiro eom respeito à alimentação e engorda de animais (de cujo significado há um eco na cláusula: "E todas as aves se fartaram das suas carnes", Ap 19.21), e o aplicam aos homens, principalmente os poetas cômicos, gradualmente foi perdendo seu sentido de desaprovação, e aqui é simplesmente usado como urr, sinônimo de ter bastante, ficar completamente saciado. Cf. Mt 14.20; 15.33,37; Mc 6.42; 7.27; 8.4,8; Lc 6.21: 9.17; 15.16; 16.21; Jo 6.26, Fp 4.12; Tg2.16.
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dos pelo Espírito Santo. Portanto, aqueles cujos pecados são perdoados oferecem sacrifício de ações de graças.268 A Quinta Bem-Aventurança A quinta, a sexta e a sétima bem-aventuranças descrevem os frutos da obra que Deus, por meio de seu Espírito, realiza no coração de seus fdhos. Elas estão, pois, estreitamente conectadas com o que imediatamente antecede. Aqueles que, de acordo com a quarta bem-aventurança, foram "cheios" ou "plenamente saciados" em resultado da misericórdia de Deus revelada em seu favor, por sua vez exercem agora misericórdia para com outrem (quinta bem-aventurança). Aqueles que experimentaram a influência purificadora do Espírito Santo se tornaram puros de coração (sexta bem-aventurança). E, naturalmente, essas mesmas pessoas, uma vez salvas pelo Príncipe da Paz, são agora transformadas em pacificadores (sétima bem-aventurança). Como foi indicado anteriormente, é impossível comprovar que misericordiosos, puros de coração e pacificadores representem uma seqüência que segue para um clímax ou que sejam a manifestação de um desenvolvimento gradualmente ascendente, passo a passo, na vida do crente. Não deixa de ser concebível de que a relação é como segue: os que vieram a ser misericordiosos estão conscientes do fato de que sua misericórdia ainda se acha misturada com o pecado, e assim buscam com todas as suas forças a pureza de coração. É também possível que o pacificador seja mencionado em seguida segundo a regra declarada por Tiago, ou seja, que "a sabedoria que é lá do alto é primeiramente pura; depois pacífica..." (3.17). Contudo, como A. 2,,a
Outros definem a justiça aqui referida de forma diferenciada; por exemplo, como "a revelação do direito real de Deus, que põe fim a todo poder, injustiça e mentira e vindica o oprimido" (H. N. Ridderbos, op. cit., Vol. 1, p. 90). Creio que a afirmação de Lenski a respeito é correta: ""Justiça', aqui, não pode significar o poder do direito no mundo dos homens, geralmente nos assuntos humanos; porque o passivo 'serão saciados' denota um dom de Deus dado a certas pessoas às quais ele faz 'justas' aos seus olhos" (op. cit., p. 184). Por outro lado, por razões que já indiquei, não concordo com Lenski em limitar essa justiça tão exclusivamente à (justiça) por imputação. 384
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5.17
Plummer declarou, seguido por A.T. Robertson, a ordem na qual Tiago menciona estas duas provavelmente seja mais lógica que cronológica.269 Portanto, visto que a razão para a seqüência em que as bem-aventuranças quinta à sétima são apresentadas não é clara, serão simplesmente consideradas como resultados paralelos à graça redentora de Deus. Então, em primeiro lugar, a quinta bem-aventurança: 7. Bem-aventurados os misericordiosos, porque receberão misericórdia. Misericórdia é amor demonstrado em favor de quem vive em desgraça, e um espírito perdoador para com o pecador. Ela abrange tanto um sentimento de bondade quanto um ato bondoso. Vemo-la exemplificada na parábola do bom samaritano (Lc 10), e especialmente em Cristo, o misericordioso Sumo Sacerdote (Hb 2.17). Embora seja falta de realismo negar que, devido à disposição amorosa de Deus, há evidências de compaixão e bondade ao nosso redor, lembradas e esquecidas, mesmo no mundo dos não-regenerados (At 28.2), a misericórdia de que fala esta bemaventurança nasce "da experiência pessoal com a misericórdia de Deus" (Lenski). Como tal, ela é uma virtude peculiarmente cristã, que vale também para as demais características mencionadas nas bem-aventuranças. Todas elas indicam qualidades dos cidadãos do reino do céu. A esse respeito não se deve esquecer que, enquanto os romanos falavam de quatro virtudes cardeais — sabedoria, justiça, temperança e coragem —, a misericórdia não figurava entre elas. E para obter-se um ponto de vista equilibrado de como aparece esta graça no mundo, é justo confrontar At 28.2 com Pv 12.10: "mas o coração dos perversos é cruel." É digno de nota que as Escrituras repetidas vezes exortam os crentes a demonstrarem misericórdia, movidos por gratidão, para que eles mesmos sejam tratados com misericórdia. Um notável exemplo é a parábola do servo incompassivo (Mt 18.2325). Ver também Mt 25.31-46; Rm 15.7,25-27; 2Co 1.3,4; Ef 4.32; 5.1; Cl 3.12-14. Essa misericórdia deve ser exercida em favor daqueles que pertencem à "família da fé", porém não deve m
A.T. Robertson. Studies in the Epistle of James, Nova York, 1915, p. 185.
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limitar-se a eles (Gl 6.10). Na verdade ele deve ser exercida em prol de "todos os homens", não excluindo nem mesmo aqueles que odeiam e perseguem os crentes (Mt 5.44-48). Percebe-se imediatamente que, se o que está implícito na quinta bemaventurança fosse posto em prática com maior zelo e consistência, a pregação do evangelho seria muito mais eficaz! Que bênção para a humanidade isso seria! "Porque misericórdia lhes será concedida." Aqueles — e tão-somente aqueles! — que exercem misericórdia podem esperar receber do Senhor misericórdia como recompensa, como pode comprovar-se não só de algumas das passagens mencionadas no parágrafo anterior, como também de 2Sm 22.26; Mt 6.14,15; e Tg 2.13. Quando essa semente de ouro é semeada, efetua-se uma colheita muitíssimo abundante (Mt 7.2; Lc 6.38). A Sexta Bem-Aventurança 8. Bem-aventurados os de coração puro, porque eles verão a Deus. Tem-se afirmado amiúde que os puros de coração são as pessoas sinceras e honestas, os homens que possuem integridade. Um passeio pelo SI 24.3,4 parece confirmar isto: "Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração; Que não entrega sua alma à falsidade Nem jura dolosamente." A pureza de coração é também enaltecida no SI 73.1. Semelhantemente, em lTm 1.5, puro é sinônimo de sincero. E examinem-se também 2Tm 2.22 e IPe 1.22. Tudo isso poderia conduzir-nos facilmente à conclusão de que as pessoas que são designadas como bem-aventuradas na sexta bem-aventurança são, sem nenhuma outra qualidade, os indivíduos sinceros os homens que pensam, falam e agem sem hipocrisia. Ora, não pode haver dúvidas sobre o fato de que a sinceridade, a honestidade, a condição de ser isento de dolo é certamente a ênfase aqui. Por contraste com toda duplicidade humana, seja ela farisaica ou de outra espécie, Jesus pronuncia sua 386
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bênção sobre as pessoas cuja manifestação exterior está em harmonia com a sua disposição interior. Não obstante, um estudo do contexto em cada uma das referências precedentes torna claro que é mister acrescentar-se algo. A sinceridade ou integridade não é suficiente em e por si mesma. Um homem pode estar sinceramente certo, como também pode estar sinceramente errado. Sem dúvida que os profetas de Baal eram realmente sinceros quando desde manhã até ao meio-dia saltavam sobre o altar, retalhando-se com facas e clamando sem cessar: "Ah! Baal, responde-nos!" (lRs 18.26-28). Porém, eram sinceros na direção errada. Assim também, numa passagem que é citada com freqüência na explicação da sexta bem-aventurança (Gn 20.6), o próprio Senhor testifica que Abimeleque, na integridade de seu coração, defraudara Abraão, levando Sara. Não obstante, o Senhor não aprovou o que o rei fizera e o ameaçou de morte caso não devolvesse Sara ao seu legítimo marido (v.7). De forma semelhante, os "puros de coração" do SI 73.1 são aqueles que com toda sinceridade são guiados "pelo conselho de Deus" (v.24). A fé não fingida de lTm 1.5 adere à "sã doutrina" (v. 10). E as pessoas a quem Pedro faz referência (IPe 1.22) são aquelas que purificam suas almas "na obediência à verdade". Portanto, é evidente que a bênção da sexta bem-aventurança não é pronunciada indiscriminadamente sobre todos quantos são sinceros, mas, antes, sobre aqueles que, em sua adoração ao Deus verdadeiro, em consonância com a verdade revelada em sua Palavra, se empenham sem hipocrisia para agradá-lo e glorificálo. Estes — e somente estes! — são "os puros de coração". Eles adoram a Deus "em espírito e em verdade" (Jo 4.24), e amam meditar e praticar as virtudes mencionadas em ICo 13; G1 5.22,23; Ef 4.32; 5.1; Fp 2.1-4; 4.8,9; Cl 3.1-17; etc. Seu coração, a própria fonte principal das disposições tanto quanto dos sentimentos epensamentos (Mt 15.19; 22.37; Ef 1.18; 3.17; Fp 1.7; lTm 1.5), é uma só melodia com o coração de Deus. Daí não ser realmente surpreendente lermos que os puros de coração "verão a Deus", e que isso constitui a essência de 387
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sua bem-aventurança. O homem cujo deleite não repousa verdadeiramente nas coisas pertencentes a Deus não é capaz de apreciar o amor de Deus em Cristo para com os pecadores. A semelhança é o pré-requisito indispensável da comunhão e compreensão pessoais. Para que alguém conheça a Deus é preciso que seja semelhante a ele. Assim como para o caçador desprovido de qualquer conhecimento e apreciação pela música, a voz do vento que soa através da floresta nada significava além da possibilidade de a lebre sair de sua toca e tornar-se uma vítima fácil, enquanto para o seu companheiro Mozart o mesmo som profundo significava uma nota majestosa do grande órgão de Deus, assim também, para o impuro, Deus permanece sendo desconhecido, mas para quem é "imitador de Deus como filho amado e anda em amor", ele se revela a si mesmo. Ora, a beleza desta visão de Deus, esta percepção espiritual de seu ser e de seus atributos, e o deleitar-se neles, é que produzem transformação (2Co 3.18). Entretanto, aqui na terra é ainda um "ver como em espelho, obscuramente", porém no céu e no universo renovado, em que as condições do céu serão encontradas também na terra (Ap 21.10), de sorte que "a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar" (Is 11.9), essa visão beatífica equivalerá à comunhão sem pecado e ininterrupta das almas de todos os redimidos com Deus em Cristo, um contemplar "face a face" (ICo 13.12). Quando em justiça por fim Teu rosto glorioso puder ver, Quando toda a noite atroz tiver passado E me vir acordado ao teu lado, Para ver a glória permanente, Então, só então, estarei satisfeito. (F. F. Bullard, baseado no SI 17.15) Assim se cumprirá a oração de Jesus: "Pai, a minha vontade é que onde eu estou estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo" (Jo 17.24). 388
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A Sétima Bem-Aventurança 9. Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Aqui é impetrada uma bênção sobre todos aqueles que, tendo recebido para si mesmos a reconciliação com Deus por meio da cruz, agora procuram, por meio de sua mensagem e conduta, ser instrumentos para comunicar este mesmo dom aos outros. Por meio da palavra e do exemplo, estes pacificadores, que amam a Deus, amam uns aos outros e até mesmo aos seus inimigos, também promovem a paz entre os homens. Num mundo onde a paz é rompida, esta bem-aventurança revela que o Cristianismo é uma força "relevante", vital e dinâmica. A "igreja" é incessantemente caluniada no sentido de que sua influência nesta direção é lamentavelmente insignificante. Se ao empregar a palavra "igreja" a referência é a uma instituição na qual nada prevalece senão uma ortodoxia morta, a acusação pode ser procedente. Por outro lado, se a referência é ao "exército de Cristo", ou seja, a soma total de todos os genuínos soldados cristãos, homens e mulheres redimidos oriundos de todas as gerações, religiões e raças que pelejam a batalha do Senhor contra o mal em prol da justiça e da verdade, a resposta é, na forma de uma contra-pergunta: "Sem a influência deste poderoso exército, as condições do mundo atual não seriam muitíssimo piores? Não é a igreja o próprio salva-vidas no qual o mundo permanece flutuando?" (Gn 18.26,28-32). Pacificadores genuínos são todos aqueles cujo líder é o Deus de paz (ICo 14.33; Ef 6.15; lTs 5.23), que aspiram a viver em paz com todos os homens (Rm 12.18; Hb 12.14), proclamam o evangelho da paz (Ef 6.15) e modelam suas vidas em harmonia com o Príncipe da Paz (Ec 19.10; Jo 13.12-15; cf. Mt 10.8). Entretanto, o evangelho da paz é, ao mesmo tempo, a pregação do Cristo Crucificado (ICo 1.18). O homem, por natureza, querendo estabelecer sua própria justiça, não se sente disposto a aceitar este evangelho (ICo 1.23). Por isso, sua proclamação provoca uma guerra em seu coração. Se pela graça de 389
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Deus o pecador, finalmente, se entrega e recebe o Príncipe da Paz como seu Salvador e Senhor pessoal, então ele talvez tenha de enfrentar outra batalha, ou seja, dentro de sua própria família. É por essa razão que Jesus, ao qualificar os pacificadores de bem-aventurados, não caiu em contradição quando disse: "Não penseis que vim trazer paz à terra. Eu não vim trazer paz, e, sim, espada... os inimigos do homem serão os de sua própria casa" (Mt 10.34-36). Entretanto, esta situação não é por culpa de Cristo, e, sim, do homem. E Deus em Cristo quem prossegue insistindo com o homem a encontrar nele a reconciliação e a paz duradoura ( M t l 1.27-30; 2Co 5.20). Além do mais, esta não é uma paz a qualquer preço. Ela não é produzida por meio de comprometer a verdade sob o disfarce do "amor"(?). Ao contrário disso, ela é uma paz preciosíssima para o coração de todos aqueles que falam a verdade em amor (Ef 4.15). Aqueles que, pela palavra e pelo exemplo, são promotores desta paz são também designados como bem-aventurados. O seu título é "filhos de Deus", uma designação de elevada honra e dignidade, revelando com isso que, por meio de sua promoção da paz, penetraram na própria esfera de atividade de seu próprio Pai. São seus cooperadores. Por meio de sua atitude confiante e de muitas boas obras, realizadas em decorrência da gratidão e para a glória de Deus, se transformaram em agentes de seu Senhor, e por toda parte estão comprometidos na tarefa de erradicar o mal dos corações humanos, enchendo-os de tudo aquilo que é bom e nobre (Rm 12.21; Fp 4.8,9). Eles são, por assim dizer, "o Corpo de Paz" do próprio Deus. Já são filhos de Deus (1 Jo 3.1). No dia do juízo sua gloriosa adoção como filhos será publicamente revelada (Rm 8.23; 1 Jo 3.2). A Oitava Bem-Aventurança 10. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Quando a fé dos filhos de Deus se desenvolve suficientemente a ponto de se manifestar exteriormente, de modo que aqueles que não participam com 390
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eles da mesma experiência começam a notar, então o resultado é a perseguição. A perseguição a que Jesus faz referência não emana de causas puramente sociais, raciais, econômicas ou políticas, antes se acha radicada na religião. É uma perseguição distintamente motivada "pela justiça". Em virtude de os homens referidos desejarem estar em harmonia com Deus e viver em sintonia com a santa vontade de Deus é que perseveram na perseguição e se mantêm firmes sem se importarem com o que venha a lhes acontecer.270 Não há necessidade de mudar a definição do termo "justiça" aqui, pois é a mesma justiça do v.6. Os ímpios não podem tolerar os que aos olhos de Deus são considerados "justos". O seu próprio caráter é um constante protesto contra o caráter de seus opositores. É por essa razão que o "mundo" odeia os filhos de Deus (Mt 10.22; 24.9; Jo 15.19; Uo 3.12,13). Esse ódio é que motiva a perseguição de que fala 5.10. O Senhor assegura que esses perseguidos são bem-aventurados. Lendo constantemente esta bem-aventurança, tendo-a, provavelmente, memorizado desde a infância (em qualquer idioma), já nos acostumamos a ela tanto que não sentimos mais o seu impacto original. A impressão que ela causou nas pessoas que ora ouviam a Jesus deve ter sido tremenda, pois era idéia bastante comum entre os judeus que todo sofrimento, inclusive a perseguição (ver Lc 13.1-5), fosse uma indicação do desagrado de Deus e da especial maldade daquele que era assim afligido. Cristo, aqui, inverte esse ponto de vista, mas somente com referência àqueles que suportam perseguição por causa da justiça (v. 10), por causa de Cristo mesmo ("por minha causa", v. 11) e por causa do reino dos céus (19.12). Poderíamos acrescentar que a relevância desta bemaventurança não é perdida tampouco por aqueles que hoje, enquanto este comentário está sendo escrito ou lido, estão sendo perseguidos em virtude de sua lealdade a Cristo. Que jamais nos esqueçamos deles em nossas orações e de outras formas pelas quais poderiam ser beneficiados por nós! "Deles é o reino 270
O original diz ôeSicwynévoi, par. perf. pas.: eles têm-se sustentado sob perseguição.
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dos céus", diz Jesus, voltando assim a impetrar a bênção encontrada no final da primeira bem-aventurança (v.3). Toda a graça e toda a glória que resplandecem quando Deus em Cristo é reconhecido e é obedecido como Soberano é deles, mesmo agora, e será deles numa medida sempre crescente. 11,12. Bem-aventurados são vocês quando alguém, por minha causa, os insultar e os perseguir e disser falsamente toda espécie de males contra vocês. Regozijem-se, sim, enchem-se de alegria incontida, porque a sua recompensa é grande nos céus, porque da mesma forma eles perseguiram os profetas que viveram antes do tempo de vocês. Note-se a mudança da terceira para a segunda pessoa, que começa aqui e prossegue (seja com vocês ou com você) permeando a maior parte do sermão. Não obstante, em substância este é o seguimento da oitava bem-aventurança. Aos que sofrem abusos em virtude de sua fé permanente em Jesus não só são denominados bem-aventurados, mas também é dito que se regozijem, sim, não só se regozijem, mas também se enchem (ou: saltam de) alegria irrefreável (exuberante). O imperativo que acrescenta: "regozijem-se" foi bem traduzido pela A.V.: "estejam excessivamente alegres"; pela Phillips: "estejam tremendamente alegres"; e pela Williams: "conservemse... saltando em êxtase." Esse é o tipo de exultação com que, segundo o discurso de Pedro no Pentecostes, Davi reagiu ante o fato de que o Senhor estava continuamente à sua direita (At 2.26); com que o carcereiro convertido e toda a sua casa louvaram a Deus (At 16.34); com que Abraão recebeu a notícia de que iria ver o dia de Cristo (Jo 8.56); com que Pedro, contemplando a graça e a glória de Jesus Cristo agora invisível, descrevia a seus leitores, que compartilharam com ele dessa contemplação, como aqueles que "se alegram com uma alegria inefável e gloriosa" (IPe 1.8); e com que a grande multidão celestialmente triunfante responderá um dia à vinda do Esposo para levar consigo a sua esposa: "Alegremo-nos, exultemos, e demoslhe a glória, porque são chegadas as bodas do Cordeiro, cuja esposa a si mesma já se ataviou" (Ap 19.7). 392
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A perseguição referida toma várias formas: a. Opróbrio: acumulando insultos sobre os crentes; por exemplo: "Você é nascido todo em pecado, e nos ensina a nós?" (Jo 9.34). Certamente, aqueles que não hesitaram em dirigir-se assim a Jesus: "Porventura não temos razão em dizer que és samaritano e tens demônio?" (Jo 8.48) não hesitariam em lançar injúrias contra os discípulos dele (cf. 15.20). b. Calúnia', "e disser falsamente toda espécie de males contra vocês." "...injuriarem vocês e rejeitarem o seu nome como indigno..." (Lc 6.22). Com referência àqueles que ficaram profundamente impressionados com as palavras de Jesus e tiveram a coragem de o admitir, os fariseus iriam dizer: "Quanto a esta plebe que nada sabe da lei, é maldita" (Jo 7.49). Semelhantemente, pouco depois, durante as primeiras perseguições da igreja, os cristãos iriam ser qualificados de ateus pela razão de não adorarem um deus visível; de imorais pela razão de serem forçados a reunir-se com freqüência em lugares secretos; e de antipatriotas pela razão de confessarem sua lealdade a Cristo como seu Rei e de se recusarem a adorar ao imperador. c. Perseguição ativa. Ainda que ela não seja mencionada aqui, ver a exposição de 10.16-36. Razões por que os que são perseguidos por causa de Cristo são instados a regozijar-se grandemente: a. Porque esta perseguição indica o genuíno caráter de sua fé: "Porque da mesma forma eles perseguiram os profetas que viveram antes do tempo de vocês." Cf. Lc 21.13; IPe 4.13. Justino o Mártir, em seu Diálogo com Trifon, acusa os judeus de terem serrado Isaías no meio com uma serra de madeira. É possível que haja uma referência a esse respeito em Hb 11.37.271 Jeremias foi submetido repetidas vezes amaus-tratos (ver Jr 12; 20;26; 36; 37; 43). Se a tradição merece confiança, por fim ele foi apedrejado até à morte pelo povo que o forçara a descer com ele ao Egito.272 Ezequias saiu-se pouco melhor (ver Ez 2.6; 20.49; 271
272
Ver lambem TB Yebamoth 49b; Sanhedrin 103b; Tertuliano, Da Paciência 14: "Isaías é serrado ao meio, e não cessa de falar do Senhor." Tertuliano, Antidote for the Scorpion s Sting 8.
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33.31,32). A Amós foi dito que fugisse e proclamasse suas profecias em outro lugar (Am 7.10-13). Os labores de Zacarias não foram apreciados pelo o seu real valor (Zc 11.12). Essa rejeição dos profetas pelos judeus era a regra, não a exceção. Isso pode ser deduzido não somente das palavras de Jesus aqui em 5.12, mas também de suas palavras como registradas por Mateus em 23.31,37; Lc 6.23; 11.49-51; 13.33,34; Jo 12.36-43 (cf. Is 53.1).273 E não eram profetas também homens tais como Moisés, Samuel, Elias e Eliseu? E tinham sido tratados de forma diferente dos mencionados supra? b. Porque o caráter cristão é purificado e amadurecido pelo sofrimento (Rm 5.3,5; Tg 1.3,4; livro de Jó). c. Porque a perseguição é seguida de grande recompensa no céu; não se trata de um salário grangeado pelos méritos humanos, mas, sim, de uma recompensa graciosa. Esta recompensa é proporcional, embora seja muito maior que o sacrifício (Rm 8.18; 2Co 4.17,18). Quando Jesus pronunciou as palavras dos vv. 11,12, ele quis dizer de forma bastante clara que o seu próprio ensino não era uma contradição dos anúncios proféticos, senão que esse ensino estava em plena sintonia com aqueles anúncios. Ele não viera destruí-los ou anulá-los; ele viera dar-lhes cumprimento (5.17). Sal e Luz O caráter e a bem-aventurança dos cidadãos do reino foram descritos nas bem-aventuranças. A bem-aventurança final era de caráter transicional. Ela descreveu a atitude do mundo para com os crentes no Senhor Jesus Cristo. Os "dois emblemas" agora introduzidos — sal e luz — descrevem o inverso, ou seja, a influência do reino sobre o mundo, a resposta dos seguidores de Cristo àqueles que os perseguem. Por meio destes dois emblemas ou metáforas revela-se a importante verdade de que essas pessoas a quem o mundo — inclusive o mundo 271
Cf. At 7.52; e ver C. C. Torrey, Legendary Lives of the Prophets, Filadélfia, 1946; e It. J. Schoeps, "Die jüdischen Prophetenmorde", Aus frühchristlicher Zeit (Tübingen, 1950), pp. 126 ss.
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aparentemente piedoso dos escribas e fariseus — mais odeia são precisamente aquelas a quem o mundo mais deve. Os cidadãos do reino, não importa quão desprezados sejam e quão insignificantes pareçam ser, tão-somente eles, não os escribas e fariseus, são o sal da terra e a luz do mundo. As palavras de 5.13-16 revelam quão diferentes do mundo são os crentes, e não obstante quão relacionados com o mundo estão eles. O mundanismo ou a secularizaçâo é aqui condenada, porém a indiferença e o isolacionismo são igualmente condenados. O sal é uma bênção enquanto permanece sendo verdadeiramente sal; a luz, enquanto permanece sendo realmente luz. Entretanto, o sal precisa ser espalhado sobre, ou, melhor ainda, precisa ser friccionado na carne. A luz precisa ser deixada livre para brilhar na escuridão. Não se deve encobri-la. No tocante ao sal, Jesus diz: 13. Vocês são o sal da terra. Ainda que o sal tenha muitas características — brancura, sabor, aroma, poder preservativo, etc. —, talvez seja especialmente esta última qualidade — o poder do sal como antisséptico, substância que serve como preventivo para retardar a deterioração — sobre o que se põe a ênfase aqui, ainda que a função subsidiária de comunicar sabor não deva obviamente ser excluída (ver Lc 2.13; Jó 6.6; Cl 4.6). O sal, pois, tem especialmente uma função negativa. Ele combate a deterioração. De forma semelhante, os cristãos, mostrando ser cristãos verdadeiros, estão constantemente combatendo a corrupção moral e espiritual. Quão amiúde não acontece que um crente se coloca de repente entre indivíduos profanos, e o chiste indecoroso é refreado, com o qual alguém estava prestes a divertir seus companheiros, ficando sem efeito o plano perverso? E certamente notório que o mundo é ímpio. Todavia, só Deus sabe quão mais corrupto seria ele sem o exemplo, a vida e as orações dos santos que refreiam a sua corrupção (Gn 18.26-32; 2Rs 12.2). O sal age secretamente. Sabemos que ele combate a deterioração, embora não possamos vê-lo realizar tal tarefa. Contudo, sua influência é muito real. 395
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Prossegue: porém, se o sal tornar-se insípido, o que fazer para que salgue novamente? Então já não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisoteado pelos homens. O sal dos charcos e lagoas ou das rochas nas imediações do Mar Morto facilmente adquire um sabor insosso ou alcalino, em virtude de sua mistura com gipsita, etc.274 Então, ele é literalmente "bom para nada", a não ser para ser jogado fora e pisoteado (cf. Ez 47.11). Enquanto Jesus caminhava pela terra, via muitos fariseus e escribas, homens que advogavam uma religião formal e legalística em lugar da religião verdadeiramente proclamada pelos 274
Esta observação um tanto comum é apresentada por muitos, entre os quais estão: Hauek, artigo ãXaç, Th. D.N.T., Vol. I. pp. 228,229; e A. Sizoo. que declara: "E razoável crer que o sal era também obtido do Mar Morto. Porém, este sal era de qualidade inferior e mais sujeito a decompor-se do que o sal do Mar Mediterrâneo". De Antieke Wereld en Hei Nieuwe Testamenl, Kampen, 1948, p. 28. Ver também o artigo Sa/í, W.D.B., p. 525. Entretanto, outros garantem que, visto que o cloreto de sódio puro não se deteriora, a passagem (Mt 5.13) contém uma óbvia inexatidão. Tal era o argumento de certo professor de química numa reunião de um clube científico à qual o autor assistiu faz vários anos. Outros, embora não estejam dispostos a reconhecer uma inexatidão, pensam que Jesus está usando intencionalmente "'uma figura de algo impossível na natureza" (Lenski, op. cif., p. 194, ao que acrescenta: "Imagine o sal fazendo-se insípido!"). J. Schniewind, Das Evangelium nach Matthãus (Das Neue Testament Deutsch, Vol.II), Gotinga, 1960, p. 51, é da mesma opinião. E.W. Grosheide se inclina para este ponto de vista (op. cit., p. 51). Com todo respeito me ponho em desacordo com eles. Minhas razões são as seguintes: a. Não só é verdade que gramaticalmente o modificativo "se o sal tornar-se insípido" não é uma condição contrária aos fatos, mas que também difere muito de formulações como "Que homem há entre vós..." (Mt 7.9), em que fica imediatamente clara a idéia implícita: "Tal homem não existe." b. A conclusão: "Então não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens" certamente soa como se tivesse isso sucedido em casos como esse. Além disso, nesta última expressão, ou seja, "pisoteado pelos homens", a figura subjacente se refere certamente ao sal. Dificilmente pode referirse diretamente a pessoas. c. Como já foi demonstrado (ver artigos em Th. D.N.T., etc., aos quais já se fez referência), a deterioração do "'sal" a que se faz referência aqui é um fato bem comprovado. Certamente que "o sal puro continua sendo sal", porém a referência é ao sal que perde o seu sabor por um processo de adulteração, contaminação ou infiltração: o sal se torna insípido em razão das substâncias estranhas que se agregaram a ele.
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antigos profetas no nome do Senhor. Assim, de uma maneira geral, o sal havia perdido seu sabor na vida religiosa de Israel. Muitos "filhos do reino" seriam lançados fora (Mt 8.12). A implicação é evidente. Assim como o sal que perde o seu sabor não pode ser restaurado, tampouco aqueles que foram treinados no conhecimento da verdade, contudo se puseram decididamente contra as exortações do Espírito Santo e se tornaram empedernidos em sua posição, são renovados para arrependimento (Mt 12.32; Hb 6.4-6). Portanto, aquilo a que se denomina sal, que seja realmente sal! Existem tantas pessoas que jamais leram a Bíblia, contudo estão nos lendo constantemente! Se a nossa conduta não corresponde ao nosso chamamento, então nossas palavras serão de pouquíssimo valor. Já vimos que, em primeiro plano, o sal tem uma função de negação e age secretamente. A luz, por outro lado, tem uma função positiva e brilha aberta e publicamente. Portanto, as duas metáforas se complementam. No tocante à luz, Jesus diz: 14a. Vocês são a luz do mundo. A luz, nas Escrituras, indica o verdadeiro conhecimento de Deus (SI 36.9; cf. Mt 6.22,23); a bondade, a justiça e a veracidade (Ef 5.8,9); deleite e alegria, verdadeira felicidade (SI 97.11; Is 9.1-7; cf. 60.19). Ela simboliza o que há de melhor no campo da sabedoria, do amor e do riso, em contraste com as trevas, ou seja, o que há de pior no campo da ignorância, da depravação e do desespero. Quando a luz é mencionada, às vezes enfatiza-se uma qualidade — por exemplo, o conhecimento revelado; em outros casos põe-se a ênfase em alguma outra qualidade, dependendo do contexto em cada caso. Em certos casos, o significado da palavra "luz" pode ainda ser mais amplo do que alguma das suas qualidades individuais poderia indicar. Pode ser suficientemente ampla para incluir todas as bênçãos da "salvação" (cf. SI 27.1; Lc 1.77-79). Talvez seja esse também o caso aqui em 5.14. A afirmação: "Vocês são a luz do mundo" provavelmente signifique que os cidadãos do reino não só foram abençoados com essas dádivas, mas são também o meio usado por Deus 397
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para transmitir as mesmas aos homens que os cercam. Os possuidores da luz se transformam em transmissores da luz. Os crentes, coletivamente, são "a luz". Individualmente, são "luzes" (luminárias, estrelas, Fp 2.15). E possível que ambas as idéias tenham sido incluídas nessas palavras ditas por Jesus, embora a ênfase esteja no coletivo. Entretanto, os cristãos jamais são luz em si e por si mesmos. Eles são luz "no Senhor" (Ef 5.8). E Cristo que é a "luz do mundo", verdadeira e original (Jo 8.12; 9.5; 12.35,36,46; 2Co 4.6; cf. SI 27.1; 36.9; 43.3; Is 49.6; 60.1; Lc 1.78,79; 2.32). Os crentes são "a luz do mundo" num sentido secundário ou derivado. Jesus é "a luz que ilumina" (Jo 1.9); os crentes são "a luz refletida". Jesus é o sol; os crentes são semelhantes à lua, que reflete a luz do sol. Sem Cristo eles não podem brilhar. A lâmpada elétrica não pode emitir luz por si mesma. Ela comunica luz somente quando é conectada e ligada à corrente elétrica, de modo que esta corrente gerada na central elétrica lhe transmita a energia. Assim também no tocante aos seguidores de Cristo, quando permanecem em vivo contato com a luz original, para que sejam luz para os outros (cf. Jo 15.4,5). Ora, visto que o dever da igreja é brilhar por Jesus, então ela não deve deixar que seja desviada de seu curso. Não é tarefa da igreja se especializar em emitir todos os tipos de pronunciamentos referentes a problemas econômicos, políticos e sociais. "A grande esperança para a sociedade hodierna está em que haja um número crescente de cristãos individuais. Que a igreja de Deus se concentre nessa tarefa e não desperdice seu tempo e sua energia em questões que estão fora de sua alçada."275 Isso não significa que é sempre condenável um pronunciamento eclesiástico sobre o posicionamento do evangelho no tocante a este ou aquele problema que não é especialmente teológico. Pode haver situações em que um testemunho público iluminador seja aconselhável e até mesmo necessário, pois o evangelho precisa 27:1
D. M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, publicado em português pela Editora Fiel.
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ser proclamado "em toda a sua plenitude" e não estreitamente limitado à salvação das almas. Porém, o dever primário da igreja permanece sendo o de difundir a mensagem de salvação, para que os perdidos possam ser encontrados (Lc 15.4; ICo 9.16,22; 10.33), os encontrados possam ser fortalecidos na fé (Ef 4.15; lTs 3.11-13; IPe 2.2; 2Pe 3.18) e Deus venha a ser glorificado (Jo 17.4; ICo 10.31). Os que. por meio do exemplo, da mensagem e das orações dos crentes, se converteram, demonstrarão o genuíno caráter de sua fé e amor ao exercerem sua influência para o bem em todas as esferas. E prossegue: 14b-16. Uma cidade situada sobre uma colina não pode ficar escondida. Tampouco os homens acendem uma lâmpada e a colocam debaixo do cesto de medida, e, sim, no candelabro, e assim ilumina a todos os que se acham na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem a seu Pai que está no céu. Em conexão com o símbolo da luz, duas idéias são combinadas aqui: os seguidores de Cristo devem ser visíveis e radiantes. Eles devem estar "na luz", e devem também emitir raios de luz. A primeira idéia sugere uma cidade situada sobre uma colina. Tal cidade, com seus muros e fortalezas, "não pode ficar oculta". Ela permanece claramente visível a todo mundo. A segunda idéia é gerada pela figura da lâmpada posta no candelabro. Essa lâmpada "fornece luz"; ela "brilha". As lâmpadas daquele tempo podem ser vistas hoje em qualquer grande museu e em muitas coleções particulares. O autor neste momento está olhando para um desses objetos de terracota em forma de pires. Este tem uns quatorze centímetros de comprimento, dez de largura e uns quatro de altura. Numa extremidade tem uma asa; noutra tem uma extensão em forma de bocal com orifício para pavio. Na parte superior da lâmpada há dois orifícios, um para o óleo e o outro para o ar. Portanto, o que Jesus está dizendo é o seguinte: ninguém seria tão tolo que acendesse uma dessas lâmpadas — evidentemente com o propósito de iluminar todo o ambiente — e em 399
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seguida a cobrisse com um cesto de medida.276 Qualquer pessoa inteligente poria esta lâmpada acesa sobre um candelabro. O candelabro era geralmente um objeto muito simples. Podia ser uma saliência que se estendia de uma coluna no centro do aposento (a coluna que sustentava a viga transversal do teto plano), ou uma simples pedra que se projetava da parede, ou uma peça de metal visivelmente colocada e usada de forma similar. A idéia é que a lâmpada, já acesa e colocada num lugar de destaque, fornecia luz a "todos os que se encontram na casa". Isso se torna compreensível à medida que se lembre que as casas dos pobres, as pessoas mesmas a quem Jesus se dirigia (Lc 6.20), tinham apenas um aposento. Ora, à semelhança do papel que uma lâmpada exerce numa casa, o seguidor de Cristo deve igualmente exercer no mundo. Uma lâmpada acesa deve ter a oportunidade de iluminar com seus raios. Os seguidores de Jesus, igualmente, devem "deixar sua luz brilhar" a fim de que os homens possam ver sua conduta e suas "boas obras". É precisamente sobre essas obras, consideradas como produto da fé (ver a exposição do v.17), que o Senhor põe ênfase, porquanto "as ações falam mais alto que as palavras". Não é de forma alguma necessário, nem mesmo aconselhável, neste contexto, fazer separação entre as obras feitas em obediência à primeira tábua da lei e as realizadas em consonância com a segunda. No ensino de Jesus estas duas vão juntas, embora seja verdade que a primeira é básica (Mt 22.34-40; Mc 12.30,31; Lc 10.25-28). Quando essas excelentes obras, qualquer que seja sua natureza, são feitas em gratidão pela salvação obtida pela graça por meio da fé, então elas se tornam agradáveis a Deus. Isso é verdadeiro se elas consistem em se apoiar em Deus em oração (Mt 6.6; cf. Is 64.7) e confiar nele (Mt 6.2434) ou em socorrer aqueles que se acham necessitados (Mt 25.3440) e em amar ainda que seja os próprios inimigos (Mt 5.44). 276
Grego póStoç, do latim modius, uma medida de capacidade = 16 sectarii, cerca de 8.75 litros ou quase exatamente a medida inglesa chamada peck.
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É inevitável que algumas dessas boas obras sejam vistas pelos homens. Até mesmo os incrédulos pararão para ouvir, de vez em quando, os cânticos de louvor cantados pelos filhos de Deus. Pessoas mundanas observarão a serena confiança em Deus manifestada pelos crentes em tempos de provação e ansiedade. As vezes, expressarão admiração ante a maneira como os cristãos não medem sacrifícios, correndo risco de grave perigo e até mesmo enfrentando a morte com o fim de prestar socorro aos enfermos e moribundos. Tertuliano (cerca do ano 200 d.C.) escreveu: "Porém, são principalmente os atos de um amor tão nobre que levam muitos a porem uma marca sobre nós. "Vede', dizem eles, 'como eles [os cristãos] amam uns aos outros', porque eles mesmos [os não-cristãos] estão estimulados por um ódio recíproco; 'vede como eles estão prontos até mesmo a morrerem uns pelos outros', pois eles mesmos prefeririam antes a morte" {Apologia XXXIX). E bom que essas boas obras sejam vistas pelos homens. Isso é exatamente o que Jesus quer. Corretamente considerado, é isso mesmo o que desejam todos aqueles que as praticam, porém não com o fim de grangearem honra para si mesmos, no sentido de 6.1,5,16. Ao contrário, diz Jesus: "... e glorifiquem a seu Pai que está no céu." Portanto, o fim, e até certo ponto também o resultado, de tais obras serem vistas é que os homens, sob a influência do Espírito de Deus, renderão a Deus a reverência que lhe é devida, por haver acendido a luz que ora brilha nas vidas dos homens (Is 24.15; 25.3; SI 22.23; cf. ICo 10.31).277 Uma palavra deve ser adicionada acerca desta frase que, nos Evangelhos, aparece aqui pela primeira vez: "seu Pai que está no céu" (literalmente "nos céus"). Um autor altamente respeitado escreve: "E verdade que, mesmo no Antigo Testamento, Deus é às vezes referido como Pai, mas não para expressar o relacionamento pessoal entre Deus e o crente individualmente, e, sim, como uma indicação do relacionamento entre Deus e o povo do concerto, Israel; comparar, por exemplo, Is 63.16."27S 277 278
Para o conceito glória, ver C.N.T. sobre Filipenses, nota 43. H.N. Ridderbos, op. cit., Voi. I, p. 100.
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Não consigo ver a procedência dessa aiirmação. Mesmo no Antigo Testamento Deus é reconhecido como o Pai não apenas da nação (além de Is 63.16, ver igualmente 64.8; Ml 1.1,6; e cf. Nm 11.12), mas ainda dos crentes individualmente, envolvendo-os em seu terno abraço e cuidando deles: "Pai dos órfãos e juiz das viúvas, é Deus em sua santa morada" (SI 68.5). "Ele me invocará, dizendo: Tu és meu Pai, meu Deus, e a rocha da minha salvação. Conservar-lhe-ei para sempre a minha graça e firme com ele, a minha aliança" (SI 89.26,28). Mesmo sendo verdade que no SI 103.13 Deus não é diretamente chamado de "Pai", todavia a idéia de sua paternidade em relação a indivíduos é claramente implícita: "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem." file é para com eles mais precioso que qualquer pai terreno: "Porque se meu pai e minha mãe me desampararem, o Senhor me acolherá" (SI 27.10). Ver também 2Sm 7.14,15 (cf. lCr 28.6). Jesus, pois, edifica sobre esse fundamento do Antigo Testamento — não foi o seu próprio Espírito quem inspirou esse livro? —, e nos Evangelhos faz que o termo se aplique a Deus, e surja com toda a sua ternura ("Pai") e majestade ("que está no céu"). Ver mais sobre Mt 6.9. Todos aqueles — sejam eles de origem judaica ou gentílica — que receberam Jesus como seu Senhor e Salvador, ao dirigir-se a Deus, têm o privilégio de dizer: "Pai nosso que estás no céu." A Justiça do Reino O elevado padrão de vida requerido pelo Rei é agora apresentado. Primeiramente, nos é mostrado que Esta justiça está em plena harmonia com os princípios morais enunciados no Antigo Testamento Jesus, agora mesmo, esteve admoestando seus ouvintes a deixarem sua luz resplandecer por meio da prática de boas obras para a glória do Pai celestial. Ora, tais obras são aquelas que estão em harmonia com a santa lei de Deus. Os escribas e fariseus gozavam da reputação de serem os guardiães da lei. Todavia, 402
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Jesus estava para denunciá-los como hipócritas (5.20; 6.1,2,5,16; ver mais 15.1-9; 16.1-4; 22.15-22; capítulo 23). Significa, pois, que ele veio minar a autoridade da lei e dos profetas que reafirmavam a lei? Ele responde: 17. Não pensem que vim para pôr de lado a lei ou os profetas. Não vim para repudiar, e, sim, para cumprir. Os oponentes de Cristo já tinham começado a considerá-lo um revolucionário destrutivo, um iconoclasta que queria romper todos os laços com o passado (Jo 5.18). Essa atitude para com Jesus jamais os deixou, antes cresceu neles (Mt 26.59-61). Ver At 21.21 para uma atitude semelhante em relação a Paulo. Os oponentes estavam equivocados. Os escribas e fariseus exigiam boas obras? Jesus igualmente (5.16). Tinham eles Moisés em alta consideração? Também Jesus (8.4; Mc 7.10; Lc 16.31; 24.27,44; Jo 5.46). A justiça por ele proclamada não era nenhuma novidade. Estava ela em completa harmonia com aquela enunciada no Antigo Testamento; ou seja, "a lei e os profetas" (cf. Lc 16.16).279 Entretanto, aqui em 5.17, com o fim de enfatizar cada um deles em seu próprio direito, o termo empregado é "a lei ou os profetas", o Pentateuco ou o restante do Antigo Testamento. Jesus, pois, ao começar a expor "a justiça do reino", logo em seguida rejeita a acusação de seus inimigos de que ele é um proclamador de novidades, e demonstra que seu ministério não estava em conflito com o Antigo Testamento, senão que estava em harmonia com ele; de fato, sem ele o Antigo Testamento era incompleto, sem cumprimento. Pedro, também, no Pentecostes, interpretou as coisas estranhas que então ocorriam ao seu redor 279
Outro termo para "Antigo Testamento" é "a lei de Moisés e os profetas e os Salmos" (Lc 24.44); ainda outro: "Moisés e os Profetas" (Lc 16.29,31; 24.27). O mais breve dc todos, como uma designação de todo o Antigo Testamento, é "a lei" (ver o próximo versículo, ou seja, Mt 5.18: cf. Jo 12.34). Semelhante a esta é "vossa lei", que em Jo 10.34, embora tenha muita abrangência como as designações precedentes, refere-se diretamente ao SI 82.6. Em ICo 14.21 "a lei" se refere a Is 28.11.12. E em Rm 3.19 a referência é a uma série inteira de citações dos salmos e dos profetas. Esses fatos comprovam que a expressão "a lei" é usada às vezes onde nós diríamos "o Antigo Testamento".
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como um cumprimento da profecia (At 2). E Paulo, igualmente, liga o novo ao velho, deixando em evidência que sua doutrina da justificação pela graça por meio da fé não era algo completamente novo, mas que estava firmemente radicado no ensino do Antigo Testamento (Rm 3.21; cap. 4; 7.7s.; caps. 9 a 11; G1 3.622:4.21-31; etc.). Calvino, comentando Mt 5.17, faz esta aplicação: "Se intentamos reorganizar assuntos que se acham num estado de desordem, devemos nos revestir de uma prudência e moderação tal que convença o povo de que não estamos nos opondo à eterna Palavra de Deus, ou introduzindo qualquer novidade que seja contrária às Escrituras. Devemos tomar cuidado para que nenhuma suspeita de tal conflito prejudique a fé dos piedosos, e para que os precipitados não sejam ainda mais encorajados por uma pretensão de novidade." Realmente, a honra que Cristo concede "à lei ou aos profetas" era muito mais elevada do que aquela concedida pelos escribas e fariseus. Eles sepultavam os oráculos divinos sob uma grande carga de tradições e consideravam que a prática da lei era o único caminho para se obter a salvação. Portanto, na realidade eram eles quem estavam pondo de lado o Antigo Testamento. Com Jesus o caso era inteiramente diferente. Quando exige boas obras (5.16), ele dirige essa exortação àqueles que previamente foram declarados "bem-aventurados" (Mt 5.2-12; Lc 6.20-23). Segundo as bem-aventuranças, essas pessoas, convictas de sua pobreza espiritual, tendo confessado, em pranto, os seus pecados, receberam de Deus a justiça por imputação e comunicação. Nesse contexto, "boas obras" são obras de gratidão pela salvação já recebida. Assim, em princípio, a lei estava sendo cumprida, e assim era igualmente os profetas, em quem as exigências da lei eram confirmadas. Portanto, é claro que era Jesus — e não o oponente — quem tinha o direito de afirmar: "Eu não vim desfazer, e, sim, cumprir." Seu alvo era que na vida de seus verdadeiros seguidores o requisito espiritual do Antigo Testamento recebesse o que lhe era devido, ou seja, que 404
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nessas vidas a taça das exigências da lei (e portanto também dos profetas) ficasse plenamente cheia até a borda. Entretanto, para este autor, a explicação oferecida até aqui parece não satisfazer completamente o significado da passagem em apreço. E-me difícil crer que ao dizer "Eu não vim desfazer, e. sim. cumprir" Jesus estivesse pensando somente no cumprimento em seus seguidores. Antes, parece que a referência era ao cumprimento da lei "em sua própria experiência e, cada vez mais, na experiência de seus seguidores" (C.R. Erdman, op. cit., p. 48). Notar, também "em sua própria experiência". Isso mantém a passagem em harmonia com os outros ditos nos quais Jesus se apresenta como o cumprimento do Antigo Testamento; não somente com as palavras pronunciadas muito mais tarde (Mt 26.56; Lc 18.31; 24.25-27,44), como também, e especialmente, com aquelas que pertencem ao mesmo ano em que esse sermão foi pronunciado. É difícil imaginar-se que aquele que tão recentemente se revelara à mulher de Samaria como a realização da esperança da humanidade (Jo 4.25,26,42), e que logo depois se apresentaria a João Batista e ao povo de Nazaré como o cumprimento da profecia (Mt 11.1 -6 e Lc 4.16-30), nesse sermão seria capaz de falar em cumprimento do Antigo Testamento sem pensar em qualquer concretização na sua própria pessoa. Ora, se o cumprimento devia ser em relação a ele próprio também, então devia ser com respeito ao seu ensino somente, apresentando o verdadeiro significado da lei e revelado a si mesmo como cumprimento dos tipos e predições do Antigo Testamento, de modo que ele se destacaria como o principal profeta! (Dt 18.15,18). Ou com respeito aos seus sofrimentos e morte vicários somente, por meio dos quais por meio de sua obediência ativa e passiva satisfaria as exigências da lei como compassivo Sumo Sacerdote de seu povo? (SI 40.6,7; Jr 23.6). Ou exclusivamente com respeito ao seu governo real, por meio do qual libertaria seu povo do poder do inimigo e governaria sobre eles como rei eterno! (Gn 49.10; 2Sm 7.12,13; SI 72). 405
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Porém, por que não todas as três coisas? O Antigo Testamento mesmo não abre o caminho para uma mais plena interpretação do conceito "cumprimento messiânico" quando, ao descrever a vinda do Redentor, nem sempre se restringe ao exercício de sua função a um só ofício? Ver SI 110.4; Is 53; Zc 6.13. Conclusão: em tudo o que ele era e viria a fazer, viera não para desfazer ou anular o Antigo Testamento, e, sim, para cumpri-lo. O contexto não requer — talvez não seja errôneo dizer "nem mesmo permite" — qualquer restrição ao significado dessa majestosa declaração (5.17). Além disso, a passagem mesma, por meio de sua conjunção disjuntiva "ou" ("a lei ou os profetas" em vez de "a lei e os profetas") enfatiza a amplitude do sentido, fazendo com que a mente demore um pouco mais nas duas partes distintas, e provavelmente indicando que Jesus não viera suprimir as exigências da lei nem invalidar as palavras, inclusive as predições dos profetas. Ele viera cumprir ambas as coisas. "Eu vim", disse Jesus. Isso indica que ele estava plenamente consciente dessa missão messiânica e, em estrita conexão com ela, de sua preexistência. Portanto, a doutrina da preexistência não é exclusiva de João (1.1-14; 3.17; 5.36,43; 6.38; 8.58; 16.28; 18.37) e de Paulo (2Co 8.9; G14.4,5; Ef 4.9,10; Fp 2.5ss; etc.). Ainda que não de forma tão profusa, é também ensinada claramente nos Sinóticos (Mt 5.17; Lc 12.49; 19.10). Tendo por base a explicação dada do v. 17, o que segue é mais fácil de se entender: 18. Porque solenemente lhes declaro: até que o céu e a terra desapareçam, não desaparecerá da lei, nem mesmo a menor das letras, nem sequer uma vírgula sem que tudo (o que ela exige) se cumpra. Uma tradução estritamente literal, que faria pouco sentido ao leitor não familiarizado com o hebraico e o grego, seria: "Porque amém eu vos digo, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou uma keraia de forma alguma passará da lei até que tudo venha a ser." No tocante ao "amém", em hebraico ele se refere, em geral, às idéias de verdade e fidelidade. Em sua forma simples (:Qal), o verbo significa ser fiel, seguro. Na forma reflexiva sim406
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pies (Niph 'ai): ser feito firme; ser confirmado, estabelecido. Em sua forma causal (Hiph 'il): estar firme, considerar como digno de confiança, crer. Isso ocorre em declarações que afirmam ou confirmam uma verdade solene. No Antigo Testamento, o amém simples é encontrado em Dt 27.15,16-26; lRs 1.36; lCr 16.36; Ne 5.13; SI 106.48; e Jr 28.6. O amém duplo é encontrado em Nm 5.22; Ne 8.6; SI 41.13, 72.19 e 89.52. No Novo Testamento, a palavra amém, como advérbio acusativo, combina as idéias de veracidade e solenidade. A tradução "verdadeiramente" = "em verdade", que em geral aparece em nossas versões (em português, por exemplo), não é de todo ruim, porém é hoje considerada algo ultrapassado. Em cada uma das versões [em português] o leitor deve examinar por si mesmo se todas elas oferecem a plenitude de significado, seja "verdadeiramente", "em verdade", ou a forma dupla "em verdade, em verdade". Em todo caso — que o leitor examine isso por si mesmo com o uso de uma concordância — em que essa palavra ocorre no Novo Testamento, ela introduz uma declaração que não só expressa uma verdade ou fato — como, por exemplo, 2x2=4 seria um fato —, mas um fato solene, importante, que em muitos casos está em discrepância com a opinião ou esperança popular, ou, pelo menos, causa alguma surpresa. E por essa razão que pessoalmente prefiro a tradução "Eu solenemente declaro"280 em vez de "verdadeiramente ("em verdade") eu digo". Não nos é esclarecido por que é que João, em seu Evangelho, sempre usa o amém duplo (grego: "amém, amém" — "em verdade, em verdade", em português), porém nos Sinóticos sempre o amém simples. Alguns sugerem que o amém duplo de João reproduz literalmente o que Jesus, falando aramaico, dizia, e que Mateus, Marcos e Lucas, expressando o equivalente grego, consideravam que o amém simples era tudo de que precisavam para reproduzir a solenidade das palavras de Cristo. Uma vez que o que Cristo queria dizer é plenamente expresso — e assim foi em cada caso! —, isso não faz uma diferença substancial. 2811
Cf. Williams: "Eu solenemente vos digo."
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Assim, em conexão com o versículo imediatamente precedente, no qual Jesus disse que não viera para desfazer a lei ou os profetas, e, sim, cumpri-los, ele agora, contradizendo abruptamente o que seus oponentes deviam estar pensando ou dizendo sobre sua atitude, reafirma sua completa lealdade aos oráculos sagrados. Enquanto o universo, em sua forma atual, não tiver desaparecido (SI 102.25,26; Is 34.4; 51.6; Mt 24.35; Rm 8.21; Hb 1.12; 2Pe 3.7,10-13; Ap 6.14; 21.1-3),281 nem mesmo a menor parte do Antigo Testamento que requeira cumprimento deixará de cumprir-se. Cada tipo será substituído pelo seu antítipo. Cada predição será confirmada. A exigência da lei será plenamente satisfeita. Nem mesmo um iota ("jota") ou uma keraia ("til") desaparecerá da lei, ou seja, do Antigo Testamento, até que sua missão haja se concretizado. O Antigo Testamento foi originalmente escrito em letras hebraicas, a menor das quais sendo a yodh, que soava como o "i". Em grego ela era representada por uma letra igualmente muito pequena naquela língua, a iota. A keraia é um prolongamento muito pequeno, um ínfimo sinal recurvo que distingue uma letra hebraica de outra. Assim, a segunda letra do alfabeto hebraico, chamada Beth, e [que em português] corresponde ao "b" tem uma leve extensão no canto inferior à direita, para distingui-la da letra kaph, que corresponde ao "c" em português. Beth é escrito 3, e kaph é D. O significado, pois, é que nem mesmo no menor aspecto o Antigo Testamento deixará de se cumprir. E como se disséssemos que, com respeito ao seu cumprimento, nem um "t" ficará sem o traço nem um "i" sem o ponto. Enquanto Jesus falava, algumas partes do Antigo Testamento já tinham se cumprido; por exemplo, a encarnação. Outras partes estavam se cumprindo. Ainda outras iriam cumprirse logo, ou seja, a crucificação e a ressurreição; ou iriam cum281
O céu e a terra não "deixarão de existir'', mas serão gloriosamente transformados. Ver a obra do autor A Vida Futura Segundo a Bíblia, Editora Cultura Cristã, São Paulo, SP.
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prir-se mais tarde, na ascensão, no Pentecostes e após o Pentecostes, e. finalmente, na segunda vinda de Cristo em glória. "A lei", como um livro escrito, não mais se fará necessária no novo céu e na nova terra. De fato, a Bíblia escrita — Antigo e Novo Testamentos — se tornará supérflua. Entretanto, enquanto esse tempo não chega, nada faltará até que tudo se cumpra. O programa de Deus com referência a Cristo, à igreja, ao homem em geral e ao universo será plenamente executado (Is 40.8). E evidente que nosso Senhor tinha a lei em alta conta. Por isso, não nos surpreende que ele prossiga: 19. Portanto, quem quer que anule um dos menores destes mandamentos e assim os ensine aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; porém, quem quer que os pratique e os ensine, será chamado grande no reino dos céus. Embora tudo isso seja de graça e nada é ganho pelos cidadãos do reino, não obstante seu posto ou posição nesse reino dependerá do respeito pela santa lei de Deus e será proporcional a isso. Nem todo mandamento dessa lei é de igual significância. Os rabinos dividiam a lei em 613 mandamentos. Consideravam que 248 eram de caráter positivo e 365, negativo. Mantinham longos debates acerca de mandamentos mais pesados e mais leves. Alguns rabinos consideravam Dt 22.6 ("Se de caminho encontrares algum ninho de ave, nalguma árvore, ou no chão, com passarinhos, ou ovos, e a mãe sobre os passarinhos ou sobre os ovos, não tomarás a mãe com os filhotes") como o "mais leve" (menos importante) de todos eles.282 No tocante ao mais pesado ou maior de todos os mandamentos, a pergunta sobre a sua identidade foi respondida por um escriba (Lc 10.27). Que Jesus concordou com ele é fácil de se ver pela sua própria resposta (Lc 10.28; cf. Mt 22.34-40; Mc 12.28-34). Ora, embora seja indubitavelmente verdade que o ensino de Cristo com referência à lei longe estava do árido legalismo rabugento e trivial e da torturante escrupulosidade dos rabinos, todavia ele também considerava algumas exigências de maior importância do que outras. Isso é evidente não só no v. 19, cita282
Ver S. BK. I, p. 249.
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do acima, e no que ele disse sobre o maior mandamento, mas também é deduzido de sua declaração sobre "as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade" (Mt 23.23). Não obstante, ele insiste em que todo mandamento do que é verdadeiramente a lei moral de Deus — a mesma lei que ele considerará com maior detalhe em 5.2lss — deve ser guardado. Nada deve ser anulado ou cancelado. Seja quem for, não importa quão excelente seja ele noutros aspectos, aquele que voluntariamente desconsidere mesmo que seja o menor mandamento e ensine outros a imitar o seu exemplo, será o menor "no reino dos céus" (ver pp. 348-350); ao passo que, por outro lado, todo aquele que pratica e ensina esses mandamentos (como interpretados por Cristo) "será chamado" — significando que será de fato e de verdade (cf. 1 Jo 3.1) — grande nesse reino. Como as Escrituras o confirmam, esse princípio é válido com respeito ao reinado de Cristo tanto na terra (cf. Mt 18.1 -4) como no céu. E verdade agora e se aplicará também no dia do juízo, e depois. A salvação não é somente pela graça e por meio da fé; é também segundo as obras. Sobre esta última consideração, ver mais Ec 12.14; Mt 25.3 5 -45; Rm 2.16; 2Co 5.10; Ap 20.12,13. Em grau de fidelidade, os filhos de Deus diferem mesmo aqui. Portanto, em grau de glória eles diferirão entre si no céu e no tempo da ressurreição (ICo 15.41,42). Segue-se do v.19 que guardar a lei e ensiná-la a outros na forma como deve ser ensinada é muito importante. Isto é também demonstrado no v.20, onde a conjunção introdutória "porque" indica que aquilo que os ouvintes de Cristo estavam para ouvir era uma confirmação e uma elucidação ulterior do que se acabava de dizer. Entretanto, embora haja uma conexão entre os vv.19 e 20, também há uma transição neste ponto para um novo tema, ainda que estreitamente relacionado. Jesus já tinha mostrado que a justiça do reino está em plena consonância com os princípios morais enunciados no Antigo Testamento. Agora ele mostrará que 410
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Esta justiça não está em consonância com a interpretação e aplicação correntes e tradicionais da santa lei de Deus Então disse Jesus: 20. Porque eu digo a vocês que, a não ser que a sua justiça exceda à dos escribas e fariseus, certamente vocês jamais entrarão no reino dos céus. Notar a introdução enfática: "Porque eu digo a vocês." Jesus está para fazer uma afirmação muito importante acerca da repreensível justiça dos escribas e fariseus, em contraste com outra justiça, aquela na qual Deus se deleita. Imediatamente após fazer essa afirmação, ele passa a expressar-se de forma muito específica. Ele passa a mostrar a interpretação dos rabinos de "Não matarás" e o que isso realmente significa; em seguida, "Não cometerás adultério" como foi explicado pelos antigos, cuja explicação foi adotada pelos escribas e fariseus, e qual era a sua intenção original e sua aplicação correta. Assim ele continuará a contrastar a falsa e a verdadeira interpretação da lei, considerando um a um o juramento, a retaliação [vingança] e o amor para com o próximo. Essa consideração irá até ao final do capítulo 5. Porém, até mesmo uma boa parte dos capítulos 6 e 7 refletirá o indicado contraste. Conseqüentemente, a afirmação feita no v.20 é certamente básica para o que se segue. A justiça requerida por Jesus é nada menos que a completa conformidade com a santa lei de Deus (cf. Mt 22.34-48, especialmente o v.48) em tudo quanto uma pessoa é e faz. Tal justiça significa que o coração, não só os feitos externos, está certo, sim, certo como o próprio Deus santo o vê. Além disso, a justiça é dada por Deus, aqui, só em princípio; no porvir, será dada em perfeição. Ao contrário, os escribas e fariseus aceitavam uma justiça que consistia num cumprimento externo, e criam, ou fingiam crer, que por meio de um esforço enérgico poderiam atingir seu alvo, e que de fato estavam em vias de sua realização. E natural que Jesus reúna, num só grupo uma profissão (os escribas) e uma seita (os fariseus). Os escribas eram os exposi411
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tores e mestres do Antigo Testamento. Os fariseus eram aqueles que tudo faziam para que todos cressem que eles eram obedeciam aos seus ensinos. Resumidamente, os dois tipos de justiça, acentuadamente contrastados nos Evangelhos, podem ser descritos como segue, sendo anexada à descrição a evidência que a corrobora em cada caso: a. A justiça dos escribas e fariseus não consegue satisfazer o coração. E formal, exterior e superficial. Ela não alcança a perfeição. Aquela recomendada por Jesus satisfaz o coração. Ela é genuína, interior e profundamente arraigada. E completa. "Vocês são aqueles que se justificam diante dos homens, porém Deus conhece os seus corações" (Lc 16.15). "Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas! porque limpam o exterior do corpo e do prato, porém por dentro estão cheios de extorsão e intemperança" (Mt 23.25). b. A justiça dos escribas e fariseus não consegue satisfazer a mente. Ela está baseada num raciocínio que é enganoso, enganador e meramente "engenhoso", e procede de uma mente que não tem descanso. Aquela recomendada por Jesus satisfaz a mente. Ela está em harmonia com um raciocínio que é honesto, confiável e sadio, e procede de uma mente que encontrou, ou está em processo de encontrar, descanso. "Venham a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados e eu lhe darei descanso" (Mt 11.28). Notar o raciocínio sadio do "filho pródigo" depois que caiu em si (Lc 15.17-19). Um exemplo de raciocínio ilusório é encontrado em Mt 15.3-5. Jesus comenta: "Vocês anularam a palavra de Deus por causa de sua tradição" (15.6). c. A justiça dos escribas e fariseus é de autoria própria. Esses homens eram "justos aos próprios olhos". Aquela recomendada por Jesus é dada por Deus. "Bem-aventurados os famintos e sedentos por justiça, porque eles serão plenamente saciados" (Mt 5.6). "Propôs também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os ou412
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tros: Dois homens subiram ao templo com o propósito cie orar: um fariseu e o outro publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: O Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens... O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: O Deus, sê propício a mim, pecador!" (Lc 18.9-14, em parte). d. A justiça dos escribas e fariseus glorifica o ego. Ela é ostentosa e orgulhosa. Aquela recomendada por Jesus glorifica a Deus. Ela é despretenciosa e humilde. Isso também se faz evidente na passagem supra-citada (Lc 18.9-14). Ela é também provada pelo que se segue: "E assim brilhe a sua luz diante dos homens... para que glorifiquem a seu Pai que está no céu" (Mt 5.16). "Guardem-se de exercer a sua justiça diante dos homens, com o fim de serem vistos por eles; doutra sorte não terão galardão junto de seu Pai celeste. Quando, pois, você der esmola, não toque trombeta diante de si, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens..." (Mt 6.1,2, em parte). Tendo, pois, estabelecido o princípio fundamental (v.20, em certo sentido, vv. 17-20), essa verdade básica será agora aplicada a diversos mandamentos. Seis vezes Jesus irá pôr seu próprio pronunciamento autoritativo em contraste com o ensino dos escribas e fariseus, e, remontando para antes deles, em contraste com as más interpretações dos sábios dc outrora. Seis vezes ele irá dizer: "Foi dito... eu, porém, vos digo" (5.21,27,31,33,38 e 43). Podemos qualificar essas expressões de As Seis Antíteses. Primeira Antítese: O sexto mandamento — homicídio Tornar-se-á evidente que Jesus afia o gume de todo preceito. Ele faz isso indicando e condenando a má disposição do coração que jaz na raiz da transgressão, e pondo logo em contraste o mandamento positivo. Isso fica aparente de imediato, à luz de sua interpretação do sexto mandamento. A introdução é a seguinte: 21. Vocês ouviram o que foi dito pelos homens de 413
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outrora: Não matarás, e qualquer que mata merece ser punido (com a morte). A fórmula "Vocês ouviram o que foi dito" apresenta uma dificuldade, visto que a frase que vem em seguida, considerada por si mesma, pode ser traduzida ÍLaos homens de outrora" ("aos antigos") ou Apelos homens de outrora". Muitos tradutores e comentaristas preferem a, enquanto outros preferem por.283 De acordo com o primeiro ponto de vista, Jesus queria dizer que Moisés dissera algo na lei aos antepassados, e que agora Jesus "assume um tom de superioridade sobre as regulamentações mosaicas" (A.T. Robertson, Word Picíures, Vol. I, p. 44). J. Jeremias, em um artigo ao qual nos referimos na nota de rodapé 250, expressa o mesmo ponto de vista numa linguagem ainda mais forte quando afirma que "Jesus estabelece uma nova lei divina quando à palavra das Escrituras ele impõe o seu "Eu, porém, vos digo". De acordo com o segundo ponto de vista, Jesus queria dizer que os homens de outrora, ou seja, os expositores da lei, os rabinos, apresentaram uma interpretação com a qual ele está em desacordo ou que é perigosamente incompleta, ainda que os escribas e fariseus de seu tempo estivessem de acordo com ela (como se acha claramente sugerido no v.20). Razões para rejeitar-se a primeira interpretação ("a") e aceitar-se a segunda ("por"): a. Seria muito estranho que Jesus, tendo há pouco afirmado em termos bastante enfáticos que não viera para pôr de lado a lei ou os profetas, agora, de repente, se pusesse a fazer precisamente o que não viera fazer. b. Se Jesus estivesse se referindo ao que Moisés ordenara na lei, ele teria usado uma linguagem diferente; por exemplo, "Moisés ordenou" (Mt 8.4), ou "está escrito" (Mt 4.4,7,10; Lc 2.23; 4.4). 283
"Pelos dos tempos antigos'' (A.V.; semelhantemente também F.W. Grosheide, op. cit. p. 57; H. N. Ridderbos, op. cit„ Vol.I, pp. 107,108; e D.M. Lloyd-Jones, op. cit, pp. 211,212). 414
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c. Em escritos judaicos posteriores, rabinos famosos tais como Hillel e Shammai eram chamados "pais da antigüidade".284 A designação "os homens de outrora" é, por conseguinte, uma excelente designação para aqueles que tinham oralmente interpretado os escritos do Antigo Testamento. d. A expressão "foi dito", embora seja possível usá-la como referência a algo escrito, é associada mais facilmente com o ensino e tradição orais do que com o que está escrito num documento. e. E claro que quando Jesus diz: "Vocês ouviram... eu, porém, lhes digo" (5.22,28,32,34,39,44), ele está estabelecendo um contraste entre duas posições que são fortemente opostas entre si. Este contraste é ainda mais claro quando as duas locuções que se opõem são "Foi dito pelos homens... eu, porém, vos digo", significando: "Eles disseram... eu, porém, lhes digo", do que se fosse: "Foi dito aos homens... eu, porém, lhes digo", significando: "Eles ouviram... eu, porém, lhes digo." Os intérpretes antigos, pois, ao citarem o sexto mandamento, tinham dito: "Não matarás." O que havia de errado nisso? Não foi precisamente isso o que Deus escrevera em tábuas de pedra? (Êx 20.13; Dt 5.17). E acrescentaram: "Qualquer um que mata merece ser castigado (com a morte)." E o que havia de errado nisso? E verdade que estritamente falando essa foi uma adição de sua própria autoria. Ninguém encontra isso em Êx 20.13 nem em Dt 5.17, mas a substância dessa adição ou interpretação é sem dúvida encontrada em Gn 9.6: "Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu...". Desse versículo também se depreende que o castigo ao qual os homens de outrora se referiam era a pena capital.285 Portanto, superficialmente pode parecer que não há falha alguma na forma como os homens de outrora interpretaram o 284
285
Ver, por exemplo, Mishna, Eduyoth 1.4. Ver B. Pick, The Talmud, What It Is, New York, 1887, p. 23. Assim também em Josefo, Antigüidades 1.102, "Exorto-vos... a conservar-vos puros de homicídios, punindo àqueles que praticam tal crime"; significando: visto que a referência é novamente a Gn 9.6, deve ser "punindo com a morte".
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sexto mandamento. No presente caso, o que estava errado não era o que eles tinham dito, e, sim, o que eles deixaram de dizer, ou, pelo menos, deixaram de enfatizar. Isso se aplicava também aos escribas e fariseus dos dias de Jesus, porque, como já foi expresso, eles endossavam a tradição dos antigos. Em conseqüência, eles também não estavam dando um sumário completo da lei com relação ao homicídio. Sua interpretação, ainda que correta até onde ia, estava longe de seu propósito. Ela era lamentavelmente inadequada. Imagine-se um ministro do evangelho, hoje, que pregue sobre esse mandamento e limite suas exortações a uma advertência para que se tenha o máximo cuidado no uso das armas de fogo, dos porretes ou dos automóveis. Poderia ainda advertir contra o tráfico de drogas. Mas se não apontar para a causa espiritual que produz o homicídio, e não advertir contra ela, não terá errado o alvo? É a lei de Deus nada mais que um código penal? Esta única lição, isto é, que uma pessoa não pode esperar uma bebida saudável de uma fonte contaminada, sumaria o que Jesus ensina no v. 22. Eu, porém, lhes digo que qualquer um que se ire contra seu irmão merece ser punido (com a morte). E quem quer que diga a seu irmão: Estúpido! merece ser condenado (à morte) pela suprema corte. E quem quer que diga: Idiota! merece ser lançado no inferno de fogo. Notese o enfático e plenamente pronunciado EU (ego) exatamente no início de cada uma das declarações nas quais Jesus contradiz a interpretação tradicional (ver os vv.22,28,32,34,39 e 44). Aqui, no v.22, é como se Jesus dissesse: Principiis obsta, ou seja, "resiste aos inícios". O início do ato externo do homicídio é a ira pecaminosa, o ódio. Cf. Tg 4.1. Uma atitude tão rude e má para com um irmão é realmente pecado contra o sexto mandamento, diz Jesus, e merece ser castigado (com a morte). Quando nesse espírito de desdém e grande desgosto alguém diz ao seu irmão: "Raca" — provavelmente em aramaico e signifique "estúpido" (ou "cabeça oca") — é digno de ser condenado à morte pela suprema corte (judaica, o Sinédrio). Semelhantemente, quando, no mesmo estado de mente e coração, ele diz: "Idiota!" (ou, 416
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"retardado mental", "tolo"), merece a morte. Além disso, que o Senhor não está pensando apenas na morte física, mas igualmente na morte eterna faz-se evidente das palavras "ele merece ser lançado no inferno (gehenna) de fogo". Ver mais sobre Gehenna na exposição de 10.28. Se esta explicação da passagem é aceita, então tudo se torna muito simples. Jesus está ensinando apenas uma lição, e uma lição muito importante. Ele está dizendo que a ira pecaminosa — do tipo que leva a dizer palavras amargas — é em sua própria natureza homicídio. E homicídio praticado no coração. A menos que se arrependa, a pessoa com essa espécie de atitude já enfrenta o castigo eterno no inferno. Seja o que for que possa parecer aos olhos humanos, aos olhos de Deus já está condenada, e está de caminho para a morte que jamais finda. Assim, enquanto os escribas e fariseus punham a ênfase no ato exterior, como se isso fosse a única coisa repreensível, Jesus liga o ato à má disposição do coração, que está por detrás disso. Entretanto, há ainda outra interpretação. Em parte, resume-se assim: Jesus está afirmando que um homem, por estar irado com o seu irmão, deve ser sentenciado por "uma corte local"; ao fazer algo pior, ou seja, movido pela ira chamar seu irmão de estúpido, ou disser que ele é um traste inútil, deve ser punido pela suprema corte; e, pior ainda, chamá-lo de idiota, então merece a penalidade máxima — a perdição eterna.286 Objeções: a. Que os rabinos podiam lançar mão de distinções sutis entre o grau de culpa implícito em chamar um homem de estúpido e aquele implícito em chamá-lo de idiota é até compreensím
' F. W. Grosheide, op. cit., p. 58, diz que Jesus está apresentando uma gradação no pecado, c que um insensato (cf. Mcopé) é pior que aquele que de nada vale (cf. ' P a r á ) . Semelhantemente, C.R. Erdman diz que "Jesus sugere três expressões desse mal e intima, para cada uma, uma crescente severidade no castigo" (op. cit., p. 49). A. Plummer, op. cit., p. 79, faz uma sugestão semelhante: "ódio não expresso, rancor expresso e abuso expresso", mas não está inteiramente satisfeito com isso. e diz: "Possivelmente Cristo esteja ironicamente imitando as distinções casuísticas feitas pelos rabinos...". Calvino também, comentando 5.22, diz que Cristo determina três graus de condenação.
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vel; mas que Jesus mesmo recorresse a algo dessa natureza soa muito estranho. Isso é inteiramente inverossímil num discurso no qual ele critica severamente as interpretações dos homens de outrora e de seus seguidores. b. O ponto de vista de que o termo grego, krisis, aqui no v.22, ou nos vv.21 e 22, signifique "corte local",287 provavelmente seja errôneo. Tal definição tem contra si não só a objeção mencionada na alínea c., mas também o fato de que, à parte de 5.21,22, em nenhum dos mais de quarenta exemplos de seu uso, amplamente distribuído ao longo do Novo Testamento, pode ter esse significado. Amiúde indica decisão, julgamento, veredito. As vezes equivale a uma decisão contra, daí condenação, castigo. Ver C.N.T. sobre João 3.17-19. c. É difícil entender como estar irado contra um irmão, sem revelar esta ira em palavras e atos, pudesse levar um homem a ter problemas com um "tribunal local". d. Esta teoria dos "três graus de pecado e castigo" obscurece o fato de que não só aqui, em seu ensino sobre o homicídio, mas também no que se depreende do restante do capítulo, Jesus está enfatizando uma lição central, ou seja, que a raiz dos males está no coração, onde o amor deve substituir o ódio e a indiferença, a sinceridade deve substituir a hipocrisia e o egoísmo. Não há desculpa para o fato de que, em sua interpretação do sexto mandamento, os escribas e fariseus dos dias de Jesus, em consonância com os homens de outrora, estavam omitindo a lição principal. "Moisés" havia enfatizado o amor a Deus (Dt 6.5) e aos homens (Lv 19.18). Não só isso, mas a primeira narrativa de uma rixa doméstica, a história de Caim e Abel, ressaltara de uma maneira muito impressionante o mal da ira proveniente do zelo, como sendo a raiz do homicídio (Gn 4.1-16; ver especialmente os vv.6 e 7). A mesma lição fora reenfatizada nos escritos posteriores (Pv 14.17; 22.24; 25.23; Ec 7.9; Jó 5.2; Jn 4.4). Conseqüentemente, ao interpretar o sexto mandamento 287
Uma opinião também favorecida por L.N.T. (A. e G., p. 54).
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na forma como o faz, Jesus, longe de anulá-lo, está mostrando o que queria dizer desde o início. Porém, o que acontece quando, na conduta diária de uma pessoa, esse princípio de amor não recebe a devida atenção? O que deve fazer o homem que não está vivendo em harmonia com o irmão? Esse relacionamento tenso afetaria de alguma forma a sua adoração a Deus? Ou estamos tratando aqui com duas categorias distintas? E uma pergunta muito prática, sem dúvida, não só naquele tempo, mas também nos dias atuais! Com quanta freqüência não ouvimos a desculpa: "Isso (essa ação ou atitude com respeito ao meu próximo, minha família, meu negócio, meu país, etc.) não tem nada que ver com a minha religião"? Jesus, discordando de forma radical, responde: 23,24. Portanto, se quando você levar sua oferta ao altar, você se lembrar que seu irmão tem uma queixa contra você, deixa a sua oferta ali diante do altar, e vá primeiro reconciliar-se com seu irmão; então, volte e apresente a sua oferta. Há aqui uma importante mudança do plural (segunda pessoa) para o singular, uma mudança que aparece nas versões [portuguesas] (de "vós" para "tu") e na tradução dada acima de "vocês" em "Vocês ouviram o que foi dito" e em "Eu, porém, lhes digo", para "você" em "Portanto, quando você levar sua oferta", etc. Quando a mudança é reconhecida, vê-se claramente que Jesus está personalizando muito agora. Ele então se dirige a cada indivíduo em particular. Que cada homem examine o seu próprio coração. A própria palavra "portanto" revela que o que Jesus está prestes a dizer depreende-se diretamente daquilo que acaba de afirmar. E uma aplicação positiva da regra de que o coração deve estar sempre cheio de amor em vez de ira e ódio. Revela também que a atitude de amar a Deus e, portanto, trazer-lhe uma oferta, não combina com a atitude de não amai" ao irmão, e de permanecer inimizado com ele. "Se uma pessoa não ama ao irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê" (1 Jo 4.20b). A ilustração apresentada por Jesus é aquela, segundo o costume dos judeus, de uma pessoa que traz uma oferta ao altar 419
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(cf. Gn 4.3-5; Êx 25.2; Lv 1.2ss; SI 66.13). Naturalmente, se essa pessoa está fazendo isso de maneira apropriada, ela está meditando sobre a bondade de Deus para com ela. Em meio às suas meditações, lhe ocorre o seguinte: "Visto que Deus tem sido tão bondoso para comigo, como deveria tratar o meu irmão?" De repente um pensamento lhe fere a mente: "Meu irmão Jonatas (ou qualquer outro nome) e eu não mais nos falamos. Entre ele e eu há algo de que ele considera como razão justa para acusar-me. O que eu devo fazer a respeito?" Nessa situação, em plena harmonia com o princípio que acaba de enunciar, Jesus diz (por assim dizer): "Não conclua o seu ato de devoção. Deixe a sua oferta no altar, vá imediatamente e visite o homem que se sente ofendido com você. Entre os dois (ôia) que se busque outro relacionamento, completamente diferente e melhor (aXÀ.or|); ou seja, reconcilie-scm com o seu irmão. Então volte e termine de oferecer a sua oferta." Segundo o original, estritamente Jesus está dizendo: "Se... você se lembrar que o seu irmão tem algo contra você..." O que significa esse "algo"? Significaria que, se você souber de alguém que, mesmo no mínimo grau, acha falta com você, você não pode levar essa oferta até que consiga que ele aprove tanto a você mesmo como a todos os seus caminhos? Se essa fosse a verdade, quão poucos seriam os atos de culto e devoção! Não creio que a intenção de Jesus tenha sido algo assim tão pouco prático. Este "algo" deve ser de natureza muito mais importante para ser qualificado de ofensa. A próxima pergunta é: "Deve ser uma queixa justa, ou seja, deve o outro (o ofendido) ter um motivo justo para queixar-se antes de você dedicar-lhe os seus esforços a fim de conseguir a reconciliação?" Lenski pode ser tomado como representante daqueles que respondem no afirmativo (op. cit., p. 214); Ridderbos, daqueles que respondem no negativo (op. cit., Vol. I, p. 110). Minha inclinação é concordar com Ridderbos. Se eu sei que meu irmão ainda pensa que tem o direito de estar insa288
8iaÀ.À,áyr|0i e Siodtóaaopai. 420
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tisfeilo comigo, não deveria esforçar-me em reconciliar-me com ele? E tão fácil encontrar um motivo (uma desculpa?) para não proceder assim! Com relação aos vv.23 e 24, igualmente, Jesus está reenfatizando o verdadeiro significado espiritual do mandamento. Ern diversos lugares, o Antigo Testamento ensina que em certas circunstâncias as oferendas não são aceitáveis a Deus (Gn 4.5; 1 Sm 15.22; Is 1.11; Jr 6.20; Rm 5.22; Mq 6.6 — para mencionar apenas umas poucas passagens). A oferta deriva o seu valor do coração do doador (Mc 12.41-44; Lc 21.1-4; Hb 11.4; cf. Jo 3.16!). A ilustração que se encontra nos vv.23 e 24 significa que a reconciliação pode esperar até que uma pessoa leve uma oferenda ao altar ou entre na igreja? De modo algum. O tempo para reconciliação é sempre agora mesmo. Amanhã poderá ser muito tarde. Isso se faz evidente pelos vv. 25 e 26. Faça as pazes rapidamente com o seu adversário, enquanto você ainda tem oportunidade de tratar com ele, a fim de que o seu adversário não o entregue ao juiz, e o juiz ao carcereiro, e você seja lançado na prisão. Solenemente lhe declaro, jamais sairá desse lugar até que você tenha pago o último centavo. O quadro muda um pouco. Na aplicação anterior do sexto mandamento (vv.23 e 24), o irmão que deve ser apaziguado é descrito como tendo "algo (uma ofensa) contra ti". Aqui (vv.25 e 26) o adversário está planejando iniciar — e de fato já poderia ter iniciado — um processo jurídico.289 Como no caso anterior, aqui tampouco é indicado se o adversário está moralmente no direito (de assim agir). Tampouco é declarado de forma definida a natureza do assunto em disputa, embora o v.26b ("até que pagues o último centavo") poderia indicar uma dívida em dinheiro. Em todo caso, "você", a pessoa a quem Jesus se dirige, deve fazer 2S
'' Para a palavra CCVTÍÔIKOÇ ver também Lc 12.58; 18.3 e IPe 5.8. O conceito se aplica íambém a Satanás (,ló 1,6ss.; Zc 3.1; I Pe 5.8: cf. Rm 8.31). Ver mais informação sobre a palavra em minha tese doutoral: The Meaning of the Preposition ávtí in the New Testament. Seminário de Princeton. 1948. pp. 67-69. 421
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tudo quanto for possível para alcançar uma "boa disposição" (literalmente) com o teu adversário. Você deve tentar fazer as pazes com ele. Você deve fazer toda tentativa para estabelecer os fatos "fora do tribunal", enquanto você ainda tem a chance de se entender com ele; portanto, privativamente, sem envolver os juízes ou o tribunal. A não ser que você faça isso, quando a decisão processual pode ser contra você, o resultado poderá ser que o juiz o entregue ao seu "subordinado" ou assistente, o "oficial" que executa as ordens do juiz. Então você será lançado na prisão e ali ficará até que pague o último centavo,29ü ou seja, dali jamais sairá! E claro que as palavras do Senhor têm um sentido mais profundo. Em última análise, ele está falando não de um juiz terreno, e, sim, celestial; nem de uma prisão terrena, e, sim, do inferno. Que esse é o significado, evidencia-se de uma comparação não só com o v.22b, mas também com 18.30 e 35. É o coração que deve estar correto. E a disposição interior que deve estar dominada pelo amor para com os outros. Essa é a única maneira de cumprir o sexto mandamento. Para resumir, é como se nos vv.25 e 26 Jesus estivesse dizendo: "Não se surpreenda com a urgência de meu mandamento de reconciliar-se com o seu adversário; porque, se você passar desta vida com um coração ainda em desacordo com o seu irmão, condição que ainda não tentou mudar, essa falha testificará contra você no dia do juízo. Além disso, se você morrer com esse espírito de ódio ainda em seu coração, jamais escapará da prisão do inferno." 21,11
O original tem a palavra KoSpávTriç, derivada do latim qiiadrans. Um quadrante é um "quarto" de um "as" ou "assário". Este vale um décimo-sexto de um denário. O denário é o salário médio diário de um trabalhador (Mt 18.28; 20.2,9,13; 22.19). Devido à constante mudança dos valores monetários, é impossível indicar com algum grau de exatidão o equivalente em moedas modernas. Se o denário for avaliado em 16 a 18 centavos de dólar dos Estados Unidos, então o assário equivaleria a um centavo, e o quadrante, a um quarto de centavo. Contudo, não é necessário determinar qual seria o exato equivalente moderno. A lição é: a pessoa que se nega a fazer uma honesta tentativa de reconciliação jamais poderá pagar a sua dívida.
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Pode-se suscitar a seguinte pergunta: "O peso repousa tãosomente sobre mim e de forma alguma sobre a pessoa que se fez meu adversário?" Ou, expressando-o de outra forma: "Admitido que sou o infrator — pelo menos é assim que me vê o meu adversário —, não é o seu dever perdoar?" A resposta é fornecida pelas seguintes passagens: Mt 6.12,14; 18.21-35. Está implícito nestas mesmas passagens que quando já fiz tudo quanto estava ao meu alcance para chegar à reconciliação e o adversário ainda se recusa a ser justo, e a perdoar quando for o caso, a culpa agora repousará somente sobre ele. O sexto mandamento, pois, é uma questão que envolve o coração, não apenas os atos exteriores. E o mesmo se dá com cada mandamento, inclusive o sétimo, como veremos na Segunda Antítese: O sétimo mandamento — adultério 27,28. Vocês ouviram o que foi dito: Não cometa adultério. Eu, porém, lhes digo que todo aquele que olha para uma mulher com o desejo de possuí-la, em seu coração já cometeu adultério com ela. Os homens de outrora, como também os escribas e fariseus dos dias de Jesus, certamente estavam corretos em citar o sétimo mandamento na forma como o faziam. Porém, novamente aqui, como já mostramos ao tratar do sexto mandamento, eles não conseguiam dar uma exposição satisfatória do assunto. Como no caso anterior, não era a lei, e, sim, a exposição dos rabinos que era defeituosa. O sétimo mandamento deveria ter sido explicado à luz do décimo: "Não cobice a mulher do seu próximo" (Ex 20.17; Dt 5.18). Caso tivessem feito isso, teria ficado plenamente claro que é "do coração que vêm as más deliberações, os homicídios, os adultérios, as imoralidades..." (Mt 15.19). Os inimigos de Cristo condenavam os atos exteriores. Pelo menos era isso que enfatizavam. Quando convinha aos seus propósitos, eles podiam ser muitíssimo severos para com aqueles que cometiam um adultério literal ou concreto (Jo 8.1-11). Entretanto, Jesus considera que os maus desejos do coração já constituem adultério, assim como considera que o ódio do coração já é homicício. 423
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Só é necessário acrescentar que o que é dito ao homem casado, também se aplica à mulher casada. A infidelidade no vínculo matrimonial é sempre errada. Naturalmente, isso significa que qualquer tendência que suscite tal infidelidade — por exemplo, a intenção de uma pessoa solteira de romper um matrimônio — é igualmente um pecado contra o sétimo mandamento. Depois de um exame mais detido notamos que nada há de inocente com referência ao homem descrito no v.28. Ele não é alguém que, sem quaisquer más intenções, vê alguém do sexo oposto. Não. Ele está olhando, observando, examinando uma mulher com o fim de291 cobiçá-la,292 para em seguida possuí-la e dominá-la completamente, de usá-la para o seu próprio prazer. A expressão verbal "qualquer que olha", tomada isoladamente, é inteiramente neutra. A forma verbal usada 110 original é muito geral em seu uso. Porém, o que temos aqui no v.28 é um olhar para cobiçar. Não há nada de inocente nisso. É egoísmo. Ver Mt 7.12. Em seu cenário apropriado, o sexo é um maravilhoso dom de Deus. Entretanto, não há desculpas para a luxúria e a vulgaridade. Isso é errôneo sempre e em qualquer lugar, seja para os solteiros ou para os casados. O que, pois, se deve fazer com respeito ao coração e ao olho luxuriosos? A resposta se encontra nos vv. 29 e 30. Portanto, se o seu olho direito o induz a pecar,293 arranque-o e lance-o longe de si. E melhor que você perca um de seus membros do que todo o seu corpo ser lançado no inferno. E se a sua mão direita o induz a pecar, corte-a e lance-a longe 291 292
m
Notar jtpòç xó com infinitivo. Ver o estudo da palavra émOupía em C.N.T. sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, pp. 307, 308, nota 147. Como se dá com o substantivo £7n.9v>p.la, assim também se dá com o verbo é7ci9upéco, pode ter um sentido favorável: desejar (ardentemente), anelar, aspirar a (Mt 3.17; Lc 22.15; l T m 3 . 1 ; H b 6.11; IPe 1.12). Contudo, aqui, em conexão com "'adultério", ele deve significar "cobiçar". Grego, axav8aÀ.iÇexe. O aKváSodov é a vara onde se fixa uma isca num alçapão ou armadilha. É a vara curva que dispara a armadilha; daí, armadilha, tentação a pecar, sedução (Mt 18.7; Lc 17.1); também, objeto de repulsa, a pedra de tropeço da cruz (ICo 1.23; G1 5.11). Da mesma forma, o verbo basicamente significa enlaçar, induzir ao pecado, fazer extraviar (Mt 5.28; 18.6; etc.).
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de si. E melhor que você perca um de seus membros do que todo o seu corpo seja lançado no inferno. Este mandamento não deve ser tomado em sentido literal, porquanto mesmo que uma pessoa literalmente arrancasse o olho direito, ainda poderia pecar com o olho esquerdo. Jesus mesmo nos forneceu a chave de sua interpretação em Mt 18.7-9, onde de forma ligeiramente diferenciada este mandamento é repetido. Dessa passagem se depreende claramente que o olho e a mão simbolizam e representam as "ocasiões de tropeço", ou, se alguém preferir, a tentação para fazer o mal, as seduções enganosas. O sentido geral da passagem, pois, é este: "É preciso agir de forma drástica a fim de livrar-se de tudo quanto, no curso natural dos acontecimentos, te levará a pecar." No presente contexto, é especialmente o pecado contra o sétimo mandamento o que está em evidência. Mais detalhadamente, parece que as seguintes lições estão sendo ensinadas aqui: a. A presente vida não é a única que temos. Estamos destinados à eternidade. Notar: "... e todo o seu corpo seja lançado no — ou vá para o — inferno." b. Nada, não importa quão precioso possa afigurar-se-nos no momento — pense no olho direito e na mão direita —, deve permitir que o nosso destino glorioso seja perdido. c. O pecado, por ser uma força muito destrutiva, não deve ser mimosiado. Ele precisa "morrer" (Cl 3.5). A tentação deveria ser arrojada longe imediata e decisivamente.294 O desperdício de tempo é algo mortífero. As meias medidas tomadas podem causar muito estrago. A cirurgia deve ser radical. Prontamente e sem qualquer vacilação, é preciso que se queime o livro obsceno, que se destrua o quadro escandaloso, que se condene o filme que desfibra a alma, que se corte o laço social muito íntimo, porém sinistro, e que se descarte dos hábitos perniciosos. Na luta contra o pecado o crente deve empenhar-se com ardor. Desferir golpes no ar não adianta nada (ICo 9.27). -M Notar os vivos aoristos imperativos ativos 'élyúx, |3áÀ,e e EKKO\|/OV
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Naturalmente que essas ações destrutivas, e nesse sentido negativas, jamais terão sucesso sem a poderosa operação santifícadora e transformadora do Espírito de Deus no coração e na vida. Portanto, ao longo de todo o sermão Jesus enfatiza o lado positivo. Ele o tem feito agora mesmo (vv.23-26), o fez previamente nas bem-aventuranças (5.1 -12) e continuará fazendo-o (5.37,39-42, 44-48; etc. Ver também Lc 11.24-26). A maravilhosa passagem que se encontra em 2Co 6.17,18, uma citação composta do Antigo Testamento, dá o sentido assim: "Por isso, retirem-se do meio deles, separem-se, diz o Senhor; não toquem em coisas impuras; e eu os receberei, serei o seu Pai, e vocês serão para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-poderoso" (2Co 6.17 e 18; ver também os w.14-16). Ao dizer: "E melhor que você perca um de seus membros", etc., Jesus enfatiza quão incomparavelmente mais necessário e muito melhor é o preparar-se para a eternidade do que usufruir (?) os prazeres pecaminosos desta vida. Sem de forma alguma encorajar nem mesmo permitir que alguém literalmente se mutile, ele (Jesus) está dizendo que certamente é preferível vagar por esta vida com um corpo mutilado do que, tendo um corpo integral e sadio, sem qualquer defeito, ser lançado na Gehenna ("inferno"). Ver também a exposição sobre 10.28 e 16.26. "Vocês foram comprados por preço. Portanto, glorifiquem a Deus em seu corpo" (ICo 6.20). Prosseguindo o seu ensino sobre o sétimo mandamento, Jesus considera o importante tema do divórcio. Implicitamente, ele defende a inviolabilidade dos laços matrimoniais. Opondose ao que era errôneo no ensino tradicional, Jesus, na Terceira Antítese: O sétimo mandamento — divórcio Declara: 31,32. Também foi dito: Todo aquele que se divorcia de sua esposa, dê-lhe um certificado de divórcio. Eu, porém, lhes digo que todo aquele que se divorcia de sua esposa, exceto com base em (sua) infidelidade, a expõe ao adultério; e quem quer que se case com a divorciada se envolve em adultério. Aqui, pois, duas posições são contrastadas: apri426
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meira, sobre a qual os escribas e fariseus, com base nas opiniões expressas por homens de outrora, estavam sempre falando e debatendo. equivalia a isto: quando uma esposa era repudiada, era preciso dar-lhe um certificado de divórcio devidamente redigido. Como se um pedaço de papel pudesse dissolver um matrimônio! A segunda posição era a de Jesus. E como se ele perguntasse: "Por que um divórcio?" Ele enfatiza o fato de que a violação do sagrado contrato do matrimônio é nada menos que infidelidade e adultério. Faz-se evidente que aqui outra vez, como anteriormente, Jesus remonta para além das opiniões rabínicas, focalizando a intenção original da lei (Gn 2.24; 24.67; Êx 20.14; Dt 5.18; e Ml 2.14-16). Compare-se tudo isso com Ef 5.31,32 e Hb 13.4. Isso surge de forma ainda muito mais clara quando se estuda Mt 5.32 em conexão com 19.3-9. Notar a locução desde o princípio em 19.4 e 8, e ver a exposição dessa passagem inteira. A lei deixava muito claro que, no casamento, um só homem se casava com uma só mulher, tendo como conseqüência que somente a morte os podia separar. Cf. Rm 7.2; ICo 7.39. A exceção referida por Jesus em Mt 5.32 ("exceto com base em (sua) infidelidade") permite o divórcio só quando uma das partes contraentes, nesse caso a esposa, 295 por meio da infidelidade conjugal ("fornicação"), se rebela contra a própria essência do laço matrimonial. Todavia, poder-se-ia levantar a seguinte objeção: "Não obstante, não deixa Moisés lugar para o exercício de uma maior medida de liberdade? A regra que se encontra em Dt 24.1 -4 não equivale a 'se você deseja divorciar-se de sua esposa, vá em frente, porém não deixe de dar-lhe um certificado de divórcio?'" Essa parece ter sido a opinião dos escribas e fariseus, ainda que nem todos eles em grau equivalente, como a explicação de 19.39 o indicará. Mateus estava escrevendo primeiramente para os judeus, entre os quais era bem conhecido o ato de o marido repudiar a esposa, mas não o contrário. Marcos, ao escrever para os gentios, inclui as duas possibilidades (10.11,12). Porém, naturalmente Mt 5.32 se aplica à esposa que "despede" seu marido assim como ao marido que faz o mesmo com sua esposa.
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Contudo, na verdade Moisés de forma alguma fomentara o divórcio, mas, embora não o proibisse completamente, a ele se opusera fortemente. Seja qual for o significado da tão debatida frase hebraica 'erwath dabhar' ("cousa indecente", Atualizada, Dt 24.1; ver a exposição de Mt 19.3), Dt 24.1-4, tomada como uma unidade, se opõe seguramente ao divórcio. A regra dos primeiros quatro versículos desse capítulo pode ser assim sumariada: "Maridos, pensem bem antes de rejeitarem suas esposas. Lembrem-se que uma vez a tiverem mandado embora, e ela se tornar esposa de outro, não poderão recebê-la de volta; nem mesmo se o outro marido também a rejeitar ou se vier a morrer." Moisés menciona o conceder um "termo de divórcio" (Dt 24.1), mas só de passagem, ou seja, incluído na advertência como que por hipótese. Entretanto, os escribas e fariseus, como Mt 5.31 o indica, punham toda a ênfase nesse certificado. Jesus (v.32) pôs a ênfase no lugar apropriado. Eles exageravam demais a importância da exceção, o que tornava o divórcio possível. Eles estavam sempre debatendo a esse respeito (cf. 19.3-9). Ele, por seu turno, enfatiza o princípio, ou seja, que o marido e a mulher são e devem permanecer sendo um só. No tocante à tradução da resposta de Cristo, os comentaristas diferem muito, particularmente com relação às palavras geralmente traduzidas "a expõe a tornar-se adúltera" (Atualizada), ou "faz que ela cometa adultério" (Corrigida), ainda "faz com que ela adultere" (Bíblia de Jerusalém). O leitor, com freqüência, pode formular a seguinte pergunta: como um ato pelo qual o esposo se divorcia de sua esposa inocente pode fazê-la adúltera?! Como se não fosse suficiente desgraça o ter sido injustamente rejeitada por seu marido e ser forçada a enfrentar as lutas da vida, sozinha, deve ainda ser agora estigmatizada como "adúltera"? Como resposta, geralmente tem-se frisado que a declaração, como se acha traduzida, é mal interpretada. Ela deve ser lida prolepticamente: ela é chamada adúltera porque poderia facilmente sê-lo. O leitor comum realmente interpretará assim as palavras: "Aquele que repudia sua esposa, salvo em caso de 428
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fornicação, faz que ela seja adúltera"? Não é melhor solução fazer uma tradução mais coerente com o original? O grego, ao usar a voz passiva do verbo, não afirma o que a mulher se torna ou o que ela faz, e, sim, o que ela enfrenta, sofre, ou a que fica exposta. Ela sofre o mal. Ele faz o mal. Seguramente que ela mesma também poderá tornar-se culpada, porém essa não é a questão sobre a qual Jesus põe ênfase. A meu ver, a seguinte tradução é muito melhor: "Todo aquele que se divorcia de sua esposa, exceto com base na infidelidade (dela), a expõe ao adultério" (ver a versão Atualizada), ou algo parecido.296 O que Jesus está dizendo, pois, é o seguinte: Qualquer um que se divorcia de sua esposa, exceto sobre a base de infidelidade, deve arcar com a maior responsabilidade se, como resultado, ela, em seu estado de desamparo, imediatamente ceder à tentação de casar-se com algum outro. Deve-se dar ao marido faltoso a oportunidade de corrigir o seu erro, ou seja, voltar para sua esposa. Isso também explica a locução final, segundo a qual qualquer um que se apresse a casar-se com a esposa abandonada se envolve em adultério, ou seja, o comete. Assim era como Jesus contradizia a leviandade moral que prevalecia em suas dias. Quanto mais estudamos o ensino de Jesus, como nos é ensinado nesta passagem, tanto mais passamos a apreciá-lo. Aqui, por meio de umas poucas e simples palavras, Jesus desestimula o divórcio, refuta a falsa interpretação rabínica da lei, reafirma o verdadeiro sentido da lei (cf. Mt 5.17,18), censura a parte culpada, defende a parte inocente e, ao longo de tudo isso, mantém o caráter sagrado e inviolável do vínculo matrimonial como ordenado por Deus!
O grego, segundo o melhor texto, é raneí aúxf|v poixeuSfjvoa. L.N.T., p. 417, artigo poixáco, comenta: '"passivo da esposa sofrer adultério, ser seduzida, Mt 5.32a". Da mesma natureza, ainda que com leves variações, são as traduções sugeridas por F. W. Grosheide e H. N. Ridderbos em seus respectivos comentários. Eles também indicam que fica expressado o que a mulher sofre, aquilo a que ela fica exposta. Assim também H. Bouwman em seu artigo Echtscheiding Divórcioj em Christelijke Encyclopaedie, Kampen, 1925, Vol. II, p. 4.
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E agora a Quarta Antítese: O mandamento concernente ao juramento 33-37. Ademais, vocês ouviram o que foi dito pelos homens de outrora: Não quebre o seu juramento, mas guarde os votos que fez ao Senhor. Eu, porém, lhes digo: Não jurem de forma alguma, nem pelo céu, porque é o trono de Deus, nem pela terra, porque é o seu estrado, nem por Jerusalém, porque é a cidade do grànde Rei. Nem jurem por sua cabeça, porque não podem fazer um só cabelo preto ou branco. Se a sua palavra for sim, que seja simplesmente sim; se for não, que seja simplesmente não. Qualquer coisa além disso vem do maligno. Novamente aqui, como anteriormente, o que fora dito pelos homens de outrora não estava certo. Era um bom resumo da letra da lei concernente ao juramento (Lv 19.12; Nm 30.2; e cf. Dt 23.21). Pelas palavras de Jesus, contudo, é bastante óbvio que os antigos, e assim também os escribas e fariseus dos dias de Jesus, tenham se equivocado na ênfase. Como é claro do contexto em cada caso, a ênfase divinamente pretendida era a seguinte (note-se o itálico): "Nem jurareis falso pelo meu nome (Lv 19.12). "Quando um homem fizer voto ao Senhor, ou juramento... não violará a sua palavra" (Nm 30.2). "Quando fizeres algum voto ao Senhor, teu Deus, não tardarás em cumpri-lo " (Dt 23.21). Ou, usando a fraseologia dos intérpretes: "Você não quebrará o seu juramento, mas guardará os volos que tem feito ao Senhor." Em cada caso a ênfase está posta na veracidade: uma pessoa deve ser veraz ao solenizar sua promessa com um juramento. Sua intenção deve ser sincera. Também deve ser fiel no cumprimento do voto, ou seja, deve cumprir sua promessa. Ainda em conexão com as promessas que Deus mesmo confirmou com um juramento, é a veracidade que é enfatizada: "O Senhor jurou a Davi com firme juramento, e dele não se apartará" (SI 430
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132.11). E em conexão com "as duas coisas imutáveis" (a promessa e o juramento), das quais os crentes extraem forte ânimo (Hb 6.18), a ênfase é que "é impossível que Deus minta". Ora, essa ênfase na veracidade "no coração" ou "no íntimo", a ausência de "falsidade e engano" (SI 15.2; 51.6; 24.4, respectivamente), está bem distribuída nos escritos do Antigo Testamento. Além das referências já apresentadas do Pentateuco e dos Salmos, ver também Pv 8.7; 12.19; Jr 5.3; Os 4.1; Zc 8.16; Ml 2.6; e cf. Mq 6.8. Pelas palavras de Jesus em Mt 5.34-36, é evidente que os tradicionalistas tinham desprezado a ênfase, de modo que as passagens do Pentateuco agora eram lidas assim: "Nem jurarão falso pelo meu nome" (Lc 19.12). "Quando um homem fizer voto ao Senhor, ou juramento... não violará a sua palavra" (Nm 30.2). "Quando fizeres algum voto ao Senhor, teu Deus, não tardarás em cumpri-lo" (Dt 23.21). Sumário: "Você não quebrará o seu juramento, mas guardará os votos que tem feito ao Senhor." Em outras palavras, no pensamento dos escribas e fariseus e seus precursores, um voto jurado "ao Senhor" devia ser guardado; ao contrário, um voto em relação ao qual não se mencionava expressamente o nome do Senhor era considerado de somenos importância. Não era necessário cumpri-lo tão conscienciosamente. E assim na conversação diária os juramentos começaram a multiplicar-se, "pelo céu", "pela terra" e "por Jerusalém", e, de acordo com 23.16 e 18, ainda "pelo templo" e "pelo altar". Com o fim de impressionar, uma pessoa podia pronunciar um juramento desses "exagerando" e fazendo enormes promessas. Se a afirmação feita era mentira e se a promessa fora feita sem a intenção de cumpri-la, isso não era tão ruim assim, contanto que não fosse jurado em nome do Senhor. Jesus proíbe essa hipocrisia. Ele mostra que as distinções minuciosas e sutis por meio das quais os rabinos classificavam os juramentos como os que eram absolutamente obrigatórios, 431
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os que não eram tão obrigatórios e os que de forma alguma comprometiam, ou, seja qual for sua classificação, estavam completamente destituídos de razão. Ele lhes afirma que um juramento "pelo céu" deve ser veraz e deve ser cumprido, porque o céu não é o trono de Deus? O homem que pronuncia tal juramento está invocando a Deus. Da mesma forma o juramento "pela terra"; porque, não é a terra o apoio dos pés de Deus? (Is 66.1). Igualmente o juramento "por Jerusalém"; ela não era a cidade do grande Rei? (SI 48.3). Em outras palavras, quando os juramentos são pronunciados em apelo a qualquer desses objetos, na verdade estavam sendo tão obrigatórios como se o nome de Deus fosse invocado expressamente em conexão com eles. Ainda havia aqueles que juravam "pela sua cabeça", o que significava: "Que eu perca a minha cabeça — ou seja, que eu perca a minha vida — se o que estou dizendo não for a verdade ou se eu não cumprir minha promessa." Contudo, Jesus indica que ninguém pode mudar a cor intrínseca de seus cabelos. É Deus, tão-somente ele, quem determina se em dado momento um cabelo fica branco ou preto. Visto que esta é a realidade, o juramento pela cabeça de alguém é ainda jurar por Deus, e é tão obrigatório como qualquer outro tipo de juramento. A real solução do problema está no coração. A verdade deve reinar de forma suprema no coração. Por isso, na conversação diária com o nosso próximo, devemos evitar totalmente os juramentos. Pelo contrário, a pessoa deve tornar-se tão verdadeira, tão plenamente confiável, que suas palavras sejam acreditadas. Quando o crente deseja afirmar algo, que simplesmente diga: "sim!" E quando deseja negar algo, que simplesmente diga: "não!" Qualquer coisa que seja "mais forte" que isso é de origem maligna. E característica de certos indivíduos que são conscientes de que sua reputação em relação à veracidade não goza de boa fama, que quanto mais mentem mais afirmarão que o que dizem é "a pura verdade". Têm o costume de entremear suas conversações com juramentos. Jesus diz que essa conduta perjura é oriun432
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da "do maligno", o criador de falsidades (Gn 3.1,4; Jó 1.9-11; Mt 4.6.10,11; Jo 8.44; At 5.3; e 2Ts 2.9-11.297 Isso significa que quando Jesus declara: "De modo algum jureis", ele proíbe até mesmo os juramentos que são feitos nos tribunais? Ensina ele que em toda esfera das relações humanas não há qualquer lugar para a invocação solene do nome de Deus para substanciar uma importante afirmação ou promessa? De forma alguma! Tal ponto de vista seria contrário ao ensino da Escritura. Foi com um juramento que Abraão confirmou suas promessas ao rei de Sodoma e a Abimeleque (Gn 14.22-24; 21.23,24). Abraão igualmente exigiu que seu servo jurasse (Gn 24.3,9). O juramento é igualmente mencionado em conexão com Isaque (Gn 26.31), Jacó (Gn 31.53; cf. 28.20-22), José (Gn 47.31; 50.5), com "os príncipes da congregação" (Js 9.15) e com os filhos de Israel (Jz 21.5). Ver também Rt 1.16-18; 2Sm 15.21; lRs 18.10; e 2 C r 15.14,15. Com respeito aos próprios juramentos de Deus, às referências já mencionadas (p. 432) podem acrescentar-se Gn 22.16; 26.3; SI 89.3,49; 110.4; Jr 11.5; e Lc 1.73. Finalmente, foi sob juramento que Jesus declarou ser ele mesmo o Filho de Deus 297
É verdade que ÈK TCO TTOVÍPCRO também pode ser neutro, e assim pode significar "vem do mal". Aqueles que favorecem esta tradução interpretam as palavras "tudo quanto vai além disto vem do mal" como querendo dizer que os juramentos devem sua origem ao mal. ou seja, à falta de veracidade que existe em tão alta escala cm nossa sociedade. "Num mundo sem pecado, o juramento seria desnecessário, porém agora ele é necessário." (G. Brillenburg Warth. De Bergrede en Onze Tijd, "O Sermão do Monte cm nosso Tempo" Kampen, 1933, p. 73). Assim também H. N. Ridderbos. op. cit., Vol. I, p. 115. Embora eu creia que essa explicação da necessidade do juramento seja correta e mesmo importante, questiono se no presente contexto ela explique adequadamente a frase em questão. A meu ver, a frase assim interpretada parece um pouco fora de contexto. Além disso, para a consciência de Cristo, o diabo era muito real (ver as referências à tentação em Mt 4 e paralelos; Mt 12.27; 13.19,39; 16.23; 25.41; Mc 8.33: Lc 10.18; 11.7,8; 13.16: 22.31:.lo 12.31; 14.30; e 16.11). Finalmente, como já ficou demonstrado, a mentira é uma qualidade saliente de Satanás, de modo que é plenamente natural considerar o diabo como a fonte dos juramentos levianos e (geralmente) mentirosos. Outros favorecem a tradução "do mal" ou "do diabo", entre os quais estão Amplified New Tesiament. Beck. Berkeley, Goodspeed, N.E.B., Weymouth, Williams, a nova tradução holandesa (Bijbel, Nieuwe Vertaling).
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5.11,12
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(Mt 26.63,64). Neste mundo de desonestidade e logro, o juramento é necessário para imprimir solenidade e garantia de confiabilidade a uma afirmação ou promessa importante. Não há nada em Mt 5.33-37, nem em qualquer outro lugar nas Escrituras, que proíba isso. Hb 6.16 confirma essa prática sem qualquer palavra de crítica negativa. O que temos em Mt 5.33-37 (cf. Tg 5.12) é a condenação do juramento improcedente, profano, desnecessário e, com freqüência, hipócrita, usado para impressionar e para condimentar a conversação diária. Contra esse mal Jesus recomenda a veracidade singela, tanto de pensamento como de palavras e atos. Quinta Antítese: O mandamento concernente à retaliação 38-42. Vocês ouviram o que foi dito: Um olho por um olho e um dente por um dente. Eu, porém, lhes digo: Não resistam ao perverso; antes, àquele que o esbofetear na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém quiser confrontá-lo com a lei para tomar-lhe a camisa, deixa-lhe também a sua blusa. E quem o forçar a andar com ele uma milha, vá com ele duas. Ao que lhe pede (algo), dê-lhe; e ao que quer tomar empréstimo de você, não lhe volte as costas. Assim lemos em Êx 21.24 e 25: "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe." Lv 24.20 acresce: "fratura por fratura"; Dt 19.21: "vida por vida". Esta era uma lei para os tribunais civis, estabelecida com o fim de desencorajar a prática da vingança privada. Essas passagens do Antigo Testamento não dizem: "Vingue-se pessoalmente quando lhe fizerem dano." Significam exatamente o oposto: "Não se vingue por si mesmo, porém deixe que a justiça seja administrada publicamente." Isso se depreende de Lv 24.14: "Tira o que blasfemou para fora do arraial; e todos os que o ouviram porão as mãos sobre a cabeça dele, e toda a congregação o apedrejará." Cf. Dt 19.15-21. Entretanto, os fariseus apelavam para esta lei a fim de justificar a retribuição e a vingança pessoais. Citavam este manda434
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mento com o fim de destruir o próprio propósito dele. Cf. Mt 15.3,6. O Antigo Testamento, repetidamente, proíbe a vingança pessoal: "Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o seu próximo como a si mesmo: Eu sou o Senhor" (Lv 19.18). "Não digas: Vingar-me-ei do mal; espera pelo Senhor, e ele te livrará" (Pv 20.22). "Não digas: Como ele me fez a mim, assim lhe farei a ele; eu pagarei a cada um segundo a sua obra" (Pv 24.29). O que, pois, Jesus quis dizer quando declarou: "Não resistam ao perverso; antes, àquele que o esbofetear", etc.? Quando as palavras de Jesus (vv.39-42) são lidas à luz do que segue imediatamente nos vv.43-48, e quando o paralelo de Lc 6.29,30 é explicado sobre a base do que imediatamente precede nos vv.27 e 28, torna-se evidente que a passagem-chave, idêntica em ambos os Evangelhos, é "amem os seus inimigos" (Mt 5.44; Lc 6.27). Em outras palavras, Jesus está condenando o espírito de desamor, de ódio e de desejo de vingança. Ele está dizendo: "Não resistam ao perverso com medidas que emanem de uma disposição que é o oposto do amor, do perdão, da brandura, da tolerância." Isso uma vez compreendido, faz-se evidente que "voltar a outra face" significa mostrar em palavras, atitudes e atos que alguém está cheio não do espírito de rancor, e, sim, de amor. Rm 12.19-21 oferece um excelente comentário. Algo semelhante é válido com respeito à pessoa que ameaça por meio de uma ação judicial tirar de alguém a "camisa", a túnica mais íntima do corpo, como pagamento por uma alegada dívida. Notar que Jesus está falando, não à pessoa que está movendo a demanda, e, sim, à sua vítima (ICo 6.1). Em vez de responder com ressentimento a esse processo judicial, diz Jesus, permite que o queixoso fique também com a roupa externa. Essa roupa externa era considerada tão indispensável que quando era tomada como penhor devia ser devolvida antes do pôrdo-sol, visto que ela também servia como cobertor — às vezes ela era a única roupa do pobre — durante o sono (Ex 22.26,27; 435
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Dt 24.12,13; Ez 18.7; e Am 2.8). Resumindo: não temos o direito de odiar a pessoa que tenta privar-nos de nossas posses. Nosso coração deve encher-se de amor para com tal pessoa, e este amor deve revelar-se em nossas ações. O primeiro verbo em "E quem o forçar a andar uma milha..." refere-se à autoridade de convocação, de forçar ao serviço. É uma palavra tomada do idioma persa, que com toda probabilidade foi tomada do babilónico. O famoso correio real persa autorizava os seus estafetas sempre que necessário obrigassem ao serviço alguém disponível e/ou o animal deste. Não devia haver demora no despacho e na entrega dos decretos reais, etc. Cf. Et 3.13,15; 8.10. Como acontece com freqüência, assim também aqui, o verbo adquiriu gradualmente o sentido mais geral de compelir alguém a prestar qualquer tipo de serviço. Ele é empregado em relação a Simão de Cirene que foi obrigado a carregar a cruz de Cristo (Mt 27.32; Mc 15.21). Ora, o que Jesus está dizendo é que em vez de revelar um espírito de amargura ou ressentimento para com aquele que força uma pessoa a levar uma carga, esta deveria assumir tal posição com um sorriso. Alguém te pediu que o acompanhasse levando sua carga ao longo de uma milha?298 Então vai com ele duas milhas! Semelhantemente, se alguém se sente em apuros e pede auxílio de vocês, não se faça de surdo. Ao contrário, diz Jesus, dê-lhe, não de má vontade nem murmurando, mas generosamente; empresta, não egoisticamente, com intenção usurária (Êx 22.25; Lv 25.36,37), porém liberalmente, magnanimamente. Não só revele bondade, mas ame a bondade (Mq 6.8; cf. Dt 15.7,8; SI 37.26; 112.5; Pv 19.17; At 4.36,37; 2Co 8.8,9). Ilustrações bíblicas do espírito que Jesus aqui recomenda: a. Abraão, que se apressa a libertar seu "irmão" Ló (Gn 14. 14ss), embora este se revelasse anteriormente como um sobrinho muito cobiçoso (Gn 13.1-13). 2,8
Original píÀiov, palavra derivada do latim (millia), que significa literalmente mil passos = oito estádios, aproximadamente 1.450 metros.
436
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5.43-47
b. José, que generosamente perdoa seus irmãos (Gn 50.1921), os quais não o haviam tratado com muita amabilidade (37.18-28). c. Davi, que duas vezes poupa a vida de seu perseguidor, o rei Saul (1 Sm 24 e 26). d. Eliseu, que põe pão e água diante dos sírios invasores (2Rs 6). e. Estêvão, que intercede em favor daqueles que o apedrejaram até à morte (At 7.60). f. Paulo, que depois de sua conversão escreve Rm 12.21; 1 Co 4.12; e ICo 13, e o põe em prática. g. Acima de tudo, o próprio Jesus, que ora: "Pai, perdoalhes porque eles não sabem o que fazem" (Lc 23.34; cf. Is 53.12, última frase; Mt 11.29; 12.19; e IPe 2.23).299 Sexta Antítese Sumário da segunda tábua da lei 43-47. Vocês ouviram o que foi dito: Ame ao seu próximo e odeie ao seu inimigo. Eu, porém, lhes digo, amem aos seus inimigos300 e orem pelos que os perseguem, para que possam ser filhos de seu Pai que está nos céus, porque ele faz nascer o seu sol sobre os maus e os bons, e envia chuva sobre justos e injustos. Pois se vocês amam aos que amam vocês, qual é a sua recompensa? Os publicanos não fazem o mesmo? E se, com saudações cordiais, vocês se aproximam somente de seus irmãos, o que estão fazendo de excepcioal? Os gentios não fazem o mesmo? "Ame ao seu próximo e odeie ao seu inimigo" deve ter sido a forma popular como a média dos israelitas dos dias de Cristo sumariava a segunda tábua da lei e regulava sua vida com respeito aos amigos e inimigos.101 É Sejam quais forem os méritos textuais de Lc 23.34, não revelam as demais passagens o mesmo espírito? 3 "" As palavras "... bendizei aos que vos maldizem, fazei bem aos que vos aborrecem", provavelmente foram inseridas de Lc 6.27,28, onde elas aparecem em ordem inversa. 3,11 Cf. S. BK.. Vol. I, p. 353.
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provável que o tenham aprendido dos escribas e fariseus, ainda que não necessariamente de todos eles sem exceção. Pelo menos sabemos que o escriba, cuja síntese é relatada em Mc 12.32,33, e o doutor da lei (perito da lei judaica), que fala em Lc 10.25- 27, foram cuidadosos em não omitir "como a ti mesmo" ao citar Lv 19.18. O que era ainda pior que essa omissão (ver 5.43) era o acréscimo "e odiarás o teu inimigo". Em nenhuma parte do Antigo Testamento encontramos semelhante coisa. De fato, por meio desse acréscimo, a ênfase foi outra vez desviada da intenção original da lei, como aconteceu também em relação ao mandamento sobre o juramento (ver p. 431). Lv 19.18 — "Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do seu povo; mas amará o teu próximo como a ti mesmo: Eu sou o Senhor" — enfatizava o amor em detrimento da vingança. Sua perversão na formação de culpa popular estabelecia um agudo contraste entre o próximo e o inimigo, como se o propósito do mandamento fosse que se amasse àqueles e odiasse a estes. Tal atitude resultava-se na pergunta: "E quem é o meu próximo?" (Lc 10.29). Era somente o israelita? Ou era o israelita e o prosélito? Ver Lv 19.34. Se esse era o caso, que tipo de prosélito: somente o genuíno, ou seja, o não-israelita que pelo batismo e circuncisão fora feito judeu em todos os aspectos, exceto em que não era literalmente filho de Abraão? Ou deveria incluir também os demais prosélitos? Algumas dessas perguntas já estavam sendo feitas durante o tempo das peregrinações de Cristo na terra. Outras iriam chamar a atenção um pouco mais tarde.302 É evidente que em resultado dessa lamentável má interpretação da lei construía-se um muro de separação entre judeus e gentios; aqueles, para serem amados e estes, para serem odiados. Porém, era difícil parar por aqui. Outra barricada foi erigida entre os bons israelitas, como os escribas e fariseus, e os maus israelitas, como os renegados, os publicanos (ver v.46) e, em geral, toda a ralé que não conhecia a lei (Jo 7.49). Numa atmosfera tal, era impossível que o ódio morresse de inanição; lenha é que não faltava para alimentá-o. 1112
Ver a extensa consideração em S.BK., Vol. I, pp. 553-568.
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Foi nesse ambiente mental excessivamente estreito, exclusivista e intolerante que Jesus desenvolveu seu ministério. Em derredor dele estavam as muralhas e barreiras. Ele viera com o firme propósito de destruir aquelas barreiras, de modo que o amor — puro, ardente, divino, infinito — pudesse fluir diretamente do coração de Deus, portanto do pessoal e maravilhoso coração de Deus e não do coração dos homens. O seu amor invadiu todas as fronteiras raciais, nacionais, partidárias, etárias, sexuais, etc. Ao dizer: "Eu lhes digo: Amem aos seus inimigos", é provável que seus ouvintes tenham ficado atônitos, pois lhes falava algo que provavelmente jamais tinham ouvido antes de forma tão sucinta, positiva e autoritativa. Uma completa investigação de todas as origens documentárias relevantes resultou na seguinte declaração: "A conclusão resultante é que o primeiro que ensinou a humanidade a ver o próximo em cada ser humano, e, portanto, a tratar todo ser humano com amor, foi Jesus; ver a parábola do Bom Samaritano (literalmente, O Samaritano Compassivo)." 10 ' Sem pretender negar de forma alguma a declaração anterior, podemos acrescentar que Jesus ensinou ao povo que ninguém deve perguntar: "Quem é o meu próximo?", mas que cada um deve demonstrar que é o próximo do homem carente, seja ele quem for (Lc 10.36). Ainda que na forma aqui expressa ("Amem aos seus inimigos") o ensino de Cristo fosse novo, porém não contradizia a lei. Antes, era o produto da semente plantada em tempos anteriores. Como ficou demonstrado, o Antigo Testamento proibia a vingança. Porém, ele ia muito além ensinando que, sempre que necessário, alguém devia prestar assistência ao seu inimigo: "Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo ou o seu jumento, lho reconduzirás. Se o vires prostrado debaixo da sua carga o jumento daquele que te aborrece, não o abandonarás, mas ajudá-lo-ás a erguê-lo" (Ex 23.4,5). S.BK... op. cit., Vol. i. p. 354. 439
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De "dê assistência ao seu inimigo" a "ame-o" não havia mais que um passo. E Jesus deu esse passo. Acrescentou: "E orem pelos que os perseguem." Sobre a perseguição do crente, ver 5.10-12. Jesus não exige de seus discípulos o impossível. Ele não lhes pede que sejam apaixonados por seus perseguidores. Porém, de forma específica ele pede que aqueles por quem iria morrer, embora por natureza sejam ainda inimigos de Deus (Rm 5.8,10), orassem pela salvação dos inimigos deles, querendo dizer "pela salvação daqueles que os odeiam". Por meio da atitude de amar seus inimigos e orar por eles, os seguidores de Cristo comprovarão a si mesmos e aos demais que são genuínos filhos do Pai celestial. Certamente que ao dizer: "para que possam ser filhos", etc., Jesus não pretendia dizer: "para que, fazendo isso, vocês se tornem filhos, ou conquistem a posição de filhos." Pela graça eles já eram filhos, porém seu comportamento ou conduta como filhos é que confirmaria esse fato, porquanto os filhos imitam seus pais (Ef 5.1,2). Isso é verdade na família celestial ainda mais categoricamente do que na família terrena, porque enquanto que no último caso de modo algum todo filho está dotado do "espírito" de seu pai, no primeiro caso todo "filho" verdadeiro (que é salvo pela graça mediante a fé, Ef 2.8) recebe o Espírito do Pai. E a este Espírito que ele deve o seu novo nascimento (Jo 3.5) tanto quanto o seu crescimento nas virtudes cristãs e sua perfeição final. Ao exortar aqueles a quem se dirige para provar seu parentesco com o "Pai que está no céu" (sobre esse termo, ver pp. 473, 474), amando aos seus inimigos e orando por eles, Jesus ilustra de forma implícita o amor primordial e ativo do Pai ao chamar a atenção para o fato de que "ele faz nascer o seu sol sobre (pessoas) más e boas, e envia chuva sobre justos e injustos". Essa afirmação é notável em mais de um aspecto: a. E muito mais significativo dizer "Ele faz nascer o seu sol" e "Ele envia chuva" do que "o sol nasce" e "chove". A maneira como Jesus diz isso faz com que olhemos para além da ação, para Aquele quem a faz, e também para além do fato, para a razão que o produz, ou seja, o amor do Pai pela humanidade. 440
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b. Omite-se o artigo definido; por isso provavelmente seja incorreto, como o faz a maioria das versões, traduzir." "o mau e o bom... o justo e o injusto." Porém, deve-se traduzir: "maus e bons... justos e injustos." Assim a ênfase especial é posta no caráter dessas pessoas, como se dissesse: "Embora o Pai seja o santíssimo e imaculado, não se recusa a derramar suas bênçãos sobre maus e bons." c. Para que a maravilhosa natureza do amor do Pai seja proeminentemente destacada, os dois pares de adjetivos são dispostos quiasticamente (em forma de X) sem que a ênfase caia sobre maus ou sobre bons. maus
justos
e
e
bons
injustos
No primeiro par, pessoas qualificadas de "más" são mencionadas primeiro, e no segundo par são as "justas". O sol e a chuva descem sobre todos indistintamente, e, em assim procedendo, revelam o amor do Pai do qual todos são objetos. Ora, é deveras um fato que os homens respondem de forma diferenciada às bênçãos por meio das quais o Pai revela o seu amor. Não há gratidão unânime. Portanto, é também verdade que aqueles que rejeitam o evangelho se utilizam das bênçãos de Deus em seu próprio prejuízo. Contudo, tudo isso não pode invalidar o fato de que o amor de Deus para com os habitantes da terra, sejam bons ou maus, é imparcialmente revelado nas bênçãos do sol e da chuva e de todos os seus resultados benéficos. Esse amor de Deus por aqueles que ele criou se 441
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depreende claramente de Gn 17.20; 39.5; SI 36.6; 145.9,15,16; Jn 4.10,11; Mc 8.2; Lc 6.35,36; At 14.16,17; Rm 2.4; e Um 4.10. Para salientar apenas uma dessas passagens, Jn 4.10 e 11 — a compaixão de Deus para com os ninivitas, para com as crianças deles e para com os animais deles —, pode alguém ler isso sem se enternecer com profunda emoção? Ler o que G. C. Berkouwer diz sobre isso em De Voorzienigheid Gods (Dogmatische Studièn), Kampen, 1950, p. 97. Não se deve considerar nada disso como uma negação do fato de que indubitavelmente existe um amor de Deus que não é compartilhado por todos. Passagens tais como Gn 17.21; SI 103.17,18; 147.20; Mt 20.16; Lc 12.32; Rm 8.1,28-39 e muitas outras comprovam isso além de toda dúvida. Porém, assim como um pai humano, além de amar de forma única aos seus próprios filhos e filhas, tem ainda lugar em seu coração para os filhos de seus vizinhos, sim, até mesmo para todos os filhos do mundo, muito mais o Pai celestial, além de ter um relacionamento completamente especial de terna preocupação e íntima amizade para com todos aqueles que por sua graça são seus próprios filhos adquiridos, ainda ama a humanidade em geral. Ver C.N.T. sobre João 3.16. Por outro lado, os que recusam incluir seus inimigos e seus perseguidores em seu amor se põem eles mesmos no mesmo nível moral e espiritual das mesmas pessoas a quem desprezam tão completamente, ou seja, os cobradores de impostos ("publicanos") e os gentios dos dias de Cristo. Mateus, aquele que registra tudo isso, tendo sido ele mesmo um cobradores de impostos (ver pp. 142-145 e exposição de 9.9), não desconhecia o ódio intenso com que especialmente os escribas e fariseus consideravam as pessoas pertencentes a essa classe. Os cobradores de impostos, os "atravessadores", pagavam uma soma fixa em dinheiro ao governo romano pelo privilégio de cobrar taxas de impostos sobre exportações e importações assim como por qualquer trânsito de mercadorias que passavam pela região. As principais coletorias de impostos estavam em Cesaréia, Cafarnaum 442
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e Jericó. Estes "atravessadores" sublocavam seus direitos aos "principais publicanos" (Lc 19.2) que empregavam "publicanos" a fazerem o recolhimento. Estes aumentavam os impostos o máximo possível, até grandes somas acima do normal. Assim o "publicano" tinha a reputação de ser um extorquidor. Se ele era um judeu, então era tido por seus compatrícios como um renegado ou traidor, porquanto se achava a serviço do opressor estrangeiro. A baixa estima em que os publicanos eram tidos depreende-se de passagens tais como Mt 9.10,11; 11.19; 21.31,32; Mc 2.15,16; Lc 5.30; 7.34; 15.1; 19.7. Os publicanos e os pecadores eram mencionados de um só fôlego, sendo as duas designações consideradas como sinônimas. Se os coletores eram desdenhados, também o eram os gentios. Esse nem sempre foi o caso. Nos tempos do Antigo Testamento, ordenara-se aos israelitas que amassem os "estrangeiros" (Dt 10.19) e que se lembrassem de que eles mesmos também haviam sido outrora estrangeiros na terra do Egito (Ex 23.9). Entretanto, quando ao tempo do exílio os israelitas sofreram padecimentos indescritíveis nas mãos de seus opressores, e mesmo depois, durante o período intertestamentário, Antíoco Epifânio ameaçou eliminar a religião pela raiz e pelos galhos, a atitude dos judeus para com os gentios mudou. Além disso, os gentios não eram idólatras? E não foi a idolatria o mal que levou os israelitas ao cativeiro? Os romanos não eram também gentios, e não eram eles opressores estrangeiros? Não tentavam eles também levar Israel a extraviar-se religiosamente? Portanto, durante os tempos do Novo Testamento os gentios, bem assim os publicanos, eram tratados com extrema antipatia e desprezo. Eram considerados pelos judeus "piedosos" como "imundos" (Jo 18.28), sim, como "cães" (refletido em Mt 15.26 e 27). Para um judeu, tomar refeição com um gentio incircunciso era algo inconcebível (At 11.2). E compreensível que esse ódio fosse recíproco. Se os israelitas tratavam os gentios imundos com desprezo, eles também recebiam um tratamento igual (Jo 18.35; At 16.20; 18.2). 443
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Assim, a não ser por umas poucas exceções notáveis, no tocante, por exemplo, a um não-israelita que mostrava profundo interesse pela religião de Israel (Lc 7.1-5), os publicanos, os gentios e os judeus formavam grupos separados. O mesmo acontecia com os samaritanos. A mulher samaritana admirou-se de que Jesus, sendo judeu, lhe pedisse que lhe desse água para beber (Jo 4.9; cf. Lc 9.52,53; Jo 8.48). Divisão por toda parte. Ódio em todo lugar! E quanto ao amor? Bem, os publicanos amavam os publicanos; os gentios saudavam304 cordialmente os gentios. Será que agora entendemos a essência da expressão de Cristo (em síntese) "Se vocês amam aqueles que os amam, qual é a sua recompensa? Não fazem os cobradores de impostos a mesma coisa? E os gentios não saúdam amavelmente os gentios?" O Senhor está dizendo a seus ouvintes, pois, que, ao imitarem os publicanos e os gentios em seu exclusivismo, simplesmente estão demonstrando que eles mesmos não são em nada melhores que aqueles que eles consideravam inferiores em valor moral e espiritual. Não estão fazendo nada de excepcional que se sobressaia ou seja extraordinário. Todavia, para receber uma recompensa, a justiça daquele que desejava ser discípulo de Cristo tinha de "exceder" a dos escribas e fariseus (ver v.20).305 Não há nada de errôneo em antegozar uma recompensa, contanto que se tenha em mente que a. o trabalho que é feito para o Mestre deve ser feito espontaneamente, no espírito de Mt 25.37,38; e b. a recompensa não é oriunda dos méritos, e, sim, da graça (Catecismo de Heidelberg, O Dia do Senhor, 24). Ver especialmente Mt 6.1,4,5,6; Lc 17.10; ICo 3.8; 4.7; 9.17; Fp 3.14; e Hb 12.2. Jesus sumaria todo este parágrafo (vv.43-47) ao dizer: 48. Portanto, vocês devem ser perfeitos como perfeito é o seu Pai celestial. Isso também estava em harmonia com a lei: 3114
L.N.T. (A. e G.) fornece evidências para o fato de que àonácrrio0e significa mais do que simplesmente "saudai-vos", p. 116. A palavra sugere querer, ter afeto por, e aqui talvez signifique "aproximar-se com saudações cordiais". 3115 A palavra nspiaaóv, usada aqui no v.47, e 7t£pi0aewr|, usada no v.20, são cognatos.
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"Fale a toda a congregação dos fdhos de Israel, e dize-lhes: santos sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo" (Lv 19.2). "Perfeito serás para com o Senhor, teu Deus" (Dt 18.13), Ver também Lv 11.44; 20.7,26; Ef 5.1; e IPe 1.15,16. Isto significa que Jesus era um perfeccionista no sentido em que ensinava aos homens que deviam alcançar a impecabilidade antes da morte? De forma alguma, como as bem-aventuranças claramente o demonstram, e a petição que ele ensinou aos seus discípulos, ou seja, "perdoar as nossas dívidas" (Mt 6.12), o confirma. Ele nunca insinuou que chegaria um tempo, antes da morte, em que essa petição poderia ser dispensada. Contra o perfeccionismo no sentido indicado, ver também lRs 8.46; Jó 9.1; SI 130.3,4; Pv 20.9; Ec 7.20; Rm 3.10; 7.7-26; G1 5.16-24; Tg 3.2; e lJo 1.8. Se alguém pergunta: "Então, por que ainda tentar ser perfeito?", a resposta seria: "Porque isso é o que Deus ordena", como já ficou demonstrado. Além disso, um seguidor de Jesus não pode proceder de outra forma. Ele, com Paulo, anela pela perfeição (Fp 3.7-16). Ele já recebeu, aqui e agora, a justiça imputada. Também já recebeu a justiça comunicada (ver a exposição de 5.6), porém esta não se completa nesta presente vida. A luta pela perfeição nesse sentido não ficará sem recompensa. A vitória é garantida exatamente aos que se esforçam por alcançar o alvo. Quando alcançarem as praias gloriosas da eternidade, seu ideal será concretizado. Essa será a dádiva de Deus para eles (SI 17.15; Fp 1.6; 3.12b; 2Tm 4.7,8; Ap 21.27; cf. 7.14). Entretanto, na presente conexão, "perfeito" significa "concluído, plenamente desenvolvido, que não falta nada".306 Jesus está dizendo ao povo daqueles dias, bem como a nós hoje, que eles e nós não podemos ficar satisfeitos com parcial obediência à lei do amor, à semelhança dos escribas e fariseus, que jamais penetraram no coração da lei. Ainda que em certo sentido Jesus .TO p a r a 0 significado de téXeioq, nas epístolas de Paulo, ver C.N.T. sobre Filipenses, nota 156.
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esteja aqui repetindo a admoestação implícita no v.45 ("para que vocês possam ser filhos de seu Pai que está no céu"), ele agora (aqui no v.48) indica ainda mais especificamente que é a perfeição do Pai que temos de esforçar-nos por imitar; ou seja. a perfeição especificamente aqui (como o contexto precedente indica), no amor que ele a todos revela. Não é ele Aquele quem faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e envia chuva sobre justos e injustos? Não é também ele quem admoestou carinhosamente Caim? (Gn 4.6,7). Aquele que todos os dias estende suas mãos a um povo rebelde e contradizente? (Is 65.2; Rm 10.21). Portanto, de forma semelhante, o amor de todos aqueles a quem foram dirigidas essas palavras não deve deixar de alcançar a todos, inclusive mesmo aqueles que odeiam e perseguem! Não só isso, mas que em qualidade e caráter também deve ser um amor que segue o padrão do amor do Pai; por exemplo, em paciência, compaixão, sinceridade etc. Devemos admitir de imediato que, mesmo no crente mais maduro, o amor é e será sempre finito, enquanto o amor do Pai é infinito. Acrescente-se, pois, que esse amor finito não pode ser outra coisa senão a sombra do amor maravilhoso de Deus. Não obstante, esse tipo de amor finito é adquirível. Como o sabemos? Em virtude do próprio fato de que ele é o nosso Pai celestial, que, por essa mesma razão, não recusará essa dádiva a seus filhos. Entre os capítulos 5 e 6 existe uma estreita relação. Isso é evidente especialmente em decorrência de dois fatos: a. Jesus prossegue falando da justiça do reino (cf. 5.6,10,20 com 6.1); e b. ele continua pondo em contraste a justiça genuína com aquela que ele associa com os escribas e fariseus (5.20), os hipócritas (6.2,5,16). Não obstante, há igualmente uma transição real para uma nova subdivisão. No capítulo 5, a religião verdadeira foi contrastada com a que os escribas e fariseus, baseados na tradição rabínica, estavam ensinando; em 6.1-18, ela será contrastada com o que eles estavam praticando. A partir de 6.19, os hipócritas ficam na penumbra. Ainda que, provavelmente, fosse er446
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rôneo dizer que tenham desaparecido completamente, nesse sermão eles não são mais mencionados de forma específica. Começando com 6.1, e prosseguindo até 7.12, Jesus, mais positivamente que antes, dirige a atenção de seu auditório para o que significa a justiça do reino. Em síntese, viver a vida justa consiste em obediência espontânea à regra: "Amarás a Deus acima de tudo, e amarás o teu próximo como a ti mesmo." Notem-se as duas partes: a. amar a Deus; b. amar ao próximo. O capítulo 6 trata principalmente do primeiro desses dois aspectos; 7.1-12 trata do segundo. No tocante ao capítulo 6, nele Jesus exige a devoção sincera do coração em nosso relacionamento com Deus (vv. 1 -18) e uma confiança íntegra neste Pai celestial em meio a todas as circunstâncias (vv. 19-34); porque, se o homem há de amar sinceramente ao Pai, então haverá de entregarlhe tudo, e dele esperará tudo. A mudança gradual da atenção, que passou dos escribas e fariseus para "seu Pai celestial", fica evidente no fato de que, enquanto essa designação ou a semelhante "seu Pai que está no céu" ocorre somente três vezes no capítulo 5 (vv. 16,45 e 48), no capítulo 6, consideravelmente mais curto, é mencionada não menos que uma dúzia de vezes, em formas ligeiramente variadas ("Pai de vocês", "seu Pai" e "nosso Pai"). Ver vv. 1,4,6, duas vezes, 8,9,14,15,18, duas vezes, 26 e 32. Atransição do capítulo 5 para o capítulo 6, também nesse sentido, é gradual, como o indicam 5.45,48 e 6.1. Conseqüentemente, à nova subdivisão (capítulo 6) podese atribuir o seguinte título: A essência desta justiça com respeito à relação do homem com Deus Pela ordem, A devoção sincera do coração (6.1-18) Falando, pois, sobre a justiça no sentido ético (incluída em 5.6), ou seja, a prática da verdadeira religião — expressa aqui particularmente nos exercícios de dar caritativamente, da ora447
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ção e do jejum —, Jesus diz: 6.1. Cuidem para que não pratiquem a sua justiça diante307 do povo, com o fim de atrair sua atenção; caso contrário vocês não terão qualquer recompensa de seu Pai que está no céu. Porém, essa exortação não se acha em conflito com 5.16: "Assim brilhe a sua luz diante dos homens, para que possam ver as suas boas obras"? É claro que não, pois o propósito da recomendação em 5.16 é para que seja assegurado o louvor devido ao "Pai que está no céu" (ver 5.16b). Por outro lado, o propósito dos hipócritas, referido em 6.1 ss, é o de obter louvor para si mesmos. Eles praticavam seus atos religiosos a fim de "atrair a atenção do povo" 308 para que este os inspecionasse e os examinasse detidamente, enquanto distribuíam esmolas, oravam e/ou jejuavam. Esperavam que os espectadores dissessem a seu respeito: "Que homens devotos! Como esses escribas e fariseus são piedosos!" Naturalmente que se deve evitar uma demonstração pública com tal motivação. Em "... de outra forma vocês não terão qualquer recompensa para com o seu Pai que está no céu", o sentido é o seguinte: "Então já terão a sua recompensa, sim, a sua recompensa plena, ou seja, dos homens, o próprio povo de quem vocês esperavam a recompensa de honra, admiração e louvor. Visto que vocês, no mais profundo do seu ser jamais quiseram louvar e glorificar a Deus, então ele não lhes recompensará. Ainda mais, isto é verdade porque tais exercícios religiosos (?) são fraudulentos. Se vocês os praticam é porque estão tentando encobrir os seus reais motivos. Estão fazendo teatro. Estão dissimulando, porque sob o disfarce de dar glória a Deus estão buscando glória para si mesmos, como se pudessem enganar o Onipotente!" Em tais casos (vv.1,2,5,16), uma recompensa, a dos homens, cancela a outra, a de Deus. No tocante à expressão "seu Pai que está no céu", vejr comentário sobre 3117
Outro texto tem è^ermocróvriv (que a A.V. traduz "alms'" = esmolas, cf. 6.3,4). Porém dikaiosÚnhn ("justiça") tem o apoio textual mais forte. 3118 Grego Seaôfivai, aor. inf. pas. de qefomai, sobre o qual, ver C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, p. 90. inclusive nota 33. 448
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5.14b-16
5.16 e 6.9b; e no tocante à "recompensa", ver comentário sobre 5.43-47 e 10.42. Uma vez enunciado o princípio geral (v.l), agora são retomadas uma a uma as três expressões de "justiça" que aqui são consideradas: a contribuição caritativa, a oração e o jejum. A contribuição caritativa A esse respeito, Jesus começa, dizendo: 2. Então, quando vocês derem aos pobres, não anunciem publicamente com toques de trombeta, como os hipócritas têm o hábito de fazer nas sinagogas e nos becos a fim de grangear a admiração do povo. Dar aos pobres é requerido pelas leis de Deus (Ex 23.10,11; 30.15; Lv 19.10; Dt 15.7-11), pelas exortações dos profetas (Jr 22.16; Dn 4.27; Am 2.6,7) e pelos ensinos de Jesus (Mt 7.12; Lc 6.36,38; cf. 21.1-4; Jo 13.29; G1 6.2). Também está em consonância com a expressão de gratidão pelos benefícios recebidos. Neste mesmo sermão Jesus já demonstrou que é precisamente ao misericordioso que se "mostrará misericórdia" (5.7). Portanto, não nos surpreende que aqui em 6.2 Cristo tome como questão axiomática a contribuição caritativa. As esmolas de forma alguma eram uma prática restrita dos discípulos de Jesus. Mesmo os judeus que se recusavam a aceitar Jesus como seu Senhor e Salvador se orgulhavam disso. De fato, nos dias de Cristo, o "alívio" para os desafortunados era provido pela comunidade "religiosa", sendo que cada pessoa contribuía segundo sua capacidade.309 Essa soma era suplementada por donativos voluntários. Essas contribuições beneficentes eram anunciadas publicamente nas sinagogas e, como é aqui indicado, ainda nos becos e lugares onde os pobres costumavam reunir-se, perto de onde viviam. Não é possível assegurar aqui que tais esmolas fossem literalmente anunciadas com toques de trombeta. Parece improvável que nas sinagogas isso fosse permitido. Além disso, uma vez que em seus ditos e discursos Jesus repetidas vezes faz uso de linguagem simbólica, é 3,w
S.BK., Vot. I. p. 388.
449
5.11,12
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provável que ele faça isso também no presente caso, e que esteja simplesmente se referindo ao fato de que os fariseus faziam tudo quanto estava ao seu alcance para proclamar ou exibir seus donativos. É essa prática que o Senhor condena. Isso não nos deve surpreender, porque era hipocrisia, e os homens que eram culpados disso podiam ser chamados com justiça de "hipócritas". Eram hipócritas (cf. 15.1,7; 23.1ss) porque fingiam dar, quando, na verdade, tinham a intenção de receber, ou seja, as honrarias dos homens. Ele prossegue: Solenemente lhes declaro que eles já receberam a sua plena recompensa. Não os aguarda uma futura recompensa. Ver a exposição de 6.1. De todas as maneiras possíveis, às vezes até mesmo de forma ousada e outras vezes de forma sutil, as pessoas ainda estão fazendo propaganda dos seus atos beneficentes, e nesse procedimento estão se privando de toda recompensa verdadeira. Entretanto, não só é impróprio buscar o louvor dos outros, como é igualmente errôneo louvar a si mesmo. 3. Porém, quando você fizer caridade, não deixe sua mão esquerda saber o que a sua direita está fazendo. As duas mãos quase sempre agem em uníssono. Juntas erguem, carregam, apanham coisas. Juntas estão no trabalho e no lazer. Portanto, elas podem ser consideradas como tendo plena familiaridade uma com a outra. Tudo o que uma faz, a outra sabe. Simbolicamente falando, pois, para que a mão esquerda não saiba o que a direita está fazendo é preciso que haja completa ausência de conhecimento, uma extrema ignorância. E já que as mãos são partes da pessoa, a expressão provavelmente se refira ao fato de que, tanto quanto possível, uma pessoa deve conservar sua contribuição voluntária em segredo, não só em relação aos outros, mas mesmo em relação a si própria; ou seja, deve ignorá-la, em vez de dizer em seu coração: "Que bom sujeito eu sou!" Essa explicação recebe o apoio de 25.37-39, onde os justos são representados como estando completamente esquecidos de seus próprios feitos beneficentes de outrora. Ele prossegue: 4. Para que os seus atos 450
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de caridade possam ser (realizados) em secreto, e o seu Pai que vê em secreto o recompensará. 310 É Deus quem faz as contas. Nada se lhe escapa (Gn 16.13; SI 139; Hb 4.13; cf. Jo 21.17). É ele mesmo quem, no dia do juízo, concederá a recompensa (Mt 25.34-36), para a surpresa dos benfeitores. E não há, mesmo agora, recompensas antecipadas, por exemplo, uma boa consciência e a alegria do usufruto com os que recebem os donativos? No tocante à gramática, o texto grego pode ser também traduzido: "... e o teu Pai, aquele que te vê, te recompensará em secreto." Objeções a essa construção: a. Depois da introdução, que se refere aos hipócritas que tudo fazem para que os homens admirem suas boas obras e onde Jesus admoesta seus ouvintes no sentido de que essas obras não devem ser publicadas, e, sim, que devem ser mantidas em secreto até onde for possível, esperaríamos uma declaração com relação ao efeito de que as obras que não são anunciadas publicamente, contudo serão vistas e recompensadas pelo "teu Pai que vê em secreto". A introdução abrupta do Pai como "Aquele que te vê", sem modificativo, faria pouco sentido aqui; b. A Escritura por toda parte proclamam que todas as palavras, todas as ações, etc., dos homens, inclusive o que acontece em secreto, se farão públicas (Ec 12.14; Mt 5.3-12; 10.26,27; Mc 4.22; Lc 8.17; 12.2,3; Rm 2.16; 1 Co 3.13; 14.25; Ap 20.12,13). A idéia de que os atos de bondade para com os pobres, feitos em secreto, permanecerão para sempre em secreto, e que ainda a recompensa será conferida em secreto, se choca com esse ensino bíblico. A oração em geral Voltando, pois, a este tema (vv.4-15), Jesus diz: 5. Igualmente, quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas, porque se deleitam em dizer suas orações em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, com o fim de serem vistos pelo 310
O modificativo "em público" está baseado num texto grego inferior. O mesmo ocorre no v.6.
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povo. A referência aqui é à oração em geral, inclusive ações de graças, louvor, adoração, confissão de pecados, petição pessoal, intercessão pelas necessidades de outros, etc. Entre os judeus, embora suas orações fossem sempre apropriadas, havia tempos estabelecidos para a oração, quando se esperava que os piedosos comparecessem às suas devoções. Assim, havia as orações matutinas, do meio-diae vespertinas (SI 55.17; Dnó.10; At 3.1). Segundo Josefo (Antigüidades XIV.65), os sacrifícios, inclusive as orações, eram oferecidos no templo "duas vezes ao dia: de manhãzinha e às nove horas". Havia também um culto ao pôrdo-sol.311 Naturalmente, se alguém estivesse morando em Jerusalém ou nas proximidades e pudesse chegar ao templo em tempo, esse seria, para o israelita devoto, o melhor lugar para a oração (Lc 18.9,10; At 3.1). Doutro modo, a sinagoga vinha a calhar bem, ou mesmo a rua. Ora, as Escrituras em parte alguma condenam a oração pública (2Cr 6.14-42; Ne 9; At 4.24-31), nem a oração individual oferecida num lugar público. Tampouco pecaram o fariseu e o publicano por terem orado no templo (Lc 18.9,10). O que o Senhor condena aqui é a oração ostentosa, ou seja, praticar as devoções particulares (?) no lugar mais público, com a intenção de ser visto e honrado pelo povo. Contudo, era exatamente isso o que os hipócritas estavam habituados a fazer. Quando o fariseu da famosa parábola de Cristo (Lc 18.9-14) entrou no templo, ele teve o cuidado de não pôr-se de pé em algum canto ou a uma distância considerável da frente, como o fez o publicano. Ele parou em frente, bem diante de todos os presentes, para que o pudessem ver. O que aconteceu no templo acontecia também nas sinagogas, e até mesmo nas esquinas das ruas! Note-se: aqui não se fala de ruelas ou becos, como em 6.2, mas de esquinas de ruas movimentadas. Seria o caso de os hipócritas chegarem casualmente aos lugares de mais movimento no momento certo? Seja como for, seus motivos e propósitos eram "serem vistos 311
E. Schürer, History of lhe Jewish People in the Time of Jesus Christ, tradução para o inglês, Edimburgo, 1892-1901, Vol. II. pp. 290s. 4S?
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pelo povo" e serem por ele admirados. E isso que Jesus está condenando. Disso se vê claramente que no ensino de Jesus o que conta é a disposição íntima do coração. É o coração verdadeira e humildemente dedicado a Deus que recebe a aprovação divina (Jo 4.24). Quanto aos hipócritas e sua vã exibição, Jesus repete as palavras ditas um momento antes (ver a exposição do v.2): Eu solenemente lhes declaro que vocês já receberam sua plena recompensa. A condenação negativa da prática errônea é seguida pela exortação positiva de seguir a prática correta, assim como se deu nos vv.2 e 3 em conexão com a contribuição caritativa, e nos vv.16-18 em conexão com o jejum. Do começo ao fim, o sermão está estruturado de uma maneira muito ordenada, sistemática e lógica. 6. Você, porém, quando orar, entra no seu quarto mais privativo, e uma vez fechada a porta, ore a teu Pai que está em secreto. A idéia não é que deve haver um cômodo separado para a oração. Como foi salientado anteriormente, as casas de muitos da audiência tinham apenas um cômodo. O sentido é o seguinte: se há um cômodo privativo,312 então use esse para a sua oração particular; se não, escolhe um canto bem discreto. Não procure ser notado. Entretanto, a ênfase principal nem mesmo é o lugar de oração, e, sim, a atitude de mente e coração. O pensamento subjacente real não é o secreto, e, sim, a sinceridade. A razão de mencionar o lugar secreto é que o adorador sincero e humilde, alguém que não está interessado em mostrar-se publicamente com o fim de realçar o seu prestígio, encontrará um recanto isolado como o mais apropriado para suas devoções. Ali é onde ele pode deixar fora o mundo e estar sozinho com o seu Deus. 112
Grego tccjj.£íov, provavelmente relacionado com o verbo Tépvco: cortar, distribuir. Os substantivos relacionados são: distribuidor, tesoureiro, tesouraria, armazém. As salas onde se guardavam os objetos preciosos naturalmente se encontravam nos lugares mais secretos. Assim, no curso do tempo o substantivo xapetov começou a ser usado para indicar toda a habitação ou lugar muito privativo.
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O fechar a porta (cf. 2Rs 4.33; Is 26.20) faz que o lugar secreto seja ainda mais secreto. Quanto ao Objeto da oração, ou seja, o Pai, ele não só vê em secreto (v.4), mas também está em secreto: ele enche todo lugar secreto com a sua presença (bem como os lugares públicos), entretanto transcende a toda limitação espacial (lRs 8.27; SI 139.7-10; Is 66.1; Jr 23.23,24; At 7.48,49; 17.27,28). Aqui novamente é preciso acrescentar que o propósito de adentrar o lugar secreto e fechar a porta pode ser frustrado se aquele que o faz começa a publicar essa prática, como alguns ministros têm o hábito de fazer, quando, no início do culto de adoração — às vezes mesmo na oração pastoral —, declaram à congregação que antes de sentar-se para o preparo do sermão fecharam a porta de seu gabinete pastoral e passaram tantos e tantos minutos em oração fervorosa! Aquele que ora seguindo a disposição correta do coração e mente é abençoado, como no v.4. e teu Pai que vê em secreto te recompensará. O homem que assim ora terá paz de coração e mente. Ele terá consciência de que o Pai, em seu amor infinito, dará ao suplicante tudo quanto é melhor para ele e para todos aqueles que são objetos de sua oração. Ele também estará consciente de que este mesmo Pai "é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo o que pedimos ou imaginamos" (ver C.N.T. sobre Ef 3.20,21). Uma oração sincera não é entremeada de verbosidade. 7. Além do mais, orando, não balbuciem repetidamente como o fazem os pagãos, porque eles imaginam que serão ouvidos em virtude de seu muito falar. Seria possível que, ao dizer isso, Jesus estivesse pensando também nos escribas, que "por pretexto faziam longas orações"? (Mc 12.40; Lc 20.47). Seja como for, o Senhor condena essa prática como sendo de caráter pagão. Não significa que fazer uma oração extensa seja sempre errado. Uma tomada de posição assim condenaria de imediato as orações encontradas em 2Cr 6.14-42; Ne 9; e SI 18, 89 e 119. Deve-se ter em mente o motivo. Os pagãos repetiam e repetiam 454
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suas orações porque imaginavam que quanto mais longa e mais estridentemente eles orassem, maior também seria sua chance de sucesso, de receber o que desejavam. A oração dos sacerdotes de Baal (lRs 18.25-29) fornece um notável exemplo: "Eles clamaram o nome de Baal desde a manhã até ao meio-dia." Outro exemplo é a roleta de orações dos budistas tibetanos, um cilindro que gira num eixo, coberto de orações escritas. O rosário, usado, por exemplo, para conservar a conta de cinco dezenas de ave-marias, cada uma antecedida de um pai-nosso e seguida de um glória-seja, não é outra boa ilustração? Como se a aceitabilidade de nossas orações dependesse, ao menos em parte, do número de palavras que usamos ou do número de orações que disparamos! Muitas das orações mais notáveis e fervorosas registradas na Escritura são breves e concisas, tais como a de Moisés (Ex 32.31,32), de Salomão (por um coração sábio, lRs 3.6-9), de Elias (lRs 18.36,37), de Ezequias (2Rs 19.14-19), de Jabez (lCr 4.10), de Agur (Pv 30.7-9), do publicano (Lc 18.13), do ladrão moribundo (Lc 23.42), de Estêvão (At 7.60) e de Paulo (pelos efésios, Ef 3.14-19). A esta classe pertencem também as muitas orações-frases ou exclamações de Neemias (Ne 4.4,5; 5.19; 6.9; 13.14,29,31). A oração intercessória ou sacerdotal de Cristo, também, dificilmente pode ser classificada de longa (Jo 17), e a Oração Dominical, por meio da qual ele ensinou seus discípulos a orar, é sem dúvida caracterizada como breve (Mt 6.9-13; Lc 11.2-4). Ele prossegue: 8. Não sejam, pois, como eles, porque seu Pai sabe do que vocês têm necessidade antes (mesmo) que lho peçais. Eis o que Jesus quis dizer: "Vocês não devem aproximar-se de seu Pai com a idéia de que ele está desinformado, completamente ignorante das suas necessidades, e que vocês têm de explicar-lhe detalhadamente a sua situação para que ele entenda. Ao contrário, antes mesmo que comecem a orar, seu Pai já conhece as suas necessidades." Alguém poderia objetar: "Então, por que fazer oração?" Todavia, quem faz tal objeção não compreende a lição envolvi455
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da. Jesus não estava condenando a ação de derramar o coração diante de Deus, nem mesmo quando esse ato contém uma breve declaração de certos fatos já conhecidos de Deus (ver, por exemplo, muitos dos salmos). De fato, é justamente porque um pai ou mãe terrenos entendem um filho tão plenamente e sabem de suas necessidades melhor que qualquer estranho, que o filho recorrerá a um deles ou a ambos, que é precisamente o que os pais amorosos querem que o filho faça. Gom muito mais razão, o mesmo se dá com o Pai celestial (SI 81.10; Mt 7.7,8; Jo 15.7; Hb 4.14-16; Tg 4.2). O que Cristo condena é o espírito de medo e desconfiança que faz com que os pagãos, que não reconhecem o Pai celestial, balbuciem mais e mais, na crença de que de outro modo seus deuses não estariam completamente informados nem suficientemente aplacados, e assim não pudessem conceder o que seus adoradores lhes pedem. A oração modelo: O "pai-nosso" Jesus introduz essa oração assim: 9a. Assim, pois, é como vocês devem orar. Antes de entrar no conteúdo dessa oração, é bom fazer umas poucas observações introdutórias: a. Razão para Cristo ensinar essa oração aos seus discípulos. Literalmente, segundo o original, deve-se ler a frase: "Assim (ou: deste modo), pois, vocês devem orar." Alguns enfatizam o fato de que o verbo imperativo, na segunda pessoa do plural, está no tempo presente. Interpretam esse presente como tendo força continuativa (devem prosseguir orando), e baseados nisso chegam à conclusão de que Jesus quer que essa mesma oração continue sendo repetida sem cessar. Certamente que não é errôneo fazer freqüente uso dessa oração se o adorador, ao proceder assim, é capaz de fazê-lo com o coração e a mente. Por outro lado, o uso por demais freqüente poderia conduzir facilmente ao pecado do formalismo, o qual o Senhor condenou. Além disso, é preciso ter em mente que Jesus disse: "Assim" ou "desta forma" ou "isto é como". Ele não diz: "Use exatamente estas palavras, e não outras." Assim chamada "Oração Dominical", 456
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ela é realmente a oração modelo, o que significa que ela deve servir como parâmetro para as nossas devoções. Suas características devem também marcar as nossas orações. Algumas dessas qualidades serão agora mencionadas: b. Sua concisão A oração consiste de duas partes: uma invocação ("Pai nosso que estás no céu") e seis petições; ou, três partes, caso a conclusão ("Porque teu é o reino, etc.") seja considerada parte dela, com um total de aproximadamente setenta palavras. c. A prioridade por ela indicada Em harmonia com o fato de que, segundo o Antigo e o Novo Testamentos, a glória de Deus é importante acima de todas as demais coisas, as primeiras três petições têm referência ao nome, ao reino e à vontade do Pai. As necessidades humanas — pão, perdão dos pecados e vitória sobre o mal — assumem o segundo lugar. d. Seu alcance ou escopo Há seis petições313 na seguinte forma: Petições com referência a Deus Seu nome Seu reino Sua vontade Nós nosso pão nossas dívidas nosso adversário
primeira petição segunda petição terceira petição
v.9b v. 10a v.lOb
quarta petição quinta petição sexta petição
v.ll v.12 v.13
A natureza universal ou abrangente dessas petições se depreende do fato de que elas têm referência não só à glória de Deus, etc. (primeiras três petições), mas também às nossas ne313
Não sete. "E não nos conduzas ã tentação, mas livra-nos do mal" deve ser considerada como uma só petição. Segundo o meu modo de ver, a idéia de que as primeiras três petições simbolizam a Trindade e as últimas "quatro", o universo com suas quatro dimensões, é antes uma fantasia.
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cessidades (as últimas três); não só às nossas necessidades atuais (quarta petição), mas também à nossa necessidade com referência ao passado (quinta), e ainda à nossa necessidade futura (sexta). Finalmente, nessa oração o adorador leva ao trono da graça as cargas que são, não somente suas, mas também de seus irmãos ("nosso", "nós"). Tudo está incluído nessas seis breves petições. Não há dúvida de que esse é o padrão perfeito para as nossas orações! Invocação ou palavras dirigidas a Deus 9b. Pai nosso que estás no céu. Salta imediatamente aos olhos que nem todos têm o privilégio de dirigir-se a Deus dessa maneira. Essa é a prerrogativa exclusiva daqueles que estão "em Cristo" (Jo 1.12; Rm 8.14-17; G1 4.6; 2Co 6.18; lJo 3.1,2). Naturalmente, há um sentido em que Deus pode ser corretamente designado Pai de todos os homens. Ele é o Criador de todos e providencia sustento para todos (Ml 2.10; SI 36.6). Porém, esse não é o sentido usual em que se deve interpretar o termo "Pai" nas Escrituras. No "Sermão do Monte", também, o termo é usado num sentido especificamente soteriológico ou redentivo, um sentido em que Deus é o Pai não de todos (ainda que ele é o Rei de todos, 5.45; Lc 6.35,36), mas apenas de alguns . Ele é chamado de "vocês" (ou "seu") Pai (5.16; 6.18; etc.), o Pai dos pacificadores (5.9) e daqueles que amam seus inimigos (5.44,45). Da mesma forma, segundo o ensino de Cristo, registrado em outros lugares, os que o rejeitam são filhos não de Deus, mas do diabo (Jo 8.44; lJo 3.10). Uma vez entendido isso, torna-se evidente que essa oração-modelo é para os crentes em nosso Senhor Jesus Cristo, e tão-somente eles. Depreende-se também que a objeção dos que dizem que "a Oração Dominical" não é uma oração cristã pelo fato de nem mesmo mencionar o nome de Jesus, e/ou pelo fato de nem mesmo concluir com a frase "por amor de Jesus", é infundada. O nome e a obra expiatória do Senhor estão claramente implícitos nas próprias palavras da invocação. A parte de Cristo ninguém pode ir ao Pai (Jo 14.6). 458
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Quanto às palavras introdutórias propriamente ditas, antes de tudo ver o que foi dito anteriormente (pp. 400-402). O fato notável que jamais devemos perder de vista é que Aquele que é o Rei do reino do céu é ao mesmo tempo o Pai de seus cidadãos. Os cidadãos são seus filhos. O reino é a família do Pai. Ver C.N.T. sobre Ef 3.14 e 15. Notar igualmente a combinação de imanência e transcendência, de condescendência e majestade. "Pai nosso" indica proximidade de Deus. Ele está perto de todos os seus filhos, infinitamente perto. Portanto, eles se aproximam do trono do Pai, em confiança, para fazer-lhe conhecidos todos os seus desejos e necessidades, tudo quanto está em sintonia com a sua vontade revelada. Não precisam ter medo, porque Deus é o seu Pai que os ama. Não obstante, ele é o Pai que está no céu (literalmente "nos céus"). Portanto, devem aproximar-se dele no espírito de devota e humilde reverência. A camaradagem ou familiaridade vulgar que caracteriza certos tipos de "religião" moderna é certamente antibíblica. Os que cedem a esse mau hábito parece que jamais leram Êx 3.5; Is 6.1-5; ou At 4.24! Além disso, enquanto as palavras "Pai nosso" indicam a disposição de Deus e seu anseio em dar ouvidos aos louvores e às petições de seus filhos, o acréscimo das palavras "que estás no céu" revela o seu poder e direito soberanos de responder às petições, dispondo delas segundo sua infinita sabedoria. Finalmente, pondere-se novamente nas palavras "Pai nosso... no céu ". Elas fazem que os filhos do Pai sintam que são peregrinos na terra, e que seu lar verdadeiro não é aqui, e, sim, no céu. É consolador saber que não só os filhos desejam estar onde o Pai está, mas o Pai também deseja que seus filhos estejam onde ele está (SI 73.23,24; Jr 31.3; cf. Jo 17.24). O filho canta o SI 42.1 ? Com uma ligeira mudança na linguagem ("O meu filho" em vez de "Ó meu Deus"), o SI 42.1 pode ser (diremos "está sendo"?) igualmente cantado pelo próprio Deus. A idéia de um Deus que canta, regozij ando-se pela salvação de seus filhos, tem apoio bíblico (Sf 3.17). Então, na glória, esses filhos se dirigirão eter459
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namente a Deus como seu Pai, porém nunca mais terão de acrescentar "que estás no céu", porque eles estarão com ele. Primeira petição 9c. Santificado seja o teu nome. Nos tempos antigos, geralmente o nome não era considerado como um mero título para distinguir uma pessoa de outra, antes era considerado como uma expressão da própria natureza da pessoa assim denominada, ou de sua posição, etc. Isso era tão verdadeiro que amiúde, quando os fatos acerca de um homem sofriam alguma mudança importante, era-lhe dado um novo nome. Ver a exposição de 1.20. O nome, até certo ponto, era identificado com a pessoa. Isso é especialmente verdade com respeito aos nomes de Deus. O nome de Deus é o próprio Deus conforme revelado em todas as suas obras. Isso não é difícil de se entender, porquanto também entre nós o mesmo é válido em referência ao nome de Jesus, como se evidencia pela linha poética: "Santo Nome incomparável, tem Jesus, o amado teu!" (do hino equivalente "Nome Precioso", de L. Baxter). De imediato reconhecemos o fato de que um simples vocábulo não pode livrar ou salvar a ninguém, porém uma pessoa pode — e o faz! Ora, uma vez que os nomes de Deus revelam quem ele é em si mesmo, é necessário que conheçamos seus diversos nomes. Além do mais, tal exercício é muito gratificante. No Antigo Testamento, o Ser Supremo é chamado 'El, ou seja, Deus considerado como o Poderoso. Esse nome ocorre em várias combinações. 'El-Shaddai é Deus Todo-poderoso, a fonte de salvação de seu povo (Gn 17.1; Ex 6.3). 'Elohim (Gn 1.1) é um plural, e se refere a Deus na plenitude de seu poder. 'Elyon indica o Altíssimo (Nm 24.16). 'Adonai salienta Deus como Mestre ("meu Mestre" propriamente dito) ou Senhor; cf. "Ah! Senhor! Eu nunca fui eloqüente" (Ex 4.10). O significado do nome Jeová (YEHOVAH) é até certo ponto explicado em Êx 3.13,14; cf. 6.2,3. É uma forma do verbo ser, e tem sido interpretado como significando "Eu sou o que sou", ou "Eu serei o que serei". No original hebraico esse nome consiste de quatro letras YHWH, e 460
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por isso tem recebido o nome de tetragrama (tetragramaton). Houve um tempo, talvez cerca do ano 300 a.C., em que os judeus, devido a a. sua reverência por Deus, b. sua interpretação de Lv 24.16 e c. seu temor de tornarem-se culpados do pecado de profanação, deixaram de pronunciar esse nome. Ao lerem as Escrituras, o substituíam por ' Adonai, ou, com menor freqüência, 'Elohim. Os massoretas — j u d e u s peritos no texto — que medravam entre a destruição de Jerusalém (70 d.C.) e o século X, mas cuja atividade num sentido mais geral começou antes do período dos macabeus e se estendeu até ao ano 1425 d.C., juntavam às quatro consoantes (YHWH) as vogais de ' Adonai (ou de 'Elohim).314 Das seguintes passagens, Êx 6.2-4; 15.1-3; SI 83.18; Is 42.8; Os 12.5 e Ml 3.6, faz-se suficientemente evidente que o nome Jeová, qualquer que seja a sua vocalização ou transliteração, salienta a imutável fidelidade do pacto de Deus para com o seu povo. Ocorrem várias combinações em conexão com este nome. Provavelmente, as mais populares sejam as seguintes: Jeová Sabaote ("Senhor dos Exércitos", SI 46.7,11); Jeová Tsidkenu ("Senhor justiça nossa", Jr 23.6); outras combinações são: Jeová Jiré ("o Senhor proverá", Gn 22.13,14); Jeová Nissi ("o Senhor É Minha Bandeira", Êx 17.15); Jeová Rafá ("o Senhor que sara", Êx 15.26); Jeová Shalom ("o Senhor é paz", Jz 6.24); Jeová Raa ("o Senhor é o meu pastor", SI 23.1); Jeová Shamá ("o Senhor está ali [presente]", Ez 48.35); Jeová Meeadishkem ("o Senhor que vos santifica", (Êx 31.13). Santificar o nome de Deus significa ter reverência por ele, por isso, reverenciar a Deus, honrá-lo, glorificá-lo e exaltá-lo. 314
Originalmente, ao escrever as palavras hebraicas, eram usadas somente as consoantes. Quando o conhecimento do hebraico decresceu, a ausência de vogais começou a prejudicar a compreensão do texto, visto que a inserção mental de uma vogal imprópria resultava numa interpretação errônea. Por essa razão houve várias tentativas na antigüidade para inserir as vogais. A obra que finalmente triunfou foi a dos judeus que pertenciam à escola mossorética de Tiberíades. O texto de autoridade reconhecida do Antigo Testamento foi preparado na primeira metade do século X d.C., por Arão Ben Moisés ben Aser. A famosa edição de R. Kittel da Bíblia Hebraica foi cotejada com a cópia desse texto Aser existente em Leningrado.
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Para fazer isso, exige-se muito mais que um conhecimento meramente intelectual do significado dos nomes divinos. Certamente que envolve humildade de espírito, gratidão de coração, ardoroso estudo das obras de Deus até que a observação se converta num arroubo de assombro e adoração. Os compositores dos salmos sabiam muito bem o que era isso. Por toda parte — na obra da criação e nos eventos da História — eles contemplavam a majestade de Deus e reservavam tempo para meditarem nela. Eles consideravam o seu Deus como Aquele que os livrava de seus inimigos e os protegia constantemente. Como tal ele era um Deus cheio de ira direcionada contra aqueles que o rejeitavam e perseguiam o seu povo. Esta mesma ira, por assim dizer, era a prova de seu terno amor pelos seus (SI 3; 4; 5; 7; 11; 13; 14; 18; 48; 50; 63; 97; 135; etc.). Quanto ao seu terno amor, os salmos estão transbordantemente cheios da idéia de que para aqueles que confiam nele, o Senhor é aquele que atende à oração, o refúgio em tempo de borrasca, aquele que todo dia se importa, que apaga a transgressão e que jamais esquece seus filhos, nem mesmo no momento da morte (SI 16; 17; 23; 42; 73; 81; 89; 91; 92; 103; 111; 116; 118; 146, para fazer menção de apenas alguns poucos). "Santificado seja o teu nome" significa, pois, que aquele que foi introduzido à comunhão com este Pai ternamente amante agora convida a todos a compartilhar dessa experiência com ele e a exaltar a este glorioso Deus. Isso significa muito mais do que simplesmente fazer o máximo esforço para evitar a profanação do nome de Deus. Tem um conteúdo positivo. O suplicante dirige seu convite à criação inteira, especialmente ao mundo dos homens, a louvar o seu Deus. Ele brada: "Engrandecei o Senhor comigo, e todos, à uma, lhe exaltemos o nome" (SI 34.3). Ele estuda os passos de Deus na História (Salmos 76-80, especialmente 78; mais 106; 107; 118; 124; 126; 136), e quer que seus filhos e todos os mais adorem e glorifiquem a Deus em virtude de seus feitos portentosos. Ele também se enche de gratidão e espanto ao observar a sabedoria e a bondade de Deus na 462
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natureza, e deseja que suas observações pessoais emocionantes e as suas impressões duradouras sejam compartilhadas pelos demais, de modo que eles também possam ver e meditar sobre os gloriosos atributos de Deus nos altos céus bem como aqui na terra, e possam adorar Aquele que ele chama de "meu Deus" (SI 8; 19; 29; 63; 65; 104; 139; 145; 147; 150). Assim também hoje, a pessoa que sabe o que significa orar "santificado seja o teu nome", alegremente magnificará o Senhor sempre que contemple o azul do céu estrelado, dominado de silenciosa beleza e majestade, com suas miríades de estrelas, cintilando como se fossem milhões de gotas de orvalho nas pradarias celestiais. Ele louva a Deus sempre que vê sua glória refletida nos matizes que suavemente se combinam no arco-íris, nas colinas arborizadas, nos pomares frutíferos, nos riachos murmurantes, nos lagos ondulantes e nos rios sinuosos, assim como quando ouve a ricamente variada e quase incessante canção das aves. Ele se maravilha ao contemplar a sabedoria de Deus revelada na construção do corpo humano (SI 139.15,16). E quando da revelação geral ele passa à revelação especial, e pondera nas implicações de passagens tais como Is 53; Jo 3.16; R m 5 . 8 - l l ; 8.31-39; e ICo 8.9, é possível evitar que se encha de assombroso amor pelo nome incomparável daquele que por meio de Cristo é seu Pai, que derrame seu coração em ferventes doxologias (2Co 9.15; Ef 1.3ss; IPe 1.3ss;Ap 19.16,17) e insista com outros a fazerem o mesmo? O estilo e a gramática nos auxiliam a entrar no espírito dessa oração. Não somente o contraste dos três imperativos passivos (no grego), todos na terceira pessoa, das primeiras três petições (literalmente, "seja santificado o teu nome, venha o teu reino, seja feita a tua vontade") está em contraste notável e agradável com os verbos da segunda pessoa do modo imperativo nas últimas três petições, mas também esses três nítidos imperativos, sendo aoristos e estando em cada caso no início da petição, enfatizam a urgência. Com respeito à primeira petição, isso significa que o adorador está tão completamente dominado por 463
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uma irrestrita ansiedade para que o nome do Pai seja adorado, honrado e glorificado, que não pode esperar para comunicar o seu desejo consumidor de que receba Deus essa honra dos lábios, do coração e da vida de cada pessoa. O nome do Pai não será santificado pelo mundo a menos que se reconheça a sua soberania real. Isso nos conduz à Segunda petição 10. Venha o teu reino. Para o significado do conceito "reino do céu" ou "reino de Deus", ver pp. 348, 349. A segunda petição inclui o seguinte: 1. Somente quando o Pai celestial, sobre a base da expiação pelo Filho e da operação do Espírito Santo, reina no coração dos homens, é que se pode esperar um verdadeiro e permanente melhoramento no indivíduo, na família e nas condições sociais, nacionais e internacionais (SI 20.7; Zc 4.6). 2. Esta é uma oração. Na história das missões tem-se demonstrado repetidas vezes que a vinda ou a entrada do reino de Deus nos corações humanos requer oração fervorosa (Mt 7.7; Mc 9.29; At 4.31; 13.3). 3. Até que chegue o momento da segunda vinda [de Cristo] há necessidade dessa oração, porque, embora o reino já esteja aqui (Lc 17.21), ele ainda está ausente de muitos corações. De fato, há boas razões para não se crer que o progresso na evangelização não está mantendo o mesmo ritmo em sua marcha que o progresso da iniqüidade. 4. A graça e o poder transformadores de Deus são requeridos antes que um homem mude de seu ardente anseio: "Venha o meu reino" e da jactância: "por meu próprio esforço já estou no caminho da realização deste alvo", para a humilde petição: "Venha o teu reino." No tocante aos jactanciosos e à sua queda, é só lembrar de Coré e seu grupo (Nm 16), de Senaqueribe (Is 37.1013,37,38), de Nabucodonosor (Dn 4.30-33), de Edom (Ob 1-4), de Amã (Et 3-7; especialmente 5.11,12), de Herodes Agripa I (At 12.21-23) e "o rico insensato" da parábola (Lc 12.18-20). 464
MATEUS
5.38-42
5. A oração pelo estabelecimento do reinado de Cristo nos corações humanos não exclui a necessidade de esforço. Tem de haver pregação, visitas aos lares, tradução e distribuição da Bíblia, obra de contínua persistência, etc. Cf. At 20.17-38; lTs 2.9- 12. 6. "Venha o teu reino" é claramente uma oração para o progresso da atividade missionária (Ap 6.2); Jesus reinará por onde quer que o sol Faz suas sucessivas jornadas; Seu reino vai de mar a mar Até que a lua não percorra mais o seu caminho. (Isaac Watts) 7. Não obstante, o desejo do suplicante não é só que esse reino venha extensivamente, mas que ele também se estabeleça intensivamente, ou seja, que ele mesmo e todos quantos já se converteram possam reconhecer de maneira crescente Deus em Cristo como seu soberano Rei: Senhor meu Deus, enche a minha vida Com louvor, cada parte dela; Que todo o meu ser possa proclamar As maravilhas de teu Ser e teus caminhos. Não somente o louvor dos lábios, Nem louvor apenas de coração, te peço, Mas uma vida inteira feita, De louvor em cada uma de suas partes. (Horatius Bonar) Assim como a primeira petição já incluía a segunda, a segunda inclui a terceira, porque o reino de Deus não virá a menos que sua vontade seja feita. Assim passamos à Terceira petição 10b. Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. A vontade de Deus, à qual se faz referência aqui, certamente que é sua vontade "revelada", expressa em sua lei. E a mesma vontade que é feita no céu, porém que ainda não é feita na terra de forma completa. Por outro lado, a vontade do "decreto de 465
5.11,12
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Deus" ou "plano eterno" está sempre sendo feita tanto no céu como na terra (Dn 4.35; Ef 1.11), e não pcxle ser assunto da oração. (Conseqüentemente, a declaração de que a vontade revelada de Deus está sendo perfeitamente obedecida no céu — daí não só pelos anjos celestiais, mas também pelas hostes de redimidos — significa que no mesmo instante em que uma alma é conduzida da terra ao céu, ela se vê livre de todo vestígio de pecado.) É o ardente desejo da pessoa que sinceramente pronuncia a Oração do Senhor que a vontade do Pai seja obedecida tão completa, cordial e imediatamente na terra como o fazem constantemente os habitantes do céu. Quanto ao termo "completamente", a história do rei Saul revela que a obediência incompleta, na qual o homem estabelece a sua própria vontade contra a de Deus, não recebe a aprovação divina e pode ter graves conseqüências (ISm 15.1-3,7-9; notar especialmente os vv.22 e 23). Quanto ao termo "cordialmente", observar as palavras de Dt 26.16 e Mt 22.37. E quanto ao termo "imediatamente", os querubins, na visão do trono-carruagem de Ezequiel, cada um munido com quatro rostos, e a própria carruagem com rodas dentro das rodas, de modo que seus "condutores" estivessem sempre prontos para levá-la aonde quer que o Senhor quisesse, fornecem uma vívida ilustração da espécie de obediência na qual o céu se deleita (Ez 1 e 10). Exemplos de obediência humana: Noé (Gn 6.22); Abraão (Gn 11.28-32, cf. At 7.3; Gn 12.1, cf. Hb 11.8; Gn 22.2ss, cf. Tg 2.23); Josué (Js 5.13-15); Samuel (1 Sm 3.1- 10); Simão (Pedro) e André (Mt 4.19,20); Simão (Pedro) uma vez mais (Lc 5.5); Tiago e João (Mt 4.21,22); Pedro e os apóstolos (At 5.29); Maria de Betânia (Jo 11.28,29); Paulo (At 16.6-10; 26.19); e os filipenses (Fp 2.12). O maior exemplo de todos é o do próprio Jesus Cristo (Lc 2.51,52; Jo 15.10; 17.4; Fp 2.5-8; e Hb 5.8). Foi ele quem no Getsêmane disse: "Não como eu quero, e, sim, como tu queres" (Mt 26.39). Quanto à maneira como a obediência é galardoada, de um enorme contingente de passagens que poderiam ser incluídas, bastam as seguintes: Js 1.8; Mt 7.7,8; Jo 7.17; 8.29; 14.21,23; 15.10; Fp 2.9,10; Hb 12.1,2; e Ap 3.20. 466
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5.14b-16
Seguem-se as petições pela satisfação das necessidades humanas. Embora seja verdade que há uma divisão bastante clara entre as primeiras três petições, relacionadas com Deus, e as últimas três, correspondentes aos homens, esses dois grupos não devem ser considerados como absolutamente separados. Se o crente há de tomar parte ativa na santificação do nome de E)eus, na vinda do reino e em fazer a sua vontade — parte ativa esta que sem dúvida está implícita nas primeiras três petições —, tem de ter pão (Lc 10.7, cf. l T m 5.18; G1 6.6; Ef 4.28; Fp 4.15,16). Assim Jesus não se esquece das necessidades físicas de seus discípulos (ver Mt 6.25-34; 25.34-40; Mc 10.29,30; cf. At 24.17; 2Co 8.8,9; Tg 2.15,16), para que eles possam viver e ser felizes, e também para que possam apoiar com vigor as causas do reino. Isso introduz a Quarta petição 11. O pão nosso diário dá-nos hoje. O que Jesus quis dizer com "diário"? Na literatura grega, a palavra assim traduzida é muito rara; de fato, é tão rara que criou-se a idéia de que fora cunhada pelos evangelistas. Nas Escrituras ela ocorre somente na Oração do Senhor (aqui e em Lc 11.3). Embora já esteja esclarecido que a palavra não deve sua origem aos escritores dos Evangelhos, não há unanimidade em sua explicação. Tem-se aventurado toda espécie de conjectura, por exemplo: "contínuo", "supersubstancial", "à disposição", "para uso futuro", "para a subsistência", etc. Tem-se defendido fortemente a explicação: "suficiente para o dia seguinte".315 Da forma como o vejo, um bom argumento pode ser apresentado em favor de: a. "Dá-nos neste dia o nosso pão para (ou: correspondente a) o dia em curso (hoje)",316 e b. "Dá-nos neste dia o nosso pão necessário" ou 315
É favorecido por J. H. Thayer, L.N.T., verbete ércioúoioç. Seu argumento em favor de que esse ponto de vista não é contraditado por Mt 6.34 me impressiona como sendo bastante engenhoso, porém não convincente. Por razões diversas, A.T. Robertson, Word Pictures, Vol. I, p. 53, também defende essa explicação. 3 "' Isso equivaleria a uma substantivação de íkI TÍ)V owoiv (fipripav). Ver o artigo ènioÚCTioç em L.N.T. (A. e G.). Esse artigo também fornece abundante bibliografia sobre esse tema. 467
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seja, "o nosso pão necessário para a subsistência."317 As duas idéias (a. e b.) se harmonizam facilmente. Em todo caso, devemos assegurar-nos de que a nossa interpretação não vá de encontro ao ensino de Cristo nesse mesmo capítulo (vv.31 -34), ou seja, sua advertência no tocante à preocupação pelo alimento. Ver especialmente o v.34. Portanto, pessoalmente não vejo razão para afastar-me da tradução a que tantos já se acostumaram, ou seja, "diário", ("cotidiano"). O significado, pois, seria: "Dános hoje a porção que é necessária para um só dia."318 O que se disse até aqui indica que, por meio dessa petição, Jesus ensina a seus discípulos a serem moderados em seus desejos e solicitações. Isso aparece de forma ainda mais surpreendente no original, onde as palavras "nosso pão diário" aparecem no próprio início da petição: "O nosso pão diário dá-nos neste dia." Os discípulos de Cristo devem pedir pão, não luxos. "... não me dês nem a pobreza nem a riqueza: dá-me o pão que me for necessário; para não suceder que, estando eu farto, te negue e diga: Quem é o Senhor? Ou que, empobrecido, venha a furtar, e profane o nome de Deus" (Pv 30.8,9 — extraído da oração de Agur). Faz-se claro, pois, que a palavra pão não deve ser tomada tão literalmente. Está implícito tudo quanto é necessário para a manutenção da vida física. Aqui não se ensina apenas a. a moderação, mas também b. a confiança no Pai celestial, que ama e cuida, a confiança infantil lindamente expressa no SI 37.25. Todavia, não é a ação de "fazer provisão para o futuro" (Gn 41.33-36; Pv 6.6-8) o que é aqui condenada, e, sim, a "ansiedade pelo futuro", como se o Pai celestial não existisse. Bem que o coração poderia encherse da convicção de c. uma total dependência, porque todos os homens, mesmo os mais ricos, para possuir, consumir e usufruir os alimentos, dependem da condição do solo, da água, do clima e da saúde do corpo. Além disso, para alimentar-se, os 317 318
Com base na teoria de que èiuoúcnoç é derivado de èrct e oixrta. Assim também Ridderbos, op. cit., pp. 124, 134 e 135, "Geef ons heden ons dagelijks brood".
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homens de recursos insuficientes ou medianos precisam trabalhar para ganhar o pão. Portanto, todos os homens são dependentes do estado geral da economia, juntamente com todos os seus fatores contribuintes, ecológicos, raciais, políticos, etc., todos os quais, em última análise, revelam que todos dependemos do Deus soberano que governa o universo. Ainda exige-se d. humildade; daí, "Dá-nos...". Embora o suplicante esteja ganhando a vida com o suor de seu rosto e pagando os alimentos, ele deve aceitar o que está na mesa como uma dádiva de Deus, um produto da graça; isso não só pelo fato de Deus ser a fonte ulterior de toda bênção (Tg 1.17), mas também porque, em razão do pecado, o homem perdeu tudo! Pressupõe-se também e. a disposição de trabalhar. De outro modo, como ousaria alguém orar pelo sustento diário? (cf. 2Ts 3.10). A tudo isso acrescenta-se mais uma qualidade, ou seja, f. generosidade; daí, não "Dé.-me"\ e, sim, "Dá-nos... o nosso pão diário". Estão incluídas as necessidades dos crentes do mundo inteiro, porque juntos eles constituem uma só família (Ef 3.14). E no espírito de G1 6.10, os horizontes do suplicante não se estendem ainda para além do "arraial dos santos, a cidade amada"?119 O Criador dotou o homem de corpo e de alma (Gn 2.7). Assim, depois de uma petição pela satisfação das necessidades do corpo, a oração agora avança para a satisfação das necessidades da alma, a fim de que o que é espiritual seja o primeiro (ver as primeiras três petições) e o último (ver as últimas duas, ou as últimas duas e a doxologia).
119
O dever do crente como cidadão cristão é também muito importante nesse contexto. As nações que sofrem com a fome devem receber assistência. Contudo, isso deve ser feito com sabedoria. Quanto a isso pode-se aprender muito com W. e P. Paddock, thmgry Nations, Boston e Toronto, 1964. Estes autores, experientes nesse campo, afirmam que a assim chamada "ajuda" com freqüência é desperdiçada, porquanto os encarregados de ajudar as nações famintas esquecem que se deve ensinar a estas a forma de levar adiante seu próprio desenvolvimento com base em seus próprios recursos.
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5.11,12
MATEUS Quinta petição
12. E perdoa as nossas dívidas como também perdoamos os nossos devedores. Em conexão com esta petição, que soa tão simples, é bom formular umas poucas perguntas: 1. Qual é a diferença entre "dívidas" (v.12) e "ofensas" (vv. 14 e 15)? Resposta: ver a exposição do v.14. 2. Por que devemos orar pedindo perdão, se não mais pecamos? Resposta: Certamente que pecamos diariamente. Ver p. 445. 3. Admitido que pecamos, por que devemos ainda orar pedindo perdão, uma vez que a expiação de Cristo já nos purificou (justificou) de todo pecado? Resposta: É verdade que a base de nosso perdão diário foi estabelecida de uma vez por todas por meio da expiação por Cristo. Não é necessário — e nem se pode — acrescentar nada a isso. Porém, essa purificação total e objetiva precisa de aplicação diária pela simples razão que pecamos todo dia. Um pai pode ter legado uma grande herança a seu filho. Ela, de forma definitiva, já pertence ao filho. Não obstante, isso não significa que ao filho seja permitido retirar do banco toda essa grande soma e gastá-la em uma semana. Com sabedoria, o pai inclui uma estipulação que limita o privilégio de saque a uma quantia generosa a cada mês. Assim também, quando uma pessoa recebe a graça da regeneração, isso não significa que ela experimenta imediatamente tudo o que Cristo mereceu para ela. Se assim fosse, sua capacidade não ficaria saturada e esmagada? Antes, "Ele [Deus] dá, dá e volta a dar". Ver também Jo 13.10. A súplica por perdão subentende que o suplicante reconhece que não existe outro método pelo qual sua dívida seja cancelada. Portanto, é uma súplica por graça. Entretanto, surge uma dificuldade totalmente diferente em conexão com "perdoa as nossas dívidas como também perdoa470
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5.14b-16
mos os nossos devedores". Naturalmente que isso não significa que a nossa disposição perdoadora pode grangear o perdão de Deus para nós. O perdão de nossas dívidas não está baseado em nossos méritos — como poderíamos ter algum? —, e, sim, nos méritos de Cristo que nos são aplicados. Em conseqüência, visto pelo prisma humano, o perdão está baseado no imerecido favor de Deus (não merecido por nós), ou seja, na graça divina (Ef l .7), na compaixão de Deus (Mt 18.27) e na sua misericórdia (Lc 18.13). Não obstante, a nossa própria disposição em perdoar é muito importante. Realmente, sem ela nós mesmos não podemos ser perdoados. Porque ela é a condição indispensável para recebermos o perdão dos pecados. Esse fato é expresso de forma clara nos vv. 14 e 15, que, juntamente com 18.2135, é a melhor e mais simples explicação que alguém pode ter de 6.12. Assim é com o perdão e também com a salvação de forma geral. Não somos salvos sobre a base de nossa fé, como se a fé tivesse poder inerente de alcançar a salvação. Somos salvos pela graça (Ef 2.8). Todavia, para sermos salvos a fé tem de estar presente (por isso, "pela graça mediante a fé"). A fé e uma de suas manifestações, a saber, a disposição de perdoar, são condições que devem ser cumpridas e exercidas para que sejam recebidos a salvação e seu componente, o perdão. Nós devemos crer, nós devemos perdoar. Deus não faz essas coisas em nosso lugar. Entretanto, é Deus quem planta em nosso coração a semente da fé e da disposição perdoadora. Além do mais, nossa capacidade para crer e nossa capacidade para perdoar vêm de Deus. Em cada passo — começo, meio e fim, em todo o percurso do caminho — Deus está presente e ativo. "... desenvolvam a sua salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vocês tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Fp 2.12,13). Ver também C.N.T. sobre Ef 2.8 e sobre Fp 2.12,13. É precisamente como Greijdanus observa ao comentar a passagem paralela, Lc 11.4 ("E perdoa os nossos pecados, porque nós também perdoamos a cada um dos que nos devem"). Assim escreve: "Apesar do porque, essa locução não 471
5.11,12
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indica a base sobre a qual Deus concede o perdão, e, sim, o que devemos cumprir para desfrutarmos do perdão por Deus de nossos próprios pecados."120 Para que seja genuíno, esse perdão que nós mesmos concedemos aos nossos semelhantes deve ser dado alegre, generosa e definitivamente; não no espírito de "Eu lhe perdôo, mas esteja certo de que jamais me esquecerei". O Dia do Senhor 51 do Catecismo de Heidelberg apresenta uma explicação correta, sucinta e bela da quinta petição: "Por causa do sangue de Cristo, por favor, não nos imputes, a nós míseros pecadores, as nossas transgressões nem a maldade que se acha entranhada em nosso coração, assim como sentimos, pelo testemunho de tua graça em nós, o firme propósito de perdoar de coração o nosso próximo." Devemos responder de forma breve a uma possível objeção à explicação dada: "Isso não significa, pois, que o nosso ato de bondade para com alguém que nos tenha injuriado antecede o ato de bondade de Cristo para conosco?" Resposta: No círculo da salvação, o princípio está sempre em Deus, jamais em nós. Ver lJo 4.19; cf. Jo 13.15; Ef 4.32; e IPe 2.21. Não obstante, o amor perdoador de Cristo não só antecede, mas também acompanha e ainda segue o amor com que amamos a ele e ao nosso próximo. O nosso sincero propósito em perdoar aqueles que nos tenham injuriado, e também a nossa experiência do amor e da graça perdoadores de Deus em Cristo podem ser enriquecidos pelas seguintes considerações: Estender o nosso perdão aos outros, porque 1. Deus assim o ordena. A vingança pertence a ele, e não a nós (Dt 32.35; Rm 12.19). 2. Devemos seguir o exemplo que Cristo mesmo nos deu (Lc 23.34; Jo 13.12-15; Ef 4.32; 5.1,2; Cl 3.13). 3. Não podemos ser perdoados a não ser que perdoemos, como já foi demonstrado. ™ Hei Ifeilige Evangelie naar de fíeschrijvíng van Lucas (Kommeníaar op hei Nieitwe Tcstamenl Vol. I), p. 523.
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6.13a
4. A pessoa que nos injuriou necessita de nossa compreensão e amor. Nós lhe devemos esse amor (Rm 13.8). 5. Guardar rancor e planejar vingança é não apenas ímpio, mas é também uma tolice, porque nos priva da força de que necessitamos para o trabalho eficiente. O que deveríamos fazer é olhar para a frente (Fp 2.13). 6. Perdoar os outros nos comunicará paz à mente e ao coração, aquela paz que excede a todo entendimento (Fp 4.7,9). 7. Assim — e somente assim! — Deus será glorificado, o que deve ser o nosso alvo em tudo quanto fazemos (ICo 10.13). A quarta petição está relacionada com a quinta, e a quinta com a sexta, por meio da conjunção e. As três representam necessidades humanas, e se acham intimamente conectadas. A conexão entre a quarta e a quinta já foi assinalada. Mui estreita é também a relação entre a quinta e a sexta, e isso pelo menos no seguinte aspecto: necessitamos não só do perdão dos pecados passados, mas também do cuidado protetor de Deus, para que no futuro não venhamos a cair nas garras de Satanás. Entre "E não nos conduzas à provação" e "mas livra-nos do mal" não há a conjunção e. Ao contrário, a conjunção mas revela que a petição simplesmente prossegue, equilibrando a petição negativa com a positiva numa só petição. Essas duas são, por assim dizer, os dois lados da mesma moeda. Assim, concordo com todos aqueles que aceitam seis, não sete32' petições. Sexta petição 13. ou 13a.322 E não nos conduzas à provação, mas livra-nos do mal. É provável que signifique: "Se é a tua vontade, não permitas, frágeis como somos por natureza e inclinados ao pecado, que entremos em situações que no curso natural dos acontecimentos nos exponham à tentação e queda (cf. 26.41), porém, seja qual for o teu caminho para nós, livra-nos do mal." 321 p o r j s s 0 n j j 0 c s t 0 l l dg acordo com Lenski sobre esse aspecto (op. cit.. p. 263), e. sim. com Calvino. Ver o seu comentário sobre esse versículo. 322 13a se a conclusão ("Porque teu é o reino...") for considerada autêntica, como na A.V.
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5.11,12
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Embora seja verdade que aqui, assim como antes (5.37), são possíveis tanto o neutro, "mal", como o masculino, "o mal", e, como o indica Calvino, "Não há necessidade de suscitar um debate sobre esse detalhe, porquanto o significado é quase o mesmo"; entretanto, pelo fato de que na consciência de Cristo o diabo era muito real (ver a comprovação na exposição de 5.37) e porque alguém naturalmente associa a tentação, mencionada nessa petição, com o tentador (ver especialmente 4.1), eu, juntamente com muitos outros323 dou preferência à tradução "o mal". Ainda que seja verdade que Deus mesmo jamais tenta o homem a pecar (Tg 1.13), é igualmente verdade que há boas razões para pedir-lhe que nem mesmo permita que voluntariamente corramos ao encontro da tentação; por exemplo, ao estabelecer uma aliança perigosamente estreita com o mundo, ligando-nos por um "jugo desigual" com os incrédulos (2Co 6.14-16); ou ao fugirmos para o extremo oposto, retirando-nos completamente da sociedade (contrariamente a Mt 5.14; Fp 2.15); ao ficarmos tão ocupados nos nossos afazeres diários que a atmosfera espiritual que deve caracterizar o nosso lar seja negligenciada; ao participarmos de tantos comitês em prol de boas causas que não sobre mais tempo para as coisas ainda mais importantes, etc. É tão-somente Deus quem sabe quantas e quão severas provações de fé cada pecador salvo pode suportar ao ser constantemente atacado pelo diabo (Ef 6.12; IPe 5.8), pelo mundo (Jo 15.19) e pela sua própria "carne" (ou seja, tudo quanto em si mesmo não é fruto da graça que redime, Rm 7.23; G1 5.17). Em vez de deixar-se derrotar nesta batalha, possa ele [o salvo] permanecer vigilante o tempo todo, e em qualquer evento possa ele triunfar completamente sobre o mal (Rm 16.20; lTs 5.23). Com respeito a Satanás e suas artimanhas, ver mais detalhes em C.N.T. sobre Ef 2.2 e 6.11,12. A lógica da petição é clara. Uma petição análoga seria: "Senhor, concede que eu possa ser tão cuidadoso em observar 323
A.R.V., The AmplijleldNew Testament, Berkeley, Goodspeed, Grosheide, N.E.B., Ridderbos (H.N.), Weymouth, Williams e a tradução holandesa, tanto a antiga (Staíenvertaling) como a nova (Bijhel, Nieuwe Vertaling).
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6.19,20
as regras da saúde que não me torne doente, porém seja o que for que em tua providência me sobrevenha, conserva-me bem junto a ti para que a minha fé não fracasse." Entretanto, aqui também o "nós", "nosso" e "nos" deveriam substituir o "eu", "meu" e "me". O suplicante está sempre incluindo outros em suas orações. Conclusão 13b. [Porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém.] É comum sustentar que, uma vez que essas palavras estão ausentes dos principais manuscritos, as regras de evidência textual não favorecem a sua inclusão da Oração Dominical. Entretanto, sem contestar a exatidão desse ponto de vista, é bom fazer justiça ao fato de que, de uma forma ou de outra, a doxologia se encontra em algumas versões bastante antigas. Além disso, o Didaquê ou Ensino dos Doze Apóstolos (VIII. 2), por muitos considerado como tendo-se originado na primeira metade do século II, contém a doxologia numa forma abreviada: "porque teu é o poder e a glória para sempre". Uma defesa da autenticidade das palavras em que se baseia o texto da A.V. aparece no livro de E.F. Hills, The King James Version Defended, Des Moines, 1956, pp. 97-102. O seu argumento principal é que desde os tempos remotos, no culto da igreja, essa doxologia era separada do restante da Oração Dominical. O corpo da oração era repetido pelo povo, e o sacerdote pronunciava a doxologia sem o "amém"; depois disso o povo respondia: "Amém". 324 Em decorrência dessa separação litúrgica, assim argumenta ele, essa conclusão "começou a ser considerada por alguns cristãos como um responso de autoria humana e não parte da oração original como saiu dos lábios de Cristo".
324
O dr. Hills baseia sua informação num volume de C.A. Swainson. The Greek Liturgies. Londres, 1884. E também interessante e instrutivo o artigo "Liturgias" em S.H.E.R.K., Vol. VI, pp. 498-505; e ver os artigos "Liturgical Movement" e "Liturgical Worship, Recent Trends In" na extensão do século XX de S.H.E.R.K., pp. 669-671.
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5.11,12
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Ora, é verdade que mesmo durante as reuniões de adoração, tanto em ocasiões normais como em ocasiões especiais, tanto no Israel antigo como na igreja apostólica, a cena era mais viva e responsiva, menos formal do que em grande parte da cristandade posterior (com a exceção da tendência moderna). Sem dúvida, os cultos eram geralmente ordeiros. Quando não o eram, os membros se expunham a uma admoestação justa (1 Co 14.2340). O controle estava certamente nas mãos dos líderes. Entretanto. havia maior responsabilidade por parte da congregação (Dt 27.15-26; 1 Cr 16.36; Ne 5.13; 8.6; ICo 14.16; cf. Ap 5.14). Não obstante, é discutível se um argumento desse tipo, baseado em grande medida em antigas práticas litúrgicas, é suficiente para equilibrar a considerável carência de apoio por parte dos manuscritos em favor da retenção ou da inserção das palavras em questão ("Porque teu é, etc."). O evangelista Lucas, ao registrar a Oração Dominical, omite qualquer menção de uma doxologia final. Por outro lado, deve-se admitir que a doxologia conclusiva da A.V. reflete o espírito tanto do Antigo Testamento (lCr 29.11; Ne 9.5; as conclusões dos Salmos 145—150) quanto do Novo Testamento (Jo 8.50; 17.4; 1 Co 10.31; 2Tm 4.18; Ap 1.6; 4.11; 5.12,13; 19.1ss). Seria difícil, deveras, compor ou inventar uma doxologia conclusiva mais adequada.325 Não é inteiramente apropriado que nós, os suplicantes, uma vez concluídas as nossas humildes petições, voltemos os nossos olhos uma vez mais para o alto (como o fizemos no início da oração), em adoração, concentrando o coração e mente na majestade e amor de Deus, que constitui a base de nossa confiança de que a oração será ouvida?126 Assim, considerando que as palavras da doxologia, em todo e qualquer caso, estão em plena harmonia com o restante da Bíblia, e que se constituem em uma conclusão eminentemente adequada para essa oração, é justo apresentar umas poucas pa325
Assim também I I.N. Ridderbos, op. cit., p. 136. :.2í. Yer D. A. Schlatter, Erlauterungen zum Neuen Testament. Stuttgart. 1908. Vol. 1, p. 71.
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6.13b
lavras de interpretação a essa doxologia. A frase "Porque teu é o reino" pode ser considerada como pertencente a cada uma das petições precedentes, por exemplo, "Santificado seja o teu nome, porque teu é o reino", ou seja, "já que teu é o direito soberano como Rei, que o teu nome seja santificado"; ou, também: "Venha o teu reino, porque teu é o reino", ou seja, "porque é justo que a tua autoridade divina seja reverentemente reconhecida sobre os corações e vidas"; "Seja feita a tua vontade, porque teu é o reino", ou seja, "visto que tu és o Rei, que a tua vontade seja obedecida por nós e por todos"; e assim sucessivamente, ao longo de toda a oração. Reconhece-se não só o direito do Pai de atender às petições, visto que ele é o Rei sobre tudo, mas também o seu poder para fazê-lo ("e o poder"), e isso também é básico para cada uma das petições precedentes. Aqueles que fazem essa oração reconhecem que todo o poder pertence ao Pai, não só o poder sobre o universo inteiro e todo o seu conteúdo, mas ainda o poder que reside dentro de tudo: no sol para brilhar, nos ventos para soprar, nos rios para fluir, nas plantas para crescer, etc. Ainda é seu o poder exercido pelas forças sinistras, embora elas sejam culpadas pelo seu mau uso. Se esse poder não fosse seu, como seria ele (Deus) capaz de governá-lo soberanamente para o bem? Finalmente, visto que todas as virtudes de Deus são refletidas em sua obra da criação e da redenção, em cada uma de acordo com sua própria natureza, os filhos deste Pai celestial, profundamente impressionados com as manifestações de seu poder. sabedoria e bondade, acrescentam: "e a glória",7,27 atribuindo com alegria todos estes três — o reino, o poder e a glória — ao Pai, não só agora, mas "para sempre". Com um "Amém" reverente, que atesta a sinceridade de suas palavras e de sua convicção de que o Pai atenderá suas necessidades, eles terminam a oração. Embora a Oração Dominical esteja concluída, Jesus considera necessário apensar-lhe um esclarecimento provindo da quin327
Ver a nota 277.
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ta petição: "E perdoa as nossas dívidas, como também temos perdoado os nossos devedores." Uma vez que na explicação da petição já fiz alusão aos vv.14 e 15, há pouco que acrescentar aqui. 14,15. Porque, se vocês perdoarem aos homens as suas transgressões, seu Pai celestial também os perdoará. Porém, se não perdoarem os homens, tampouco seu Pai celestial perdoará as de vocês. Ainda que não só no ensino de Paulo (Rm 3.24; Ef 2.8; Tt 3.5), mas deveras também no de Cristo (Mt 5.1-6; 18.27; Lc 18.13), a salvação repousa não nas realizações humanas, e, sim, tão-somente na graça e misericórdia de Deus, isso não significa que nada mais têm a fazer os que a recebem. Eles precisam crer. Incluída nessa fé está a ardente disposição de perdoar. A não ser que os ouvintes perdoem aos homens as suas transgressões, os próprios ouvintes permanecerão sem perdão. No v.12, os pecados foram denominados dívidas, ou seja, aquilo que devemos, e pelo qual devemos sofrer o castigo, a menos que o pagamento seja efetuado, a satisfação seja feita, por nós mesmos ou por outro. Aqui, nos vv. 14 e 15, esses pecados são denominados transgressões, desvios do caminho da verdade e da justiça. 328 Ora, mesmo que esses desvios sejam de um caráter mais suave, como em G1 6.1 e talvez também em Rm 5.15,17,18, ou de um caráter mais grave, como em Ef 1.7; 2.1, eles precisam ser perdoados. Além disso, tanto quanto está em seu poder fazê-lo, o seguidor de Jesus precisa ter como objeto de seu amor perdoador não só seus irmãos no Senhor, mas também os homens em geral, como se depreende claramente do fato de que a palavra "homens", ou seja, seres humanos, é definida plenamente, tanto no v.14 como no 15. Pode-se formular a seguinte pergunta: "Porém, no processo de levar a efeito o perdão e a reconciliação, toda a obrigação repousa sobre a pessoa contra quem se pecou? O culpado também não tem obrigação?" A resposta é: "Pressupõe-se que sim." É preciso que ele se arrependa, e com a mensagem desse arrependimento deve alegrar o coração daquele a quem lesou 328
Sobre roxpájrta^a, ver R.C. Trench, op. cit., par. Ixvi. 478
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(Lc 17.3,4). Porém, isso não remove a obrigação da vítima de fazer tudo quanto estiver em seu poder para abrir amplamente a porta da reconciliação. Se nesse caso não houver cooperação da outra parte, a culpa não está mais na pessoa lesada, mas no infrator, aquele que originalmente infligiu o dano. Das três manifestações de "justiça", até aqui analisamos duas: a esmola e a oração. Resta-nos O Jejum Oração e jejum são freqüentemente combinados entre si (ISm 7.5,6; 2Sm 12.16,21-23; 2Cr 20.3,5ss; Ed 8.21-23; Ne 1.4; 9.1ss; Is 58.6,9; Jr 14.12; Dn9.3; Lc 2.37; At 13.2,3; 14.23). 16. E quando vocês jejuarem, não sejam como os hipócritas, com aparência de mau humor, porque eles fazem que seus rostos pareçam disformes para que as (outras) pessoas possam ver que estão jejuando. O jejum, como é aqui entendido, refere-se não a uma condição imposta a uma pessoa (2Co 6.5; 1 í .27), mas à abstinência voluntária de alimentos como um exercício religioso. Ele servia a diversos propósitos, quer isoladamente, quer em qualquer combinação. Dessa forma, ele podia ser uma expressão de humilhação, ou seja, tristeza pelo pecado e em conexão com a confissão de pecado (Lv 16.29-34; 23.2632; Nm 29.7-11; Dt 9.18; lRs 21.27; Nm 9.1ss; Dn 9.3,4; Jn 3.5), ou de lamentação pelo mal, quer já tenha sido experimentado — derrota numa batalha (Jz 20.26), luto (ISm 31.12; lCr 10.11,12; 2Sm 1.12), a chegada de notícias dolorosas (Ne 1.4), uma praga (J11.14; 2.12-15) — quer seja como ameaça (2Cr 20.3,5ss; Et 4.3; 9.31). No caso de Davi, quando a ameaça de morte do filho tornou-se em realidade, então ele parou de jejuar (2Sm 12.16,21-23). Havia uma base natural para os jejuns mencionados até aqui, uma vez que a tristeza esmagadora ou angústia produz a perda do apetite (cf. ISm 1.7). As vezes ordenava-se e/ou observava-se um jejum com o fim de se promover a concentração sobre um ato ou evento re479
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ligioso importante, tal como no envio de missionários (At 13.2,3), ou na designação de presbíteros (At 14.23). Ver também Êx 34.2,28; Dt 9.9,18. Quanto a isso, merece especial atenção o que talvez seja o capítulo mais belo sobre o jejum em toda a Bíblia, ou seja, Isaías 58 (especialmente os vv.6-12). E possível que aqui em Mt 6.16-18 Jesus esteja com Isaías 58 em mente, como pode ser demonstrado por meio de uma comparação. Em ambos os casos é condenado um tipo equivocado de jejum (cf. 1 Rs 21.9,11; Zc 7.3-5), e recomenda-se o jejum aceitável. A lei de Deus sugere somente um jejum em todo o ano, ou seja, no dia da expiação (Lv 16.29-34; 23.26-32; Nm 29.7-11; cf. At 27.9). Contudo, com o passar do tempo, os jejuns começaram a multiplicar-se (nem sempre jejuns de forma total; ver o texto em cada caso); de modo que, lemos de sua ocorrência em outras ocasiões também: do nascer ao pôr-do-sol (Jz 20.26; 1 Sm 14.24; 2Sm 1.12; 3.35); durante sete dias (ISm 31.13); três semanas (Dn 10.3); quarenta dias (Êx 34.2,28; Dt 9.9,18; lRs 19.8), nos meses quinto e sétimo (Zc 7.3-5); e ainda nos meses quarto, quinto, sétimo e décimo (Zc 8.19). O clímax foi a observância de um jejum "duas vezes por semana",329 o que se tornou o orgulho dos fariseus (Lc 18.12). Como uma expressão de lamentação em circunstâncias dolorosas, Jesus não encorajava os discípulos a praticarem o jejum. Ao contrário, ele os queria alegres em virtude de sua própria presença entre eles (Mt 9.14-17; Mc 2.18-20; Lc 5.3335). Como já foi indicado, Jesus mesmo observou um jejum de longa duração, provavelmente com o propósito de concentrarse na obra que o Pai lhe dera para fazer, e que ele, o próprio Jesus, assumira voluntariamente (ver a explicação de Mt 4.2). Entretanto, aqui em Mt 6.16-18 o que se tem em mente é o jejum como uma expressão de humilhação, quer fingida (v. 16) quer genuína (vv.17,18). Os hipócritas, ou seja, os escribas e fariseus (5.20; 15.1,7; 23.13), assumiam um aspecto lúgubre, com rostos desfigurados, talvez por cobri-los com cinza (lRs 529
Sobre as segundas e terças-feiras, segundo o Didaquê VIII. 1.
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20.38), a fim de que as pessoas que os rodeavam pudessem perceber que pareciam estar muitíssimo acabrunhados por seus pecados; por isso, quão piedosos pareciam! Mas estavam fazendo teatro. Jesus prossegue: Solenemente digo a vocês, eles já receberam a sua recompensa plena. Ver a explicação no comentário sobre 6.1 e 2. Tentavam de todas as formas manter um aspecto sombrio com o fim de impressionar a multidão instável. Bem, conseguiram atingir o seu propósito! Por assim dizer: "Quão completamente ridícula era tal recompensai"3™ Que absurdo preferi-la à verdadeira recompensa! (6.1). Então prossegue: 17. Você porém, quando jejuar, unja a sua cabeça e lave o seu rosto. Jesus não diz que seus seguidores devem jejuar, tampouco os proíbe de o fazerem,-caso o desejem. Em certas circunstâncias, Jesus parece considerar o jejum como algo inteiramente apropriado. Ele mesmo não jejuava, ainda que por razões inteiramente diversas, como já foi indicado? A lição que Jesus enfatiza é que quando seus seguidores entendem que devem jejuar, então que o façam, contanto que unjam suas cabeças e lavem seus rostos, praticando essa observância religiosa da forma a mais discreta possível. Essa admoestação é paralela àquela com relação à contribuição caritativa (6.2-4) e à oração (6.5 e 6). Todas essas práticas devem ser feitas "em secreto'\ ou seja, longe dos olhares humanos. Devem ser atos sinceros de devoção a Deus, tão-somente a ele. Então conclui: 18. para que não sejam os homens que vejam que você está jejuando, mas (somente) seu Pai que está em secreto veja que você está jejuando. E seu Pai que vê em secreto o recompensará. (Ver a explicação na exposição de 6.4.) Não existindo mais o dia da expiação, o jejum deixou de ser uma exigência religiosa (Cl 2.14). Todavia, há aqui lições que valem para hoje como eram válidas no passado? Sugiro as seguintes: 3mi yer £ -[rueblood, The Humor of Christ, Nova York. Evanston e Londres, 1964. pp. 15. 58.
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1. As Escrituras advertem contra a falta de moderação na comida. Ver C-.N.T. sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, p. 122. Os glutões ociosos de Creta, comilões preguiçosos e sensuais, não ficam sem reprovação (Tt 1.12). Uma das marcas dos inimigos da cruz é que "seu deus é seu ventre" (Fp 3.19; cf. Rm 16.18). Em vez de se esforçarem por manter sob controle seus apetites físicos (Rm 8.13; ICo 9.27), compreendendo que nosso corpo é o templo do Espírito Santo, no qual Deus deve ser glorificado (ICo 6.19,20), essas pessoas se entregavam à glutonaria e à licenciosidade. Adoravam a sua natureza sensual. A Bíblia proíbe isso. Quanto a isso é interessante notar que a vantagem física de reduzir o consumo de gordura de animais não é uma descoberta da medicina moderna (ver Lv 3.17;7.22-25).331 2. Não obstante, nas Escrituras não é o efeito salutar de um jejum moderado sobre o bem-estar físico da pessoa o que se tem especialmente em vista. É antes o benefício espiritual que é básico. Como já foi indicado, amiúde o jejum era uma expressão de tristeza pelo pecado ou era observado a fim de que a mente e o coração pudessem concentrar-se, não em questões materiais, mas inteiramente em Deus, nas tarefas por ele designadas. Há que reconhecer que existe uma estreita conexão entre o jejum e a meditação e a contemplação espirituais. 3. Entretanto, a ênfase principal de toda essa seção é o caráter indispensável da sinceridade na adoração (6.1-18). Quanto à relação de 6.17-34 com o sermão como um todo, e especificamente com os vv. 1-18 imediatamente precedentes, ver pp. 366, 446. A justiça na relação com Deus exige não só uma devoção sincera de todo o coração para com o Pai celestial (6.1-18), mas também uma confiança ilimitada nele em todas as circunstâncias. Portanto, passemos a considerar o subtema:
331
Ver S.I. McMillen. Nenhuma Enfermidade, Vida, São Paulo, 1986, pp. 85-89.
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Confiança ilmitada (6.19-34) Essa verdade vem a lume, antes de tudo, pela condenação do oposto, ou seja, a falta de confiança em Deus, ou seja, a ansiedade angustiante. Esta a. equivale à idolatria, porque a lealdade a Mammon que o acompanha significa separação de Deus (v.24); b. ofusca a visão, porque, ao preocupar-se em amontoar riquezas materiais, obscurece o real propósito de nossa existência (vv.22 e 23); c. confunde os valores, porque atribui maior importância ao que é secundário, e viceversa, como se o alimento fosse mais importante que a vida, e o vestuário que o corpo (v.25); e d. desafia toda razão, porque permuta os tesouros celestiais pelos terrenos, o imperecível pelo perecível (vv. 19-21); ignora que não pode acrescentar nem sequer um côvado à vida de uma pessoa (v.27); soma às lutas do dia as preocupações do dia de amanhã, como se as de hoje não bastassem (v.34); e, o que é pior ainda, recusa-se considerar que se Deus, só como Criador, alimenta as aves e veste os lírios, então é certo que, como Pai celestial, cuidará de seus filhos (vv.26,28-32). Em segundo lugar (a necessidade de confiança ilimitada em Deus) é também apresentada de forma positiva; porque, como alternativa aos mandamentos negativos ("não ajuntem... não estejam ansiosos... não se preocupem") dos vv. 19, 25, 31 e 34, respectivamente, estão os mandamentos positivos ("mas ajuntem... olhem... considerem") dos vv. 20, 26 e 28, respectivamente, levados a um clímax pelas poderosas e mui consoladoras palavras do v.33: "Busquem primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas lhes serão concedidas como uma dádiva extra." 483
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19,20. Não ajuntem para vocês mesmos tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem consomem, e onde os ladrões escavam e roubam. Porém, ajuntem para vocês mesmos tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não escavam nem roubam. Primeiro é definido o mandamento negativo, e em seguida vem o positivo (cf. vv.5,6; 7-9; 16,17; 19,20; 25,26,28; 31,33; e 7.1,5). Jesus está dizendo: quão absurdo (ver alínea d. acima) é alguém "acumular" para si mesmo "tesouros" terrenos perecíveis, e, enquanto ele faz isso, está perdendo as riquezas celestiais e imperecíveis! Os tesouros terrenos são vulneráveis em razão de deterioração e desfalque. Quanto à primeira, a deterioração, a traça os consome. Traças, mariposas e borboletas pertencem à grande ordem de insetos chamados lepidópleros, ou seja, insetos com asas cobertas de escamas. Distintas das mariposas, as traças a. constituem a maior divisão desta ordem, b. são principalmente noturnas e c. possuem antenas que não têm a forma de fuso.132 A referência aqui em 6.19-21 é ao pequeno inseto que deposita seus ovos na lã. Em seu estado larval se alimenta do tecido até que a vestimenta fica rendilhada e é destruída (Is 51.8; Lc 12.33; Tg 5.2). Ferrugem provavelmente indique a corrosão de metais, o fato de se corroer pela ação de elementos químicos. Entretanto, com toda probabilidade os termos "traça" e "ferrugem" representem todos aqueles agentes e processos que levam os tesouros terrenos a diminuírem em valor e finalmente deixem completamente de servir a seus propósitos. Assim, o pão fica mofado (Js 9.5), as vestimentas se gastam (SI 102.26), os campos (particularmente os negligenciados) se tornam infestados de ervas daninhas (Pv 24.30), os muros e cercas caem (Pv 24.31), os tetos se deterioram, apodrecem e as casas começam a goteirar (Ec 10.18) e o ouro e a prata perdem seu brilho e perecem (IPe 1.7,18). Acrescente-se a destruição causada pelos cu332 Yer o artigo "Butterfly and Moth" (Borboleta e Mariposa), na edição de 1969 da Encyclopaedia Britannica, Vol. 4. pp. 487-501. 484
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pins, furacões, tufões, tornados, terremotos, enfermidades das plantas, erosão do solo, etc, A lista é quase interminável. Quanto ao segundo, o desfalque, os ladrões arrombam e roubam. Nas paredes de adobe das casas em que Jesus estava pensando, o ladrão podia facilmente fazer uma abertura e roubar os tesouros mal guardados. A inflação, os impostos opressivos que podem equivaler a uma confiscação, as bancarrotas, as crises do mercado de capitais, os gastos associados às longas enfermidades, estes e muitos outros males semelhantes têm o mesmo efeito. Além disso, o corpo do homem, inclusive o dos mais fortes, se desgasta gradualmente (SI 32.3; 39.4-7; 90.10; 103.15,16; Ec 12.1-8). Quando ele morre, todos os tesouros terrenos, nos quais depositara suas esperanças, se desvanecem com ele. Os "tesouros no céu" (cf. 19.21) são completamente diferentes, ou seja, aquelas bênçãos que nos foram reservadas no céu (IPe 1.4), que são celestiais em seu caráter, mas das quais já desfrutamos de um antegozo mesmo agora. Começando, conforme é justo, com a enumeração de algumas dessas bênçãos como Jesus mesmo as descreve, pensamos em nossa posição com Deus como pessoas completamente perdoadas (Mt 6.14), nas orações respondidas (7.7), nos nossos nomes arrolados no céu (Lc 10.20), no amor do Pai (Jo 16.27), nas boas-vindas, não só às "mansões" celestiais, mas também ao próprio coração do Salvador (Jo 14.2,3), numa participação plena na paz de Cristo (Jo 14.27), na sua própria alegria (Jo 15.11), na sua própria vitória (Jo 16.33) e na habitação interior e permanente do Espírito Santo (Jo 14.16,26; 15.26). Ver também as bênçãos espirituais mencionadas nas bem-aventuranças (Mt 5.1-12). Paulo está pensando nesses mesmos tesouros, e os descreve às vezes nos mesmos termos, outras vezes em seus próprios termos: "justificados pela fé" (Rm 5.1), "oração respondida" (2Co 12.8,9), "o amor de Deus derramado em nossos corações" (Rm 5.5), "a coroa da justiça" com a qual o Senhor nos receberá (2Tm 4.8), "a paz de Deus que excede a todo entendimento" (Fp 4.7), "gloriar-se 485
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em Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo" (Rm 5.11), "a vitória" (ICo 15.57) e "seu Espírito no homem interior" (Ef 3.16; cf. Rm 8.14,16,26,27). Essas enumerações são meramente ilustrativas, não exaustivas. Há um grau de diferença com o qual se enfatizam as bênçãos espirituais (em contraste com as materiais) no Novo Testamento em comparação com o Antigo. Com a vinda de Cristo é como se o céu tocasse a terra. Ver C.N.T. sobre Ef 1.3. Que os tesouros celestiais são à prova de traça, à prova de ferrugem, à prova de furto (v.20), noutras palavras, são de duração eterna em todo o seu brilho fulgurante, como possessão intransferível dos filhos do Pai celestial, é o ensinamento das Escrituras como um todo, que nos fala a respeito de: uma fidelidade que jamais será removida (SI 89.33; 138.8), uma vida que jamais findará (Jo 3.16), um manancial de água que jamais cessará de fluir do interior daquele que a bebe (Jo 4.14), uma dádiva que jamais se perderá (Jo 6.37,39), uma mão da qual a ovelha do bom Pastor jamais será arrebatada (Jo 10.28), uma corrente que jamais se partirá (Rm 8.29,30), um amor do qual jamais nos separaremos (Rm 8.39), um chamamento que jamais se revogará (Rm 11.29), um alicerce que jamais será destruído (2Tm 2.19) e uma herança que jamais fenecerá (IPe 1.4,5). Entretanto, podem-se suscitar as seguintes perguntas: "Então, se é errôneo ajuntar tesouros sobre a terra, significa que é totalmente e sempre errôneo fazer provisão para as necessidades físicas futuras?" "Todo comércio, negócio e indústria que se tem com o propósito, pelo menos em parte, de fazer lucros é condenável?" "Todos os ricos devem ser considerados réprobos?" As três perguntas a resposta é: "Não!" Deus não condenou José por aconselhar Faraó a armazenar grãos para o uso futuro (Gn 41.33-36). Nem tampouco Salomão e Agur estavam errados em citar a formiga como exemplo do bom-senso revela486
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do em prover durante o verão para as necessidades do inverno (Pv 6.6; 30.25). Nem Paulo cometeu um equívoco quando escreveu 2Co 12.14b e lTm 5.8. Negócios e bancos são estimulados, por inferência, nas parábolas de Cristo (Mt 25.14-30; Lc 19.11-23). O rico Abraão (Gn 13.2) era amigo de Deus (Is 41.8; 2Cr 20.7; Tg 2.23). O rico Zaqueu (Lc 19.2) foi considerado digno de ser chamado "um filho de Abraão" (Lc 19.9); e o rico José de Arimatéia foi um seguidor do Senhor (Mt 27.57). Não obstante, acumular riquezas é um hábito cheio de perigos espirituais (Mt 19.24; Lc 12.16-21; lTm 6.10). Seguramente, o dinheiro pode ser uma grande bênção, se ele não é um fim em si mesmo, senão um meio para se alcançar um fim, ou seja, a. para impedir que a família de alguém se constitua num pesado fardo para outros (.lTm 5.8), h. para socorrer aqueles que estão em apertos (Pv 14.21; 19.17; At 4.36,37; 11.27-30; 24.17; Rm 15.25; 2Co 8.4,9; G1 2.10; 6.10; Ef 4.28) e c. para estimular a obra do evangelho na própria pátria e no estrangeiro (Mc 15.41; Lc 8.2,3; At 16.15,40; ICo 9.9; Fp 4.15-17; lTm 5.17,18), tudo para a glória de Deus (1 Co 10.31). Entretanto, o dinheiro pode ser igualmente uma armadilha (Mc 14.11; Lc 22.5; At 8.18,20). Naturalmente, se o verdadeiro tesouro de uma pessoa, seu derradeiro propósito em todos os seus esforços, é algo que pertence a esta terra — a aquisição de dinheiro, fama, popularidade, prestígio, poder —, então o seu coração, o próprio centro de sua vida (Pv 4.23), será completamente absorvido por esse objetivo mundano. Todas as suas atividades, mesmo aquelas que são de caráter religioso, serão subservientes a esse único propósito. Por outro lado, se alguém movido de sincera e humilde gratidão a Deus, fez do reino de Deus o seu tesouro, ou seja, o reconhecimento deleitoso da soberania de Deus em sua própria vida e em cada esfera da mesma, então é ali também onde estará o seu coração. Nesse caso, o dinheiro será uma ajuda, não um entrave. Foi em algo dessa natureza que Jesus estava pensando quando disse: 21. Porque onde estiver o seu tesouro, ali tam487
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bém estará o seu coração. O "coração" não pode estar em ambos os lugares ao mesmo tempo. E uma proposição em que um exclui o outro! Ver o v.24. Acumular tesouros terrenos turva a nossa visão (ver alínea b. acima, p. 483). Com uma figura de linguagem que equivale a quase uma parábola, Jesus diz: 22,23. O olho é a lâmpada do corpo. Portanto, se o seu olho é sadio, todo o seu corpo será iluminado. Porém, se o seu olho está em más condições, todo o seu corpo será escuro. Então, se a (própria) luz em você são trevas, quão grandes (são) essas trevas! Jesus não quer dizer que o olho é a fonte de luz para o nosso corpo, e, sim, que ele é, por assim dizer, o receptor da luz, o guia do qual todo o corpo depende para a sua iluminação e direção. É em virtude do olho que uma pessoa pode fazer uso da luz. Portanto, nesse sentido secundário, o próprio olho também pode ser chamado de a luz ou a lâmpada do corpo. Entretanto, isso significa que o olho deve ser sadio, ou seja, nesse contexto, sem qualquer mancha, daí, deve ser são.™ Deve 1,5
() significado básico do adjetivo ãjtXovç é simples, singular, sem complicação. Contudo, como sucede com as palavras em geral, desse sentido primário se desenvolvem diversos matizes de significado. Assim, por exemplo, o substantivo á7CÀ.óxr|ç em lif 6.5 e Cl 3.22 se refere à simplicidade de coração; dai passa a significar sinceridade, integridade, retidão (cf. I Cr 29.17). Ver também 2Co 11.3: sincera devoção. Não é difícil compreender que a disposição do coração e da mente é "simples", no sentido de não estar mesclada com motivações secundárias ou egoísticas; seria "generosa". Daí em Rm 12.8; 2Co 8.2; 9.11.13 o significado ser generosidade, liberalidade, e em Tg 1.5 o advérbio áníiwç ser traduzido generosamente. Assim também a transição de "simples" ou "singular" para "sem qualquer mistura ou defeito", "sem mancha", e daí, claro, são, saudável, é fácil de entender. Ver L.N.T. (A. e G.). artigo jploàj. p. 85. E o evidente contraste aqui (em Ml 6.22.23) indicado entre os adjetivos ànXovç, e 7tovrpóç provavelmente é melhor interpretado por sadio versus em má condição. Entretanto, Lenski insiste em "simples" em contraste com "ímpio", e nega que esses adjetivos descrevam o olho natural (op. cit., p. 269). O texto afirma claramente, todavia, que o que está sendo descrito é o olho como lâmpada do corpo. A palavra sima. "corpo", aparece não menos de três vezes nos vv.22 e 23. Portanto, concordo com a grande maioria dos tradutores e comentaristas que traduzem o par de adjetivos em contraste da seguinte maneira: "sadio ... enfermo" (Williams); "saudável... mau" (Bech); "sadio... não sadio" (R.S.V.); "sadio... defeituoso" (Berkeley); "sadio... mau" (N.E.B. 488
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estar em condição de ver com nitidez. Se o olho estiver enfermo, o corpo estará dominado pelas trevas, e assim não poderá funcionar de forma apropriada. É um fato bem conhecido que a insuficiência da luz do sol, da lua, das estrelas, das lâmpadas, etc., torna difícil ver as coisas. Contudo, um olho perfeito se adapta rapidamente às trevas. Mas se o olho mesmo, o próprio órgão da luz (no sentido já explicado), está em más condições, a escuridão será certamente grande. Nesse caso, mesmo se o sol brilha, isso não adianta muito. No melhor dos casos, tudo é visto de forma confusa, como um grande borrão. Implicação com base nos vv. 19-21: assim como uma pessoa tem um olho natural (um olho representa ambos os olhos, aqui) para iluminar sua existência física e para mantê-la em contato com o seu ambiente terreno, ela igualmente possui um olho espiritual, ou seja, a mente, para iluminar sua vida interior, para guiá-la moral e espiritualmente e para mantê-la em contato com o Pai celestial. Porém, se a "luz'" que está em tal pessoa escurece — por exemplo, em razão de seu anseio irrefreável por tesouros terrenos —, então quão imensa deve ser essa escuridão! — j á que o próprio órgão de recepção de luz foi escurecido pelo pecado. Ao fracassar no que deveria ter sido o seu propósito, ou seja, a promoção da glória de Deus, essa pessoa perde tudo! A impossibilidade de combinar dois alvos opostos (glorificar a Deus e satisfazer os anseios da carne) é declarado de forma muito concisa e sem ambigüidades no v. 24. Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se devotará a um e desprezará o outro. Vocês não e Ridderbos); "claro... inau" (N.A.S.). |Comparar as várias versões cm português. | Calvino, comentando 6.22.23. declara que o olho é aqui considerado como a lanterna ou lâmpada de todo o corpo, li prossegue: "Se as mãos e os pés são dirigidos de forma imprópria, a culpa deve ser atribuída aos olhos, que não cumprem o seu dever." Etc também discerne claramente que essa referência ao olho natural aqui é usada como figura: "Ora, devemos aplicar essa comparação â mente..." Como o vejo. em consonância com a maioria dos demais, esta é a única interpretação razoável. Jesus, ao descrever o olho físico e ao qualificá-lo de sadio ou mau, deixa que a aplicação dessa ilustração seja inferida pelos ouvintes. A luz do contexto, a "lição" era fácil dc aprender.
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podem servir a Deus e a Mamon. O homem que pôs o coração em lugar errado (v.21) e dirigiu a mente em direção errada (vv.22 e 23) também sofre de uma vontade desalinhada, uma vontade que não se harmoniza com a vontade de Deus (v.24). Talvez ele pense que pode dedicar sua lealdade plena a ambos os alvos — glorificar a Deus e adquirir possessões materiais —, porém está equivocado. Ou ele odiará um e amará o outro, ou vice-versa. Ao falar de '"Deus" a referência é ao Pai celestial como representante da Trindade, e como nos foi revelado por meio de Jesus Cristo. Pelo termo "Mamon", palavra de derivação incerta, a referência é às riquezas, às possessões, como Lc 16.5,9,11 claramente o indica. A idéia aponta para o dinheiro, propriedades, alimentos, roupas, etc. Aqui em Mt 6.24, tanto quanto em Lc 16.13, contudo, as riquezas são personificadas em possessões: ele (Mamon) é apresentado como um senhor a quem a pessoa serve com devoção e a quem ama. Hoje também as pessoas dizem: "Ele se fez escravo de seus bens." Se alguém ama a Deus, então comprovará isso por meio de uma vida devotada a ele, colocando tudo — dinheiro, tempo, dons, etc. — a seu dispor, servindo-o. Portanto, é evidente que amar a Deus não é simplesmente uma questão de emoções, senão que envolve o coração, a alma, a mente e as forças (Mt 22. 37; Mc 12.30). Amar a Deus requer serviço e até mesmo sacrifício (Mt 10.37-39). Assim posto, é por demais evidente que essa lealdade suprema, auto-sacrificadora e entusiástica não pode ser prestada a duas partes diferentes. Aquele que devota essa lealdade torna-se um adorador, e aquele a quem ela se entrega passa a ser o seu deus. Além disso, uma vez que só existe um Deus verdadeiro, depreende-se que o culto a Mamon é idolatria (ver alínea a. na p. 483). A tensão psicológica que se aglomera na alma de uma pessoa que acredita que por algum tempo conseguirá amar e servir a dois senhores se torna tão severa e insuportável que mais cedo ou mais tarde, nas atitudes, nas palavras e nos atos, essa pessoa começará a revelar onde de fato reside a sua verdadeira lealda490
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de. Um dos dois senhores será o vencedor; aliás, ele sempre esteve "no auge" o tempo todo, ainda que, provavelmente, o indivíduo em questão não estivesse plenamente consciente de tal fato. Na crise da alma agitada, ao revelar amor por um desses dois senhores, começará a revelar que ele odeia o outro, talvez até mesmo a ponto de querer traí-lo. Basta lembrar de Judas Iscariotes. Não foi Mamon que o levou a entregar Cristo nas mãos do inimigo? Ver Mt 26.14-16 e Jo 12.6. Por outro lado, lembremos Paulo. Chegou um momento na vida desse perseguidor em que começou a desprezar tudo quanto tinha possuído de mérito pessoal, possessões terrenas e prestígio, que antes tivera em tão alta conta. Tudo quanto fora lucro tornou-se agora perda (Fp 3.7ss). Outro aspecto, já implícito no anterior, é agora trazido a lume de forma mais definida, ou seja, que a pessoa que, em razão de sua falta de confiança no Pai celestial, dedica seu tempo e dons a acumular tesouros terrenos, portanto a cultuar a Mamon, confunde os valores. Tal pessoa está "toda confusa" com respeito a prioridades. Ela não consegue discernir entre as coisas de importância primária e as de importância secundária (ver alínea c\, na p. 483). Diz Jesus: 25. Portanto, lhes digo: Não fiquem ansiosos pela sua vida, sobre o que vão comer ou o que vão beber, nem pelo seu corpo, sobre o que vão vestir. Não é a vida mais importante que comida e o corpo mais importante que roupas? A palavra "portanto" mostra que existe uma conexão com o precedente. Com base no que já foi expresso e em conexão com o que será expresso, provavelmente o sentido seja o seguinte: uma vez que os tesouros terrenos e transitórios não satisfazem, e descansar o coração neles implica dispensar os deleites perenes do céu (vv. 19-21), e visto que o anseio pelas riquezas terrenas ofusca a visão mental e moral (vv.22,23) e, finalmente, em decorrência da escolha que se deve fazer entre Deus e Mamon (v.24), não prossigam pondo o seu coração em Mamon, ou seja, nas coisas terrenas, tais como comida e bebida, para manter-se vivos, ou na vestimenta, para manter-se ves491
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tidos. E depois de tudo, é o Pai celestial de vocês quem lhes deu a vida e o corpo, e será ele quem os há de sustentar. Quem os muniu do mais importante, ou seja, a vida e o corpo, não lhes fornecerá também coisas menos importantes, ou seja, comida, bebida e roupa? Não é a vida334 mais importante que a comida, e o corpo mais importante que a roupa? Então, não confundam as prioridades! Portanto, o que temos aqui é um argumento do maior para o menor, algo no estilo de Rm 8.32: "Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?"" "Não fiquem ansiosos", diz Jesus. Uma vez que aqui se usa o imperativo presente, o significado parece ser: "Não tenham esse mau hábito." Contudo, também pode ser: "Se já caíram nisso, então desfaçam esse hábito: deixem de preocuparse." Comparar com o v.3l, onde a exortação é: "Não fiquem preocupados." A palavra usada no original para ficar ansioso [preocupar-se] significa distraído, como, por exemplo, Marta, cuja atenção estava dividida a tal ponto que ela, por um momento, se esqueceu de que "uma só coisa é necessária" (Lc 10.38-42; notar o v.41: "você anda inquieta e se preocupa com muitas coisas.") Outra razão para evitar-se a ansiedade é que ela é irracional (ver alínea d., na p. 483). Jesus acabara de advertir (v.25) sobre preocupar-se indevidamente com os meios de manutenção da vida, ou seja, comida e bebida. E assim, apontando para o alto, talvez, para um bando de pássaros, ele prossegue: 26. Olhem para as aves do ar. Elas não semeiam, nem cor
' ' No v.25a e 25b a palavra <|roxií tem o significado de vida. o princípio que anima o corpo (cf. 2.20; 16.26; Mc 3.4: (,c 6.9). Em outras ocasiões, como usada nos Evangelhos, refere-se à soma total da vida que está acima do físico, especialmente a base da atividade emociona! (Mt 26.38; Mc 12.30): ou poderia indicar o cu. a pessoa (Mt 11.29; 20.28; Mc 8.36; 10.45). Para uma apresentação mais completa dos vários usos de \|/V>CT e nveüpoc no Novo Testamento e a relação que têm entre si (ate que ponto podem ser distinguidas e ale que ponto se justapõem), ver C.N.T. sobre 1 e 2 Tessalonicenses pp. 170174; também o livro desle autor A Vida Futura Segundo a Bíblia. Editora Cultura Cristã. São Paulo, SP.
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lhem, nem ajuntam em celeiros; todavia o seu Pai celestial as alimenta. Vocês são de maior valor do que elas, não é verdade? O céu palestino e o de outros países vizinhos estão sempre cheios de pássaros. As Escrituras mencionam muitos deles. No pequeno espaço de sete versículos (Lv 11.13-19) são mencionados nada menos que vinte espécies: águia, quebrantosso, águia marinha, milhano, falcão, corvo, avestruz, coruja, gaivota, gavião, mocho, corvo marinho, íbis, gralha, pelicano, abutre, cegonha, garça, poupa, morcego.335 Na antiga dispensação, todas essas eram consideradas "impuras". Em Lv 12.6 são mencionados o pombo e a rola (cf. Lc 2.24); o pardal e a andorinha, no SI 84.3; para o primeiro, ver Mt 10.29,31; Lc 12.6,7. Além da rola e da andorinha, Jr 8.7 menciona o grou. Na passagem paralela a Mt 6.26, Jesus chama a atenção de seus ouvintes para o (já mencionado) corvo (Lc 12.24). O quintal com suas aves domésticas não é negligenciado; lembre-se da belíssima passagem com referência àgalinha e seus pintainhos (Mt 23.37), e o papel exercido pelo galo no relato da negação por Pedro (Mt 26.34ss, e passagens paralelas). A águia, referida não só em Lv 11, mas também em diversas outras passagens do Antigo Testamento (inclusive as bem conhecidas de Dt 32.11; SI 103.5 e Ez 17.3,11), volta a figurar nas páginas do Novo Testamento (Mt 24.28; cf. Lc 17.37; Ap 4.7; 12.14). Já nos familiarizamos com a pomba em nosso estudo do batismo de Jesus (veja-se a exposição de 3.16). Para uma lista completa das aves mencionadas na Escritura e sua descrição, recorra à obra agradavelmente interessante, Ali lhe Birds of the Bible (Lodas as Aves da Bíblia), de A. Parmelee, Nova York, 1959. Esse autor denomina a região em que o Sermão do Monte foi pronunciado de "a encruzilhada das aves migratórias".336 Seria o caso, no exato momento em que nosso Senhor pronunciava as palavras de 6.26, que um grande bando de viajantes alados singrava os ares? E plenamente possível. Esses sào os nomes de acordo com a R.S.V. Contudo, as autoridades não estão de acordo se em alguns casos o nome esteja correto,
""p. 183.
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O que Jesus está dizendo aqui é que as aves do ar não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros, contudo são alimentadas e conservadas vivas pelo Criador. Essa passagem não deve ser mal interpretada como se estivesse estimulando a ociosidade. E nem poderia ser esse o caso, porquanto o Senhor sabia muito bem que seus ouvintes estavam conscientes do fato de que as aves adultas de forma alguma são indolentes. Elas lutam pela vida. Não ficam quietas em algum galho de árvore à espera que algum alimento lhes caia no bico. Não, elas vivem muito ocupadas. Elas recolhem insetos e minhocas, preparam seus ninhos, cuidam de seus filhotes e os ensinam a voar, etc. Pode-se até mesmo atribuir-lhes um certo grau de "preocupação" pelas contingências iminentes, especialmente as aves migratórias, pois, segundo os ditames da estação, estas viajam para regiões mais quentes ou mais frias. Não obstante, duas coisas deve-se ter em mente. Primeiro, as aves não cometem o pecado de exagerar o que fazem de bom. Não são como o rico insensato da parábola (Lc 12.16-21). Em segundo lugar, quando essas aves preparam seu ninho, treinam seus filhotes, imigram, etc., elas agem "instintivamente". E com isso não estamos realmente querendo dizer que o seu Criador, ao dotá-las desses instintos, está cuidando delas, enquanto elas mesmas simplesmente estão correspondendo a certos estímulos? Já com os homens a história é completamente outra. São eles, não as aves, que não só semeiam, colhem e ajuntam em depósitos, mas também que, enquanto se envolvem em tudo isso, amiúde são dominados por terríveis pressentimentos, desconsiderando em grande escala as promessas de Cristo! Enquanto as aves vivem "despreocupadamente", os homens são "estressados" pela aflição. O argumento de Cristo — do menor para o maior, contraste-se com o v.25 — equivale ao seguinte: se as aves, que não podem, em qualquer sentido real, fazer planos para o futuro, não têm razão para preocupar-se, muito menos vocês, meus seguidores, dotados de inteligência, de modo que podem pensar no futuro, não deviam ser dominados pela ansiedade. Além dis494
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so, s e D e u s f a z p r o v i s ã o m e s m o para e s s a s criaturas inferiores, q u a n t o m a i s n ã o terá ele c u i d a d o de vocês, que f o r a m c r i a d o s à p r ó p r i a i m a g e m de D e u s ! E m a i s e s p e c i a l m e n t e , se A q u e l e q u e as a l i m e n t a é "o Pai celestial de vocês", p o r é m p a r a c o m elas é a p e n a s o seu Criador, e n t ã o q u ã o c o m p l e t a m e n t e irracional é a a n s i e d a d e q u e v o c ê s t ê m . " V o c ê s são d e m u i t o m a i o r v a l o r d o q u e elas, n ã o é v e r d a d e ? " , p e r g u n t a o Senhor, de u m a f o r m a que, n o original, e s p e r a u m a r e s p o s t a u n i c a m e n t e a f i r m a t i v a . A irracionalidade da a n s i e d a d e se f a z i g u a l m e n t e e v i d e n t e
a partir do que vem em seguida: 27. E quem dentre vocês é capaz, com esforço ansioso, de acrescentar (ainda que seja) um côvado à extensão de sua vida? A palavra traduzida por " e x t e n s ã o de v i d a " (grego: helikia) p o d e referir-se à idade, à altura ou à estatura. V e j a m o s : Z a q u e u era p e q u e n o em estatura (Lc 19.3), p o r é m Sara tinha p a s s a d o da idade em q u e p o d i a c o n c e b e r ( H b 11.11). O c e g o de n a s c e n ç a , c u r a d o por Cristo, atingira a idade de m a t u r i d a d e legal (.Jo 9.21,23). A q u i em Mt 6 . 2 7 (cf. a p a s s a g e m paralela, Lc 12.25), a Edição Revista e C o r r i g i d a traz " e s t a t u r a " ; a E d i ç ã o R e v i s t a e A t u a l i z a d a traz " c u r s o " ; a Bíblia d e J e r u s a l é m traz " d u r a ç ã o " . P o r é m , n o p r e s e n t e c o n t e x to, " e s t a t u r a " n ã o p o d e ser correto, p o r d u a s razões: a. a c r e s c e n tar essa s o m a e q u i v a l e r i a a " c o i s a s m í n i m a s " (Lc 12.26), p o r é m crescer r e a l m e n t e dezoito p o l e g a d a s o u 4 6 c e n t í m e t r o s n ã o p o d e ser c o n s i d e r a d o u m a realização s e m i m p o r t â n c i a ; e b. q u e m , e x c e t o u m a p e s s o a a n o r m a l m e n t e p e q u e n a , d e s e j a r i a c o m imp a c i ê n c i a a c r e s c e n t a r tal s o m a à s u a estatura? Então, o verdadeiro significado é este: " Q u e m , dentre vocês, p o r m a i s p r e o c u p a d o q u e esteja, p o d e a l o n g a r a e x t e n s ã o de sua v i d a p o r um p o u c o q u e s e j a ? " (Ver A t u a l i z a d a e Bíblia de Jerus a l é m . ) N o d i a d e seu aniversário, a l g u é m p o d e r i a dizer: " H o j e e u alcancei u m n o v o m a r c o e m m i n h a v i d a . " E m seu septuagés i m o aniversário, esse indivíduo terá a l c a n ç a d o o seu septuagésimo m a r c o . A c r e s c e n t a r um c ô v a d o a setenta q u i l ô m e t r o s ou a setenta m i l h a s n e m m e s m o valeria a p e n a mencionar. Seria u m a coisa m í n i m a , p o r é m m e s m o esse p o u c o n i n g u é m p o d e alcançar p o r m e i o d a p r e o c u p a ç ã o ansiosa. U m a p e s s o a p o d e r i a " p r e 495
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ocupar-se mortalmente"; porém não pode preocupar-se e com isso a t i n g i r u m a m a i o r e x t e n s ã o e m s u a vida. Ver t a m b é m SI 39.4-6. O S e n h o r a g o r a cita outro e x e m p l o da natureza. F a z e n d o um paralelo c o m o q u e disse s o b r e as a v e s (v.26), ele a g o r a faz alusão aos lírios (vv.28-30). A c o m p a n h a n d o o seu ensino sobre a p r o v i s ã o d i v i n a de a l i m e n t o s para q u e u m a pessoa possa c o n servar a vida, ele a g o r a d e m o n s t r a q u e D e u s t a m b é m é q u e m p r o v ê r o u p a s para cobrir o c o r p o dessa m e s m a pessoa. D e v e - s e notar q u e n o s vv.26-30, t o m a d o s e m sua inteireza, t e m o s u m a elucidação e elaboração ordenadas do v.26. Jesus, portanto, pross e g u e f a l a n d o da irracionalidade da p r e o c u p a ç ã o (ver alínea d., n a p . 4 8 3 ) , p a r a que o s h o m e n s p o s s a m depositar sua p l e n a c o n fiança no Pai celestial.
Diz ele: 28,29. Além disso, por que viverdes ansiosos pela roupa? Considerem os lírios do campo, como crescem; não labutam nem tecem; eu, porém, lhes digo que nem mesmo Salomão em todo o seu esplendor se adornou como um destes. " C o n s i d e r e m " — ou seja, o b s e r v e m c u i d a d o s a m e n t e , est u d e m d e t i d a m e n t e — " o s lírios do c a m p o " , diz Jesus, e n q u a n to p e r g u n t a aos s e u s o u v i n t e s : " P o r q u e ficar ansioso pela roup a ? " N ã o s e p o d e d e t e r m i n a r c o m precisão que espécie d e f l o r n o s s o S e n h o r tinha em m e n t e e n q u a n t o se referia aos "lírios do c a m p o " . Eis a l g u m a s suposições: narciso, jacinto, lírio silvest r e 3 " , gladíolo. G o o d s p e e d traduz (para o inglês) " f l o r e s silvest r e s " ( " v e j a m c o m o as flores silvestres c r e s c e m " ) . A luz do contexto ( n o t e m a " e r v a do c a m p o . . . " ) é b e m provável que Jesus, em v e z de referir-se a a l g u m tipo particular dc flor, e s d v e s s e p e n s a n d o em t o d a s as lindas flores que v i c e j a v a m e a u m e n t a v a m o e s p l e n d o r da p a i s a g e m nessa é p o c a do ano. 337
1 com essa ílor grande e mui bela, com suas "flores radiantes e balançanles". de rápido crescimento e presentes em grande profusão, que a senhora W. Starr Dana em seu fascinante livro How to Krt.ow lhe Wilcl Flowers. Nova York. 1922. pp. 26Ü, 262. 263. relaciona Mt 6.28,29. Contudo, ela é cuidadosa em lembrar que muitos poetas orientais aplicam o termo "lírio" livremente a qualquer flor.
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" C o m o c r e s c e m " , s e g u n d o o contexto, d e v e significar: s e m q u a l q u e r t r a b a l h o d e sua parte, s e m r e c e b e r e m q u a l q u e r c u i d a do da parte de a l g u m ser h u m a n o , " q u ã o fácil e livremente, por é m q u ã o deslumbrantemente". M e s m o q u a n d o os " l í r i o s " n ã o fiam u m a só libra, no e n t a n t o n e m m e s m o S a l o m ã o , em t o d o o seu e s p l e n d o r — ao qual já se f e z s o b e j a s r e f e r ê n c i a s ; v e r a e x p o s i ç ã o de 1.7 e p. 2 4 6 —, se a d o r n o u c o m o q u a l q u e r deles. N ã o é v e r d a d e , p e l o m e n o s nesse aspecto, ou seja, q u e o v e s t u ário m a i s f i n o d e S a l o m ã o , n a m e l h o r d a s hipóteses, era a p e n a s uma imitação e um derivado do que na natureza vem das m ã o s
do Criador? A belezaprístina não pode ser igualadal Entretanto, o i r r o m p e r s i m u l t â n e o das flores na p r i m a v e r a do a n o se d e s v a n e c e de f o r m a i g u a l m e n t e repentina: h o j e estas flores estão c h e i a s de vida e a d o r n a m os c a m p o s ; a m a n h ã esta " e r v a do c a m p o " , ou seja, a s o m a total das p l a n t a s n ã o cultivadas (em contraste c o m as cultivadas), serve de combustível para o uso doméstico, n u m a terra onde não existia abundância de combustíveis.
A lição é a seguinte: 30. Ora, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje está viva e amanhã é lançada na fornalha, com certeza não vestirá a vocês mesmos, oh, homens de p e q u e n a fé?! Deparamos, aqui, com um argumento duplo, o u s e j a : a. do m e n o r para o m a i o r : se D e u s t o m a p r o v i d ê n c i a em f a v o r da erva q u e é de curta duração, c e r t a m e n t e q u e p r o v i d e n ciará em f a v o r de seus filhos, c u j o destino é a glória eterna. b. do m a i o r para o m e n o r : se D e u s a d o r n a as flores silvestres c o m roupagens tão belas, e n t ã o ele c e r t a m e n t e vestirá s e u s
filhos com o vestuário comum de que necessitam. J e s u s d e n o m i n a o s seus p r e o c u p a d o s s e g u i d o r e s d e " h o m e n s d e p e q u e n a f é " . A s diversas p a s s a g e n s nas quais ele í a z uso d e s s a d e s c r i ç ã o , em seus c o n t e x t o s , são as seguintes: Mt 6 . 3 0 e seu paralelo em Lc 12.28 ( p r e o c u p a ç ã o pelo vestuário) Mt 8.26 (o m e d o dos discípulos de perecerem afogados n u m a tempestade no mar) 497
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Mt 14.31 (o m e d o s e m e l h a n t e de P e d r o ) Mt 16.8 (a falta d o s d i s c í p u l o s de lembrar-se da lição q u e receberam em conexão c o m o poder miraculoso de Cristo). C o m base n e s s a s passagens, p a r e c e q u e a descrição se ref e r e ao fato de q u e as p e s s o a s a s s i m caracterizadas n ã o e s t a v a m a c o l h e n d o c o m seriedade o c o n s o l o q u e p o d e r i a m ter o b t i d o da p r e s e n ç a , das p r o m e s s a s , do p o d e r e do a m o r de Cristo. No v.31 J e s u s s u m a r i a a lição referente ao caráter p e c a m i n o s o e irracional da a n s i e d a d e c o m relação à c o m i d a e vestuá-
rio: 31. Portanto, não fiquem ansiosos, dizendo: 'O que iremos comer?' ou, 'O que iremos beber?' ou, 'O que iremos vestir?' C o m o se n o t o u a n t e r i o r m e n t e (ver a e x p o s i ç ã o do v.25), há u m a ligeira m u d a n ç a . N ã o só se d e v e evitar a a n s i e d a d e habitual, m a s até m e s m o o p r i m e i r o p a s s o que c o n d u z a esse hábito d e v e r i a ser e x c l u í d o ; daí, " N ã o se t o r n e m (ou: N ã o v e n h a m a ser) ansiosos." 3 3 8 No v.32 são a c r e s c e n t a d a s as r a z õ e s p a r a a e x o r t a ç ã o " N ã o s e t o r n e m ansiosos". 3 3 9 São a s seguintes: 3 2 . P o r q u e p o r t o d a s
estas coisas anseiam os gentios; além disso, o Pai celestial de vocês sabe que vocês têm necessidade de tudo isto. Naturalm e n t e q u e os gentios, q u e não r e c o n h e c e m um Pai celestial e estão em c o m p l e t a ignorância c o m relação à p r o m e s s a de realid a d e s m u i t o superiores (ver Ef 1.3; 2.11,12), c o l o c a m o seu coração na c o m i d a e no vestuário e p r e o c u p a m - s e c o m essas coisas. As coisas m a t e r i a i s se c o n s t i t u e m no o b j e t o de seu d e s e j o consumidor. 3 4 0 E m r a z ã o d e o s s e g u i d o r e s d e Cristo s e r e m c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e s ( M t 6.7; E f 4.17-24), eles d e v e m t a m b é m 3: s
" A forma fiepipvfiar|Te é seg. pes. pl. aor. sub. de pepipváto. Notar o uso de yáp ao introduzir ambas as orações: daí Jtávxa yàp zaína, e ouôev yáp. Ao traduzir ambas pela palavra "porque", poderia facilmente deixar a im pressão de que a segunda cláusula está explicando a razão da primeira, o que lá/, pouco sentido. Portanto, parece melhor que no v.32 se traduza "porque... porém". Prefiro "porque... além disso". O fato de que nem lodo yáp tem de ser traduzido "porque" é bem conhecido. Ver [ I.K. Dana e J.R. Mantey, Gramática Grega do Novo Testamento, pp. 235,236. Ver também C.N.T. sobre Gálatas, nota 25. Ml Notar a posição enfática de návxa yàp rama no início do período.
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s e g u i r um r u m o d i f e r e n t e : d e v e m ser distintos e n ã o d e s c e r até o nível d o s gentios. D e v e m c o n f i a r e n ã o ter m e d o . E s t r e i t a m e n t e ligada c o m a p r i m e i r a está a s e g u n d a r a z ã o p a r a a a d m o e s t a ç ã o " N ã o se t o r n e m a n s i o s o s " , ou seja, "O Pai celestial d e v o c ê s sabe q u e v o c ê s t ê m n e c e s s i d a d e d e tudo isso", sim, ele sabe disso " m e s m o a n t e s de lhe p e d i r m o s " (v.8). Isso é t u d o q u a n t o é n e c e s s á r i o , p o r q u e tão g r a n d e é o a m o r d e s s e Pai p a r a c o m s e u s f i l h o s , q u e e s s e m e s m o conhecimento d e s u a s n e c e s s i d a d e s g a r a n t e q u e ele t a m b é m p r o v e r á o n e c e s s á r i o (cf. Ef 3.20). U m m a n d a m e n t o positivo indica u m c l í m a x q u e r e f o r ç a a lição d e q u e a l g u é m d e v e d e p o s i t a r sua total c o n f i a n ç a n o Pai
celestial: 33. Entretanto, busquem antes o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas serão concedidas a vocês como uma dádiva especial. Em contraste com os gentios, que busc a m d e s e s p e r a d a m e n t e c o m i d a , b e b i d a , vestuário, etc., os seg u i d o r e s de C r i s t o são c o n c i t a d o s a buscar antes de t u d o o seu reino e a s u a j u s t i ç a (de Cristo). O v e r b o buscar s u b e n t e n d e u m a vida o c u p a d a na busca, n u m e s f o r ç o perseverante e e s t r é n u o p a r a se o b t e r a l g u m a coisa (cf. 13.45). A f o r m a do v e r b o u s a d o t a m b é m permite a tradução: "Fiquem buscando constantement e " (cf. Cl 3.1). N o t a r : b u s q u e m primeiro; ou seja, dai a D e u s a p r i o r i d a d e q u e lhe é d e v i d a ( 2 C o 4.18). O o b j e t o d e s s a b u s c a é "o s e u reino e a sua j u s t i ç a " . Os o u v i n t e s são e x o r t a d o s , pois, a r e c o n h e c e r D e u s c o m o Rei em s e u p r ó p r i o c o r a ç ã o e vida, e a f a z e r t u d o q u a n t o f o r possível p a r a f a z ê - l o t a m b é m r e c o n h e c i d o no c o r a ç ã o e vida de outras p e s s o a s , e em t o d a e s f e r a : na e d u c a ç ã o , no g o v e r n o , no c o m é r cio, na indústria, na ciência, etc. P a r a o c o n c e i t o de " r e i n o do c é u " , ver pp. 3 4 8 - 3 5 0 . E natural q u e q u a n d o D e u s é r e c o n h e c i do c o m o Rei, a j u s t i ç a p r e v a l e ç a . P a r a esse conceito, ver a exp o s i ç ã o de 5.6 e 5.48. Estes d o i s e l e m e n t o s (reino e justiça) v ã o s e m p r e j u n t o s . De fato, "o reino de D e u s é [significa, i m p l i c a ] j u s t i ç a " ( R m 14.17), u m a j u s t i ç a tanto i m p u t a d a q u a n t o c o m u n i cada aos homens, u m a justiça que é u m a condição jurídica e, ao m e s m o t e m p o , u m a c o n d u t a ética. 499
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S e m d ú v i d a , é v e r d a d e que esse reino e sua j u s t i ç a são d o n s g r a c i o s a m e n t e c o n c e d i d o s . Eles são seu reino e sua justiça. '" E l e s são, c o n t u d o , o b j e t o s de u m a b u s c a c o n t í n u a e diligente; de um e s f o r ç o incessante e á r d u o c o m o fim de obtê-los. Esses dois e l e m e n t o s n ã o são contraditórios. U m e x e m p l o extraído d a n a t u r e z a o esclarecerá. U m a á r v o r e n ã o t e m o p o d e r de por si m e s m a se sustentar. Suas raízes são, por a s s i m dizer, m ã o s est e n d i d a s para o a m b i e n t e . E l a d e p e n d e do s o b do ar, das n u v e n s e do solo. N e m s e q u e r t e m f o r ç a p a r a a b s o r v e r os nutrientes de q u e precisa. O sol é a f o n t e de sua energia. P o r é m , c o m isso quer-se dizer q u e a árvore é inativa? De m o d o algum. Suas raízes e folhas, e m b o r a e x c l u s i v a m e n t e receptivas, estão m u i t í s s i m o ativas. Por e x e m p l o , t e m - s e e s t i m a d o q u e a q u a n t i d a d e de esf o r ç o r e a l i z a d o p o r u m a certa á r v o r e g r a n d e n u m s ó dia p a r a lazer subir á g u a e m i n e r a i s , do solo às f o l h a s , é a m e s m a q u a n t i d a d e d e energia gasta p o r u m a p e s s o a q u e carrega trezentos b a l d e s d e água, d o i s d e c a d a vez, s u b i n d o u m a e s c a d a d e uns três m e t r o s e m e i o . As f o l h a s t a m b é m são f á b r i c a s virtuais. E l a s t a m b é m v i v e m e m t r e m e n d a atividade. O m e s m o v a l e t a m b é m c o m r e s p e i t o a o s c i d a d ã o s do rein o . Eles r e c e b e m o reino c o m o u m a dádiva. C o n t u d o , d e p o i s de r e c e b e r e m o n o v o p r i n c í p i o de vida, os b e n e f i c i á r i o s se t o r n a m m u i t o ativos. T r a b a l h a m c o m m u i t o e m p e n h o , n ã o por m e i o d e a l g o q u e h a j a n e l e s m e s m o s , m a s p e l o p o d e r q u e lhes está s e n d o c o n s t a n t e m e n t e f o r n e c i d o pelo Espírito do Senhor. Eles " c o n cretizam a s u a p r ó p r i a salvação", e são c a p a z e s de f a z e r isso em v i r t u d e de q u e "é D e u s q u e m o p e r a neles tanto o querer c o m o o realizar, s e g u n d o o seu b e n e p l á c i t o " ( F p 2.12,13; ver t a m b é m Mt 7.13; cf. Lc \ 3.24; 16.16b). C o n f i a m nas p r o m e s s a s de D e u s , o r a m , d i v u l g a m a m e n s a g e m da salvação e, m o v i d o s de gratidão, r e a l i z a m b o a s o b r a s para o b e n e f í c i o d o s h o m e n s e para a glória de Deus. A r e c o m p e n s a da graça: "e t o d a s estas coisas serão c o n c e d i d a s a v o c ê s c o m o u m a d á d i v a especial". E n q u a n t o eles con341
Aqui também pode-se lazer urna alusão á justiça dos escribas e fariseus: como se dissesse: "xna justiça, não a deles. Ver 5.20.
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c e n t r a m s u a a t e n ç ã o no reino e s u a j u s t i ç a , o d o m de D e u s a eles d e s t i n a d o , seu Pai celestial v e l a p a r a q u e t e n h a m c o m i d a , bebida e vestuário. Para u m a e l u c i d a ç ã o m a i s clara, v e r l R s 3 . 1 0 14; Mc 10.29,30; 1 Tm 4.8. C o m base em tudo o q u e foi dito até aqui, a c o n c l u s ã o é:
34. Portanto, não fiquem aflitos pelo342 amanhã, porque o amanhã por si mesmo ficará aflito. Cada dia, por si mesmo, tem bastante problema. Veja-se alínea d., na p. 483. Prover para a m a n h ã [ f u t u r o ] é u m a c o i s a um p o u c o diferente. A t é certo p o n t o isso n ã o p o d e ser c o n d e n a d o . Ver Lc 16.8,9, m a s o b s e r -
var também o v. 13. Encher-se de ansiedade pelo dia de amanhã é s e m p r e um m a l . A ú n i c a m a n e i r a correta de p r o v e r p a r a o amanhã sem ao m e s m o tempo se preocupar é cuidar para que hoje se o b e d e ç a à a d m o e s t a ç ã o do v.33 ( " P o r é m , buscai p r i m e i ro o seu reino e a sua j u s t i ç a " ) . Jesus apresentou todas as razões que comprovam por que p r e o c u p a r - s e c o m o a m a n h ã é e r r ô n e o e irracional. Ver o s u m á rio da p. 4 8 3 . O hoje n o s foi d a d o . Portanto, c o m gratidão d e v e m o s f a z e r neste dia o que D e u s n o s pede. " S e hoje o u v i r e m a s u a v o z " (SI 95.7). N o q u e c o n c e r n e a o dia d e a m a n h ã , aqui personificado, d e i x e m o - l o e m r e p o u s o . D e i x e m q u e ele " s e preoc u p e p o r s i m e s m o " , disse Jesus, t a l v e z c o m u m t o q u e d e h u mor. Q u a n d o o a m a n h ã chegar, h a v e r á n o v o s p r o b l e m a s , m a s h a v e r á t a m b é m n o v a s forças. D e u s n o s m u n e d e f o r ç a s , hoje, p a r a e n f r e n t a r m o s a s d i f i c u l d a d e s d e a m a n h ã . Q u a n d o refletim o s s o b r e o f a t o de q u e " c a d a dia, p o r si m e s m o , tem bastante p r o b l e m a s " (ou: " B a s t a ao dia o seu próprio m a l " — A t u a l i z a d a ) n o s v e m i m e d i a t a m e n t e à l e m b r a n ç a L m 3.22,23: " A s misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porq u e as suas misericórdias n ã o têm fim; renovam-se cada manhã." Os Dez M a n d a m e n t o s foram escritos em duas tábuas (Dt 5.22). J e s u s s u m a r i o u essa lei n a s c o n h e c i d a s p a l a v r a s de Não concordo com Lenski (op. cit.. p. 728). quando traduz: ""Portanto, não vos preocupeis no amanhã." A preposição grega eiç nem sempre significa para dentro, nem mesmo nesse tipo de contexto. Ela pode muito bem significar "por", como L.N.T. (A. e G.), p. 228. mostra. Cf. Ef 4.30: Ep 2.16: Ap 9.15.
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Mt 2 2 . 3 7 - 3 9 : "Você a m a r á ao S e n h o r seu D e u s de todo o seu coração... e a m a r á ao seu p r ó x i m o c o m o a si m e s m o . " De f o r m a s e m e l h a n t e , o p a i - n o s s o c o n t é m dois g r u p o s de petições, c u j o p r i m e i r o g r u p o refere-se a D e u s , e o s e g u n d o , ao h o m e m . Assim também se dá com o Sermão do Monte considerado como um todo. Tendo sumariado o dever do h o m e m para c o m Deus ( c a p . 6), e m s e g u i d a d e c l a r a s u a o b r i g a ç ã o p a r a c o m o p r ó x i mo (7.1-12). Os d o i s d e v e r e s estão r e l a c i o n a d o s entre si, p o r q u a n t o o h o m e m é a i m a g e m de Deiis ( G n 1.27). Conseqüentemente, agora atingimos a subdivisão que trata de
A essência dessa justiça com respeito ao relacionamento do homem com o homem J e s u s c o m e ç a e s s a seção, d i z e n d o : 7.1. N ã o c r i t i q u e m o s outros... C o m o em 6 . 1 , 1 9 , 2 0 ; 7.7, etc., um p r i n c í p i o é p r i m e i r o declarado, e em s e g u i d a é e x p l i c a d o . O q u e p r e c i s a m e n t e o Sen h o r quis dizer a o a f i r m a r : " N ã o j u l g u e i s " [em q u a s e t o d a s a s v e r s õ e s e m p o r t u g u ê s ] ? Q u i s ele dizer que t o d a f o r m a d e j u l g a m e n t o é t o t a l m e n t e , e s e m q u a l q u e r qualificação, proibida, de tal m o d o q u e n ã o s e n o s p e r m i t e f o r m a r opinião, n e m e x p r e s s á la, c o m r e f e r ê n c i a ao n o s s o p r ó x i m o , n e m c o m r e f e r ê n c i a a ele, j a m a i s d e v e m o s emitir o p i n i ã o d i f e r e n t e ou d e s f a v o r á v e l ? À luz d o q u e J e s u s m e s m o diz n e s s e m e s m o p a r á g r a f o (v.6), d o qual s e d e d u z q u e d e v e m o s c o n s i d e r a r certos i n d i v í d u o s c o m o sendo c ã e s e p o r c o s , e à l u z de Jo 7 . 2 4 ; cf. I C o 5 . 1 2 ; 6 . 1 - 5 ; G 1 1.8,9; F p 3.2; l T s 2 . 1 4 , 1 5 ; l T m 1.6,7; T t 3.2,10; U o 4.1; 2 J o 10; 3 J o 9, e outras tantas p a s s a g e n s q u e p o d e r i a m a c r e s c e n tar-se, é e v i d e n t e q u e n ã o se trata de u m a c o n d e n a ç ã o tão c o m pleta c o n t r a a f o r m a ç ã o de u m a o p i n i ã o a respeito de u m a p e s soa, e de e x p r e s s á - l a a b e r t a m e n t e . J e s u s m e s m o c h e g a r a a certas c o n c l u s õ e s referentes a o s e s c r i b a s e f a r i s e u s e n ã o h e s i t o u em e x p r e s s á - l a s ( M t 5 . 2 0 ; 6.2,5,16; 15.1 ss.; 23.1ss.). E m b o r a s e j a v e r d a d e que n ã o p o d e m o s ler o q u e está no c o r a ç ã o de n o s s o p r ó x i m o c o m o J e s u s era c a p a z de f a z e r (Jo 2 . 2 4 , 2 5 ) , de m o d o q u e o H O M O j u í z o d e v e ser 502
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m a i s r e s e r v a d o e j a m a i s d e v e ser d e f i n i t i v o , n ã o há n a d a no ensino, q u e r d o p r ó p r i o Cristo, q u e r d o s a p ó s t o l o s d e p o i s dele, q u e n o s alivie d a o b r i g a ç ã o d e f o r m a r o p i n i ã o s o b r e a s p e s s o a s e d e agir c o m b a s e e m tais o p i n i õ e s . A s s i m t a m b é m f i c a s u b e n t e n d i d o q u e à s v e z e s será n o s s o d e v e r e x p r e s s a r n o s s o s j u í z o s . Mt 7.1 às v e z e s t e m sido u s a d o c o m o d e s c u l p a para o d e s c u i d o no e x e r c í c i o da d i s c i p l i n a eclesiástica; p o r é m , à luz de seu c o n texto, b e m c o m o de 18.15-18 e Jo 2 0 . 2 3 , o u s o d e s s a p a s s a g e m não encontra qualquer justificativa. Então, o que Jesus quis ensinar? Ele quis ensinar (ver vv. 3 - 5 ) q u e é e r r a d o a l g u é m c o n c e n t r a r sua a t e n ç ã o na p e q u e n a m a n c h a q u e h á n o o l h o d e seu i r m ã o e , e n q u a n t o a s s i m f a z , n ã o levar em c o n t a a trave q u e há em seu p r ó p r i o olho. A q u i o Sen h o r c o n d e n a o espírito de c e n s u r a , o j u í z o áspero, a a u t o j u s t i f i cativa em d e t r i m e n t o de outros, e isso s e m m i s e r i c ó r d i a , s e m a m o r , c o m o o i n d i c a t a m b é m a p a s s a g e m paralela (Lc 6.36,37). D i s c r i m i n a r de m o d o crítico é necessário; ser hipercrítico é errado. N ã o d e v e m o s dizer o q u e é f a l s o ( E x 23.1), o q u e é d e s n e c e s s á r i o ( P v 11.13) e o q u e é m a l d o s o (Pv 18.8). U m a das melhores e t a m b é m mais interessantes exposições dessa verdade q u e já encontrei é a de L. B. F l y n n , em seu livro Did 1 Say That? ( E u D i s s e Isso?). N a s h v i l l e , 1959; ver e s p e c i a l m e n t e o c a p í t u l o 3, q u e traz o título: "A K e e n Sense of R u m o r " (O P e n e trante S e n s o d o B o a t o ) . O p e c a d o aqui c o n d e n a d o era m u i t o c o m u m , o q u e e v i d e n cia, p o r e x e m p l o , o fato de que D a v i c o n d e n o u à m o r t e um h o m e m rico que, c o n f o r m e fizeram o rei acreditar, r o u b a r a e m a t a ra a cordeirinha de um h o m e m pobre; e ao condená-lo, Davi n ã o c o m p r e e n d e u que assim estava condenando a si próprio! ( 2 S m 12.1-7). E s s a inclinação p a r a d e s c o b r i r e c o n d e n a r s e v e r a m e n t e as faltas, reais ou imaginárias, d o s outros, e n q u a n t o se f a z vista g r o s s a e m r e l a ç ã o à s p r ó p r i a s faltas, q u e a m i ú d e são v i o l a ç õ e s a i n d a m a i s g r a v e s d a lei d e D e u s , era c o m u m entre o s j u d e u s ( R m 2.1,2), e s p e c i a l m e n t e entre os f a r i s e u s (Lc 18.9; Jo 7.49), e 503
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é c o m u m s e m p r e e em todo lugar. De a c o r d o c o m as palavras de
Jesus aqui em 7.1, para que vocês mesmos não sejam criticados, a p e s s o a q u e se j u s t i f i c a a o s seus p r ó p r i o s olhos, que t e m p o r c o s t u m e d e s c o b r i r faltas n o s outros, d e v e lembrar q u e ela m e s m a p o d e esperar ser t a m b é m c o n d e n a d a , e isso n ã o só p o r parte d o s h o m e n s , m a s t a m b é m , e e s p e c i a l m e n t e , p o r parte de D e u s , c o m o t e m o s e m G 1 6.14,15, s e g u n d o j á foi m e n c i o n a d o . Cf. 18.23-35. C o m o o b j e t i v o de e n f a t i z a r o p e n s a m e n t o e x p r e s s o em 7.1b, o m e s m o é r e p e t i d o n u m a f r a s e o l o g i a um p o u c o diferente:
2. Porque, de acordo com o juízo com que criticarem (os outros), vocês mesmos serão julgados; e de acordo com a medida com que vocês medirem (os outros), vocês serão m e d i d o s , q u e r e n d o dizer: o p a d r ã o (ou critério) de j u l g a m e n t o q u e v o c ê s a p l i c a r e m a o s outros, será a p l i c a d o a vocês. Se o seu j u l g a m e n t o f o r s e m misericórdia, e n t ã o v o c ê s serão julgados s e m misericórdia. I g u a l m e n t e , se o seu j u l g a m e n t o f o r c o m bondade, v o c ê s serão j u l g a d o s e tratados c o m b o n d a d e . Então será d e r r a m a d a em seu r e g a ç o " b o a m e d i d a , recalcada, s a c u d i d a e t r a n s b o r d a n t e " . A s s i m v o c ê s serão j u l g a d o s e r e c o m p e n s a d o s p o r Deus, c o m certeza (6.14,15; cf. R m 2.16; 3.6), p o r é m o s a g e n t e s h u m a n o s não são e x c l u í d o s (Lc 6.34,38). S e g u e - s e u m a d e s c r i ç ã o figurativa d o s críticos m o r d a z e s e u m a a d v e r t ê n c i a dirigida a eles n o s vv.3-5. E p o r q u e v o c ê
nota341 a pequena mancha no olho de seu irmão, e nem (mesmo) enxerga a viga que está no seu próprio olho? Ou como pode dizer ao seu irmão: Deixe-me tirar a pequena mancha 343
Essa passagem (vv.3-5) contém quatro palavras diferentes que pertencem à esfera geral da observação ou contemplação. São as seguintes: a. piéiieiç 2a pes. pres. ind. at. de pXérao. aqui provavelmente com força continuativa: olhas a ou ficas olhando a. E um verbo muito comum (cf. 5.28; 6.4.6.18; etc.). b. 5iafW.éjteiç 2a pes. sing. fut. ind. de SiapUérao, uma intensificação de pÀepoi; por isso, ver claramente, olhar através de, penetrar. Cf. Lc 6.42. Em Mc 8.25. provavelmente: abrir completamente os olhos de alguém. c. iSoú. já discutido na nota 133. d. Kcaavoeiç. T pes. sing. pres. ind. de iccraxvoéco: aqui (e no paralelo em Lc 6.41). tomar cuidadosa nota de, observar. Cf. At 27.39.
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MATEUS
7.3-5
de seu olho, enquanto você tem uma viga no teu próprio olho? Hipócrita! Antes de tudo, tire a viga do seu próprio olho, e em seguida você verá suficientemente claro para tirar a pequena mancha do olho de seu irmão. A viga é uma pesada p e ç a d e m a d e i r a u s a d a e m c o n s t r u ç ã o c o m o suporte horizontal p a r a travar o m a d e i r a m e n t o . A " p e q u e n a m a n c h a " ou " a r g u e i r o " é u m a p e q u e n i n a farpa de p a l h a ou m a d e i r a , e t a l v e z u m a m i n ú s c u l a lasca d e u m a viga. N a f i g u r a q u e J e s u s o r a usa, ele s e dirige ao o u v i n t e c o m u m p e r g u n t a n d o c o m o é possível q u e ele f i q u e o l h a n d o a t e n t a m e n t e u m s i m p l e s argueiro n o o l h o d e seu irmão, e até m e s m o pede permissão para removê-lo, enquanto, ao m e s m o tempo, desconhece completamente a presença de u m a viga incomparavelmente maior em seu próprio olho! Cf. Jo 8.7. Surge a pergunta: Q u e m seria e s s e s u p o s t o o f t a l m o l o g i s ta? R e s p o s t a : ele é d e n o m i n a d o " h i p ó c r i t a " , um t e r m o q u e Jesus g e r a l m e n t e u s a para caracterizar os escribas e f a r i s e u s de s e u s dias (5.20, cf. 6.2,5,16; 15.1,7; 23.13), u m a classe de indivíduos a quem o Senhor descreve c o m o aqueles "que confiav a m em si m e s m o s p o r se c o n s i d e r a r e m j u s t o s , e d e s p r e z a v a m os o u t r o s " (Lc 18.9). Portanto, aqui se caracteriza q u a l q u e r pess o a c o m u m a d i s p o s i ç ã o farisaica. U m a v e z q u e n o c o r a ç ã o d e t o d o s , inclusive os s e g u i d o r e s de Cristo até ao p o n t o em q u e a graça ainda não os transformou completamente, se esconde um f a r i s e u , a c o n c l u s ã o é q u e e s s a p a s s a g e m se aplica a t o d o s , no sentido de q u e t o d o s p r e c i s a m e x a m i n a r - s e a si m e s m o s ( I C o 11.28) a f i m de q u e n ã o a n d e m d e s c o b r i n d o faltas n o s outros, n e m p r o c u r e m corrigi-los s e m se a u t o - e x a m i n a r e m e autodiscip l i n a r e m . U m a p e s s o a p o d e ser m u i t o b o a a seus p r ó p r i o s o l h o s (cf. Lc 18.11,12), todavia, se ela n ã o é h u m i l d e , então, p e l o prism a divino, h á u m a v i g a e m seu olho, a viga d a a u t o j u s t i f i c a ç ã o . Isso f a z d e tal p e s s o a u m o f t a l m o l o g i s t a cego q u e tenta realizar u m a cirurgia n u m olho alheio! P o r m a i s grave q u e o erro d o p r ó x i m o p o s s a p a r e c e r aos o l h o s d o p r e t e n s o " o f t a l m o l o g i s t a " , n ã o era u m m e r o " a r g u e i r o " , u m a p e q u e n i n a m a n c h a , c o m p a r a da c o m a sua j u s t i ç a própria, um d e f e i t o tão patente a o s o l h o s de D e u s , e q u i v a l e n t e à v i g a no o l h o do crítico? 505
7.13,14
MATEUS
Q u a n d o , p e l a s o b e r a n a graça, esta v i g a for r e m o v i d a , então aquele q u e a n t e s p u n h a defeito estará h a b i l i t a d o a ver sufic i e n t e m e n t e claro p a r a r e m o v e r do olho de seu i r m ã o o argueiro, ou seja, estará em c o n d i ç õ e s de restaurar o seu i r m ã o " c o m espírito de b r a n d u r a " , e e x a m i n a n d o - s e , p o r e x e m p l o , à luz de 1 Co 13, c u i d a r á p a r a q u e ele m e s m o n ã o s e j a tentado (G1 6.1). A luz da l o c u ç ã o final, o n d e se f a z m e n ç ã o de tirar o cisco do o l h o do irmão, é e v i d e n t e q u e o p r o p ó s i t o de Cristo, nos vv.3-5, n ã o era d e s e s t i m u l a r a disciplina m ú t u a . Ao contrário, n e s s e dito (de J e s u s ) tanto a a u t o d i s c i p l i n a q u a n t o a disciplina m ú t u a são e s t i m u l a d a s . A l é m disso, p a r a i m p e d i r q u e a d e n ú n cia d a atitude hipercrítica, n o s vv.3-5, p o s s a a l i m e n t a r a l g u m a n o ç ã o de q u e a p a c i ê n c i a c o m os s e g u i d o r e s do erro será infinita, o S e n h o r a g o r a acrescenta: 6. N ã o d ê e m aos cães o q u e é
santo, e nem lancem suas pérolas diante dos porcos... "Irm ã o s " (ver vv.3-5) e " c ã e s " ou " p o r c o s " (v.6) n ã o d e v e m ser tratados d a m e s m a f o r m a . O s crentes d e v e m d i s c r i m i n a r c o m muita prudência. P a r a q u e se e n t e n d a esse dito, é mister, antes de tudo, descobrir o q u e s i g n i f i c a m " c ã e s " e " p o r c o s " . Entre os j u d e u s , os cães das ruas e r a m considerados c o m o algo de p o u q u í s s i m a valia. A referência, aqui, n ã o é a c ã e z i n h o s de e s t i m a ç ã o , e, sim, a c ã e s vadios, g r a n d e s , s e l v a g e n s e feios. P o d i a - s e vê-los em q u a se toda parte, p e r a m b u l a n d o p e l o s lixos à p r o c u r a de restos lanç a d o s nas ruas. E r a m considerados i m u n d o s e nojentos (Pv 26.11; cf. 2 P e 2.22; Ap 22.15). E l e s a m e a ç a m (SI 22.16,20), u i v a m e r o s n a m (SI 59.6), são g a n a n c i o s o s e a t r e v i d o s (Is 56.11). Em r e s u m o , eles são desprezíveis (1 Sm 17.43; 24.14; 2 S m 9.8; 16.9; 2 R s 8.13). Ser d e v o r a d o p o r cães era sinal d e que sobre u m a p e s s o a p a i r a v a u m a especial m a l d i ç ã o de D e u s (1 Rs 14.11; 16.4; 2 1 . 2 4 ; cf. l R s 2 1 . 1 9 ; 22.38). C o m r e l a ç ã o a o s p o r c o s ( e m M t 8 . 3 0 - 3 2 e p a s s a g e n s paralelas, o r e f ú g i o e s c o l h i d o p e l o s d e m ô n i o s ) , aqui são c o n s i d e r a dos como sendo igualmente desprezíveis e imundos. O Antigo Testamento m e n c i o n a os suínos entre os animais imundos ( L v 11.7; Dt 14.8). Em Is 6 5 . 4 e 6 6 . 3 , 1 7 d e n o m i n a - s e de a b o m i 506
MATEUS
5.14b-16
n a ç ã o o c o m e r c a r n e de suíno. P a r a o f i l h o p r ó d i g o , ser m a n d a do p a r a os c a m p o s a a l i m e n t a r p o r c o s d e v e ter a u m e n t a d o sua d e s g r a ç a (Lc 15.15,16). C ã e s e p o r c o s são m e n c i o n a d o s j u n t o s n ã o s ó aqui e m M t 7.6, m a s t a m b é m e s s e n c i a l m e n t e e m I P e 2 . 2 2 : "O c ã o v o l t o u ao seu p r ó p r i o v ô m i t o ; e: a p o r c a l a v a d a v o l t o u a r e v o l v e r - s e no l a m a ç a l . " É e v i d e n t e que, para Jesus, a e x p r e s s ã o "o q u e é s a n t o " — ou seja, a q u i l o q u e é s e p a r a d o do c o m u m , q u e está em estreita r e l a ç ã o c o m D e u s e c o n s a g r a d o a ele 344 — e " p é r o l a s " são usad o s c o m o s i n ô n i m o s . O t e r m o g r e g o p a r a pérola é margarités, do qual são o r i u n d o s os n o m e s M a r g a r i d a e Rita. As pérolas, o b t i d a s d o G o l f o Pérsico o u d o O c e a n o Índico, t i n h a m p r e ç o s fabulosos, muito acima do poder aquisitivo da pessoa c o m u m . P a r a a d q u i r i r u m a p é r o l a d e g r a n d e valor, u m c o m e r c i a n t e t i n h a d e v e n d e r t o d a s a s suas p o s s e s s õ e s ( M t 13.46; cf. l T m 2.9; A p 17.4; 18.12,16; 21.21). C o m b i n a n d o t u d o isso, e s t a m o s a g o r a e m c o n d i ç ã o d e c o n cluir q u e aqui e m 7.6 J e s u s está a f i r m a n d o que t u d o q u a n t o está em especial r e l a ç ã o c o m Deus, e c o n s e q ü e n t e m e n t e é m u i t o precioso, d e v e ser t r a t a d o c o m r e v e r ê n c i a , e n ã o ser c o n f i a d o à q u e les que, e m r a z ã o d e s u a n a t u r e z a c o m p l e t a m e n t e ímpia, viciosa e desprezível, p o d e m ser c o m p a r a d o s a c ã e s e p o r c o s (ver t a m b é m F p 3.2). S i g n i f i c a , p o r e x e m p l o , q u e o s d i s c í p u l o s d e Cristo não devem continuar sempre levando a mensagem do evang e l h o a o s q u e d e l a e s c a r n e c e m . C e r t a m e n t e q u e d e v e - s e exercer a p a c i ê n c i a , p o r é m d e v e h a v e r limite. C h e g a - s e o m o m e n t o q u a n d o a r e s i s t ê n c i a c o n s t a n t e ao c o n v i t e da graça d e v e ser p u n i d a c o m a retirada d o s m e n s a g e i r o s d a s b o a s n o v a s . O s d i t o s s e g u i n t e s d e Cristo, b e m c o m o suas a ç õ e s , serv e m d e c o m e n t á r i o a M t 7.6. Q u ã o p a c i e n t e foi ele c o m T o m é ( J o 2 0 . 2 4 - 2 9 ) e c o m P e d r o (Jo 2 1 . 1 5 - 1 9 ) , p o r é m p a r a c o m H e r o d e s A g r i p a , a q u e m c o m f r e q ü ê n c i a advertia ( M c 6.20), m a s que desconsiderava todas essas admoestações, Jesus não t i n h a s e q u e r u m a p a l a v r a (Lc 23.9). P r o n u n c i o u u m a m a l d i ç ã o 544
Para uma explicação mais detalhada do conceito "santo", ver C.N.T. sobre Filipenses, p. 69.
507
5.11,12
MATEUS
s o b r e C a f a r n a u m , a qual d e i x a r a de levar a sério suas m e n s a gens e d e i x a r a de aplicar a si m e s m a as lições e n s i n a d a s p o r suas p o d e r o s a s o b r a s ( M t 11.23). Instruiu seus discípulos a n ã o p e r m a n e c e r e m p o r m u i t o t e m p o o n d e o seu ensino f o s s e rejeitado ( M t 10.14,15,23). Na p a r á b o l a da figueira estéril (Lc 13.69), ele m o s t r o u que a p a c i ê n c i a de Deus, a i n d a q u e p r o l o n g a d a , n ã o dura para s e m p r e . Cf. Pv 29.1. S e g u n d o o n o s s o m o d o de ver, os a p ó s t o l o s levaram a sério e s s a lição, p o r e x e m p l o , no caso de P a u l o (At 13.45,46; 18.5,6; cf. Rm 16.17,18; Tt 3.10). P r o s s e g u i r i n d e f i n i d a m e n t e na c o m p a n h i a d a q u e l e s q u e ridicularizam a religião cristã n ã o é j u s t o p a r a c o m a q u e l e s c a m p o s q u e e s p e r a m ser atendidos, esp e c i a l m e n t e diante do f a t o de que a seara é g r a n d e e está p r o n t a , p o r é m o s t r a b a l h a d o r e s são p o u c o s ( M t 9.37; cf. J o 4.35). A l é m disso, a c a p a c i d a d e d o s d i s c í p u l o s de s u p o r t a r p e r s e g u i ç ã o , de m o d o que p o s s a m ser s u f i c i e n t e m e n t e v i g o r o s o s a dar p r o s s e g u i m e n t o à o b r a p o r toda parte, tem seus limites; n o t a r as palavras d o S e n h o r ( " N ã o lanceis v o s s a s p é r o l a s diante d o s por-
cos") para que não as pisoteiem, e se voltem e façam vocês e m p e d a ç o s . N a ilustração, J e s u s pinta o s p o r c o s n o ato d e pisar a s p é r o l a s c o m seus pés, t r a t a n d o - a s c o m total d e s d é m . U m a sugestão correta 3 4 5 p o d e r i a ser a seguinte: já que as pérolas se p a r e c e m c o m ervilhas o u bolotas, e s s e s porcos, t e n d o m a s t i g a do g u l o s a m e n t e u m a s p o u c a s , e t e n d o d e s c o b e r t o q u e elas de n a d a s e r v e m , irados as p i s a m e, v o l t a n d o - s e , a t a c a m e destroç a m os q u e l a n ç a r a m - l h e s essas coisas imprestáveis. E c o m o se J e s u s dissesse: " Q u e isso n ã o a c o n t e ç a à p é r o l a da p r o c l a m a ç ã o do e v a n g e l h o e n e m a v ó s m e s m o s . " C o m o r e f e r ê n c i a específica, os t e r m o s "o q u e é s a n t o " e " p é r o l a s " são bastante indefinidos. I n d u b i t a v e l m e n t e se a p l i c a m a outras coisas a l é m da m e n s a g e m do e v a n g e l h o . O o f í c i o de ministro, de presbítero e de d i á c o n o n ã o d e v e ser e n t r e g u e a q u a l q u e r um s e m a d e v i d a q u a l i f i c a ç ã o . O Didaquê ou O Ensino dos Doze Apóstolos (Ix.5) f a z outra aplicação que c o n s i d e r o legítima: ' " Q u e n i n g u é m c o m a e b e b a de v o s s a eucaristia [a 345
Ver A.T. Robertson. Word Pictures, Vol. I. p. 61.
508
MATEUS
7.7,8
Ceia do Senhor] exceto aqueles que foram batizados no nome d o Senhor. Por c o n s e g u i n t e , n o s s o S e n h o r t a m b é m disse: " N ã o deis o q u e é santo a o s c ã e s . ' "
Jesus prossegue: 7,8. Peçam, e dar-se-lhes-á; busquem, e encontrarão; batam, e abrir-se-Ihes-á. Porque todo aquele que pede, recebe; e aquele que busca, encontra; e ao que bate, abrir-se-lhe-á. Existe u m a c o n e x ã o entre esses v e r s í c u l o s e os vv. 1 - 6 ? Há q u e m n e g u e q u e exista q u a l q u e r c o n e x ã o . C o n tudo, tal coisa seria estranha. A t é este ponto, em todo o s e r m ã o , v i m o s u m d e s e n v o l v i m e n t o m u i t o lógico das idéias, u m a f l u e n t e transição n o p e n s a m e n t o d e u m a o outro parágrafo. D e v e m o s s u p o r q u e aqui em 7.7 n o s v e m o s face a face c o m u m a súbita q u e b r a d e c o n t i n u i d a d e ? N ã o p o s s o crer e m tal c o i s a . N o s versículos p r e c e d e n t e s Cristo f a l o u sobre o r e l a c i o n a m e n t o do h o m e m c o m o h o m e m . No v. 12 n o v a m e n t e — d i r e m o s " a i n d a " ? — ele está ligado a esse t e m a . N ã o é razoável p r e s u m i r q u e os v e r s í c u l o s entre eles (vv.7-11) se r e f i r a m a u m a f a s e desse mesmo tema? C o m o o vejo, não é difícil estabelecer a c o n e x ã o . O Sen h o r a d m o e s t a r a seus o u v i n t e s a abster-se de j u l g a r os o u t r o s (vv.1-5); entretanto, t a m b é m d e v i a m j u l g á - l o s (v.6); a n ã o ser hipercríticos, e, sim, críticos c o n s t r u t i v o s ; a ser h u m i l d e s e pacientes, p o r é m n ã o d e m a s i a d a m e n t e pacientes; etc. D e p o i s d e um e x a m e d e t a l h a d o de todo o p a r á g r a f o p r e c e d e n t e (vv.1-6), n ã o se p o d e evitar a pergunta: " Q u e m , p o r é m , é s u f i c i e n t e para e s s a s c o i s a s ? " ( 2 C o 2.16). J e s u s r e s p o n d e a essa p e r g u n t a insistindo sobre a n e c e s s i d a d e de o r a ç ã o p e r s e v e r a n t e a c o m p a n h a d a de um e s f o r ç o a r d o r o s o . C e r t a m e n t e q u e é geral a tríplice e x o r t a ç ã o — "pedi... buscai... batei". D i z respeito n ã o só ao ato de p e d i r s a b e d o r i a na q u e s t ã o a q u e se a c a b a de f a z e r r e f e r ê n c i a , m a s e m t o d o s o s assuntos. D e f a t o , refére-se a o p e d i d o p e l a s a t i s f a ç ã o de t o d a s as n e c e s s i d a d e s , e s p e c i a l m e n t e toda n e c e s s i d a d e espiritual. Por isso, a m e s m a e x o r t a ç ã o tríplice o c o r r e t a m b é m n u m c o n t e x t o d i f e r e n t e (Lc 11.9,10). E p o r q u e n ã o ? Seguramente se faz necessário apenas um pouco de imaginação 509
7.13,14
MATEUS
p a r a e n t e n d e r - s e q u e u m c o n s e l h o tão autoritativo, tão singularm e n t e p r e c i o s o e tão a b r a n g e n t e m e n t e p r á t i c o não d e v e ser pron u n c i a d o a p e n a s u m a v e z e então d e i x a d o para s e m p r e em rep o u s o . O s o r a d o r e s m o d e r n o s (inclusive o s ministros!) n u n c a r e p e t e m o q u e p r e g a m ? Portanto, e m b o r a o c o n t e ú d o d o s vv.711 seja m u i t o m a i s a m p l o do q u e p o d e r i a indicar q u a l q u e r ligação c o m o t e x t o anterior, é natural p r e s u m i r q u e os vv. 1-6 ocasionaram esse p a r á g r a f o tão belo. N a t u r a l m e n t e , os q u e escutav a m a Cristo a t e n t a m e n t e e n q u a n t o os e x o r t a v a a deixar os h á bitos tão a r r a i g a d o s e a adotar um m o d o de vida i n t e i r a m e n t e diferente, e n o t a v a m que, a l é m disso, o q u e ele p e d i a p a r e c i a ser e m s i m e s m o q u a s e contraditório, e s p e r a v a m q u e Cristo lhes p r o p u s e s s e u m a s o l u ç ã o p a r a esse intrincado p r o b l e m a . O Senhor não os decepcionou. E x a m i n e m o s , pois, antes de tudo, a tríplice exortação; em seguida vem a promessa que acompanha a exortação e demonstra q u e a n o s s a o b e d i ê n c i a ao m a n d a m e n t o n ã o será d e b a l d e . A forma mais simples do mandamento é:
Peçam N o t a r a c r e s c e n t e escala de intensidade, q u e p o d e ser apresentada a s s i m : " P e ç a m , busquem, B A T A M . " Pedir i m p l i c a hum i l d a d e e c o n s c i ê n c i a de n e c e s s i d a d e . O v e r b o é u s a d o c o m r e f e r ê n c i a a u m a p e t i ç ã o q u e um inferior dirige a um superior. O fariseu da p a r á b o l a n ã o p e d e n a d a (Lc 18.10-13). Ele relata ao S e n h o r suas virtudes. O p u b l i c a n o pede, ou seja, suplica: "Ó D e u s , sê p r o p í c i o a m i m , p e c a d o r . " P e d i r t a m b é m p r e s s u p õ e fé n u m Deus pessoal c o m q u e m o h o m e m pode manter comunhão. Q u a n d o p e d i m o s , e s p e r a m o s u m a r e s p o s t a . Daí, isso i m p l i c a f é n u m D e u s q u e p o d e responder, e q u e r e s p o n d e r á m e s m o , o u seja, f é n u m D e u s q u e é Pai. A l g u é m q u e o r a dessa f o r m a n ã o p o d e r i a dizer: "O D e u s , se p o r v e n t u r a existe um D e u s , salva a m i n h a a l m a , se é q u e eu t e n h o u m a . "
510
MATEUS
7.16-20
Busquem B u s c a r é pedir e também agir. Inclui a p e t i ç ã o f e r v o r o s a , p o r é m isso só n ã o é suficiente. U m a p e s s o a d e v e ser a t i v a em seu e m p e n h o para o b t e r a s a t i s f a ç ã o de s u a s n e c e s s i d a d e s . P o r e x e m p l o , o cristão n ã o d e v e s i m p l e s m e n t e orar p o r um p r o f u n do c o n h e c i m e n t o da Bíblia, m a s d e v e i g u a l m e n t e perscrutar e pesquisar d i l i g e n t e m e n t e as E s c r i t u r a s (Jo 5.39; At 19.11), assistir a o s c u l t o s ( H b 10.25) e a c i m a de t u d o se e s f o r ç a r por viver e m h a r m o n i a c o m a v o n t a d e d e D e u s (ver nesta m e s m a seção: M t 7 . 2 1 , 2 4 , 2 5 ; c f . J o 7.17).
Batam Bater é pedir e também agir eperseverar. O adorador bate r e p e t i d a s v e z e s até q u e a porta se abra. Entretanto, na r e a l i d a d e , a p e r s e v e r a n ç a já está p r o v a v e l m e n t e implícita n o s três i m p e r a tivos, u m a v e z q u e t o d o s estão n o t e m p o presente; daí, u m a trad u ç ã o p o s s í v e l seria: " c o n t i n u e m p e d i n d o , c o n t i n u e m b u s c a n do, continuem batendo." Ainda mais se levarmos em consideraç ã o L c 18.1,7; cf. R m 12.12; E f 5.20; 6.18; C l 4.2; U s 5.17. P o r é m , o q u e é p r o v á v e l para os três é certeza para o ú t i m o , visto q u e a p r ó p r i a idéia de bater, b i b l i c a m e n t e f a l a n d o , já inclui a p e r s e v e r a n ç a . O a d o r a d o r c o n t i n u a b a t e n d o à porta do p a l á c i o do r e i n o até q u e o Rei, q u e é ao m e s m o t e m p o o Pai, a b r a a p o r t a e o s u p r a de t u d o q u a n t o c a r e c e (Lc 11.5-8). Q u a n t o à promessa q u e é c o n s o l i d a d a q u a n d o o m a n d a m e n t o é o b e d e c i d o , em c a d a c a s o a c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e o m a n d a m e n t o e a p r o m e s s a é exata: a s s i m , pedi é s e g u i d o de
dar-se-lhes-á; buscai, de encontrarão; batei, e abrir-se-lhes-á. N o t a r q u e n o s vv. 6 e 7 essa p r o m e s s a , n u m a forma ou noutra, o c o r r e n ã o m e n o s q u e seis v e z e s . A s p r i m e i r a s três p r o m e s s a s , as do v.7, são v i r t u a l m e n t e repetidas no v.8, e a i n d a r e f o r ç a d a s p e l a s p a l a v r a s i n t r o d u t ó r i a s todo aquele que, o caráter inclusivo d a s q u a i s é r e e n f a t i z a d o p o r aquele que e o que, c o m o se dissess e q u e d o s q u e o b e d e c e m o m a n d a m e n t o n e n h u m será d e c e p cionado. A todo sincero seguidor do Senhor é p r o m e t i d a u m a 511
7.13,14
MATEUS
resposta à oração que é a c o m p a n h a d a por esse buscar e por e s s e bater. A certeza de q u e a oração perseverante, a c o m p a n h a d a da atividade da fé, será r e c o m p e n s a d a é r e f o r ç a d a por um argum e n t o q u e parte do m e n o r para o maior, vv. 9-11. Ou q u e ho-
mem há entre vocês que, quando seu filho lhe pede pão, lhe dará uma pedra? Ou, também, (se o filho) pedir peixe, lhe dará uma serpente? Portanto, se vocês, sendo maus, sabem dar boas dádivas a seus filhos, quanto mais seu Pai celestial dará boas dádivas àqueles que lhe pedem! O que significa: Se um pai terreno — notar as palavras " q u e homem"; a suposição é m u i t o geral —, m e s m o sendo m a u (SI 51.1-5; 130.3; Is 1.6; Jr 17.9; Jo 3.3,5; Rm 3.10; Ef 2.1), atenderá aos d e s e j o s r a z o á v e i s de seus filhos, então c o m certeza o Pai celestial de vocês, q u e é a f o n t e de t o d a b o n d a d e , d a r á boas coisas à q u e l e s q u e lhe d i r i g e m suas h u m i l d e s petições. D e t a l h e s da interpretação: 1. Se o filho p e d e p ã o (o sustento da vida, o prato principal), o pai não lhe d a r á u m a pedra, talvez no f o r m a t o de um pão. Ele não enganará seu filho. Semelhantemente, se o filho lhe pedir um peixe, c o m o um prato secundário, o q u e seria m u i t o natural nessa região o n d e o p e i x e era a b u n d a n t e , o pai não lhe d a r á u m a serpente. Estaria J e s u s p e n s a n d o n u m a c o b r a c o m o substituto de enguia? Seja c o m o for, p a r a um pai legítimo seria inconcebível um ato tão b a i x o de trapaça. 2. C o m m u i t o m a i o r razão, pois, o Pai celestial não d e c e p cionará seus filhos. Todavia, isso n ã o significa q u e ele lhes dará s e m p r e t u d o q u a n t o eles p e d e m . S i g n i f i c a q u e ele n ã o lhes d a r á aquilo q u e lhes seria prejudicial. Ele d a r á "coisas b o a s " aos q u e lhas p e d e m . C o m base em Lc 11.13, é válido concluir q u e o Pai celestial d a r á a seus filhos o Espírito Santo e todos os seus benefícios. Ele os suprirá de t u d o q u a n t o carecem. 3. N o t a r a i m p o r t â n c i a da oração nesse sentido. O Pai a m a seus filhos e c u i d a deles, p o r é m quer q u e eles lhe peçam as coisas de q u e p r e c i s a m . 512
MATEUS
5.14b-16
Portanto, o s s e g u i d o r e s d e Cristo p o d e m d e s c a n s a r seguros de q u e em r e s p o s t a às s u a s o r a ç õ e s o Pai t a m b é m p r o p o r c i o n a r á d i a r i a m e n t e s o l u ç õ e s para o s p r o b l e m a s d e r e l a ç õ e s h u m a n a s , para a s d i f i c u l d a d e s q u e s u r g e m d o e s f o r ç o s i n c e r o d e seguir a s i n s t r u ç õ e s d a d a s nos v v . l - 6 . N o que d i z r e s p e i t o a o c o n t e x t o posterior, p o d e r i a h a v e r a l g o m a i s a p r o p r i a d o , c o m o a i n t r o d u ç ã o a o m a n d a m e n t o d e tratar n o s s o p r ó x i m o c o m o g o s t a r í a m o s de ser tratados por ele, do q u e a a d m o e s t a ç ã o : " P e çam... b u s q u e m . . . b a t a m " ? N ã o é v e r d a d e q u e em q u e s t õ e s c o m o e s s a s o c o n s t a n t e socorro do Pai é d e f i n i t i v a m e n t e n e c e s s á r i o ? C o m o uma conclusão apropriada não só de 7 . 1 - l l , senão de toda a extensa divisão iniciada em 5.17 (e ver t a m b é m 5.5,7,9,13- 16), J e s u s a g o r a a p r e s e n t a a sua p r ó p r i a v e r s ã o de
A Regra Áurea 12. Portanto, tudo quanto vocês querem que as (outras) pessoas façam por vocês, façam igualmente por elas... Para que o crente p o s s a estar p r e p a r a d o para q u a l q u e r e m e r gência, o u para saber e m q u a l q u e r m o m e n t o e s p e c í f i c o , c o m o tratar seu p r ó x i m o , o Senhor, aqui no v. 12, estabelece u m a regra que, p o r consistir em m e d i r o d e v e r de a l g u é m p e l o s e u a m o r próprio, é s e m e l h a n t e a um c a n i v e t e , ou u m a régua de carpinteiro, s e m p r e p r o n t o s a ser usados, m e s m o n u m a r e p e n t i n a e m e r gência quando não há tempo para pedir conselho a um amigo ou c o n s u l t a r u m livro. C o m o e s s a R e g r a Á u r e a s e c o m p a r a c o m outras regras semelhantes fora do Cristianismo? É verdade, c o m o a l g u n s p a r e c e m crer, q u e M t 7.12 f o r n e c e u m alicerce c o m u m s o b r e o q u a l o crente e o d e s c r e n t e j u n t o s p o s s a m e d i f i c a r seu p a l á c i o de p a z , b o a v o n t a d e e f r a t e r n i d a d e ? Há a q u e l e s q u e a l e g a m q u e a d i f e r e n ç a existente entre a regra de Cristo e a d o s outros, p o r e x e m p l o a q u e l a e n u n c i a d a p o r C o n f ú c i o , c o n s i s t e nisto: a ú l t i m a é u m a regra m e r a m e n t e n e g a t i v a , e n q u a n t o q u e a regra de C r i s t o é positiva. J e s u s disse: " T u d o quanto v o c ê s q u e r e m que as (outras) pessoas (literalmente: h o m e m ) f a ç a m p o r vocês, f a ç a m i g u a l m e n t e por e l a s " , p o r é m C o n f ú c i o disse: " N ã o f a ç a n a d a a o seu p r ó x i m o q u e e m s e g u i d a 513
5.11,12
MATEUS
v o c ê n ã o q u e i r a q u e seu p r ó x i m o f a ç a a v o c ê " ( M a h a b a r a t a XIII.5571). Entretanto, c o m o o v e j o , a d i f e r e n ç a a esse respeito t e m sido e x a g e r a d a . Q u a n d o a pior interpretação possível é feita da regra negativa, c o m o se q u i s e s s e dizer: " N ã o m a t e o seu p r ó x i m o e n e m lhe r o u b e a sua e s p o s a , ou seus pertences, porque v o c ê n ã o gostaria q u e ele lhe lizesse o m e s m o , p o r t a n t o d e i x e o seu p r ó x i m o em p a z " , n a t u r a l m e n t e que se d e v e r i a rec o n h e c e r q u e a forma positiva da regra é m u i t o melhor. C o n t u do, m e s m o e m sua f o r m a negativa, essa regra p o d e ser interpret a d a d e f o r m a m u i t o m a i s f a v o r á v e l . Ela p o d e t a m b é m significar: " N ã o trate o p r ó x i m o de f o r m a que s e j a inferior ao a m o r g e n u í n o , p o r q u a n t o v o c ê m e s m o n ã o gostaria d e ser tratado sen ã o c o m base no a m o r g e n u í n o . " A s s i m c o n s t r u í d o , o negativo inclui o positivo. E para q u e a j u s t i ç a n ã o falte a C o n f ú c i o , n ã o d e v e r í a m o s r e c o n h e c e r q u e ele t i n h a pelo m e n o s a l g u m a s o m bra d o s i g n i f i c a d o positivo e m s u a m e n t e ? A s suas p a l a v r a s ora citadas n ã o estão p r e c e d i d a s p e l a linha: " E s t a é a s ú m u l a de toda a v e r d a d e i r a j u s t i ç a : trate os outros c o m o v o c ê q u e r ser t r a t a d o " ? Isso é c e r t a m e n t e positivo. S e m e l h a n t e m e n t e , J e s u s e n s i n a q u e a lei c o m seus m a n d a m e n t o s negativos ( " N ã o m a t a r á , n ã o c o m e t e r á adultério", etc.) é satisfeita na o b e d i ê n c i a à regra positiva: "Você a m a r á ao seu p r ó x i m o c o m o a si m e s m o " ( M t 5.2 l s s . ; 19.19; 22.39). Rm 13.9 é c o n c l u s i v o neste p o n t o : " P o i s isto: v o c ê n ã o adulterará, n ã o m a t a r á , n ã o furtará, n ã o cobiçará, e se há q u a l q u e r outro m a n d a m e n t o , t u d o nesta p a l a v r a se r e s u m e : Você a m a r á ao seu próx i m o c o m o a si m e s m o . " Ora, é v e r d a d e q u e n o s e n s i n o s de Cristo a ê n f a s e s o b r e o a m o r ao p r ó x i m o , n ã o s i m p l e s m e n t e u m a atitude d e b o n d a d e , u m a m o r que, a l é m d o m a i s , é praticad o e m f a v o r até m e s m o d o i n i m i g o , recebe u m a ê n f a s e m a i s forte q u e a q u e l e q u e é p r a t i c a d o f o r a do Cristianismo. P o r é m , n ã o é j u s t o a f i r m a r que u m a regra e x p r e s s a n e g a t i v a m e n t e é, em razão d e s s e m e s m o fato, n e c e s s a r i a m e n t e inferior à q u e l a q u e é expressa positivamente. N ã o obstante, e x i s t e m i m p o r t a n t e s d i f e r e n ç a s e n t r e a verdadeira Regra Áurea de Cristo e o u t r a s tantas regras s e m e l h a n 514
MATEUS
5.14b-16
tes q u e n o s a d v ê m d a s religiões não-cristãs o u q u e são f a v o r e c i d a s pelas liberais na religião. D e v e - s e a d m i t i r q u e e s s a s regras t ê m um v a l o r relativo. Em certo sentido, os d e s c r e n t e s faz e m o b e m ( l R s 2 1 . 2 7 - 2 9 ; M t 5.46; L c 6.33; A t 28.2; R m 2.14). Todavia, há d i f e r e n ç a s importantes entre a R e g r a Á u r e a de Cristo e q u a l q u e r o u t r a q u e se lhe p o s s a a s s e m e l h a r . E s s a s d i f e r e n ç a s são as seguintes: 1. O p r o f e t a religioso não-cristão c o n s i d e r a sua r e g r a c o m o u m a e x i g ê n c i a q u e o h o m e m é capaz de c u m p r i r p o r m e i o de suas próprias forças, ou, na melhor das hipóteses, por meio das f o r ç a s de a l g u é m ou de algo à p a r t e do D e u s v e r d a d e i r o , q u e se r e v e l o u e m J e s u s Cristo. A s Escrituras n e g a m e n f a t i c a m e n t e q u e o h o m e m t e n h a tal c a p a c i d a d e (Jo 3.3,5; 2 T m 3.2; Tt 3.3; etc.). S e m a o p e r a ç ã o do Espírito S a n t o no c o r a ç ã o e v i d a d o s f d h o s d e D e u s , é i m p o s s í v e l u m a o b e d i ê n c i a ( m e s m o e m princípio) sobre a qual possa repousar a plena a p r o v a ç ã o de D e u s ( R m 7.24; 8.3-8; F p 2.12,13; 2 T s 2.13). 2. O religioso liberal t e m a t e n d ê n c i a de separar a r e g r a de a m o r ao homem do m a n d a m e n t o de a m o r a Deus. G e r a l m e n t e ele m i n i m i z a a i m p o r t â n c i a d e s s e último. S e g u n d o o s e u p o n t o de vista, a Regra Áurea é a s ú m u l a e s u b s t â n c i a de t o d a a ética. S e g u n d o o seu m o d o de ver, a ú n i c a coisa i m p o r t a n t e na v i d a é p r e s t a r s e r v i ç o a o s s e m e l h a n t e s . E em a p o i o d e s s e a r g u m e n t o q u e o liberal a p e l a p a r a a R e g r a Á u r e a de Cristo. P o r é m tal a p e lo é i n j u s t i f i c a d o , p o r q u a n t o no S e r m ã o , a R e g r a Á u r e a é preced i d a d e u m e x t e n s o discurso n o qual Jesus, por m e i o d e u m a clara i n f e r ê n c i a (cf. Mt 22.37), n o s e n s i n a a a m a r a D e u s a c i m a d e tudo. Isso, c o m o j á foi d e m o n s t r a d o , inclui u m a d e v o ç ã o ard e n t e do c o r a ç ã o d e d i c a d o a D e u s e u m a c o n f i a n ç a indivisível p o s t a n e l e em m e i o a t o d a s as c i r c u n s t â n c i a s da vida. O r a , é à l u z d e s s a a t i t u d e p a r a c o m o n o s s o P a i celestial q u e n ó s , c o m o filhos seus, s o m o s e x o r t a d o s a a m a r o n o s s o p r ó x i m o , a q u e m D e u s criou à s u a i m a g e m . I n d u b i t a v e l m e n t e , a regra d o s m o d e r n i s t a s se a s s e m e l h a à R e g r a Á u r e a de Cristo. S u a m ú s i c a é a m e s m a e m t o n a l i d a d e , p o r é m n ã o e m qualidade, a s s i m c o m o u m a nota tocada no piano difere muito em qualidade da m e s m a 515
5.11,12
MATEUS
n o t a t o c a d a n u m órgão. O i n s t r u m e n t o m u s i c a l que está p o r trás da n o t a — ou seja, o c o n t e x t o global — é diferente. 3. A m e s m a p e s s o a q u e c o m e t e o erro indicado no item 2 g e r a l m e n t e t a m b é m e n t e n d e mal o p r o p ó s i t o dessa Regra, c o m o se ela significasse: " P o r t a n t o , t u d o o q u e q u e r e m q u e as (outras) p e s s o a s f a ç a m p o r vós. a s s i m t a m b é m f a ç a m por elas, porque
isso dará lucro a longo prazo." Exatamente como a honestidade, é "a m e l h o r política". Desse m o d o o ouro da regra se degenera na pirita do utilitarismo. A legítima R e g r a Á u r e a de Cristo é diferente. Ela se encerra c o m as p a l a v r a s p o r q u e esta é a lei e os p r o f e t a s . O r e s u m o da lei e os p r o f e t a s (ou seja, do A n t i g o T e s t a m e n t o ; v e r a e x p o s i ç ã o de 5.17, inclusive a nota 2 9 9 ) é d e v e r a s o amor ( M t 2 2 . 3 7 - 4 0 ) ; e o a m o r h o n e s t o e v e r d a d e i r o i m p l i c a a n e g a ç ã o de si m e s m o e o altruísmo, o que é e x p r e s s o
de forma tão bela em passagens tais como Is 53.4-6,) 2; Mi 20.28; Mc 10.45; Jo 3.16; 10.11; Rm 8.32; 2 C o 8.9; G1 2.20; Ef 5.2; l T m 1.15,16 (que t e m c o m o c l í m a x o v. 17); e I P e 2.24. N o t a r n o v a m e n t e a p a l a v r a " p o r t a n t o " no início do v.12. E l a n ã o s o m e n t e liga a p r e s e n t e p a s s a g e m c o m t o d a a g r a n d e divisão i n t r o d u z i d a por 5.17, p o i s p o r m e i o da o b r a de Cristo n o s c o r a ç õ e s h u m a n o s "a lei e os p r o f e t a s " a l c a n ç a m o c u m p r i m e n t o m e n c i o n a d o tanto e m 5.17 q u a n t o aqui e m 7.12, m a s t a m b é m f a z estreita c o n e x ã o c o m o s v e r s í c u l o s i m e d i a t a m e n t e anteriores; é c o m o se dissesse: " Q u a n t o m a i s seu Pai celestial dará boas c o i s a s a o s q u e lhas p e d e m . P o r t a n t o — ou seja, em gratid ã o p e l a s c o n t í n u a s d á d i v a s do Pai — v o c ê s d e v e m a m a r o seu p r ó x i m o d a m e s m a f o r m a q u e v o c ê s q u e r e m que ele o s a m e , p a r a q u e o m a n a n c i a l de a m o r p a r a c o m os que n ã o o m e r e c e m p o s s a fluir c o n t i n u a m e n t e , n ã o só para o coração de vocês, m a s t a m b é m por intermedio e a partir de seu c o r a ç ã o até q u e alcance m e s m o o m a i s indigno. A s s i m , deveras, v o c ê s serão f i l h o s de seu Pai celestial q u e está no c é u , q u e faz nascer o seu sol s o b r e as p e s s o a s m á s e boas, e e n v i a c h u v a sobre j u s t o s e i n j u s tos ( 5 . 4 5 ) . " Essa, s e m d ú v i d a , e s o m e n t e essa, é a Regra Áurea.
516
MATEUS
5.14b-16
Exortação para entrar no reino A ú l t i m a divisão principal do s e r m ã o c o m e ç a neste p o n t o . P r i m e i r o , J e s u s diz algo sobre
O Princípio do Caminho: A Porta Estreita e o Caminho Apertado versus A Porta Larga e o Caminho Espaçoso J e s u s d e s c r e v e u , até aqui, o s c i d a d ã o s d o reino, s u a b e m a v e n t u r a n ç a e sua r e l a ç ã o c o m o m u n d o (5.1-16), e t a m b é m a justiça q u e o Rei lhes c o n c e d e e e x i g e d e l e s ( 5 . 1 7 — 7 . 1 2 ) . Daí ser natural q u e agora, n e s s a d i v i s ã o final do s e r m ã o , ele insista c o m t o d o s o s q u e f o r a m a l c a n ç a d o s p o r sua m e n s a g e m , s e j a n o t e m p o em q u e foi p r o n u n c i a d a ou depois, a entrar no reino (7.1327). S e p o r v e n t u r a j á e n t r a r a m , e n t ã o q u e e n t r e m d e f o r m a m a i s p l e n a do q u e antes, ou, para m u d a r um p o u c o a figura, assegur e m - s e de q u e p r o s s i g a m firmes no c a m i n h o ao qual os levou a porta q u e os a d m i t i u . Na d e v i d a o r d e m , o S e n h o r d e s c r e v e os inícios d a v e r e d a d o cristão, i n s i s t i n d o c o m seus o u v i n t e s para q u e o e s c o l h a m em v e z de e s c o l h e r e m a e s p a ç o s a a v e n i d a d o s d e s c r e n t e s (vv. 13 e 14); a d v e r t e c o m ternura c o m r e s p e i t o ao p r o g r e s s o de seus s e g u i d o r e s n e s t e " c a m i n h o ' 1 (vv. 15-20); e term i n a c o n t r a s t a n d o o s dois d e s t i n o s f i n a i s (vv.21-27).
Portanto, Jesus começa, dizendo: 13,14. Entrem pela porta estreita; porque larga (é) a porta e espaçoso o caminho que conduz à destruição, e muitos são aqueles que entram por ela. Porque estreita (é) a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e poucos são aqueles que a encontram. Deve-se notar que Jesus, por inferência, já descreveu a e n t r a d a e m s e u reino c o m o a l g o q u e é , a o m e s m o t e m p o , c o n v i d a t i v o e difícil, ou seja, s e g u e e n v o l t o p o r c i r c u n s t â n c i a s f a v o ráveis e d e s f a v o r á v e i s . F a v o r á v e i s , p o r q u e os q u e e n t r a m são descritos c o m o s e n d o benditos. S ã o o s p o s s u i d o r e s d o reino n o qual e n t r a r a m , são c o n s o l a d o s , h e r d a m a terra, serão p l e n a m e n t e saciados, etc. D e s f a v o r á v e i s , n o sentido e m q u e serão perseg u i d o s , insultados, caluniados, e q u e serão s o b r e c a r r e g a d o s c o m p e s a d a s o b r i g a ç õ e s ; p o r e x e m p l o , d e v e m praticar u m a j u s t i ç a q u e e x c e d a a q u e l a j u s t i ç a p r a t i c a d a pelos escribas e fariseus; 517
5.11,12
MATEUS
d e v e m a m a r até m e s m o os seus i n i m i g o s e orar p e l o s seus perseguidores; n ã o d e v e m ser hipercríticos, m a s , antes, d e v e m usar de b o m critério p a r a j u l g a r e discriminar, etc. E s s a s coisas são " d e s f a v o r á v e i s " n o sentido e m q u e s e c h o c a m c o m a s t e n d ê n cias naturais d o s h o m e n s . Portanto, é e v i d e n t e q u e n o s s o S e n h o r n ã o usa o m é t o d o utilizado p o r certos p r e g a d o r e s avivalistas ( o u evangelistas) q u e f a l a m c o m o se a " o b t e n ç ã o da s a l v a ç ã o " f o s s e u m a das coisas m a i s f á c e i s do m u n d o . Jesus, ao contrário, d e s c r e v e a e n t r a d a no reino c o m o algo que, por um lado, é m u i t o desejável, m a s que, p o r outro lado, n ã o é de m o d o a l g u m fácil. A p o r t a de entrada é estreita. Ela t e m de ser " e n c o n t r a d a " . E o c a m i n h o ao qual ela está ligada é " a p e r t a d o " . A o b s e r v a ç ã o de J . M . G i b s o n é exata: "O a p e l o de Cristo é a p r e s e n t a d o de tal f o r m a q u e n ã o a p a r e n t a n e n h u m atrativo p a r a o m u n d o insensato e egoísta, sen ã o para a q u e l e s c u j o c o r a ç ã o t e m sido atraído e c u j a c o n s c i ê n cia tem sido t o c a d a p e l a sua a p r e s e n t a ç ã o d a s b e m - a v e n t u r a n ç a s p e l a s q u a i s p o d e m esperar e da j u s t i ç a q u e deles se espera." 3 4 6 N ã o é a s s i m q u e os evangelistas r e a l m e n t e g r a n d e s — l e m b r e m se de W h i t e f i e l d , S p u r g e o n e seus d i g n o s s u c e s s o r e s da atualid a d e — e n f a t i z a v a m e estão e n f a t i z a n d o e s s a m e s m a v e r d a d e ? N ã o era esta t a m b é m a lição q u e J o s u é e s t a v a tentando e n s i n a r aos israelitas? (Js 2 4 . 1 4 - 2 8 ; ver e s p e c i a l m e n t e os vv. 14-16; 19). Cf. At 14.22. A p a s s a g e m f a l a de a. d u a s p o r t a s e d o i s c a m i n h o s ; b. d o i s tipos de transeuntes; e c. dois destinos.
Vejamos primeiramente as duas portas e os dois caminhos. P e l a descrição f i c a e v i d e n t e q u e estes — p o r t a e c a m i n h o — d e v e m ser c o m b i n a d o s entre si: p o r t a estreita e c a m i n h o apertado; p o r t a larga e c a m i n h o e s p a ç o s o . O que vem antes, o caminho ou a porta? U m a p e s s o a entra p e l a p o r t a a fim de ser a d m i tida ao c a m i n h o , ou s e g u e o c a m i n h o a fim de alcançar a p o r t a e p a s s a r p o r ela? Se é certo q u e Jesus, ao m e n c i o n a r a porta, estava pensando no que sucede quando uma pessoa morre ou na s e g u n d a v i n d a , e n t ã o é ó b v i o q u e o c a m i n h o p r e c e d e a porta. 34,1
The Gospel of Matthew (Expositor's Bible). Vol. IV. p. 721.
518
MATEUS
5.14b-16
E s s a a p r e s e n t a ç ã o t e m - s e t o r n a d o m u i t o popular; p o r e x e m p l o , c o m b a s e n a s Escrituras, f a l a m o s d a entrada n a J e r u s a l é m d e o u r o pelos s e u s p o r t õ e s de p é r o l a s (cf. Ap 2 1 . 2 1 ; 22.14). A e s s e respeito p o d e - s e t a m b é m referir a Lc 13.23- 30, o n d e a e n t r a d a p e l a " p o r t a " estreita c o n d u z a o " r e i n o d e D e u s " e m s u a f a s e final ou e s c a t o l ó g i c a . E n t r e t a n t o , p o r o u t r o lado Mt 7.13 e 14, em c a d a c a s o , m e n c i o n a p r i m e i r o a p o r t a e em s e g u i d a o c a m i n h o . P o r t a n t o , a seguinte pergunta procede: "O que vem antes, o caminho347 ou a p o r t a ? " Entre o s c o m e n t a r i s t a s q u e t ê m s e digladiado c o m e s s a p e r gunta — a l g u n s n ã o o têm feito p o r a p a r e n t e m e n t e d e s c o n s i d e r a r e m - n a — as seguintes p o s i ç õ e s t ê m sido t o m a d a s : 1. "Possivelmente o preceito de Cristo fosse simplesmente: 'Entrem pela porta estreita', e que todo o resto seja u m a glosa." 3 4 8 Objeção. A e v i d ê n c i a d o s m a n u s c r i t o s d i s p o n í v e i s n ã o a p ó i a u m a a m p u t a ç ã o tão radical. 2. " C a d a um d o s dois c a m i n h o s c o n d u z a u m a p o r t a e a a t r a v e s s a . " S e g u n d o e s s e p o n t o de vista, o c a m i n h o v e m a n t e s . E s s a é a o p i n i ã o de R . V . G . Tasker. 349 O m e s m o se dá c o m J . J e r e m i a s , q u e a p e l a p a r a L c 13.23,24, q u e c o n s i d e r a c o m o paralelo, e q u e , c o m o ele o vê, " f a z - s e e v i d e n t e q u e a i m a g e m d a s p o r t a s t e m u m caráter e s c a t o l ó g i c o " . C o n s e q ü e n t e m e n t e , ele c o n s i d e r a a s e q ü ê n c i a a. porta e b. caminho c o m o " u m hysteron-proteron ( ú l t i m o - p r i m e i r o ) p o p u l a r " , ou seja, u m a fig u r a de l i n g u a g e m na qual a o r d e m real é invertida, c o m o " t r o v ã o e raio". 3 5 0 347
Caminho pode significar modo de ser. etc.. ou dar a ideia dc estrada, de rota. Podese dizer muito em lavor de cada uma. Quanto a mim. prefiro "caminho" como modo de ser com base no fato de que faz a transição mental da esfera física para a moral e espiritual de forma mais natural, visto que se fala de "modo de vida", "caminho de abnegação e sacrifício", "... da obediência", "... da santificação", etc. •>4* A.B. Bruce. The Synoptic Gospels (The Expositor's Greek Testament, Vol. I). Grand Rapids, sem data, p. 132. -14'' The Gospel according to St. Matthew (The Tyndale New Testament Commentaries), p. 82. 150 Ver o artigo jtton em Th. D.N.T., Vol. VI. especialmente pp. 922. 923. 519
7.13,14
MATEUS
Objeção. O c o n t e x t o , e até certo p o n t o a l i n g u a g e m de Lc 13.23,24, é tão d i f e r e n t e do q u e se e n c o n t r a em Mt 7.13,14, q u e é q u e s t i o n á v e l se o p r o b l e m a p o d e ser s o l u c i o n a d o c o m essa e v o c a ç ã o . A l é m disso, c h a m a r a f i g u r a u s a d a por J e s u s na p a s s a g e m de M a t e u s de hysteron-proleron é i n c o r r e r em p e tição de princípio. 3. Poria e caminho s i g n i f i c a m s u b s t a n c i a l m e n t e a m e s m a coisa, ou seja, a o b e d i ê n c i a e x i g i d a p o r Cristo. Vista c o m o u m a unidade, e s s a o b e d i ê n c i a p o d e ser c h a m a d a u m a porta; e, c o n siderada em sua m u l t i p l i c i d a d e , um caminho. Portanto, não se d e v e perguntar: "O q u e v e m antes, a porta ou o c a m i n h o ? " 3 " Comentário. A t é o n d e e s s a s o l u ç ã o e n f a t i z a a relação m u i to estreita entre " p o r t a " e " c a m i n h o " , c o n c o r d o c o m ela, p o r q u e o texto é claro nisso. C o n t u d o , o t e x t o diz " p o r t a " e " c a m i n h o " , n ã o " p o r t a " ou " c a m i n h o " , e isso n ã o u m a vez, e, sim, d u a s vezes. A m e n o s q u e isso seja u m a h e n d i á d i s (entrada?), p a r e c e m e l h o r distinguir, e m b o r a l e v e m e n t e , entre a s duas. 4. "A porta v e m antes. A seguir v e m o caminho... N e s s e s versículos J e s u s n ã o está p e n s a n d o na m o r t e , e, sim, na e s c o l h a q u e se há de f a z e r a g o r a m e s m o , e n o s e x o r t a a escolher, visto que somente por meio de uma escolha consciente alguém pode c h e g a r ao c a m i n h o certo." 3 5 2 Comentário. Se u m a seleção d e vesse ser feita e n t r e as teorias 1, 2 e 3, s e m q u a l q u e r h e s i t a ç ã o eu escolheria a 3. N ã o obstante, p e s s o a l m e n t e prefiro a 4 q u e está m a i s e s t r i t a m e n t e r e l a c i o n a d a c o m o s e n d o a m a i s natural. A porta é m e n c i o n a d a antes, e a seguir o c a m i n h o . A l é m disso, n ã o é verdade que em q u a s e todos os casos u m a " p o r t a " dá acesso a um " c a m i n h o " , seja ele u m a r o d o v i a ou um c a m i n h o s e c u n d á rio, u m a rua, a v e n i d a , a l a m e d a o u v e r e d a ? U m a porta q u e não c o n d u z a n a d a é algo d e v e r a s estranho. P o r outro lado, um " c a m i n h o " o u " e s t r a d a " n ã o c o n d u z n e c e s s a r i a m e n t e a u m a porta. A o r d e m " p o r t a " s e g u i d a p o r " c a m i n h o " , pois, é m u i t o natural e f a z sentido, e s p e c i a l m e n t e se se t e m em c o n t a qual é p r o v a v e l m e n t e o significado pretendido: u m a escolha inicial correta (con1,2
I I.N. Ridderbos, op. cit., p. 154. Grosheide. op. cit.. p. 91. 520
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5.14b-16
v e r s ã o ) s e g u i d a p e l a santificação; o u u m a e s c o l h a inicial incorreta s e g u i d a p o r um e n d u r e c i m e n t o gradual. U m a p o r t a entre as d u a s é descrita c o m o s e n d o "estreita". E l a t e m sido c o m p a r a d a , e creio q u e n ã o de f o r m a injusta, a u m a borboleta com catracu q u e só p e r m i t e passar u m a p e s s o a de c a d a vez. 3 5 1 No N o v o T e s t a m e n t o a p a l a v r a estreita, c o m ref e r ê n c i a a u m a porta, só aparece em Mt 7.13,14. Em Lc 13.24 o m e s m o a d j e t i v o é u s a d o c o m r e f e r ê n c i a a u m a " p o r t a " escatológica. Cf. Mt 2 5 . 1 0 . P a r a q u e p o s s a entrar pela porta estreita, a p e s s o a precisa d e s f a z e r - s e de m u i t a s coisas, c o m o p o r e x e m p l o , o d e s e j o ard e n t e de p o s s u i r bens terrenos, o espírito que n ã o c o n s e g u e perdoar, o e g o í s m o e, e s p e c i a l m e n t e , a j u s t i ç a própria. A p o r t a estreita é, pois, a porta da a b n e g a ç ã o e da o b e d i ê n c i a . Por o u t r o lado, "a porta larga" p e r m i t e entrar c o m a bolsa e toda a b a g a g e m . A v e l h a n a t u r e z a p e c a m i n o s a — tudo o q u e ela c o n t é m e t o d o s os seus a c e s s ó r i o s — p o d e p a s s a r f a c i l m e n t e por ela. Ei a porta da auto-indulgência. Essa p o r t a é tão a m p l a q u e u m a m u l t i d ã o e n o r m e e c l a m o r o s a p o d e entrar t o d a de u m a vez, e a i n d a restará m u i t o e s p a ç o p a r a o u t r o s . A " p o r t a " , p o i s , a p o n t a p a r a a escolha que u m a pessoa faz nesta presente vida, seja boa ou má essa escolha. O " c a m i n h o " ao qual a p o r t a estreita dá a c e s s o é " a p e r t a d o " , ou, c o m o d i r í a m o s hoje, " R e s t r i t a d e m a i s " . A v e r e d a pela qual o crente está v i a j a n d o se a s s e m e l h a a um d e s f i l a d e i r o difícil p o r entre d o i s p e n h a s c o s . E l a se a c h a c e r c a d a de a m b o s os lados. A s s i m t a m b é m , m e s m o n o caso d a p e s s o a que j á entrou e s p i r i t u a l m e n t e pela porta estreita, o q u e a i n d a p e r m a n e c e da v e l h a n a t u r e z a se r e b e l a contra a idéia de deixar de lado as m á s p r o p e n s õ e s e os m a u s h á b i t o s de outrora. Essa velha n a t u r e z a n ã o é c o m p l e t a m e n t e d e s t r u í d a até ao m o m e n t o da m o r t e . Por isso, u m a luta f e r r e n h a se p r o r r o m p e . Ler a esse r e s p e i t o em 1,5 ,w
D.M. Lloyd-Joncs, op. cit„ Vol. II. p. 221. Grego TeGÀAppévri. nom. sing. fem. pari. pas. de OXLpco. pressionai; apertar. Daí, o particípio aqui usado significa contraído. Rm 2.9 leni a combinação 0Â.u|iiç KÍXÍ orevo/mpía, ou seja. ""tribulação e angústia"".
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7.13,14
MATEUS
Rm 7.15- 25. Todavia, a vitória total já está garantida, p o r q u a n -
to a poria estreita foi encontrada e adentrada, e o caminho dos p e c a d o r e s foi trocado pelo caminho dos justos (ver S a l m o 1); ou seja, u m a e s c o l h a c o n s c i e n t e foi feita, u m a hoa decisão. A c o n v e r s ã o b á s i c a deu lugar à c o n v e r s ã o diária ou, se a l g u é m a c h a r preferível, à santificação. Por outro lado, o " c a m i n h o " ao qual a p o r t a larga dá a c e s s o é e s p a ç o s o e a m p l o . Poder-se-ia d e n o m i n á - l o de Broadway ( f a m o s a a v e n i d a de vida n o t u r n a de N o v a York, c u j o s i g n i f i c a d o é caminho largo). Os letreiros ao longo dessa espaçosa avenida dizem: "Bem-vindos, cada um de vocês e todos os seus amigos, c o m muita, muita alegria. Viajem c o m o queiram, e tão rápido c o m o desejarem. Aqui não existem restrições." Entretanto, "O caminho dos ímpios perecerá". O c o n t r a s t e é feito c l a r a m e n t e entre "o c a m i n h o de v i d a " e "o c a m i n h o de m o r t e " . O p r i m e i r o c a m i n h o foi constituído de a c o r d o c o m as e s p e c i f i c a ç õ e s do S u p r e m o A r q u i t e t o e C o n s t r u tor ( H b 11.10). As diretrizes para a c o n s t r u ç ã o são e n c o n t r a d a s em sua lei. O outro " c a m i n h o " foi c o n s t r u í d o pelo maligno. Seus s e g u i d o r e s v i a j a m nele.
Em segundo lugar, os dois tipos de transeuntes. Aqueles q u e e s c o l h e m a p o r t a larga e o c a m i n h o e s p a ç o s o são c h a m a d o s " m u i t o s " : a q u e l e s q u e e n t r a m p e l a porta estreita e v i a j a m no c a m i n h o a p e r t a d o são c h a m a d o s " p o u c o s " . Isso está em sintonia c o m Mt 22.14: " M u i t o s são c h a m a d o s , p o u c o s e s c o l h i d o s " , e c o m p a s s a g e n s q u e m e n c i o n a m o " r e m a n e s c e n t e " , tais c o m o Rm 9.27; 11.5; etc. 1 ' 5 N ã o obstante, o n ú m e r o inteiro d o s eleitos é descrito c o m o u m a multidão que n ã o se pode contar (Ap 7.9). Do q u e ficou dito até aqui n ã o se d e v e tirar a c o n c l u s ã o e r r ô n e a de q u e as e n o r m e s m u l t i d õ e s que a t r a v e s s a m a porta larga e c a m i n h a m p e l a a v e n i d a a m p l a o n d e c a b e m t o d o s são livres e felizes; ao p a s s o que, p o r outro lado, os q u e e n c o n t r a ram a porta estreita e agora c a m i n h a m p e l o c a m i n h o a p e r t a d o são d i g n o s de c o m i s e r a ç ã o . R e a l m e n t e , esta " l i b e r d a d e " e " f e l i c i d a d e " da m a i o r i a é de n a t u r e z a m u i t o superficial. " T o d o a q u e Analisei esta doutrina do "remanescente" em mais detalhe 110 livro Israel and lhe Bible, pp. 49.50.
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MATEUS
5.14b-16
le q u e vive em p e c a d o é e s c r a v o do p e c a d o " (Jo 8.34). E l e está tão a c o r r e n t a d o c o m o está o p r i s i o n e i r o c o m u m a b r a ç a d e i r a de ferro p r e s a à s u a p e r n a , b r a ç a d e i r a esta que se a c h a ligada a u m a corrente que, p o r sua vez, se a c h a f u n d i d a à parede de u m a m a s m o r r a . Todo p e c a d o q u e ele c o m e t e c o m p r i m e a i n d a m a i s a corrente, até q u e esta o e s m a g a c o m p l e t a m e n t e . U m a v e z q u e o í m p i o n ã o c o n h e c e a paz interior (Is 48.22), c o m o p o d e r i a ele ser r e a l m e n t e f e l i z ? Por o u t r o lado, " G r a n d e paz t ê m os que a m a m a tua lei" (SI 119.165; cf. Is 26.3; 43.2). A i n d a que, c o m o já f i c o u e x p r e s so, entrar p e l a porta estreita e c a m i n h a r pelo c a m i n h o a p e r t a d o i m p l i c a a b n e g a ç ã o , d i f i c u l d a d e e luta, d o r e s e a s p e r e z a s , a s s i m acontece especialmente em decorrência da natureza pecaminos a q u e n ã o foi c o m p l e t a m e n t e v e n c i d a . Para " o n o v o h o m e m " (a n a t u r e z a r e g e n e r a d a ) há alegria indizível e c h e i a de glória ( I P e 1.8; cf. R m 7.22; F p 2.17; 3.1; 4.4; etc.). O s " p o u c o s " que e n t r a r a m p e l a porta estreita são " a f l i g i d o s , p o r é m n ã o e s m a g a dos; p e r p l e x o s , p o r é m n ã o d e s e s p e r a d o s " ( 2 C o 4.8,9); "entristecidos, m a s s e m p r e alegres; pobres, m a s e n r i q u e c e n d o a m u i tos; n a d a t e n d o , m a s p o s s u i n d o todas as c o i s a s " ( 2 C o 6.10). E a l é m d o s t e s o u r o s q u e j á p o s s u e m d e s d e agora, eles s a b e m q u e r i q u e z a s m a i o r e s e s p e r a m por eles, " P o r q u e a n o s s a leve e m o m e n t â n e a t r i b u l a ç ã o p r o d u z p a r a n ó s eterno peso d e glória, acim a d e t o d a c o m p a r a ç ã o " ( 2 C o 4.17; cf. R m 8.18).
Em terceiro lugar, os dois destinos. Os que entraram pela porta larga e a g o r a trilham o c a m i n h o e s p a ç o s o estão indo r u m o à destruição, ou seja, estão d e s t i n a d o s n ã o à aniquilação, e, sim, à p e r d i ç ã o eterna (Dn 12.2; Mt 3.12; 18.8; 2 5 . 4 1 , 4 6 ; Mc 9.43; Lc 3.17; 2Ts 1.9; Jd 6.7; Ap 14.9-11; 19.3; 20.10). Ao contrário, "O c a m i n h o da cruz leva ao lar celestial". E o c a m i n h o da autor e n ú n c i a q u e " c o n d u z à v i d a " em seu sentido pleno e escatológico: a. c o m u n h ã o c o m D e u s em Cristo, primeiro no céu, subseq ü e n t e m e n t e , no n o v o céu e n o v a terra; mais b. todas as bênç ã o s resultantes d e s s a c o m u n h ã o . P a r a u m a descrição m a i s plena, e x a m i n e m - s e as seguintes p a s s a g e n s : SI 16.11; 17.15: 23.6: 523
8.1-9.34
MATEUS
7 3 . 2 3 - 3 6 ; Jo 14.2,3; 17.3,24; 2 C o 3.17,18; 4.6; Fp 4.7,9; I P e 1.4,8,9; Ap 7.15-17; 15.2-4; 20.4,6; 21.1-7; etc. 356 U m a d u p l a razão 3 "' é a p r e s e n t a d a para j u s t i f i c a r a exortaç ã o " E n t r e m pela porta estreita". U m a " d u p l a " razão, e m vez d e d u a s r a z õ e s distintas, p o r q u a n t o esse p e n s a m e n t o u n i f i c a d o r é b á s i c o para todo o a r g u m e n t o d o s vv. 13 e 14: os h o m e n s d e v e m escolher a porta e o c a m i n h o q u e c o n d u z e m à vida, ou seja, a porta estreita e o c a m i n h o apertado, não a porta e o c a m i n h o q u e t e r m i n a m em destruição, ou seja, n ã o a porta larga e o c a m i n h o e s p a ç o s o . C o n s e r v a n d o isso em m e n t e , notar os dois p e n s a m e n tos s u b o r d i n a d o s : a. É natural preferir o q u e é a m p l o e e s p a ç o so, de fácil acesso, em lugar do q u e é estreito e a p e r t a d o ; e b. T a m b é m é natural seguir a m u l t i d ã o em vez de seguir uns p o u cos. C u i d a d o ! A e x o r t a ç ã o é um ardente apelo, um c o n v i t e m u i t o terno q u e e m a n a d o m a i s a m o r o s o d e t o d o s o s corações. Substancialm e n t e é a q u e l a m e s m a q u e se e n c o n t r a em 4.17: " C o n v e r t e m se, p o r q u e o reino do céu está p r ó x i m o . " Será repetida n a s palavras de 11.28-30, de Jo 7.37 e de 2 C o 5.20, p a r a m e n c i o n a r a p e n a s u m a s p o u c a s passagens. Ela foi prevista ou p r e n u n c i a d a em Is 1.18; 55.1,6,7; Ez 33.11; Os 11.8; etc., e l e v a d a ao c l í m a x em Ap 2 2 . 1 7 b . E o c o r a ç ã o a m o r o s o do qual ela e m a n a se revela em Mt 2 3 . 3 7 , na cruz, e, r e a l m e n t e , ao longo de t o d a a pereg r i n a ç ã o terrena de Cristo, e m e s m o antes ( 2 C o 8.9; cf. Jo 1.14). E esse c o r a ç ã o a i n d a está p u l s a n d o !
Advertência com respeito ao progresso do crente no caminho E s s a a d v e r t ê n c i a s e e n c o n t r a nos vv.l 5-20. C o m o s e m p r e , o princípio é d e c l a r a d o em p r i m e i r o lugar: 15. A c a u t e l e m - s e
dos falsos profetas, que vêm a vocês com vestimentas de ovelhas, porém interiormente são lobos devoradores. Entrar pela porta estreita e c a m i n h a r pelo c a m i n h o ao qual ela dá a c e s s o -w' Ver ü meu livro A l ida Futura Segundo a Bíblia. lidilora Cultura Cristã. SP. 357 Isto é. se com A.V.. A.R.V. (no texto), R.S.V., Berkeley. N.A.S. e muitos outros lemos não somente õti 7t^ai:í-.ía f| jrúXr| (v. 13). mas também ira atevi] jiú^ri
524
MATEUS
5.14b-16
significa q u e a g o r a se p o d e j o g a r ao v e n t o toda p r e o c u p a ç ã o ? É claro q u e não. C e r t a m e n t e q u e D e u s p r e s e r v a seus filhos, porém f a z isso por m e i o da p e r s e v e r a n ç a deles, a qual lhes é c o n c e d i d a p o r D e u s . Os inimigos são m u i t o s e astutos. São d e n o m i n a d o s d e " f a l s o s profetas". Um verdadeiro p r o f e t a é p o r t a - v o z de Deus. Ele foi c o m i s s i o n a d o por D e u s e leva c o n s i g o a m e n s a g e m de D e u s a o s hom e n s . Por e n q u a n t o , p o d e m o s c o n c e b e r u m falso p r o f e t a c o m o s e n d o a l g u é m q u e a si m e s m o d e s i g n o u e c o m o u m a p e s s o a que, e m b o r a p r e t e n d a p r o c l a m a r a verdade de Deus, r e a l m e n t e p r o c l a m a sua própria mentira. E s s a descrição provisória, e m b o ra seja incompleta, c o m o o demonstrarão os vv. 16-20 e especialmente os vv.21 -23, é suficiente para as exigências dos vv. 15-20. A palavra u s a d a no original para " f a l s o s p r o f e t a s " é pseudoprofetas (cf. Mt 24.11,24; Mc 13.22; Lc 6.26; At 13.6; 2 P e 2.1; 1 Jo 4.1; Ap 16.13; 19.20; 20.10). Em sua f o r m a ç ã o é ela s e m e -
lhante a pseudo-irmãos (2Co 11.26; G1 2.4), pseudo-apóstolos (2Co 11.13), pseudomeslres (2Pe 2.1), pseudofaladores (mentirosos, 11 m 4.2), pseudotestemunhas (Mt 26.60; I C o 15.15) e pseudocristos ( M t 24.24; Mc 13.22). Em c a d a caso pseudo sig-
nifica falso ou impostor. J e s u s a d v e r t e seus o u v i n t e s : " A c a u t e l e m - s e d o s — literalmente, m a n t e n h a m (sua mente) fora de — falsos profetas." M o t i v o : a i n d a q u e eles v e n h a m " v e s t i d o s d e o v e l h a s " , c o m roup a s de lã, c o m o se f o s s e m m e s m o ovelhas, c o n t u d o , interiormente, são l o b o s d e v o r a d o r e s , s e l v a g e n s (cf. 10.16; Lc 10.3; Jo 10.12; At 20.29). P a r e c e que eles são fingidos, hipócritas. E b e m p r o v á v e l q u e os escribas e f a r i s e u s e s t i v e s s e m i n c l u í d o s entre a q u e l e s e m q u e m Jesus e s t a v a p e n s a n d o (cf. M t 6.2,5,16; 15.7; cap. 23). Entretanto, d i a n t e de 7.21ss.; Jo 10.8,12, é evid e n t e q u e a d e s c r i ç ã o se e n c a i x a b e m a outros t a m b é m . De fato, (v. 14). límbora (írk. N.T. (A-B-M-W) dê preferência a xí (em vez deôxt) no v. 14. o qual sugere a tradução exclamativa: "Quão apertada é a porta e estreito o caminho...!". deve-se reconhecer a possibilidade de que esse fosse o texto original, a evidência textual não me convenceu de que haja uma base sólida e definida para essa preferência. Além disso, o texto õxi em ambos os casos produz um agradável equilíbrio de cláusulas.
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5.11,12
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ela se aplica a t o d o s a q u e l e s c u j a i n f l u ê n c i a tende a extraviar os filhos de D e u s , e s p e c i a l m e n t e a q u e l e s q u e egoísta e maliciosamente os d e s v i a m . Os E v a n g e l h o s , o livro de Atos, as Epístolas e o livro de A p o c a l i p s e estão repletos de e x e m p l o s de falsos profetas (Mt 27.20; 2 8 . 1 2 - 1 5 ; Jo 7.41,42; 9.29; At 2.13; 8.18,19; 15.1; Rm 6.1; 16.17,18; I C o 15.12; 2 C o 10.10; G1 1.6,9; 3.1; 4.17; 5.2-4; Ef 5.3-14; Fp 3.2,17-19; Cl 2.4,8,16-23; 2Ts 2.1,2; 3.6,14; I T m 1.3-7.18-20; 4.1-5,7; 6.20,21; 2 T m 2 . 1 4 - 1 8 ; 3.1-9; 4.3,4; Tt 1.10-16; 3.9,10; Hb 6.4-8; 10.26-28; Tg 2.17; 3Pe 2.1 ss.; 3.3,4; Uo 2.18; 4 . 1 ; 2.1o 1.0; 3Jo 9,10; Jd 4ss.; Ap 2.9, 14, 15, 15, 2 0 - 2 4 ; 3.9). De fato, um d o s aliados do d r a g ã o (Satanás) é "a besta q u e e m e r g e da t e r r a " ( A p 13.11), q u e t a m b é m é c h a m a da "o falso p r o f e t a " (16.13; 19.20; 20.10). É d i g n o de n o t a q u e a descrição q u e Cristo faz d o falso profeta, alguém q u e v e m vestido d e o v e l h a , n o entanto interiormente n ã o passa d e u m lobo voraz, e o q u a d r o a p r e s e n t a d o em Ap 13.11 da besta c o m " d o i s c h i f r e s s e m e l h a n t e s aos d e u m cordeiro, p o r é m f a l a v a c o m o u m d r a g ã o " , se a s s e m e l h a m m u i t í s s i m o entre si. Emi a m b o s os casos a e s s ê n c i a interior está em c o n f l i t o c o m a m a n i f e s t a ç ã o exterior. Os f a l s o s p r o f e t a s são os r e p r e s e n t a n t e s do p o d e r das trevas (Cl 1.13; cf. Lc 22.53; At 2 6 . 1 8 ; Ef 6.12) d i s f a r ç a d o s em a n j o s de luz ( 2 C o 11.14). A caracterização do f a l s o p r o f e t a c o m o o h o m e m destituído de a u t o r i z a ç ã o d i v i n a e que traz a sua própria m e n s a g e m , g e r a l m e n t e d i z e n d o ao p o v o o q u e este g o s t a de ouvir, e s t á radicada no A n t i g o T e s t a m e n t o (Is 30.10; Jr 6.13; 8.10; 23.21). Este é o tipo de p r o f e t a que, q u a n d o o f r a c a s s o é r e a l m e n t e iminente, dirá: "Sobe... e triunfarás" (2Cr 18.11). Gritará: "Paz, paz!" q u a n d o n ã o há paz (Jr 6.14; 8.11; Ez 13.10). Suas p a l a v r a s são " m a i s b r a n d a s q u e o a z e i t e " (SI 5 5 . 2 1 ; cf. Jo 10.1,8). A a d v e r t ê n c i a de J e s u s c o n t r a os f a l s o s p r o f e t a s é tão "rel e v a n t e " h o j e c o m o o foi ao ser p r o n u n c i a d a a p r i m e i r a vez. Hoje, entre os l e m a s usados pelos representantes m o d e r n o s dessa seita do e m b u s t e estão os seguintes: " C é u e i n f e r n o são m i t o s . " 526
MATEUS
5.14b-16
" O D e u s d e a m o r n ã o p e r m i t i r á q u e n i n g u é m seja p u n i d o para s e m p r e . " " S a t a n á s é um m i t o . " " O p e c a d o é u m a e n f e r m i d a d e . N ã o tem n a d a q u e ver c o m a culpa. Livre-se de seu c o m p l e x o de c u l p a . " "O i n d i v í d u o n ã o é r e s p o n s á v e l pelos seus a s s i m c h a m a d o s p e c a d o s p e s s o a i s . A culpa, se existe a l g u m a , recai s o b r e os pais ou sobre a s o c i e d a d e . " " E m m u i t a s situações, o q u e a n t i g a m e n t e se d e n o m i n a v a c o m o s e n d o pecado, de f o r m a a l g u m a o e r a . " E isso o q u e se q u e r dizer p o r "ética s i t u a c i o n a l " ? E um artifício c o n v i n c e n t e para se d e s c u l p a r as relações s e x u a i s e x t r a m a t r i m o n i a i s e outros m a l e s ? A i n t e n ç ã o destrutiva das o p e r a ç õ e s desses obreiros do mal é i n d i c a d a p e l o t e r m o q u e J e s u s u s a para descrevê-los: " l o b o s v o r a z e s " . O s lobos, c o m suas fortes m a n d í b u l a s , s u a s presas afiadas, sua astúcia diabólica, atacam, agarram e m a t a m sua presa s e m n e n h u m a c l e m ê n c i a . O a d j e t i v o vorazes e n f a t i z a sua avid e z e c r u e l d a d e . Ele se r e l a c i o n a ao v e r b o agarrar ou apoderar-se (cf. Jo 10.12: "E o lobo se a p o d e r a delas"). Esta palavra " v o r a z e s " o u " á v i d o s " , u s a d a aqui para d e s c r e v e r i n d i v í d u o s que se apoderam ("extorquidores"), também se faz presente em Lc 18.11; I C o 5.10,11; e 6.10. A igreja de J e s u s Cristo, em tod o s os tempos, deve manter-se em guarda contra os que distorcem a P a l a v r a de D e u s para a s a t i s f a ç ã o de seus próprios p r o p ó s i t o s egoísticos. A i n d a que sua l i n g u a g e m seja muito s u a v e e escorregadia, eles se c o n s t i t u e m n u m v e r d a d e i r o perigo c o n t r a o qual o s crentes p r e c i s a m p r e c a v e r - s e ( E f ó.lOss.). M a s p a r a que isso aconteça, é preciso saber q u e m eles são.
Por isso, Jesus prossegue: 16-20. Pelos seus frutos vocês os reconhecerão. Colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore sadia gera bom fruto, porém a árvore enferma gera fruto imprestável. Uma árvore sadia não pode gerar fruto imprestável, nem pode uma árvore enferma gerar bom fruto. Toda árvore que não produz boin fruto é cortada e lançada ao fogo. Portanto, pelos seus fru527
5.11,12
MATEUS
tos v o c ê s o s r e c o n h e c e r ã o . T ã o certo c o m o não s e c o l h e m u v a s ( f r u t o n o b r e ) d o s e s p i n h e i r o s (ervas d a n i n h a s ) , n e m figos ( m u i t o p r e c i o s o s ) d o s a b r o l h o s ( u m a praga), a s s i m t a m b é m aquilo q u e glorifica a D e u s n ã o p r o c e d e de um f a l s o profeta. O b o m f r u t o r e v e l a q u e a á r v o r e da q u a l p r o c e d e é s a d i a . O f r u t o i m p r e s t á v e l revela q u e a árvore da qual saiu é e n f e r m a . Isso não p o d e ser de outra f o r m a . O q u e um h o m e m é em seu ser interior se e x p r e s s a e x t e r i o r m e n t e , e s p e c i a l m e n t e em palavras e atos. Diz Lucas (6.45) n u m c o n t e x t o s e m e l h a n t e (ver 6.44): " O hom e m b o m do b o m tesouro do seu c o r a ç ã o tira o b e m , e o m a u , do m a u t e s o u r o tira o m a l ; p o r q u e a b o c a fala do que está c h e i o o c o r a ç ã o . " O caráter se aulo-revela. C e r t a m e n t e que o p r o f e t a é c a p a z de e n g a n a r o p o v o por algum tempo e e s c o n d e r o seu r o s t o a u t ê n t i c o atrás de u m a m á s c a r a de atos e p a l a v r a s de piedade. P o r é m isso n ã o p o d e durar. " N a d a é m a i s difícil do q u e falsificar a v i r t u d e " ( C a l v i n o ) . O f r u t o revelará o v e r d a d e i r o caráter da árvore. Entretanto, surge a pergunta: "O q u e esse fruto s i g n i f i c a ? T e m r e f e r ê n c i a ao q u e a p e s s o a e n s i n a ou ao seu c o m p o r t a m e n t o ? " À luz da p a s s a g e m citada, é e v i d e n t e que se refere ao prim e i r o ("... a b o c a fala"), c o m o t a m b é m de p a s s a g e n s tais c o m o Mt 15.9 (ver a e x p o s i ç ã o d e s s a p a s s a g e m ) ; Is 8.20; Tt l .9-12; Hb 13.9; Uo 4.1-3; 2 J o 9-11. É b e m provável que C a l v i n o estivesse c o m a razão ao d i z e r q u e entre os f r u t o s "a q u a l i d a d e do e n s i n o t e m o p r i m e i r o lugar". Ao c o m p a r a r d i l i g e n t e m e n t e c o m as Escrituras os e n s i n o s d a q u e l e q u e se apresenta c o m o profeta, g e r a l m e n t e n ã o é difícil d e t e r m i n a r se ele é servo de D e u s ou do diabo. Cf. Dt 13.1-5. N ã o obstante, o t e r m o " f r u t o " g e r a l m e n t e inclui b e m m a i s do q u e e n s i n o s . A luz do uso feito p o r J o ã o Batista, p o r J e s u s m e s m o , p o r P a u l o e p o r outros, ele indica i g u a l m e n t e a v i d a ou a c o n d u t a da pessoa, c o m o p o d e ser dem o n s t r a d o por m e i o d e u m c u i d a d o s o e x a m e das s e g u i n t e s passagens: Lc 3.8-14; Jo 15.8-10; G1 5.22-24; Ef 5.9-12; Fp 1.11; Cl 1.10; e Tg 3.17,18. 3 5 8 358
Hmboraeu concorde com Lcnski e sua análise sobre o ensino, acho que sua virtual exclusão da conduta é um tanto extremada (op. cit.. p. 293). e creio que o ponto de
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MATEUS
7.16-20
De um grande volume de passagens aprendemos que "toda á r v o r e q u e n ã o p r o d u z b o m f r u t o é c o r t a d a e l a n ç a d a ao f o g o " , texto q u e t a m b é m p e r t e n c e a o e n s i n o d e J o ã o Batista. P a r a u m a e x p l i c a ç ã o , v e r a e x p o s i ç ã o de Mt 3.10. Cf SI 1; 3 7 . 2 0 ; 7 3 . 1 8 20; Pv 2 9 . 1 ; Is 6 6 . 2 4 ; Jo 15.6. P a r a m a i o r ê n f a s e , J e s u s reflete a i m p o r t a n t e a f i r m a ç ã o : " P e l o s seus f r u t o s v o c ê s o s r e c o n h e c e r ã o " (vv. 16,20), c o m o s e q u i s e s s e dizer: " E m seu c a m i n h o p a r a a glória, o b s e r v e m c u i d a d o s a m e n t e e s s e s frutos, q u a i s q u e r q u e s e j a m eles, p a r a q u e n ã o s e j a m e n g a n a d o s , e o p r o g r e s s o de v o c ê s p o s s a ser a s s e g u r a d o . "
O fim do caminho: Os que falam versus os que fazem O f a t o de J e s u s c o m e ç a r f a l a n d o de " n a q u e l e d i a " (v.22) m o s t r a q u e o s e r m ã o está c h e g a n d o ao f i m . A e x p r e s s ã o " n a q u e l e dia", n e s s a c o n e x ã o (notar os vv.25 e 27), é u m a r e f e r ê n cia ó b v i a ao g r a n d e dia do j u í z o final. Cf. Is 2.11,17; Sf 1.15-18; Z c 14.6; M l 3.17; M t 2 4 . 3 6 ; M c 13.32; L c 10.12; 2 1 . 3 4 ; l T s 5.4; 2Ts 2.3; 2 T m 1.12,18; 4.8. A s e ç ã o d o s vv.21-27, c o n s i s t e em dois b r e v e s p a r á g r a f o s . O p r i m e i r o d e s s e s (vv.21-23) c o n t é m um contraste entre a. os
que simplesmente falam ou dizem e b. os que fazem. Os que f a l a m (implícito no v.21a) são a q u e l e s q u e dizem: " S e n h o r , Sen h o r " , sem p ô r a vontade do Pai em prática. Os que f a z e m (v.21b) são a q u e l e s q u e d i z e m e f a z e m o q u e é agradável a D e u s . A ê n f a s e está c l a r a m e n t e p o s t a n o s m e r o s c o n f e s s o r e s n o m i n a i s ( d e s c r i t o s n o v a m e n t e n o s v v . 2 2 e 23). O s e g u n d o p a r á g r a f o (vv.24-27) f i x a a a t e n ç ã o n o s m e s m o s dois g r u p o s , d e s s a v e z t r a t a n d o - o s na o r d e m inversa, e d e s c r e v e n d o - o s c o m o os que
praticam versus os que ouvem. A recompensa que espera os q u e p r a t i c a m e a ruína r e s e r v a d a p a r a os q u e s i m p l e s m e n t e ouv e m são r e t r a t a d a s p e l o v í v i d o s i m b o l i s m o d a c a s a c o n s t r u í d a na r o c h a e a c o n s t r u í d a na areia. vista de Calvino é mais equilibrado, como parece indicar a lista de passagens a que me refiro.
529
5.11,12
MATEUS
O primeiro parágrafo começa da seguinte forma:
21-23. Nem todo o que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino do céu, e, sim, aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que (está) no céu. Muitos me dirão naquele dia: "Senhor, Senhor, em teu nome não profetizamos, e em teu nome não expulsamos demônios, e em teu nome não realizamos muitas obras portentosas?" É evidente que existe uma relação entre e s s a s palavras e a a d v e r t ê n c i a i m e d i a t a m e n t e prec e d e n t e c o n t r a os f a l s o s p r o f e t a s (vv. 15-20). Jesus dissera aos seus o u v i n t e s q u e se m a n t i v e s s e m em g u a r d a contra os falsos profetas, aqueles que, e n q u a n t o proferiam mentiras, fingiam estar f a l a n d o a v e r d a d e . J e s u s q u i s dizer c o m isso q u e se um h o m e m p r o c l a m a a v e r d a d e , c o m isso c o m p r o v a q u e é um p r o f e t a verd a d e i r o ? " N ã o n e c e s s a r i a m e n t e " — parece q u e J e s u s está diz e n d o . Um h o m e m q u e f a l a a verdade, p o r é m seus atos o desm e n t e m , é t a m b é m , em certo sentido, um f a l s o profeta. Portanto, que c a d a p e s s o a e x a m i n e n ã o s o m e n t e o seu p r ó x i m o , m a s t a m b é m a si m e s m a . C o m o já se d e m o n s t r o u , o " f r u t o " que indica se um h o m e m é d i g n o ou n ã o de c o n f i a n ç a se relaciona n ã o só c o m a doutrina, m a s t a m b é m c o m a vida. A s s i m , c o m u m a força tremenda, a mensagem chega aos recessos de cada coração. A s p e s s o a s à s quais J e s u s c o n d e n a são q u a l i f i c a d a s d e falsas em razão de, em seu caso, a v i d a e os lábios não e s t a r e m em h a r m o n i a . S u a e x c l a m a ç ã o : " S e n h o r , S e n h o r " , não p a s s a d e u m e m b u s t e . Por m e i o dessa m e s m a e x p r e s s ã o , m e s m o agora, neste dia da g r a n d e A s s e m b l é i a Judicial, eles se a p r e s e n t a m c o m o servos leais de Cristo; entretanto, em sua vida terrestre, p o r m e i o de suas a ç õ e s , estiveram p r o c l a m a n d o o seu próprio senhorio sobre si mesmos (Ml 1,6ss.; Lc 6.46). P o r é m , nesse dia do j u í z o final eles d e s c o b r e m que, q u a l q u e r que t e n h a sido o êxito alcanç a d o a n t e r i o r m e n t e ao ludibriar os outros, e talvez até m e s m o a eles próprios e n q u a n t o e s t a v a m sobre a terra, n ã o p o d e m engan a r o Juiz. F i c a m e x c l u í d o s na f a s e final do reino. A lição é ó b v i a : q u e c a d a um e x a m i n e a si m e s m o ! O q u e t o r n a a i n t r o s p e c ç ã o i m p o r t a n t e é q u e h a v e r á m u i t o s " q u e f a l a m " que 530
MATEUS
5.14b-16
n ã o p e r t e n c e r a m a o rol d o s " q u e p r a t i c a m " . J e s u s d i z q u e eles n ã o p r a t i c a r a m a v o n t a d e de " m e u Pai...". Ver p. 303. C o m o e m M t 2 5 . 3 4 - 4 6 a s s i m t a m b é m aqui (7.22,23), o q u e a c o n t e c e no dia do J u í z o Final é r e p r e s e n t a d o s o b a f i g u r a de um d i á l o g o entre a q u e l e s q u e r e c u s a r a m levar a c a b o a v o n t a d e do Pai, p o r um lado, e J e s u s , o Juiz, por outro. M e s m o a n t e s q u e o v e r e d i t o seja p r o n u n c i a d o , aqueles q u e serão c o n d e nados compreendem, c o m o suas palavras tornam evidente, que o m e s m o n ã o lhes será f a v o r á v e l . Q u a n t o a isso d e v e - s e l e m b r a r q u e c o m respeito à sua a l m a , a g r a n d e m a i o r i a d e s s a s p e s s o a s já p a s s a r a a l g u m t e m p o no i n f e r n o . Cf. SI 7 3 . 1 2 - 1 9 ; Lc 16. 2 3 , 2 6 ; At 1.25. 359 E agora, q u e c o m a l m a e c o r p o são c o n v o c a d o s d i a n te do Juiz, q u e outra coisa p o d e m esperar s e n ã o a p e r p e t u a ç ã o da sua c o n d e n a ç ã o ? A l é m disso, a p r ó p r i a f o r m a c o m o são disp o s t a s a s filas diante d o G r a n d e Tribunal, e m m a r c a n t e contrast e c o m a s d o s j u s t o s , c o n f i r m a o seu t e m o r ( 2 5 . 3 2 , 3 3 ) . N ã o obstante, eles a r g ú e m o Juiz. Eles se lhe dirigem c o m o "Senhor, Senhor". Tremendo de m e d o p r o n u n c i a m esse título c o m temor e reverência, derramando nele muito mais sentido do que lhe haviam dado antes de chegarem a essa crise de p r o f u n d o desespero. Cf SI 66.3; Mq 7.17; Fp 2.11. Três v e z e s , e em c a d a caso b e m no início da locução, c o m o se vê c l a r a m e n t e no original e na tradução, eles a p e l a m p a r a o nome de J e s u s ( " e m teu n o m e " ) , c o m o se a fonte de s u a pregaç ã o e de s e u s p o d e r e s de o p e r a r m i l a g r e s tivesse sido g e n u i n a m e n t e u m a í n t i m a e c o n s c i e n t e u n i ã o c o m Cristo. Realmente, outra c o i s a n ã o f i z e r a m senão denegrir esse m e s m o n o m e , usando-o simplesmente como u m a espécie de formula mágica. Mas a g o r a a p e l a m p a r a o uso q u e o u t r o r a f i z e r a m dele, e s p e r a n d o desesperadamente poderem ainda demonstrar que suas palav r a s e o b r a s de o u t r o r a t i n h a m s i d o p a r a a g l ó r i a de D e u s , e talvez agora pudessem obter para si um lugar no reino do céu. Cf. 25.11,12. E m seu apelo, esses f a l s o s p r o f e t a s a f i r m a m q u e n o n o m e de Jesus haviam profetizado, expulso demônios e realizado 3y
' Ver meu livro A l 'ida iutiira Segundo a Bíblia, Editora Cultura Cristã. SP.
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7.13,14
MATEUS
m u i t a s obras p o r t e n t o s a s . J e s u s não n e g a a alegação de que cert a m e n t e eles se a u t o - a p r e s e n t a r a m c o m o seus e m b a i x a d o r e s , e q u e em c o n e x ã o c o m a i n v o c a ç ã o de seu n o m e c e r t a m e n t e real i z a r a m o b r a s portentosas. A p e r g u n t a que divide os c o m e n t a ristas é a seguinte: " E s s a s obras e r a m p r o d u t o g e n u í n o de um p o d e r sobrenatural, ou e r a m fraudulentas?'" 2Ts 2.9 e IO e n s i n a q u e em c o n e x ã o c o m a v i n d a do " i n í q u o " , haverá u m a p o d e r o s a m a n i f e s t a ç ã o de poder, de sinais e de maravilhas, t o d a ela falsa. At 19.13 e 14 revela que q u a n d o os sete filhos de C e v a , um judeu, t e n t a r a m imitar P a u l o no exercício de poderes m i r a c u l o sos, sua tentativa de e x o r c i s m o fracassou miseravelmente. S e m e l h a n t e m e n t e , t a m b é m o s m a g o s egípcios f r a c a s s a r a m a o tentar r e p r o d u z i r a terceira praga, f r a c a s s o este, c o m o m u i t o s o v ê e m , q u e põe d ú v i d a sobre o caráter g e n u í n o de seus primeiros " s u c e s s o s " (Èx 7.22; 8.7,18,19). T u d o isso n ã o a p o n t a para a possibilidade de q u e t a m b é m as e x p u l s õ e s de d e m ô n i o s e as outras o b r a s p o r t e n t o s a s das quais os falsos p r o f e t a s de Mt 7.22 se v a n g l o r i a m n ã o são outra coisa s e n ã o e m b u s t e ? A s investigaç õ e s n ã o t ê m c o m p r o v a d o repetidas v e z e s que entre o s falsos p r o f e t a s as ilusões, as tramas, a prestidigitação, etc., são a b u n dantes, e q u e o q u e se apresenta c o m o g e n u í n o c o m m u i t a f r e q ü ê n c i a não p a s s a de algo d e c e p c i o n a n t e ? Populus vulí decipi ( " o p o v o g o s t a d e ser e n g a n a d o " ) . Entretanto, t u d o isso n ã o d e v e fechar os nossos o l h o s para o fato de que, pela permissão de Deus, S a t a n á s às v e z e s e x e r c e i n f l u ê n c i a sobre o reino físico (tanto q u a n t o sobre o reino moral e espiritual), s e g u n d o se constata claramente do livro de Jó (1.12; 2.6,7). N ã o é possível q u e os m a g o s egípcios, pelo p o d e r e/ou p e r m i s s ã o d e Deus, t e n h a m sido c a p a z e s d e t r a n s f o r m a r varas em s e r p e n t e s ? (Êx 7.11,12a). C o n t u d o , note-se que em tais casos — o registrado no livro de Jó e o descrito em Ê x o d o — o fim resultante foi vitória para o S e n h o r e para o seu p o v o ( Ê x 7.12b; Jó 19.23-27; 42.5,6). É d e s n e c e s s á r i o excluir a possibilid a d e d e q u e entre a s p r o e z a s d a s quais o s falsos p r o f e t a s estão a g o r a s e v a n g l o r i a n d o e s t e j a m a l g u m a s q u e f o r a m realizadas c o m a a j u d a de p o d e r sobrenatural, seja d i v i n o ou satânico. T a m 532
MATEUS
8.1-9.34
b é m , é i n t e i r a m e n t e p o s s í v e l — m e s m o provável — q u e os hom e n s a q u e m J e s u s ora c o n d e n a de fato t e n h a m f a l a d o m u i t a s p a l a v r a s v e r d a d e i r a s q u a n d o p r o f e t i z a v a m n o n o m e d e Jesus. N ã o é v e r d a d e q u e o S e n h o r às v e z e s usa os í m p i o s para proclam a r e m v e r d a d e s m a r a v i l h o s a s ? ( N m 2 3 . 8 - 1 0 , 18-24; 2 4 . 5 - 9 , 1 7 ; Ap 2 . 1 4 ; At 16.16,17). É p r o v á v e l q u e D e m a s t e n h a p r e g a d o m u i t o s s e r m õ e s p r e c i o s o s (Cl 4 . 1 4 ; 2 T m 4.10). E m e s m o J u d a s Iscariotes, n ã o e s t a v a ele entre o s q u e f o r a m c o m i s s i o n a d o s p a r a curar e n f e r m o s e e x p u l s a r d e m ô n i o s ? ( M t 10.1). A r a z ã o porq u e os h o m e n s descritos aqui em Mt 7.22 são c o n d e n a d o s n ã o é q u e s u a p r e g a ç ã o t e n h a sido errônea, ou seus m i l a g r e s e s p ú r i o s , ou a m b a s as coisas, m a s porque não praticavam o que pregavam. E p o r esta r a z ã o q u e o S e n h o r p r o s s e g u e : E n t ã o lhes direi
francamente: Jamais os conheci; afastem-se de mim, vocês, d e s p r e z a d o r e s d a lei. " J a m a i s " , o u seja, n e m m e s m o p o r u m ú n i c o m o m e n t o . O q u e J e s u s q u i s dizer p o r " J a m a i s v o s c o n h e c i " ? E x i s t e um c o n h e c i m e n t o q u e é m e n t a l . Em Jo 1.47,49; 2 . 2 4 , 2 5 ; 2 1 . 1 7 f i c a e s t a b e l e c i d o que, de c o n f o r m i d a d e c o m a s u a n a t u r e z a divina, J e s u s p o s s u í a e s s e c o n h e c i m e n t o n u m grau ilimitado. Foi p r e c i s a m e n t e p o r q u e c o n h e c i a m u i t í s s i m o b e m os falsos p r o f e t a s que estava p l e n a m e n t e j u s t i f i c a d o em c o n d e n á los. C o n t u d o , existe t a m b é m o c o n h e c i m e n t o do c o r a ç ã o , ou seja, d o a m o r eletivo, d o r e c o n h e c i m e n t o , d a a m i z a d e , d a com u n h ã o ( A m 3.2; Na 1.7; Jo 10.14; I C o 8.3; G1 4.9; e 2 T m 2.19). A c o n e x ã o revela que a n o s s a p a s s a g e m se refere a esse tipo d e c o n h e c i m e n t o . O s f a l s o s p r o f e t a s f a l a m c o m o s e J e s u s tivesse sido s e u a m i g o . J e s u s f a l a c o m o s e lhes dissesse: " N e m s e q u e r p o r u m m o m e n t o o s reconheci c o m o m e u s , n e m o s conheci c o m o a m i g o s . " Q u a n d o a g o r a ele bane p a r a s e m p r e o s d e s p r e z a d o r e s da lei (literalmente, " o b r e i r o s da i n i q ü i d a d e " ) , ele os está c o n d e n a n d o à e t e r n a destruição, em c o r p o e a l m a , l o n g e de s u a p r e s e n ç a a m o r o s a ( M t 25.46; Lc 13.27,28; 2Ts 1.9). A n t e s d e d e i x a r esse b r e v e p a r á g r a f o (vv.21-23), d e v e - s e ter a a t e n ç ã o v o l t a d a para as h o n r a s q u e Jesus aqui reivindica. Ele é o Senhor do universo e de t u d o q u a n t o o m e s m o c o n t é m , g o v e r n a n t e s o b e r a n o de t o d o s os h o m e n s e de t o d a s as coisas 533
7.13,14
MATEUS
(cf. 11.27; 28.18; Fp 2.11; Ap 17.14). E m b o r a i n d u b i t a v e l m e n t e seja incorreto atribuir ao título " S e n h o r , S e n h o r " , p r o n u n c i a d o p e l o s f a l s o s p r o f e t a s d u r a n t e o s dias d a p e r e g r i n a ç ã o terrena d e Cristo (v.21), o m e s m o sentido e x a l t a d o q u e eles lhe a t r i b u e m n o dia d o j u í z o f i n a l (v.22), c o n t u d o , m e s m o n o primeiro caso d e v e - s e ter i m p l í c i t o o l o u v o r da b o c a para f o r a pelo fato de q u e Cristo era seu superior, a q u e l e a q u e m d e v i a m t o d a h o n r a e obediência. A l é m disso, a i n d a q u e d u r a n t e o j o r n a d e a r terreno de Cristo a p a l a v r a kurios (Senhor), ao referir-se a ele, d i f i c i l m e n t e poderia ter possuído a plenitude de significado que possuía q u a n do os d i s c í p u l o s leais o a p l i c a v a m à q u e l e que foi e x a l t a d o à destra do Pai em glória ( I C o 12.3), t o d a v i a , ainda q u a n d o esse apelativo foi u s a d o p e l o s h o m e n s descritos em 7.21, d e v e ter s i g n i f i c a d o m u i t o m a i s d o q u e s i m p l e s m e n t e " s e n h o r " ( o signif i c a d o q u e esse título t e m n o v o c a t i v o e m J o 12.21, c o m refer ê n c i a a Filipe). Q u a n d o os v e r d a d e i r o s d i s c í p u l o s o u s a v a m , ele s i g n i f i c a v a n ã o m e n o s d o q u e aquilo e m que J e s u s era c o n siderado, n u m a m e d i d a s e m p r e crescente, c o m o o o b j e t o da fé, do a m o r e da d e v o ç ã o deles. 3 6 0 J e s u s t a m b é m declara ser a q u e l e q u e v e m j u l g a r t o d o s o s h o m e n s . N o t e - s e : " M u i t o s m e dirão n a q u e l e dia... E n t ã o lhes direi." Cf. 2 5 . 3 1 , 3 2 ; 26.64; 2 8 . 1 8 ; Jo 5.22,27; Fp 2.9,10. D e u s . p o r m e i o do C o r d e i r o , J e s u s Cristo, será o Juiz ( A p 20.11-15). Já aqui em 7.21,22 — daí b a s t a n t e c e d o no ministério de Cristo — t e m o s um claro t e s t e m u n h o no sentido q u e J e s u s declara ser n a d a m e n o s do q u e ser a q u e l e diante de q u e m t o d o o m u n d o , crente e descrente, terá de prestar contas. De u m a f o r m a m u i t o m a i s detalhada, esse fato t r e m e n d o será estabelecido em 25.31 ss. F i n a l m e n t e , J e s u s declara ser, em um sentido único, o "Filho de D e u s " . D i z ele: " M e u P a i " (v.21). O que p r e c i s a m e n t e quis ele significar q u a n d o disse isso? Em que sentido ele denonima a si m e s m o , p o r inferência, o Filho de D e u s ? No sentido em q u e os c r e n t e s p o d e m dizer: "Pai n o s s o " ? R e s p o s t a : O p r ó p r i o f a t o de q u e ele j a m a i s se inclui q u a n d o u s a o t e r m o " P a i n o s s o " , e, naturalmente, j a m a i s inclui q u a i s q u e r outros q u a n d o d i z " m e u 3m
Ver J.G. Machen, The Origin of Pauis Religion, pp. 293-317.
534
MATEUS
7.21-23
P a i " o u " m e u p r ó p r i o Pai", d e m o n s t r a q u e ele s e c o n s i d e r a v a Filho d e D e u s n u m sentido m u i t o especial. Ele d e s f r u t a d a com u n h ã o de e s s ê n c i a c o m o Pai. Ver Jo 10.30; t a m b é m Mt 11.2528; 14.33 ( J e s u s aceitou o t e s t e m u n h o d o s discípulos); Jo 1.18 ( " o unigénito D e u s " , s e g u n d o a m e l h o r tradução); 3.16; 5.18 (Jesus c h a m o u D e u s " s e u p r ó p r i o Pai"); etc. Ora, se, c o m o j á ficou c o m p r o v a d o , J e s u s estava c o n s c i e n t e d e sua f i l i a ç ã o n a t u ral, essencial, divina, trinitária, e n t ã o n ã o é razoável crer que, s e m p r e q u e ele u s a v a o t e r m o " m e u Pai", j a m a i s ficava e x c l u í d a u m a r e f e r ê n c i a direta ou indireta à sua filiação d i v i n a ? Ver as s e g u i n t e s p a s s a g e n s : M t 7 . 2 1 ; 10.32; 1 2 . 5 0 ; 15.13; 1 6 . 1 7 ; 18.10,19; 2 0 . 2 3 ; 2 5 . 3 4 ; 2 6 . 3 9 , 4 2 , 5 3 ; Lc 10.22; 2 2 . 2 9 ; 2 4 . 4 9 ; Jo 5.17,43; 6.32; 8.19,49,54; 10.18,29,37; 14.7,12,20,21,28; 15.1,8,10,15,23,24; 16.10; 18.11; e 20.17. C e r t a m e n t e q u e Jesus era Filho d e D e u s n u m q u á d r u p l o sentido: a . f i l i a ç ã o ética, s e n d o " u m filho de D e u s " ; b. filiação oficial, s e n d o o M e s s i a s ; c. filiação p o r n a s c i m e n t o , p o r n a s c e r de u m a v i r g e m , de m o d o q u e D e u s é o Pai de s u a n a t u r e z a h u m a n a ; e d. filiação trinitária, s e n d o e t e r n a m e n t e g e r a d o do Pai e participante da e s s ê n c i a divina, s e n d o um c o m o Pai e o Espírito Santo. P o r é m , esses quatro e l e m e n t o s n ã o são separados. O s p r i m e i r o s três r e l a c i o n a m e n t o s n ã o r e p o u s a m sobre o q u a r t o ? Sobre "Pai celestial", ver pp. 401, 457.
O fim do caminho: Os que praticam versus os que ouvem A Parábola dos Dois Construtores Em estreita relação c o m o p e q u e n o parágrafo anterior, c o m o já foi d e m o n s t r a d o , J e s u s conclui seu s e r m ã o c o m a parábola 3 '' 1
dos dois construtores. Disse ele: 24-27. Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática será como 31,1
Ainda que a palavra parábola não seja usada no texto dos vv.24-27. não deveríamos vacilar em chamá-lo assim. Quando sc define parábola como "um símile estendido", ou como "uma história ilustrativa em que se estabelece urna comparação e se inclui a palavra ou frase que indica esta comparação (nesse caso será como)", ou simplesmente como "uma história terrena com um significado celestial", é claro que temos todo o direito de chamar isso de uma parábola. Assim também diz Ridderbos. op. eit., p. 158.
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5.11,12
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um homem ajuizado, que construiu sua casa sobre a rocha. Derramou-se a chuva, e vieram as inundações, enquanto sopravam os ventos, e se abateram contra aquela casa, porém não caiu, porque fora fundada sobre a rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as põe em prática será como um homem desajuizado, que construiu sua casa na areia. Derramou-se a chuva, e vieram as inundações, enquanto sopravam os ventos, e se chocaram contra aquela casa; e ela caiu, e o estrondo produzido foi tremendo. A m b o s os h o m e n s m e n c i o n a d o s n e s s a p a r á b o l a são construtores, pois viver significa construir ou edificar. C a d a a m b i ç ã o q u e u m h o m e m acaricia, c a d a p e n s a m e n t o q u e ele c o n c e b e , c a d a p a l a v r a q u e ele p r o n u n c i a e c a d a obra q u e ele realiza é, por a s s i m dizer, um tijolo da c o n s t r u ç ã o . G r a d u a l m e n t e a estrutura de sua v i d a se eleva. C o n t u d o , n e m t o d o s os c o n s t r u t o r e s são iguais. A l g u n s são sábios, o u t r o s são insensatos. J e s u s fala p r i m e i r a m e n t e sobre o m o d o c o m o o h o m e m sábio construiu sua casa, ou seja, sobre a rocha; em s e g u n d o lugar, sobre a p r o v a à qual e s s a casa foi s u b m e t i d a ; e em terceiro lugar, sobre o r e s u l t a d o d e s s a p r o v a e a razão para esse resultado. Ele s e g u e a m e s m a s e q ü ê n c i a c o m respeito ao h o m e m insensato e a casa q u e ele construiu. E d i g n o de nota q u e há som e n t e dois t i p o s d e construtores, não três, n e m q u a t r o o u cinco; e q u e e s s e s dois f o r m a m um notável contraste. O S e n h o r está c o n s t a n t e m e n t e d i v i d i n d o o s h o m e n s e m d u a s classes. A s s i m t a m b é m s u c e d e e m 6.22,23; 7.13,14; 7.17,18; 10.39; 13.11,12, 14-16, 19-23 (o b o m solo versus o m a u solo, ainda q u e por várias razões), 2 4 - 3 0 , 36-42, 4 7 - 5 0 ; 2 2 . 1 - 1 4 ; 25.2, para m e n c i o nar s ó a l g u n s d o s e x e m p l o s m a i s notáveis. N ã o obstante, ainda q u e o s d o i s construtores d i f i r a m d e m a n e i r a notável, entre s i n a s u p e r f í c i e t ê m m u i t o e m c o m u m . C a d a u m constrói u m a casa. A s " c a s a s " d e que J e s u s fala n ã o e r a m c o n s t r u í d a s de f o r m a tão sólida c o m o o r e q u e r e m os códig o s m o d e r n o s d e construção. O s ladrões p o d i a m f u r a r a s paredes e entrar (6.19). O teto, feito de terra e palha, p o d i a f a c i l m e n te ser " a b e r t o " ( M c 2.4; cf. SI 129.6). Portanto, t u d o d e p e n d i a 536
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5.14b-16
do alicercei O r a , os d o i s c o n s t r u t o r e s t a m b é m t ê m isso em com u m , o u seja, a m b o s erigem s u a casa n u m vale q u e c o n t é m o leito de um rio. D u r a n t e a e s t a ç ã o de estio esse leito fica seco, ou q u a s e seco, de m o d o q u e n ã o o f e r e c e risco a n e n h u m a d a s casas. A t é aqui, tudo b e m . N ã o é v e r d a d e que entre as p e s s o a s , i n c l u s i v e a s q u e f o r a m o u v i n t e s d o d i s c u r s o d e Cristo o u a q u e las q u e h o j e o l ê e m , há u m à g r a n d e s e m e l h a n ç a s u p e r f i c i a l ? C o n t u d o , e s s e n c i a l m e n t e , q u ã o radical é o c o n t r a s t e entre os d o i s c o n s t r u t o r e s ! O p r i m e i r o c o n s t r u t o r é sábio, sensato. E prev i d e n t e . Ele p o n d e r a sobre o f a t o de q u e a estação seca n ã o durará. L o g o os c é u s se e s c u r e c e r ã o e as legiões a l a d a s da t e m p e s t a d e c h e g a r ã o . S u a casa será i n u n d a d a pelas c h u v a s , b a t i d a pelos v e n t o s e, a n ã o ser q u e se t o m e m as d e v i d a s p r e c a u ç õ e s , será a r r a s t a d a p e l a s e n c h e n t e s , p e l a t u r b u l e n t a correnteza. A s s i m s e p r e p a r a para o perigo i m i n e n t e . A n t e s de edificar a casa ele rem o v e a terra solta, c a v a até e n c o n t r a r a r o c h a (cf. Lc 6.48). Então ele a s s e n t a o alicerce na rocha. 3 6 2 O insensato n ã o f a z n a d a disso. Ele erige s u a c a s a na terra solta, c o m o se o sol j a m a i s f o s s e deixar de brilhar. Em s u a e x p l a n a ç ã o da p a r á b o l a J e s u s realça q u e o signific a d o figurativo do alicerce é " e s t a s m i n h a s p a l a v r a s " , ou seja, todo o Sermão do Monte, e, por u m a extensão da figura, todas as p a l a v r a s q u e p r o c e d e r a m da b o c a de J e s u s e f o r a m dirigidas a o s h o m e n s . Visto que p o r m e i o do q u e J e s u s diz e o r d e n a ele r e v e l a o seu p r ó p r i o c o r a ç ã o , o seu p r ó p r i o ser, c e r t a m e n t e q u e é t a m b é m c o r r e t o dizer que, no q u e c o n c e r n e à i n t e r p r e t a ç ã o ou s i g n i f i c a d o e s p i r i t u a l da p a r á b o l a , C r i s t o m e s m o é a R o c h a (Is 2 8 . 1 6 , cf. I P e 2.6; Rm 9.33; I C o 3.11; 10.4). O q u e é dito s o b r e D e u s c o m o a R o c h a d o s crentes (Dt 3 2 . 1 5 , 1 8 ; SI 18.2; 3f 2
' Mt 7.24 diz tfiv jcétpav. A palavra 7iéxpa refere-se. nesse contexto, ao terreno rochoso, a um fundamento rochoso, tini razão da presença do artigo muitos preferem a tradução "a rocha" [como a maioria das versões em português|. Entretanto, isso pode facilmente conduzir a um mal-entendido, como se na ilustração estivesse fazendo referência a uma rocha específica. Portanto, provavelmente seja melhor a tradução "sobre rochas" (N.E.B.) ou "sobre fundamento rochoso" (Williams). O contraste é entre "rocha" e "areia". No grego provavelmente temos um uso genérico do artigo, por isso poderia ser omitido na tradução: "sobre rocha", "sobre areia". 537
7.13,14
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89.26; e Is 17.10) é t a m b é m a p l i c a d o a Cristo. Ver C.N.T. sobre Efésios, pp. 2 3 6 , 237. S e g u n d o o e n s i n o de Jesus aqui no v.24
(cf. v.26), edificar alguém a sua casa sobre a rocha significa não só ouvir o Senhor, mas, em gratidão pela salvação recebida (certamente implícita em 5.1-16), pôr em prática os seus mandamentos. P e l a g r a ç a de D e u s , o h o m e m sábio faz a s s i m ; o h o m e m estulto, c o n f i a n d o em si m e s m o e r e c u s a n d o - s e a p e n sar no f u t u r o , n ã o o faz. Ele é um ouvinte, p o r é m n ã o um praticante. Ele segue os impulsos de sua própria vontade pecaminosa. O dia da p r o v a a c a b a c h e g a n d o . A p r o v a é p a r a ambas as casas. A c h u v a é d e s p e j a d a sobre e c o n t r a as d u a s casas, certam e n t e b e m em c i m a do teto. E u m a d e s s a s terríveis t e m p e s t a d e s q u e n e s s a região o s v e n t o s r e p e n t i n o s t r a z e m d o M e d i t e r r â n e o . Há u m a c h u v a r a d a após outra. Em c o n s e q ü ê n c i a , o leito do rio já n ã o m a i s se a c h a seco. Ele c o m e ç a a encher-se de água, prim e i r o um p e q u e n o córrego, s e m p r o f u n d i d a d e e lento; logo é u m a corrente p r o f u n d a , rápida, f u r i o s a , q u e a m e a ç a o s p r ó p r i o s suportes d a s p a r e d e s , seja o q u e f o r em q u e a c a s a se apóia. D u r a n t e o t e m p o t o d o o f o r t e v e n t o ocidental e s m u r r a e g o l p e i a a parte superior, m o r m e n t e as paredes. A s s i m t a m b é m p a r a t o d o o u v i n t e d o e v a n g e l h o , s e j a ele sensato ou insensato, a p r o v a ou crise s e g u r a m e n t e chega. Ela c h e g a de várias f o r m a s : t r i b u l a ç ã o ( G n 22.1; o livro de Jó), tentação ( G n 3 9 . 7 - 1 8 ; M t 2 6 . 6 9 - 7 5 ) , luto ( G n 42.36; J ó 1.18-22; Lc 7.11-17; Jo l l . l s s . ) , m o r t e (At 7.59,60; 9.37) e no presente c o n t e x t o (notar o v.22: " n a q u e l e dia") e s p e c i a l m e n t e o dia do juízo. S u a c h e g a d a não p o d e ser evitada. A s v e z e s ela c h e g a c o m d r a m á t i c a rapidez ( M t 2 4 . 4 3 ; 25.6; lTs 5.2). Q u a l é o efeito ou c o n s e q ü ê n c i a d e s s a p r o v a ? A casa do h o m e m sábio n ã o caiu. N o t a r o j o g o de palavras: " o s v e n t o s caíram sobre a q u e l a casa, p o r é m ela n ã o caiu.'''' As á g u a s torrenciais q u e a a m e a ç a v a m n ã o a p u d e r a m abalar (Lc 6.48). E l a resistiu a o s t u m u l t u o s o s e m b a t e s . E l a s u p o r t o u a e n o r m e f o r ç a d a a r r e m e t i d a d a correnteza. E l a d e s a f i o u c a d a a t a q u e f u r i o s o . Q u a n d o se e s v a i u c o m p l e t a m e n t e a f o r ç a da t e m p e s t a d e , lá es538
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7.16-20
t a v a a q u e l a casa, s e m q u e n e n h u m d o s e l e m e n t o s d a n a t u r e z a lhe c a u s a s s e d a n o . A r a z ã o : ela f o r a e d i f i c a d a sobre a r o c h a ! Por o u t r o lado, q u a s e n e m foi p r e c i s o m u i t o e s f o r ç o p o r parte d a f u r i o s a c o r r e n t e z a p a r a solapar o s m u r o s d a o u t r a casa e levar e m b o r a a areia ou terra solta sobre a qual f o r a e d i f i c a d a . A l i á s , a c h u v a e o v e n t o f a c i l m e n t e a c a b a r a m c o m o q u e foi d e i x a d o pela i n u n d a ç ã o . T u d o o q u e o v e n t o t i n h a a f a z e r era d a r a p e n a s um e m p u r r ã o contra a c a m b a l e a n t e estrutura. 3 6 3 E n tão, c o m um t r e m e n d o estrondo, ela caiu na á g u a e foi arrastada, e s p a l h a n d o p e d a ç o s p o r t o d o lado. S u a r u í n a foi c o m p l e t a . O h o m e m sensato, q u e m o s t r a por seus p r ó p r i o s a t o s q u e l e v o u a sério as p a l a v r a s de Cristo, e, portanto, está e d i f i c a n d o sobre a R o c h a , j a m a i s será e n v e r g o n h a d o . Ver p. 4 8 6 . M e s m o o d i a d o juízo será p a r a ele u m dia d e t r i u n f o ( I T s 2 . 1 9 , 2 0 ; 3.13; 4 . 1 6 , 1 7 ; 2Ts 1.10; 2 T m 4 . 8 ; T t 2 . 1 3 , 1 4 ) : Da Igreja o f u n d a m e n t o é Cristo, o S a l v a d o r ! Em s e u p o d e r d e s c a n s a e é forte em s e u amor. P o i s nele, alicerçada, segura e firme está, E s o b r e a R o c h a Eterna j a m a i s se abalará. A pedra preciosa que Deus predestinou S u s t e n t a p e d r a s v i v a s q u e a g r a ç a trabalhou. E q u a n d o o m o n u m e n t o surgir em p l e n a luz, A glória do e d i f í c i o será do Rei Jesus! (Estrofes d o hino " A Pedra F u n d a m e n t a l " ) A teoria de que J e s u s aqui ensina a doutrina das obras c o m o o m e i o p e l o q u a l a s a l v a ç ã o é a l c a n ç a d a é c e r t a m e n t e errônea, p o r q u e o p r ó p r i o a r g u m e n t o da p a r á b o l a é q u e o fundamento da 363
Isso fica claro segundo o quadro todo e também é possível que a diferença nos verbos usados no original para descrever a ação do vento contra a casa edificada sobre a rocha, por comparação com a ação contra a edificada sobre a areia, confirme esse fato. No primeiro caso. o verbo é 7rpocré;ieaav (caiu sobre, açoitou contra, abateu com grande força); no segundo, é 7tpoaÉKo\)/av (golpear contra; em Jo 11.9,10. tropeçar). O próprio fato de que a descrição dos diversos elementos da tempestade em sua ação contra essas casas seja exatamente a mesma em cada caso, exceto para esses dois verbos distintos indicarem a ação do vento, pareceria fortalecer a possibilidade de que se trata de uma diferença em significado ("lançar-se com grande força" em contraste com "tropeçar contra"). Ver também Lenski. op. cit., p. 304. 539
5.11,12
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f e l i c i d a d e eterna d o h o m e m n ã o d e v e ser b u s c a d a n o p r ó p r i o h o m e m , e, sim, em Cristo e suas palavras, c o m o já foi d e m o n s trado. E sobre esse f u n d a m e n t o que o h o m e m d e v e edificar sua vida, inclusive s u a e s p e r a n ç a eterna. A ruína r e s e r v a d a para a q u e l e s que estão c o n s t r u i n d o na areia é descrita no final do s e r m ã o , p r o v a v e l m e n t e c o m o fim de i m p r i m i r n o s o u v i n t e s e n a q u e l e s q u e d e p o i s seriam postos em contato c o m e s s a ardente m e n s a g e m , q u e s u a reação diante destas p a l a v r a s t e m u m a s i g n i f i c a ç ã o para t o d a a eternidade. Portanto, na realidade, o a n ú n c i o do trágico fim d o s incrédulos é u m a m a n i f e s t a ç ã o d a m i s e r i c ó r d i a d e Cristo, u m sério convite implícito ao a r r e p e n d i m e n t o (cf. 4.17), e s t e n d i d o a t o d o s os q u e a i n d a v i v e m n o dia d a graça. M a t e u s j u n t a as s e g u i n t e s p a l a v r a s a fim de m o s t r a r o efei-
to do sermão no auditório: 28, 29, Ora, quando Jesus terminou estas palavras, as multidões estavam aturdidas com o seu ensinamento, porque as ensinava como quem tem autoridade, mas não como os seus escribas. Quando Jesus parou de falar, a g r a n d e m u l t i d ã o , q u e f a s c i n a d a o ouvia, estava em e s t a d o de e s p a n t o . Em n o s s o i d i o m a é m u i t o difícil, talvez impossível, r e p r o d u z i r o e x a t o sabor do pitoresco v e r b o usado no original para d e s c r e v e r o e s t a d o do c o r a ç ã o e da m e n t e do p o v o . As várias v e r s õ e s em p o r t u g u ê s t r a d u z e m o t e r m o p o r " m a r a v i l h a d a s " ( A t u a l i z a d a ) , " a d m i r o u - s e " (Corrigida), " e x t a s i a d a s " (Bíblia de J e r u s a l é m ) . The Amplified New Testamení traz: " e s t a v a m a t ô n i t o s e d o m i n a d o s de p e r p l e x a a d m i r a ç ã o . " Essas trad u ç õ e s são todas elas m u i t o úteis. O s i g n i f i c a d o literal do original é " f i c a r a m c o m o q u e f o r a de si". T e m - s e sugerido " t i r a d o s de s e u s s e n t i d o s " . C o m p a r e - s e t a m b é m c o m o a l e m ã o "ser traz i d o p a r a f o r a de si" (Lenski, op. cit., p . 3 0 5 ) e o h o l a n d ê s "der-
rotados para fora do campo ". O tempo do verbo364 mostra que esse e s t a d o d e a s s o m b r o n ã o f o i s ó u m a e x p e r i ê n c i a m o m e n t â nea, m a s q u e d u r o u a l g u m t e m p o . Poder-se-ia m u i t o b e m perguntar: Q u a i s f o r a m a l g u m a s das r a z õ e s d e s s e s e n t i m e n t o de a d m i r a ç ã o e a s s o m b r o ? Mt 13.54,55 :5M
e^ekX.tíocovco, terc. pes. pl. imperl'. pas. cie è x i t ^ c o ® .
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MATEUS
5.14b-16
p o d e r i a f o r n e c e r parte d a resposta. N ã o obstante, c o m b a s e n o p r ó p r i o s e r m ã o e em 7.28 ( " n ã o c o m o os seus e s c r i b a s " ) , os seguintes temas merecem consideração: a. Ele f a l a v a a v e r d a d e (Jo 14.6; 18.37). O a r r a z o a d o corrupto e e v a s i v o caracterizava os s e r m õ e s de m u i t o s d o s escribas (Mt 5.21 ss.). b. Ele a p r e s e n t a v a a s s u n t o s de g r a n d e relevância, q u e s t õ e s de vida, m o r t e e e t e r n i d a d e (ver todo o s e r m ã o ) . Eles c o m f r e q ü ê n c i a d e s p e r d i ç a v a m seu t e m p o c o m trivialidades ( M t 2 3 . 2 3 ; Lc 11.42). c. H a v i a sistema na p r e g a ç ã o de Jesus. S e g u n d o o T a l m u d e deles c o m p r o v a , eles c o m f r e q ü ê n c i a d i v a g a v a m s e m parar. d. Ele e x c i t a v a a c u r i o s i d a d e ao fazer u s o g e n e r o s o de ilust r a ç õ e s ( 5 . 1 3 - 1 6 ; 6 . 2 6 - 3 0 ; 7 . 2 4 - 2 7 ; etc.) e e x e m p l o s c o n c r e t o s ( 5 . 2 1 — 6 . 2 4 ; etc.), c o m o o s e r m ã o o revela do p r i n c í p i o ao f i m . Os d i s c u r s o s deles e r a m c o m f r e q ü ê n c i a áridos c o m o o pó. c. Ele f a l a v a c o m o a q u e l e q u e a m a v a os h o m e n s , c o m o a q u e l e q u e se p r e o c u p a v a c o m o b e m - e s t a r eterno de seus ouvintes e a p o n t a v a p a r a o Pai e seu a m o r (5.44-48). A falta de a m o r p o r p a r t e deles é e v i d e n t e c o m base em p a s s a g e n s tais c o m o 2 3 . 4 , 1 3 - 1 5 ; M c 12.40; etc. f. F i n a l m e n t e , e este a s p e c t o é o m a i s importante, p o i s ele é e s p e c i f i c a m e n t e d e c l a r a d o aqui (v.28). Ele f a l a v a " c o m aut o r i d a d e " ( M t 5.18,26; etc.), p o r q u e sua m e n s a g e m v i n h a diret a m e n t e do c o r a ç ã o e m e n t e do Pai (Jo 8.26), daí t a m b é m vir do m a i s p r o f u n d o de seu p r ó p r i o ser e das Escrituras (5.17; 7.12; cf. 4.4,7,10). Eles e s t a v a m c o n s t a n t e m e n t e a p r o v e i t a n d o f o n t e s falíveis, c i t a n d o um escriba ou outro. Eles t e n t a v a m tirar á g u a de cisternas rotas. Ele extraía de si m e s m o , pois era (e é) "a f o n t e d e á g u a s v i v a s " (Jr 2.13).
541
SÍNTESE DOS CAPÍTULOS 8 E 9
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer 8 . 1 - 9 . 3 4 U m a Série d o s P r i m e i r o s M i l a g r e s . Siga-me. Jejum x Festa 9.36-38
"A ceifa é abundante, m a s os trabalhadores são p o u c o s "
CAPÍTULOS 8 - 9
8
MATEUS
8.19.34
1 Ao descer ele do monte, grandes multidões o a c o m p a n h a -
ram. 2 E eis que um leproso aproximou-se, ajoelhou-se diante dele, e disse: "Senhor, se quiser, pode purificar-me." 3 Então ele estendeu sua mão, tocou-o, e disse: " Q u e r o ; fique limpo"; e imediatamente sua lepra foi purificada. 4. Disse-lhe Jesus: "Veja b e m que não o diga a ninguém, irias vá, mostre-se ao sacerdote e, para lhes servir de testemunho, apresente a oferta que Moisés prescreveu." 5 Q u a n d o ele entrou em C a f a r n a u m , aproximou-se dele um centurião rogando que o ajudasse, 6 dizendo: "Senhor, meu j o v e m criado j a z em casa, a c a m a d o com paralisia, s o f r e n d o terrivelmente." 7 E ele lhe disse: "Eu irei e o curarei." 8 M a s o centurião respondeu: "Senhor, não sou digno que entre d e b a i x o de meu telhado, mas simplesmente diga uma palavra e meu criado será curado. 9 Porque eu m e s m o sou um homem sujeito a autoridade, com soldados às minhas ordens; e eu digo a um: ' V á ' , e ele vai; a outro: ' V e n h a ' , e ele vem; e a meu escravo: ' F a ç a isto', e ele o faz." 10 Ora, quando ouviu isso, Jesus encheu-se de p a s m o e disse aos que o a c o m p a n h a v a m : 'Solenem e n t e lhes d e c l a r o , em ninguém em Israel encontrei com t a m a n h a fé. 11 Digo-lhes que muitos virão do Oriente e do Ocidente e se reclinarão na mesa com Abraão, Isaque e Jacó, no reino do céu, 12 mas os filhos do reino serão lançados nas mais distantes trevas. Ali haverá pranto e ranger de dentes". 13 E disse Jesus ao centurião: " V á para casa; c o m o creu, que assim se faça com você." E naquele exato m o m e n t o seu criado foi curado. 14 E ao entrar na casa de Pedro, Jesus viu a sogra deste deitada com febre. 15 Então tocou-lhe a mão, e a febre a deixou, e levantou-se e passou a cuidar dele. 16 E ao anoitecer, trouxeram-lhe muitos que eram endemoninhados, e c o m u m a palavra ele expulsava os espíritos, e curava a todos os que estavam enfermos; 17 para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías:
543
8.1-9.34
MATEUS
'"Ele tomou sobre si nossas enfermidades, E carregou nossas doenças." 18 Ora, vendo Jesus uma multidão ao seu redor, deu ordens de partir para o lado contrário. 19 E uni certo escriba aproximou-se e disse: "Mestre, seguir-lhe-ei para onde quer que vá." 20 Disse-lhe Jesus: "As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde pousar sua cabeça." 21 Outro, um de seus discípulos, disse-lhe: "Senhor, permita-me ir primeiro para casa e sepultar meu pai." 22 Disse-lhe, porém, Jesus: "Siga-me, e deixe os mortos sepultar seus próprios mortos." 23 Ao entrar no barco, seus discípulos seguiram-no. 24 De repente, violenta tempestade agitou o mar, de tal sorte que o barco foi sendo inundado pelas ondas; ele, porém, dormia profundamente. 25 Então aproximaramse, o acordaram, dizendo: "Senhor, salve[-nos], estamos perecendo." 26 E ele lhes disse: "Por que estão amedrontados, ó homens de pequena fé"? Então, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar; e houve profunda calma. 27 Os homens ficaram espantados, e disseram: "Que tipo de pessoa é esta, que até os ventos e o mar lhe obedecem"? 28 E quando chegou do outro lado, ao país dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois endemoninhados, vindos dos sepulcros. Tão violentos eram eles que ninguém podia passar por aquela estrada. 29 Imediatamente começaram a gritar: "Por que nos aborrece, ó Filho de Deus? Veio aqui torturar-nos antes do tempo determinado"? 30 Ora, a alguma distância deles, uma grande manada de porcos comia. 3 I Então os demônios rogaramlhe, dizendo: "Se nos expulsa, permita-nos entrar naquela manada de porcos." 32 E disse: "Vão." Então saíram e entraram nos porcos, e toda a manada precipitou-se pelo despenhadeiro no mar, e pereceu nas águas. 33 E os pastores fugiram, chegaram à cidade e relataram tudo, inclusive o que havia sucedido ao endemoninhado. 34 E eis que toda a cidade saiu ao encontro de Jesus; e, assim que o viram, rogaram-lhe que deixasse seu distrito.
9
1 Então entrou num barco, passou para o outro lado e chegou
à sua própria cidade. 2 E eis que lhe trouxeram um paralítico deitado numa cama. Ao ver Jesus a fé deles, disse ao paralítico: "Filho, tenha coragem; seus pecados são perdoados." 3 Nisso alguns dos escribas disseram consigo mesmos: "Esse homem blasfema". 4 Jesus, conhecendoIhes os pensamentos, disse: "Por que arrazoam mal em seus corações? 5 Pois qual é mais fácil? dizer: 'Seus pecados estão perdoados', ou dizer: 'Levante-se e a n d e ' ? 6 Mas para que saibam que o Filho do homem tem sobre a terra poder para perdoar pecados", (então disse ao paralítico) "Levante-se, tome seu leito e vá para casa". 7 E ele levantou-se e foi para casa. 8 Ao ver as multidões tal coisa, encheram-se de medo, e glorificaram a Deus por conceder aos homens tal poder. 544
MATEUS
8.1-9.34
9 Ao partir dali, viu Jesus um homem chamado Mateus sentado na coletoria, e disse-lhe: "Siga-me." Ele levantou-se e o seguiu. 10 Uma vez em casa, enquanto Jesus se reclinava à mesa, o que sucede? Muitos coletores e (outras] pessoas de baixa reputação se aproximaram e se reclinaram à mesa com ele e seus discípulos. 11 Os fariseus, observando isso, interrogaram seus discípulos: "Por que seu mestre está comendo com cobradores de impostos e pecadores"? 12 Ao ouvir isso, ele lhes disse: "Não são os sadios que necessitam de médico, e, sim, os que são doentes. 13. Vão e aprendam o que significa: 'Eu quero misericórdia, e não sacrifício'. Porque não vim chamar justos, e, sim, pecadores." 14 Então os discípulos de João vieram a ele, dizendo: "Por que é que nós e os fariseus j e j u a m o s com freqüência, seus discípulos, porém, não jejuam"? 15 Disse-lhes Jesus: "É possível que os assistentes do noivo estejam de luto enquanto o noivo está com eles? Dias virão, porém, em que o noivo lhes será tirado. Então jejuarão. 16 Ninguém põe um remendo, feito de um pedaço de tecido novo, numa roupa velha; pois assim o r e m e n d o sai da roupa, e a ruptura fica maior. 17 Nem se põe vinho novo em odres velhos; do contrário os odres se rompem, o vinho se derrama e os odres ficam imprestáveis; vinho novo, porém, se põe em odres novos, e ambos se conservam." 18 Enquanto ainda lhes dizia essas coisas, eis que chegou um administrador, pôs-se de joelho diante dele e disse: "Minha filha acaba de falecer; mas venha, imponha-lhe sua mão, e ela viverá." 19 Prontamente Jesus se pôs a segui-lo, e também seus discípulos. 20 Logo a seguir, uma mulher que havia doze anos sofria de hemorragia, chegou por trás e tocou-lhe a orla do manto; 21 pois dizia consigo mesma: "Se apenas tocar-lhe o manto, sararei." 22 Jesus, porém, voltou-se, viu-a, e disse: "Coragem, filha; sua fé lhe trouxe saúde." Imediatamente a mulher recobrou a saúde. 23 E quando Jesus chegou à casa daquele líder, e viu os tocadores de flauta e a multidão agitada, 24 disse: "Retirem-se, pois a menina não está morta, mas dorme." Mas eles riram em sua face. 25 Quando a multidão retirou-se, ele entrou e a tomou pela mão, e a menina levantou-se. 26 A notícia disso espalhou-se por toda a região. 27 E ao partir Jesus dali, dois cegos seguiram-no, gritando sem cessar: "Tenha piedade de nós, Filho de Davi." 28 E ao entrar na casa, os cegos aproximaram-se dele, e Jesus lhes disse: "Crêem que sou capaz de fazer isso"? E disseram-lhe: "Sim, Senhor." 29 Então tocou seus olhos e disse: "Seja-lhes feito conforme sua fé." 30 E seus olhos se abriram. E Jesus energicamente advertiu-os, dizendo: "Vejam que ninguém o saiba"! 31 Ao saírem, porém, divulgaram a notícia por toda aquela região. 32 Enquanto se retiravam, trouxeram-lhe um endemoninhado que não podia falar. 33 Ao ser expulso o demônio, o mudo falou. A multidão ficou 545
8.1-9.34
MATEUS
perplexa, e disse: " U m a coisa c o m o esta j a m a i s se viu em Israel." 34 Os fariseus, contudo, diziam: "É pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios. 1 '
8 . 1 - 9 . 3 4 U m a Série d o s P r i m e i r o s Milagres. Siga-me. J e j u m versus Festa Comparar Mateus 8.1; cf. 7.29 8.2-4 8.5-13 8.14-17 8.18,23-27 8.19-22 8.28-34;9.1 9.2-26 subdividido: 9.2-8 9.9-13 9.14-17 9.18-26 9.27-34 subdividido: 9.27-31 9.32-34
Marcos
Lucas
1.40-45
5.1-20
5.12-16 7.1-10 4.38-41 8.22-25 9.57-62 8.26-39
2.1-22; 5.21-43 subdividido: 2.1-12 2.13-17 2.18-22 5.21-43
5.17-39; 8.40-56 subdividido: 5.17-26 5.27-32 5.33-39 8.40-56
1.29-34 4.35-41
A d i s p o s i ç ã o do m a t e r i a l de M a t e u s , de tal m o d o q u e um e x e m p l o da p r e g a ç ã o de J e s u s (caps. 5 - 7 ) é aqui s e g u i d o p o r u m a s é r i e d e n a r r a t i v a s d e m i l a g r e s , j á f o i e x a m i n a d a . Ver pp. 4 3 - 4 6 . A d i s p o s i ç ã o de M a t e u s , c o n s e q ü e n t e m e n t e , é p o r t e m a s , em v e z ser de f o r m a cronológica. D e v e - s e dar lugar à p o s s i b i l i d a d e de que, e m b o r a 8.2-4, 8 . 1 4 - 1 7 e 9.2-13 se r e f i r a m aos e v e n t o s q u e p r e c e d e r a m ao S e r m ã o do M o n t e , 8.5-13; 8.18— 9.1; e 9 . 1 4 segs. r e g i s t r a m o q u e s u c e d e u s u b s e q ü e n t e m e n t e . 546
MATEUS
5.14b-16
Q u e 4 . 1 6 é de f a t o v e r d a d e i r o , de sorte q u e os q u e j a z i a m e m trevas v i r a m g r a n d e luz, j á f i c o u d e m o n s t r a d o n o S e r m ã o d o M o n t e ; cf. 4 . 2 3 . Q u e e s s a l u z i r r a d i o u - s e t a m b é m e m s u a s ações, já ficou i n d i c a d o em 4 . 2 3 b - 2 5 , e a g o r a se c o m p r o v a r á com maiores detalhes.
Purificação de um Leproso M a t e u s c o m e ç a a s s i m esta seção: 8.1. A o d e s c e r ele d o
monte, grandes multidões o acompanharam. O estado de p e r p l e x i d a d e registrado n o s versículos i m e d i a t a m e n t e p r e c e d e n tes ( 7 . 2 8 , 2 9 ) j u s t i f i c a o f a t o de o p o v o n ã o ter a b a n d o n a d o J e s u s i m e d i a t a m e n t e , q u a n d o o s e r m ã o do m o n t e foi e n c e r r a d o . Ao d e s c e r e m do m o n t e , eles c o n t i n u a r a m a segui-lo e a cercá-lo, e é b e m p r o v á v e l q u e t e n h a m se j u n t a d o a outros q u e a i n d a n ã o o h a v i a m o u v i d o falar. O b s e r v e o plural: " g r a n d e s m u l t i d õ e s " . Ele a g o r a se dirigia a C a f a r n a u m (5.1; cf. Lc 7.1). C o n t u d o , exatamente q u a n d o e o n d e o c o r r e u o m i l a g r e a ser e s t u d a d o , n ã o é d e c l a r a d o n o s E v a n g e l h o s , n e m m e s m o e m M a r c o s 1.40 n e m em L u c a s 5.12. E s u f i c i e n t e q u e s a i b a m o s que esse ato de solid a r i e d a d e e p o d e r " n ã o foi r e a l i z a d o em a l g u m c a n t o " (cf. Jo 11.47; A t 4 . 1 6 ; 26.26). H a v i a s e m p r e m u i t a s t e s t e m u n h a s .
Prossegue: 2. E eis que um leproso aproximou-se, ajoelhou-se diante dele, e disse: "Senhor, se quiseres, podes pur i f i c a r - m e . " A e n f e r m i d a d e q u e h o j e d e n o m i n a m o s de lepra g e r a l m e n t e c o m e ç a c o m d o r em certas áreas do c o r p o . A seguir v e m d o r m ê n c i a e a pele, n e s s a s partes, p e r d e s u a cor original. Fica saliente, lustrosa e e s c a m o s a . De fato, a c a l a m i d a d e é cham a d a de lepra em razão de a p e l e f a z e r - s e escamosa, c u j a pala-
vra em grego é lepos ou lepis, que significa escama.3hy A medida q u e a e n f e r m i d a d e se agrava, as partes salientes se t r a n s f o r m a m em c h a g a s feias e úlceras p r o v o c a d a s p e l a insuficiência do c u r s o s a n g ü í n e o . A pele, e s p e c i a l m e n t e em t o r n o d o s o l h o s e 165
Em conexão com Mateus 6.19, já foi ob'servado que um termo formado, em parte, de uma raiz semelhante, isto é. o termo lepidoptera. indica os insetos, inclusive mariposa, com suas asas cobertas de escamas. Atos 9.18 registra que caíram dos olhos de Saulo como que umas escamas (Aíiríôeç).
547
5.11,12
MATEUS
orelhas, c o m e ç a a f o r m a r p r o t u b e r â n c i a s c o m p r o f u n d o s s u l c o s entre as i n c h a ç õ e s , de sorte q u e o rosto da p e s s o a atingida a s s u m e o a s p e c t o d o rosto d e u m leão. O s d e d o s c a e m o u são absorv i d o s ; o s d e d o s d o s p é s são i g u a l m e n t e a f e t a d o s . A s s o b r a n c e lhas e p e s t a n a s t a m b é m c a e m . E a s s i m se p o d e ver que a pessoa, n e s s e e s t a d o m i s e r á v e l , está leprosa. C o m u m s ó t o q u e d o d e d o é p o s s í v e l t a m b é m senti-lo. Até pelo olfalo é possível p e r c e b ê lo, p o i s o leproso e m i t e um o d o r p o r d e m a i s r e p u g n a n t e . A l é m do mais, diante do f a t o de q u e o agente q u e p r o d u z a e n f e r m i d a de a m i ú d e ataca t a m b é m a laringe, a d q u i r i n d o a v o z do leproso certa aspereza. " S u a garganta se torna r o u q u e n h a , e então é possível n ã o só sentir, ver e cheirar o leproso, m a s t a m b é m o u v i r sua v o z r o u q u e n h a . E se v o c ê p e r m a n e c e r c o m a p e s s o a p o r a l g u m t e m p o , p o d e r á até m e s m o i m a g i n a r u m gosto e s t r a n h o n a sua b o c a , p r o v a v e l m e n t e d e v i d o ao odor. Todos os sentidos de u m a p e s s o a sadia c a p t a m a p r e s e n ç a do leproso." 3 6 6 As r e f e r ê n c i a s do A n t i g o T e s t a m e n t o à lepra p o d e m ser assim sumariadas: Ê x o d o 4.6,7: A m ã o de M o i s é s , p o s t a em seu seio, t o r n o u se leprosa, c o m o ficou e v i d e n t e ao retirá-la. Q u a n d o a a ç ã o se repete, a lepra d e s a p a r e c e . Seria um sinal para os egípcios. L e v í t i c o 13: D e s c r i ç ã o do m é t o d o p e l o qual o sacerdote p o d e r i a detectar a lepra. O r d e n a n ç a para o i s o l a m e n t o do leproso (Lv 13.46; cf. Nm 5.1-4; 2 R s 15.5; e 2 C r 26.21). Levítico 14: O f e r t a s p r e c e i t u a d a s em c o n e x ã o c o m a purif i c a ç ã o d o leproso. m
L. S. Huizenga. llnckan\ Unclecaú, Grand Rapids. 1927. p. 149. Havendo lido o livro do dr. I luizenga, ouvido algumas de suas preleções e me beneficiado de suas respostas às minhas perguntas, reconheço minha dívida para com ele. tive contato pessoal um tanto semelhante com outro médico cristão lamoso, a saber. E. R. Kellersberger. Ambos esses grandes médicos missionários, durante suas carreiras terrenas, cumpriram sua tarefa de forma notável: "Pregai ... curai enfermos. purificai leprosos." Ver artigo de Kellersberger: "'l he Social Stigrna of Leprosy", reimpresso em forma de panfleto de The Annats ofthe New YorkAeademy of Sciences, 54 (1951), pp. 126-133. Acrescentar a esses artigos sobre a lepra em várias enciclopédias, inclusive I.S.B.E. e Britânica (edição de 1969); e S. 1. McMillen, op. Cit., pp. 11-14.
548
MATEUS
5.14b-16
N ú m e r o s 12.10: R e b e l i ã o d e M i r i ã p u n i d a c o m lepra. Ver t a m b é m 12.13-15. D e u t e r o n ô m i o 24.8,9: R e a f i r m a d o s o s m a n d a m e n t o s anteriores a c e r c a da lepra, c o m a r e c o r d a ç ã o do castigo de Miriã. 2 S a m u e l 3.29: M a l d i ç ã o de D a v i sobre a casa de J o a b e , incluindo a e s t i p u l a ç ã o " Q u e n u n c a falte a l g u é m c o m lepra". 2 Reis 5 ( e s p e c i a l m e n t e vv. 14 e 17): N a a m ã c u r a d o de s u a lepra; G e a z i c a s t i g a d o c o m ela. 2 R e i s 7: Os q u a t r o l e p r o s o s de S a m a r i a ; s u a s i t u a ç ã o estranha, sua r e s o l u ç ã o c o r a j o s a , s u a s u r p r e e n d e n t e d e s c o b e r t a e seu e x e m p l a r c u m p r i m e n t o d o dever. 2 C r ô n i c a s 2 6 . 1 9 - 2 3 (cf. 2 R s 15.5): U z i a s s e g u e o e x e m p l o de Miriã, e é c a s t i g a d o de m o d o s e m e l h a n t e . C o m o a l g u n s a v ê e m , a " l e p r a " m e n c i o n a d a no A n t i g o T e s t a m e n t o n ã o é e q u i v a l e n t e à q u e h o j e leva esse n o m e . O u tros d i s c o r d a m . O dr. H u i z e n g a , b a s e a n d o sua c o n c l u s ã o n u m estudo d e t a l h a d o de todo o material bíblico pertinente, b e m c o m o e m sua p r ó p r i a e x p e r i ê n c i a c o m leprosos, declara: " C r e i o q u e Moisés descreve u m a enfermidade específica - uma enfermidad e q u e c o r r e s p o n d e a o q u e h o j e c h a m a m o s d e lepra, a i n d a que os sinônimos não sejam os mesmos."367 A s r e f e r ê n c i a s d o N o v o T e s t a m e n t o são a s seguintes: A presente passagem, Mt 8.1 -4 (cf. Mc 1.40-45; Lc 5.12-16). M a t e u s 10.8: " P u r i f i q u e o s l e p r o s o s . " M a t e u s 11.5 (cf. Lc 7.22): " O s l e p r o s o s são p u r i f i c a d o s . " L u c a s 4 . 2 7 : " H a v i a m u i t o s leprosos e m Israel ... n e n h u m d e l e s foi p u r i f i c a d o , e x c e t o N a a m ã , o sírio." L u c a s 17.11-19: D o s d e z l e p r o s o s s a m a r i t a n o s q u e f o r a m p u r i f i c a d o s , a p e n a s u m v o l t o u p a r a dar graças. M a t e u s 2 6 . 6 - 1 3 (cf. Mc 14.3-9): J e s u s é u n g i d o na casa de S i m ã o , o (ex-) leproso. A lepra é c o n t a g i o s a ? As a u t o r i d a d e s c o n s u l t a d a s c o n c o r d a m em q u e a lepra não é muito contagiosa. M u i t a s m i s s i o n á r i o s t ê m t r a b a l h a d o entre l e p r o s o s p o r a n o s s e m j a m a i s serem ",7 op. cit., pp. 145, 146; ver seu argumento por inteiro, pp. 143-147. 549
5.11,12
MATEUS
i n f e c t a d o s c o m e s s a terrível d o e n ç a . Entretanto, há e x c e ç õ e s . O caráter c o n t a g i o s o da lepra é c o n f i r m a d o p o r a. o fato de que às v e z e s s u c e d e q u e a c r i a n c i n h a j a p o n e s a q u e é levada p r e s a às costas d a m ã e p o r u m a tipóia, d e tal m o d o que sua f r o n t e f i c a em c o n s t a n t e c o n t a t o c o m a n u c a da m ã e , contrai a d o e n ç a de sua m ã e infectada, m a n i f e s t a n d o - s e a primeira evidência da transm i s s ã o na f r o n t e da criancinha; e b. a b e m atestada e x p a n s ã o gradual do flagelo u m a v e z h a j a p e n e t r a d o na região. C o m o o dr. M c M i l l e n o vê, esse caráter i n f e c c i o s o da lepra revela a sabedoria da legislação e n c o n t r a d a em Levítico 13, s e g u n d o a qual o leproso d e v i a ser isolado da c o m u n i d a d e . 3 6 8 N ã o obstante, não é o caráter c o n t a g i o s o da lepra o que se e n f a t i z a nas Escrituras, e, sim, o fato de q u e ela t o r n a v a a pess o a atingida c e r i m o n i a l m e n t e " i m p u r a " e e x c l u í d a do contato social e religioso c o m seu p o v o . O leproso p o d e ser c u r a d o ? O fato de que n o s t e m p o s antigos ela era c o n s i d e r a d a virtualmente incurável é c o n f i r m a d o pelo seguinte incidente: o g o v e r n a d o r da Síria e n v i o u ao rei de Israel u m a carta, na qual dizia: " L o g o , em c h e g a n d o a ti esta carta saberás q u e te enviei N a a m ã , m e u servo, p a r a que o cures de s u a lepra". E o r e s u l t a d o ? O rei de Israel rasgou suas vestes e exclam o u : " A c a s o , s o u D e u s c o m poder de tirar a vida ou dá-la, para q u e este e n v i e a m i m um h o m e m para eu curá-lo de sua l e p r a " ? ( 2 R s 5.7). E m b o r a seja h o j e a d m i t i d o p o r especialistas n e s s a área que h á c a s o s e s p o r á d i c o s e m q u e p e s s o a s atingidas por essa terrível e n f e r m i d a d e r e c o b r a m a s a ú d e sem tratamento, e e m b o ra n o s t e m p o s m o d e r n o s as s u l f o n a m i d a s e outras d r o g a s a i n d a m a i s recentes t e n h a m p r o d u z i d o r e s u l t a d o s favoráveis, p e r m a n e c e o f a t o de q u e em t e m p o s a i n d a recentes a lepra era geralm e n t e c o n s i d e r a d a c o m o u m a d o e n ç a incurável. O s rabinos cons i d e r a v a m a cura de um l e p r o s o tão difícil c o m o ressuscitar um m o r t o . Todavia, D e u s p o d e purificar o leproso, c o m o c l a r a m e n te se c o m p r o v a à luz de Nm 12.13-15; 2 R s 5.14; Mt 8.2-4 (e paralelos); 11.5; Lc 7.22; e 17.11-19; m a s no m o m e n t o em q u e J e s u s se c o n f r o n t o u c o m o leproso m e n c i o n a d o em n o s s a passaM
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g e m , M t 8.2-4, a s curas registradas n o N o v o T e s t a m e n t o n ã o h a v i a m a i n d a ocorrido, e sabia-se q u e as curas do A n t i g o Testam e n t o h a v i a m sido d e fato m u i t o p o u c a s . Portanto, seja c o m o for. d o p r i s m a p u r a m e n t e h u m a n o , a s p e r s p e c t i v a s n ã o e r a m d e todo f a v o r á v e i s . N ã o a p e n a s isso, m a s u m l e p r o s o b e m q u e p o d e r i a retrairse diante da m e r a idéia de ele a p r o x i m a r - s e de a l g u é m para pedir socorro, visto q u e a lepra era c o n s i d e r a d a p e l a m a i o r i a c o m supersticioso horror, p r e c i s a m e n t e c o m o hoje. " H á u m f a t o q u e faz a lepra d i f e r e n t e de t o d a s as d e m a i s d o e n ç a s , ou seja, o est i g m a ligado a ela ... E s s a m a r c a de i n f â m i a ou v e r g o n h a ... separa suas v í t i m a s de t o d a s as o u t r a s p e s s o a s . D e s c o b r i ser isso u n i v e r s a l m e n t e v e r d a d e i r o e n q u a n t o v i a j a v a a o redor d o m u n d o tirando e s s e s d e s a f o r t u n a d o s d e seus e s c o n d e r i j o s . . . P o r toda parte, o e s t i g m a social da lepra é o m e s m o . " 3 6 9 A luz de Jó 4.7; 8.20; 11.6; 2 2 . 5 - 1 0 ; Lucas 13.1-5; e J o ã o 9.2 d e d u z i m o s q u e a e r r ô n e a n o ç ã o , p o r é m q u a s e universal (cf. At 28.4), s e g u n d o a qual u m a p e s s o a a m a r g a m e n t e a t i n g i d a só p o d e ser i n f a m e m e n t e perversa, s u p e r s t i ç ã o esta r e f u t a d a p o r Jesus, era p r e v a l e c e n t e t a m b é m entre o s j u d e u s . P o d e m o s b e m imaginar, pois, q u e se o leproso, m e n c i o n a d o aqui em M a t e u s 8.2-4, tivesse t e n t a d o a p r o x i m a r - s e d o j u d e u m e d i a n o , este, n ã o q u e r e n d o tornar-se c e r i m o n i a l m e n t e " i m u n d o " , ou ser visto perto de um i n d i v í d u o s o b r e q u e m se a b a t e r a a terrível m a l d i ç ã o do A l t í s s i m o , s e g u n d o sua crença, teria corrido à p r o c u r a de um r e f ú g i o , e n q u a n t o recolheria para si o m á x i m o possível d a s dobras da s u a r o u p a a f i m de não ser c o n t a m i n a d o . A m a i o r i a d o s leprosos, c o n s e q ü e n t e m e n t e , ficava em desespero total, p e n s a n d o jamais p o d e r purificar-se. M e s m o o s p o u c o s q u e o u s a v a m acalentar a l g u m a e s p e r a n ç a teriam de " p a r a r l o n g e " (Lc 17.12) enq u a n t o g r i t a v a m p o r socorro. P o r é m , " p o r m a r a v i l h o s o q u e seja", 3 7 0 esse leproso vai direto a Jesus, d o b r a s e u s joelhos d i a n t e dele e, a i n d a m a i s h u m i l 3711
Kellersberger. op. citp. 126. Ver nota de rodapé 133.
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d e m e n t e , caí s o b r e seu rosto (Lc 5.12), d e r r a m a n d o toda a sua a l m a nesse ato de r e v e r ê n c i a e adoração. 1 7 1 E n q u a n t o a s s i m procede, ele diz: " S e n h o r , se quiser, p o d e p u r i f i c a r - m e . " Ele e s t á c o n v i c t o do poder de Cristo p a r a curar até m e s m o um leproso, na v e r d a d e um h o m e m coberto de lepra (Lc 5.12), isto é, atingido pela lepra n u m estágio m u i t o a v a n ç a d o ! No tocante à vontade do S e n h o r p a r a e f e t u a r a cura, a e s s a vontade o leproso se s u b m e t e totalmente. A l é m do m a i s , J e s u s sabe o q u e é melhor. N a t u r a l m e n t e , ele f e r v o r o s a m e n t e espera q u e a q u e l e diante de q u e m está p r o s t r a d a o livrará r e a l m e n t e de tão terrível d o e n ç a . S u a declaração, n a f o r m a d e u m a c o n f i s s ã o d e fé, imp l i c a u m a petição urgente. De o n d e ele c o n s e g u i u e s s a c o n f i a n ç a no S a l v a d o r ? N ã o é b e m p r o v á v e l q u e tivesse ele o u v i d o a c e r c a d o s p r i m e i r o s m i l a gres realizados n e s s a região geral ( M t 4.23,24; Mc 1.21-32,39; Lc 4.31 - 4 1 ; e Jo 2.1 -11; 4 . 4 6 - 5 4 ) ? O S e n h o r aplicara tal c o n h e c i m e n t o e m seu coração. N ã o s a b e m o s s e o leproso j á e s t a v a c o n s c i e n t e , a i n d a q u e c o n f u s a m e n t e , d e q u e p o r m e i o das palavras de Cristo e d o s m i l a g r e s as p r o f e c i a s m e s s i â n i c a s e s t a v a m s e c u m p r i n d o . Seria suficiente, p a r a h o n r a r sua m e m ó r i a , declarar essa sua c o m o v e n t e c o n f i a n ç a no p o d e r de J e s u s para curar m e s m o a ele, c u j a c o n d i ç ã o era p r o v a v e l m e n t e c o n s i d e r a d a p o r t o d o s c o m o s e m q u a l q u e r e s p e r a n ç a , d e v e servir de e x e m p l o a todos. E s t e j a m o s certos d e q u e q u a n d o esse h o m e m c h a m o u J e s u s " S e n h o r " (ver sobre 7.21-23), ele q u i s dizer m u i t o m a i s que "senhor".
Prossegue: 3. Então ele [Jesus] estendeu sua mão, tocou-o, e disse: "Quero; fique limpo"; e imediatamente sua lepra foi p u r i f i c a d a . Reiteradamente, os E v a n g e l h o s f a l a m acerc a d o t o q u e c u r a d o r d a m ã o d e Cristo ( a 8.3, a d i c i o n a r 8.15; 9 . 1 8 , 2 5 , 2 9 ; 17.7; 2 0 . 3 4 ; Lc 7.14; 22.51). Às v e z e s o p r ó p r i o e n f e r m o t o c a v a e m J e s u s ( M t 9.20-22; 14.36). D e q u a l q u e r form a , o s e n f e r m o s e r a m c u r a d o s . S e g u n d o parece, e m c o n e x ã o c o m e s s e c o n t a t o f í s i c o curador, o p o d e r q u e e m a n a v a d o Salva171
Para HPOOKWRO (aqui npooíKÚvíi), ver sobre Mt 2.2,8,11.
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d o r era t r a n s m i t i d o à p e s s o a q u e dele n e c e s s i t a v a ( M c 5.30; Lc 8.46). Isso, c o n t u d o , n ã o era m a g i a ! O p o d e r c u r a d o r n ã o era o r i u n d o de s e u s d e d o s ou de s u a s roupas. Ele fluía d i r e t a m e n t e do J e s u s d i v i n o e h u m a n o , de sua o n i p o t e n t e v o n t a d e e de seu c o r a ç ã o i n f i n i t a m e n t e c o m p a s s i v o . H a v i a p o d e r c u r a d o r nesse t o q u e p o r q u e ele era, e é, ""tocado de s e n s i b i l i d a d e à vista de n o s s a s e n f e r m i d a d e s " ( H b 4.15). N ã o d e v e e s c a p a r a o leitor q u e s e g u n d o M a r c o s 1.41, J e s u s foi " m o v i d o d e c o m p a i x ã o " q u a n do e s t e n d e u s u a m ã o e t o c o u o leproso. A c a r ê n c i a e a fé do leproso e n c o n t r a r a m imediata r e s p o s t a na solicitude do Salvador em ajudar. E e s s a era u m a p r o n t i d ã o de tal n a t u r e z a que f a z i a c o m q u e Seu p o d e r e a m o r se e n t r e l a ç a s s e m . Às v e z e s se diz q u e entre as p a l a v r a s do leproso e as de J e s u s existe p e r f e i t a sintonia. Isso é correto no sentido em q u e ambas as declarações não se chocam, mas se acham em plena h a r m o n i a , r e v e l a n d o até m e s m o u m a i d e n t i d a d e p a r c i a l n a f r a s e o l o g i a . E n t r e t a n t o , a l g u é m t a m b é m p o d e r i a dizer q u e a s p a l a v r a s do S e n h o r s u p e r a m a m e r a " c o r r e s p o n d ê n c i a " . Na verd a d e , o " p o d e p u r i f i c a r - m e " do l e p r o s o t e m a resposta de Cristo, " r e a l m e n t e p o s s o ! " , implícita em seu ato de curar. M a s o "vc q u i s e r " do leproso é substituído pelo r á p i d o e e s p l ê n d i d o , " q u e ro!", do Senhor. Aqui o querer se une ao poder, e a s u p r e s s ã o do " s e " , u n i d a à a d i ç ã o do " f i q u e l i m p o " t r a n s f o r m a a c o n d i ç ã o de e n f e r m i d a d e r e p u g n a n t e na c o n d i ç ã o de s a ú d e sólida. E imedia-
tamente sua lepra foi purificada. A restauração foi imediata e plena. A f r o n t e , os o l h o s c o m as p e s t a n a s e s o b r a n c e l h a s , a pele, a m e m b r a n a m u c o s a do nariz e a garganta, os d e d o s das m ã o s e d o s pés, t o d a s as partes do c o r p o q u e h a v i a m sido i n f e c t a d a s e d a n i f i c a d a s p e l o s b a c i l o s da lepra ( m y e o b a c t e r i u m leprue) for a m n u m instante c o m p l e t a m e n t e restauradas! M e l h o r ainda: para esse h o m e m , abriu-se a m p l a m e n t e a p o r t a da restauração social, ritual e religiosa, s e g u n d o é d e m o n s t r a d o p e l o que se segue,
ou seja, v. 4. Disse-lhe Jesus: "Veja que não o diga a ninguém, mas vá, mostre-se ao sacerdote e, para lhes servir de testemunho, apresente a oferta que Moisés prescreveu". 553
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Qual era a razão para a restrição i m p o s t a a esse h o m e m ? O c o n t e x t o n ã o a p r e s e n t a a r a z ã o c o m clareza. A idéia por d e m a i s e s p e c u l a t i v a de W r e d e , " s e g r e d o m e s s i â n i c o " , c o n s i d e r a d a e r e f u t a d a a n t e r i o r m e n t e (ver pp. 91 -92), p o d e ser d e s c a r t a d a sem m a i o r c o n s i d e r a ç ã o . As seguintes razões sugeridas para se ord e n a r o silêncio do leproso curado m e r e c e m m e n ç ã o : a. O r d e n a - s e ao h o m e m q u e corra p a r a o t e m p l o de J e r u s a lém a f i m de q u e um e x a m e pelos sacerdotes, em c o n s o n â n c i a c o m a lei de M o i s é s (Lv 14, c o m o já se o b s e r v o u supra), seja i m e d i a t a m e n t e c o n d u z i d o e ele d e c l a r a d o c u r a d o de sua lepra e q u a l i f i c a d o a trazer as o f e r t a s requeridas. Q u a n d o s u b s e q ü e n t e m e n t e os sacerdotes descobrissem q u e fora Jesus que curara esse h o m e m , a declaração já prestada da recuperação de sua saúde serviria d e t e s t e m u n h o d o r e s p e i t o q u e C r i s t o t i n h a p e l a lei m o s a i c a (cf. Mt 5 . 1 7 ) e de seu a m o r e p o d e r e m p r e g a d o s para o b e n e f í c i o d o s necessitados. Por m e i o d e s s e t e s t e m u n h o o s sac e r d o t e s que, n ã o obstante, o r e j e i t a v a m estariam c o n d e n a n d o a si próprios, pois tal rejeição estaria em conflito c o m a e v i d ê n c i a b a s e a d a em suas próprias descobertas. Isso p r e s s u p õ e , naturalm e n t e . que a s s i m que o leproso foi c u r a d o p o r Jesus, deveria ele imediatamente correr a J e r u s a l é m . N ã o deveria se delongar, pois no caso de as notícias de q u e f o r a Jesus q u e m lhe restaurara a s a ú d e c h e g a s s e m aos s a c e r d o t e s a n t e s que o e x - l e p r o s o o fizesse, r e s u l t a n d o em que a h i e r a r q u i a de J e r u s a l é m , o d i a n d o a Jesus, p r o v a v e l m e n t e se recusaria a declarar p u r i f i c a d o o r e q u e rente. C o n s e q ü e n t e m e n t e , o leproso n ã o deveria gastar t e m p o em notificar primeiro os v i z i n h o s e outras pessoas acerca do milagre. 3 7 2 b. N ã o era para J e s u s tornar-se c o n h e c i d o p r i n c i p a l m e n t e c o m o u m o p e r a d o r d e milagres, " u m m e r o t a u m a t u r g o " , m a s , a c i m a de tudo, c o m o o S a l v a d o r d o s pecadores. 3 7 3 c. Demasiada publicidade com referência aos poderes m i r a c u l o s o s de Cristo teria a v i v a d o de tal m o d o as c h a m a s do i7: 573
Ver também Lenski nessa mesma linha, op. cit.. pp 3 11.312. Cf. N. B. Stonehouse. The Wilness of Matthew and Mark lo Christ, Filadélfia. 1944, p. 62.
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557 e n t u s i a s m o c o m o possível Libertador d o j u g o r o m a n o , q u e a o p o s i ç ã o e a i n v e j a suscitadas p o r e x a g e r a d a a t e n ç ã o p o d e r i a m ter l e v a d o s e u ministério p ú b l i c o a um f i m prematuro. 3 7 4 d. N ã o se c o a d u n a r i a c o m o caráter de Jesus, durante os dias de sua humilhação, e s t i m u l a r u m a a c l a m a ç ã o exagerada. 3 7 " A r a z ã o por q u e é tão difícil escolher entre e s s a s possibilid a d e s n ã o é b e m p o r serem ruins ou irracionais, m a s ao contrário. A teoria a. parece ser u m a tentativa e n g e n h o s a para h o n r a r o c o n t e x t o . A teoria h. está em h a r m o n i a c o m o fato de q u e a m i ú d e J e s u s m e s m o r e p r e e n d i a a b u s c a a n s i o s a de sinais e m i l a g r e s ( M t l ó . l s s . ; Lc 4.23 ss.; Jo 4.48, etc.). A teoria c. conc o r d a c o m o fato de q u e J e s u s r e a l m e n t e era p l e n a m e n t e c ô n s cio de q u e f o r a d e s i g n a d o p a r a levar a v a n t e a o b r a q u e seu Pai lhe h a v i a e n t r e g u e para realizar, s e n d o c a d a detalhe d e s s a tarefa d e f i n i d a m e n t e p o n d e r a d o n o decreto eterno, d e m o d o q u e para c a d a ato havia um m o m e n t o estipulado (Jo 2.4; 7.6,8; 7.30; 8.20; 12.23; 13.1; e 17.1). E a teoria d. p o d e apelar, e de fato apela, para M a t e u s 12.15-21. - É p o s s í v e l que q u a l q u e r uma dessas c o n s i d e r a ç õ e s (seja a ou h ou c ou d) t e n h a sido a q u e l a q u e J e s u s tinha em m e n t e q u a n d o disse: ' ' C u i d a d o , n ã o o d i g a a ning u é m " , etc. Não seria t a m b é m o caso de h a v e r u m a c o m b i n a ç ã o de d u a s ou m a i s razões, e talvez até m e s m o outras além dessas, que o tenha motivado a expressar-se assim? A d e s o b e d i ê n c i a do h o m e m a esse m a n d a m e n t o , ainda que c o m p r e e n s í v e l , n ã o p o d e ser j u s t i f i c a d a . S e u s resultados para Cristo são notados. M a s esse é um material próprio de M a r c o s (1.45; ver, c o n t u d o , t a m b é m Lc 5.15), e n ã o requer e s t u d o na presente c o n e x ã o .
A Cura do Servo de um Centurião O registro d e s s e milagre se e n c o n t r a em M a t e u s 8.5-13 e L u c a s 7.1-10. N ã o se d e v e c o n f u n d i - l o c o m o e v e n t o relatado 174 375
Stonehouse. mesina página. Cf. H. N. Ridderbos. op. cil., p. 162. O mesmo pensamento é expresso mais de uma vez em seu Zeljopenbaring en Zelfve.rberging, Kampen. 1946; ver especialmente p. 76.
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em J o ã o 4 . 4 6 - 5 4 . Aquela história tem a ver c o m o filho de um oficial do rei; esta, c o m o servo de um centurião. J o ã o 4 . 4 6 - 5 4 situa J e s u s e m C a n á ; e m M a t e u s 8.5ss ele está e n t r a n d o e m C a f a r n a u m . O suplicante m e n c i o n a d o no primeiro relato não c o n s e g u e c o n c e b e r i m e d i a t a m e n t e o p o d e r de J e s u s de curar a distância; o próprio centurião t o m o u a iniciativa, d e c l a r a n d o q u e J e s u s p o s s u í a tal poder. Há t a m b é m várias e i m p o r t a n t e s d i f e r e n ç a s entre o milagre registrado aqui em M a t e u s 8.5-13 e aquele c o n s i d e r a d o no p a r á g r a f o i m e d i a t a m e n t e precedente. O leproso tinha c o m o ir a Jesus, m a s n ã o o paralítico. Seu patrão intercede por ele. Hm a m b o s os casos, o principal interesse se centraliza em Jesus, no q u e e/f diz e faz. Q u a n t o ao centro de interesse, na história anterior, o s e g u n d o lugar é o c u p a d o p e l o p r ó p r i o e n f e r m o ; nesta, o patrão do e n f e r m o . O primeiro e s t a v a v i v e n d o s o b o r e g i m e d o s j u d e u s (ver Mt 8.4). O último, o centurião, era gentio p o r raça, um oficial no exército de o c u p a ç ã o r o m a n a . O primeiro foi cur a d o p e l a p a l a v r a de Cristo m a i s o t o q u e de sua m ã o ; o servo do centurião, u n i c a m e n t e pela p a l a v r a d e poder. N ã o p o d e m o s dizer que tudo o q u e se reporta n o s E v a n g e l h o s relativo ao leproso seja f a v o r á v e l (ver Mc 1.45); o centurião, ao contrário, n a d a recebe senão e x u b e r a n t e elogio. F i n a l m e n t e , os versículos 2 - 4 t e r m i n a m c o m a o r d e m dirigida ao leproso curado; os versículos 5-13, c o m a predição relativa à salvação de muitos gentios versus a r e j e i ç ã o de u m a hoste de j u d e u s , e c o m a m e n ç ã o da palavra de Cristo e o ato de cura. O p r e s e n t e p a r á g r a f o c o m e ç a a s s i m : 5, 6. Q u a n d o ele e n -
trou em Cafarnaum, aproximou-se dele um centurião rogando que o ajudasse, dizendo: "Senhor, meu jovem criado jaz em casa, acamado com paralisia, sofrendo horrivelmente." O c e n t u r i ã o era um oficial a serviço de H e r o d e s A n t i p a s , a q u e m já c o n h e c e m o s (ver pp. 2 6 8 , 3 3 5 ) . Este oficial ouvira acerca do q u e J e s u s h a v i a feito em f a v o r de outros (Lc 7.3). E p o r isso a g o r a ele suplica q u e a m e s m a m i s e r i c ó r d i a seja d e m o n s t r a d a em f a v o r de seu próprio e s c r a v o (Lc 7.2), a q u e m a f e t u o s a m e n 556
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8.5,6
te chama de "jovem criado"ou "meu rapaz".376 A condição deste era deveras deplorável. Estando acamado com paralisia, ele "sofria horrivelmente", "gravemente torturado". Seria esse um caso de paralisia progressiva com espasmos musculares, que afetasse perigosamente seu sistema respiratório, levando-o às próprias portas da morte, como Lucas sugere? O coração do centurião se pôs a rogar, porquanto o rapaz "lhe era querido". As palavras do oficial equivalem mais a uma declaração do que a uma solicitação. Era uma declaração que descrevia a condição do criado, e confiadamente deixava a disposição nas mãos de Jesus. Não obstante, implícito estava uma solicitação por socorro: "Aproximou-se dele rogando que o ajudasse." 377 De acordo com Mateus, foi o próprio centurião quem informou Jesus sobre sua necessidade. Lucas, em contrapartida, diz que o oficial enviou alguns anciãos dentre os judeus com essa solicitação. Isso não envolve nenhuma contradição, pois foi por meio desses anciãos que o rogo do centurião chegou a Jesus. Quando Mateus 27.26 notifica que Pilatos açoitou a Jesus, não significa que o governador houvesse aplicado os açoites com sua própria mão. Mesmo hoje às vezes fazemos uso de semelhante expressão abreviada. Ver C.N.T. sobre o Evangelho Segundo João, Vol. I, p. 206. Entretanto, de acordo com o relato de Lucas (7.4,5), os anciãos eram mais do que meros transmissores de uma mensagem. Visto que o centurião, por meio deles, se pôs a interceder por seu "rapaz", assim os anciãos, por sua vez, se puseram a interceder pelo centurião. Disseram eles: "Ele é digno de rece376
177
L verdade que "rapaz" (grego TTCUÇ) para "escravo" ou "servo" (ôoíUoç) não era por si só uma etimologia excepcional. Contudo, o presente texto - note a manifesta preocupação do centurião aqui em Mateus, e "lhe era querido", em Lucas revela que o apelido é aqui usado cm seu sentido mais favorável, como um termo de carinho. Para o significado de irapaKaXéu e uap(ÍKXr|xoç. ver C.N.T. sobre o Lvangeiho Segundo João. Vol. II. pp. 276,277. 5S7
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ber do senhor esse favor, pois ele ama nossa nação e construiu a sinagoga para nós." A resposta do Senhor foi tudo o que alguém poderia ter desejado, e muito acima do que o centurião teria ousado esperar. Não foi: "Por que esperou tanto"? Nem: "Visto que representa o opressor, nada posso fazer por você." Nem ainda: "Verei o que posso fazer." O que se encontra no versículo seguinte é uma afirmação comovente, inequívoca, concisa e positiva. 7. E ele lhe disse: "Eu irei e o curarei." Segundo o original, o pronome "Eu" é muito enfático, como a dizer: "Eu mesmo", "Eu, sem a menor dúvida". E prossegue: 8, 9. Mas o centurião respondeu: "Senhor, não sou digno que entre debaixo de meu telhado, mas simplesmente diga uma palavra e meu rapaz será curado. Porque eu mesmo sou um homem sujeito a autoridade, com soldados às minhas ordens; e eu digo a um: 'Vá', e ele vai; e a outro: 'Venha', e ele vem; e a meu escravo: 'Faça isto', e ele o faz. "Ele é digno", disseram os anciãos. O centurião, porém, ouvindo a resposta de Cristo, se sente dominado pelo senso de indignidade. Além do mais, quem é ele em comparação com o Exaltado, essa pessoa revestida de autoridade majestática, poder que a tudo abarca e amor condescendente, amor este que se estende sobre todo abismo e sobrepõe a todo obstáculo de raça, nacionalidade, classe e cultura? Quem é ele para constranger tão bondoso Senhor a realizar um ato que o poria em conflito com o venerável costume de seu próprio povo, segundo o qual um judeu não entra na casa de um gentio a fim de não contaminar-se (Jo 18.28; At 10.28; 11.2,3)? Que Jesus, pois, não entre na casa nem mesmo chegue perto demais, senão que simplesmente fale uma palavra de cura. Eis tudo quanto se faz necessário para se efetuar uma cura completa. O centurião pondera: Se eu, que não passo de um oficial militar com autoridade e poder muito limitados, um oficial que deve obediência a meus superiores, mesmo minhas ordens são imediatamente obedecidas, tanto por soldados quanto por es5SX
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9.20,21
cravos, então ele, certamente, esse Grande Ser, que exerce autoridade independente e sustenta o universo em sua todopoderosa mão, pode ordenar, e tudo quanto ele quiser será feito. Ao dizer: "Vá", a doença irá; e ao dizer: "Vem", a saúde se manifestará. Aqui, também, o fato de que, segundo Lucas, essa mensagem não foi transmitida a Jesus diretamente, senão que os amigos do centurião chegaram ao Senhor para lha transmitir, pode. segundo Agostinho e outros como ele, ser explicada como no caso anterior; ver acima, sobre os versículos 5 e 6; comparar Mateus 8.5 com Lucas 7.3, e a seguir Mateus 8.8 com Lucas 7.6. Justificamo-nos, provavelmente, em presumir que o centurião, havendo saído, e havendo visto Jesus aproximar-se, apressadamente enviou-lhe seus amigos. Em qualquer caso, a mensagem consistia na resposta do próprio centurião a Jesus, que é o que tanto Mateus como Lucas estão dizendo.378 10. Ora, quando ouviu isso, encheu-se de pasino e disse aos que o acompanhavam: "Solenemente lhes declaro, em ninguém em Israel vi tamanha fé. Jesus ficou atônito, e por uma razão contrária àquela mencionada em Marcos 6.6. As palavras "Solenemente lhes declaro" (ver sobre 5.18) forma uma introdução adequada à expressão desse assombro. As grandes multidões que o acompanhavam (ver v. 1), que incluíam indubitavelmente os amigos recém-chegados do centurião (Lc 7.6), ele revelou que a fé desse homem de origem gentílica sobrepunha em excelência a tudo o que havia encontrado mesmo entre os judeus, a ciespeito dos privilégios especiais destes. Com certeza, também em Israel Jesus havia encontrado fé (Mt 4.18-22; 5.1-16; 7.24,25), mas não uma combinação, numa só pessoa, de um amor tão afetuoso, de uma consideração tão solícita, de uma visão tão penetrante, de uma humildade tão extraordinária e de uma confiança tão ilimitada. Em muitos casos, o que Jesus encontrou não foi precisamente ""pequena fé" (6.30)? A um oficial Não só Mateus, mas também Lucas apresenta esse ponto de vista. Ver Lucas 7.6 no original; observe o particípio presente singular: Xíyui' ("ele dizendo").
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8.11,12
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da corte, cuja história é narrada em João 4.46-54, levou tanto tempo para compreender o fato de que Jesus era capaz de curar mesmo a distância. O centurião de Mateus 8.5-13 compreendeu esse fato imediatamente! Como Jesus vê, essa fé do centurião permite um vislumbre de eventos que haveriam de ocorrer no mundo gentílico, por contraste com o futuro de Israel. Diz ele: 11, 12. "Digo-lhes que muitos virão do Oriente e do Ocidente e se reclinarão na mesa com Abraão, Isaque e Jacó, no reino do céu, mas os filhos do reino serão lançados nas mais distantes trevas. Como foi enfatizado anteriormente (ver pp. 136,137,147,271), o Evangelho de Mateus contém um amplo propósito missionário. A evangelização de todas as nações é um de seus objetivos extraordinários. A passagem ora em estudo se ajusta a esse esquema. O fato de que muitos viriam do Oriente e do Ocidente, isto é, de todas as partes, desfrutando das bênçãos da salvação com os patriarcas — noutras palavras, que a igreja se estenderia entre os gentios, foi predito pelos profetas. Repetidas vezes trataram desse tema (Is 2.2,3; 11.10; 45.6; 49.6,12; 54.1 -3; 59.19; Jr 3.18; 31.34; Os 1.9.10; 2.23; Am 9.1 lss; Mq 4.1,2; e Ml 1.11). As bênçãos da salvação das quais todos os salvos desfrutarão são aqui descritas sob o simbolismo de reclinar-se todos (segundo o costume prevalecente) em divãs ao redor de uma mesa lotada de comida, desfrutando da doce comunhão uns com os outros e com o anfitrião, numa espaçosa sala de banquete, inundada de luz. Ver também SI 23.5; Pv 9.1-5; Is 25.6; Mt 22.lss; 26.29; Mc 14.25; Lc 14.15; Ap 3.20; 19.9,17. Não surpreende que aqui, como amiúde se dá nas Escrituras, Abraão, Isaque e Jacó sejam mencionados juntos, pois foi a eles que as promessas foram feitas. Cf. Gn 28.13; 32.9; 48.16; 50.24; Êx 3.16; 6.3; 32.13; Dt 1.8; 9.5,27; 29.13; 30.20; lCr 29.18; Mt 22.32; Mc 12.26; At 3.13; 7.32. Esse compartilhar dos gentios das bênçãos dos judeus começou a suceder ainda durante a antiga dispensação (1 Rs 8.41 43; 10.9; Jr 38.7-12; 39.16-18), tem se dado numa escala muito 560
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9.20,21
maior ao longo de toda a nova dispensação e se tornará evidente especialmente quando a incontável multidão reunida de todas as nações se colocar de pé diante do trono (Ap 7.9). Por outro lado, os "filhos do reino", isto é, os judeus, assim denominados em razão dos inúmeros privilégios do reino que haviam desfrutado (SI 147.20; Is 63.8,9; Am 3.2; Rm 9.4; Ef 2.12), serão lançados nas mais distantes trevas, isto é, simbolicamente falando, para longe da sala do banquete inundada de luz: ver Lucas 12.47,48. Oportunidade + capacidade = responsabilidade. A grande escala de rejeição a Cristo, por parte dos judeus, é evidente à luz das Escrituras (Mt 27.25; Jo 1.11; lTs 2.14-16; Ap 2.9). Não significa que Deus rompeu com os judeus. Essa mesma predição (Mt 8.11,12) não se destinava também a ganhá-los? O Senhor tem entre eles seu remanescente eleito, assim como o tem entre outras nações e povos (Rm 11.15). A salvação é para todos aqueles que aceitarem o Senhor Jesus Cristo por meio da fé pessoal e viva. Nada tem que ver com nacionalidade ou raça. Em harmonia com Mateus 8.11,12 estão as seguintes passagens: Jo 3.16; Rm 10.12,13; ICo 7.19; G1 3.9,29; Ef 2.14,18; Cl 3.11; IPe 2.9. Abraão é o pai de "todos os crentes". A origem nacional não faz diferença (Rm 4.11,12).379 O castigo para os que rejeitam o Rei, apesar de terem sido altamente privilegiados, que tinha um direito especial sobre eles, recebe maior ênfase com as palavras: Ali haverá pranto e ranger de dentes. Quanto a esse pranto: não se trata aqui de um derramamento de lágrimas devido a uma genuína tristeza pelos pecados que alguém haja cometido (Mt 26.75; Mc 14.72; Lc 7.38; cf. 2Cr 34.27), ou pelas transgressões por meio das quais outros hajam desonrado a Deus (SI 119.136; 2Co 2.4; Fp 3.18). Nem ocorre por causa da iminente separação de entes queridos (At 20.37,38), nem por ser objeto de tratamento injusto por parte de outras pessoas (1 Sm 1.7,8). Não é o resultado do orgulho ferido por não haver-se atingido algum objetivo proposto (1 Rs 21.5-7). O presente pranto não é produzido por calamida!7
'' Isso é explicado mais detalhadamente em meu livro Israel and The Bible.
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9.23,24
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de temporal (Gn 27.38; Lm 1.16). nem por perda (Dt 34.8; 2Sm 1.17ss; Mt 2.18), nem por profundo anseio ou compaixão (Gn 21.16,17; 43.30). No que respeita ao povo de Deus, um dia virá quando toda lágrima será enxugada (Is 65.18; Ap 7.17; 18.15,19). As lágrimas das quais Jesus fala aqui em Mateus 8.12 são as de uma desdita inconsolável e interminável, de infelicidade total e eterna. O ranger de dentes que acompanha (cf. 13.42,50; 22.13; 24.51; 25.30; ver especialmente o texto muito semelhante de Lc 13.28 que, contudo, ocorre num contexto bem distinto) denota dor muito forte e ira frenética. Esse ranger de dentes, também, nunca terá fim nem cessará (Dn 12.2; Mt 3.12; 18.8; 25.46; Mc 9.43,48; Lc 3.17; Jd 6,7; e Ap 14.9-11).1X0 As palavras dos versículos 10-12 se destinaram não só ao centurião, mas a todos - o centurião, seus amigos, toda a multidão que acompanhava -, a fim de que todos pudessem fixar sua atenção numa questão muito mais importante do que a cura física, a saber, em ser salvo e em viver para a glória de Deus. O que ora se segue se destina especificamente ao centurião: 13. E disse Jesus ao centurião: "Vá para casa; como você creu, que assim se faça com você." O oficial havia dito que não carecia que Jesus entrasse em sua casa. Conforme ele creu, assim se fez, ou seja, Jesus não entrou em sua casa. Ao próprio centurião que, presumamos, do lado de fora de sua casa vira Jesus aproximar-se, é dito que reentrasse, e que seus amigos também voltassem. E naquele exato momento seu rapaz foi curado. Literalmente: "Desde aquela hora", mas, como se faz plenamente evidente à luz de Lucas 7.6,10, os amigos não levaram uma hora para chegar à casa que ficava muito perto, e ao chegarem encontraram o querido criado já com a saúde recobrada! Esse contexto justifica a tradução "naquele exato momento". A Cura da Sogra de Pedro e de Muitas Outras Pessoas Não só o centurião, mas também Pedro estava agora morando em Cafarnaum (ver sobre 4.18-20). O milagre que se re31,11
Para mais matéria sobre o tema do estado final a. dos ímpios e b. dos justos, ver meu livro A Fida Futura Segundo a Bíblia. Editora Cultura Cristã. São Paulo. SP.
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MATEUS
8.14
alizou em seu lar ocorreu num sábado, após o culto na sinagoga (cf. Mc 1.21,29). Dá-se a impressão de que o que está registrado aqui em Mateus 8.14-17, Marcos 1.29-34 e Lucas 4.38-41 (a cura da sogra de Pedro, etc.) e o que se relaciona com o parágrafo imediatamente precedente, ou seja, em Mateus 8.5 -13 e Lucas 7.1-10 (a cura do servo do centurião), ocorreram não muito separados um do outro quanto ao tempo, mas ver também p. 546. Mateus escreve assim: 14. E ao entrar na casa de Pedro, Jesus viu a sogra deste acamada com febre. Pedro era um homem casado. Num período posterior, sua esposa o acompanhou em sua viagem evangelística (ICo 9.5). Durante o ministério terreno de Cristo, a mãe da esposa de Pedro morava com sua li lha e genro. O irmão de Pedro, André, também morava nesse mesmo lar, segundo a informação de Marcos. Esse mesmo evangelista também nos informa que Tiago e João estavam com Jesus quando este entrou nesse lar. Teriam os três sido convidados para jantar? 381 Isso é possível, ainda que não expresso no texto. Além disso, não seria também que os três houvessem vindo visitar a enferma (Lc 4.38) e/ou fazer uma costumeira visita social a amigos com quem estivessem estreitamente associados? Mateus 8.15b ("ela passou a servi-lo") não exclui essas possibilidades, pois a hospitalidade praticada nessa região, e a grande bênção da cura a ser ministrada nesse lar, certamente explicariam uma atenção tão cordial, mesmo à parte de algum convite específico para o jantar. Qualquer que tenha sido o caso, Jesus soube que a sogra de Pedro estava acamada com febre. Ainda que Pedro fosse um discípulo, e possamos logicamente pressupor que todos os outros moradores nesse lar eram também dentre os amigos do Senhor (sendo também André um dos Doze), a enfermidade tinha entrado ali. Sim, na providência de Deus os crentes também ficam doentes (Eliseu, 2Rs 13.14; Ezequias, 2Rs 20.1; Dorcas, At 9.36,37; Paulo, G1 4.13; Epafrodito, Fp 2.25-27; Timóteo, lTm 5.23; Trófimo, 2Tm4.20). Até morrem! A passagem: "Por •Wl Opinião de Lenski, op. cit., p. 324.
Ç/C-2
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suas chagas somos curados" não significa que ficaram isentos das enfermidades da carne. As vezes sucede que Deus se agrada em curá-los, bênção esta que freqüentemente vem em resposta ã oração (Tg 5.14,15). Mas mesmo que a vontade de Deus seja outra, a eles pertence o conforto de passagens tais como Salmo 23; 27; 42; João 14.1-3; Romanos 8.35-39; Filipenses 4.4-7; 2 Timóteo 4.6-8; Hebreus 4.16; 12.6, para mencionar apenas umas poucas entre muitas referências. Em vista dos inúmeros sacrifícios e atos de renúncia implícitos no serviço cristão, como Pedro mesmo o afirma (Mt 19.27), deve ter sido um real conforto para a esposa de Pedro o fato de sua mãe viver com ela. Mas agora a mãe está doente, na verdade muilo doente. Lucas, o médico, nos informa que ela estava "sofrendo um grave acesso de febre". Jesus a viu assim acamada, pois seu socorro fora conclamado (Mc 1.30; Lc 4.38). E prossegue: 15. Então tocou-lhe com a mão, e a febre a deixou, e levantou-se e passou a cuidar dele. Um mero toque de mão era tudo de que se necessitava; porém, que poder e que compaixão haviam naquele toque! (ver sobre 8.3.) Portanto, tão pronta e completamente foi a recuperação de sua saúde, que ela não só levantou-se, mas também passou a cuidar do médico. Que bênção e que alegria, não só para ela, mas para todos os envolvidos! Passado o sábado, e havendo se espalhado a notícia da cura, tanto na sinagoga (Mc 1.21 -28) quanto no lar, o povo acorreu de todas as partes para ver Jesus: 16. E ao anoitecer, trouxeramlhe muitos que eram endemoninhados, e com uma palavra ele expulsava os espíritos, e curava a todos os que estavam enfermos. Isso nos lembra 4.23,24. Os endemoninhados ficaram limpos, sendo que os espíritos malignos, que se achavam no controle deles, foram expulsos pela poderosa palavra de Cristo. Não era esse um sinal de que o reino de Deus estava reclamando seus direitos de uma forma muito especial, que o poder de Satanás, agora, estava sendo restringido como nunca antes, ou seja, que "o homem forte" estava sendo amarrado? Ver
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Mateus 12.29; Lucas 10.18; Ap 20.2,3- Observar também: todos os enfermos. Não importava que espécie de enfermidade nem quão grave ou, humanamente falando, quão ''incurável" ou "'terminar" — todos eram curados! Nessa obra de expulsão de demônios e de cura das enfermidades, Mateus, por divina inspiração, vê o cumprimento de Isaías 53.4, o que ele cita, não de acordo com a Septuaginta ("Ele carrega nossos pecados", etc.), senão que, mais fidedignamente, segundo o sentido do original hebraico: 17. para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías: "Ele tomou sobre si nossas enfermidades, E carregou nossas doenças." Isaías havia sido elevado até o próprio cume da montanha da visão profética e pronunciou coisas que transcendiam seu próprio entendimento. E como se ele chegasse ao próprio Calvário e descrevesse o sofrimento vicário de Cristo como se lá houvesse ocorrido. Era sofrimento voluntário. Sem esse caráter voluntário, seu sofrimento não teria nenhum valor expiatório. Daí Isaías dizer: "Certamente, nossas doenças ele levou; e nossas dores [ou: pesares] ele carregou." Aparentemente, pode parecer como se Isaías e Mateus estivessem falando de dois assuntos distintos, pois o evangelista do Novo Testamento tem estado a falar justamente de Cristo como aquele que libertara o povo de suas doenças e pesares, ao passo que, por outro lado, o profeta real do Antigo Testamento descreve o Servo Sofredor como aquele que toma sobre si esses fardos. Entretanto, na verdade não há diferença alguma, visto ser exatamente por meio do segundo que o primeiro se cumpre. Contudo, é possível que surja a pergunta: "Em que sentido é verdade que Jesus tomou sobre si as enfermidades e as doenças, e assim as tirou dos ombros daqueles a quem amparava"? Certamente que não no sentido em que, quando, por exemplo, curava uma pessoa enferma ele mesmo era afetado pela mesma doença. A verdadeira resposta só pode ser obtida pelo exame daquilo que as próprias Escrituras nos dizem sobre o assunto.
8.17
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Duas coisas se salientam: a. Ele fez isso pela sua profunda solidariedade e compaixão, entrando assim, plena e pessoalmente, nas dores daqueles a quem veio resgatar. Esse fato é mencionado reiteradas vezes. Jesus curava porque ele se apiedava. Ver as seguintes passagens: Mateus 9.36; 14.14; 20.34; Marcos 1.41; 5.19; cf. 6.34; Lucas 7.13. Tal nota de compaixão pode ser vista até em suas parábolas (Mt 18.27; Lc 10.33; 15.20-24,31,32). Pelo menos, tão importante é b. O que ele tez por meio de seu sofrimento vicário pelo pecado, o qual — e isso ele também sentia de forma muito profunda — o pecado era a raiz de todo o mal e desonrava seu Pai. Por isso, sempre que via doença ou angústia, ele experimentava o Calvário, seu próprio Calvário, sua própria amargura, o sofrimento vicário ao longo de sua vida na terra, mas especialmente na cruz. Eis por que para ele não era fácil curar (Mc 2.9; Mt 9.5). Isso também explica por que no túmulo de Lázaro ele se comovera e se agitara tão profundamente em seu espírito. Foi nesse duplo sentido que nosso Senhor tomou sobre si nossas enfermidades e carregou nossas doenças. Nossas aflições físicas nunca devem separar-se daquilo sem o qual não poderiam jamais existir, ou seja, nossos pecados. Note quão estreitamente o contexto de Isaías 53.4,5 conecta essas duas coisas; pois o versículo 4 — "Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades..." — é imediatamente seguido por: "Ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades". Implicações do Discipulado Nessa altura há uma interrupção na série de milagres que Mateus está registrando. Contudo, dificilmente se compara ao breve e belo interlúdio entre dois atos dramáticos num drama, uma espécie de agradável pausa para aliviar a tensão. Ao contrário, o tema de sofrimento e renúncia, claramente implícito no versículo 17, como já ficou demonstrado, está sublinhado aqui nos versículos 18-22. Embora seja o próprio Jesus o único que sofre vicariamenle, seus discípulos também devem sofrer, e isso pela mesma razão que se identificam com ele em sua causa 566
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(Jo 15.20). Sua vereda não é bem um mar de rosas, e isso deve fíear bem claro. É evidente, pois, que há uma conexão material bem estreita entre o pequeno parágrafo a ser estudado e a passagem imediatamente precedente. Há também conexão entre os versículos 18-22, de um lado, e o versículo 23, do outro, um elo cronológico, pois uma comparação entre o versículo 18 e o versículo 23 revela que os eventos com referência ao escriba (v. 19) e ao discípulo de Jesus (v. 21) imediatamente precede a história da tempestade violenta (vv. 24ss.). 18. Ora, vendo Jesus uma multidão ao seu redor, deu ordens de partir para o lado contrário. Uma vez mais, uma grande multidão cerca Jesus. E entardecer, ainda que, como se faz evidente à luz do texto de Marcos 4.35, não o entardecer mencionado em Mateus 8.16. Cronologicamente, Mateus 8.18-22 está vinculado ao contexto seguinte, e não ao imediatamente precedente. Jesus era freqüentemente cercado pelas multidões. As vezes também, depois de certo tempo, ele despedia essas multidões. Por que agia assim? Sendo não só perfeitamente divino, mas também perfeitamente humano, ele necessitava de tempo para orar, para descansar e para dormir. Assim faziam seus discípulos (8.24; cf. Mc 6.31). Além disso, o entusiasmo das multidões não devia elevar-se a um nível demasiadamente alto com tanta afoiteza (ver também sobre 8.4). Já se havia dado ordem aos discípulos para que passassem ao lado oposto (Mc 4.35). Não obstante, momentos antes de partirem, dois homens382 se aproximaram de Jesus. Desejavam juntar-se ao círculo íntimo de seus discípulos, bem como acompanhar o Senhor em todas as suas jornadas. No tocante ao primeiro desses dois homens, lemos: 19. E um certo escriba aproximou-se e disse: "Mestre, o seguirei para onde quer que vá." Realmente uma notável declaração, especialmente vinda de um escriba, membro de um grupo geralmente hostil a Jesus (5.20; 6.2,5,16; 15.1 segs.; cap. 23). Além do mais, os próprios Na verdade três (Lc 9.57-62). mas o incidente em conexão com o terceiro é omitido por Mateus.
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9.23,24
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escribas eram mestres; esse mestre, contudo, reconhece Jesus como seu Mestre, e se dirige a ele nesses termos. Finalmente, de sua sinceridade não se pode ter dúvida. No momento específico em que fez sua promessa realmente tinha a intenção de cumpri-la: ele queria ser um incansável seguidor de Jesus. Há algo muito atraente nestas palavras: "Eu o seguirei para onde quer que vá." Quem é capaz de lê-las sem recordar imediatamente da gloriosa resolução de Rute: "Aonde quer que fores, irei eu..." (Rt 1.16)? Não obstante, como a resposta de Cristo claramente o indica, as intenções desse homem não eram totalmente nobres. Ele viu multidões, milagres, entusiasmo, etc. Pareceu-lhe tão agradável viver intimamente associado àquele que se punha no centro de toda essa atividade. E assim, ele queria ser discípulo de Cristo, mas não conseguia entender as implicações do discipulado, ou seja, renúncia, sacrifício, trabalho, sofrimento! 20. Disse-lhe Jesus: "As raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do homem não tem onde pousar sua cabeça. As raposas eram numerosas nas regiões por onde Cristo viajava (Jz 15.4; Ne 4.3; SI 63.10; Ct 2.15; Lm 5.18; Ez 13.4). Seus covis, tocas ou abrigos eram às vezes feitos no chão. Daí faziam suas incursões noturnas, não só para caçar rãs, coelhos, ratos, aves domésticas e silvestres, mas também para comer ovos, frutas, etc., bem como para devastar os campos, hortas e vinhas. O aspecto que Jesus enfatiza, contudo, consiste em que esses animais possuem suas habitações específicas, seus lares para onde sempre regressam. O mesmo é verdade também com respeito às aves. Segundo o permitam as condições ecológicas (clima, alimento), possuem seus ninhos definitivos, lugares de alojamento temporário, os espaços onde, por assim dizer, erguem suas tendas.381 Se "inimigos" tentam intrometer-se, os expulsam, se conseguem mesmo fazê-lo. Para "o Filho do homem", contudo, as coisas são inteiramente diferentes. Em suas andanças de lugar em lugar, ele, para ,!G
Note o original: K
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9.20,21
quem não havia lugar na hospedaria, não possui sequer um lugar onde passar a noite. Com o desenvolver da história, a Judéia o rejeita (Jo 5.18), a Galiléia o expulsa (Jo 6.66), Gadara roga que ele deixe sua região (Mt 8.34), Samaria lhe nega hospedagem (Lc 9.53), a terra não o quer (Mt 27.23) e, por fim, até mesmo o céu o abandona (Mt 27.46). Portanto, que o escriba primeiro faça as contas antes de construir a torre. Que ele pondere bem que o discipulado permanente implica luta e guerra. Diz-se que no tempo da Guerra Civil dos Estados Unidos houve muitos voluntários que se alistaram com muito ardor, como se a guerra nada significasse senão tomar parte em paradas, exercícios e revistas, bem como receber medalhas e honras! Com certeza há gloriosas recompensas para todos os genuínos seguidores do Senhor, mas é sempre o caminho da cruz que conduz ao lar celestial (Mt 10.24; Lc 14.26; Jo 16.33; 2 Tm 3.12; Hb 13.13). - Se esse escriba algum dia tornou-se um inabalável seguidor [de Cristo], disso não há registro. Depois de tudo, isso não é tão importante quanto a lição propriamente dita. Esse é o primeiro lugar nos Evangelhos em que ocorre o termo "Filho do homem". A literatura sobre esse tema é volumosa.384 A primeira pergunta que geralmente se faz é: "Qual é a origem dessa expressão"? Quanto a isso, os seguintes itens merecem comentário: 3S4 Ver, por exemplo, o seguinte: Aalders. G.Ch., Körte Verklaring, Daniel, Kampen, 1928. pp. 133-135. Bavinck, H. Gereformeerde Dogmatiek, Kampen, 1918, terceira edição. Vol. Ill, pp. 259-264. Berkhof, L., Teologia Sistemática, Luz Para o Caminho. Campinas. São Paulo. 1" edição. Bouman, J., art. "Son of man", in ET 59 (1948), pp. 283 segs. Burrows, M„ More Light on the Dead Sea Scrolls, Nova York, 1958. pp. 71,72. Campbell, .1. Y„ "Son of man", in A Theological Word Book of the Bible (editado por A. Richardson), Nova York, 1952, pp. 230-231. Colpe, C, sobre o mesmo tema, in Th. D.N.T., Vol. VIII, pp. 400-477. De Beus, C.H., "Achtergrond en inhoud van de uitdrukking 'de Zoon des Menschen' in de synoptische evangelien". NedTT, 9 (1954-55), pp. 272-295. De Beus, C.H., "Het gebruik en de betekenis van de uitdrukking "de Zoon des Menschen' in het Evangelie van Johannes", NedTT, 10(1955-56), pp. 237-251.
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8.17
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1. No Salmo 8.4, o termo "filho do homem" simplesmente significa o homem, como o paralelismo o indica. O que é o homem para que dele te lembres? E o filho do homem para que o visites? [ou: penses nele, te preocupes com ele?] A referência é ao homem em toda sua debilidade e dependência. Para realçar essas mesmas qualidades de fragilidade, incapacidade, inferioridade e total dependência de Deus, Ezequiel está constantemente se referindo a si como "filho do homem" (Ez 2.1,3,6,8; 3.1.3,4,10,17,25, etc.). De forma um pouco semelhante, a expressão "filhos de perversidade" (2Sm 3.34) significa pessoas perversas; "filho de estrangeiro" (Ex 12.43) significa estranho; e "filhos do trovão" (Mc 3.17), homens tempestuosos, caracterizados por zelo feroz. Mesmo o termo "filhas" deve às vezes ser interpretado de forma semelhante. Por isso, como alguns o vêem, "filhas da música" (Ec 12.4) indica notas musicais. Baseado em tais exemplos, pode aventar-se a opinião de que quando Jesus chama a si mesmo de "Filho do homem", ele não quer dizer nada além de que é simplesmente homem, ou seja, que ele é exclusivamente humano; ou ainda, se se preferir, que ele é "o homem ideal", o homem como o Criador pretendeu que fosse. Avaliação: O exame de passagens nas quais o termo ocorre, indica imediatamente que tal ponto de vista não pode ser aceito. Seguramente, é inadmissível supor que Jesus quis dizer ou que um mero homem ou mesmo o homem ideal é SeGreijdanus. S.. /let Evangelic naar de Beschrijving van Lukas. Amsterdã. 1940. Vol. 1, p. 253 (e a literatura indicada naquela página). Parker. Pierson. "'The Meaning of "Son of Man'". JUL, 60 (1941). pp. 151 -157. Stalker, J., art. "Son of man", in I.S.B.F. Stevens, G.B., The Theology oj the New Testament. Nova York, 1925. pp. 41-53. Thompson, G.H.P., "The Son of Man: The Evidence of the Dead Sea Scrolls"". ET. 72 (1960-61), p. 125. Vos, G.. The Self-Disclosure of Jesus. Nova York. 1926, pp. 42-55; 228-256. Young, E.J.. 1'he Prophecy of Daniel. Grand Rapids. 1949, pp. 154-156. Para mais títulos de literatura periódica sobre "Filho do homem", ver Metzger. B.M.. Index to Periodical Literature on Christ and the Gospels, pp. 437-442; e para tanto livros como jornais, ver as publicações contínuas de /Yew Testament Abstracts.
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nhor do sábado, dá sua vida em resgate por muitos, ressuscitaria dos mortos, enviaria seus anjos, etc. Dos mais de oitenta exemplos em que o Novo Testamento usa o termo "Filho do homem", é evidente que a referência nunca é ao homem em geral, mas sempre a um homem em particular, a uma pessoa incomparável, ou seja, Jesus Cristo. 2. Pode o uso que Cristo faz do termo "Filho do homem" ser localizado na literatura pseudepigráflca, por exemplo, na parte inicial do livro de Enoque? Deve-se reconhecer que ali o termo é realmente usado com referência ao Messias. Entretanto, esse uso não é original, mas está baseado em Daniel 7.9 ss. Além disso, carece de toda e qualquer evidência que, no tempo em que Jesus começou seu ministério, o termo "Filho do homem" fosse então uma designação corrente do Messias.385 E quanto à possibilidade de Jesus ter derivado seu uso da literatura de Qumran, segundo Millar Burro ws o termo, "Filho do homem", de forma alguma ocorre naquela literatura, e a idéia não se encontra nos textos de Qumran.386 3. A verdadeira origem do termo é indubitavelmente Daniel 7.13. Note as semelhanças, aqui grifadas: Daniel 7.13: "Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e
Mateus 26.64: "Eu, porém, lhes digo, que desde agora verão o Fi-
eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem,
lho do homem sentado à mão di-
e dirigiu-se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele".
nuvens do céu."
reita do Poder, e vindo com as
Além das semelhanças que imediatamente saltam aos olhos, note também a semelhança entre "e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele" e "sentado à mão direita do Poder [há quem prefira 'do Todo-Poderoso']". A idéia de domínio, glória e poder celestiais é oriunda de Daniel 7.14: "Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e ho385
S.BK... Vol. 1. p. 486. " More Light on the Dead Sea Scrolls, pp. 71.72.
,8
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8.20
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mens de todas as línguas o servissem. Seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino [ou senhorio] jamais será destruído." Não é verdade que a designação, "um como o filho do homem", em Daniel, representa o povo hebreu, e que a transferência do título de um corpo coletivo ("os santos do Altíssimo") para um indivíduo foi mediada pela literatura extracanônica (por exemplo, o livro de Enoque). O um como filho de homem surge nas nuvens do céu, mas os santos do Altíssimo (Dn 7.18, 21, 22, 25, 27) se encontram na terra. Além disso, na visão de Daniel, aquele [Filho do homem] não surgirá enquanto não chegar o dia do juízo; os santos, porém, são contemporâneos do pequeno chifre (vv. 21 e 25).387 Igualmente no livro do Apocalipse (1.13; 14.14), que emprega a mesma expressão ("um como filho de homem"), a referência é distintamente a uma só pessoa, a saber, o Cristo exaltado. Exagera-se tanto essa tradução de "um como", como se significasse que o indivíduo designado não fosse realmente o Filho do homem mesmo, senão alguma figura vaga, simbólica, representativa. A verdade é que a figura, como surge na visão, assemelha-se a homem pela simples razão de que ela o designa e o descreve. A descrição em Daniel se transforma em título nos Evangelhos (ver também At 7.56), mas em ambos indica-se a mesma pessoa. Para chegar-se ao significado do título, "Filho do homem", como é encontrado em Mateus, Marcos e Lucas (os Sinóticos), cada passagem em que ele ocorre deve ser estudada em seu próprio contexto individual. Quando se faz isso, fica claro que em muitas dessas passagens o termo indica a humilhação do Salvador. Ele não tem morada permanente na terra (Mt 8.20), está prestes a sujeitar-se a amargo sofrimento (17.12), será traído e entregue à morte (26.24), será sepultado (12.40). Outras passagens também predizem com igual clareza sua exaltação. Ele ressuscitará (17.9); uma vez deixando a terra, ele voltará, na glória de seu Pai e acompanhado de seus anjos (16.27) e assen31(7
Ver o argumento detalhado em G. C. Aalders e em Young; para títulos e referências de página, ver supra, nota de rodapé 384.
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tará no trono de sua glória como Juiz (25.31; cf. diversas referências em 24.27-44, adicionando 26.64). Nas seguintes colunas, a letra "H" indica que a referência a que pertence fala claramente da humilhação de Cristo. Semelhantemente, "E" indica exaltação, e "HE", humilhação seguida de exaltação (esta às vezes no contexto imediatamente seguinte ao versículo designado). Semelhantemente, "EH" significa exaltação antecedida por humilhação. Quando nem a humilhação nem a exaltação é clara e imediatamente indicada, a referência é deixada sem ser marcada por uma letra. E verdade que, naturalmente, ainda que por amor à clareza e facilidade de referência, as passagens se acham na ordem em que ocorrem nos três Evangelhos em separado, em diversos casos uma passagem num Evangelho tem paralelo noutro; por exemplo, Mateus 8.20, cf. Lucas 9.58; Mateus 9.6, cf. Marcos 2.10 e Lucas 5.24; Mateus 12.8, cf. Marcos 2.28 e Lucas 6.5; Mateus 20.28, cf. Marcos 10.45; Mateus 26.64, cf. Marcos 14.62 etc. MATEUS
MARCOS
H 8.20 E2.10 E 19.28 2.28 9.6 H 20.28 E 10.23 HE 8.31 E 24.27 E 8.38 11.19 E 24.30a 12.8 E 9.9 E 24.30b H 9.12 12.32 E 24.37 HE 9.31 H 12.40 E 24.39 HE 10.33 13.32 E 24.44 H 10.45 E 13.41 E 25.31 E 13.26 16.13 H 26.2 H 14.21a E 16.27 H 26.24a H 14.21b E 16.28 H 26.24b H 14.41 E 17.9 H 26.45 E 14.62 H 17.12 E 26.64 ****** ****** HE 17.22 18.11 (A.V., provavelmente uma interpolação de Lucas 19.10) 573
LUCAS 5.24 7.5 622 7.34 HE 9.22 E 9.26 H 9.44 H 9.58 11.30 E 12.8 12.10 E 12.40 E 17.22 EH 17.24 E 17.26 E 17.30 E 18.8
HE 18.31 19.10 E 21.27 E 21.36 H 22.22 H 22.48 E 22.69 HE 24.7 * * * * * * * *
8.20
MATEUS
É provável que a humilhação seja básica na maioria das referências não marcadas. Entretanto, a questão não é tão simples quanto parece. Muitas passagens são difíceis de classificar, pois indicam que mesmo durante sua humilhação o Filho do homem de forma alguma era um homem comum. Ao contrário, ele era Senhor do sábado (Mt 12.8 e paralelas), tinha autoridade para perdoar pecados (Mt 9.6 e paralelas), "veio" a este mundo com um propósito definido, a saber, dar sua vida em resgate de muitos (Mt 20.28; Mc 10.45); e, em harmonia com esse propósito, "veio" buscar e salvar o perdido (Lc 19.10). Ai do homem por meio de quem o Filho do homem é traído (Lc 22.22)! O Filho do homem é, portanto, ao mesmíssimo tempo "homem de dores" e "Senhor da glória"! Que Jesus, ao usar o termo "Filho do homem", embora nunca declare (predicativamente) "Eu sou o Filho do homem", está, não obstante, referindo-se sempre a si mesmo, é evidente à luz de Mateus 16.13-15, onde "Filho do homem" é obviamente equivalente a "eu"; à luz de 26.62-64, onde a acusação de blasfêmia de outra forma teria sido impossível; e à luz do fato de que o título, "Filho do homem", em Marcos 8.31 (cf. Lc 9.22) é em Mateus 16.21 substituído pelo simples "ele", como "Jesus" como antecedente. De fato, em cada passagem o contexto revela que, quando Jesus emprega esse título, ele está se referindo a si próprio. Ao usar esse título, falando aos judeus, Jesus podia revelar-se gradualmente, não de uma só vez. Em sua obra entre eles, se houvera imediatamente se denominado o Messias, não teria seu ministério chegado a um fim prematuro? Além disso, o tipo de concepção aceito pelas massas, a interpretação do ofício messiânico carnal, materialista e político, não teria multiplicado o erro? É plenamente possível que inicialmente muitos dos que compunham o auditório de Cristo entendessem a designação no sentido de não mais que mero homem, como em Ezequiel. Gradualmente, contudo, à medida que Jesus continuava a descrever o que estava fazendo, enfrentando e planejando como Filho do homem, começassem a sentir-se perplexos e a pergun574
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tar: "Quem é esse Filho do homem"? (Jo 12.34, a única passagem nos Evangelhos em que alguém além do próprio Jesus usa esse termo.) E, assim, gradualmente a mente dos ouvintes ia sendo iluminada. O clímax veio quando, sem a mínima restrição, Jesus se identificou (Mt 26.62-64) em sua glória vindoura, com a augusta pessoa que na profecia de Daniel (7.13,14) foi introduzida na presença do Ancião de Dias! O uso da autodesignação, "Filho do homem", enfatizava o fato de que o portador desse título não era o Messias nacionalista da esperança judaica, mas (em certo sentido) "o Salvador do mundo" (Jo 4.42; cf. lTm 4.10). Seu sincero convite de salvação pela graça mediante a fé visa a todos os homens. Ele mesmo é incomparável entre os homens. Ele é o Filho do homem. Ele é o homem de dores, mas essa mesma vereda de sofrimento conduz à coroa, à glória. Além do mais, essa glória se revela não só escatologicamente, quando vier com as nuvens, mas também remonta a toda sua vida terrena e a cada ato redentivo. Ele é sempre o glorioso Filho do homem! 388 Como já foi demonstrado, o escriba mencionado nos versículos 19 e 20 estava exageradamente disposto a ser um seguidor permanente de Jesus. O próximo indivíduo a aproximar de Jesus antes que ele entre na embarcação e parta, parecia estar demasiadamente disposto. Lemos: 21. Outro, um de seus discípulos,389 disse-lhe: "Senhor, permita-me ir primeiro para casa e sepultar meu pai." Esse homem, segundo parece, pertence ao numeroso grupo de pessoas que se impressionaram com as palavras e obras de Jesus. Esse tipo de aspirante era com -ws Para a passagem joanina, na quai esse título é usado, ver C.N.T. sobre João. Vol. (I, pp. 205. 206, e o sumário na p. 207; também o comentário sobre cada passagem, apresentado nos dois volumes dessa obra. Literalmente, segundo o que é provavelmente o melhor texto, "e outro de seus discípulos". Entretanto, aqui também devemos contar com a possibilidade de expressão abreviada. O contexto anterior, concernente ao escriba, o qual não é chamado discípulo de Jesus (em Lc 9.57 ele é chamado "certo homem"), é evidente que o significado aqui no v. 21 seja: "alguém mais, um de seus discípulos". Este homem é um discípulo, o escriba não o era.
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freqüência encontrado no auditório de Cristo. Ao relatar a outros suas experiências, ele falava favorável e entusiasticamente sobre Jesus. No sentido mais amplo do termo, ele era, portanto, discípulo de Jesus. Seu desejo é tornar-se um discípulo no sentido mais estrito, um seguidor permanente, um daqueles que pertencem ao círculo íntimo. Entretanto, tudo indica que não estava disposto a dar esse passo imediatamente. Se bem que não imponha exatamente suas próprias condições para juntar-se ao grupo, pelo menos inquire sobre a possibilidade de fazer reserva temporária. Seu pai acaba de morrer. Por isso esse aspirante solicita que Jesus lhe permita ir primeiro à sua casa e sepulte seu pai.390 Segundo o costume, o sepultamento geralmente se dava logo após a morte (Jo 11.1,14,17; At 5.5,6,10). Em Israel, dar um honroso sepultamento ao morto era considerado tanto um dever quanto um ato de bondade (Mq 6.8), que tinha a mais elevada prioridade sobre os demais serviços que requeriam atenção. A piedade filial obrigava um filho a atender a esse ato final de devoção. Cf. Gn 25.9; 35.29; 49.28-50.3; 50.13,14,26; Js 24.29,30, etc.391 Não surpreende, pois, que esse homem solicitasse permissão para primeiro ir sepultar seu pai. Aparentemente, a solicitação por adiamento parecia razoável. A primeira vista, a resposta que recebeu vem como uma surpresa: 22. Disse-lhe, porém, Jesus: "Siga-me, e deixe os mortos sepultar seus próprios mortos." O que Jesus tinha em mente é sobejamente claro, ou seja: "Que os que estão espiritualmente mortos se ocupem do enterro de alguém que pertence à
191
A sugestão de que o pai não havia realmente morrido, e que a intenção do discípulo era: "Deixe-me ficar em casa com meu pai até que ele morra e eu providencie seu funeral", não me impressiona como sendo de algum valor. Km tal caso Jesus estaria implicitando que naquele tempo futuro, aqueles cujo dever seria. pois. providenciar o enterro ainda estariam espiritualmente mortos, que também o pai teria morrido na descrença, etc. As palavras de Jesus se aplicam claramente a uma situação atual. Cf. S.BK., Vol. I. pp. 487-489.
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9.20,21
sua própria confraria." Entretanto, pode surgir a seguinte pergunta: "Por que Jesus não consentiu com esse pedido, especialmente pelo fato de esse aspirante, havendo cumprido suas funções em conexão com o enterro de seu pai, poder, então, voltar imediatamente para estar com Jesus"? Várias probabilidades vêm à mente: 1. De acordo com o costume, as cerimônias fúnebres não eram exatamente conducentes com o crescimento e edificação espirituais. Eram atividades ruidosas, às vezes caracterizadas por lamento excessivo e hipócrita. Ver Mateus 9.23,24; Marcos 5.38-40; Lucas 8.52,53: lamentos em altos brados subitamente se convertiam em gargalhadas de zombaria. Jesus queria poupar ao homem essa agonia. Queria que ele recebesse para si uma bênção e fosse uma bênção para outros, gastando muito tempo com o Salvador, para que, assim fortalecido na fé, esse "discípulo" pudesse "proclamar o reino de Deus" (Lc 9.60). 2. Jesus já havia dado ordem de partir (v. 18) e estava pronto para embarcar (v. 23). Se esse homem queria estar na companhia imediata de Cristo, então tinha de reunir-se com ele agora. Outros cuidariam do enterro. 3. O fato de ser Jesus soberano Senhor, e que segui-lo significa fazer o que ele manda, sem qualquer qualificação, condição ou reserva, teria impressionado profundamente a mente e o coração desse homem (cf. Jo 15.14). Jesus sabia que o aspirante era o tipo de indivíduo que tinha necessidade especial de ser lembrado disso. 4. Jesus deseja ensinar-lhe que no reino do céu os laços pertinentes à vida familiar terrena são substituídos por aqueles que unem os membros da família celestial ou espiritual (cf. Mt 10.37; 12.46-50; e ver C.N.T. sobre Efésios 3.14,15). Mencionar esses quatro itens não significa endossá-los na íntegra! Não sabemos quais nem quantas das respostas sugeridas estavam presentes na mente de Cristo, quando disse: "Siga-me..." E possível que tenha havido outras razões. Espero, pois, que as sugeridas tenham mostrado que o mashal (declaração velada e 577
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aplicável) aqui pronunciado, longe de ser injustificável, era repassado de sabedoria. Na forma em que se deu, era apropriado para essa pessoa em particular, como, por exemplo, Mateus 19.21 correspondeu às necessidades do "jovem rico". As ocasiões e as personalidades diferem, e concluir, da resposta que Jesus deu, que os crentes não devem providenciar apoio ou atendimento nos enterros dos incrédulos, inclusive a membros de sua própria família, seria completamente infundado. Seria tão injustificado como declarar que Mateus 6.34 (ver sobre essa passagem) condena todo e qualquer juramento. Não obstante, já se disse o suficiente para mostrar que esta passagem (8.21,22) está saturada de significado e valor para todos os tempos (ver especialmente itens 3 e 4 supra). Jesus Acalma uma Tempestade Essa história se encontra em Mateus 8.23-27; Marcos 4.3541; e Lucas 8.22-25. Em Mateus, seu início se acha conectado logicamente com o versículo 18: "deu ordens de partir para o lado contrário", e assim agora: 23: Ao entrar no barco, seus discípulos seguiram-no. Os discípulos, sem importar-se com o custo, seguem a Jesus; compare isso com a atitude mental dos dois aspirantes (vv. 19-22). De acordo com Marcos 4.37, outros barcos deixaram a praia ao mesmo tempo. 24. De repente, violenta tempestade agitou o mar, de tal sorte que o barco foi sendo inundado pelas ondas. Literalmente: "E eis que um grande tremor [ou: maremoto, tempestade] ocorreu no mar...." Sobre esse "eis", ver p. 188, nota 133. A palavra que descreve a tempestade é seismos; cf. "sismografia", instrumento que indica a quantidade de tremor ou vibração. A palavra seismos em outra parte indica um terremoto (Mt 24.7; 27.54; Mc 13.8, etc.). No presente caso, contudo, tem referência a uma violenta tempestade no mar, causada por ventos fortes. Marcos 4.37 e Lucas 8.23 falam de um lailaps, ou seja, um torvelinho ou tempestade que irrompe em furiosas rajadas de vento. A água sobre a qual ocorreu essa tempestade era o Mar da Galiléia. Fica ao norte do vale do Jordão, tem cerca 21 quilôme578
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tros de extensão e onze de largura. Está a cerca de 211 metros abaixo do nível do Mediterrâneo. Seu leito consiste numa depressão circundada por colinas, especialmente no lado oriental com seus flancos escarpados. Quando os ventos frios descem abruptamente do Monte Hermom (2.759m), ou de outros lugares, passam por desfiladeiros estreitos entre as colinas íngremes e se encontram com o ar cálido que paira sobre o lago, esses ventos se tornam impetuosos. Os ventos violentos açoitam o mar com fúria, fazendo com que as ondas altas esguichem contra a proa, sobre a borda, etc., de qualquer bote que porventura esteja a deslizar na superfície das águas. No presente caso, o pequeno barco pesqueiro, alagado por gigantescas ondas, foi convertido em brinquedo dos elementos em fúria. Ele, porém, dormia profundamente. O tempo usado no original retrata Jesus a dormir pacificamente. Ele estivera trabalhando arduamente e estava exausto. Além disso, não lhe era difícil cair em sono profundo, pois sua confiança no Pai celestial - Seu próprio Pai - era inabalável. Nem o rugir do vento, nem o estrondear das ondas, nem sequer os bruscos solavancos do barco eram capazes de acordá-lo. Visto que a tormenta crescia em fúria, os discípulos que se achavam com Jesus no barco, ainda que marinheiros experientes, apelaram para ele em busca de socorro. Ora, havendo estado com ele por algum tempo, e havendo testemunhado de seus estupendos milagres, começam a ver nele mais que um mero carpinteiro. Todavia, não acreditavam plenamente que mesmo ele pudesse fazer algo contra tempestade como essa (ver v. 27). Havia neles um misto de fé e medo, com o predomínio deste (Lc 8.25). Estavam já no ponto de desespero, porém resolveram fazer uma tentativa. Dirigiram-se à popa do barco, onde Jesus dormia "sobre uma almofada" (Mc 4.38). 25. Então aproximaram-se, o acordaram, dizendo: "Senhor, salve[-nos], estamos perecendo." Há uma leve diferença na maneira em que os evangelistas relatam os gritos desses homens aterrorizados: Marcos diz: 579
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"Mestre, não se importa que pereçamos"? Lucas: "Mestre, Mestre, estamos perecendo." Os comentaristas chamam a atenção para o fato de que essa é uma das muitas evidências que comprovam a independência dos autores entre si; em meio à unidade essencial há variedade pessoal. Realmente! E não é também um fato que numa situação de terrível angústia, um discípulo gritasse uma coisa, e outro, coisa diferente? Deve-se ler os três relatos para obter o quadro por inteiro. O que os elementos da natureza foram incapazes de fazer, ou seja, acordar Jesus, o agonizante apelo dos discípulos, bem como sua própria solicitude de ministrar às necessidades humanas, o conseguiram. Despertado do sono, 26. Ele lhes disse: "Por que estão amedrontados, ó homens de pequena fé"? Jesus lhes recorda que não há razão plausível para seu confuso pânico. Bem recentemente esses homens haviam sido selecionados para ser discípulos de Cristo, com a vista voltada para o discipulado (Mc 3.13-19; Lc 6.12-16) e tudo o que estava implícito. Aquele que os escolhera porventura lhes permitiria perecer nas furiosas profundezas? Sua simples presença não era, porventura, tranqüilizadora? O relato de Mateus é o mais dramático dos três (Mateus, Marcos e Lucas). Em sua descrição, Jesus não acalmou imediatamente a tempestade. Ao contrário, enquanto a tempestade ainda rugia e o barco era arrastado de um lado a outro pelos vagalhões, na fronte de Cristo entronizava-se uma "calma majestosa". Foi no auge da confusão que ele perguntou aos discípulos por que estavam apavorados. Foi então, mesmo antes de erguer-se, que ele, com perfeita serenidade e equilíbrio, lhes falou como "homens de pequena fé", ou seja, homens que não suficientemente de posse do conforto que haviam recebido da presença, promessas e amor de seu Mestre (como em 6.30; 14.31; 16.8). Quando um incêndio florestal avança furioso, às vezes sucede que por dias sucessivos os noticiários informem que o destruidor holocausto ainda se alastra. Ainda não se acha "sob controle". Finalmente chega o boletim que todos esperavam: em580
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bora as chamas não estejam ainda completamente extintas, o fogo, agora, está "sob controle". O perigo que ameaça a vida e a propriedade foi suficientemente contido para justificar uma informação otimista. Por outro lado, como Mateus o retrata, Jesus tem essa tempestade "sob controle", mesmo quando os ventos ainda rugem e as águas tumultuam! A tempestade é seu instrumento para o fortalecimento da fé dos discípulos, como se faz evidente à luz do versículo 27. Deus tem um modo misterioso De suas maravilhas realizar; Ele traça seus caminhos no mar Para a tormenta cavalgar. Tomem alento, santos temerosos: As nuvens que tanto lhes metem medo Transbordam misericórdia E derramarão bênçãos sobre suas cabeças. (William Cowper) Então, levantando-se, repreendeu os ventos e o mar; e houve profunda calma. Existem aqueles que presumem que o verbo "repreendeu" 392 implica um objeto animado. Dizem que essa inferência é reforçada por Marcos 4.39, que é então traduzido: "Paz! Emudece!" Mas, para começar com a última, nem sempre uma palavra retém sua conotação básica ou primária. "Calma! [ou: Paz!] Silêncio!" é a tradução melhor e mais comum de Marcos 4.39. Quanto à expressão, "Ele repreendeu", deve-se ter em mente que Mateus não diz: "Jesus repreendeu o diabo", ou "os demônios", ou "os espíritos malignos que estavam nos ventos e no mar". Ele simplesmente diz: "Ele repreendeu os ventos e o mar". Parece, pois, que isso é simplesmente uma forma figurada ou poética de falar (cf. SI 19.5; 98.8; Is 55.12 etc.). E assim também em Lucas 4.39, onde lemos que Jesus "repreendeu" a febre que afligia a sogra de Pedro. O fato èTreTÍ|iTioft', terceira pessoa sing. Aor. Indic. Dckvni\>j&xií. Tem o sentido de repreender em passagens tais como Mt 8.16-22: 17.18; 19.13; Lc 4.39; 9.42,55; 19.39: 23.40; mas às vezes significa advertência (M 12.16; 16.20; Mc3.12; Lc 9.21).
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realmente importante, comunicado pela expressão: "Ele repreendeu os ventos e o mar", é que de uma maneira eficaz Jesus declarou sua autoridade sobre os elementos da natureza, de modo que houve uma profunda (literalmente, "grande") calma. O que é notável é que não só os ventos se aquietaram imediatamente, mas também as ondas. Geralmente, como é bem notório, depois que os ventos tenham perceptivelmente diminuído, as ondas ainda continuam agitadas por algum tempo, subindo e baixando como que indispostas a seguir o exemplo das correntes de ar acima delas que se deixaram subjugar. Mas, no presente caso, os ventos e as ondas se sincronizaram na sublime sinfonia de um solene silêncio. Algo comparável com a vespertina quietude dos céus estrelados espelhados nas águas. Repentinamente, a superfície do mar se alisa como um espelho. Sentir-nos-emos porventura surpresos que mesmo depois de o milagre ter sido realizado (assim Mc 4.40 e Lc 8.25) Jesus reprove os discípulos por causa da debilidade de sua fé? Não seria antes natural que ele se voltasse para esse assunto tão importante? Que a fé desses homens foi deveras fortalecida, faz-se evidente à luz do versículo 27. Os homens ficaram espantados, e disseram: "Que tipo de pessoa é esta, que até os ventos e o mar lhe obedecem?" Considero a expressão, "os homens", como que se referindo aos discípulos nesse barco. Com certeza "outros barcos" haviam deixado a praia ao mesmo tempo (Mc 4.36). Além disso, depois que Jesus e seus discípulos desembarcaram, é provável que o milagre tenha se tornado "o assunto da cidade". Tais questões, porém, não fazem parte do presente contexto. Aqui, o antecedente de "homens" é evidentemente "seus discípulos" (v. 23), "eles" (v. 25) e "lhes" e "homens de pequena fé" (v. 26). Esses homens estão perplexos. Começam a compreender que Jesus é muito maior do que haviam previamente imaginado. Ele exerce controle não só sobre os ouvintes, os enfermos e os demônios, mas até mesmo sobre os ventos e as ondas. Amiúde sucede que aqueles que se acham mais estreitamente associados com uma pessoa grandiosa ou famosa se sen582
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tem muito menos entusiasmados com ela do que sentem os estranhos, que avidamente assimilam as notícias entusiásticas. Os amigos íntimos são menos trancos em seus elogios, pela simples razão de que vêem não só os pontos fortes da celebridade, mas também os fracos. Quando Jesus é o centro das atenções, a história é diferente. Quanto mais estreita é a relação com ele, maior é também a admiração e o assombro. Quanto a isso, ver C.N.T. sobre o Evangelho Segundo João, Vol. 1, pp. 3 e 4. Muito do que está errado sobre a terra pode ser corrigido. Há mães que enxugam as lágrimas, mecânicos que reparam máquinas, cirurgiões que removem tecidos enfermos, conselheiros que solucionam problemas domésticos, etc. E no tocante à correção do clima? Sem dúvida, o povo comenta muito o tempo. Mas é preciso deidade para mudá-lo. E Jesus quem ordena aos ventos e às ondas, e eles obedecem! Na Terra dos Gadarenos: Contraste Entre Solicitude e Indiferença Era crepúsculo vespertino quando o Senhor e seus discípulos atravessaram o mar. A noite já devia ser chegado quando começaram a ocorrer os eventos registrados em Mateus 8.2834, Marcos 5.1-20 e Lucas £.26-39. Isso está nitidamente implícito em Marcos 4.3 5; 5.1,2. Não é lógico supor que no versículo 3 3 ou 34, Mateus relata o que aconteceu no dia seguinte? O presente relato começa assim: 28. E quando chegou do outro lado, ao país dos gadarenos, vieram ao seu encontro dois endemoninhados, vindos dos sepulcros. O original, como apresentado pelo N. T. Grego (A-B-M-W) tem gadarenos em Mateus 8.28; gerasenos em Marcos 5.1; e gergesenos em Lucas 8.26. Em cada caso, os textos variantes são reconhecidos em notas de rodapé. A fim de situar o lugar onde Jesus desembarcou, uma descrição, conforme apresentada nos Evangelhos (Mt 8.28,32; Mc 5.2,13; e Lc 8.27,33) é útil. Ele nos revela que era uma região de cavernas usadas para túmulos, e que uma colina escarpada descia abruptamente até à própria beira da água. Tal descrição não se coaduna com Gerasa, cidade situada pelos me583
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nos 48 quilômetros ao sudeste do Mar da Galiléia. Entretanto, corresponde a Khersa, que poderia muito bem ser indicada como a cidade habitada pelos gerasenos e gergesenos. Caso seja tomado por certo que a cidade maior de Gadara, cuja parte central é localizada a poucos quilômetros a sudeste do mar, porém se estende até à praia, era, por assim dizer, a capital de todo o distrito a que pertencia Khersa, as várias designações geográficas começam a ter sentido. Além do mais, em Khersa, situada na praia nordeste, a cerca de dez quilômetros em diagonal (atravessando o mar) para o sudeste de Cafarnaum, deveras há uma colina que desce abruptamente até à beira da água. Há também muitas cavernas - em evidência ainda hoje - adequadas para túmulos. 393 O lugar onde o grupo desembarcou era predominantemente gentílico. Ver sobre Mateus 4.12-16. Quando Jesus e seus discípulos pisaram na praia, de repente se viram diante de dois endemoninhados, os quais saíram do meio dos sepulcros. São descritos como violentos ou ferozes, e podiam demonstrar esses traços em seus modos impetuosos de se precipitarem ao ataque. A razão por que Mateus menciona dois endemoninhados, enquanto Marcos e Lucas apresentam a história de apenas um394 não se sabe, mas essa variação nas informações é comum ainda hoje. Tem-se sugerido que o endemoninhado a quem Marcos e Lucas se refere era o principal e porta-voz, mas tal opinião não passa de mera conjetura. Deve-se observar, contudo, que esses outros evangelistas não dizem que somente um endemoninhado encontrou Jesus naquele dia. Ninguém, pois, tem o direito de falar sobre uma "contradição" entre Mateus e Marcos. E prossegue: Tão violentos eram eles que ninguém podia passar por aquela estrada. Para uma descrição mais detalhada do caráter e comportamento selvagens desses homens, ver o que se diz sobre um deles em Marcos 5.2-6 e em Lucas 8.27. 3.3
3.4
Ver A. M. Ross, art. "Gadara, Gadarenes", Zondervan Pictorial Bible Dictionary. Grand Rapids, 1963, p. 293; e L. H. Grollenberg, Atlas ofthe Bible, p. 116, mapa34. Cf. também Mateus 20.29 ("dois cegos") com Marcos 10.46 e Lucas 18.35.
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Esses miseráveis farrapos humanos estavam dominados por toda uma legião de demônios, os quais mantinham sob seu controle seus pensamentos, sua conversação e seu comportamento. O povo das redondezas, ciente da perigosa situação, intencionalmente evitava passar por aquele território. Quanto aos endemoninhados, na verdade os demônios eram quem falavam por meio deles 29. Imediatamente começaram a gritar: "Por que nos aborrece, ó Filho de Deus? Veio aqui torturar-nos antes do tempo determinado?" Literalmente, o que gritavam era: "O que [há] para nós e você"? Significando: "O que tem você conosco"? E então: "Por que nos incomoda"? 395 Reconhecem Jesus como sendo o Filho de Deus, e sabem que no dia do juízo vindouro cessará para sempre sua relativa liberdade de percorrer a terra e o céu acima dela (ver sobre C.N.T. sobre Efésios 2.2; 6.12), e que seu final e terribilíssimo castigo está destinado a começar naquela ocasião. Parecem sentir a diferença entre a primeira e a segunda vindas de Cristo, fato este nem sempre plenamente reconhecido mesmo pelos seguidores do Senhor (ver sobre 11.1 -6). Os endemoninhados sabem que justamente agora se acham face a face com seu grande antagonista, aquele a quem o juízo final foi confiado, e têm medo que desde agora - isto é, "antes do tempo determinado"396 - Ele os lançasse no "abismo" ou na "prisão" onde Satanás é mantido (cf. Ap 20.3). O que aumenta seu medo é o fato de que quase imediatamente após o encontro, Jesus ordena aos demônios que saiam desses homens (Mc 5.8; Lc 8.29). E prossegue: 30,31. Ora, a alguma distância deles, uma grande manada de porcos comia. Então os demônios rogaram-lhe, dizendo: "Se nos expulsa, permita-nos entrar naquela manada de porcos." Os demônios estão plenamente côns-
396
Sobre zí r p u ' KKL OOÍ, ver M. Smith, "Notes 011 Goodspeecfs "Problems o f N e w Testament Translation"'. JBL 64 (1945). pp. 512, 513. Observe upò Kíupoü. Km distinção de xpóvoç, tempo considerado como a sucessão do passado para o presente para o futuro, Kcapóç indica o momento ou tempo próprio para este ou aquele evento acontecer; ver Kc 3.1 -8. onde a LXX usa Koapóc consistentemente.
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cios do fato de que sem a permissão de Jesus nada podem fazer. A presença de um grande número de porcos, "cerca de dois mil" (Mc 5.13), comendo num declive a certa distância do lugar onde ocorreu o encontro entre Jesus e os endemoninhados, propicia aos demônios solicitar permissão de entrar naquela manada. Qual foi a razão para tal solicitação? Simplesmente o anseio para destruir? O sinistro desejo e esperança de que os proprietários da manada, vendo sua propriedade assim destruída, se enchessem de aversão contra Jesus? Isso certamente é possível, mas pode ter havido outras razões. Não sabemos. O que sabemos é que Jesus atendeu a sua solicitação: 32. E disse: "Vão." Então saíram e entraram nos porcos, e toda a manada precipitou-se pelo despenhadeiro no mar, e pereceu nas águas. Por que Jesus permitiu que isso acontecesse? Seria porventura, como se tem sugerido,1''7 porque Jesus não permitia a posse de suínos, de modo que os judeus estavam sendo punidos por desobedecerem à ordenança relativa a animais impuros? Nem o contexto nem o caráter da região onde tudo isso ocorreu (ver sobre o v. 28 e sobre 4.12-16) favorece tal explicação. Como o vejo, as razões eram estas: a. negativamente: Jesus sabia que os demônios tinham razão em insinuar que o tempo de seu conlinamento no inferno não havia ainda chegado; e b. positivamente: ele também sabia que havia uma lição que os habitantes daquela região precisavam aprender mais do que qualquer outra, a saber, que as pessoas - no presente caso os dois endemoninhados - são de maior valor do que porcos, ou seja, que os valores humanos excedem em muito os valores materiais. Que os homens daquela região realmente careciam dessa lição, demonstra-se nos versículos 33, 34. E os pastores fugiram, chegaram à cidade e relataram tudo, inclusive o que havia sucedido ao endemoninhado. Embora os homens que cuidavam dos porcos estivessem a certa distância de Jesus (v. 30), evidentemente testemunharam o encontro que se deu entre ele e os endemoninhados, e também observaram que a selvageria desses dois homens os 397
Lenski, op. cit.. p. 342.
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havia deixado e se transferido para os porcos. E chegaram à correta conclusão de que fora Jesus quem havia expulsado os demônios dos homens e permitido que os mesmos espíritos malignos entrassem nos porcos, com o resultado de que todos os dois mil perecessem nas águas. A perda dos porcos, portanto, não se deu por culpa dos pastores. Estes queriam que todos soubessem o que realmente havia acontecido. Resultado: E eis que toda a cidade saiu ao encontro de Jesus; e, assim que o viram, rogaram-lhe que deixasse seu distrito. Acerca desse "eis", ver p. 188, nota 133. Essa é uma daquelas passagens que dizem tanto por meio de seu silêncio quanto o dizem por meio de suas palavras expressas. As pessoas dessa região eram empedernidas. Não se alegravam com os que se alegram. Não glorificaram a Jesus por haver derramado uma bênção tão imensurável aos dois indivíduos tão chocantemente desditosos. Nem mesmo trouxeram a Jesus seus enfermos para que os curasse, nem ainda lhe pediram que restaurasse suas almas. Eram capazes de pensar só numa coisa: a perda desses porcos. Foi isso que os encheu de imenso medo. Por isso pediram a Jesus que "se afastasse de seus limites". E ele o fez: 9.1. Então entrou num barco, passou para o outro lado e chegou à sua própria cidade (Cafarnaum; ver p. 336). Mas como Marcos e Lucas relatam, a solicitude do Senhor triunfou sobre o povo empedernido. Não se afastou de todo. Antes de partir, ele lhes deixou um missionário! Ver Marcos 5.18-20; Lucas 8.38,39. A Cura de um Paralítico A história da purificação do leproso (ver supra, Mt 8.1-4) está no Evangelho de Marcos, bem como no de Lucas, imediatamente seguida pela história da cura do paralítico que, com a ajuda de quatro companheiros, foi descido pelo teto da casa onde Jesus estava ensinando. Cf. Marcos 1.40-45 com 2.1-12; e cf. Lucas 5.12-16 com 5.17-26. Aí se segue a vocação de Levi (Mateus). A luz de Marcos e Lucas, alguém certamente terá a impressão de que a cura do paralítico e a vocação de Levi ocor587
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reram antes da pregação do Sermão do Monte e da chamada dos doze discípulos (Mc 3.13-19; Lc 6.12ss.). Agora Mateus, aqui em 9.2ss., forma um paralelo com Marcos 2.1 ss. e Lucas 5.17ss., porém o lugar que esse material tem em seu Evangelho, isto é, o nono capítulo, tão afastado do quinto para o sétimo capítulo, onde se acha registrado o Sermão do Monte, poderia levar o leitor descuidado a imaginar que esse milagre e essa chamada tivessem sucedido muito depois da pregação do Sermão. Entretanto, visto que a disposição em Mateus é mais temática do que cronológica, e visto que uma chamada de Mateus subseqüente à chamada e comissionamento dos Doze em que ele mesmo estava incluído faria pouco sentido, é seguramente razoável seguir, em traços gerais, a seqüência histórica de Marcos. Fazer isso não envolve contradição, visto que o relato de Mateus, aqui em 9.2ss., não é introduzido por qualquer referência a um tempo específico. Ele simplesmente declara: "E eis que lhe trouxeram ..." Marcos e Lucas, ainda que não deixando dúvida quanto à questão de que ocorreu antes, a. a seleção dos Doze e a pregação do sermão, ou b. a cura do paralítico e a chamada de Levi, não satisfaz nossa curiosidade quanto a exatamente quando essa cura, etc. ocorreu. Marcos registra: "depois de alguns dias"; Lucas: "num daqueles dias." Ora, isso significa que Mateus, ao afastar-se da ordem histórica dos eventos, apresenta seu material de um modo desordenado, sem pé nem cabeça? Absolutamente, não. Ao registrar os milagres, Mateus mostra que aprecia a variedade, bem como uma disposição literária do tipo que conduz a um clímax. Com um toque de mão, Jesus limpa o leproso. Sem o mais leve toque, ele cura o servo do centurião. l ie bane uma febre, mas. como se tais milagres de cura não bastassem para manifestar seu poder e sua glória, ele acalma até mesmo os ventos e as ondas. Além do mais, não é só sobre o universo físico que ele brande seu cetro; também sobre os demónios. Eles também têm de obedecer a sua vontade. Não obstante, todos esses benefícios concedidos aos filhos dos homens são, em grande medida, de 588
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natureza física. Na forma descrita, pelo menos primária e enfaticamente, eles não atingem a raiz da desgraça: a culpa e corrupção humanas, o mal que separa o homem de seu Criador. O pecado não perdoado é o melhor amigo de Satanás, o principal inimigo do homem. A seção a ser estudada comprova que o Grande Médico cura também nesse aspecto. Enquanto liberta o homem de sua enfermidade física, ele também maneja o poder para libertá-lo do pecado, o maior de todos os males: 2. E eis que lhe trouxeram um paralítico deitado numa cama. Ao ver Jesus a fé deles, disse ao paralítico: "Filho, tenha coragem; seus pecados são perdoados." Antes da tentativa de explicar Mateus 9.2-8, seria bom fornecer de antemão uma breve história harmonizada que, com um mínimo de comentário, inclua todas as principais características dos três relatos: Mateus 9.2-8, Marcos 2.1-12 e Lucas 5.17-26. Jesus entrou numa casa particular em Cafarnaum. As notícias correm celeremente, de tal modo que o lugar onde ele está fica apinhado de gente. Entre a multidão se encontram fariseus e escribas (doutores da lei) de cada vilarejo da Galiléia e Judéia. Alguns vieram até mesmo de Jerusalém, tão longínqua. O Mestre começa a proferir a mensagem. Ora, quatro pessoas (parentes, amigos?) se dirigem para essa casa carregando um homem paralítico. Seu desejo é leválo a Jesus para que o cure, mas debalde tentam encontrar meios normais de entrada. E assim, numa "cama" ou almofada de dormir, eles transportam o homem para o teto, removem algumas telhas e o abaixam, pondo-o diante de Jesus. Este, vendo a fé deles, diz ao paralítico: "Coragem, filho; seus pecados estão perdoados." Em seu coração, os escribas se põem a pensar: "Isso é blasfêmia! Quem, senão unicamente Deus, pode perdoar pecado?" Jesus, ao perceber no espírito o que acontecia, diz aos seus oponentes: "Por que é má a imaginação de seus corações? Pois. o que é mais fácil, dizer: 'Seus pecados estão perdoados', ou dizer: 'Levante-se e ande'? Mas para que vocês saibam que o Filho do homem tem poder sobre a terra para perdoar peca589
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dos" (então diz ao paralítico): "Levante-se, tome seu leito e vá para casa." O homem fica de pé, toma aquilo em que estivera deitado e vai para casa. Todos são tomados de assombro. Todos - inclusive o homem que fora curado - glorificam a Deus. De todos os lados se ouvem exclamações deste teor: "Hoje vimos coisas estranhas." "Nunca vimos coisa como esta." Voltando então para o próprio relato de Mateus, o mais breve dos três, notamos primeiramente que ele simplesmente menciona que um paralítico estava sendo trazido a Jesus. Aqui não se indica a forma exata como foi posto diante de Jesus. O grau de gravidade da doença não é especificado em qualquer dos três relatos; contraste Mateus 8.6 com Lucas 7.2. Que o caso era muito sério está implícito na circunstância em que o doente não se podia mover, tendo de ser carregado. Ele é descrito como estando deitado num catre ou esteira de dormir. Jesus, com base no que podia observar com seus olhos, isto é, que esse homem lhe estava sendo trazido, e também pelo fato de poder ler os segredos dos corações humanos (Jo 2.25), "viu" a fé de todo o pequeno grupo, ou seja, do próprio paralítico e daqueles que o traziam. Os amigos ou parentes o haviam carregado até Jesus. O próprio doente consentira (quem sabe até mesmo tivesse sugerido?) em ser assim conduzido. Teria havido um consentimento mútuo, e isso foi concretizado. A fé desses homens consistia simplesmente em crerem eles que Jesus estava disposto e podia realizar a cura física? Ou incluía também a confiança de que o Mestre aliviaria o paralítico do fardo de sua culpa? Ainda que isso não possa ser definitivamente comprovado, não parece provável à luz do fato de que, antes de fazer qualquer coisa, Jesus lhe tenha assegurado o perdão? Uma coisa estranha ocorre. Geralmente, quando Jesus é confrontado com uma pessoa doente ou inválida, é esta que inicia o diálogo, ou algum de seus amigos ou parentes, com uma solicitação para a cura (8.2,5; 9.18,27; 15.21; 17.14,15; 20.30; Mc 1.30, etc.). No presente caso, contudo, nada do gênero é notificado. O auditório está silencioso. Estão silenciosos tam590
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bém os homens que carregaram o paralítico até essa casa e o colocaram diante de Jesus, e assim também se comporta o próprio doente. Nenhuma palavra, porém, de qualquer um deles, se faz necessária. O Mestre compreende plenamente. E ele que ama e cuida, e então se dirige ao doente. A primeira coisa que Jesus diz a ele é: "Coragem, filho!" Quanto ao termo "filho" ou "amigo" (algo mais literal), de qualquer forma é um termo que expressa carinho. Combinado com "coragem", testemunhamos aqui a compaixão e a ternura do Bom Pastor. Ele dissipa o constrangimento e a tristeza do enfermo, e, por assim dizer, aperta os braços de seu amor e solicitude protetores. No que diz respeito ao registro no Novo Testamento, o único que diz: "Coragem!" ou: "Tenha bom ânimo!" é Jesus com uma única exceção. Além de 9.2, ver o versículo 22; 14.27; Marcos 6.50; 10.49 (a única exceção);398 João 16.33; Atos 23.11. E a razão para o ânimo? Ei-la: "Seus pecados estão perdoados." São apagados, completamente e para sempre.399 Para essa reconfortante verdade, ver também Salmo 103.12; Is 1.18; 55.6,7; Jr 31.34; Mq7.19; Uo 1.9. Parece completamente justificada a inferência de que o que mais preocupava o paralítico não era a paralisia de seu corpo, e, sim, o perigoso estado de sua alma. Daí, antes mesmo de fazer qualquer outro pronunciamento, Jesus o absolve de sua culpa. Justifica-se também a conclusão adicional, ou seja, que no caso desse homem o pecado e a doença jungiam um ao outro na relação de causa e efeito, no sentido em que uma vida dissoluta lhe havia acarretado essa enfermidade? Que havia tal relacionamento, geralmente se pressupõe. Não obstante, não há nada no texto ™ E mesmo este não deve necessariamente ser considerado como exceção, pois é ántc a reação dos amigos à ordem de Cristo que o cego é chamado. E quase como se Jesus, pelos lábios desses amigos, estivesse dizendo ao cego: "Tenha bom ânimo!" 3m A. T. Robertson. Word Pictures. p. 71. chama o presente passivo do indicativo àijúevrai (o texto preferido) um "presente aorístico". Que ele é uma espécie de passado-presente, significando "ter tido, e portanto estão neste exato momento, e permanecem perdoados", o que pareceria depreender-se do uso do perfeito passivo indicativo àc()éa)i'Tai, na passagem paralela. Lucas 5.20.
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ou no contexto que o comprove. Tudo o que sabemos é que o doente era um paralítico profundamente preocupado com seu pecado. Que esse pecado resultara em sua doença não se declara e provavelmente nem mesmo seja subentendido. Ver também Lucas 13.1-5; João 9.1-3.400 E prossegue: 3. Nisso alguns dos escribas disseram consigo mesmos: "Esse homem blasfema." "Quem pode perdoar pecados senão exclusivamente Deus?'" Arrazoavam (Mc 2.7; Lc 5.21). Unicamente ele sabe o que vai no coração humano, se está ou não verdadeiramente arrependido. Basicamente, pois, nenhum outro tem o direito nem o poder de conceder absolvição. Os escribas estavam certos em considerar a remissão de pecados como sendo da alçada de Deus (SI 103.12; Is 1.18; 43.25; 55.6,7; Jr 31.34; Mq 7.19). Seguramente, há um sentido em que nós também perdoamos, ou seja, quando sinceramente resolvemos não nos vingarmos, mas, ao contrário, amarmos a quem nos injuriava, promover seu bem-estar e jamais reviver o passado (Mt 6.12,15; 18.21; Lc 6.37; Ef4.32; Cl 3.13). Basicamente, porém, na forma descrita, é unicamente Deus quem perdoa. E é tão-somente ele quem pode remover a culpa e declarar que ela está de fato removido. Daí, como os escribas o entendem, Jesus, ao dizer ao paralítico: "Seus pecados estão perdoados", está reivindicando para si uma prerrogativa que pertence exclusivamente a Deus. Aqui, uma vez mais, os escribas estavam certos. Agora, porém, seu pensamento chega a uma bifurcação da estrada e tomam uma direção errada. Uma de duas coisas: ou a. Jesus, por implicação, é o que alega ser, isto é, Deus, ou b. blasfema, no sentido em que ele injustamente reivindica atributos e prerrogativas da Deidade. Os escribas optam por b. Eles não só cometem esse trágico erro, mas, como o contexto seguinte o indica, o aumentam raciocinando algo assim: "E muito fácil para ele dizer: 'Seus pecados estão perdoados', pois ninguém pode contradizê-lo, já que ninguém é capaz de ver o coração de seu próximo ou adentrar a sala do trono do 40
" Quanto a João 5.14, ver C.N.T. sobre essa passagem.
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Onipotente e perscrutar suas decisões judiciais quanto a quem é e a quem não é perdoado." Como o entendem o caso. pois, Jesus é tanto blasfemo quanto leviano. No que agora Jesus diz e faz, ele aniquila as falsidades e as conclusões deles: 4-6. Jesus, conhecendo-Ihes os pensamentos, disse: "Por que arrazoam mal em seus corações? Pois qual é mais fácil? dizer: 'Seus pecados estão perdoados', ou dizer: 'Levante-se e ande'? Mas para que saibam que o Filho do homem tem sobre a terra poder para perdoar pecados" (então disse ao paralítico): "Levante-se, tome seu leito e vá para casa." Ele conhecia os pensamentos deles (Jo 2.25; 21.17). Não fosse ele Deus, não teria como conhecê-los (SI 139). Ao argüir os escribas, ele os repreende ferinamente. As cogitações deles eram perversas, "porque" (elucidativo) falsamente o acusavam. Jesus procura saber por que agiam assim. Que examinem seus próprios corações. Não foi com o intuito de apanhá-lo em alguma falta que haviam vindo aqui hoje, com o propósito ulterior de destruí-lo (cf. 12.14; Mc 3.6)? Quanto ao que era mais fácil, dizer: "Seus pecados estão perdoados", ou dizer: "Levante-se....", não requer ambas as coisas em igual medida poder onipotente? Portanto, se Jesus pode fazer uma dessas coisas, não pode ele também executar a outra? E para soubessem que ele. o humilde, porém todo-glorioso, Filho do homem (ver sobre 8.20) tem o divino direito e poder sobre a terra - daí, antes que a porta da graça se feche (25.10) - de perdoar pecados ... aqui, parenteticamente, Mateus acrescenta: "então disse ao paralítico", sendo as seguintes palavras dirigidas a este: "Levante-se, tome seu leito e vá para casa." As primeiras duas ações indicadas na ordem dada por Jesus, são obviamente obedecidas no exato momento; a terceira (ir para casa) é retratada levando um pouco de tempo, procedendo passo la passo. 401
401
O original usa dois aoristos (eayepeei.ç, aor. pas. part.. tendo se levantado; e ãpov aor. impr. aet.. tome); então, wraye. s e g- pes. sing. pres. imperativo, vá ou vá indo.
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E prossegue: 7. E ele levantou-se e foi para casa. Por meio do poder e do amor de Jesus, uma cura completa se efetuou imediatamente, porque, em virtude da operação desses atributos, o homem creu que ele era capaz de fazer o que havia dito. E assim ele agiu com base nessa fé, foi curado e seguiu seu caminho, chegando por fim em casa. E assim, na esfera do visível, Jesus operou um milagre que simultaneamente comprovou que também no universo do invisível ele exercia seu divino poder e amor. Ele deu a esse homem um corpo saudável, mas também, e em primeiro lugar, uma alma saudável ("Seus pecados estão perdoados"). Refutou totalmente as acusações de seus inimigos. Além do mais, quanto à acusação de que era fácil para ele pronunciar absolvição, bem, de fato ele era capaz de fazê-lo, e realmente o fez, como o comprovou; mas quanto a ser fácil, não foi exatamente essa concessão de perdão que exigiu todo o sofrimento que suportou durante sua vida na terra, culminando no suor de sangue do Getsêmani, nos açoites de Gabatá e na cruz do Gólgota? E de igual modo, quanto à concessão de restauração física, 8.17 também não se aplica aqui? Ver sobre essa passagem. Os escribas reconheciam sua derrota? Pelo menos reconheceram que Jesus justificou sua reivindicação? Sobre isso Mateus guarda silêncio. E assim também Marcos e Lucas. A seqüência parece indicar que não reconheceram nada, e que se tornaram cada vez mais hostis (Mt 9.11,34; 12.2,14,24; Mc 2.16,24; 3.2,5; 3.22; 7.1ss.; Lc 5.30; 6.2,7,11). Quanto ao povo em geral, sua reação se acha assim descrita: 8. Ao ver as multidões tal coisa, encheram-se de medo, e glorificaram a Deus por conceder aos homens tal poder. De acordo com Mateus (no seu melhor texto), o povo "encheu-se de medo", ou "ficou pasmo"; Marcos traz "atônitos" ou "assombrados"; Lucas, "apoderados de perplexidade" ... e "cheios de medo". Todos relatam que o povo "glorificava a Deus". Mateus acrescenta: "por dar tal poder aos homens." Não podemos interpretar isso no sentido em que o povo em geral agora entendia que Jesus era 594
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divino num sentido exclusivo, e que eles, cheios do senso de sua própria pecaminosidade e indignidade, em sua presença, agora faziam o que em certa ocasião Pedro fez (Lc 5.8). A interpretação correta é provavelmente aquela que diz que atribuíam glória e honra a Deus porque, segundo viam, havia comunicado tal poder a um membro da raça humana, a mesma raça a que eles mesmos também pertenciam. É plausivelmente possível que temos aqui um eco das palavras que acabavam de ser pronunciadas por Jesus mesmo, ou seja: "Mas para que saibam que o Filho do homem tem poder, etc." Notar bem o termo "poder" (ou "autoridade") em ambos os casos; comparar também "Filho do homem" com "homens". Se isso é correto, então estavam equiparando "Filho do homem" com "homem" (como em Ezequiel), e ao fazê-lo, deixavam de perceber o sentido mais profundo do termo. Seguramente, por um momento, a glória de Jesus faiscou na consciência deles, mas eles captaram só um lampejo dela. Não conseguiram vê-lo como "o resplendor da glória de Deus e a própria imagem de sua substância" (Hb 1.3, A.R.V.). A Chamada de Mateus Em todos os três Evangelhos, a história da chamada de Mateus é relatada a seguir (Mt 9.9-13; Mc 2.13-17; e Lc 5.2732). Além do mais, de uma forma bastante geral se estabelece uma conexão de tempo e lugar entre a cura do paralítico e essa chamada. Ambas ocorreram obviamente em Cafarnaum e, como Mateus o lembra, os dois eventos seguiram um ao outro estreitamente quanto ao tempo, pois o autor diz: 9. Ao partir dali, viu Jesus um homem chamado Mateus sentado na coletoria, e disse-lhe: "Siga-me." Muito do material relativo a Mateus sua ocupação, local de residência, chamada para discipulado, qualificações, estilo, etc. - já foi apresentado; ver pp. 137-145, 336, 441-444. Segundo Marcos 2.13, foi nas cercanias litorâneas que Mateus recebeu seu chamado para ser um dos discípulos de Jesus. O futuro evangelista estava sentado na coletoria ou alfândega, lugar onde se arrecadava o imposto sobre o trânsito de mercadorias que passavam pela via internacional entre a Síria e o Egito. 595
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Disse Jesus a Mateus: "Siga-me." Ele levantou-se e o seguiu. E assim, sobriamente e sem atribuir-se a si mesmo qualquer crédito, o homem mais profundamente envolvido registra essa inesquecível experiência. Para mais detalhes, com ênfase na grandeza do sacrifício, devemos voltar ao Evangelho de Lucas, o qual nos informa que ao levantar-se para seguir Jesus, o publicano "deixou tudo". E quase certo que Mateus, que morava e trabalhava em Cafarnaum, o mesmo lugar escolhido por Jesus como seu quartel-general, tivera freqüentes contatos com o Mestre, e que quando veio o chamado ele já lhe havia entregue seu coração e à causa que ele representava. Não obstante, agora quando não só rompe completamente com seu passado profissional se une àquele que o chamou, declarando ao mundo inteiro que é a Jesus que ele se dedicou sem reserva, realiza um ato de devoção cujo caráter sacrificial não deve ser minimizado. De passagem, deve-se observar que, visto ser Mateus um funcionário subordinado, não o cobrador-mor, e certamente não aquele que pagava uma soma anual ao governo romano em troca do direito de cobrar impostos dos judeus, os negócios de cobrar as tarifas em Cafarnaum não se interromperam quando ele deixou tudo para seguir Jesus. Foi nessa ocasião que o homem a quem Marcos (2.14) e Lucas (5.27) chamam Levi (para uma explicação desse nome, ver Gn 29.34) recebeu e/ou adotou o nome de Mateus, que significa "dom de Jeová" (cf. Teodoro: "dom de Deus")? Se foi, Jesus mesmo poderia ter-lhe dado esse nome (cf. Mc 3.16; Jo 1.42). E também possível que desde o princípio esse que agora se juntou ao pequeno grupo de seguidores íntimos tivesse dois nomes. Nomes duplos eram comuns entre os judeus: Tomé era chamado Dídimo (Jo 11.16); e com toda probabilidade, Bartolomeu (Mt 10.3; Mc 3.18; Lc 6.14; e At 1.13) é Natanael (Jo 1.45-49; 21.2). A identidade de Levi e Mateus dificilmente poderá ser questionada, como imediatamente o comprova uma comparação dos três relatos sinóticos dessa chamada. Além do mais, Lucas chama Levi "um publicano" (5.27), e na lista dos 596
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Doze como registrada no que em nossas Bíblias é o primeiro Evangelho há menção de um "Mateus o publicano" (10.3). Em todas as listas dos Doze, o nome Mateus tem substituído Levi (Mt 10.2-4; Mc 3.14-19; Lc 6.13-16; At 1.13). Já foi realçado que um cobrador de impostos, experiente em escrever e guardar registros, e indispensavelmente versado em mais de uma língua, os serviços de Mateus seriam de muito valor para Jesus e para a causa do evangelho. Para o Mediador, esse homem era deveras um dom de Deus. Estava destinado a escrever e a preservar para seus contemporâneos e para a posteridade um registro das palavras e feitos de Cristo. Além do mais, recebemos a impressão da própria brevidade com que Mateus registra sua chamada, omitindo qualquer menção do quanto lhe custou, que ele era modesto e humilde. É possível que fosse ele um homem de poucas palavras faladas. Em parte alguma nos quatro Evangelhos é ele visto dizendo alguma coisa. Nesse aspecto, ele se associa a dois outros discípulos "obscuros": Tiago o Menor402 e Simão o Zelote. Pedro fala com muita freqüência (Mt 14.28; 15.15; 16.16,22; 17.4 etc.). André, às vezes (Mc 13.3; Jo 1.41; 6.8,9; 12.22). Assim também os irmãos Tiago (Mc 103539; Lc 9.54) e João (Lc 9.54; Jo 13.23-25). Da mesma forma Filipe (Jo 1.45; 12.22), Tomé (Jo 11.16; 14.5; 20.24-29) e Judas o Traidor (Mt 26.14-16,25; 27.3,4; Jo 12.4,5). Mesmo Natanael não é completamente silencioso (Jo 1.46-49), nem Judas o Maior (Jo 14.22). Dos lábios de Mateus, porém, jamais ouvimos uma palavra. De uma forma tanto mais brilhante, ele deixa sua luz brilhar neste Evangelho! Não obstante, imaginar Mateus como sendo simplesmente um escritor seria fazer-lhe injustiça. Vemos nele uma (diríamos rara?) combinação de capacidade de escrever e hospitalidade, em seu caso sendo ambas o produto de profunda espiritualidade. Mateus havia captado o espírito do Mestre. Ele sabia que era para buscar e salvar pecadores, incluindo certamente publicanos!, que Jesus viera habitar entre os homens. Portanto, como Lucas tlp
Quanto à idéia de que Mateus e Tiago o Menor eram irmãos, ver nota 113. p. 142.
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registra, porém Mateus modestamente se priva de dizer, foi esse mesmo publicano, agora discípulo, que "preparou um grande banquete para ele [isto é, para Jesus!], em sua [de Mateus] casa", banquete este no qual os amigos de Mateus, os publicanos, foram bem-vindos (Lc 5.29). Mateus simplesmente diz: 10. Uma vez em casa,101 enquanto Jesus se reclinava à mesa,404 o que sucede?405 Muitos cobradores e |outras] pessoas de baixa reputação se aproximaram e se reclinaram à mesa com e ele e seus discípulos. Esse pode ser considerado como um tipo de banquete de despedida, organizado por Mateus e em sua casa, em homenagem a Jesus, dando adeus à antiga vida e introduzindo-se à nova, e chamando a todos para tornarem-se seguidores do Senhor. Muitos "cobradores e pecadores" (literalmente) compareceram e se reclinaram à mesa com Jesus e com aqueles discípulos que nessa ocasião já haviam se convertido em seus permanentes seguidores. Os cobradores de impostos foram descritos anteriormente (ver sobre 5.46). As razões por que eram tidos em baixa estima, como sendo desonestos, avarentos e antipatriotas já foram examinadas. Entretanto, esses "publicanos" tinham companheiros. Ver João 7.49; cf. 9.24. "Publicanos e pecadores" tinham pelo menos isso em comum, ou seja, que nenhum deles prestava atenção às normas e regulamentos pelos quais os rabinos haviam substituído a lei de Deus. Nessas "tradições", os fariseus e escribas baseavam tudo. No entanto, é verdade que mesmo a própria lei de Deus era às vezes grosseiramente violada ou pelo menos desrespeitada pelos publicanos e seus amigos. A baixa reputação que granjearam aos olhos dos líderes religiosos den4
"' Com a maioria dos tradutores e comentaristas (mas contra Lenski. op. cil., p. 353), creio que o primeiro aiVroO (tanto quanto o último) no versículo 10 se refere a Jesus, para quem o aùxw precedente (em r)K0À0Ú9R|afi,' aíraô) também aponta. Isso proporciona uma fácil transição de pensamento: "como ele [Jesus| se reclinava à mesa, muitos .... se reclinaram à mesa com ele [Jesus|.... l'or que é que seu mestre está comendo com coletores e pecadores?" 404 Literalmente: "K aconteceu enquanto ele se reclinava à mesa que...." Ksle"e aconteceu" ou "sucedeu" é uma construção de ocorrência freqüente no hebraico ( wayTií) e seu equivalente na Septuaginta. 405 Sobre íôoú. ver nota 133, p. 188.'
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tre os judeus, e seus seguidores, era em parte injusta e em parte merecida. A questão principal é esta: Jesus veio libertá-los de seus pecados e desgraças. Mateus compreendeu isso. Os fariseus, não. Eram demasiadamente soberbos e justos aos próprios olhos para o compreender. Tomaram, porém, conhecimento do fato de que Jesus estava familiarmente associando-se com a "esses elementos pervertidos"': 11. Os fariseus, observando isso, interrogaram seus discípulos: "Por que seu mestre está comendo com cobradores de impostos e pecadores?" Com toda probabilidade foi quando o banquete havia terminado e os convidados se foram que os fariseus, sempre dispostos e ávidos a encontrar falhas em Jesus (12.2,24; 15.1; 19.3, etc.), mas às vezes lhes faltando coragem de criticá-lo frontalmente, descarregavam sua amargura nos discípulos que haviam escolhido tal pessoa para ser seu mestre. O objetivo real e final de seu desgosto era, naturalmente, o próprio Jesus. As palavras: "Por que é que seu mestre..." são saturadas de ferina reprovação, como se dissessem: "Que vergonha aceitar um homem como esse como seu mestre!" Havia mérito nessa acusação tão fracamente dissimulada, acusação esta na forma de uma pergunta? Não é verdade que comer com uma pessoa implica amizade e comunhão? Ver sobre 8.11. Como, pois, seria possível que Jesus se reclinasse à mesa na companhia de pessoas de tão vil posição? O que os fariseus, em decorrência de seus corações legalistas e sem compaixão, não conseguiam entender que há tempos e ocasiões quando tal comunhão é inteiramente própria e justificada. Jesus, por meio dessa estreita associação, está satisfazendo uma necessidade, como ele mesmo passa a declarar: 12. Ao ouvir isso, ele lhes disse: "Não são os sadios que necessitam de médico, e, sim, os que são doentes." A censura dos fariseus e o resultante constrangimento dos discípulos foram devidamente notados por Jesus. Ele mesmo, por meio de uma expressão que bem poderia ter sido um provérbio corrente, lhes replica com uma resposta irrespondível. Ao associar-se em termos íntimos com pessoas de baixa reputa599
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ção, ele não o faz eomo companheiro de beberrões, ou camarada na maldade, "cada ovelha com sua parelha", mas como médico que, sem de forma alguma contaminar-se com as doenças de seus pacientes, deve chegar-se para bem perto deles afim de poder curá-lo,s\ Além do mais, é precisamente os fariseus que deveriam entender isso. Não são eles as mesmas pessoas que põem sua confiança em sua própria justiça enquanto desprezam todos os demais (Lc 18.9)? Se, pois, aos olhos dos fariseus, os publicanos e pecadores são por demais enfermos, não deveriam curá-los? O ofício do médico é curar o sadio ou o doente? O doente, com certeza. Vemos, pois, que é com base no próprio raciocínio deles que Jesus se põe a condenar a atitude dos fariseus e a justificar a sua própria. Implicação: seria o caso de os fariseus estarem negligenciando seu dever? Esses críticos capciosos estão estendendo a mão aos carentes de cura e compaixão? Então entendemos a razão por que Jesus prossegue: 13. Vão e aprendam o que significa: Eu quero misericórdia, não sacrifício. Aqui, como uma vez antes (ver sobre 2.15), temos uma citação das profecias de Oséias. Dessa vez, contudo, é Jesus mesmo quem faz a citação, não o evangelista. Os antecedentes e esboço desse livro do Antigo Testamento já foram apresentados em conexão com a citação anterior. Entre os pecados cometidos pela nação adúltera estavam, além das transgressões contra a primeira tábua da lei (Os 6.7; 7.10,11,14; 8.1-7,14 etc.), abominações tais como latrocínio e homicídio (6.9; 7.1,7). E facilmente compreensível que, em tal contexto de iniqüidade, oferecer sacrifícios equivalia a completa zombaria. O que Deus queria era a manifestação de "benevolência" em relação a Deus e ao homem,406 antes que meramente de holocaustos. Eis a essência da 4I
"' Como a construção paralelíslica o indica, o hesedh de Oséias 6.6 se refere não só ao amor para com o próximo, mas também o "conhecimento" de - daí. pacto de comunhão com - Deus. Aqui em Mateus 9.13. a ênfase em IXtoç é obviamente posta sobre o primeiro: bondade estendida mesmo a publicanos e pecadores.
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mensagem de Oséias (6.6) citada aqui em Mateus 9.12. Quando, sem uma genuína mudança de coração e conduta, sacrifícios eram oferecidos, tal ato equivalia a ritualismo morto, abominável ao Senhor (8.13,14). "Religião" sem bondade ou misericórdia é sem valor. Jesus diz aos fariseus que fossem e aprendessem essa lição, ou seja, refletir sobre ela e vivê-la. Que ponderem e apliquem a si mesmos a lição ensinada em Oséias 6.6; Amós 5.21-24; Miquéias 6.8; cf. Mateus 23.23-26. Uma religião que dizima a hortelã, o endro e o cominho, porém negligencia as coisas mais importantes da lei: justiça, misericórdia e fidelidade, outra coisa não é senão uma triste distorção da religião genuína. A essa citação de Oséias Jesus acrescenta: Porque não vim chamar justos, e, sim, pecadores. Substancialmente, essa é a redação também em Marcos e Lucas, ainda que "porque" se encontra somente em Mateus, e Lucas conclui a frase com "ao arrependimento". A este "porque" se pode chamar "explicativo" ou "continuativo". No presente contexto, ele significa mais ou menos isto: "Em consonância com este fato: como médico, vim atender às necessidades e demonstrar misericórdia, um tipo de misericórdia que vocês, fariseus, deviam também demonstrar; o fato é que eu não vim chamar justos, e, sim, pecadores." O fato de o chamado ser "ao arrependimento", ainda que expresso somente por Lucas, se acha também implícito em Mateus e Marcos (ver Mt 3.2; 4.17; Mc 1.4,15). O chamado ao qual se faz referência nessas passagens do Evangelho (Mt 5.13; Mc 2.17; Lc 5.32) é o solícito convite estendido aos pecadores a que aceitem a Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador. Que esse chamado nem sempre é eficaz, deduz-se de Mateus 22.14: "Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos." Nas epístolas, por outro lado, o chamado é aquele ato do Espírito Santo por meio do qual ele salvificamente aplica o convite do evangelho a certos indivíduos específicos entre todos aqueles a quem, no decurso da História, esse convite se estende (Rm 4.17; 8.30; 9.11,24; G11.6,15; Ef 1.18; 4.1,4; 601
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Fp 3.14; lTs 2.12; 4.7; 2Ts 1.11; 2Tm 1.9). Significa que o caminho da salvação proclamado nos Evangelhos difere daquele apresentado nas epístolas, de modo que, por exemplo, naqueles a salvação enfim depende da vontade do homem, e que nestas depende da graça de Deus? De modo algum. A diferença é apenas uma questão de terminologia. A doutrina é a mesma em ambos. Segundo os Evangelhos, também é só pela graça e pelo poder de Deus que os pecadores são capacitados a aceitar o convite e com ele a salvação que lhes é oferecida por Deus, como se deduz de Mateus 7.7; 19.25,26; Lucas 11.13; 12.32; 22.31.32; João 3.3,5; 6.44; 12.32; 15.5. Compare tudo isso com Tiago 1.17,18; ICo 4.7; Ef 2.8; Fp 2.12,13; 2Ts 2.13,14. Aqui em Mateus 9.13, o glorioso propósito da encarnação e missão de Cristo recebe bela expressão. A passagem evidencia que não são os que se consideram dignos, mas, antes, os que se encontram em desesperadora necessidade é que é estendido o convite da salvação, pleno e gratuito. Jesus veio para salvar os pecadores, perdidos, extraviados, miseráveis, sobrecarregados, famintos, sedentos. Ver também Mateus 5.6; 11.28-30; 22.9,10; Lucas 14.21-23; cap. 15; 19.10; João 7.37,38. Isso está em consonância com toda a revelação especial, do Antigo e do Novo Testamentos (Is 1.18; 45.22; 55.1,6,7; Jr 35.15; Ez 18.23; 33.11; Os 6.1; 11.8; Rm 8.23,24; 2Co 5.20; 1 Tm 1.15; Ap 3.20; 22.17). É uma mensagem transbordando de conforto e "relevante" para todos os tempos! A Pergunta a Respeito do Jejum É mantido por alguns407 que o incidente reportado aqui em 9.14-17 (cf. Mc 2.18-22; Lc 5.33-39) ocorreu numa conexão cronológica muito próxima daquele que acaba de ser considerado (Mt 9.9-13). Essa opinião é baseada não tanto na palavra "então" ou "a seguir" no início de Mateus 9.14 - essa palavra é 407
Por exemplo, por A. T. Robertson, Harmony of the Gospels. Nova York. 1922. nota na p. 40; também por H. N. Ridderbos, Lenski e Grosheide em seus respectivos comentários sobre essa passagem de Mateus.
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muito indefinida, e pode significar tanto "naqueles dias" como "naquele mesmo momento" ou "logo depois" - como na passagem paralela em Marcos 2.18: "Ora, os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando, e vieram e lhe disseram: 'Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam [ou: Por que estão ....jejuando], mas seus discípulos não jejuam [ou: não estão jejuando]?'" Quando se aceita essa estreita conexão temporal entre os dois incidentes, o caráter dramático do relato é realçado: no preciso momento em que Jesus, seus discípulos e muitos publicanos estão festejando em casa de Mateus, os discípulos de João Batista e os fariseus com seus seguidores estão jejuando, com o imediato resultado: a pergunta de Mateus 9.14. Todavia, de modo algum é verdade que essa exegese encontrou o apoio de todos os comentaristas. Mesmo entre os que a favorecem, são comuns as reservas em declarar essa posição. Muitos intérpretes nem mesmo chegam a tocar na questão.408 O simples fato é que nenhum dos evangelistas definidamente indica quando se deu esse questionamento sobre o jejum. 409 Além disso, os que não obstante aceitam a concorrência cronológica do banquete e a inquirição sobre o jejum podem incorrer em dificuldades quando chegarem em Mateus 9.18. Ver sobre esse versículo; especialmente nota 413 na p. 607. Ainda, porém, que possivelmente não houvesse uma estreita conexão cronológica entre os dois eventos, ainda assim é possível haver uma relação lógica. Conviver com publicanos e pecadores, e isso em mais de uma ocasião (11.19; Lc 7.34; 15.1,2; cf. 19.1-10), enquanto os discípulos de João e os fariseus se abstinham de tais convivências, e ainda praticar certa medida de aus4ox y e r os comentários sobre Mateus 9.14 por W. C. Allen (I.C.C.), A. B. Bruce (Expositor's Greek Testament), João Calvino, C. R. Erdman, S. E. Johnson (Interpreter's Bible) c R. V. G. Tasker (Tyndale New Testament Commentaries). 4m O perfeito perifrástico rjoav vr|0Tei)0i'xcç (Mc 2.18) não decide o problema em nenhuma direção. Descreve ou retrata, mas não indica necessariamente que o que se está descrevendo coincidia no tempo com o evento relatado no parágrafo precedente. É simplesmente um fato que no Evangelho de Marcos, 2.19-22 é uma dessas seções que carece de qualquer referência especifica a tempo ou a ordem cronológica. Ver também N. B. Stonehouse. Origins of the Synoptic Gospels, p. 66.
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teridade, mais cedo ou mais tarde acabaria conduzindo ao que se acha reportado no versículo 14. Então os discípulos de João vieram a ele, dizendo: "Por que é que nós e os fariseus jejuamos com freqüência,410 seus discípulos, porém, não jejuam?" E evidente à luz dessa pergunta que mesmo depois da prisão de João (ver sobre 4.12), alguns de seus discípulos continuaram como um grupo distinto. Diante de João 3.25,26, isso não surpreende muito. Deduz-se de João 3.30 que aquele que fora seu líder não estimulara esse movimento separatista e não teria tolerado que rebentos dos "discípulos de João Batista" persistissem ao longo de séculos. Encorajados, talvez, pelo fato de que, a despeito do testemunho que João Batista deu de Jesus como o Cristo (Mt 3.11; Jo 1.29-36), e as muitas coisas que Jesus e João tinham em comum, havia também algumas diferenças acentuadas (Mt 11.18,19), esses "discípulos de João" querem saber por que é que, enquanto eles e os fariseus jejuavam com freqüência, os discípulos de Jesus não jejuavam. Em favor desses inquiridores deve-se dizer que eles não desconsideram Jesus, mas aproximam-se dele direta e francamente (contraste os fariseus, v. 11), e também que sua pergunta, embora talvez não inteiramente isenta de certo matiz de crítica, provavelmente fosse mais uma busca de informação do que uma acusação velada, porém amarga. Não obstante, na realidade não havia j ustificativa para essa indagação. Fossem esses homens melhores estudantes das Escrituras, e teriam conhecido a. que o único jejum que, por algum esforço da imaginação, podia-se derivar da lei de Deus era aquele vinculado ao dia da expiação (Lv 23.27), e b. que, segundo o ensino de Isaías 58.6,7 e Zacarias 7.1-10, o que Deus exigia não era um jejum literal, mas amor, tanto vertical quanto horizontal. Havia uma razão importante por que, para os discípulos de Jesus, seria impróprio o tipo de jejum em questão: 15. Disse4I
" Se adotarmos o texto iroÀÂ.Á ou TTUKVCÍ, a tradução "com freqüência" É permissível em ambos os casos. Ver L.N.T. (A. e G.), pp. 695 e 736. Há também forte apoio para a tradução que omite totalmente o advérbio. Ver o aparato textual N.N.
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lhes Jesus: "É possível que os assistentes do noivo estejam de luto enquanto o noivo está com eles? A pergunta é construída de tal forma que a resposta equivale a "Não". Jesus, aqui, compara sua bendita presença na terra com uma festa de núpcias. Reiteradamente as Escrituras comparam a relação entre Deus e seu povo, ou entre Cristo e sua igreja, com o laço de amor entre o noivo e a noiva (Is 50.1ss.; 54.1ss.; 62.5; Jr 2.32; 31.32; Os 2.1ss.; Mt 25.1 segs.; Jo 3.29; 2Co 11.2; Ef 5.32; Ap 19.7; 21.9). 4 " O versículo 15 fala sobre "os filhos dos aposentos nupciais" (assim literalmente), significando "os assistentes do noivo". Estes eram amigos do noivo. Permaneciam junto a ele. Haviam sido convidados para as núpcias, tinham o encargo dos arranjos e se esperava que fizessem todo o possível para promover o êxito dos festejos.412 "E como se Jesus dissesse: Os assistentes do noivo jejuando enquanto a festa está em andamento! Que absurdo!". Os discípulos do Senhor de luto enquanto seu Mestre está realizando obras de misericórdia e enquanto palavras de vida e beleza gotejam de seus lábios: que coisa mais estapafúrdia! Contudo, Jesus acrescenta: Dias virão, porém, quando o noivo lhes será tirado. Então jejuarão. Esta, naturalmente, é uma predição antecipada da morte de Cristo na cruz. Que o luto em conexão com ela não seria de longa duração se acha realçado em João 16.16-22. Por meio da ressurreição de Cristo, o luto seria substituído pela alegria. Por meio de duas ilustrações extraídas do cotidiano, Jesus evidencia quão impróprio seria que os discípulos agora jejuassem, como se, com a vinda de Cristo, houvera descido sobre eles uma terrível calamidade. A lição primordial comunicada consiste em que a nova ordem de coisas introduzida por Jesus, em sua vinda, trouxe cura aos enfermos, libertação aos endemoni411
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Para um consideração mais detalhada desse relacionamento, ver meu livro Mais Que Vencedores, Editora Cultura Cristã. Ia edição, 1987, São Paulo, SP. Esses "assistentes do noivo" não devem ser confundidos com "o amigo do noivo" (Jo 3.29), cujo dever era conduzir o noivo até à presença da noiva e que se alegra quando ouve a voz do noivo dando as boas-vindas à noiva.
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nhados, liberdade das preocupações aos angustiados, purificação aos leprosos, alimentação aos famintos, restauração aos inválidos e, acima de tudo, salvação aos perdidos em pecado; e isso não se coaduna com os antigos moldes do jejum instituídos pelo homem. Eis a primeira figura: 16. Ninguém põe um remendo, feito de um pedaço de tecido novo, numa roupa velha, pois assim o remendo sairia da roupa, e a ruptura ficaria maior. Se se põe um remendo de lã, não-encolhido, numa roupa que já viu melhores dias, o resultado será que, quando essa peça não-encolhida se molha e encolhe, rasgará as bordas da costura. O remendo que deveria consertar a ruptura original, agora produz uma ruptura ainda maior. A segunda figura confirma a primeira: 17. Nem se põe vinho novo em odres velhos, do contrário os odres se rompem, o vinho se derrama e os odres ficam imprestáveis. O odre era geralmente feito da pele de cabra ou de ovelha. Após ser removida do animal, era curtida, e depois que os pelos eram cortados, a pele era virada de dentro para fora. A abertura do pescoço se transformava na boca da "garrafa". As demais aberturas, nos pés e na cauda, eram fechadas com cordas. Naturalmente, um odre velho não servia para vinho novo, que ainda está em processo de fermentação, porque tal vinho tende a esticar o recipiente. Um odre novo é suficientemente elástico para resistir à pressão, mas em condições semelhantes um odre velho, seco e rígido, se romperia. O vinho se derramaria e o odre para nada mais serviria. E prossegue: vinho novo, porém, se põe em odres novos, e ambos se conservam. Dificilmente se poderá considerar correto que, enquanto o vinho novo representa a salvação pela graça, os odres velhos simbolizam a salvação pelas obras da lei. O que Jesus ensinou com referência à lei encontra-se em passagens como 5.17-20 e 22.34-40. Não era a lei de Deus como tal que se considera aqui, porque, como afirmou-se previamente, o jejum freqüente era uma instituição puramente humana. O que Jesus quis demonstrar é que a salvação que ele trouxe não estava em sintonia com jejuns dos quais a nota de alegria se achava completamente ex606
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cluída, e que isso era especialmente verdadeiro no tocante a seus discípulos, os homens que se mantinham no mais íntimo relacionamento com ele. O vinho novo do resgate e das riquezas para quantos estavam dispostos a aceitar essas bênçãos, mesmo para publicanos e pecadores, deve ser derramado nos novos odres da gratidão, da liberdade e do serviço espontâneo para a glória de Deus. A Restauração à Vida da Filha do Administrador e A Cura da Mulher Que Tocou o Manto de Cristo 18. Enquanto ainda lhes dizia essas coisas.... Havendo explicado que o incidente que se acha relatado nos versículos 14-17, pertencia a um tempo mais distante do que mais próximo do Sermão do Monte, não encontramos dificuldade com esta nota cronológica no início do versículo 18.413 O significado óbvio é que, enquanto Jesus estava ainda respondendo a pergunta referente ao jejum, eis414 que chegou um4'5 administrador, pôsse de joelho diante dele e disse: "Minha filha acaba de falecer; mas venha, imponha-lhe sua mão, e ela viverá." 413
'lanto Marcos quanto Lucas deixam a impressão de que os dois milagres entrelaçados entre si, a serem estudados, ocorreram depois da pregação do Sermão do Monte e da vocação c do comissionamento dos Doze (cf. Mc 5.21-43 com 3.13ss: e cf. Lc 8.40-56 com 6.12ss.). Os que aceitam esse ponto de vista, mas atribuem uma data anterior à pergunta sobre o jejum se metem em dificuldade, porque Mateus 9.18. cronologicamente, liga os versículos 14-17 com os versículos 1826. Que o leitor julgue se suas tentativas de solucionar esse quebra-cabeça lograrão êxito. Lm minha opinião, não terão. F. W. Grosheide se esquiva do problema da seqüência, traduzindo assim o versículo 18a: "Uma vez, enquanto estava ensinando tais coisas."' Ver seu Kommentaar op hei Nieuwe Testamenl, p. 115. A. T. Robertson, em sua Harmony, p. 74, numa nota de rodapé, observa: "Broadus sentiu que a linguagem de Mateus 9.18 o compelia a colocar 9.18 depois de 9.17. Eu [Robertson] não penso assim, pois 'enquanto ele falava" pode ser simplesmente uma frase introdutória para um novo parágrafo." Ilustração notável do que pode ocorrer quando alguém se recusa a chegar a uma decisão com respeito à posterioridade ou a anterioridade da pergunta acerca do jejum é fornecida pela Versão Berkeley, a qual atribui duas datas diferentes para o que é claramente o mesmo incidente. Sobre Mateus 9.14ss., coloca a data "outono. 28 d.C." e sobre seu paralelo, Marcos 2.18ss., a data "abril-maio. 28 d.C."
414
Para lõoú, verp. 188, inclusive nota 133. dç usado indefinidamente. Ver Gram. N.T., p. 292.
41:1
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A sinagoga era governada por uma junta de anciãos. Uma de suas responsabilidades era manter a boa ordem nas reuniões da sinagoga. O homem que se aproximou de Jesus, e a quem Mateus não menciona pelo nome, mas a quem Marcos e Lucas chamam Jairo, era membro dessa junta. Visto que provavelmente ele morasse em Cafarnaum, podemos presumir que possivelmente haja ouvido falar de Jesus e talvez até mesmo testemunhado alguns dos milagres realizados por ele. O relato que Mateus faz do duplo milagre é muito breve, nove versículos; o de Lucas ocupa dezessete versículos; o de Marcos, 23. Talvez estejamos certos em interpretar o comportamento do administrar (como reportado por Mateus; cf. Mc 5.21 ss. e Lc 8.40ss.) como uma expressão de elevado respeito por Jesus ("aproximou-se e pôs-se de joelhos diante dele"), de intensa angústia ("mas vem") e de profunda fé ("estende sua mão sobre ela, e ela viverá"). De acordo com Marcos e Lucas, Jairo pediu antes que Jesus curasse sua filha; a seguir, ao ser informado sobre a morte dela, foi persuadido pelo Senhor a não desesperar-se, mas que cresse. Portanto, agora, renova seu pedido de forma modificada, ou seja, que Jesus estendesse sua mão sobre a menina morta, acrescentando: "e ela viverá." Tal convicção por parte do administrador é muito mais notável à vista do fato de que os Evangelhos não relatam nenhum milagre de restauração à vida realizado por Jesus, antes desse tempo. Quanto a "estende sua mão sobre ela", ver sobre 8.3. E prossegue: 19. Prontamente Jesus se pôs a segui-lo, e também seus discípulos. A tradução: "Jesus levantou-se e o seguiu", ainda que corresponda ao significado básico do particípio usado no original,416 é confusa. Pode sugerir que o Senhor estava, ou ainda reclinado à mesa em casa de Mateus, quando o entristecido pai da menina morta lhe pediu que fosse com ele, ou que estivesse sentado ao lado da estrada. A vista do contexto antecedente em Mateus, e dos relatos nos outros Evangelhos, ambas essas idéias parecem estar dentro do âmbito do provável. 4
"' èyfpeetç: tendo se levantado.
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Uma interpretação muito mais razoável é que ante a solicitação do administrador, Jesus tenha entrado em ação imediatamente. Compare expressões coloquiais tais como: "Ele ergueu-se e casou-se'", "levantou-se e comprou". Essa expressão de "movimento" descreve ação abrupta. E esse é o caso aqui. Sem qualquer delonga, Jesus, por assim dizer, apressou seus passos em seguir o administrador até a casa deste. Assim também procederam os discípulos de Cristo. Cf. Marcos 5.31. À luz de Lucas 8.51, aprendemos que dentre o número total desses discípulos, Jesus permitiu que somente Pedro, Tiago e João ficassem com ele quando realizou seu espantoso milagre. Cf. Marcos 5.37. Repentinamente se dá uma interrupção: 20,21. Imediatamente417 uma mulher que havia doze anos sofria de hemorragia, chegou por trás e tocou-lhe a borla do manto; pois dizia consigo mesma: "Se apenas tocar-lhe o manto, sararei." Ao longo de seu ministério terreno, Jesus foi repetidas vezes interrompido, a saber: falando a uma multidão (Mc 2.1 ss.), conversando com seus discípulos (Mt ló.lss.; 26.3 lss.; Lc 12.12ss.), viajando (Mt 20.29ss.), dormindo (Mt 8.24,25) e orando (Mc 1.35ss.). O fato de que nenhuma dessas interrupções o tenha deixado embatucado, de modo que, por um instante, se visse desnorteado sem saber o que fazer ou o que dizer, revela que estamos tratando aqui com o Filho do homem, que é também o Filho de Deus! O que nós chamaríamos uma "interrupção", para ele é um trampolim ou ponto de lançamento para pronunciar um grande dito ou, como aqui, para a realização de um portentoso feito, revelando seu poder, sabedoria e amor. O que para nós teria sido uma dolorosa exigência, para ele é uma oportunidade de ouro. Um sermão baseado no relato de Marcos ou de Lucas sobre o tema "a mulher que tocou a borla do manto de Cristo" poderia ter os seguintes pontos: Sua Fé Ocultada (Mc 5.25-28; Lc 8.43,44 a), Recompensada (Mc 5.29; Lc 8.44b) e Revelada (Mc 5.30-34; 8.45-48). Mas, como já ficou indicado, o relato de 417
Para Lôoú. ver nota 133 na p. 188.
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Mateus não contém todo esse material. Ele é por demais breve. Dá-se-nos a entender que essa mulher estava em profunda angústia. Não é de se admirar, pois ela havia sofrido de hemorragia ao longo de doze anos. Há quem creia que o fraseado do versículo 20, especialmente à luz de Marcos 5.29 e Lucas 8.44, revela que o fluxo de sangue era constante, isto é, sem nenhuma pausa. Outro ponto de vista é que ao longo de doze anos uma excessiva perda de sangue, que ocorria periodicamente, impossibilitava-lhe de sentir-se forte e saudável, e que nesse momento particular ela estava sendo acometida por uma dessas hemorragias. Marcos relata que essa mulher "tinha sofrido bastante às mãos de muitos médicos, e despendido tudo quanto possuía sem nada aproveitar, antes indo a pior". Sem de forma alguma contradizer Marcos, certamente não causa surpresa que Lucas dr. Lucas, lembremo-nos! (Cl 4.14) - nos informa que ela "por ninguém pudera ser curada", por nenhum médico. Os médicos não a curaram, pois, humanamente falando, sua enfermidade era incurável! Se o fluxo de sangue era constante ou não, sua condição agora era tal que a fazia cerimonialmente imunda e semelhantemente afetava a qualquer um que tocasse (Lv 15.19ss.). Não nos surpreende, pois, que ela se sentisse receosa de mostrar-se abertamente. Não se atreverá a ter contato físico com o próprio Jesus. Simplesmente tocará sua túnica, e ainda assim, somente uma das quatro borlas de lã que todo israelita era obrigado a usar nas pontas de seu manto externo quadrado (Nm 15.38; cf. Dt 22.12) para lembrá-lo da lei de Deus. Ver também a explicação de Mateus 23.5.418 Naturalmente, a forma mais fácil e rápida de pôr-se em contato com um manto sem ser notado era vindo por trás e tocando a borla que se balançava livremente na parte posterior do manto. Seu usuário, assim ponderou a mulher, nem mesmo notaria o que estava ocorrendo.419 E então, ela veio por trás e tocou na borla. 418 4I
Cf. S.BK. IV, p. 277. '' Sobre essa passagem, ver A. Schlatter, Erlàuteningen zum Neuen Testamen. Stuttgart, 1908.
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A grandeza de sua fé consistia nisto: que ela cria que o poder de Cristo para curar era tão portentoso que o mero toque de seu manto420 resultaria numa cura imediata e instantânea. Que essa fé não era, não obstante, de forma alguma perfeita, deduzse do fato de que ela imaginava que necessitava-se de um toque literal, e que Jesus jamais notaria. Mas ele o notou, a elogiou por sua fé, a encorajou e a curou: 22. Jesus, porém, voltou-se, viu-a, e disse: "Coragem, filha; sua fé lhe trouxe saúde." Imediatamente a mulher recobrou a saúde. Portanto, afinal das contas, ela não escapou à observação de Cristo (quanto ao conhecimento de Cristo, veja supra, sobre o v. 4; cf. Jo 1.48; 2.25; 21.17). Jesus agora se volta e se dirige a ela. Afetuosamente a chama de "filha", e lhe diz que tivesse "coragem" (ver sobre 9.2,3). Ao acrescentar: "sua fé lhe trouxe saúde", é possível detectarmos um duplo propósito: a. recompensá-la por sua convicção de que ele a curaria instantânea e completamente; b. realçar que foi sua resposta pessoal à fé pessoal nele o que a curou, removendo desse modo da mente dela qualquer resquício, por menor que fosse, de superstição, como se o manto, como tal, tivesse contribuído de alguma forma para a cura; e c. abrir-lhe caminho para sua completa reintegração à vida e comunhão sociais e religiosas de seu povo. A restauração foi instantânea. No mesmo instante a hemorragia estancou-se completamente. A saúde e o vigor vieram despontando em cada parte de seu corpo. Marcos e Lucas registram que, ao induzi-la a dar seu testemunho público, Jesus fazia provisão também para sua alma. No processo de testemunhar, não era ela também uma bênção para outras pessoas'? Terminada a interrupção, Jesus prossegue seu caminho para a casa do administrador. As costumeiras cerimônias de lamentação então prevalecentes estavam em pleno andamento: 23, 24. E quando Jesus chegou à casa daquele líder, e viu os tocado42,1
Ao tocar a borla, ela estava, naturalmente, tocando o roupa. Marcos 5.27.28 nem mesmo menciona a borla, somente o manto.
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res de flauta e a multidão agitada, disse: Retirem-se... Tanto Mateus quanto Marcos descrevem a ruidosa, clamorosa e desordeira multidão na casa do administrador. Como, segundo o costume, o sepultamento se fazia logo após a morte, essa era a única oportunidade da multidão, e de todos, especialmente dos pranteadores profissionais (cf. Jr 9.17,18), de tirarem o máximo proveito dela, talvez ainda mais pelo fato de o administrador da sinagoga ser um homem importante! Havia, pois, lamentos e gemidos no mais alto som. Mateus faz menção de "tocadores de flauta". Visto que as flautas eram muito fáceis de se fazer, e podiam ser construídas de uma variedade de materiais - juncos, canas, ossos, etc. - elas eram muito populares. Segundo os quadros da antigüidade o revelam, tais flautistas eram amiúde acompanhados de palmas. No Novo Testamento, a expressão "tocador de flauta", ocorre somente aqui e em Apocalipse 18.22, nessa passagem em conexão com folia. Jesus, compreendendo a. que boa parte dessa ostentosa exibição de tristeza era insincera e, portanto, imprópria, e b. que nesse caso específico a morte não estava no comando, ordenou que os barulhentos deixassem a sala onde jazia a menina morta. E acrescentou: pois a menina não está morta, mas dorme. Os que o ouviram dizer isso, entenderam-no em sentido literal, como se Jesus quisesse dizer que a alma e o corpo realmente não se haviam separado. Ainda hoje há intérpretes que admitem a possibilidade de que a filha do administrador estivesse simplesmente em coma.421 João 11.11-14, porém, fornece um notável paralelo. Quando Jesus falou aos discípulos: "Nosso amigo Lázaro adormeceu", os discípulos interpretaram esse dito literalmente. Deveriam ter prestado mais atenção no que o Senhor lhes havia dito um pouco antes: "Essa doença não é para mor421
Assim, por exemplo. R. V. G. Tasker, op. cit., p. 100. afirma que a menina possivelmente estivesse em coma profundo, e que seus pais o tivessem confundido com a morte. É justo acrescentar que ele também apresenta razões em apoio do ponto de vista contrário, ou seja. que a menina havia realmente morrido.
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te...", ou seja, "A morte não terá vitória final sobre essa doença". Reiteradamente o Novo Testamento expõe como erro a tendência de interpretar-se cada palavra de Cristo literalmente (Jo 2.20,21; 3.3,4; 4.14,15,32,33; 6.51,52; 7.34,35; 8.51,52; 11.11,12,23,24; 14.4,5). Assim também aqui em Mateus 9.24, o que Jesus diz não deve ser interpretado literalmente, mas significa que a morte não teria a palavra final. Mateus registra a reação da multidão como segue: Mas eles riram em sua face. O grego literalmente diz: "listavam rindo para rebaixá-lo." A referência provavelmente seja a repetidas explosões de risos com o intuito de humilhá-lo.422 Tudo indica que esses pranteadores eram dotados com o dúbio dom de mudar repentinamente (automaticamente?) do mais sombrio pranto para a mais estrondosa hilaridade. 25. Quando a multidão retirou-se, ele entrou e a tomou pela mão, e a menina levantou-se. Jesus entrou no quarto onde jazia o corpo. Os barulhentos haviam sido expulsos. Além do próprio Senhor e da menina morta, se achavam presentes os pais da menina e, como já foi indicado, Pedro, Tiago e João. O espantoso acontecimento é relatado em linguagem simples. Com a exceção da própria ressurreição de Jesus (28.6) e daqueles que ressuscitaram em conexão com sua morte e ressurreição (27.52, 53), esse é o único caso de trazer alguém da morte à vida que Mateus registrou. O administrador pediu que Jesus estendesse a mão sobre a menina (v. 18). O Senhor faz melhor ainda: com autoridade, poder e ternura ele toma a menina pela mão. Segundo Marcos, ao fazer isso ele diz: "Talitha cume" ("Menininha, levante-se", 1J2
Creio que essa descrição justifica tanto o tempo imperfeito, o sentido do verbo não composto (ver Lc 6.21). quanto o sentido do prefixo. Uma forma verbal composta um tanto semelhante ocorre eni alemão: "Sie lachten ihn aus", em holandês: "Zij lachten hem uit" (riram dele até dizer chega). É difícil, talvez mesmo impossível, achar um termo inglês que transmita exatamente o mesmo sentido. "Estavam rindo nele" e "Estavam ridieularizando-o" dificilmente se coadunam. Como o vejo. o melhor ainda é: "Riram dele para escarnecer" (A.V.), ou. com a retenção do sabor descritivo do imperfeito: "Estavam rindo em sua face."
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cf. Lc 8.54; ver p. 65). Imediatamente seu espírito volta e ela se levanta. 26. A notícia disso espalhou-se por toda a região. É evidente que com o registro desse milagre Mateus alcançou um clímax. Ver supra, pp. 587-588. Ele testificou da manifestação do poder de Cristo em seu auge. Não surpreende que, a despeito da proibição que Jesus dirigiu aos pais (Lc 8.56), a notícia desse milagre tenha se espalhado por toda a região ou país. Combinando entre si os relatos nos três Evangelhos, a história inteira pode ser sumariada no seguinte tema e seus tópicos: A restauração à vida da filha de Jairo Uma palavra de encorajamento: "Não tema, creia somente" (Mc 5.36; Lc 8.50) Uma palavra de revelação: "Ela não está morta, mas dorme" (Mt 9.24; Mc 5.39; Lc 8.52) Uma palavra de amor e poder: "Menininha, levante-se" (Mc 5.41; Lc 8.54) Uma palavra de terna solicitude: "Dê-lhe algo para comer" (Mc 5.43; Lc 8.55) A Cura de Três Pessoas Inválidas 27. E ao partir Jesus dali, dois cegos seguiram-no, gritando sem cessar: Tenha piedade de nós, Filho de Davi. À lista de milagres relatados nos capítulos 8 e 9 Mateus acrescenta mais dois, provavelmente porque eles se deram no mesmo dia daqueles descritos em 9.18-26. Eles completam esse dia tão cheio. No primeiro desses dois, o Senhor comunica luz a dois cegos; no segundo é transmitido o poder de falar a quem era carente dele. Se porventura parecer que a história de Mateus assim desce do clímax dos versículos 25 e 26 a um anticlímax, a resposta é que na realidade ele está preparando para um segundo clímax. Junto ao clímax do poder de Cristo de operar prodígios, no versículo 34, ele está para descrever o da hostilidade dos fariseus. 614
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Quando Jesus parte da casa do administrador, ele é seguido por dois cegos que se põem a gritar sem cessar: "Tem piedade [ou: tem misericórdia] de nós. Filho de Davi." Até onde se sabe, na literatura pré-cristã a designação, "Filho de Davi", como título para o Messias, ocorre somente nos salmos pseudepigráfícos de Salomão, 17.21.423 Embora existam os que negam que os dois cegos na história de Mateus estejam usando o termo no sentido messiânico, a probabilidade é que sua intenção era precisamente essa, pois, com base em Mateus 21.9; 22.41-45 (ver sobre esses versículos), é evidente que durante o ministério de Cristo na terra, "Filho de Davi" e "Messias" haviam se tornado sinônimos. Se não fosse assim, então como se explicaria satisfatoriamente a indignação dos principais sacerdotes e escribas quando os meninos se puseram a honrar a Jesus com o título "Filho de Davi" (21.15,16)? Aparentemente, Jesus não deu atenção aos gritos daqueles dois cegos. Sua reação, ainda que não fosse especificamente registrada, parece não ter sido de uma alegria pura. Tal coisa não causa surpresa, pois para o povo em geral, o Messias não passava de um libertador terreno e político. Não surpreende, pois, que Jesus faça o que Mateus descreve estar ele fazendo: 28. E ao entrar na casa... Como alguns o entendem, isso significa "sua própria casa em Cafarnaum". Mateus 4.13 é geralmente citado em apoio a esse ponto de vista. Em desabono dessa interpretação, cita-se com freqüência 8.20. Entretanto, nenhuma das passagens é inteiramente conclusiva. A primeira passagem não significa necessariamente que Jesus possuísse ou mesmo alugasse uma casa em Cafarnaum; isso pode estar implícito, mas não é certo. Os amigos poderiam ter providenciado uma casa para ele. A segunda passagem pode simplesmente significar que durante suas viagens de um lugar a outro, Jesus não possuía uma local fixo de residência, nem lugar definitivo para ficar que fosse propriamente seu. Assim também aqui em Mateus 9.28, a referência pode ser a uma casa que 423
S.BK., p. 525"
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algum seguidor bondoso lhe tivesse cedido para seu uso. Não temos, porventura, um paralelo no lar de Maria e Marta, em Betânia, às vezes referido como "o lar de Cristo na Judéia" (Mt 21.17; Mc 11.11)? Seja como for - e não se deve excluir aprioristicamente nenhuma das diversas possibilidades quando Jesus entrou na casa os cegos aproximaram-se dele, e Jesus lhes disse: Crêem que sou capaz de fazer isso? Entre as inferências que se devem evitar estão as seguintes: a. A fé se faz necessária antes que Jesus possa efetuai" o milagre. Resposta: Mateus 8.28ss.; 11.20-24 e Lucas 17.17 comprovam que isso não é verdade. b. Visto que a cegueira desses homens era auto-induzida eram cegos porque acreditavam que o eram -, só precisavam de fé para ter sua vista restaurada. Resposta: Não há nada no texto que indique que essa cegueira não tinha causa física. Além disso, Jesus não exige fé simplesmente, mas distintamente fé nele mesmo como o Médico dos médicos. Tem-se dito às vezes que o que Jesus exigia era fé no Pai, não fé nele. E evidente, à luz da presente passagem, que essa teoria se contradiz ante os fatos. Que o Evangelho de Marcos não retrata Jesus assim, já ficou demonstrado. Ver pp. 89-90. O mesmo, porém, é verdade com respeito a Mateus. Como a presente passagem o demonstra, Jesus na verdade fixa a atenção sobre ele mesmo como o objeto de fé. Ver também 7.2 lss.; 10.37,38,40; 11.25-30; 16.13-20; 19.28; 26.64; 28.18ss. Quando Jesus pergunta aos cegos se crêem que ele é capaz de fazer isso, ou seja, de curá-los de sua cegueira, muito respeitosamente, Disseram-lhe: Sim, Senhor. Para o significado de "Senhor", ver sobre 7.21 e 8.2. 29. Então tocou seus olhos e disse: Seja-lhes feito conforme sua fé. Para esse portentoso e terno "toque", ver sobre 8.3. O ato de Jesus está em total correspondência com a fé deles; cf. 8.13. Produzir fé nele mesmo e preservar essa fé é o próprio propósito dos milagres. 30. E seus olhos se abriram. Com o toque de Cristo, a visão entrou em 616
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seus olhos, de modo tal que, naquele glorioso momento, viram tudo distintamente. E Jesus energicamente advertiu-os, dizendo: Vejam que ninguém o saiba! O original se compõe de apenas três palavras; cf. "Vejam ninguém descubra." Para "energicamente advertidos", ver também Marcos 1.43: 14.5; Jo 11.33,38; especialmente, Marcos 14.5: "Eles a censuraram [ou: ralharam com ela]." Em vista do que já foi dito (v. 27), não surpreende muito que Jesus tenha expresso essa advertência. Seguramente, o milagre não lograria permanecer em segredo. Parentes e amigos não poderiam ser mantidos em ignorância do fato. Mas não é de todo razoável que Jesus, sabendo que o povo faria deduções errôneas acerca de seu poder de operar milagres, ordenasse a esses homens que não fizessem muita publicidade desnecessária e perigosa em torno do assunto? Ver mais sobre 8.4. Os homens fizeram caso da advertência? A resposta se encontra no versículo 31. Ao saírem, porém, divulgaram a notícia por toda aquela região. O que fizeram era realmente errado, todavia compreensível. Jesus, tudo indica, não podia permanecer incógnito. 32. Enquanto se retiravam, trouxeram-lhe um endemoninhado que não podia falar. Jesus era mantido muito ocupado. Quando um grupo sai, outro entra em cena. Dessa vez foi trazido a Jesus um endemoninhado que fora privado da faculdade de falar. Possessão
Demoníaca424
O que o Novo Testamento ensina com respeito a esse tema pode ser brevemente sumariado assim: 4:4
Além dos tratados sobre esse tema, nas diversas eneielopédias religiosas e bíblicas, bem como as fontes mencionadas nelas (ver. por exemplo. S.l I.F.R.K.. Vol. 111. pp. 401-403; I.S.B.B., Vol. 11. pp. 827-829). desejo chamar a atenção para o seguinte: O artigo de Foerster sobre 5cú[i(jv e palavras relacionadas. lh.D.N.T.. Vol. II, pp. 1-20; J.D. artigos de Mulder sobre "Doenças Mentais e Possessão Demoníaca", The Banner (um semanário publicado pela denominação da Igreja Reformada, com sede cm Grand Rapids, Mich., número de março 24. 3 1, abril 7. 14. 1933); e. no mesmo periódico, setembro, número 2. 1921. o artigo sobre ""Possessão Demoníaca", por 11. Schultze.
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1. Não é verdade que os escritores do Novo Testamento, em comum com todos os povos primitivos, atribuíam todas as doenças e anormalidades físicas à presença e operação de espíritos malignos. E evidente, por exemplo, que Mateus 4.24 distingue entre endemoninhados e epilépticos. Algumas pessoas afetadas são possessas de demônios, cegas e mudas (Mt 12.22); outras carecem da faculdade da visão, da linguagem, mas não são possessas de demônios (15.30). Outras passagens demonstram que os escritores dos Evangelhos distinguem criteriosamente entre doenças causadas por demônios e doenças não causadas por eles: Mateus 8.16; 10.8; Marcos 1.32-34; 6.13; 16.17,18; Lucas 4.40,41; 9.1; 13.32; e Atos 19.12. 2. Não é verdade que a possessão demoníaca seja simplesmente outro nome para insanidade mental. O fato é que em somente dois dos muitos casos de possessão registrados, essa possessão realmente afeta a mente (Mt 8.28ss. e paralelos; e At 19.14-16). 3. Embora haja semelhança, não é verdade que a possessão demoníaca seja simplesmente outro nome para personalidade múltipla ou dissociação (por exemplo, dr. Jekyll e mr. Hyde; ou a jovem que estava dividida entre três personalidades distintas: a Santa, a Realista e Sally). Diferenças entre personalidade múltipla e possessão demoníaca: a. os demônios são seres espirituais que são capazes de sair de um homem e entrar num suíno; b. são sempre maus; e c. não se expulsam por tratamentos psicológicos aplicados num período de tempo mais longo ou mais curto, mas pela palavra e pelo poder de Cristo, instantaneamente. Nenhum desses itens (a., b. e c.) se aplica à personalidade múltipla. 4. O termo, possessão demoníaca, descreve uma condição na qual uma personalidade distintiva e má, estranha à pessoa possessa, assumiu o controle de um indivíduo. Essa personalidade má, ou demônio, é capaz de falai- pela boca do indivíduo possesso, bem como de responder quando abordada (Mc 5.710; Lc 4.41; At 16.18; 13.15). 618
MATEUS
9.20,21
5. Os demônios são agentes de Satanás. Jesus veio à terra a fim de esmagar o poder de Satanás. Ele veio amarrar '"o homem forte" (Mt 12.29; Lc 11.21,22; cf. Ap 20.1-3) por meio de sua vitória sobre ele no deserto da tentação, e também por meio de expulsões de demônios e, especialmente, da cruz (Cl 2.15). Esse ato de "amarrar o diabo" aponta para a derrota final e completa deste em conexão com a segunda vinda de Cristo (Ap 20.10; cf. Rm 16.20). 6. Não se têm apresentado evidências convincentes de possessão demoníaca nos dias atuais. Influência demoníaca, sim; possessão demoníaca, não necessariamente. E evidente que, no caso mencionado aqui em 9.32, a possessão demoníaca resultou numa séria invalidez: a perda da faculdade da fala. 33. Ao ser expulso o demônio, o mudo falou. A maneira na qual os espectadores foram afetados por esse milagre é expressa nestas palavras: A multidão ficou perplexa, e disse: Uma coisa como esta jamais se viu em Israel. Ainda que essa expressão de espanto esteja associada só com esse milagre, e também seja muito apropriada nessa conexão - pois quem não se sentiria dominado pela admiração se, em sua própria presença, uma pessoa conhecida, sem a faculdade da fala, de repente começasse a falar? -, bem que poderia ser vista como a reação do povo diante de todos os milagres que ocorreram naquele dia (vv. 18-33). As palavras e as obras de Jesus arrancavam surpresa e espanto (Mt 7.28,29; 9.8,26; 15.31; Mc 7.37; 4.41; Lc 4.15,36,37; 5.26 etc.). Que a reação não foi unanimemente favorável, é realçado no versículo 34. Os fariseus, contudo, diziam: é pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios. Deve-se observar que os fariseus não tentaram negar a realidade dessas obras poderosas. Cf. Atos 4.16. Fizeram algo ainda mais ímpio. Foi à influência capacitadora de Satanás, o príncipe dos demônios, que atribuíram o poder de Cristo de operar milagres. A 619
9.23,24
MATEUS
hostilidade revelada já nos versículos 3 e 11 atinge um ponto muito alto aqui no versículo 34. Visto que 12.24 trata mais detalhadamente dessa mesma acusação farisaica, a consideração mais ampla será adiada até que a referida passagem seja alcançada. O pecado dos fariseus era deveras terrível. Deveriam ter combinado a evidência cias obras poderosas com o testemunho igualmente poderoso das profecias messiânicas que se cumpriram diante de seus olhos. Com relação aos eventos registrados em Mateus 9.30,33 ("e seus olhos foram abertos"; "o mudo falou"), deveriam ter lembrado de Isaías 35.5,6 ("Então os olhos dos cegos se abrirão.... e a língua dos mudos cantará"). 35 E Jesus percorria todas as cidades e vilarejos, ensinando em suas sinagogas e pregando o evangelho do reino, e curando toda doença e toda enfermidade. 36 Ora, ao ver as multidões, moveu-se de compaixão por elas, porque estavam exaustas e desamparadas como ovelhas sem pastor. 37 Então disse ele a seus discípulos: "A seara [é] abundante, mas os trabalhadores [são] poucos. 38 Roguem, pois, ao Senhor da seara para impei ir trabalhadores para sua seara".
9.35-38 "A seara é abundante, mas os trabalhadores são poucos " Cf. Marcos 6.6,34; Lucas 10.2 35. E Jesus percorria todas as cidades e vilarejos, ensinando em suas sinagogas e pregando o evangelho do reino, e curando toda doença e toda enfermidade. Aqui Mateus faz uma pausa, por assim dizer. Volta seu olhar para trás e repete, quase palavra por palavra, o que escrevera previamente (cf. 9.35 com 4.23), porém substitui "todas as cidades e vilarejos" pela expressão anterior, "toda a Galileia", provavelmente acrescentando ênfase ao escopo abrangente do ministério de Cristo por meio dessa substituição. Para o restante, ver sobre 4.23. Nessa altura, contudo, o caráter da narrativa muda um pouco. O terreno continua o mesmo: O Grande Ministério Galileu continua, e continuará até 15.20. Mas ao passo que até agora o principal interesse se tem centrado nas sábias palavras de Cristo 620
MATEUS
10.1-42
e nas suas obras de poder, às quais as multidões correspondem com entusiasmo, os escribas e fariseus reagem com crescente antagonismo. A partir desse momento as forças profundamente emocionais que motivam a cada um dos principais atores nesse drama da salvação vão se definindo mais nitidamente. E assim, somos agora informados, pela primeira vez especificamente (já implícito em 8.17), que a missão de Jesus de socorro e cura resulta da solidariedade e compaixão: que a vil acusação dos fariseus - "E pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios", 9.34 - não vai ser retirada, mas está para ser reiterada (10.25; 32.24), com intentos homicidas (12,14); e que o entusiasmo do povo relativo ao profeta de Nazaré é, em grande medida, de natureza carnal, de tal forma que, quando sua expectativa terrena não é satisfeita, eles se voltam contra ele (11,20ss.). Assim procedem seus próprios irmãos (12.46ss.; cf. Mc 3.21,22) e seus próprios concidadãos (13.57). Conseqüentemente, o ministério de Cristo se transformou numa luta amarga. Gradualmente, a cruz se aproximava; para ele, de forma incomparável, mas, num sentido mais amplo, também para seus discípulos, em decorrência de seu relacionamento com ele (10.25,38). Em consonância com essas notas introdutórias está o versículo 36. Ora, ao ver as multidões, moveu-se de compaixão por elas, porque estavam exaustas e desamparadas como ovelhas sem pastor. Talvez nos seja possível retratar Jesus como que estando de pé num lugar mais elevado. Ele vê muitas pessoas vindo para ele. Seriam algumas pessoas em busca de saúde física para si, enquanto outras levam seus enfermos a Jesus? Uma coisa é certa: poucos, se é que existia um, encontravam a paz que excede todo o entendimento. Como se poderia descobri-la quando seus líderes estão sempre sobrecarregando-os com sutilezas legalistas sobre sábados, jejuns, filactérios e borlas? Esses pobres coitados se acham esmagados sob os fardos que os fariseus punham sobre eles (Mt 11.28; 15.14; 23.4). Jesus, cuja ênfase está sobre "as questões mais importantes da lei: justiça, misericórdia e fidelidade" (Mt 23.23), coloca 621
10.11
MATEUS
a condição deles no seu coração. Ele é profundamente movido pela compaixão ou solidariedade, 42 ' sendo ambas idênticas no original e referindo-se a "algo - seja triste ou alegre, ainda que na maioria das vezes seja a primeira - que alguém experimenta ao lado de outro". As dores do povo são as dores do próprio Cristo, porquanto ele ama ternamente a essas pessoas sobrecarregadas. Ele sofre profundamente com elas e se prontifica a ajudálas. Sobre o tema da compaixão do Senhor, ver também 8.17; 14.14; 15.32; 18.27; 20.34; Mc 1.41; 5.19; 6.34; Lc 7.13. Jesus os vê como somente ele é capaz, com seu coração maravilhosamente compassivo, vê-los, ou seja, como ovelhas cujos pastores as abandonaram, e portanto estão perecendo na estepe árida e varrida pelos ventos. Tais ovelhas estão "exaustas e abandonadas", "angustiadas e desnorteadas".426 Estão completamente exaustas e expostas às feras esfomeadas, ao vento e intempérie, à fome e sede. Que animal é mais dependente, daí mais indefeso quando deixado à própria sorte, do que a ovelha? Uma ovelha descuidada, desprotegida e que não é procurada que quadro de pecadores entregues a si próprios ou acossados pelos rabinos daqueles dias! O povo, como ovelhas, carece de genuínos guias e pastores. A figura de ovelha sem pastor é rica em referências bíblicas. Além das passagens baseadas em Zacarias 13.7, ou seja, Mateus 26.31 e Marcos 14.27, ver também Números 27.17; 1 Reis 22.17; Ezequiel 34; Zacarias 10.2; 11.5; e João 10.12. Para uma situação mais favorável - o pastor buscando sua ovelha perdida e encontrando-a ver sobre Mateus 18.12-14; cf. Lucas 15.3-7. Para uma extensa consideração da relação entre o Bom Pastor e 425
426
O verbo é èoTrXayxi'ía9r). terceira pes. sing. aor. pas.indic. de mrAaYx^tíoiiai. Para uma consideração de sua idéia básica, particularmente em conexão com o substantivo cognato 0TrA.áyxva. ver C.N.T. sobre Filipenses, p.. nota 39. Note a semelhança verbal: no original, cada uma das duas palavras tem dez letras, começa com a mesma letra, termina com as mesmas cinco letras, é um particípio perfeito passivo e tem quatro sílabas. O primeiro particípio, toKuA.|i.évoi, deoKÚÂAxo, basicamente significa esfolado, então completamente desgastado, fatigado, exausto. A segunda. fppi|ip,éi.'oi, de píiriu, significa lançado (aqui, contra o solo), e portanto se encontra numa condição de absoluto desamparo e abandono.
622
MATEUS
9.37,38
suas ovelhas, ver C.N.T. sobre o Evangelho Segundo João. Vol. II, pp. 97-132. Os discípulos, que, como um grupo de doze. foram escolhidos por Jesus naquele tempo em que pregou o Sermão do Monte, têm agora estado com ele por algum tempo e têm recebido instrução inicial para o apostolado. Em seu próprio modo limitado devem compartilhar com seu Mestre o peso da responsabilidade pela salvação dos homens para a glória de Deus. Portanto não surpreende que leiamos agora: 37,38. Então disse ele a seus discípulos: A seara [é| abundante, mas os trabalhadores [são) poucos. Roguem, pois, ao Senhor da seara para impelir trabalhadores para sua seara. Jesus sabe que toda pessoa sobrecarregada de culpa, nessas grandes multidões, está caminhando para o dia da morte e para o juízo final. Essas multidões dão a entender que há uma carência deplorável e a necessidade de labor evangelístico para suprir essa carência. Demonstram a necessidade imperativa de algo semelhante ao árduo trabalho que se requer quando sem delonga uma lavoura precisa ser colhida (cf. Js 24.15, "este dia"). As imensas multidões são, pois, muito apropriadamente chamadas de "seara", o campo muito extenso que precisa de atenção imediata. Por uma extensão própria da figura, alguém pode dizer que essa seara, como aqui é vista, consiste da soma total "das ovelhas perdidas da casa de Israel" (10.6). A aplicação ás condições atuais (século XX), sem fazer violência à idéia básica, ampliaria o escopo da interpretação, de modo que a referência seria a todos aqueles que podem ser alcançados pelo evangelho (Mt 28.16-20; cf. Mc 16.15,16). Essencialmente, esta é a explicação favorecida pela maioria dos comentaristas.427 Creio ser esse o ponto de vista correto. Há, contudo, uma explicação diferente. Há quem limite a figura da seara aos que são "reunidos no celeiro celestial", isto é, a 4 7
' Ver, por exemplo, as observações de C. R. Brdman, H. N. Ridderbos e A. T. Robertson, em seus respectivos comentários sobre essa passagem. Muitos nomes poderiam ser facilmente acrescidos a essa lista.
623
10.12,13
MATEUS
"todos aqueles em quem a obra da graça de Deus tem sucesso";428 ou, usando uma fraseologia diferente, "ao número limitado dos eleitos, que viviam misturados com os incrédulos".429 Ao limitar assim a figura, como é usada aqui em Mateus 9.37, parece não fazer justiça ao contexto, no qual não há qualquer menção de uma separação entre dois grupos: os que finalmente se salvarão e os que finalmente se perderão. Mateus 9 considera as multidões que se aproximam, com seus fardos e carências, como vivendo naquele momento, o momento em que Jesus as vê e se move de compaixão por elas. A todas essas pessoas o evangelho terá de ser levado. O que sucederá no final, quando Jesus voltar, ainda não está sendo enfatizado. E verdade que em conexão com aquele evento futuro, solene e tremendo, deverá haver realmente uma dupla ceifa (Mt 13.24-30.36-43; Ap 14.1420; cf. Mt 3.12; 25.3 lss.), mas esse não é o contexto aqui. Aqui, "a seara abundante" do versículo 37 indica pelo menos as "multidões" que se aproximam do versículo 36. Jesus fixa a atenção dos discípulos sobre o agudo contraste entre o grande número de pessoas que constitui a seara e a escassez de trabalhadores que deve tentar ajuntá-lo nela. E por essa razão que ele insiste com os discípulos para que supliquem a Deus, que é o "Senhor" - ou seja, o Proprietário e Supremo Administrador - da seara, para que ele envie obreiros para sua seara. Além disso, ao encorajá-los a orarem dessa forma, não está Jesus também enfatizando o fato de que algo mais do que o simples número de obreiros está em questão, ou seja, mas também sua qualidade? Devem ser enviados por Deus, e não se designar a si próprios. Devem ser homens que amem a Deus e que amem as almas. E evidente que a intenso desejo de Cristo de ter trabalhadores e mais trabalhadores para enviar às searas de almas emana de sua profunda e infinita compaixão. Os versículos 37 e 38 4 s
' R. C. H. Lenski. op. cit.. pp. 373.374. Calvino, Commentaiy on a Ilarmony of the Evcmgelists, Lukc. tradução inglesa. Vol. I, p. 421.
42v
624
Malthew.
Mark, and
MATEUS
Caps. 8 e 9
não devem ser separados do versículo 36 ("'Ele se moveu de compaixão por eles"). Isso seguramente revela que "quantos são chamados pelo evangelho são chamados com toda a sinceridade. Pois Deus mui solícita e verdadeiramente declarou em Sua Palavra o que lhe é aceitável, isto é, os que são chamados devem ir a ele. Também seriamente promete o descanso das almas e a vida eterna a todos quantos vão a ele e crêem" (Cânones de Dort, Capítulos de Doutrina III e IV, artigo 8). Entre as muitas passagens que apoiam essa doutrina da sincera apresentação do evangelho aos pecadores, e do deleite divino na conversão e salvação deles, são as seguintes: lRs 8.41-43; SI 72.8-15; 87; 95.6-8; Pv 11.30; Is 1.18; 5.lss.; 55.1,6,7; 61.1-3;.ir 8.20; 35.15; Dn 12.3; Os 11.8; Mq 7.18-20; Ml 1.11; Mt 22.9; 23.37ss.; 28.19,20; Lc 13.6-9; 15; 19.10; Jo 3.16; 10.16; At 2.38-40; 4.12; Rm 10.1,12; 11.32; lCo 9.22; 2Co 5.20,21; lTm 1.15; Ap 3.2022. Ver também o tratamento desse tema em conexão com 18.14, e notar as referências adicionais mencionadas ali. Para os versículos 36-38, ver também C.N.T. sobre João 4.35. Sumário dos Capítulos 8 e 9 Esses capítulos são principalmente devotados à narração de uma série de milagres efetuados por Jesus. E por meio deles que o Senhor revela sua onipotência. Com um mero toque de mão (8.3,15; 9.29) ele cura imediata e completamente. De fato tal toque nem sequer seria necessário (8.8,13). Seu poder de curar se estende não só ao corpo do homem, mas compreende também a alma (9.2). Não só liberta da enfermidade física, mas também expulsa demônios (8.16,28ss.; 9.32.33). De fato, não há limite para seu poder restaurador (8.16; 9.35). Até mesmo acalma a tempestade (8.26) e ressuscita os mortos (9.25). Não só revela seu poder por meio dessas obras maravilhosas, mas também revela seu amor infinito. Ele carrega as doenças dos homens, tomando sobre si suas enfermidades (ver a explicação de 8.17). Sua terna compaixão, implícita já em 8.17 e 9.13, recebe sua mais plena expressão em 9.36. Sua solidarie625
Caps. 8 e 9
MATEUS
dade sobrepõe os limites de raça e nacionalidade (8.10-12). Ele é um amigo de publicanos e pecadores (9.10). Os que querem segui-lo devem fazê-lo sem qualquer reserva, lição que os dois aspirantes (8.19-22) não aprenderam, mas que Mateus já havia guardado no coração (9.9). Ainda que no que concerne à natureza do homem, frágil e pecaminosa, o discipulado implique dolorosa renúncia, não obstante, para aqueles que estão experimentando a graça da renovação, está apenas em seu estágio inicial - pense nos discípulos de Cristo, "homens de pequena fé" (8.26) estreita associação com o Senhor significa regozijo. Por que, pois, hão de observar os jejuns impostos pelos homens (9.15)? Mateus traça um nítido contraste entre a. o ódio para com o Senhor demonstrado em crescente medida pelos fariseus (9.3,11,34) eb.o amor do Salvador. Este é movido de compaixão quando, ao contemplar as multidões que se aproximam, compreende que seus líderes fariseus, que sempre realçam mais os menores (23.23), na verdade deixaram como ovelhas sem pastor aqueles que estavam sob sua responsabilidade (9.36). Em vista disso, Jesus diz a seus discípulos: "A seara [é] abundante, mas os trabalhadores [são] poucos. Roguem, pois, ao Senhor da seara para impelir trabalhadores para sua seara."
626
CAPÍTULO
10
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer A Comissão dos Doze O Segundo Grande Discurso
CAPÍTULO 10 MATEUS
10.1-42.
/"k E ele chamou a si seus doze discípulos, e lhes deu autoriI I I dade sobre o s espíritos imundos, para expulsá-los, e para curar ^^ toda sorte d e doenças e enfermidades. 2 Ora, os nomes dos doze apóstolos são os seguintes: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; e Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão; 3 Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o cobrador de impostos; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; 4 Simão, o cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que o traiu. 5 A estes doze Jesus enviou, dando-lhes o seguinte encargo: "Não se desviem para nenhuma rota dos gentios, e não entrem em qualquer das cidades dos samaritanos, 6 mas vão, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel. 7 E enquanto vão, preguem, dizendo: "O reino do céu está próximo". 8 Curem [as] doenças, ressuscitem [os] mortos, purifiquem [os] leprosos, expulsem [os] demônios; de graça receberam, de graça dêem. 9 Não se abasteçam de ouro nem prata nem cobre [dinheiro] em seus cintos, 10 nem bagagem para a viagem, nem duas túnicas, nem sandálias [extras], nem de bordão, pois o trabalhador tem direito a seu sustento. 11 Em qualquer cidade ou vilarejo que entrarem, procurem ali alguém que seja merecedor, e fiquem em sua casa até que deixem [o lugar], 12 Quando entrarem numa casa, pronunciem sua saudação sobre ela; 13 e se aquela casa for merecedora, que sua paz desça sobre ela; mas se não for merecedora, que sua paz volte para vocês. 14 E se alguém não os receber nem ouvir suas palavras, ao saírem daquela casa ou daquela cidade, sacudam o pó de seus pés. 15 Eu solenemente lhes declaro, no dia do juízo haverá mais tolerância para com a terra de Sodoma e Gomorra do que para com essa cidade. 629
10.1-42
MATEUS
16 Vejam bem, Eu os estou enviando como ovelhas para o meio de lobos. Portanto, sejam prudentes como as serpentes, e simples como as pombas. 17 E acautelem-se dos homens, porque os entregarão aos concílios, e em suas sinagogas os açoitarão. 18 Por minha causa vocês serão arrastados perante governadores e reis para testemunho a eles e aos gentios. 19 Ora, quando os entregarem fàs autoridades], não se preocupem como ou o que vão dizer, já que o que devem dizer lhes será dado naquela hora; 20 porque não são vocês que falam, mas é o Espírito de seu Pai [quem está] falando em vocês. 21 Irmão entregará irmão à morte, [o] pai a [seu] filho, e filhos se levantarão contra [seus] pais e os matarão. 22 E vocês serão odiados de todos por causa de meu nome; mas aquele que perseverar até o fim, esse será salvo. 23 Ora, quando os perseguirem nesta cidade, fujam para a próxima; pois solenemente lhes declaro, certamente não terminarão [de percorrer] as cidades de Israel antes que o Filho do homem venha. 24 O aluno não excede em importância a seu professor, nem o escravo a seu senhor. 25 Que o aluno fique satisfeito em participar da sorte de seu professor, e o escravo a participar da sorte de seu senhor. Se [até] o senhor da casa foi chamado Belzebu, quanto mais os membros de sua família! 26 Portanto, não tenham medo deles; pois não há nada encoberto que não será revelado, nem oculto que não se tornará conhecido. 27 O que lhes digo às escuras, vocês devem dizê-lo à plena luz; o que é sussurrado aos seus ouvidos, proclamem-no dos telhados. 28 E não tenham medo dos que matam o corpo, mas são incapazes de matar a alma; ao contrário, tenham medo de quem é capaz de destruir no inferno tanto a alma quanto o corpo. 29 Os pardais não são vendidos por um centavo? Contudo nenhum deles cairá por terra sem [a vontade de] seu Pai. 30 E quanto a vocês, os próprios cabelos de sua cabeça estão todos contados. 31 Portanto, não tenham medo. Vocês valem mais do que muitos pardais. 32 Todo aquele, pois, que me confessar diante dos homens, também o confessarei diante de meu Pai que está no céu. 33 Mas todo aquele que me negar diante dos homens, também o negarei diante de meu Pai que está no céu. 34 Não pensem que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, e, sim, espada. 35 Pois vim pôr um homem contra seu pai, uma filha contra sua mãe e uma nora contra sua sogra. 36 Os inimigos de um homem [serão] os membros de sua família. 37 Quem ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim; 38 e quem não toma sua cruz e vai após mim, não é digno de mim. 39 Quem acha sua vida, a perderá; e quem perde sua vida por amor a mim, a achará. 40 Quem recebe a vocês, recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. 41 Quem recebe um profeta por ser ele profeta, rece-
630
MATEUS
10.1-42
berá a recompensa de profeta; e quem recebe uma pessoa justa, por essa pessoa ser justa, receberá a recompensa de uma pessoa justa. 42 E todo aquele que dá a um desses pequeninos, ainda que seja um copo de água fria, por ser ele um discípulo, solenemente lhes declaro, este certamente não perderá sua recompensa."
10. ] -42 A Comissão dos Doze Cf. Marcos 3.13-19; 6.7-13; Lucas 9.1-6 Esse capítulo, do versículo 5 ao final, contém um dos discursos instrutivos do Senhor, o segundo dos seis. Para todos os seis, ver índice e p. 483 e ss, volume II. Aqui, como nos capítulos anteriores, os ofícios profético, sacerdotal e real se encontram inextricavelmente entretecidos, como se segue: Ao enviar seus discípulos num percurso missionário, Jesus lhes mostra como devem conduzir-se. Conseqüentemente, ele surge aqui como mestre ou profeta, como revelador da vontade do Pai. Mas este título, "profeta", aplica-se a ele também no sentido mais restrito de alguém que prediz eventos futuros. Basta uma leitura da comissão para perceber que, especialmente do versículo 16 ao final, aquele que se dirige aos Doze está predizendo o futuro. Ele está descrevendo o que irá suceder quando a igreja levar a mensagem de Cristo aos perdidos em pecado. O ofício sacerdotal do Senhor, com o sofrimento vicário implícito, é também prefigurado (ver v. 38), mas ainda de uma forma muito tênue. Os discípulos, ao tomarem sua cruz, devem seguir após seu Mestre. Eles serão odiados, porque ele é odiado (cf. vv. 22,24,25). Finalmente, é como rei - "Senhor dos senhores e Rei dos reis" (Ap 17.14) - que Jesus envia seus embaixadores. Ele os arma com autoridade (10.1) porque ele mesmo está revestido de autoridade suprema. Sumário Mateus primeiramente apresenta o cenário do discurso de comissionamento. Na realidade, o material do pano de fundo começa em 9.35-38 (ver sobre esses versículos). Em 10.1, o 631
10.1-42
MATEUS
evangelista faz menção da convocação dos discípulos e do poder que Jesus lhes delega. Então (vv. 2-4) o rol dos Doze é apresentado nominalmente. Segue-se a comissão propriamente dita (vv. 5-42). Exatamente como no Sermão do Monte, assim também aqui nessa Comissão dos Doze não há divagações, mas um progresso do pensamento muito bem ordenado. Os aspectos específicos da comissão são apresentados no que se pode considerar a primeira parte do discurso (vv. 5-15). Os "discípulos", que agora podem com propriedade ser chamados "apóstolos", são informados aonde devem ir, o que têm a proclamar, o que devem fazer, em que condições devem começar sua viagem missionária e com quem devem se hospedar. No que se pode considerar como a segunda porção do discurso (vv. 16-42), onde a comissão, ainda que continue, começa a mesclar-se com o discurso profético, Jesus descreve o contraste marcante que haverá nas respostas à comissão dos apóstolos: alguns a aceitarão; muitos a rejeitarão. Para os missionários, essa rejeição significará amarga perseguição, provavelmente já implícita nos versículos 13b-15. Jesus lhes mostra como devem responder a esse tratamento, ou seja. com coragem e com confiança no Senhor que os recompensará por sua lealdade. A leitura dos versículos 13-16 pareceria indicar, contudo, que o que se pode considerar a Parte 1 do discurso (vv. 5-15) se mescla com a Parte II (vv. 16-42) tão gradual e estranhamente que todo o discurso do comissionamento (vv. 5-42) pode ser tratado como uma unidade; por isso, versículo por versículo ou parágrafo por parágrafo sem quaisquer subdivisões. Resultado: uma divisão do capítulo em duas partes: a. o cenário (vv. 1 -4); e b. a comissão (vv. 5-42). Entretanto, o caráter gradual da transição dos versículos 515 para os versículos 16-42 não é universalmente admitido. Como alguns o vêem, a advertência de Cristo, dizendo que os discípulos não seriam bem-vindos em todo lugar, mas que seriam rejeitados por muitos, não é uma introdução adequada às 632
MATEUS
10.1-42
predições acerca da perseguição reservada para a igreja. E assim, a conclusão a que se chega é que a matéria em 10.5-42 não é realmente uma unidade, e, sim, uma combinação. Eis o argumento: Jesus, naquele momento, não transmitiu todo o discurso. Ao contrário, quando, algum tempo depois da ressurreição de Cristo, a perseguição começou a erguer sua cabeça, o compositor do Evangelho combinou um discurso mais antigo de Jesus com alguns de seus últimos ditos, mormente com aqueles encontrados em seu discurso escatológico (cf. Mt 10.17-22 com Mc 13.913 e com Lc 21.12-17). De acordo com esse ponto de vista, o resultado da combinação é o que se acha em Mateus 10.5-42. Com o fim de apoiar essa teoria da combinação, se realça demais que a horrenda predição do martírio (vv. 21,28) não se cumpriu durante o primeiro percurso missionário dos apóstolos; antes, ocorreu exatamente o oposto (Lc 22.35). Visto, porém, que os primeiros leitores do Evangelho sabiam muito bem que as aflições preditas não ocorreram antes da ressurreição de Cristo, e, sim, posteriormente, não teriam dificuldade em entender a natureza composta do que aqui se apresenta como se fosse uma comissão.430 ObjeçÕes: a. O discurso é apresentado como se houvesse sido enunciado numa só unidade. E antecedido pelas palavras: "A estes doze Jesus enviou depois de dar-lhes o seguinte encargo" [literalmente, "depois de ordenar-lhes, dizendo"]. E seguido por: "Ora, quando Jesus terminou de instruir a seus discípulos, ele se foi dali..." (11.1). 43,1
Segue essa linha H. N. Ridderbos, op. cit., Vol. I, p. 203. Éjusto. porém, acrescentar que ele concede a possibilidade da veracidade do ponto de vista oposto. Para um ponto de vista semelhante em alguns aspectos daquele de Ridderbos. ver W. C. Allen. op. cit.. p. 101. F. W. Grosheide. em seu sumário preliminar de Mateus 10.17-42, declara que somos compelidos a crer que Mateus combina duas partes enunciadas em ocasiões diferentes. R. V. G. Tasker apresenta um breve sumário dos argumentos que têm sido apresentados em favor da teoria da combinação. Ele mesmo se inclina para o ponto de vista de uma só unidade, op. cit.. pp. 104, 105. finalmente, ver o estudo em D. J. Chapman, Matthew, Mark, and Luke. Londres. 1937. pp. 236-242.
633
10.1-42
MATEUS
b. Jesus já havia feito referência velada à sua própria morte próxima (9.15). Não era natural, pois, que ainda nesse tempo começasse a dizer aos discípulos, e por meio deles à igreja, o que sucederia depois de sua partida? Ainda que antes da ressurreição de Cristo nenhum dos Doze tenha sido martirizado, forte oposição deve ter surgido imediatamente (10.14,15,23-25), vindo o martírio mais tarde (Jo 21.18,19; At 12.1,2; cf. Ap 6.9). Não fica claro por que ambos esses elos da cadeia da perseguição não podiam ter sido preditos ao mesmo tempo. c. Mesmo em seu discurso escatológico (Mt 24 e 25), Jesus mesmo (não simplesmente o evangelista) mescla num único discurso um evento cronologicamente mais remoto (a segunda vinda), uma operação contínua mais próxima (a pregação do evangelho a todas as nações) e uma tragédia iminente (a queda de Jerusalém). Então, por-que não poderia ele ter feito algo semelhante aqui em Mateus 10? d. Como já se realçou antes, não é de forma alguma incomum os oradores repetirem expressões ou observações importantes que já haviam pronunciado. Por que, por exemplo, seria anormal Jesus aludir a Miquéias 7.6 aqui em Mateus 10.21,35 e também em Lucas 21.16? Além disso, as diferenças entre o discurso que se encontra em Mateus 10 e qualquer outro dos discursos de Cristo são maiores que as semelhanças. e. O fato de a fraseologia: "os açoitarão em suas sinagogas" (10.17; cf. 23.34) ocorrer somente no Evangelho de Mateus pareceria indicar uma origem palestina antiga para essa expressão, e não a de um tempo posterior de perseguição.431 Portanto, prosseguirei na suposição de que o discurso registrado em Mateus 10.5-42 foi composto numa só unidade, na forma indicada por Mateus. O Cenário 10.1. E ele chamou a si seus discípulos, e lhes deu autoridade sobre os espíritos imundos, para expulsá-los, e para 431
Ver o artigo de K. Schneider sobre iiaoriYÓu e palavras relacionadas. Th.D.N.T.. Vol.IV, pp. 515-519. 634
MATEUS
11.11
curar toda sorte de doenças e enfermidades. Mateus parece tomar por certo que os leitores de seu Evangelho já sabiam que os Doze, tomados como um grupo, haviam sido escolhidos antecipadamente, embora ele mesmo não registre essa chamada. Segundo Lucas 6.12,13,20, esse grupo de doze foi convocado um pouco antes de ter sido pregado o Sermão do Monte (cf. Mc 3.13,14). Agora, talvez um pouco depois (durante o mesmo verão, ou seja, do ano 28 d.C.?), Jesus envia esses homens num percurso missionário. Estavam para ser seus embaixadores oficiais ou "apóstolos", investidos de autoridade para representar aquele que os envia. Que foram escolhidos doze homens, não mais nem menos, para tal tarefa, significaria que o Senhor os designou para que fossem o núcleo do novo Israel, pois o Israel da antiga dispensação havia sido representado pelos doze patriarcas (Gn 49.28). Muito interessante e instrutivo, com toda certeza, é o fato de que os mesmos homens que foram intimados a orar para que o Senhor da seara enviasse trabalhadores para sua seara (9.38) são agora postos como cabeças desses trabalhadores (cf. 18.18). Além do mais, recebem autoridade sobre os "espíritos imundos" (cf. Ap 6.13), provavelmente designados por esse nome em virtude não só de serem imundos em si mesmos, mas também porque entre os homens são instigadores de pensamentos, palavras e atos imundos.432 O que exatamente Mateus pretendia quando diz que Jesus deu aos Doze "autoridade" [isto é, poder mais direito de exercêlo] "sobre os espíritos imundos", para expulsá-los e curar toda sorte de doenças e toda enfermidade"? Ele quer dizer que, pelo fato de expulsar esses demônios e como resultado disso, os discípulos granjearam autoridade para curar toda sorte de doença e toda enfermidade"? Se esse é o sentido, seria quase como dizer que toda doença e toda enfermidade era, de alguma forma, causada pelos demônios. Ora, em conexão com 9.32 já se demons432
Que a tarefa destinada a esses doze homens não se limitava ao que se menciona aqui em 10.1, é demonstrado nos vv. 7.8.14.20.27; cf. Lc 9.2. 635
10.11
MATEUS
trou: a. que, segundo os Evangelhos, em certos casos, as doenças estavam de fato associadas com a possessão demoníaca, mas também b. que de modo algum isso era sempre verdade. As vezes a doença física é atribuída mais à influência satânica do que à possessão demoníaca (Lc 13.16; cf. Jó 2.7). Às vezes nem Satanás nem seus subordinados são mencionados em conexão com a enfermidade humana. É verdade que, de um modo muito geral e indireto, toda manifestação de distúrbio humano, quer física quer espiritual, pode ser atribuída a Satanás, pois se Adão, como cabeça da raça, tivesse resistido à tentação, tais males não estariam agora em evidência (Gn 2.16,17; 3.3,6,19; Rm 5.17). Tudo isso não basta para justificar a conclusão: "Mateus 10.1 significa a. que toda doença e toda enfermidade é diretamente causada por demônios, e b. que os discípulos, ao receberem autoridade para expulsá-los, granjearam poder para curar toda doença." Gramaticalmente, é inteiramente justificável interpretar 10.1 diferentemente, ou seja, que Jesus deu aos Doze "autoridade sobre os espíritos imundos, de modo que esses homens foram capacitados e ordenados a expulsá-los, e deu-lhes autoridade para curar toda doença e toda enfermidade". A forma abreviada na qual isso se expressa em 10.1 pode-se considerar um dos muitos exemplos de discurso abreviado.433 A semelhança de 10.1 e 4.23 e 9.35 revela que ao cumprir fielmente sua tarefa, os Doze estão verdadeiramente representando seu Mestre, pois estão fazendo o que ele mesmo está fazendo e o que lhes fora ordenado fazer. Da mesma forma, o próprio Jesus representa o Pai (Jo 5.19). 2. Ora, os nomes dos doze apóstolos são os seguintes: primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão; e Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão; 3 Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o cobrador de impostos; Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu; 4 Simão, o cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que o traiu. 433
Ver C.N.T. sobre João 5.31.
636
MATEUS
11.13,14
No Novo Testamento, os nomes dos Doze são mencionados juntos quatro vezes (Mt 10.2-4; Mc 3.16-19; Lc 6.14-16; At 1.13,26). Atos 1.15-26 registra a maneira na qual Judas Iscariotes foi substituído por Matias. Quanto às listas dos Evangelhos, cada uma começa com Pedro (assim também procede Atos) e termina com Judas iscariotes. Mesmo as disposições dentro das quatro referências revelam bem pouca variação. Quando teoricamente se consideram os doze nomes vistos em cada caso como que consistindo de três grupos de quatro, obtêm-se os seguintes resultados: No sumário de Mateus, o nome de André é colocado imediatamente após o de seu irmão, Pedro; os irmãos, Tiago e João, são mencionados a seguir. Isso completa o primeiro grupo de quatro. E possível que esses quatro tenham sido os primeiros discípulos de Cristo (ver C.N.T. sobre João 1.35-42; e ver supra sobre Mt 4.18-22). O segundo grupo de quatro começa com Filipe e Bartolomeu (Natanael), chamados para serem discípulos imediatamente após o primeiro grupo de quatro (Jo 1.43-51) e conclui com Tomé e Mateus. No grupo final, os primeiros três nomes são os dos discípulos "obscuros", ou seja, homens sobre quem pouco se sabe (Tadeu) ou praticamente nada (Tiago, filho de Alfeu e Simão, o cananeu); o último nome é o do traidor. Judas. Tal obscuridade e (num caso) perversidade são as razões pelas quais esses quatro são mencionados por último? Ou são mencionados por último porque foram os últimos a ser chamados? Não sabemos. Na lista de Marcos, a seqüência para o primeiro grupo de quatro é a mesma que em Mateus, com a exceção de que André é agora posto por último. No segundo [grupo de] quatro de Marcos encontramos "Mateus e Tomé" em vez de "Tomé e Mateus". Com respeito ao seu último [grupo de] quatro, a lista de Mateus e Marcos é idêntica. A lista do Evangelho de Lucas segue a de Mateus para os primeiros quatro nomes, e a de Marcos para os outros quatro. Com respeito aos últimos quatro nomes, Lucas segue sua pró637
10.2-4
MATEUS
pria ordem, revertendo a ordem dos dois nomes do meio como situados em Mateus e em Marcos. Além disso, ele substitui o nome "Judas, filho [ou: irmão]de Tiago" para Tadeu, indubitavelmente tendo em mente a mesmíssima pessoa. Daí, aqui Lucas tem a seqüência: "Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote, e Judas, filho [ou: irmão] de Tiago, e Judas Iscariotes, que se tornou traidor." A lista de Lucas, no livro de Aios, tem a seqüência "Pedro e João e Tiago e André", para o primeiro [grupo de] quatro; "Filipe e Tomé e Bartolomeu e Mateus", para o segundo [grupo de] quatro; e termina com "Tiago, o filho de Alfeu, e Simão, Zelote, e Judas, filho de Tiago". O nome de Matias é adicionado no versículo 26. Portanto, as quatro listas não só contêm os mesmos doze nomes (com a exceção já indicada: em Atos l Matias, em vez de Judas Iscariotes); eles ainda (uma vez mais, com a exceção notada) têm os mesmos nomes em cada grupo de quatro. Segundo Marcos 6.7, Jesus enviou os doze "de dois em dois". Em Mateus, como o "e" dentro de cada par e a omissão de "e" entre cada par indica, o agrupamento é em pares: "Filipe e Bartolomeu, Tomé e Mateus", etc. Exceção: "e" também ocorre entre os primeiros dois pares, talvez porque sejam dois grupos de irmãos. Deve-se admitir a possibilidade de que na viagem Filipe e Bartolomeu realmente andavam juntos, e assim também Tomé e Mateus, Pedro e André, etc. Não obstante, não pode haver absoluta certeza sobre isso, já que o agrupamento varia um pouco nas quatro listas, como já foi indicado. De qualquer forma, a antiga rima faz facilmente lembrar os nomes, bem como lembra do fato que os homens foram realmente enviados aos pares. Pedro e André, Tiago e João, Filipe e Bartolomeu, A seguir Mateus e então Tomé [ou: a seguir Tomé e então Mateus], Tiago, o Menor, e Judas, o Maior, Simão, o Zelote, e Judas, o Traidor. 638
MATEUS
11.16-19
Quanto aos indivíduos que compõem esse grupo de doze, nenhum é mencionado com maior freqüência do que o pitoresco e impetuoso Pedro. Seu nome original era Simão (ou Simeão). Era filho de Jonas (ou João). Era pescador por profissão, com seu irmão André, morando primeiro em Betsaida, depois em Cafarnaum. Jesus, por cuja graça e influência Pedro seria gradualmente transformado de uma pessoa antes instável numa testemunha fiel e digna de confiança, profeticamente mudou seu nome de Simão para Cefas (aramaico), o mesmo que Pedro (grego: Petros), significando rocha. Para uma descrição do caráter e personalidade de Pedro, ver especialmente sobre 4.18-22,26.58, 69-75 e C.N.T. sobre João 13.6-9; 18.15-27; cap. 21. Dois livros do Novo Testamento são creditados a Pedro, a saber, as epístolas chamadas 1 e 2 Pedro. Como foi demonstrado previamente (ver pp. 63, 68, 81), não é sem razão que o escritor do Evangelho de Marcos é chamado "intérprete de Pedro"'. Aqui em Mateus 10.2, ao nome desse discípulo, que é variadamente chamado Simão, Pedro, Simão Pedro e Cefas, se prefixa a palavra "primeiro". Ele, deveras, era o líder do grupo. Quanto a isso, ver sobre 16.16-19. É difícil superestimar o significado de Pedro para a história da igreja primitiva. André era também um pescador, o qual levou seu irmão, Pedro, a Jesus (ver C.N.T. sobre João 1.41,42). Para outras referências a André, ver supra (sobre 4.18-22); estudar também Marcos 1.16,29; 13.3; João 6.8,9; 12.22. Ver também abaixo acerca de Filipe. Tiago e João, também, eram irmãos, filhos de Zebedeu. Mateus menciona esses dois pescadores não só aqui e em 4.21,22 (ver sobre essa passagem), mas também mais adiante (17.1; e cf. 20.20,21).434 Há também várias referências a eles nos outros Evangelhos. Em decorrência de sua natureza explosiva, Jesus chamou Tiago e João de "filhos do trovão" (Mc 3.17; cf. Lc 9.54-56). Tiago foi o primeiro dos apóstolos a usar a coroa do 434
Não consigo compreender a afirmação de Lenski de que, além de Judas, Mateus menciona somente Pedro no restante de seu Evangelho: op. cit., p. 378. 639
10.2-4
MATEUS
martírio (At 12.2). Enquanto foi ele o primeiro a chegar ao céu, seu irmão, João, com toda probabilidade foi o último a permanecer na terra. Sobre a vida e caráter de João, considerado por muitos (creio que corretamente) como sendo 'Lo discípulo a quem Jesus amou" (Jo 13.23; 19.26; 20.2; 21.7,20), ver C.N.T. sobre o Evangelho segundo João, Vol. I, pp. 18-21. Cinco dos livros do Novo Testamento têm sido atribuídos pela tradição a João: seu Evangelho, três Epístolas (1,2 e 3 João) e o livro de Apocalipse. Filipe morava, ou pelo menos durante certo tempo morou, na mesma cidade de Pedro e André, ou seja, ele também era de Betsaida. Havendo respondido pessoalmente ao chamado de Jesus, encontrou Natanael e lhe disse: "Acabamos de achar aquele de quem escreveram Moisés na lei, e os profetas: Jesus de Nazaré, filho de José" (Jo 1.45). Quando Jesus estava para alimentar os cinco mil, perguntou a Filipe: "Onde compraremos pão para estes comerem?" Filipe respondeu: "Duzentos denários de pão não lhes bastam para que cada um receba um pouco" (Jo 6.5,7). Filipe aparentemente havia se esquecido de que o poder de Jesus excedia a qualquer possibilidade de cálculo. Deduzir desse incidente que Filipe era um tipo de pessoa fria e calculista, mais que os demais apóstolos, seria tirar uma conclusão exagerada de evidências insuficientes. Nos Evangelhos, Filipe geralmente aparece numa luz bastante favorável. Portanto, quando os gregos aproximaram-se dele com a solicitação: "Senhor, queremos ver a Jesus", ele foi e informou a André, e estes dois, André e Filipe, levaram os interessados a Jesus (Jo 12.21,22). Deve-se reconhecer que Filipe nem sempre compreendia imediatamente o significado das profundas declarações de Cristo - e os demais, compreendiam? mas para seu crédito deve-se dizer que, com perfeita candura, revelava sua ignorância e solicitava mais informação, como é também evidente à luz de João 14.8: "Senhor, mostre-nos o Pai, e ficaremos satisfeitos." Ele recebeu a linda e confortante resposta: "... quem vê a mim, viu o Pai" (Jo 14.9). Bartolomeu (significando filho de Tolmai) é indubitavelmente o Natanael do Evangelho de João (1.45-49; 21.2). Foi 640
MATEUS
11.16-19
ele quem disse a Filipe: "De Nazaré pode surgir alguma coisa boa?" Filipe respondeu: "Venha e veja." Quando Jesus viu Natanael vindo para ele, disse: "Eus um verdadeiro israelita em que não existe engano." Esse discípulo-apóstolo foi uma das sete pessoas a quem o Cristo ressurreto apareceu à margem do Mar de Tiberíades. Dos outros seis. só são mencionados Simão Pedro, Tomé e os filhos de Zebedeu. As referências a Tomé se combinam para indicar que o desalento e a devoção caracterizavam esse homem. Ele estava sempre receoso de que viesse a perder seu amado Mestre. Esperava o mal, e era-lhe difícil crer nas boas notícias quando elas lhe eram trazidas. Não obstante, quando o Salvador ressurreto, em toda a sua ternura e amor condescendente se lhe revelou, foi ele quem exclamou: "Meu Senhor e meu Deus!" Para mais informações sobre Tomé, ver C.N.T. sobre João 11.16; 14.5: 20.2428; 21.2. Mateus )á foi considerado detalhadamente (ver sobre 9.9). Sobre Tiago, filho de Alfeu, por Marcos (15.40) chamado "Tiago, o Menor", o que por alguns é interpretado como significando "Tiago, o mais jovem", por outros, porém, como "Tiago, pequeno em estatura", não temos mais informação positiva. É provável, contudo, que fosse o mesmo discípulo referido em Mateus 27.56, Marcos 16.1 e Lucas 24.10. Se tal é certo, o nome de sua mãe era Maria, uma das mulheres que acompanharam Jesus e ficaram junto à cruz. Ver C.N.T. sobre João 19.25. Já foi demonstrado que o Alfeu, o pai de Mateus, provavelmente não deve ser identificado com Alfeu, pai de Tiago, o Menor. Ver supra, nota 113, na p. 142. Tadeu (chamado Lebeu em alguns manuscritos de Mt 10.3 e Mc 3.18) é com toda probabilidade o "Judas, não Iscariotes" de João 14.22 (ver sobre essa passagem); cf. Atos 1.13. Do que é dito sobre ele em João 14, pareceria que ele queria que Jesus se mostrasse ao mundo, provavelmente significando: saia a público. O segundo Simão é chamado o eananeu, sobrenome aramaico, que significa entusiasta ou zelote. De fato Lucas o 641
10.2-4
MATEUS
chama "Simão, o Zelote" (Lc 6.15; At 1.13). Com toda probabilidade, esse nome lhe é aqui dado pelo fato de que anteriormente havia pertencido ao partido dos zelotes, partido que, no seu ódio pelo governo estrangeiro, o qual exigia tributo, não hesitavam em fomentar rebelião contra o governo romano. Ver Josefo, Guerra dos Judeus, 11.117,118; Antigüidades, XVIII.1-10,23. Cf. Atos 5.37. Finalmente, temos Judas Iscariotes, geralmente interpretado como sendo "Judas, o homem de Queriote", lugar que ficava ao sul da Judéia. Os Evangelhos referem-se a ele repetidas vezes (Mt 26.14,25,47; 27.3; Mc 14.10.43; Lc 22.3,47,48; Jo 6.71; 12.4; 13.2,26,29; 18.2-5). Ele é às vezes descrito como "Judas, quem o traiu", "Judas, um dos doze", "o traidor", "Judas, filho de Simão Iscariotes", "Judas Iscariotes, filho de Simão", ou simplesmente "Judas". É provavelmente debalde especular sobre as razões que induziram Jesus a escolher esse homem como um de seus discípulos. A resposta básica poderia muito bem estar embutida em passagens tais como Lucas 22.22 e At 2.23; cf. 4.28. Esse homem, ainda que totalmente responsável por seus próprios atos, foi um instrumento do diabo (Jo 6.70,71). Enquanto outras pessoas, quando sentiam que não mais podiam concordar ou mesmo tolerar os ensinos de Cristo, simplesmente se dissociavam dele (Jo 6.66), Judas permanecia, como se estivesse de pleno acordo com ele. Sendo ele uma pessoa de extremo egoísmo, era incapaz - ou, diríamos, "não queria"? - compreender o ato altruísta e belo de Maria de Betânia, que ungiu a Jesus (Jo 12.1 ss.). Ele era incapaz de compreender que a língua materna do amor é a generosidade. Foi o diabo que instigou Judas a trair Jesus, ou seja, a entregá-lo nas mãos dos inimigos. Ele era ladrão; não obstante a ele fora confiada a tesouraria do pequeno grupo, com o previsível resultado (Jo 12.6). Quando, em conexão com a instituição da Ceia do Senhor, o dramático momento chegou - para sempre comemorado nas Escrituras (Mt 26.20-25; Jo 13.21-30) e celebrado na arte (Leonardo da Vinci e outros) - em que Jesus deixou os Doze assom642
MATEUS
11.23,24
brados ao dizer: "Um de vocês me trairá", Judas, embora tendo já recebido dos principais sacerdotes as trinta moedas de prata como salário pelo feito prometido (Mt 26.14-16), teve a incrível audácia de dizer: "Com certeza não serei eu, Rabi?" Judas serviu de guia ao destacamento de soldados e à polícia do templo que prendeu Jesus no jardim de Getsêmani. Foi por meio do pérfido beijo em seu Mestre, como se fosse ainda um leal discípulo, que esse traidor indicou Jesus aos que vieram apoderar-se dele (Mt 26.49,50; Lc 22.47,48). Quanto ao modo do falecimento autoprovocado de Judas, ver sobre Mateus 27.3-5; cf. Atos 1.18. O que levou esse privilegiado discípulo a transformar-se em traidor de Cristo? Foi seu orgulho ferido, ambição frustrada, cobiça profundamente fortificada, medo de ser expulso da sinagoga (Jo 9.22)? Sem dúvida, tudo isso estava envolvido, mas não poderia ter sido a razão mais básica o fato de que entre o coração de Judas, completamente egoísta, e o coração de Jesus, infinitamente altruísta e generoso, haver um abismo tão imenso que ou Judas imploraria que o Senhor lhe concedesse a graça da regeneração e da plena renovação, pedido este que o traidor impiamente recusou fazer, ou ofereceria sua colaboração para livrar-se de Jesus? Uma coisa é certa: a chocante tragédia da vida de Judas é prova, não da incapacidade de Cristo, mas da impenitência do traidor! Ai desse homem! O que realça a grandeza de Jesus é que ele tomou a homens como esses, e os uniu numa comunidade extraordinariamente influente que revelaria ser, não só um vínculo digno com o Israel antigo, mas também um sólido fundamento para o futuro da igreja. Sim, ele operou esse múltiplo milagre nestes homens, com todas as suas falhas e fragilidades, como se acha descrito nas pp. 342-347. Mesmo quando deixamos de lado Judas Iscariotes e nos concentramos somente nos outros, não podemos deixar de nos impressionar com a majestade do Salvador, cujo poder de atração, incomparável sabedoria e inigualável amor eram tão espantosos, que ele foi capaz de reunir em torno de si e unir numa só família homens inteiramente diferentes, às vezes 643
10.2-4
MATEUS
até mesmo opostos em antecedentes e temperamentos. Incluído nesse pequeno grupo estava Pedro, o otimista (Mt 14.28; 26.33,35), mas também Tomé. o pessimista (Jo 11.16; 2024,25); Simão, o ex-zelote, agastado com os impostos e ansioso por destruir o governo romano, mas também Mateus, que voluntariamente oferecera seus serviços de cobrador de impostos ao mesmo governo romano; Pedro, João e Mateus, destinados a tornar-se renomados por meio de seus escritos, mas também Tiago, o Menor, que permanece na obscuridade, mas que, decerto, cumpriu sua missão. Jesus os atraiu para si com as cordas de sua ternura, de sua inesgotável compaixão. Ele os amou ao extremo (Jo 13.1), e na noite antes de ser traído e crucificado encomendou-os a seu Pai, dizendo: "Manifestei teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus, e os deste a mim, guardaram tua palavra. ... Pai santo, guarda-os em teu nome, o qual me deste, para que eles sejam um, assim como nós somos um. ... Não rogo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo. Santiílca-os na verdade; tua palavra é a verdade. Assim como me enviaste ao mundo, eu também os enviei ao mundo. E por tua causa eu me santifico, a fim de que eles também sejam verdadeiramente santificados"' (Jo 17.6-19, parcial). A Comissão 5, 6. A estes doze Jesus enviou, dando-lhes o seguinte encargo: Não se desviem para nenhuma rota dos gentios, e não entrem em qualquer das cidades dos samaritanos, mas vão, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel. Ainda que, como foi indicado, esse grupo de doze estava para ser enviado "ao mundo", isso não ocorreu imediatamente. Inicialmente, esses homens receberam ordem de limitar suas atividades "às ovelhas perdidas da casa de Israel" (ver 9.36; 15.24; cf. Jr 50.6; Ez 34.6). Com algumas importantes exceções, o próprio Jesus também seguiu a regra: "Aos judeus primeiro, e também aos 644
MATEUS
10.29,31
gregos" (Rm 1.16; 2.9.10). Ainda que seu ensino não se confinasse ao templo e à sinagoga, contudo para ele e sua obra esses retinham sua importância básica (Mt 4.23; 13.53; Jo 18.20). Não obstante, que o Senhor de forma alguma se esquecia dos gentios, já ficou sobejamente claro (ver sobre capítulo 2; 4.23-25; 8.11,12; cf. Jo 10.16). No plano de Deus, porém, era de Jerusalém que o evangelho seria ecoado por entre as nações (Gn 12.3; 18.18; 22.18; 26.4, cf. At 3.25; também Is 49.6, cf. At 13.47; então Is 54.1-3, cf. G1 4.27; e Am 9.11,12, cf. At 15.16-18). Tudo isso não subtrai sequer um iota do fato de que. em princípio, o nacionalismo do Antigo Testamento (com o internacionalismo resplandecendo freqüentemente) é destruído pela cruz. de modo que hoje "Não há distinção entre judeu e grego" (Rm 10.12; cf. Jo 3.16; ÍCo 7.19; G1 3.9,29; Ef 2.14,18; Cl 3.11; IPe 2.9). A ordem dada em 10.5,6 era uma restrição temporária que mais tarde seria removida, como se acha claramente implícito em Mateus 28.19,20. Que os apóstolos realmente obedeceram a ordem relativa à seqüência apropriada para expandir o evangelho, é evidente à luz de Atos 3.26 e 13.46. Assim, pois, por enquanto os apóstolos recebem a ordem de não sair das fronteiras judaicas nem mesmo aos samaritanos, povo de descendênciae religião mescladas (2Rs 17.24; Jo 4.22), que vivia entre a Galiléia e a Judéia. Segundo Mateus, essa restrição temporária adiciona força a um dos principais propósitos desse livro, ou seja: ganhar plenamente os judeus para Cristo (ver supra, p. 145). E como se o evangelista (e Deus por meio dele) estivesse dizendo aos judeus: "Pensem em todos os privilégios que vocês têm desfrutado, na obra que os profetas e sacerdotes realizaram em favor de vocês. Além disso, quando o Messias chegou, em cumprimento das predições e símbolos, cuidou para que vocês fossem os primeiros a receber as boas novas. Intensamente se esforça para que a salvação seja primeiro levada vocês, seja conhecida por vocês. Portanto, aceitem-no hoje, como seu Senhor e Salvador!" Jesus prossegue: 7. E enquanto vão, preguem, dizendo: O reino do céu está próximo. Esse tema do reino, proclamado 645
9.23,24
MATEUS
primeiro por João Batista, a seguir por Jesus, e agora por seus discípulos, já foi explicado (ver sobre 3.2; 4.17,23). Resumindo, significa que os apóstolos devem continuar proclamando que em certo sentido já havia chegado a dispensação na qual pelo cumprimento das profecias messiânicas o reino do céu (isto é, de Deus), no coração e vida dos homens se radicaria mais poderosamente do que antes. A comissão prossegue: 8. Curem [as] doenças, ressuscitem [os| mortos, purifiquem |osj leprosos, expulsem [os] demônios; de graça receberam, de graça dêem. Uma comparação de 10.8 com 4.23; 9.35 revela que o que Jesus quer dizer é isto: "Façam e continuem fazendo o que eu estou fazendo e tenho estado a fazer.'1 A "autoridade" para fazer isso já lhes havia sido comunicada (10.1). Pela graça de Deus, eles mesmos devem agora aplicar esse poder. Há farta evidência que comprova que o que é aqui ordenado e predito realmente aconteceu, em parte imediatamente, nesta viagem ou logo depois, em parte em tempo posterior, após a ressurreição de Cristo; parte pela atuação dos Doze, parte por meio de Pedro, seu líder, ou de Pedro e João, e parte por meio de Paulo, que certamente deve também ser reconhecido entre os apóstolos (daí falarmos de "os Doze e Paulo"). Ver as seguintes passagens: Mc 6.13,30; Lc 9.6-10; At 3.1-10; 5.12-16; 9.32-43; 14.8-10; 19.11,12; 20.7-12; 28.7-10. Além do mais, Jesus ordena aos Doze que prestem seus serviços gratuitamente. O que receberam gratuitamente, também devem dar gratuita e alegremente. Que não haja qualquer espécie de simonia (At 8.18-24). Jesus informou aos apóstolos aonde ir, o que proclamar e o que fazer. E agora lhes diz em que condição devem empreender seu giro missionário: 9,10. Não se abasteçam de ouro nem de prata nem de cobre [dinheiro] em seus cintos, nem bagagem para a viagem, nem duas túnicas, nem sandálias [extras], nem bordão... Só o estritamente necessário é que deveria ser levado nessa viagem. Conseqüentemente, os Doze não devem suprir-se de dinheiro, pois não vão precisar dele. Não devem 646
MATEUS
9.20,21
tentar adquirir moedas tais como, por exemplo, o áureo de ouro, o denário de prata, nem mesmo o assarion de cobre. Não devem sobrecarregar seus cintos com essas coisas. Há quem sugira que o dinheiro era levado num cinto, sendo depositado numa pequena bolsa ou carteira, que, como uma espada, podia ser presa ao cinto. Outros indicam que o cinto nem sempre ou necessariamente era feito de couro (3.4), mas às vezes de linho ou lã, como o era a túnica. Enrolando ou envolvendo tal cinto em torno do corpo algumas vezes, suas dobras serviam admiravelmente como "bolsos" para o dinheiro ou outros valores.435 Mochila ou alforje (literalmente: bolsa para o caminho ou para viagem) para provisões, tais como alimento e roupa, deviam também ser deixada para trás.436 Além do mais, uma só túnica seria suficiente. Não seria necessário uma a mais, seja simplesmente para reserva ou proteção extra contra a intempérie inclemente (cf. Mc 6.9). Essa advertência contra levar "extras" provavelmente se aplica ao próximo item. Se assim for, "não se abasteçam de ... sandálias" significaria: "não levem um par extra de sandálias. Será suficiente um par para seu uso." Essa interpretação não só parece ajustar-se ao contexto, ela também mantém a passagem em harmonia com Marcos 6.9. Além do mais, na Escritura, pés descalços se associam a outras idéias, tais como reverência na presença divina (Ex 3.5), extrema pobreza (Is 15.2-5) e tristeza (2Sm 15.30; cf. Ez 24.17). A aquisição de um novo bastão para substituir o velho também não seria necessário, e aqui nem mesmo é permitido (cf. a passagem de Mateus com Marcos 6.8). Uma pergunta poderá surgir: "Por que todas essas instruções"? A resposta que imediata e espontaneamente surge pode ser esta: "Porque Deus proverá. Os apóstolos devem depositar 435 43<>
A. Sizoo. op. cit.. p. 52. O acréscimo, "para o caminho", pareceria indicar que a idéia aqui é "uma bolsa contendo suprimentos ou provisões que você pensa necessitar enquanto viaja", e não "uma bolsa para coletar esmolas". Conseqüentemente, a idéia de A. Deissmann (op. cit.. p. 109) de que aqui haja uma referência à "bolsa de esmolas do mendigo" deve ser provavelmente rejeitada.
647
10.11
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sua confiança inteiramente nele". Sem dúvida, essa é deveras a resposta básica. Ver sobre 6.19-34. ao que se acrescente Lucas 22.35. Não obstante, no presente contexto se acrescenta outro pensamento (não sem relação, naturalmente), ou seja: pois o trabalhador tem direito ao seu sustento.437 Com certeza, por parte dos apóstolos não deveria haver cobiça, nem anseio por enriquecimento: o que recebessem gratuitamente, dev iam dá-lo gratuitamente (v. 8). Isso, contudo, de modo algum cancela a obrigação que recai sobre aqueles que recebem as boas novas. Sobre esses recai a obrigação de suprir as necessidades desses doze homens. Isso está em sintonia com toda a Escritura. Ver especialmente as seguintes passagens: Dt 25.4; ICo 9.7,14; C.N.T. sobre l Tm 5.18. A cada obreiro Deus deu o direito de participar dos frutos de seu trabalho. Isso inclui também provisão física. Muito interessante, quanto a isso, é a posição de Paulo sobre essa questão. Ver o sumário em dez itens em C.N.T. sobre 1 Tessalonicenses 2.9. Fez-se evidente, pois, que Deus iria sustentar esses homens em sua jornada, tanto agora quanto subseqüentemente, e que ele usará os amigos do evangelho para efetuar seu plano. Isso subentende que os apóstolos, por sua parte, devem selecionar criteriosamente as famílias que os alojarão. Portanto, não surpreende que Jesus nesse ponto acrescente: 11. Em qualquer cidade ou vilarejo que entrarem, procurem ali alguém que seja merecedor, e fiquem em sua casa até que deixem |o lugar], E provavelmente correto supor que, chegando em qualquer cidade, de qualquer tamanho, os missionários deviam antes de tudo pregar ao ar livre, nesta ou naquela rua, no mercado ou na praça (cf. Jn 3.4); ou, se houvesse algum convite, na sinagoga. Ante a acolhida que recebessem, não seria difícil determinar quem, entre os ouvintes, era "digno" ou "merecedor" de providenciar hospitalidade aos portadores de boas novas. Poderiam ser o tipo de pessoas que estavam esperando "a consolação 4,7
Literalmente, "à sua nutrição" (ou: "alimento"), mas em linha com o contexto imediatamente precedente, talvez se pretenda um significado um tanto mais ampio.
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MATEUS
9.37,38
de Israel" (Lc 2.25) ou "a redenção de Jerusalém" (Lc 2.38). Era de se esperar que tais pessoas se alegrassem ante a oportunidade de abrigar os mensageiros de Deus. Uma vez encontrada tal casa, que os discípulos a considerem seu ponto estratégico até que deixem essa cidade indo para outro lugar. Visto que os Doze viajavam de dois em dois, o privilégio de ajudar a causa do evangelho dessa forma podia estender-se a várias pessoas. Na época e região em que tudo isso estava ocorrendo havia uma antiga tradição de hospitalidade. As condições sociais eram tais que essa prática era quase uma necessidade, devido ao fato de que a viagem ainda não era fácil e as hospedarias poucas e distantes umas das outras. Além disso, a família que oferecesse alojamento hoje poderia necessitar da mesma cortesia na semana seguinte. Em adição a isso, deve-se observar que aqueles dentre os ouvintes que eram versados na tradição israelita - e à luz dos versículos 5 e 6 havia muitos deles - sabiam que as Escrituras, por meio de uma longa lista de nobres exemplos encorajavam enfaticamente a prática de alojar hóspedes. Entre aqueles que em tempos antigos praticaram a hospitalidade se acham Abraão (Gn 18.1 -8), Rebeca (Gn 24.25), Reuel (Êx 2.20), Manoá (Jz 13.15), a sunamita (2Rs 4.8-10) e Jó (Jó 31.34). Tal prática continuou na presente dispensação. Daí, para o período do Novo Testamento, acrescentam-se os nomes de pessoas generosas tais como Levi (Mateus, Mt 9.10; Lc 5.29), Zaqueu (Lc 19.5,10), Marta e Maria (Jo 12.1,2). Lídia (At 16.14,15), Áquila e Priscila (At 18.26; Rm 16.3,4), Febe (Rm 16.1,2) Filemom (Fm 7,22), Onesíforo (2Tm 1.16) e Gaio (3Jo 5,6). A Bíblia considera o espírito e prática da hospitalidade como uma das qualidades indispensáveis da vida cristã (Rm 12.13; ITm 3.2; 5.10; Tt 1.8; Hb 13.2).438 I,!i
Sobre o tema da hospitalidade, inclusive um parágrafo que mostra por que não seria sensato para os missionários atuais, em terras pagãs, em muitos detalhes tentar aplicar literalmente os mesmos métodos que Jesus aqui impõe aos Doze. ver o excelente artigo: "Hospitalidade", de B. S. hasíon. I.S.B.H.. Vol. III. pp. 1432. 1433.
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10.12,13
MATEUS
Prosseguindo: 12,13. Quando entrarem numa casa, pronunciem sua saudação sobre ela; e se aquela casa for merecedora, que sua paz desça sobre ela; mas se não for merecedora, que sua paz volte para vocês. Uma vez instalados nos lares daqueles que eram dignos, os apóstolos devem agora ir de casa em casa, levando o evangelho. Ao entrarem em qualquer casa devem pronunciar sobre ela sua saudação. Conseqüentemente, usarão a fórmula familiar: "Paz a vocês." Naquele tempo, bem como ainda hoje, essa era e é a saudação costumeira (Gn 43.23; Jz 6.23; 19.20; ISm 25.6; lCr 12.18; SI 122.8: Dn 4.1; 6.25; 10.19; Lc 10.5; 24.36; Jo 20.19,21.26). Não obstante, faz grande diferença quem a pronuncia. Nos lábios de uma pessoa irrefletida, pode não passar de uma frase convencional. Entre os amigos era e é indubitavelmente a expressão de um desejo sincero. No presente caso, contudo - e assim também em passagens tais como Lc 24.36, Jo 20.19, etc. ela é muito mais que um desejo. No nome de quem envia esses apóstolos, não só deseja paz, mas realmente a traz. Assim como na bênção arônica (Nm 6.24-26) o nome do S E N H O R OU Javé era invocado sobre os filhos de Israel, de modo que sua bênção realmente se consumava, assim também aqui.439 Não obstante, não havia nada de mágico nisso. A bênção especial era para aqueles que, pela graça, eram "dignos" de recebê-la pela fé, não para os outros. Se o lar não é merecedor, "que sua paz volte para vocês", diz Jesus, ou seja, nesse caso nenhuma bênção será concedida. Quanto a isso, ver a explicação da quarta bem-aventurança (5.6). E prossegue: 14, 15. E se alguém não os receber nem ouvir suas palavras, ao saírem daquela casa ou cidade, sacudam o pó de seus pés. Eu solenemente lhes declaro, no dia do juízo haverá mais tolerância para com a terra de Sodoma e Gomorra do que para com essa cidade. Depois de viajar pelos territórios pagãos, os judeus tinham o costume de sacudir o pó de suas sandálias e vestidos antes de reentrarem na Terra Santa.440 Temiam que de outro 43
'' Ver C.N.T. sobre 1 e 2 Tessaloniecnses. pp. 43-45. S.BIv. I, p. 571.
44,1
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MATEUS
10.16
modo, em seu próprio país, objetos levitieamente limpos viessem a tornar-se impuros. O que Jesus está dizendo, portanto, é que mesmo uma localidade israelita, seja casa ou cidade, que recusa aceitar o evangelho deve ser considerada imunda, como se fosse solo pagão. Portanto, tal centro de incredulidade deve receber um tratamento semelhante. Paulo e Barnabé fizeram exatamente isso quando se organizou uma perseguição contra eles no distrito judaico de Antioquia da Pisídia (At 13.50,51). Uma colossal responsabilidade, um pesado fardo de culpa, repousa sobre tal lugar. Jesus diz que no dia do juízo, o castigo que aguarda a terra441 de Sodoma e Gomorra, clássicos exemplos de impiedade (Gn 13.13; 18.20; Jd 7), será mais leve que aquele que espera a cidade que rejeita o evangelho. A razão por que isso é veraz é claramente afirmado em Lucas 12.47,48. E difícil, se não impossível, ler os versículos 14 e 15 sem sentir que o Senhor já esteja sugerindo que a proclamação da mensagem do reino irá de encontro a amarga oposição. No que agora se segue, a natureza dessa oposição e as formas em que se expressarão são mais agudamente definidas e aos apóstolos se demonstra como devem enfrentá-la. 16. Vejam bem,442 eu os estou enviando como ovelhas para o meio de lobos. Cf. Lucas 10.3. Enviá-los "como ovelhas" (Jo 10.11,14,27,28) é algo grandioso, mas "para o meio de" ou "entre" lobos, vorazes e destrutivos, equivale a perigo. Ver sobre 9.36; cf. Ez 22.27; Sf 3.3; e At 20.29. Entretanto, há conforto no anúncio de que é ele, Jesus mesmo, quem os envia. Ele deve ter seu sábio propósito: a. para que proclamem o evangelho do reino; b. para que. ao fazerem isso, reúnam dentre esses mesmos povos aqueles que ainda agora são denominados de "lobos"; c. para que, com isso, a fé dos apóstolos seja fortalecida; e d. para que tudo isso venha a redundar na glória de Deus. Além disso, o fato de que ele mesmo os está enviando significa que se acha profundamen-
w
Como em 4.15 a palavra "terra" indica o povo que a habita. Assim, aqui no v. 15. a palavra indica "cidade". Ver nota 133. na p. 188.
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10.11
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te envolvido no ministério deles, pois a frase, "Eu os envio", significa: "Eu pessoalmente os comissiono para que sejam meus apóstolos, ou seja, meus representantes oficiais,443 de modo que estarei agindo por intermédio de vocês". Isso indubitavelmente implica proteção. Aconteça o que acontecer, estarão sob seu amoroso cuidado. Se não fosse assim, eles estariam desamparados, pois o que uma ovelha pode fazer quando se vê no meio de lobos'? Entretanto, ao oferecer esse maravilhoso cuidado, não os exime de responsabilidade pessoal. Portanto, prossegue: Portanto, sejam prudentes como as serpentes, e simples como as pombas. Quanto ao primeiro (cf. Lc 16.8), a serpente é aqui considerada como a própria incorporação da astúcia ou perspicácia (Gn 3.1). A cautela e a prudência das serpentes já haviam se tornado proverbiais. A sagacidade aqui recomendada como uma qualidade humana envolve a capacidade de perceber a natureza do que jaz ao redor, quer no âmbito pessoal quer material, circunspecção, senso comum santificado, sabedoria de fazer a coisa certa, no momento certo, no lugar certo e da maneira certa, uma séria tentativa de sempre descobrir os melhores meios de se alcançar o mais elevado alvo, uma solícita e honesta busca de uma resposta a certas perguntas, tais como: "Como afetará meu próprio futuro, o de meu próximo, a glória de Deus?" "E esta a melhor forma de enfrentar o problema, ou há outra forma mais exeqüível"? Ver Efésios 5.15. Tal sagacidade jamais implica o compromisso com o mal. Jesus ensina que é dever do homem ser não só sagaz como as serpentes, mas também honesto ou inocente (cf. Fp 2.15) como as pombas. Quanto às pombas, ver sobre Mateus 3.16; cf. Cantares 5.2: "minha pomba, minha imaculada." Um excelente exemplo dessas pessoas que revelam essa combinação de astúcia e inocência é exibido na pessoa do apos4
" Km lugar de "Eu estou enviando". Jesus poderia ter usado o verbo mais fraco. TRÉMULO, mas ele usa o mais forte. áirocra-À/LA) (cf. KTTÓOTOÀOÇ), c alem de fazer a expressão ainda mais enfática, ao pronunciar de forma completa o pronome pessoal singular da primeira pessoa, "eu". Ele diz êyw àiToottlÀu: "Eu mesmo estou enviando."
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10.16
tolo Paulo, como suas epístolas e o livro de Atos fartamente indicam. Na verdade ele é "todas as coisas para todos" (ICo 9.22), selecionando criteriosamente o método adequado a cada situação distinta. Ver, por exemplo, Atos 17.22-31 em contraste com Atos 13.16-41. De fato ele é "habilidoso". O que ele faz em Atos 23.6-8 pode ser considerado até mesmo como "engenhoso". Não obstante, ele é sem dolo (At 24.16), e exorta a seus leitores a que também se esquivem de toda forma de mal (lTs 5.22) e vivam vidas que sejam cheias de bondade positiva (lTs 5.14,15). Entre outras pessoas em quem estas duas características a astúcia e a inocência - são combinadas, está Davi em seu relacionamento com o invejoso rei Saul, que se põe a persegui-lo (ISm 24 e 26), Mordecai, em seu relacionamento com o arrogante Hamã (Et 3.2-4; 4.12-14) e Abigail, "uma mulher de bom senso e discrição", em seu trato com seu insensato esposo, Nabal (ISm 25.3). A conexão existente entre os versículos 16 e 17. longe de ser abrupta, como alguns têm imaginado, é na realidade natural. Jesus esteve falando sobre "lobos", isto é, homens maus que tentariam prejudicar as ovelhas. Portanto, ele agora prossegue: 17. E acautelem-se dos homens... Tais homens maus certamente estavam presentes mesmo antes da morte de Cristo na cruz e de sua ressurreição. Ver 8.3; 9.22,34. Além do mais, não era Judas Iscariotes um dos discípulos de Cristo, e não era seu propósito entregar Jesus às autoridades? E não existiam aqueles que constantemente estavam colocando armadilhas para o Salvador, e que buscavam sempre um motivo para apresentar acusação contra ele? Ver Mt 12.10; 22.15; cf. Jo 8.6. O ódio para com Jesus não implica também certo antagonismo por seus discípulos? Ver 5.10-12, 10.24 e Jo 15.20. A base para a advertência de Cristo consiste, pois, no presente, ou seja, a condição prevalecente já agora, durante o ministério terreno de Cristo. No caso dos seguidores de Cristo, o ódio persistiria e até mesmo aumentaria durante o período pós-ressurreiçâo. Entre a 653
10.11
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perseguição que já estava em vigor, e da qual especialmente o próprio Jesus era objeto, e a perseguição da qual seus discípulos eram e iriam ser objetos, havia uma relação muito estreita, de modo que predição encontrada aqui em Mateus 10.17 é muito natural. É nesse contexto que Jesus adverte seus discípulos a "acautelar-se"444 dos homens. Ele quer dizer: "estejam em guarda contra'" eles. Embora não haja uma forma de determinar exatamente o que o Senhor tinha em mente quando disse isso, provavelmente tencionava avisar os discípulos para que se precavessem das más intenções. E provável que um ou mais dos seguintes itens possam ser classificados nessa idéia geral: a. Não confiem nos homens ingenuamente; b. não provoquem a ira deles sem justo motivo; c. não caiam na trama de suas perguntas ardilosas, mas orem para que a graça lhes muna de respostas apropriadas; e/ou d. não lhes façam nada que lhes possibilitem fazer-lhes uma acusação válida (cf. IPe 4.15,16). E prossegue: porque os entregarão aos concílios, e em suas sinagogas os açoitarão. Esses concílios eram provavelmente os tribunais locais dos judeus, que tinham seu clímax no supremo tribunal judaico, o Sinédrio (cf. sobre 2.4). Os que, pela corte, eram declarados réus de certos crimes específicos eram açoitados na sinagoga.443 As fontes judaicas contêm detalhadas regulamentações concernentes a tais açoites. Um juiz recitaria uma passagem apropriada de Deuteronômio ou dos Salmos, um segundo contaria as chibatadas (ver Dt 25.1-3), um terceiro pronunciaria uma ordem antes cada chibatada, etc.446 À luz do livro de Atos (22.19) 444
O verbo npooéx« (aqui seg. pes. pl. pres. imp. ativo Trpooéxra) tem vários significados. Basicamente, significa: volver (a mente) para, prestar atenção a: e assim, estar preocupado com (At 20.28). aplicar alguém a ( l T m 4.13). ser dado a (11 m 3.8). apegar-se a ( l T m 6.3), e também: pôr-se em guarda contra (7.15: 10.17; 16.6.11,12; Lc 20.46; cf. Mt 6.1: ••'lenham o cuidado de não praticar'").
445
M.M., p. 604. artigo owéôpiov, considera Mateus 10.17 como uma referência aos tribunais de justiça locais dos judeus que eram anexos às sinagogas, e. por fim. ao grande concílio em Jerusalém, o Sinédrio. 4 ""' Para mais detalhes sobre isso, ver o artigo K. Schneider sobre pamiyóü). em Th.D.N.T.. Vol. IV, pp. 515-519.
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10.18
aprendemos que Saulo (Paulo) de Tarso condenava os crentes em Cristo a receber esse horrível castigo. Depois de sua conversão, ele mesmo iria ser semelhantemente torturado. Iria escrever: "Recebi dos judeus cinco vezes quarenta açoites menos um1" (2Co 11.24). Era o servo da sinagoga ("o assistente", Lc 4.20) quem estava investido da responsabilidade de aplicar as chibatadas. A predição se amplia, ao prosseguir Jesus: 18. Por minha causa vocês serão arrastados perante governadores e reis para testemunho a eles e aos gentios. Quanto a "governadores", creio que eram procuradores como Pôncio Pilatos, Félix e Festo; e de reis como Herodes Agripa I (At 12.1) e de Agripa II (At 25.13,24,26). Mesmo a Herodes Antipas, que tecnicamente não era rei, às vezes se dá também esse título (Mt 14.9; Mc 6.14). Foi Pôncio Pilatos quem sentenciou Jesus a morrer na cruz, depois de o ter enviado ao "rei" Herodes Antipas (Mt 27.26; Lc 23.6-12). Foi o rei Herodes Agripa 1 quem matou Tiago (filho de Zebedeu e irmão do apóstolo João). Ver Atos 12.1. A luz de Atos 25.13, parece que Paulo foi levado perante o rei Herodes Agripa í l e o procurador Festo. Ele dá um maravilhoso testemunho, da mesma forma como previamente fizera diante do procurador Félix. E compreensível que tais testemunhos fossem apresentados diante também de outros gentios, a saber, aqueles que estavam ou presentes ou subseqüentemente ouviram o que fora dito. Cf. Fp 1.12,13; 4.22. E assim as boas novas continuavam a propagar-se. Portanto, a. o cumprimento inicial dessa profecia era um assunto do futuro imediato, como é evidente das condições e atitudes já existentes; e b. detalhes concernentes a seu cumprimento subseqüente são registrados no livro de Atos e nas Epístolas. Ver também Apocalipse 1.9; 2.8-11, 6.9-11, 12.6,13-17, etc. O que é acima de tudo mais importante é o fato de que Jesus diz que isso acontecerá "por minha causa". Quando alguém persegue um discípulo de Cristo, ele está perseguindo o próprio Cristo, fato esse estampado tão indelevelmente na mente e no coração de Paulo (e, por meio dele, na consciência de 655
10.12,13
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Lucas) que, por mais que os relatos da conversão variem, as palavras: "Saulo. Saulo, por que você me persegue'"? se encontram nos três (At 9.4,5; 22.7,8; 26.14,15). Isso significa que o perseguido jamais se sente separado do amor de Cristo, da força e do conforto que ele comunica. Desse conforto se apresenta uma bela expressão nos versículos 19, 20. Ora, quando os entregarem (às autoridades], não se preocupem como ou o que vão dizer, já que o que devem dizer lhes será dado naquela hora. Ser levado ao tribunal é uma questão muito séria. Como conduzir-se diante de juízes, inclusive de governadores e reis, mormente como dirigir-se a eles, e o que dizer em defesa, poderia com razão encher esses homens com apreensão e horror. De forma notável, Jesus diz: "Não se preocupem"' (ver supra, sobre 6.31); ou seja: "Sempre que a preocupação erguer sua cabeça, derrubem-na imediatamente." Aqui, como no Sermão do Monte, Jesus proíbe não só o hábito de preocupar-se, mas seu próprio ponto de partida. Razão: naquele momento lhes será dado o que dizer. Isso não significa que a mente do apóstolo perseguido seja uma tabula rasa (tabuleta em branco) e que, então, dc alguma forma mecânica, Deus de repente começa a escrever palavras nesse espaço vazio. Ao contrário, nem quando essas testemunhas são conduzidas ao tribunal nem quando elas - pense, por exemplo, em Mateus, João e Pedro - escrevem livros ou epístolas, sua personalidade é suprimida, nem é anulada toda a preparação apostólica previamente recebida da parte de Jesus. Tudo isso será vivificado e aguçado e elevado a um plano de atividade mais sublime. E nesse sentido orgânico que o que deveriam falar lhes seria dado naquela hora. O Espírito do Pai estará falando neles, e que o mesmo Espírito, a saber, o Espírito Santo, a terceira pessoa da Santa Trindade, "os fará lembrar de tudo" o que o próprio Jesus lhes dissera (Jo 14.26). Esse Espírito já estava em ação antes do Pentecostes (SI 51.11). No Pentecostes, porém, e depois dele, ele seria "derramado" em toda a sua plenitude. Que essa profecia, também, foi gloriosamente cumprida, é evidente das palavras de Pedro, ou de Pedro e João (At 4.8656
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10.18
l2,19,20. com o efeito sobre o auditório descrito em 4.13,14) e das de Paulo (At 21.39-22.21; 23.1.6; 24.10-21; 26.1-23). Confessar Jesus resultará em divisão, não só entre grupos de pessoas - por exemplo, entre, por um lado, os que dão boasvindas aos apóstolos e sua mensagem, e, por outro lado, os que rejeitam a ambos mas mesmo dentro do círculo familiar: 21. Irmão entregará irmão à morte, [o[ pai a [seu] filho, e filhos se levantarão contra [seus] pais e os matarão. E verdade que esta última cláusula pode ser suavizada um pouco para significar "e os entregarão para que sejam mortos" (cf. 26,59; 27.1; Mc 13.12; 14.55); basicamente, contudo, isso faz pouca diferença, se é que faz alguma. A pessoa que de forma injusta expõe alguém à morte é tão culpada quanto se praticasse o ato com suas próprias mãos. Ver 2Sm 11.15, cf. 12.9. Como a linguagem o indica, o versículo 21 tem alguma relação com Miquéias 7.6. Nessa passagem, o profeta se queixa da falta de lealdade prevalecente entre seu povo - o filho que desonra o pai, a filha que se levanta contra sua mãe, etc. O que Jesus diz aqui, como reportado por Mateus, contudo não se pode considerar realmente uma "citação". É mais penetrante do que isso. É uma predição de uma matança literal que, por sua causa, estará ocorrendo dentro das famílias: um membro que se opõe a Cristo, outro que é cristão. O filho que odeia a Cristo entregará seu próprio irmão para que seja morto; o pai, seu filho; os filhos, seus pais. Recentemente foram ouvidas as terríveis palavras: "Creio que os filhos deveriam matar seus pais."447 Ora, se isso significa: "porque esses pais são egoístas, indiferentes quanto a ouvir os clamores da fome e quanto a compartilhar com eles sua própria subsistência", o sentimento assim expresso, ainda que indubitavelmente condenável, não é tão perverso quanto o é a ação predita e descrita aqui em 10.21. Como o contexto - note: "E vocês serão odiados" - revela, aqui o significado é: "Filhos se levantarão contra [seus] pais e os matarão, por causa da lealda447
Citado no Princeton Seminary Bulletin. Vol. LXIi, No. 3. outono dc 1969, p. 59.
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de dos pais a Cristo." Ora, é verdade que Jesus também ensina o que se encontra em 10.37,38. Mas uma coisa é expressar preferência e decisivamente fazer assim. Outra é matar alguém em cujo partido não queremos ser achados. A matança aqui predita e condenada resulta do ódio: 22. E vocês serão odiados de todos por causa de meu nome... Eis o significado: "Vocês continuarão a ser odiados."448 Essa forma da expressão pode muito bem subentender que Jesus não estava pensando só no que aconteceria aos Doze, mas também das perseguições a serem suportadas por seus sucessores nos tempos futuros, na verdade até o seu retorno. Ver sobre versículo 23b. 0 ódio ao qual Jesus faz menção aqui é também descrito por João (1 Jo 3.13). As palavras "de todos" não devem ser tomadas literalmente, como se referindo a cada homem, cada mulher e cada criança sobre a terra, ou mesmo a todos os alcançados pelo evangelho. Quando o Senhor acusa Israel de haver fornicado "debaixo de cada árvore verde" (Jr 3.6), de pronto entendemos que isso é hiperbólico, uma figura perfeitamente normal de se expressar. O mesmo se aplica à passagem: "Toda noite eu faço nadar meu leito; com minhas lágrimas o inundo" (SI 6.6). A expressão: "odiado de todos" significaria: "dos homens em geral, sem distinção de classe, condição, raça, nacionalidade, sexo ou idade." O mesmo não é verdade também com respeito ao uso de "todos" em Marcos 1.37; 5.20; 11.32; Lucas 3.15; João 3.26; 1 Timóteo 2.1; Tito 2.11? As palavras: "por causa de meu nome"(cf. "por minha causa", "por causa de mim, como me revelo em palavras e atos". Uma vez que o mundo odeia Cristo, também odeia seus representantes. Não obstante, há conforto nesta promessa: mas aquele que perseverar até o fim, esse será salvo. Aquele que permanece leal a Cristo por todo o período de perseguição entrará na glória. Para o mesmo, esse período de perseguição durará até que a 448
O futuro perifrástico passivo, provavelmente com força durativa. como sc dissesse: isso vai continuar ocorrendo ao longo dos séculos. O original tem êo«i8f piooú|ievoL.
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10.23
morte o liberte deste cenário terreno (Jo 16.33; 2Tm 3.12), pois a igreja em geral durará até o retorno de Cristo em glória (2Ts 1.7; Ap 11.10-12). Os discípulos, pois, não precisam desesperar-se. Que labutem enquanto é dia, fazendo uso de seu tempo o melhor possível. Então, Cristo prossegue: 23. Ora, quando os perseguirem nesta cidade, fujam para a próxima... O Senhor aqui determina um princípio. Essa regra deve ser posta em prática pelos discípulos e por aqueles que os seguiriam. O que os mensageiros das boas novas devem fazer quando uma cidade os rejeitarem e a seu evangelho? Seguramente, devem ser pacientes. Ver Isaías 5.1-7 e Lucas 13.6-9. Essas mesmas passagens, contudo, também ensinam que existe um limite para a paciência de Deus e que aqueles que o seguem devem imitá-lo nisso. Em parte alguma a Bíblia ensina que um obreiro do reino que, enquanto trabalha numa certa aldeia ou cidade, está sendo constantemente hostilizado e cuja mensagem está sendo persistentemente rejeitada deva permanecer nesse mesmo lugar ano após ano até que morra. Seus talentos não estariam sendo desperdiçados? Seria justo para com outras comunidades que estão clamando por socorro? Que ele se mude! Que os apóstolos aderiram a esse princípio, é evidente à luz de muitas passagens (At 12.17; 13.46,51; 14.6,20; 16.40; 17.10,14). Com respeito às palavras que se seguem, há uma ampla diferença de opinião entre os comentaristas: pois solenemente lhes declaro, certamente não terminarão [de percorrer] as cidades de Israel antes que o Filho do homem venha. Entre as muitas explicações dessas palavras, há umas poucas que eu rejeitaria em definitivo: 1. Visto sabermos que a segunda vinda não ocorreu, Jesus teria cometido um equívoco. Resposta: Se Jesus equivocou-se sobre esse importante assunto, como iremos saber que ele não equivocou-se também acerca dos demais? Tanto a doutrina quanto a ética ficam assim subvertidas e destruídas. 659
10.11
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2. Mateus situou mal essa passagem. Resposta: Eis outra forma "fácil" de descartar uma dificuldade. Não existe evidência que apóie tal teoria. 3. O significado é este: "antes que o Filho do homem os alcance." 4. A referência é ao terrível juízo sobre os judeus nos anos 66-70. Resposta aos itens 3 e 4: não há nada no contexto que de alguma forma exija ou sugira tal explicação. E preciso ter algo mais em mente. Tais explicações desconsideram o fato de que nas demais passagens de Mateus nas quais a vinda do Filho do homem é mencionada e descrita, a referência está ligada à segunda vinda. E uma vinda "na glória de seu Pai", "com seus anjos", "para dar a cada homem segundo seus feitos" (16.27,28); uma vinda quando Cristo "sc sentará no trono de sua glória" (19.28); uma vinda que será "visível" (24.27); "súbita e inesperada" (24.37,39,44); uma vinda "sobre as nuvens do céu com poder e grande glória" (24.30; cf. 25.31; 26.64). Seria estranho, pois, que em 10.23 se excluísse completamente toda referência à exaltação de Cristo, a qual atinge seu clímax na segunda vinda. Além disso, quanto à teoria 4, isso é muito mais questionável, visto que aqui em 10.23 o contexto (ver vv. 22b,28-32) é definidamente pleno de conforto, não de terror. A destruição de Jerusalém é predita não aqui no capítulo 10, mas em 22.7; 23.38; ver também 24.2,15,16. Não obstante, mesmo assim é bem possível surgir uma pergunta: "Concedido que não se pode excluir que uma referência à vinda de Cristo em glória, 10.23 relere-se a. ao princípio desse processo, ou b. à sua culminação? Noutros termos, a. estava Jesus predizendo a maneira em que ele, como Senhor redivivo, se revelaria a seus discípulos imediatos (Jo 20.19-29; ver também Mt 28.16-20); e estava ele solenemente declarando que esse retorno ocorreria antes que tivesse terminado de andar pelas cidades de Israel; ou b. estava ele prometendo que até o momento de seu glorioso retorno sobre as nuvens do céu as boas novas de salvação estariam sendo divulgadas não só entre ou660
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10.24,25
tras nações, mas também entre os judeus'"? Tomado em qualquer desses dois sentidos, é uma confortante certeza, e isso não só para os próprios missionários, quer os Doze ou seus sucessores, mas até mesmo para os judeus. Para os embaixadores de Cristo, significaria: "Não temam, pois voltarei para vocês." Para Israel, significaria: "Não estou rompendo com vocês; seu remanescente também será salvo." Hm favor de a. está o fato de que o ponto de partida dessa solene declaração pareceria ser a situação presente: os discípulos a quem Jesus se dirige estão sendo enviados aqui e agora, e estão sendo informados de que, caso fossem perseguidos numa cidade, então que fugissem para a próxima, ao que se acrescenta imediatamente uma oração explicativa, expressando a razão para essa exortação. Além do mais, 10.28b não apóia também esse raciocínio?449. Por outro lado, como ficou estabelecido, a própria menção de "a vinda do Filho do homem", escatologicamente falando, certamente apontaria na direção de como sendo a interpretação correta. Entretanto, é essa uma proposição em que se deve escolher uma de duas? Não seria possível que Jesus, o Grande Profeta, esteja aqui desvendando o futuro, e nesse procedimento esteja fazendo uso do artifício bem conhecido e firmemente estabelecido da "perspectiva profética", por meio da qual se descortinam diante de nossos olhos picos amplamente separados de eventos históricos, os quais se juntam e se nos apresentam como sendo apenas um'? Num certo sentido, são mesmo um só, pois a ressurreição e a volta de Cristo resultam realmente da mesmíssima atividade do Pai pela qual glorifica e exalta seu Filho como recompensa por haver consumado a obra medianeira? Além disContra esta interpretação, segundo a qual uma fuga de cidade em cidade pode ter ocorrido ainda antes do Gólgota e das Oliveiras, tem-se argumentado que até depois da ressurreição de Cristo os discípulos ainda não haviam sido perseguidos. Mas é difícil conciliar essa posição com passagens como as seguintes: .lo 7.13: 9.22.34; 12.42: 15.20; cf. Mt 5.10-12: 9.11; 10.14.16-22: 12.2: 15.1.2; 19.27-29. Sc era verdade que, pelo prisma humano, não havia perigo algum em estar estreitamente vinculado com Jesus antes de sua ressurreição, por que Pedro negou seu Mestre? 661
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so, se ficar comprovado, que segundo Mateus 24, Jesus faz uso da perspectiva profética quando, em vívidas cores tomadas por empréstimo da destruição de Jerusalém pelos romanos, ele pinta sua vinda no desenlace da História, por que não podemos ter algo de natureza semelhante aqui em 10.23? A manhã da Páscoa e o Pentecostes são partes do quadro inteiro! No versículo precedente, Jesus falou de perseguição que aguardava seus discípulos. Não deviam sentir-se surpresos com isso, como se algo muito estranho lhes estivesse ocorrendo (cf. Jo 14.29; 1 Pe 4.12). Diz Jesus: 24,25. O aluno não excede em importância a seu professor, nem o escravo a seu senhor. Que o aluno fique satisfeito em participar da sorte de seu professor, e o escravo em participar da sorte de seu senhor. Se (até] o senhor da casa foi chamado de Belzebu, quanto mais os membros de sua família! Assim como é verdade que um aluno não excede a seu professor, tampouco um escravo excede a seu senhor ou dono, assim é no tocante aos Doze (ou a todos os seguidores de Cristo) em seu relacionamento com Cristo, seu Mestre e Senhor. Se Jesus não é reverenciado, seus discípulos não serão nem mesmo respeitados. Portanto, se o inimigo trata o aluno ou o escravo com o mesmo desdém que confere ao superior, ou seja, se ele não trata o subordinado de forma ainda pior, que este fique satisfeito. Em Mateus 12.24-27 (cf. Mc 3.22-27; Lc 11.15-20), os fariseus chamam Jesus de instrumento de Belzebu. Afirmam que Belzebu é a fonte do poder e atividade com que Cristo exorciza. De acordo com João 8.48, dizem que Jesus está endemoninhado. Aqui em Mateus 10.25, somos informados de que haviam dito que ele mesmo era Belzebu,450 ou seja, que ele era o 4511
Foi como Baal-zebu/; (2Rs ! .2,3,6; LXX BáaX fivíau). ou seja. senhor das moscas, e por isso também protetor contra essa praga, que Baai era adorado em Ixrom. O rei Aca/.ias, que enviou mensageiros para consultar Baal-zebub sobre se ele se recobraria dos resultados de sua queda, foi informado dc que, em decorrência dessa deslealdade a Jeová, ele morreria. Passagens do Novo Testamento substituem Beel [BaaiJ zebu/ por zebub. Beelzebul significa "senhor da habitação". A razão para a mudança na ortografia não é clara. Pode ser simplesmente o resultado de um acidente na pronúncia popular. Outra explicação é que há aqui uni jogo
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diabo em pessoa. Se os inimigos de Cristo se mostram tão ousados nessa vil maneira de caluniá-lo, o dono da casa (cf. Jo 13.14; Ef 3.15; 4.15; Cl 1.18; 2.10), não estará muito mais disposto a caluniar e a maltratar "os membros de sua casa" (ICo 12.27; Ef 2.19,20; 5.30), isto é, seus discípulos? Entretanto, o próprio fato de estarem eles assim intimamente associados com Cristo, e daí também "unidos pelos laços de vida com o S E N H O R seu Deus" (ISm 25.29), lhes injetaria coragem. Conseqüentemente, não devem nutrir medo do inimigo, mas devem testificar ousadamente. Sumário das Razões Pelas quais se Devem Proclamar as Boas Novas Sem Temor 1. Seus inimigos não podem evitar que vocês sejam vindicados publicamente, nem impedir que eles sejam desmascarados publicamente. 2. Não podem matar a alma de vocês, mas só seu corpo (v. 28)]. 3. Não podem desfazer nem a vontade do Pai nem seu amorável cuidado (vv. 29-31). 4. "Confessarei os que me confessarem, e negarei os que me negarem" (vv. 32,33). Começando com o item 1, Jesus afirma: 26,27. Portanto, não tenham medo deles; pois não há nada encoberto que não será revelado, nem oculto que não se tornará conhecido. Tudo quanto agora é oculto, um dia será revelado: quem são esses inimigos, o que fizeram, a quem perseguiram, como serão castigados, etc. Também será revelado quem são os justos, o que fizeram, a quem honraram, quão preciosos são aos olhos de de palav ras, pois zebul se assemelha a zebah eslerco. I j assim, os que desprezavam o Baal de Ixron. possivelmente, por meio de uma leve mudança na pronúncia, escarneciam dele. transmitindo a idéia de que ele não passava dc "senhor do esterco". Seja como for. porém, no uso neotestamentário, Beelzebul é definitivamente "o príncipe dos demônios", como o comprova uma comparação de Mateus 12.24-27 (e passagens paralelas) com Mateus 9.34. Beelzebul é Satanás (cf. 12.26 com 12.27).
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Deus. como serão recompensados, etc. Ver Lc 12.14; Mt 12.36; 13.43; 16.27; Lc 8.17; 12.2; Rm 2.6; Cl 3,34; Ap 2.6,23; 20.12,13. O fato de que naquele grande dia os seguidores de Cristo resplandecerão em toda a sua glória é uma razão plausível para que agora não devem nem sequer começar a temer. Portanto, o seguimento é: o que lhes digo às escuras, vocês devem dizê-lo em plena luz; o que é cochichado aos seus ouvidos, proclamem-no dos telhados. Portanto, que preguem pública, franca e corajosamente. Certas questões básicas e importantes já eram conhecidas dos discípulos, por exemplo: "Arrependamse, porque o reino do céu está próximo." Essas coisas têm de ser proclamadas neste tempo (v. 7). Não haveria o risco de que nessa primeira viagem falassem de coisas que nem mesmo haviam sido sussurradas em seus ouvidos. Ainda que saibamos, à luz da revelação posterior, que a morte de Cristo na cruz estivesse deveras vagamente implícita (9.15), tal coisa não foi entendida na época quando essas palavras foram enunciadas. Mais adiante serão enunciadas predições mais claras (ver sobre v. 38). Contudo, mesmo então, ainda quando Jesus falasse "abertamente", às vezes sucedia que o que dizia não era captado por eles (Mt 16.22; Mc 8.32; Lc 9.45; 18.34), como se estivesse sussurrando mui levemente ao ouvido. Além disso, havia muita coisa que nem mesmo podia ser revelada enquanto não se desse a ressurreição e o derramamento do Espírito Santo (Jo 16.12,13). Antes que isso se tornasse realidade, os discípulos ainda não estavam preparados para o mesmo. Tal coisa não é difícil de compreender, pois naturalmente a revelação redentiva não pode atingir seu zénite antes dos eventos redentivos - tais como a morte de Cristo na cruz, seu sepultamento, ressurreição, ascensão, etc. - realmente se tornassem vias de fato. Talvez seja uma das razões por que an4M
A distinção entre o aoristo médio subjuntivo ^opriQrjrt. no v. 26, e o presente médio imperativo cfiopeioOf. no v. 28. lembra um pouco um dos verbos que se centram em torno de um tema sinônimo - o da ansiedade em 6.25 c 6.31. onde a seqüência é invertida: primeiro o presente imperativo c a seguir o aoristo subjuntivo.
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tes da ressurreição de Cristo haveria sido prematuro revelar publicamente o ocorrido no monte da transfiguração (Mt 17.9). À luz de tudo isso, faz-se evidente que, ao serem os discípulos informados de que deviam dizer à plena luz o que Jesus lhes havia dito no escuro, e proclamar dos telhados o que lhes fora dito "ao ouvido" (literalmente), a obediência a esse mandamento não poderia ser plenamente concretizada antes da Páscoa e do Pentecostes. Certamente que havia uma história a contar mesmo agora, uma maravilhosa história, sim, acompanhada de feitos de poder e compaixão. Mais que isso, porém, de fato muito mais, seria reservado até mais tarde, quando esses homens estivessem melhor qualificados. No momento, contudo, que proclamassem da forma mais pública possível (Mt 28.18-20) o que previamente lhes fora sussurrado ao ouvido. Que não se deixassem dominar pelo medo, pois a veracidade da história do amor de Deus, revelada em Cristo, seria plenamente vindicada, bem como seus mensageiros. Ela seria confirmada na vida dos pecadores transformados em santos. Especialmente seria validada no grande dia do juízo, quando toda oposição ímpia for totalmente desmascarada. A segunda razão pela qual tudo quanto fosse proclamado algumas coisas agora, outras mais tarde devesse ser destemidamente proclamado é afirmada no versículo 28. E não tenham medo dos que matam o corpo, mas não são capazes de matar a alma.... Entre tudo quanto os inimigos desejassem fazer, há uma coisa que não poderão fazer, ou seja, matar a psiche, isto é, a alma, aquela parte do ser humano que é imaterial e invisível. Quanto à distinção feita no uso bíblico entre psiche (alma) e pneuma (espírito), de meu livro, A Vida Futura Segundo a Bíblia, Editora Cultura Cristã, São Paulo, citei o seguinte: "Em parte alguma a Bíblia ensina que o homem é composto de três partes. Leia Gênesis 2.7, e você notará que na história da criação do homem sua dupla natureza é claramente asseverada. Uma longa lista de passagens poderia ser apresentada para 665
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indicar que os autores inspirados da Bíblia eram dicotomistas. A lista pode incluir passagens tais como Eclesiastes 12.7, Mateus 10.28, Romanos 8.10, ICoríntios 5.5; 7.34, Colossenses 2.5 e Hebreus 12 . 9.452 ... Só há um único elemento imaterial invisível, embora pelo menos dois nomes sejam dados a ele. Ora, é verdade que quando a Bíblia faz referência a esse elemento imaterial, em sua relação com o corpo, com processos e sensações corporais, e de fato com toda esta vida terrena, com seus sentidos, afeições, gostos e aversões, geralmente emprega o termo alma (psiche); por exemplo: 'Os judeus incitaram as almas dos gentios' (At 14.2). E igualmente verdade que quando a referência é ao mesmo elemento imaterial considerado como um objeto da graça de Deus e como o sujeito de culto, o termo espírito (pneuma) é usado com maior freqüência (Paulo sempre o utiliza quando seu propósito é indicar o significado que acabamos de dizer); por exemplo: 'Meu espírito ora' (ICo 14.14). A questão, porém, não é tão simples assim. Em vários exemplos, os dois termos, alma e espírito, são usados intercambiavelmente, com nenhuma (ou muito leve) diferença em conotação. Permita-me apresentar-lhe um exemplo muito claro. E o de Lucas 1.46,47: 'Minha alma [psiche] magnifica o Senhor, e meu espírito [pneuma] se alegra em Deus meu Salvador.' A conclusão, portanto, é esta: ao falar do homem invisível e do elemento imaterial, você tem pleno direito de chamá-lo ou de alma ou de espírito. E se alguém, falando a você, sustentar que a alma do homem é necessariamente sua substância imaterial inferior, algo que vale menos que seu espírito, deve perguntarlhe se ele não acredita em ganhar almas, se também não crê que sua alma está salva, e se ele não concorda com o fato de que é melhor que o homem perca o mundo inteiro para não perder sua alma. Uma vez que você deixou claro o seu argumento, sugiralhe que ambos, você e ele, cantem o hino: 'O minha alma, bendiga ao Senhor!'" 432
lTs 5.23 não é exceção a essa regra. Ver C.N.T, sobre 1 e 2 Tessalonicenses, pp. 141, 142; também nesse livro, nota na pp. 146-150.
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10.28
Para as várias nuanças de significado em que no Evangelho de Mateus o termo "alma" é usado, veja nota de rodapé.453 Jesus, pois, está advertindo contra o trágico erro de se viver constantemente cheio de medo em decorrência daqueles que são capazes de matar o corpo, como se o corpo fosse mais importante que a alma. Ede prossegue: ao contrário, tenham medo de quem é capaz de destruir no inferno tanto a alma quanto o corpo. Quase nem é necessário acrescentar que o pronome "quem" se refere a Deus. Ao omitir o substantivo, dá-se maior ênfase ao caráter e atividade de Deus, isto é, sobre o que ele é e o que ele é capaz de fazer. O verbo "destruir" é usado no sentido não de aniquilamento, mas da aplicação de castigo eterno sobre uma pessoa (25.46; Mc 9.47,48; 2Ts 1.9). Quanto ao termo, "inferno", que nesse texto, no original, é Gehenna (e assim também 5.22,28,30; 18.9; 23.15,33; Mc 9.43-47; Lc 12.5; Tg 3.6), geralmente se refere à morada do ímpio, corpo e alma, depois do juízo final. Quando essa mesma morada recebe o nome de 4:
" Neste Evangelho, o termo i|n>xií ocorre dezesseis vezes. Em 2.20 c duas vezes em 6.25, é obviamente o princípio que anima a existência fisica do homem e seu bemestar. E tais casos, a tradução "vida" é correta. Em nossa presente passagem (10.28, duas vezes), é claramente a parte imaterial e invisível do homem, quando contrastado com o material e visível. Em passagens tais c o m o 10.39. duas vezes; 11.29; 12.18; 16.25. duas vezes; 16.26. duas vezes: e 20.28. devido à influência semítica, o significado "mesmo" (daí. ele mesmo, você mesmo, vocês mesmos, ou mesmo "eu", dependendo a conotação exata do contexto específico em cada caso) merece séria consideração, especialmente à luz dos paralelismos e das passagens paralelas. Em 22.37 IJJUXÚ se aproxima do significado de irvtOna. E a alma ou espírito humano em sua relação com Deus. Finalmente, em 26.38. I|II>CT indica a parte invisível do homem vista como o princípio do pensamento, da vontade ou do desejo. Se em tais casos há alguma distinção entre itftújia e <|»uxii deve ser que trwüpa é usado mais amiúde em conexão com a atividade mental, i|n)xq em conexão com a atividade emocional. E assim é o TTVHJJM que percebe (Mc 2.8). planeja (At 19.21) e conhece ( I C o 2.11), é a i|/uxií que sente pesar (Mt 26.28). O irveOp« ora ( I C o 14.14); a tJjuxÚ ama (Mc 12.30). Também t|n>xií c às vezes mais geral, mais amplo em escopo, às vezes indicando a soma total da vida que se ergue acima do físico; enquanto irwüiia é mais restrito, freqüentemente indicando o espírito humano em sua relação com Deus. Em tais casos descreve o homem c o m o o sujeito em atos de culto ou atos relacionados ao culto, tais como orar, dar testemunho, servir ao Senhor. Tais distinções, porém, não são rígidas. Há coincidência parcial.
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10.29-31
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Hades, a referência é ao tempo antes do juízo final, ainda que Hades tenha também outros significados na Escritura.414 Jesus, pois, está dizendo que há um futuro eterno tanto para a alma quanto para o corpo. Nunca será aniquilado nem um nem outro. Significa, sim, eterna "destruição" reservada para os que o rejeitam. A tentativa de salvar o corpo, de modo que continue a existir aqui e agora, por um breve espaço de tempo, enquanto os eternos interesses da pessoa inteira, alma e corpo, estão sendo negligenciados, é verdadeira loucura, é como transferir um perigo menor para um maior. Ver Lucas 12.13-21. Ao proclamar a mensagem do reino corajosamente, os discípulos receberiam a certeza de vida eterna para a glória de Deus. Além disso, seriam uma bênção para seus semelhantes. Que então temam a Deus. Que reverenciem aquele em cujas mãos eles, em sua alma e seu corpo, estão eternamente seguros. Que não temam os oponentes terrenos que podem fazer tão pouco dano. As duas razões para a destemida proclamação das boas novas já apresentadas, uma terceira é agora acrescida, substancialmente equivalente ao seguinte: 29-31. Os pardais não são vendidos por um centavo? Contudo nenhum deles cairá por terra sem [a vontade dej seu Pai. E quanto a vocês, os próprios cabelos de sua cabeça estão todos contados. Portanto, não tenham medo. Vocês valem mais do que muitos pardais. Os pardais e outras aves pequenas eram apanhados, mortos, depenados, assados e consumidos. Eram considerados guloseimas, como ainda é o caso em alguns países. Não surpreende, pois, que houvessem se transformados em artigos de comércio, sendo comprados e vendidos. O preço, no tempo em que Jesus pronunciou essas palavras, era "dois por um as (ou assar ion)" (cf. 5.26), uma moeda romana de cobre que valia apenas cerca de 1/16 de um denário. Poderíamos chamá-lo um centavo; daí, "dois por um centavo". Pelo preço de dois centavos incluía-se um pardal extra; daí, "cinco por dois centavos" (Lc 12.6). Mas Ver meu livro A Vida Futura Segundo a Bíblia, sobre o 1 lades e sobre o Gehcnna.
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10.29,31
ainda quando em termos relativos esses pardais fossem tão baratos, tão insignificantes em comparação com artigos de alto custo, Jesus assegura a seus discípulos: "Nem sequer um pardal cairá por terra sem seu Paí\ literalmente falando; provavelmente significando: "sem o envolvimento ou a vontade de seu Pai." Note que o Criador deles é "seu Pai". Imprimindo ênfase,4"' Jesus declara que não só a alma e o corpo (ver v. 28) dos discípulos são assuntos de importância para seu Pai celestial, mas até mesmo os cabelos de sua cabeça estão todos enumerados; e isso no sentido em que ele sabe quantos são e dá sua atenção a cada um e a todos eles. Cada fio desses cabelos é de algum valor para ele, visto ser o cabelo de um de seus filhos. Portanto, à parte de seu cuidado soberano e seu amoroso coração, nada pode acontecer mesmo a qualquer um desses cabelos. Aqui a providência geral de Deus com respeito a todas as suas criaturas e sua providência especial da qual os homens são objetos abre espaço àquela vigilância muito especial que ele exerce em favor daqueles que, por virtude não só da criação, mas também da redenção, são sua propriedade peculiar. Não lhe são eles muito mais preciosos que qualquer número de pardais? Há algo incomparável no amor do Pai por aqueles a quem escolheu como sua propriedade peculiar, algo especialíssimo. Para apreciar-se a profundidade e ternura de 10.31, deve-se ler não só em seu próprio contexto, mas também à luz de outras palavras de alento, igualmente belas, ou seja, as que se encontram em SI 91.14-16; 116.15; Is 49.16; Os 11.8; Mt 11.25,26; Lc 12.32; Jo 13.1; 14.3; 17.24; Rm 8.28; Uo 4.19; e Ap 3.21, para mencionar apenas umas poucas. E agora, a quarta e última razão para a ordem para que seus discípulos proclamassem o evangelho do reino sem trepidação: 32, 33. Todo aquele, pois, que me confessar diante dos homens, também o confessarei diante de meu Pai que está no céu. Mas todo aquele que me negar diante dos homens, também o negarei diante de meu Pai que está no céu. Os Doze 4
" Note a posição de u^wv no início do v. 30. e portanto imediatamente após o u^üv da cláusula precedente.
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estavam sendo enviados para proclamar a mensagem do reino. Não obstante, essa mensagem não deve ser friamente objetiva, nem uma mera recitação de palavras memorizadas. O coração de cada discípulo deve estar envolvido em sua mensagem, ou seja, deve professar sua fé em456 Cristo. Cf. Salmo 66.16. Professar - ou "confessar" - Cristo significa reconhecê-lo como Senhor da vida daquele que confessa, e isso abertamente ("diante dos homens"), mesmo aos ouvidos daqueles que se lhe opunham. Negá-lo significa repudiá-lo, recusar reconhecê-lo como propriamente seu, ou desconsiderá-lo. Na segunda cláusula de cada membro dessa excelente ilustração ou paralelismo antitético, ou seja, nos versículos 32b-33b, Jesus promete confessar diante de seu Pai celestial os que o confessaram, bem como negar diante do Pai celestial os que o negaram. Quando Jesus confessa uma pessoa, ele a reivindica como pertencente a ele e defende sua causa. Que tal atividade intercessória, a qual ele exerce como Mediador, já havia começado durante seu ministério terreno, é óbvio à luz de passagens tais como Lc 22.31,32; Jo 17.6-11,15-26. Que ele prossegue exercendo-a no presente, é ensinado em Uo 2.1. Que ele reconhecerá os seus no dia do juízo, é evidente à luz de 25.34-36,40. Que ele, num sentido não exatamente o mesmo como em 1 Jo 2.1, jamais cessa essa obra em favor deles, ante o fato de que ele não só continua a interceder, mas "vive a fazer intercessão por eles", é a confortante verdade expressa em Hebreus 7.25.457 Em contrapartida, que diante do Pai celestial ele negará, desconsiderará, repudiará os que persistirem em negá-lo, sem jamais arrepender-se de sua má conduta, é ensinado em Mt 7.21 23; 25.41-43,45. Pois para os que durante o dia da graça se arre4.6
4.7
Nas duas cláusulas paralelas do v. 32, o verbo traduzido por confessar (onoÀoynaa, na primeira cláusula; opoÀoyTÍoo), na segunda) é seguido pela preposição lv. Isso provavelmente sc deve à influencia araniaiea, uma prova a mais de que Jesus geralmente falava nessa língua. Ver Grant.N. 1'.. p. 475. Ver sobre este tema todo em 11. H. Meeter, The Heavenly Ilighpriesthood oj Christ (dissertação doutoral submetida ao Free Universily em Amsterdã). Grand Rapids (sem data).
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10.34,35
pendem de seus pecados há perdão e restauração (Lc 22.62; Jo 21.15-17). O fato de que entre os homens haverá, de um lado, os que confessam a Jesus, e, do outro, os que o negam, indica que a vinda de Cristo trouxe divisão (ver v. 21). Esse pensamento é expresso de uma forma concisa nas palavras de Jesus como são registradas nos versículos 34,35. Não pensem que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, e, sim, espada. Pois vim pôr um homem contra seu pai, uma filha contra sua mãe e uma nora contra sua sogra. Temos aqui um mashal; ou seja, um dito paradoxal, que soa de forma incrível! Que ele é contrário à opinião prevalecente, indica-se por suas palavras iniciais: "Não pensem que..." Cf. 3.9; 5.17; Jo 5.45. O que Jesus diz aqui leva a pessoa que ouve ou lê a uma chocante surpresa ou descrença. A reação natural a essa surpreendente afirmação seria: "Como é possível isso ser verdade? Cristo não é "o Príncipe da paz" (Is 9.6)? Não é ele aquele que chama bem-aventurados os pacificadores (Mt 5.9)? Se ele não veio trazer paz, como as seguintes passagens seriam verazes: SI 72.3,7; Lc 1.79; 2.14; 7.50; 8.48; Jo 14.27; 16.33; 20.19,21; Rm 5.1; 10.15; 14.17; Ef 2.14; Cl 1.20; Hb 6.20-7.2? Todas elas não proclamam em termos vigorosos a Jesus como o Portador da paz"? Não obstante, é mister que nos lembremos de que a característica de muitos mashal é colocar ênfase num aspecto da verdade em vez de pô-la numa proposição que é universalmente válida. Ver sobre Mt 5.34: "Não jurem de forma alguma." O mérito de tais aforismos é que eles fazem uma pessoa parar e pensar por um instante. Assim também aqui. Uma breve reflexão logo convencerá o atento estudante das Escrituras de que há certo sentido em que a vinda de Cristo a este mundo não só trouxe divisão, mas continha o propósito de agir assim. Se tal não fora seu propósito imediato, não estariam todos os homens perdidos (Jo 3.3,5; Rm 3.9-18)? Não teriam todos se precipitado na condenação? Além disso, mesmo na vida dos que finalmente se salvam, não é verdade que por meio de muitas trihula671
10.34,35
MATEUS
ções devam eles entrar no reino de Deus (At 14.22)? Não é a vida do crente uma vida de tempestade e tensão? Seguramente. enfim tudo é paz, mas, o mesmo Paulo que exclama: "Graças a Deus por meio de Jesus Cristo nosso Senhor", também se queixa: "Miserável homem que sou!'" (Rm 7.24.25). Além do mais, haverá amargos oponentes. Aqui "na terra", ou seja, durante esta presente dispensação, os seguidores de Cristo devem esperar "a espada". Essa palavra é aqui usada para simbolizar o próprio oposto de paz; daí, "divisão" (Lc 12.51), resultando cm perseguição. E assim que se evidenciará quem está e quem não está do lado do Senhor. E é assim que "os pensamentos de muitos corações se revelarão" (Js 5.13,14; Mt 21.44; Lc 2.34,35; 20.18). A entrada de Cristo neste mundo o divide em dois: o parte, o corta em dois, e ao fazer assim "põe" ou "volta" uma pessoa contra a outra. hN A fé não só cria divisão entre uma raça e outra, um povo e outro, uma igreja e outra; ainda produz divisão na família, que na realidade é às vezes a mais aguda das divisões. Quanto a isso, Lc 12.52,53 menciona "cinco" membros da família que vivem todos sob o mesmo teto: pai, mãe, filha solteira, filho casado e sua esposa (a nora dos pais). Em decorrência da relação que esses vários membros assumem para com Cristo, há intensa tensão entre eles. Aqui em Mateus, a melhor interpretação poderia ser que a mãe, por causa de sua fé em Cristo, está recebendo oposição da filha solteira e da nora; semelhantemente, o pai crente recebe de seu filho. Alusivo a Miquéias 7.6 (ver sobre v. 21), segue-se um sumário dos versículos 34, 35 no versículo 36. Os inimigos de um homem [serão] os membros de sua família. Entre as ilustrações bíblicas da fé que em certo sentido se torna divisor de famílias estão as seguintes: em cada caso, o primeiro membro do par é o que se opõe à fé. E ele o real inimigo pessoal, e deve, portanto, levar a responsabilidade da divisão: Caim versus seu irmão Abel (Gn4.8; cf. 1 Jo 3.12); Maaca se declarou contra seu 4:18
Note òixánai aor. al. inf. de ôi^áC«: seguido três vezes por Katá. contra.
672
MATEUS
10.24,25
filho Asa (lRs 15.13); e Nabal se opôs a sua esposa Abigail (ISm 25.2,3,10,11,23-31). Nos últimos dois exemplos, a história enfatiza a reação da fé, em vez da ação do incrédulo. Ver também 2Sm 18.33; SI 27.10; e ICo 7.12-16. Uma escolha tem de ser feita. E tem de ser uma escolha certa, mesmo que isso signifique um filho alienar-se de seus pais, ou vice-versa; 37.Quem ama459 pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama filho ou filha mais do que a mim, não digno de mim... Pertencer a Cristo é um privilégio tão inestimável, que nenhuma outra relação pode substituí-lo. E um dever tão imperativo, que nenhuma outra obrigação é mais obrigatória. Ver Atos 5.29. Se a escolha é entre um pai ou Cristo, a vontade do pai, não importa quão ardente seja, deve ser rejeitada; se é entre um filho ou Cristo, que a vontade do filho, não importa quão veemente seja, deve ser sobrepujada. Isso deve ser feito devido à predominância do amor por Cristo. Os que rejeitam essa suprema lealdade a Jesus "não são dignos" dele, ou seja, não merecem pertencer-lhe e ser honrados por ele. A disposição de se sacrificar por Cristo e sua causa deve ser total. Portanto, as palavras: "Quem ama pai e mãe... filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim" são imediatamente seguidas pelo versículo 38. E quem não sua cruz e vai após mim, não é digno de mim. A figura de linguagem deriva do costume então prevalecente segundo o qual a pessoa sentenciada à morte de crucifixão era obrigada a carregar sua própria cruz até ao lugar da execução (Jo 19.17). Levar a cruz após Je"l5'' Note o partieípio presente 4>LAX3V de cjiiAéto; daí, literalmente: "o que ama", assim também no v. 37b. O tato de que este verbo, em vez de uma forma de àyairáw. é aqui usado, não tem significação especial. É razoável que dentro do círculo familiar o amor seja basicamente uma afeição natural espontânea, em que as emoções às vezes exercem um papel mais proeminente do que o intelecto ou a vontade. Ainda que seja verdade que o objeto "mim", ou seja, Cristo, é governado pelo mesmo verbo, não obstante o ponto de partida na comparação é o amor dentro da família. Além disso, entre (jnXfCi) e àyairáw há muita justaposição. Para o restante, ver a extensa consideração e completa tabulação desses dois verbos em C.N.T. sobre o Evangelho Segundo João. Vol. 11. nota de rodapé 306, na pp. 494-501.
673
10.11
MATEUS
sus tornou-se então um símbolo da disposição de suportar a dor, a vergonha e a perseguição por amor a ele e à sua causa. Devese enfatizar nessa conexão que o termo, levar a cruz, não está sendo usado apropriadamente, ou seja, no pleno sentido bíblico, quando se faz referência de maneira muito geral a algum tipo de aflição que acaso tenha visitado uma pessoa durante o curso de sua vida terrena; por exemplo, reumatismo ou perda de audição. E preciso também resguardar-se de um erro um pouco semelhante. Ao falar de se levar a cruz, precisa-se ter cuidado para não privar o sofrimento de Cristo de seu singular valor e significação. Isso acontece amiúde; por exemplo, quando se interpretam mal as seguintes linhas, atribuídas a Thomas Shepherd (1665-1739): Jesus deve levar a cruz sozinho, E o mundo inteiro ficar isento? Não, há uma cruz para cada um. E há também uma cruz para mim. Se porventura a explicação disso for que a amarga agonia de Cristo era simplesmente uma dentre muitas, o que restará da verdade com referência ao caráter vicário e valor infinito de seu sacrifício? A luz da plena revelação bíblica, levar a cruz, aplicado ao crente, só pode ter um significado único, a saber, "levar seu vitupério" de forma submissa e cheia de regozijo (Hb 13.13; cl". At 5.41). Isso procede acerca daqueles que, vindo como podem, o seguem por onde quer que ele vá, confiam em seu sangue remidor, refletem sua mente (Jo 13.15; 2 Co 8.7,9; Ef 4.325.2; Fp 2.5; 1 Fe 2.21); e o proclamam. Quanto a "não é digno de mim", ver sobre o versículo precedente. Com base no dito de Cristo como se acha registrado aqui no versículo 38, os discípulos, por esse tempo, entendiam que Jesus ia ser crucificado literalmente? Provavelmente não; pois. a. essa passagem estabelece um princípio, ensina uma lição que possui sentido mesmo à parte da antecipação da cruz do Calvário; e b. se mesmo as claras predições posteriores de Cristo acerca 674
MATEUS
10.24,25
de sua própria morte na cruz que se avizinhava ( i 6.21 ; 17.22,23; 20.17-19; e passagens paralelas nos outros Eivangelhos) eles não entendiam (ver supra, sobre o v. 27), é de todo provável que nesse estágio preliminar tenham interpretado o que está registrado no versículo 38 como, em algum sentido, uma referência ao Calvário? Para nós, a referência ao Calvário é clara. A pessoa que se recusa a levar a sério a lição do versículo 38 sofrerá perda total. Para o outro tipo de pessoa, há um rico galardão: versículo 39. Quem acha a vida, a perderá; e quem perde sua vida por amor de mim, a achará. O que "sua vida" significa nessa conexão? 460 Com toda probabilidade, pela influência do uso idiomático hebreu, significa simplesmente a própria pessoa. Isso se faz evidente à luz de passagens em que os dois termos "vida" e "si mesmo" são usados intercambiavelmente: "O Filho do homem veio para dar sua vida em resgate de muitos" (Mt 20.28; Mc 10.45; ver também Is 53.12 e Jo 10.11). Agora compare ".... que deu a si mesmo em resgate por todos" ( 1 Tm 2.6). Melhor ainda, pois está mais próximo do pensamento de Mateus 10.39, é Lucas 9.23,24: "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome diariamente sua cruz e sigame. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá; e quem perder sua vida por amor de mim, a salvará."461 Conseqüentemente, e também à luz de passagens paralelas, as palavras de Cristo podem ser parafraseadas assim: "A pessoa que, quando a questão é entre mim e o que ela considera de seu próprio interesse, escolhe o último, crendo que ao fazer assim está 'achando'' a si própria, ou seja, está encontrando uma posição mais firme para sua vida plena, será amargamente decepcionada. Ela perderá em vez de ganhar. Sua felicidade e utilidade diminuirão e murcharão em vez de aumentar. Por fim 4611 p a r a as v a r j a s „„anças de significado das palavras ipiixú e irifúna. ver C.N.T. sobre 1 e 2 Tessalonicenses, pp. 148-150. Ver também supra, sobre 10.28, inclusive nota de rodapé 453 na p. 667. Não concordo com o raciocínio de Lenski. op. cil., p. 406. Para chegarmos ao sentido de i|/u/?í, não somos aqui exclusivamente dependentes do hebraico e/ou do aramaico. I; preciso dar a dev ida consideração ao contexto e à.s passagens paralelas.
675
10.11
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perecerá eternamente. Em contrapartida, aquele que, confrontado com a escolha, entrega a si mesmo, ou seja, nega a si mesmo por lealdade a mim, dispondo-se, se necessário for, a pagar com um sacrifício supremo, alcançará uma auto-realização completa. Terá vida, e a terá da forma mais plena, até que, finalmente, participe comigo da glória da minha segunda vinda e do novo céu e nova terra." Entre as passagens em que o mesmo ou semelhante pensamento se expressa, e que derramam luz sobre o significado de Mateus 10.39, são (além de Lc 9.23,24): Mt 16.26; Mc 8.34-38; Lc 17.32,33; Jo 12.25,26. Ilustrando as duas disposições contrastadas no versículo 39: a. o lago ou o mar que tem uma entrada para a água, mas não uma via de escape, em contraste com aquele que tem ambas; b. a furiosa corrente antes de ser canalizada, em contraste com a mesma corrente depois de haver sido canalizada uma parte dela e haver construído um dique para transformá-la num lago muito útil com seus canais de irrigação. A luz dos incentivos adicionais encontrados nos versículos restantes, torna-se evidente que nessa ocasião, em contraste com a do Sermão do Monte (ver 7.27), Jesus caminha para o fim de discurso com uma nota positiva: 40. Quem recebe a vocês, recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. Tal é a promessa para os que, a despeito de saberem perfeitamente bem que serão desprezados e talvez até mesmo perseguidos por seus vizinhos, etc., acolhem e continuam a acolher os discípulos e sua mensagem. São informados de que, quando aceitam esses homens em sua verdadeira atribuição, como representantes de Cristo plenamente autorizados, estão aceitando ao próprio Cristo. Não só isso, mas visto que Jesus, por sua vez, era enviado do Pai (15.24; 21.37; Mc 9.37; 12.6; Lc 4.18; 10.16; Jo 3.17,34; 5.23,24,40; 9.4,7; 10.36; G1 4.4; Uo 4.9; etc.), ou seja, do amorável coração do próprio Pai que autorizou a seu Filho a comissionar a esses discípulos (Mt 28.18-20; Jo 17.18; 20.21), eles, de boa vontade, estão aceitando o próprio Pai no coração, na vida e no lar. E mesmo possível imaginar uma benção que seja mais rica que esta? 676
MATEUS
10.24,25
Essa mesma promessa é pronunciada ainda mais especificamente no versículo 41. Quem recebe um profeta por ser ele profeta, receberá a recompensa de profeta. Literalmente, o original tem: "Aquele que recebe um profeta em [o] nome de um profeta.'" Visto, porém, que em português esta última tradução não é muito clara, e visto que já sabemos (ver sobre 6.9: "santificado seja o teu nome") que nas Escrituras o "nome" indica a própria pessoa, e descreve o que ela é em sua relação com suas circunstâncias e com seus vizinhos, etc., concordamos com muitos outros tradutores462 em traduzir assim a passagem: "Aquele que recebe um profeta, porque ele é profeta..." O significado, pois, é o seguinte: aquele que dá as boas-vindas a um profeta não necessariamente um dos Doze, mas alguém que tem o direito de proclamar a verdade de Deus -, e não faz isso simplesmente por considerações de cordialidade ou civilidade, mas especificamente por esse mensageiro ser realmente um profeta, e portanto, ao recebê-lo, deseja receber aquele que o enviou, receberá o mesmo galardão como se ele mesmo, o anfitrião, fosse profeta. Para que não haja algum mal-entendido, como se o galardão da graça e da glória fosse concedido somente aos que recebiam um mensageiro especialmente comissionado, Jesus acrescenta: e quem recebe uma pessoa justa, por esse pessoa ser justa, receberá a recompensa de uma pessoa justa. Aqui novamente, onde traduzimos "por essa pessoa ser" o original tem "no nome de". A explicação é semelhante. A recompensa é prometida porque, na pessoa que bate à sua porta, aquele que a recebe reconhece nela "uma pessoajusta", ou seja, alguém que pratica a verdadeira religião. À pessoa que devota sua vida à realização da tarefa urgentemente necessária e eminentemente nobre de prover hospedagem, cooperar e encorajar os peregrinos filhos de Deus se promete a mesma recompensa destinada à pessoa que é amparada. 462
Beck, Berkeley. Norlie, Phillips. R.S.V.. Ridderbos, Twentieth Century. Weymouth. 677
10.11
MATEUS
De uma forma muito bela, Jesus termina esse discurso, dizendo: 42. E todo aquele que dá a um desses pequeninos, ainda que seja um copo de água fria, por ser ele um discípulo, solenemente lhes declaro que certamente não perderá seu galardão. Com uma expressão de carinho, Jesus fala sobre "um desses meus pequeninos'1, alguém que reconhece sua dependência dele e repousa sua confiança nele. Para o mundo, esse discípulo pode ser um ninguém, insignificante em fama e fortuna. Não obstante, tudo o que é dado a tal discípulo, é por Jesus considerado como sendo dado a ele mesmo. A dádiva pode ser algo pouco dispendioso, como um copo de água fria. Não é a dádiva como tal, mas, antes, o motivo é que importa (25.35, 37, 40; cf. Hb 6.10). Se é dado ao pequenino "porque ele é um discípulo",463 o galardão não será esquecido. A qualidade da dádiva e do modo de dar recebe especial ênfase. Segundo o que parece ser a melhor redação, o ato de amor é descrito como dar "um copo de água fria só" (literalmente falando), significando "ainda que seja um copo de água fria". Quanto a "eu solenemente lhes declaro", ver sobre 5.18. Jesus, pois, está dizendo: "Eu solenemente lhes declaro que para tal dádiva a recompensa não faltará." Na realidade, "ele certamente não4M perderá seu galardão". O que é um galardão? Pense agora na paz da mente (Mt 10.13), reconhecimento público por parte de Cristo mesmo em sua segunda vinda (25.34ss.). e depois, e para sempre, todas as bênçãos que são concedidas unicamente pela graça, segundo as obras (16.27)
•"'3 Uma vez mais, como duas vezes no versículo precedente, "no nome de". •"'4 Muito enfático: oi') (rrj.
678
ESBOÇO do CAPÍTULO 11
Tema: A Obra que lhe Deste para Fazer 11.1-19 11.20-24 11.25-30
A Dúvida de João Batista e a Forma Como Jesus Lidou Com Ela Ais Proferidos Sobre as Cidades Impenitentes O Terno Convite do Salvador
CAPÍTULO 11
n
MATEUS
11.1-19
Ora, ao terminar Jesus de instruir seus doze discípulos, partiu dali a ensinar e a pregar em suas cidades.
2 E ao ouvir João, em sua prisão, acerca das atividades de Cristo, enviou por meio de seus discípulos 3 a pergunta: "És tu Aquele que vinha, ou devemos aguardar algum outro?" 4 Jesus respondeu, e lhes disse: "Vão e notifiquem a João as coisas que vocês ouvem e vêem: 5 [os] cegos adquirem sua vista e [os] paralíticos andam; [os] leprosos são purificados e [os] surdos ouvem; [os] mortos ressuscitam e [os] pobres recebem as boas novas anunciadas por eles. 6 E bem-aventurado é aquele que não é repelido por mim." 7 Quando esses [mensageiros] estavam partindo, Jesus começou a dizer às multidões em relação a João: "Que foi que vocês saíram a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? 8 Ou, então, o que saíram a ver? Um homem vestido com roupas finas? Com certeza, os que vestem roupas finas se encontram nos palácios dos reis. 9 Ou, então, o que saíram a ver? Um profeta? Sim, eu lhes digo, e mais que profeta. 10 Este é aquele de quem está escrito: 'Eis que envio meu mensageiro diante de tua lace, Ele preparará teu caminho diante de ti.' 11 Eu solenemente lhes declaro: Entre os nascidos de mulheres não surgiu nenhum maior que João Batista; contudo, o menor no reino do céu é maior que ele. 12 Desde os dias de João Batista até agora, o reino está avançado vigorosamente, e os homens ansiosamente se apoderam dele. 13 Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João; 14 e se vocês estão dispostos a aceitar, ele é Elias que estava para vir. 15 Quem tem ouvidos, então o ouça. 16 Mas, com o quê compararei esta geração? E como meninos assentados nas praças e gritando uns aos outros: 17 ' N ó s lhes tocamos flauta, e vocês não dançaram; Cantamos um lamento, e vocês não se bateram no peito."
681
9.23,24
MATEUS
18 Pois João veio, não comendo nem bebendo, e disseram: 'Ele tem demônios.' 19 O Filho do homem veio comendo e bebendo, e disseram: 'Ai está um glutão e beberrão, amigo de coletores de impostos e pecadores.' Mas a sabedoria é justificada por suas obras."
11.1-19
A Dúvida de João Batista e a Forma Como Jesus Lidou Com Ela Cf. Lucas 7.18-35
O relato do envio dos Doze como embaixadores do reino (cap. 10) é seguido, aqui no capítulo 11. por um registro das palavras de Cristo, honrando ao arauto do reino, João Batista. De fato o capítulo começa com a história da dúvida de João como reportada a Jesus pelos discípulos de João Batista (11.13). A resposta de Cristo, mensagem esta a ser comunicada a João, é relatada a seguir (vv. 4-6). Então, para compensar qualquer conclusão errônea por parte do povo, como se João fosse meramente uma pessoa volúvel, uma ampla seção (vv. 7-19) registra a maneira como o Senhor enalteceu a João. O pequeno parágrafo em que ais são proferidos sobre as cidades impenitentes é basicamente um reflexo do anterior, que é muito mais amplo. Muitos dentre o povo não aceitam o testemunho de João, pelo menos não se arrependeram verdadeiramente. Alguns, de fato, chegaram a chamar João de "endemoninhado". Rejeitaram também o testemunho do Filho do homem (vv. 16-19). Conseqüentemente, as cidades que haviam sido imensamente favorecidas, mas que, não obstante, rejeitaram as boas novas, são agora denunciadas (vv. 20-24). Tal condenação é, contudo, expressa de forma mais severa do que a repreensão anterior. É também mais específica, mencionando nominalmente alguns centros de incredulidade (Corazim, Betsaida, Cafarnaum). Nas palavras finais, inesquecivelmente tocantes, do capítulo (vv. 25-30) a maldição é substituída pela bênção, a acusação pelo convite. É evidente, pois, que todo o capítulo forma uma só unidade. É, por assim dizer, uma pirâmide, cuja seção inferior e maior poderia levar a inscrição: "João Batista, arauto do reino, é tranqüilizado e enaltecido." As duas unidades menores - pense na 682
MATEUS
10.1-42
porção mais alta da pirâmide que diminui até o cume a. uma transição natural (vv. 20-24), e b. um notável contraste (vv. 25-30) - dificilmente podem ser esquecidos. Essencialmente, contudo, o tema é muito mais sublime, pois ao longo de todo o capítulo o evangelista está exibindo aos seus leitores a majestade do Cristo. Ainda quando este estava expressando seu notável dito: "Entre os nascidos de mulheres não surgiu nenhum maior que João Batista" (v. 11), não eslava ele demonstrando sua própria grandeza infinitamente superior, revelada ao tratar tão sábia e ternamente seus vacilantes discípulos? Mateus nem sequer informa como foi a reação de João, ao chegar-lhe a resposta de Cristo. Isso, também, confirma o que eu disse, ou seja, que, afinal, não é João o tema da história, mas Jesus Cristo, e Deus por meio dele. "A Obra Que Lhe Deste Para Fazer", é o tema de todo o livro. A conclusão do livro de Jonas forma um interessante paralelo. Não nos temos perguntado com freqüência como reagiu Jonas ante a penetrante pergunta de Jeová (Jn 4.10,11)? Não foi registrada, pois a ênfase deve ser posta no amor de Deus, não em Jonas. Esse também é o caso no Evangelho de Mateus, e, de fato, em toda a Bíblia. Primeiramente, pois, volvemos ao relato que descreve a maneira como Jesus tratou a dúvida do Batista. 11.1-3. Ora, ao terminar Jesus de instruir seus doze discípulos, partiu dali a ensinar e a pregar em suas cidades. E ao ouvir João, em sua prisão, acerca das atividades de Cristo, enviou por meio de seus discípulos a pergunta: Es tu Aquele que vinha, ou devemos aguardar algum outro? À primeira vista, poderíamos sentir-nos inclinados a criticar a divisão do capítulo. Não teria sido melhor incluir o versículo 1 no parágrafo precedente? Não forma ele uma conclusão coerente à Comissão dos Doze? Sim, é verdade. Mas também introduz definitivamente o capítulo 11, pois foi precisamente a notícia relativa às atividades de Cristo, seus ensinos, pregação, etc. nas cidades, que contribuiu para a dúvida de João. 683
10.2-4
MATEUS
Se Mateus houvesse sido um autor não inspirado, indubitavelmente nos teria fornecido um relato detalhado de "As Experiências dos Doze em Sua Primeira Viagem Missionária". Ele teria situado essa interessante história imediatamente depois da Comissão. O evangelista, porém, está muito mais interessado em Jesus do que nesses discípulos, ainda que, naturalmente, ele esteja também interessado neles. Não obstante, no tocante a eles, toma por certo que os leitores tirarão a conclusão correta. Mesmo Marcos e Lucas, que possuem o mesmo grau de inspiração que Mateus, têm bem pouco a dizer sobre as experiências dos discípulos. Dizem algo (Mc 6.12,13; Lc 9.6), mas então prosseguem imediatamente com a história de Jesus e de seu amor. Mateus, pois, nos informa que, havendo concluído essa comissão aos discípulos, Jesus saiu dali ensinando e pregando. A distinção entre "ensinar" e "pregar" já ficou esclarecida (ver sobre 4.23). "Em suas cidades": conseqüentemente, o Grande Ministério na Galiléia está em marcha. Embora só "ensinando e pregando" sejam mencionados em 11.1, fica evidente pelo versículo 5 que um bom número de "obras poderosas" está também se realizando. E por essa razão que, ainda quando no versículo 2 a tradução "feitos" e "obras" teria sido correta, contudo, á luz do contexto, "atividades" seja provavelmente preferível. Isso inclui ensinar e pregar, e não somente milagres. De acordo com 4.12 e 14.3,4 (ver sobre esses versículos), João Batista havia sido preso pelo rei Herodes Antipas. Havia ele sido trancafiado na escura fortaleza de Machaerus, moderna Khirbet Mukâwer, localizada cerca de oito quilómetros a oriente do Mar Morto e 24 quilómetros ao sul de sua extremidade norte. A prisão fazia parte de um dos palácios herodianos,465 que explica a possibilidade da ação registrada em Marcos 6.2528. Ainda que sua prisão tivesse sido uma provação muito dolorosa, a João foi permitido receber visitas. Destas teria ele ouvido sobre as atividades de Jesus, de quem o próprio João havia 4<
'" Joscfo. Guerra dos Judeus VII.175: cl". Antigüidades XVII1.II9. Ver também L. H. Grollenberg, op. cit.. Ilustração 353. p. 124 e mapa 34. p. 116. 684
MATEUS
9.37,38
dito tantas coisas maravilhosas (Mt 3.11; Jo 1.15-18,26,27,2936; 3.28-30). Segundo João o entendia, as graciosas palavras que saíam dos lábios do Salvador e os milagres de misericórdia realizados por ele não se harmonizavam com o modo como ele, João Batista, o retratara diante do público. Ele o havia apresentado como aquele que vem para castigar e destruir (Mt 3.7,10; Lc 3.7,9). Como ficou realçado anteriormente (ver sobre 3.10), a palavra de João havia sido verdadeira e inspirada, a própria "palavra de Deus" (Lc 1.76; 3.2). Contudo, o que havia escapado ao arauto de Cristo era isto: não conseguiu discernir que essa profecia de condenação se cumprira não agora, mas quando da segunda vinda de Cristo. O Batista não conseguira ver o presente e o futuro na devida perspectiva. João fez uma decisão muito sábia quando, ao invés de guardar para si mesmo sua dificuldade em relação a Jesus, ou de falar do assunto com outros, mas não com a pessoa certa, ele o levou a Jesus. Devido ao fato de que João Batista estava preso, de modo que não tinha como ir pessoalmente avistar-se com Jesus, ele enviou seus próprios discípulos com uma pergunta.46<> Não significa, contudo, que seja correta a interpretação segundo a qual não era o próprio João quem nutria dúvidas, mas somente seus discípulos, e que João agora envia a Jesus esses homens para que o Salvador solucionasse o problema deles. Aliás, ela é decididamente incorreta. Por que, então, teria Jesus dito: "Vão e notifiquem a João"? (v. 4). Não há dúvida sobre isso: era João mesmo o dono do problema. Era ele quem queria saber se era ou não Jesus "Aquele que viria".41,7 4-6. Jesus respondeu, e lhes disse: Vão e notifiquem a João as coisas que vocês ouvem e vêem: josj cegos adquirem sua vista e [os] paralíticos andam; [os] leprosos são purificados e [os] surdos ouvem; [os] mortos ressuscitam e |osj 4W
' O apoio para a redação, "dois" de seus discípulos (oúo em v e / de óiá)- é fraco. Ver. contudo, Lucas 7.18. 41,7 Cf. .1. Sickenberger. "Das in die Welt Kommende Licht". I hCi. 33 (i 941). pp. 129134. VerC.N.T. sobre o Lvuitgelho Segundo João. Vol. I. pp. 78.79.
685
10.1-42
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pobres recebem as boas novas anunciadas por eles. Em que sentido essa resposta era tranquilizadora? Não é verdade que João já era conhecedor de tudo isso (v. 2), e que o próprio fato de que ele sabia havia contribuído substancialmente para sua dúvida? Sim, é verdade, mas a linguagem era nova .... Ou não era? Sim, era "nova" no sentido de que os amigos que teriam de reportar as atividades de Cristo a João não tinham ainda usado esse tipo de formulação. Em contrapartida, a mensagem conforme a fraseologia de Jesus tinha um tom familiar. Provavelmente lembrou a João certas predições proféticas, a saber, Isaías 35.5,6 e 61.1: "Então se abrirão os olhos dos cegos, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como os cervos, e a língua dos mudos cantará;... O Espírito do S L N I IOR Deus está sobre mim, porque o S H N I I O R me ungiu para pregar as boas novas aos quebrantados." E como se Jesus ternamente estivesse dizendo a João: "Você se lembra dessas profecias? Isso também foi predito acerca do Messias. E tudo isso está se cumprindo hoje, a saber, em mim." Jesus iria usar Isaías 61 também em outra ocasião, e uma vez mais como uma predição cumprida nele mesmo (Lc 4.16-21). Em conexão com essas palavras proféticas e seu cumprimento em Jesus, dois fatos adicionais se devem notar: a. Isaías se referia tanto a milagres quanto a pregação; o recado que Cristo transmitiu a João também contém uma referência a ambos; e b. o cumprimento em Cristo era ainda melhor que a predição, pois nesta nem sequer uma palavra foi sussurrada com referência à ressurreição dos mortos. As predições tinham que ver com cura, purificação e pregação de boas novas. O cumprimento incluía todas essas e mais, a saber, a ressurreição dos mortos. E interessante notar que no Evangelho de Lucas a história da restauração da vida ao filho da viúva de Naim (7.11-17) precede imediatamente o relatório da dúvida de João e do modo como Jesus lidou com essa dúvida (7.18-23). O recado endereçado a João Batista termina com as palavras: E bem-aventurado é aquele que não é repelido por mim. 686
MATEUS
9.20,21
ou seja, aquele que não permitir que nada do que eu diga ou faça lhe sirva de laço, o induza a pecar. Ver sobre 5.29,30. Ainda que o conceito, segundo o qual por meio dessa admoestação João estava sendo repreendido, possa ser correto, todavia, se esse foi o caso, ela foi uma repreensão tão terna, uma repreensão que em nenhum aspecto empanou o amor do Mestre por seus discípulos momentaneamente confusos. Sim, considerada corretamente, a admoestação contém uma bênção: "Bem-aventurado é aquele que..." O Senhor trata João tão amoravelmente como tratara o cego de nascença, a mulher apanhada em adultério, Pedro, Tomé e outros. A vista do modo como Jesus imediatamente se põe a enaltecer a João publicamente, e a repreender os que tentavam encontrar falta nesse arauto e naquele de quem ele testificava (vv. 7-19), e também à vista de passagens tais como Ml 3.1, 4.5,6, Lc 1.15-17,76,80 e Fp 1.6, é preciso considerar como indiscutível que a mensagem de Jesus teve o efeito almejado em João. O que fica em evidência, porém, é a sabedoria e a ternura de Jesus, e isso tanto na mensagem de tranqüilização dirigida a João quanto nas palavras expressas sobre o mesmo e dirigidas à multidão que se achava presente. Este segundo parágrafo começa assim: 7. Quando esses |mensageiros] estavam partindo, Jesus começou a dizer às multidões em relação a João: Que foi que vocês saíram a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Aqui Jesus corrige a conclusão errônea a que alguns dentre a multidão porventura tivessem chegado com respeito a João em virtude da pergunta em que ele revelava sua dúvida concernente àquele mesmo para quem anteriormente apontara como sendo o Messias, conclusão esta de que João Batista era uma pessoa leviana, vacilante. No parágrafo tomado como um todo, o Mestre está dizendo que é errôneo condenar uma pessoa com base num único leve desvio do curso certo. Para formar uma opinião correta sobre uma pessoa, é preciso levar em conta sua vida inteira, tanto o passado quanto o presente. No caso de João, seu passado tinha sido glorioso. A multidão deve refletir sobre o tremendo impacto que 687
10.1-42
MATEUS
João tinha causado nela durante seu primeiro aparecimento no deserto do Jordão. "O que foi", diz Jesus mais ou menos assim, "que levou vocês a fazer todo esse trajeto da Galileia ao deserto da Judeia? Foi, porventura, a busca de um homem parecido com uma cana que é agitada pelo vento nas margens do Jordão?" Com toda certeza, não podia ser essa a razão. A pessoa sobre quem todos tinham estado a falar era como um vigoroso carvalho, não como uma cana tremente. Jesus toma como certo que a resposta à pergunta articulada no versículo 7 é esta: "Certamente que não. Decididamente não saímos ao deserto em busca de uma cana sacudida pelo vento." Então Jesus prossegue: 8. Ou, então, o que saíram a ver? Um homem vestido com roupas finas? A resposta é novamente negativa, como Jesus o comprova no seguimento: Com certeza, os que vestem roupas finas se encontram nos palácios dos reis. Quanto as roupas que João realmente usava, ver sobre 3.4. Os que se vestem de roupas "delicadas" são as pessoas sem determinação, pessoas servis que facilmente se expandem em bajulação dirigida aos que acham investidos de autoridade e recebem por recompensa altos ofícios nos palácios reais, posição essa que lhes possibilita vestir-se de tinos vestuários em harmonia com a elevada posição que .ograram alcançar. As pessoas a quem Jesus aqui se dirige sabiam muito bem que João era um indivíduo totalmente diferente. Em vez de bajular o rei, ele o havia, sim, repreendido. For isso, agora, em vez de desfrutar alegremente a vida palaciana, achava-se encerrado em hórrida masmorra. Além do mais, ao tempo em que João Batista se achava ainda em liberdade pregando no deserto, o povo em geral nem sequer imaginava descobrir falta em sua enérgica mensagem e rústica aparência. Nesse tempo João se tornara um herói popular (3.5). Sem dúvida, mesmo depois muitos continuaram a tê-lo em alta estima (14.5). Contudo, as opiniões começavam a mudar. O que muitos anteriormente enalteceram em João, seu modo ascético e vida e suas implacáveis advertências, agora começavam a criticar. E por essa razão que Jesus, aqui, os censura. Ele prossegue: 9, 10. Ou, 688
MATEUS
10.1-42
então, o que saíram a ver? Um profeta? O Senhor respondia sua própria pergunta, e ao lazer isso apresenta urna avaliação genuína de João: Sim, eu lhes digo, e mais que profeta - o que significa: "Sim, vocês saíram para ver um profeta, e eu lhes asseguro que ele é muito mais que um profeta." "Mais que um profeta" porque João não só profetizava (ver, por exemplo, Mt 3.7-12), mas ele mesmo era também um objeto de profecia. Ele mesmo era o predito precursor do Messias. Portanto, Jesus continua: Este é aquele de quem está escrito: Eis que envio meu mensageiro diante de tua face, Ele preparará teu caminho diante de ti.468 Que Malaquias 3.1 se refere indubitavelmente a João Batista como arauto do Messias, é óbvio à luz do fato de que esse preparador de caminho é evidentemente "Elias o profeta" de Malaquias 4.5 que, por sua vez, é João Batista, segundo as próprias palavras de Cristo como registradas em Mateus 11.14. Somos justificados em dizer, pois, que essa é a própria interpretação que Cristo faz de Malaquias 3.1. Assim interpretado, o significado de Malaquias 3.1, em suma, seria: "Presta atenção, Eu, Jeová, envio meu mensageiro, João Batista, para ser o precursor teu, o Messias. A tarefa do precursor é preparar tudo - especialmente o coração do povo (Ml 4.6) - para tua chegada." O significado é "pavimentar o caminho" para a primeira vinda do Messias, mas em vista do fato de que a A fraseologia aqui em Mateus 11.10 faz lembrar fortemente aquela tradução da LXX de Êxodo 23.10. e com respeito à segunda linha também um pouco de Malaquias 3.1. no hebraico. Essas três podem ser assim traduzidas: Mateus 11.10: Eis que envio meu mensageiro diante de tua face, O qual preparará teu caminho diante de ti. LXX traduzindo Êxodo 23.10: E eis que envio meu mensageiro diante de tua face. Para que te guarde em teu caminho. Malaquias 3.1, em hebraico: Eis que envio meu mensageiro, E ele preparará um caminho diante de mim. Não obstante, como se explicou no texto, Jesus estava pensando principalmente em Malaquias 3.1. 689
10.12,13
MATEUS
primeira e a segunda vindas são, por assim dizer, dois estágios pelos quais Deus vem a seu povo na pessoa de Emanuel, assim também quanto à preparação para sua segunda vinda. Quando aplicada neste último sentido, a denominação, "meu mensageiro'", alcança um sentido mais amplo, ou seja, que não se pode excluir nem João Batista, nem os apóstolos de Cristo e nem seus sucessores ao longo da nova dispensação. Ainda que seja verdade que o contexto imediato de Malaquias 3.1 se estende até o juízo final (especialmente vv. 2 e 3), Mateus, de forma totalmente legítima, como já foi explicado, aplica a profecia especialmente à primeira fase da vinda, ou, pondo-o em termos mais simples, à primeira vinda de Cristo. Foi de uma maneira em extremo maravilhosa que João Batista cumpriu sua tarefa como arauto. Daí, Jesus pôde dar este seguimento: 11. Eu solenemente lhes declaro: Entre os nascidos de mulheres não surgiu um sequer maior que João Batista ... Como ficou indicado, João era maior porque ele não era apenas um profeta, mas aquele cuja entrada no cenário da História fora profetizada. Contudo, alguém poderia questionar se isso era tudo o que Jesus tinha em mente quando fez a tremenda afirmação encontrada aqui em 11.11, introduzindo-a com a impressionante fórmula: "Eu solenemente lhes declaro"', explicada em conexão com 5.18. Não seria bem provável que o Senhor estivesse pensando não só no simples fato de que João Batista, o arauto, chegara em cumprimento de profecia, mas também na maravilhosa maneira em que esse precursor cumpriu sua tarefa? Ele havia feito exatamente o que um arauto deve fazer. Primeiro, havia anunciado claramente a chegada do Messias, dirigindo a atenção do povo aquele Grande Personagem: "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1.29). Segundo, ele havia enfatizado a necessidade de arrependimento como o único caminho pelo qual o pecador pode entrar no reino do Messias (Mt 3.2 e paralelos; ver também Lc 1.76,77). E terceiro, visto que é o dever do arauto pôr-se em segundo plano quando aquele a quem apresentou entrar totalmente em cena. 690
MATEUS
11.11
assim João resistiu à tentação de atrair a atenção para si mesmo. Em vez disso, em humildade de espírito, ele havia dito: "É preciso que ele cresça, e que eu diminua" (Jo 3.30). Ora, em vista do fato de que Jesus mesmo, ao descrever a natureza da genuína grandeza, sempre a associa à humildade (Mt 8.8,10, cf. Lc 7.6,9; Mt 18.1-5, cf. Mc 9.33-37 e Lc 9.46-48; Mt 20.26,27, cf. Mc 10.43-45; Mt 23.11; e ver também Mt 15.27,28), não é totalmente provável que ele faça isso também no presente caso? Essa humildade, por sua vez, deve ser vista como um dom que João recebera do Espírito Santo. E assim a palavra do anjo dirigida a Zacarias: "Ele será grande... e cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe" (Lc 1.15) tinha sido e estava sendo cumprida. Seguramente, tudo isso - a. João era não só "o profeta do Altíssimo", mas ele mesmo era o cumprimento da profecia; b. alguém que de um modo muito humilde cumpriu sua tarefa; c. sendo cheio do Espírito Santo, e isso desde o ventre de sua mãe - deve ser levado em conta a fim de se apreciar devidamente o pleno significado de Mateus 11.11. Quando isso é feito, se fará evidente que a afirmação, em nenhum sentido, é um exagero. A isso, Jesus acrescenta: contudo, o menor no reino do céu é maior que ele. Isso de modo algum significa que João, afinal das contas, não era um homem salvo. Nem pensar nisso! Ao contrário, a afirmação deve ser explicada à luz de 13.16,17: "Mas, bem-aventurados são os olhos de vocês, porque vêem; e os ouvidos de vocês, porque ouvem. Pois eu lhes digo a verdade: muitos profetas e justos desejaram ver o que vocês estão vendo, mas não viram, e ouvir o que vocês estão ouvindo, mas não ouviram." O menor no reino era maior que João no sentido de ser ele mais altamente privilegiado, pois João Batista, na prisão, não estava em contato tão íntimo com Jesus como estava o menor dos circunstantes. E não seria porventura essa mesma circunstância que havia também contribuído para a confusão do arauto com respeito a se Jesus era ou não verdadeiramente o Messias? No exato momento em que os mensageiros enviados por João formularam sua pergunta a Jesus, este estava ativa691
10.24,25
MATEUS
mente ocupado no ato de cura e restauração (Lc 7.20,21). Não é verdade que realmente vendo tudo isso acontecer diante de seus olhos, alguém teria mais facilmente lembrado de Isaías 35.5,6; 61.1 ss. do que o teria lembrado alguém numa lúgubre atmosfera de prisão, sem qualquer chance mesmo de ver, muito menos de falar pessoalmente com a pessoa sobre quem o prisioneiro estava pensando? Sim, em certo sentido o reino já havia chegado: os aflitos estavam sendo aliviados de seus males, os mortos estavam sendo ressuscitados e as belas palavras de vida fluíam do coração e lábios do Mestre. Eim sua soberana providência, porém, o que ninguém tinha o direito de questionar, João não era um imediato participante, nem sequer uma testemunha direta. Além disso, ele não iria ver o Calvário nem experimentar o Pentecostes. Entretanto, ele não estava sendo esquecido nem negligenciado. A mensagem que Jesus lhe envia (11.4-6) era suficiente para tranqülizá-lo. No entanto, ainda quando João Batista estivesse agora longe da cena de ação, não obstante, por meio de sua ênfase anterior sobre a necessidade de genuíno arrependimento, e sua indicação de Jesus como o Salvador que tira o pecado, havia sido usado como instrumento de Deus na pavimentação da estrada para que viessem as bênçãos, de modo que Jesus pode referir-se a ele de uma forma favorável, assim: 12. Desde os dias de João Batista até agora, o reino está avançando vigorosamente, e os homens ansiosamente se apoderam dele.469 Realmente, a 469
A passagem tem provocado muito debate e muitas interpretações diferentes. As dificuldades se centram especialmente em torno do verbo (íiiííttca e do substantivo cognato, praoxaí. Quanto ao primeiro, é ter. pes. sing. prés. indicativo de piáÇu, e pode ser ou passivo ou médio. No Novo testamento ele ocorre somente aqui e na passagem paralela de Lucas 16.16. Como passivo e usado num sentido desfavorável, poderia significar "está sofrendo v iolência". A passagem toda. pois, pode ser interpretada mais ou menos assim: ".... o reino está sofrendo violência e homens violentos estão apoderando-se dele." Nesse sentido, com variações individuais, ver A.V., A.R.V.. N.A.S., Beck. Weymouth, R.S.V., N.L.B. (texto). Não há nada no contexto que sugira esse sentido, o qual, pois. deve ser terminantemente descartado. Também construído como passivo, porém agora num sentido favorável, o significado poderia ser "está sendo ansiosamente apoderado", ou "está sendo tomado com ânsia", seguido por "e homens ansiosos estão se apoderando dele".
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10.23
obra de João Batista não fora em vão. Havia desviado a atenção de si mesmo para Jesus, e as multidões haviam seguido a Jesus (Jo 3.26). Não fora um ato de benevolência e magnanimidade por parte do Senhor dar crédito a João por aquilo que havia feito anteriormente, especialmente enaltecê-lo assim no exato momento quando João Batista dava vazão à sua incerteza quanto a Jesus? É verdade que o poder atrativo de Cristo não dependia de João, de modo nenhum. Não obstante, na providência de Deus e no cumprimento da profecia, a pregação de João havia contribuído para o resultado de abrir o caminho para Cristo. O reino, diz Jesus, desde o primeiro aparecimento de João em cena, tem avançado vigorosamente, com muita força. E assim continua ainda, como é óbvio do fato de que os enfermos ou "estão abrindo caminho nele". Ver. por exemplo. Phillips e Williams. Esta é muito melhor. Não obstante, não é inteiramente satisfatória, visto que. assim interpretada, a segunda linha virtualmente repete o que ficou dito na primeira. Tomando o verbo como médio, e traduzindo-o "está avançando vigorosamente", produz um significado para a passagem toda como expresso em minha tradução: apoiado de uma forma ou outra também, entre outros, por Lenski. Ridderbos e N.E.B.. nota de rodapé. As duas linhas expressam dois pensamentos, o primeiro relaeionando-se com o reino propriamente dito. o segundo com os homens que ansiosamente estão sc apoderando dele. Todavia, entre os dois há uma conexão muito estreita. Parece-me que o contexto apóia plenamente esta interpretação. Quanto ao segundo verbo, a saber, apiráÇouou1, é terceira pes. pl. pres. indicativ o ativo, de apuá(<»>. Ocorre várias ve/.es no Novo 'testamento, sempre no sentido de apoderar-se ou uma de suas modificações. Naturalmente, o significado resultante pode ser desfavorável; por exemplo, apoderar-se da propriedade de alguém (Jo 10.28.29). Nem só os seres humanos, mas também os lobos (como símbolo dos humanos) podem ser ladrões que arrebatam (Jo 10.12). Não obstante, o intento de apoderar-se de algo ou de alguém nem sempre pode ser uma atitude agressiva, ver Jo 6.15, onde a ação indicada era errada, mas não agressiva). Ou, também, o Espírito pode "apoderar-se" ou "arrebatar" alguém (At 8.39). com o qual comparar 2Co 12.2.4; l T s 4 . 1 7 ; A p 12.5). Finalmente, pode haver um apoderar-se que tenha o propósito de resgatar (At 23.10; Jd 23). É evidente á luz de tudo isso que o significado exato desse verbo, seja favorável ou desfavorável, depende de seu contexto. Visto que já se tenha estabelecido que o primeiro verbo, piáÇcroa. é aqui usado num sentido favorável, a conclusão seria também que o segundo é assim usado. O mesmo se dá com respeito ao substantivo piaotaí. que ocorre somente aqui no Novo Testamento. No presente contexto, ele não pode significar "homens violentos", mas "homens vigorosos", ou "homens esforçados", homens de coragem. de fortitude, de determinação.
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10.1-42
MATEUS
estão sendo curados, os leprosos, purificados, os mortos, ressuscitados, os pecadores, convertidos para a vida eterna, tudo isso se realiza agora como nunca antes. Não obstante, de forma alguma estão todos entrando. Muitos e muitos, neste exato momento, se recusam e prosseguem resistindo. Homens vigorosos e dinâmicos, porém, pessoas que ousam romper com a falha tradição humana e converter-se à Palavra em toda a sua pureza, não importa qual seja o custo para si mesmas, sim, tais indivíduos estão ansiosamente tomando posse do reino; isto é, em seu coração e vida está sendo estabelecido esse senhorio ou reino de Deus e de Cristo. O que Jesus aqui enfatiza é que ninguém pode adormecer em sua trajetória no reino. Ao contrário, a entrada no reino requer enérgica diligência, incansável atividade, esforço extremo. Ver também Lucas 13.24; 16.16; João 16.33; Atos 14.22. Esseé um fato incontestável, visto que Satanás é poderoso, possui um enorme contingente de obreiros, os demônios, tem aprendido a usar métodos astuciosos (ver C.N.T. sobre Efésios 6.11) e recebe ajuda e apoio de sua quinta coluna estabelecida no próprio coração humano (1 Jo 2.16). Portanto, exige-se homens vigorosos, homens que estejam dispostos a lutar e a vencer, a subjugar Satanás e assim tomar posse do reino, de todas as bênçãos decorrentes da salvação. O reino, pois, não é para os débeis, para os vacilantes, para os compromissados com o mal. Não é para Balaão (2Pe 2.15), nem para o jovem rico (Mt 19.22), nem para Pilatos (Jo 19.12,13) e nem para Demas (2Tm 4.10). Não é conquistado por meio de orações adiadas, promessas não cumpridas, resoluções quebradas e testemunhos hesitantes. E para os homens fortes e resolutos como José (Gn 39.9), Natã (2Sm 12.7), Elias (lRs 18.21), Daniel e seus três amigos (Dn 1.8; 3.16-18), Mordecai (Et 3.4), o Pedro de Atos 4.20, Estêvão (At 6.8; 7.51) e Paulo (Fp 3.13,14). E aqui não devemos esquecer-nos das mulheres valentes como Rute (Rt 1.16-18), Débora (Jz 4.9), Ester (Et 4.16) e Lídia (At 16.15,40). 694
MATEUS
11.13,14
As palavras de Jesus registradas no versículo 12 sugerem que, com João, um novo período havia começado, quando o reino começou a avançar vigorosamente. Esse pensamento é confirmado nos versículos 13,14. Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João; e se vocês estão dispostos a aceitar, ele é Elias que estava para vir. 'Todos os profetas e a lei" indicam "todo o Antigo Testamento", no tocante aos profetas que escreveram livros, terminando com Malaquias, em cujo livro a vinda de Cristo e de seu arauto foi predita. Dali em diante a profecia silenciou-se por mais de quatrocentos anos. Depois disso veio o cumprimento da profecia em Jesus Cristo, mas (cronologicamente falando) antes de tudo em João Batista. Nele, conseqüentemente, a profecia começou a cumprir-se. Foi ele quem uniu a antiga e a nova dispensação. Pelos menos igualmente importante era a exortação inspirada de João, se obedecida, que resolveria o problema da hiato entre gerações, pois por meio da fé no Cristo a quem ele proclamava, o coração dos pais se converteria aos filhos, e o coração dos filhos se converteria a seus pais (Ml 4.5,6). Esse João Batista, pregador de arrependimento e fé, era, portanto, o Elias que estava para vir. Como o Elias dos tempos antigos, João também era um pregador de arrependimento. Ambos se assemelhavam também no modo repentino de seu aparecimento, no impacto de sua mensagem e na simplicidade de sua vida. Ver sobre 3.3. Na verdade João não era Elias em termos literais (Jo 1.21), mas interiormente ele o era, pois "ele se manifestou no espírito e poder de Elias" (Lc 1.17), e por isso foi chamado de Elias pelo próprio Jesus (Mt 17.12). "E se vocês quiserem aceitar", diz Jesus, pois ele sabia que aceitar essa verdade não era um problema só da mente, mas também da vontade. Se o povo pelo menos estivesse disposto a aceitar João como sendo realmente o profeta do Altíssimo, então havia esperança para eles. Portanto, Jesus acrescenta: 15. Quem tem ouvidos, então o ouça. Que ouça atentamente a mensagem de salvação como recompensa da graça divina pelo arrependimento e fé. Que encontre paz e alegria na695
10.29-31
MATEUS
quele que tem sido descrito por João como aquele que tira o pecado do mundo. Em todo o ensino de Cristo, tanto na terra como a partir do céu, seria difícil descobrir alguma exortação que ele tenha repetido com maior freqüência, numa forma ou outra, do que a do versículo 15 (13.9,43; Mc 4.9,23; Lc 8.8; 14.35; Ap 2.7,11,17,29; 3.6,13,22; 13.9; cf. 8.18 igualmente em Marcos e Lucas). Não admira, portanto, porque não é a falta de receptividade, persistente, que leva diretamente para o pecado imperdoável? Ver mais acerca dessa ausência de reação positiva, ou indisposição em ouvir e prestar atenção, em 13.3-9,1823. No presente contexto, é evidente que, quando Jesus diz: "Quem tem ouvidos, então o ouça", ele está pensando seguramente não só no que dissera no versículo 14, ou seja, que João era Elias que havia de vir, mas também em todo o contexto dos versículos 7-14. Em contraste com a mudança gradual de atitude por parte de muitos, com respeito a João, Jesus se põe a enaltecê-lo. Não era João o frágil, e, sim, aquele grande grupo de indivíduos que se permitia extraviar pelos fariseus (Lc 7.30), a ponto de deixar que aquele primeiro e ruidoso entusiasmo acerca de João se esfriasse; aliás, o haviam substituído pela crítica hostil. Na verdade, tanto João quanto Jesus haviam se transformado em alvo de suas declarações disparatadas e insolentes (ver vv. 18 e 19). E assim Jesus prossegue: 16-19. Mas, com o que compararei esta geração? E como meninos assentados nas praças e gritando uns para os outros: Nós lhes tocamos flauta, e vocês não dançaram; Cantamos um lamento, e vocês não bateram no peito. Pois João veio, não comendo nem bebendo, e disseram: ele tem demônios. O Filho do homem veio comendo e bebendo, e disseram: aí está um glutão e beberrão, amigo de coletores de impostos e pecadores. E óbvio que Jesus está aqui acusando esses críticos de serem pueris. Há certa diferença entre ser inocente e ser pueril. O Senhor recomenda o primeiro (18.1-5 e passagens paralelas) e condena o segundo. O quadro que ele delineia é o de crianças 696
MATEUS
11.16-19
que nos dias em que não havia transações na praça, se reuniam em seus amplos espaços para brincar. Dessa vez, contudo, nada parecia ter sucesso. Alguns meninos começam a tocar flauta, não como num acompanhamento de lamentação (9.23), mas como diversão (cf. Ap 18.22). Querem brincar de casamento. Outros protestam. Então os flautistas põem de lado suas flautas e começam a entoar um canto lamentoso e/ou gemidos fúnebres, como haviam visto fazer os adultos e os pranteadores profissionais. Nem essa idéia resolveu o problema. Num espírito de desespero, se zangam com seus companheiros (literalmente "os outros") pela falta de cooperação, queixa esta que os outros retribuem (Lc 7.32). Podemos facilmente imaginar algo dessa natureza ocorrendo hoje. "Brinquemos de casamento", diz um menino. Outros concordam. "Maria será a noiva, Rute a dama de honra e eu serei o noivo. Roberto pode ser meu acompanhante, Pedro o pai da noiva e José fará muito bem a parte do oficiante." "Isso mesmo, vamos em frente", dizem alguns entre os demais, e começam a tocar a marcha nupcial. Muitas vozes, porém, gritam descontentes: "Fora com essa tolice. Isso não serve para nós." "Então vamos brincar de enterro", diz o menino que sugerira primeiro que brincassem de casamento, e acrescenta: "Serei o dirigente do enterro, João, Roberto e Pedro podem ser os carregadores e Miguel pode ser o defunto." Com profunda tristeza, o porta-voz e alguns outros começam a entoar um hino fúnebre. Seus gemidos, porém, são interrompidos por gritos de protestos: "Parem com isso! Ninguém aqui quer essa coisa triste." E assim se desenvolve uma pequena rixa em que os que haviam sugerido as brincadeiras gritam para seus companheiros: "Vocês nunca estão satisfeitos. Não querem brincar de casamento e não querem brincar de enterro. De que mesmo querem brincar?" Os acusados respondem com acusações semelhantes.470 Todos se 470
Por causa de Lucas 7.32. que afirma claramente que os meninos gritavam ""uns para os outros", não posso juntar-me aos comentaristas que fazem dessa ilustração uma espécie de alegoria, e. havendo dividido os meninos em dois grupos, os
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10.12,13
MATEUS
sentem infelizes, desgostosos, mal-humorados. Os casamentos são por demais inocentes, por demais alegres; os enterros, por demais lúgubres, por demais tristes. Essas crianças não são apenas irritadiças e briguentas; são também volúveis, inconsistentes: o que costumava excitá-las, agora olham com desdém. Jesus, pois, está dizendo: "Essa é a maneira como vocês, fariseus e seus seguidores, se comportam. Estão sendo infantis. São frívolos e agem de maneira irresponsável e inconsistente. Vocês nunca estão satisfeitos. Costumavam encher-se de entusiasmo por João; pelo menos lhe tinham respeito e não achavam que sua austeridade e seu convite ao arrependimento fossem passíveis de censura. Mas agora dizem: 'Ele é duro demais e anti-insociável; sua mensagem é exageradamente severa. Está endemoninhado, com certeza.' Mas também estão se voltando contra mim, o Filho do homem.471 Estão apontando o dedo para mim e dizendo: 'Embora exija renúncia de outros, ele mesmo não passa de glutão e beberrão, de amigo de coletores e pecadores. Ele é sociável demais.'" Jesus realça que, por fim, essa crítica e intolerância, totalmente injusta e amarga, não levarão a parte alguma. A vitória está do lado da verdade. Diz Ele: Mas a sabedoria é justificada 472 por suas obras. A sabedoria de João Batista, quando insistia no arrependimento, e a de Jesus, quando oferecia a esperança de salvação mesmo para aqueles dos quais muitos em Israel nada queriam saber, demonstrou ter sido plenamente justificada pelo que realmente realizou no coração e na vida daqueles que, pela soberana graça, acolheram de raa-
171 472
que se queixam e os que recebem as queixas, então tentam identificar os primeiros ("os flautistas e os pranteadores") com os que se sentiam decepcionados com João Batista e Jesus; e os últimos, identificados com João Batista e Jesus. Ver. por exemplo. Lenski, op. cil. p. 429. Concordo com lasker. op. cil.. p. 116. quando afirma: "Jesus chama a atenção para as características gerais das crianças quando estão brincando." Assim também 11. N. Ridderbos. op. cil. p. 22. Para o significado da palavra "geração" (11.16). ver sobre 1.17. Sobre este título, ver supra. pp. 569-575. De acordo com A. B. Bruce. The Expositor s Greek Testamento Vol. I, p. 176, tomo o verbo f-òiKcaútíri como um aoristo "gnômico". expressivo do que é usual. 'leni sido também chamado aoristo "proverbial", ou aoristo "de experiência".
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MATEUS
11.16-19
neira apropriada e positiva a ambos os pregadores. Tanto João quanto Jesus tinha sua missão distinta a cumprir. Cada um cumpriu sua tarefa. Por Jesus, que em sua própria pessoa era e é "sabedoria de Deus" (I Co 1.30), essa tarefa foi cumprida impecavelmente; por João, de modo geral, foi cumprida de forma excelente. Os filhos da sabedoria (Lc 7.35) são todos aqueles que eram suficientemente sábios para receber de coração a mensagem de João e de Jesus. Entre João e Jesus havia esta semelhança: ambos proclamavam o evangelho. Mesmo a mensagem de João não era destituída de esperança (ver especialmente Jo 1.29). Mesmo quando sua ênfase recaía no arrependimento, sua exortação inspirava esperança. Ver Mateus 3.7-11. Todavia, entre João e Jesus havia também um contraste, não só aquele indicado aqui em 11.18.19, mas também este, ou seja, que enquanto João proclamava as boas novas, Jesus não só as proclamava, mas também entrou no mundo para que houvesse boas novas para proclamar! Hoje sabemos que um grau considerável de vindicação de sabedoria já chegou. Por exemplo, o epíteto que originalmente tinha a intenção de desprezo, "amigo de coletores de impostos e pecadores", não se transformou em um dos títulos do Salvador que mais esperança comunica e mais estímulo traz à alma? Não está esse título sendo "justificado" por milhares e milhares de vidas que o têm recebido sinceramente e posto em prática? E não virá a vindicação plena e final no dia da consumação de todas as coisas, e então para toda a eternidade? 20 Então começou a repreender as cidades em que a maioria de suas obras poderosas havia sido realizada, porque não se arrependeram: 21 "Ai de você, Corazim! Ai de você, Betsaida! Porque se as obras poderosas feitas em vocês tivessem sido feitas em Tiro e Sidom, elas há muito que teriam se arrependido com pano de saco e cinzas. 22 Eu, porém, lhes digo: para Tiro e Sidom haverá maior tolerância no dia do juízo do que para vocês. 23 E você, Cafarnaum, será exaltada até ao céu? Você ao Hades descerá, porque, se as obras poderosas feitas em vocês tivessem sido feitas em Sodoma, ela teria permanecido até hoje. 24 Eu, porém, lhes digo que para a terra de Sodoma haverá maior tolerância no dia do juízo do para você."
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10.34,35 11.20-24
MATEUS Ais Pronunciados Sobre Cidades Impenitentes Cf. Lucas 10.13-15
A relação existente entre esta seção e a imediatamente precedente (vv. 1-19) já foi indicada (p. 682). 20. Então começou a repreender as cidades em que a maioria de suas obras poderosas havia sido realizada, porque não se arrependeram. O momento exato do "então" não é fornecido. O conteúdo do parágrafo claramente indica, contudo, que muitos milagres já haviam sido realizados em Cafarnaum e suas cidades vizinhas. Isso pode apontar para a última parte do Grande Ministério na Galiléia. Entretanto, se refletirmos sobre o fato de que bem no início desse ministério Jesus escolheu imediatamente Cafarnaum como seu quartel-general e passou a exibir seu poder de cura nessa cidade e sua vizinhança (4.13ss.), somos levados a concluir que não é estritamente necessário postular uma data tão tardia: é provavelmente indicado ou o meio ou a última parte desse período de atividade. Jesus, pois, passou a repreender as cidades nas quais a maioria de suas obras poderosas tinham sido realizadas. O verbo "repreender" é aqui usado num sentido um pouco diferente que o de 5.11. Ali houve referência a uma ação injustificável, a de amontoar insultos sobre os discípulos de Cristo; aqui ele indica a justificável denúncia do Senhor contra aqueles que se fizeram empedernidos no pecado. Lemos que Jesus repreendeu as cidades. Aqui uma vez mais, como em 10.15, o termo "cidade" tem referência antes e acima de tudo aos habitantes. Ver sobre 4.15; também nota de rodapé 441 na p. 651. De uma mera entidade topográfica - ruas, edifícios, muros - não se pode esperar que "se arrependa", que seja responsável por quaisquer atos, e ela não pode entrar em juízo. E verdade, não obstante, que o que os cidadãos fazem afetará o lugar no qual vivem (ver v. 23; cf. Gn 19.13,24). Essas "cidades" haviam presenciado as obras poderosas de Cristo, seus atos de poder, como os milagres são aqui denominados. Tais obras deveriam tê-los feito refletir sobre seus ca700
MATEUS
10.24,25
minhos e converter-se para Deus cora sincero pesar pelo pecado, porém esse não foi o efeito (cf. Ap 9.20,21). Assim Jesus prossegue: 21. Ai de você, Corazim! Ai de você, Betsaida! Porque se as obras poderosas feitas em vocês tivessem sido feitas em Tiro e Sidom, elas há muito teriam se arrependido com panos de saco e cinzas. É provável que Corazim e Betsaida estivessem situadas bem próximo a Cafarnaum, que é mencionada por último, ou seja, no versículo 23. As ruínas da atual Kerazeh, a noroeste do mar da Galiléia e a uns quatro quilômetros ao norte do que era Cafarnaum, são tudo o que resta da antiga Corazim. A Betsaida aqui mencionada pode ser ou Betsaida Julias, localizada precisamente a suleste do ponto em que o Rio Jordão, descendo do norte, corre para o Mar da Galiléia, ou, ainda a outra Betsaida, situada mais próximo a Cafarnaum.173 Em vista da menção de Betsaida e Cafarnaum nesse mesmo contexto, a última parece ser a mais provável. Se for assim, era a Betsaida situada na planície de Genesaré (Mc 6.53), a qual se estende para o noroeste desde o mar da Galiléia. Era a cidade natal de Filipe, lugar de onde procederam também André e Pedro (Jo 1.44). E facilmente compreensível que, sendo Cafarnaum o quartel-general de Cristo, as suas obras poderosas teriam sido realizadas não só nessas cidades, mas também nas cidades mais próximas: Corazim e Betsaida. Jesus declara que, se as obras poderosas feitas nestas duas últimas cidades mencionadas, tivessem sido realizadas em Tiro e Sidom, essas cidades fenícias, situadas mais ao norte, na costa oriental do Mediterrâneo, há muito teriam se arrependido. Não obstante, à luz de Isaías 23 e Ezequiel 26-28, a impressão nítida que se tem é que os navegantes comerciais e os colonizadores que habitavam nessas cidades eram soberbos, gananciosos por dinheiro e cruéis. Amós repreende os tírios por venderem os israelitas como escravos aos edomitas (Am 1.9). Os fenícios também vendiam "os filhos de Judá e os filhos de Jerusalém" aos gregos (J1 3.6). Na descrição 471
Para os argumentos que favorecem duas Betsaidas, ver C.N.T. sobre o Evangelho Segundo João, Vol. 1. pp. 216-218.
701
11.21
MATEUS
da "Babilônia" presunçosa, amante dos prazeres e arrogante em Apocalipse 17-19, há muitos elementos que trazem à mente a Tiro, centro pagão de perversidade e sedução. A declaração, pois, de que se houvessem Tiro e Sidom sido favorecidas de modo semelhante a Corazim e Betsaida, o povo dessas cidades fenícias há muito teriam se arrependido474 mostra com que repulsa o Senhor vê os que eram muito mais privilegiados, no entanto permaneciam impenitentes. O "ai" pronunciado contra elas equivale a uma maldição. Tiro e Sidom teriam se arrependido "com panos de saco e cinzas", diz Jesus. Visto que o tecido de que era feito o pano de saco era uma tela rústica de cor escura ("negro como saco de crina [cilício]", Ap 6.12), era especialmente apropriado como símbolo de luto. O pano de saco, usado pelos pranteadores, era realmente uma espécie de camisa, com aberturas para o pescoço e os braços, cortada na frente, presa ao redor dos quadris. Podia ser usado sobre uma roupa interior (Jn 3.6) ou diretamente sobre a pele (IRs 21.27; 2Rs 6.30; Jó 16.15; Is 32.11). Essa referência simbólica à dor é sempre corroborada pela adição de "e cinzas". Prossegue: 22. Eu, porém, lhes digo: Para Tiro e Sidom haverá maior tolerância no dia do juízo do que para vocês. Ver a explicação sobre 10.15. O Senhor então se volta para o próprio âmago e centro de sua atividade, a saber, Cafarnaum: 23,24. E você, Cafarnaum, será exaltada ao céu? Você ao Hades descerá.... Essa cidade, 474
A pergunta: "Se esse é o caso, então por que tais favores não foram revelados a Tiro e Sidom?". daria a seguinte resposta: a. A referência aqui parece ser à Tiro e Sidom tradicionais, como descritas pelos profetas. Naquele tempo, o Cristo operador dc prodígios ainda não havia encarnado, b. Quanto à acolhida que essas cidades fenícias teriam dado a Jesus e aos apóstolos, ver sobre Mateus 4.24 e 15.21-28 (Mc 7.25-30). Ver também Marcos 3.8; Lucas 6.17: At 21.3-6. Note as profecias (SI 45.12: 87.4). No segundo século d.C.. se estabeleceu um bispado para o povo de Tiro e vizinhança. O erudito cristão. Orígenes. foi sepultado na basílica cristã de firo. c. Quanto ao restante da pergunta: "l'or que tais favores não foram revelados a Tiro e Sidom?", a resposta seria Deuteronômio 29.29. Mateus 11.21 não foi escrito para estimular questões especulativas, e. sim. para enfatizar o falo de que as responsabilidades daqueles que têm sido especialmente privilegiados são muito maiores do que as daqueles que não têm sido assim favorecidos.
702
MATEUS
11.23,24
e a obra que o Salvador realizou aí, inclusive os milagres, já foram assuntos do nosso comentário; ver sobre 4.13. O assunto principal agora é este: em geral, a população de Cafarnaum permaneceu impenitente a despeito de todo o labor de amor que Jesus lhe havia dedicado. É por essa razão que ele agora se dirige a esse centro de sua atividade em termos que lembram Isaías 14.13,15, onde o rei de Babilônia é descrito como vangloriando-se de que subirá ao céu, e é então descrito como realmente descendo às profundezas mais baixas do Sheol. Numa pergunta repassada de ênfase dramática, Jesus, conseqüentemente, pergunta: "E você, Cafarnaum, será exaltada ao céu?" Noutros termos: "Você não espera realmente ser exaltada ao céu, espera?" No que diz respeito à forma, a pergunta é assim fraseada por se esperar uma resposta negativa.475 Trata-se de ironia, pois Cafarnaum espera exatamente ser assim exaltada. Rápida como a flecha que sai do arco, vem a resposta: "Você ao Hades descerá." Note a posição de Hades (antes do verbo) nessa resposta, fazendo ainda mais enfática essa predição cheia de maldição, ênfase esta que se perde em muitas das traduções. Aqui (e na passagem paralela de Lc 10.15), como provavelmente em toda parte nos Evangelhos, mas não em toda parte em todo o Novo Testamento, Hades significa "inferno". Note quão agudamente é ele contrastado com "céu". Hades, aqui, é o lugar de tormentos e de chamas (Lc 16.23,24). Ver também sobre Mateus 16.1 8.476 E evidente que a completa ruína aqui predita para o povo de Cafarnaum também implicava a destruição de sua cidade. Semelhantemente, o castigo que visitou o povo de Sodoma e üomorra incluiu a perda total de sua cidade. Não obstante, em ambos os casos, o que é primordial é a maldição lançada sobre o povo. E em conseqüência de seu pecado que a cidade também é destruída, não vice-versa. De uma maneira semelhante ao que se encontra Note |ií| DI(K«)0TÍOTI: ver Gram. N.T.. p. 917. i7i, y e r a c o nsideraçào mais detalhada em meu livro A I 'ida Futura Segundo a Bíblia. Capítulo 17: "O que representam o Sheol e o Hades"?. Editora Cultura Cristã. São Paulo. SP.
703
10.12,13
MATEUS
nos versículos 2l2.e 22, e 10.15, de modo que não se requer explicação adicional, Jesus conclui esse parágrafo, dizendo: porque, se as obras poderosas feitas em vocês tivessem sido feitas em Sodoma, ela teria permanecido até ho je. Eu, porém, lhes digo que para a terra de Sodoma haverá maior tolerância no dia do juízo do para você. 25 Por aquele tempo, respondeu Jesus e disse: "Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e terra, que ocultaste essas coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos; 26 sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. 27 Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho [o] quiser revelar. 28 Venham a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados, c eu lhes darei descanso. 29 Tomem sobre vocês o meu jugo, e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês acharão descanso para suas almas. 30 Porque meu jugo é agradavel e meu fardo, leve."
11.25-30
O Terno Convite do Salvador Cf Lucas 10.21.22
Lsse parágrafo, tão freqüentemente citado, e tão querido por todo crente genuíno, forma um notável contraste com o anterior. Ali, uma denúncia fulminante; aqui, um convite cheio de ternura; ali, a maldição; aqui, a bênção: 25,26. Por aquele tempo, respondeu Jesus e disse "Por aquele tempo", Mateus, porém, não nos diz precisamente quando essas palavras de adoração, revelação e convite emanaram do coração e lábios do Salvador. No entanto, Lucas o faz (10.1,17,21,22). Foram pronunciadas após o regresso dos setenta a quem Jesus enviou, de dois em dois, a todo lugar por onde ele haveria de passar. Naturalmente, nem mesmo essa é, de modo algum, uma designação específica da data. Mas fornece um contexto histórico para a preciosa declaração que se encontra em Mateus 11.25-30, e em parte também em Lucas 10.21,22. Naturalmente, os setenta tinham muita coisa para relatar (Lc 10.17), ainda que, como já se observou previamente, o que eles relataram longe estava de ser tão importante quanto ao que o Senhor diz em resposta. É para 704
MATEUS
11.25,26
essa reação por parte de Jesus que os evangelistas, cada um a seu próprio modo, chamam a atenção. Ver Lc 10.18-22 e comparar Mt 11.25-30. De fato, aqui, como se dá com freqüência, as próprias palavras "respondidas e ditas" indicam a reação ou resposta a uma situação, em vez de uma réplica a uma pergunta. No presente caso, a reação de Cristo resulta num terno convite. Visto que tudo nos versículos 25-27 pode ser considerado como preparação para o convite encontrado nos versículos 28-30, este tema pressupõe as seguintes subdivisões: A Ação de Graças Que a Antecede Os entusiásticos relatórios, não só sobre demónios que eram expulsos (Lc 10.17), mas provavelmente também sobre almas convertidas (cf. Mc 6.12), levaram Jesus a dar expressão à sua gratidão. Não obstante, a conexão não é só com os eventos anteriores, mas também com o que se segue nos versículos 27-30. Um convite da graça está para ser oferecido. Os sobrecarregados estão para ser instados a ir a Jesus. Todavia, ninguém pode ir a menos que lhe seja revelado a vereda pela qual deverá transitar para aceitar o convite (vv. 25,26). Nem faria muito sentido ir a menos que aquele que convida conheça a necessidade dos convidados, e a menos que tenha com que satisfazer tais necessidades (v. 27). E assim, com um senso de serena confiança em seu Pai, com a atitude de mente e coração igualmente historiada na outra excitante ocasião (Jo 11.41), o Mediador entre Deus e o homem, sendo ele mesmo homem (lTm 2.5), provavelmente erguendo ao céu seus olhos (cf. Jo 17.1), diz: Eu te louvo,477 ó Pai, Senhor de céu e terra, que ocultaste essas coisas dos 477
O verbo é (;o|ioÀOYOíi|iai, pr. pes. sing. pres. ind. voz média de c-íonoÀoyéw. Ainda que esta seja uma forma verbal composta, um OHOÁ.OY«,O reforçado, c a lbrina composta provavelmente retenha algo de sua força "perfeeíiva". deve-se lembrar que o freqüente uso de um composta tal tende a obscurecer a idéia adverbial adicionada. Ver (iram. N.T.. p. 563. A forma simples ("simplex", não composta) o\xo'koy(w contém o significado de "Lu digo a mesma coisa", daí "eu concordo" ou "concedo" ou "consinto" ou "admito". Cf. Lucas 22.6 (ele concordou, consentiu). L assim, no Anabasis (l.vi.7) Xenofonte representa Ciro como que dizendo a Orontas: "... como você mesmo
705
10.12,13
MATEUS
sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos. Jesus não diz: "nosso Pai", a forma de expressão encontrada na oração na qual ele ensinou seus discípulos a orar. Ele diz: "ó Pai" (cf. Mc 14.36; Lc 10.21; 22.42; 23.34; Jo 11.41). Às vezes ele é descrito expressando-se assim: "[ó] meu Pai" (Mt 26.39,42), ou a usar esta expressão ("meu Pai") ao falar acerca de seu Pai (Mt 6.17; 10.32,33; 11.27; 12.50; 18.10 etc.; Lc 10.22; 22.29; 24.49; Jo 5.17; 6.32,65; 8.19,28,38,49,54; 10.30, etc.). Mesmo seus iniadmite". Lsse sentido hásieo se desenvolveu em idéias tais como "confessar", solenemente declarar", "comprometer-se num acordo", daí "prometer". No N o v o Testamento, João Batista "reconheceu" ou "confessou": "Ku não sou o Cristo" (Jo 1.20). Ver também Atos 24.14. Semelhantemente, os heróis da fé "reconheciam" (ou "confessavam") que eram estrangeiros e peregrinos na terra" (I lb 11.13). Para esse significado de "confessar" ou "reconhecer", ver também sobre Mateus 10.32. Nessa passagem e em Lucas 12.8, o reconhecimento que Cristo faz do crente é a contrapartida do reconhecimento que o crente faz de Cristo. Ainda que em Apocalipse 3.5 a fraseologia seja diferente, o pensamento é basicamente o mesmo. "Confessar" ou "reconhecer" a Jesus - com ou sem a adição "ser cie o Cristo", ou "o Filho de Deus", ou "Senhor" ou "encarnado" - é também o significado em João 9.22; 12.42; Rm 10.9: 1 Jo 2.23; 4.2.3.15; e 2Jo 7. Semelhantemente. lTm 6.12 fala de "fazer a boa confissão" (literalmente falando). Numa espécie diferente de contexto, "confessar" ou "reconhecer" é também o sentido em Atos 23.8. Confessar pode também ser considerado como "dizer (ou "declarar") publicamente" (ver sobre Mt 7.23). Outra idéia estreitamente relacionada é "confessar os pecados" (1 Jo 1.9). Quando alguém "concorda" em fazer algo para outro, ele está "fazendo uma promessa" (Mt 14.7; cf. At 7.17). Não c difícil perceber que o "confessar" completa e entusiasticamente, de modo que alguém alegremente reconhece sua obediência a outro, pode conter o sentido de "louvar" (1 lb 13.15). Quanto à forma composta. êío(ioÃOYéw. mais usual do que a simples na I.XX. no Novo Testamento o significado de "confessar os pecados" já foi indicado (ver sobre 3.6: cf. Mc 1.5; Tg 5.16). Ainda que em Atos 19.18 o objeto "pecados" não seja adicionado, ele ou um sinônimo parece implícito. "Confessar" no sentido de "reconhecer" é a idéia em Fp 2.11. Finalmente, talvez na maneira já sugerida pela forma simples, o verbo composto retenha o sentido de "louvar" ou "dar graças". O verbo tem esse sentido não só aqui em Mateus 11.25 e seu paralelo Lucas 10.21, mas também em Romanos 15.9 e provavelmente 14.11. Na LXX, também, esse significado é amplamente ilustrado. Seria impossível sustentar que as mudanças semânticas de uma a outra nuança de significado tenham sido assim correta e plenamente explicadas, 'tudo o que pode ser seguramente afirmado é que não é realmente difícil entender como foi possível que um verbo adquirisse o que superficialmente parece ser tantos significados completamente diferentes. Realmente, esses significados não são tão diferentes um do outro. 706
MATEUS
11.25,26
migos interpretavam isso no sentido em que ele estava reivindicando igualdade com Deus (Jo 5.18), quanto a isso uma interpretação correta (Jo 10.30,38). No presente contexto, o termo era também apropriado por outra razão: seu Pai, num sentido incomparável, trinitariano e também messiânico (ou medianeiro), ao mesmo tempo, ainda que num sentido diferente - às vezes chamado "religioso ou espirituar o Pai de todos aqueles que são seus filhos por adoção, todos os crentes verdadeiros, aqui designados pelo termo afetuoso "pequeninos". E também plenamente apropriado o título vocativo que se segue, a saber, "Senhor de céu e terra". Como tal, o Pai é o Soberano Senhor, cujas decisões e disposições - por exemplo, que ele propositadamente oculta certas coisas dos sábios e cultos - não devem ser criticadas. Surge a seguinte pergunta: "Como, porém, podia Jesus realmente louvar o Pai, não só por revelar questões concernentes à salvação de alguns, mas também por ocultá-las de outros?" Não é inteiramente satisfatório dizer: "A intenção de Jesus é que a salvação transcende o entendimento humano, mas pode ser apropriada pelo coração humilde." Ao reler a pergunta, torna-se evidente que, se a intenção é fornecer uma resposta completa, então não é bastante satisfatório. Tenta eliminar a dificuldade que se experimenta quando pensamos no Salvador bondoso e amorável, louvando o Pai por realmente ocultar de certos indivíduos o conhecimento que é essencial à sua salvação. Talvez um modo mais satisfatório de tratar a questão seja: a. Reconhecer que em nosso presente estado de conhecimento ela não pode ser plenamente respondida. Não é Deus "o Senhor de céu e terra"? Não são passagens tais como Dt 29.29. Jó 11.7,8, Dn 4.35 e Rm 9.20 aplicáveis aqui? b. Até onde é possível uma resposta parcial, considerar esse louvor ao Pai como um agradecido reconhecimento da justiça deste, demonstrada na punição aplicada aos que são "sábios aos seus próprios olhos" (Pv 26.5; Rm 13.25; 12.16), exatamente o oposto de "pequeninos". A questão se torna mais fácil quando consideramos a próxima cláusula, a saber: "... e as revelaste aos pequeninos." Fisi707
10.12,13
MATEUS
camente falando, "pequeninos" são "crianças de peito" (Mt 21. 16). Tomam leite, não alimento sólido (lCo 3.1; Hb 5.13), e ainda não fizeram suficiente progresso quanto a aprender a falar (lCo 13.11). É claro, pois, que "pequeninos" são aqueles que são cônscios de sua completa dependência de outros. Espiritualmente, pois, os pequeninos são aqueles que humildemente confessam sua própria nulidade, sua carência e desamparo, e que, sendo totalmente conscientes de sua absoluta dependência do poder e misericórdia do Pai celestial, se entregam a ele, confiam que dele receberão tudo de que necessitam, de modo que, desfrutando da salvação plena e gratuita, possam viver vidas de gratidão para sua glória. Agora se faz evidente que o contraste entre a. "sábios e cultos" e h. "pequeninos" não é aquele entre pessoas cultas e incultas. E entre a. Aqueles que imaginam (pelo menos até certo ponto) que, em virtude de sua "sabedoria" prática ou "intelecto" superior, podem salvar a si próprios - pense nos fariseus e escribas, com sua doutrina de boas obras meritórias -; e b. aqueles que compreendem que só podem ser salvos pela graça (Ef 2.8). Se isso é compreendido, então se fará evidente que um indivíduo altamente escolado pode ser um "pequenino", e que uma pessoa completamente inculto pode estar na indesejável companhia dos "sábios e cultos". E compreensível que Jesus queira louvar o Pai por revelar essas coisas aos pequeninos. No presente contexto, a designação "essas coisas" significaria as coisas concernentes ao reino de Deus (Mt 11.12; cf. Lc 10.9,17), o evangelho (Lc 9.6) o arrependimento, portanto a salvação (Mc 6.12). Tal louvor, pois, é compreensível porque, se o caminho para entrar no reino ou obter a salvação forçosamente envolve desvencilhar-se de si mesmo e repousar nos eternos braços de Deus, então o caminho está aberto a cultos e incultos, a indivíduos extraordinariamente talentosos e intelectualmente retardados, ricos e pobres, jovens e idosos, homens e mulheres, escravos e livres. Na verdade, o Senhor do céu e da terra já providenciou uma gloriosa solução para o problema do pecado e desgraça humanos. Não é digno de 708
MATEUS
11.25,26
eterno louvor e adoração que o Soberano Senhor, que é autosuficiente e não necessita do homem, esteja, não obstante, disposto a revelar o caminho de salvação às pessoas humildes de toda classe e condição? "Porque assim diz o Alto, o Sublime, que habita na eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito num alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos" (Is 57.15). E como se o Mediador desejasse demorar-se por um momento nesse balsâmico pensamento, pois com reverência e adoração ele então prossegue: sim, ó Pai, porque478 assim foi do teu agrado. É confortante notar que por todo o Novo Testamento o beneplácito ou deleite do Pai, quando expresso em termos positivos, em todo e qualquer lugar tem como seu objeto Cristo e/ou a obra de salvação em conexão com ele.479 Parece lógico, pois, crer que também aqui (em Mt 11.26 e em seu paralelo, Lc 10.21) o pensamento positivo de revelar aos pequeninos as coisas pertencentes à salvação sobressai na mente de Cristo quando menciona o beneplácito do Pai. Diz H. Bavinck: "Em certo sentido, a queda, o pecado e o castigo eterno estão inclusos no decreto de Deus e fazem parte de sua vontade. Isso, porém, é realmente verdade só em certo sentido, e não no mesmo Ou. com bem pouca diferença, no sentido final: "(Pu te louvo. 6 Pai) que |em vez de "porque""| tal fosse do teu agrado." 47 '' As vezes o substantivo eúòoKÍa é usado com referência ao deleite, boa vontade, prazer ou resolução humanos (Rm 10.1; Fp 1.15: 2'fs 1.11). Assim também se dá com o verbo tòôoKtu (Rm 15.26,27: 2Co 5.8; 1'1's 2.8: 3.1: 2Ts 2.12). Quando a referência do substantivo é ao beneplácito ou deleite de Deus, os contextos são como segue: Aqueles em quem Deus se compraz (literalmente: "homens do beneplácito |de Deus]". Lc 2.14); o deleite de Deus em escolher para si um povo (Hf 1.5,9) e no fato de que, por meio do vigor comunicado por Deus. os crentes estão concretizando sua própria salvação (Hp 2.13). Quanto ao verbo, a ação expressa em termos positivos, as referências são ao deleite do Pai no Filho (Mt 3.17; 12.18; 17.5: Mc 1.11; Lc 3.22; 2Pe 1.17), ao seu beneplácito em a. dar o reino a seus filhos (Lc 12.32). b. a salvação dc seu povo pela pregação do evangelho (ICo 1.21). c. revelar seu Filho em Paulo (ül 1.15) e d. a decisão de que em Cristo habitaria toda a plenitude (Cl 1.19). Referências em termos negativos: Deus não se compraz nos incrédulos (ICo 10.5). em holocaustos (11b 10.6,8) e naqueles que retrocedem (Flb 10.38).
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sentido que a graça e a salvação. Estas são os objetos de seu deleite; Deus, porém, não se deleita no pecado, e nem tem prazer no castigo."480 Cf Ezequiel 18.23,32; 33.11. A Declaração Que lhe Imprime Sentido O caminho que conduz à salvação já foi indicado (vv. 25. 26). É o caminho da humilde confiança em Deus ou, se se preferir, em Jesus Cristo. Entretanto, é preciso responder agora à outra pergunta: "Aquele que estende o convite para que se aceite esta salvação tem aquilo de que o pecador necessita, e mesmo conhece a necessidade dele?" A resposta está implícita no versículo 27. Todas as coisas me foram entregues por meu Pai... Antes de tudo, ele tem aquilo de que o pecador necessita. "Todas as coisas" (cf. Jo 3.35; 13.3) necessárias para consumar a tarefa de mediador foram confiadas pelo Pai ao Filho. Quais coisas? À luz dos capítulos precedentes, já se fez evidente que Jesus, o Filho do Pai, recebeu autoridade sobre Satanás (4.1-11) e os demônios (8.28-32); sobre as doenças e obstáculos humanos (9.20-22; 9.1 -8), sobre os ventos e as ondas (8.23-27), sobre o corpo e a alma (9.1-8), sobre a vida e a morte (9.18,19,19,2326), sobre seus próprios discípulos e todas as demais pessoas (cap. 10), para salvá-los (9.13) e para julgá-los (7.22,23). À luz de 28.18 aprendemos que lhe foi dada toda a autoridade no céu e na terra. A luz de outras partes da Escritura se faz evidente que, como Mediador, ele foi revestido com o Espírito do Senhor, ou seja, com o Espírito de sabedoria e entendimento, conselho e poder, conhecimento e temor do Senhor (Is 11.1,2). No coração do Mediador há paz (Jo 14.27; 20.21,26), luz, vida, amor (Jo 1.4,17,26) e alegria (Jo 15.11; 16.24; 17.23). Iodas essas qualidades espirituais, e muitas outras, lhe foram confiadas 48 ' The Doctrine of Gud (minha tradução de Gerefonneerde Dogmaliek. Vol. II. Capítulo IV. "De Deus"). Grand Rapids, 1955, p. 390. De acordo com Lenski. o aoristo naptõóQr) ("entregue" ou "confiado") se refere à encarnação (op. cit.. pp. 440.441). O próprio tempo |do verbo|. contudo, nada diz sobre a extensão de tempo em que a ação indicada ocorreu, nem nos diz quando
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MATEUS
11.27
pelo Pai a fim de que dele, como a Fonte, fluíssem para os outros (Jo 1.16,17; 3.16; 6.51; e outras passagens já mencionadas). Torna-se óbvio, pois, que o Mediador tem tudo quanto se faz necessário para que o ser humano seja realmente bem-aventurado. Ele também sabe de que o pecador necessita. Isso se depreende do fato de que ele pode adicionar: e ninguém conhece482 o Filho senão o Pai. Tão imenso e tão glorioso é o coração desse Mediador que ninguém senão o Pai pode sondar suas riquezas do conhecimento, da sabedoria e do amor. Ó próprio fato de a palavra "Filho" ser agora usada - não "me" - mostra ela ocorreu. No contexto imediatamente precedente (v. 26). contudo, houve uma referencia ao soberano beneplácito (tòõoKÍa) do Pai relativa à revelação da questão da salvação aos pequeninos. Este beneplácito (a mesma palavra no original), usado num contexto semelhante, é por Paulo ligado à eleição e à predestinação "'em Cristo" que ocorreram "antes da fundação do mundo" (Hf 1.4.5). O que foi decidido desde toda a eternidade foi realizado no tempo (Hf 1.7segs.). Pareceria, pois, que também aqui em Mateus 11.27 não é necessário nem mesmo aconselhável conectar a ação indicada por irapeôó0r| com um momento expecífico na existência de Cristo, por exemplo, com a encarnação. O processo todo - o que aconteceu na eternidade, na encarnação, no batismo e ainda depois - pode muito bem ser indicado pelo verbo. O uso do aoristo não é obstáculo. Ver também C.N.T. sobre o Hvangelho Segundo João, Vol. I, p. 125. nota de rodapé 64. J82
A pergunta é se é possível ou não interpretar intensivamente o composto fTUYivúaei, que ocorre duas vezes neste versículo ("conhece realmente", referindo-se a "um conhecer que realmente penetra", Letiski. op. cit., pp. 440. 441: "conhece plenamente"', A. T. Robertson, Word Pictures. Vol. I. p. 91). No que diz respeito ao contexto, algo se pode dizer em favor desta interpretação intensiva: tudo o que é conhecido pelo Pai ou pelo Filho é completamente conhecido. Além disso, o composto parece conter esse significado intensivo em algumas outras passagens, sendo ICo 13.12 a mais clara delas, onde ylvwokw k ^épouç é contrastado com fTUYU'(joo|j.ai. Os léxicos oferecem pouca ajuda aqui. L.N.T.. p. 237 opta pelo significado intensivo: L.N.T. (A. e G.), p. 291, pelo sentido simples, ou seja. sem ênláse na preposição, com base no fato de que a passagem paralela (Lc 10.22) tem YLFÚOKeu não fTTiYLwáoKfL. Hsse argumento não pode ser totalmente convincente. A razão por que. depois de alguma hesitação, decidi em favor do "conhece" simples. é que quando o sentido intensivo é aceito, a passagem não só diz que o Filho conhece completamente o Pai. mas também que tal conhecimento completo é possuído pelo crente. O significado simples é também favorecido por quase todo tradutor: Wiclif. Tyndale. Geneva. Granmer. Rheims. A.V. e os modernos. Exceções: Williams ("conhece perfeitamente") e Rotherham ("conhece plenamente"). - Os outros significados do verbo èiuYiwóoKw (admitir, reconhecer, aprender, chegar a saber, comprovar) não entram no quadro nesta conexão. 71 1
11.27
MATEUS
que o que está sendo revelado é o relacionamento íntimo entre Pai e Filho, um relacionamento que existiu desde toda a eternidade. Quando Paulo fala sobre "os tesouros da sabedoria e conhecimento", ocultos em Cristo (Cl 2.3), sobre "a plenitude da divindade1' habitando nele (2.9), ele imediatamente aplica esse tema de uma maneira muito prática, acrescentando: "e nele vocês alcançaram a plenitude11 (2.10). É provável que uma implicação prática semelhante esteja também subentendida aqui em Mateus 11.27, como se dissesse: de um reservatório tão inexaurível, cuja capacidade só o Pai conhece, os cansados e sobrecarregados são instados a suprir suas necessidades. Este propósito prático se torna ainda mais claramente evidente, segundo tudo indica, com a adição da cláusula que é o complemento da precedente: e ninguém conhece o Pai senão o Filho.... O próprio íntimo do pecador e, portanto, suas necessidades, são conhecidos exclusivamente por Deus (SI 139; Jr 17.9,10). Diante dele toda criatura se acha despida (Hb 4.13). Conhecer realmente uma pessoa significa, portanto, ser capaz de vê-la como o Pai a vê. Portanto, aquele que conhece o Pai conhece também o pecador e suas necessidades. E o Filho, tãosomente o Filho, que conhece o Pai, e que, portanto, também conhece o pecador e suas necessidades. Visto que o Filho conhece o Pai, ele, tão-somente ele, é capaz de revelá-lo, e o revela (Jo 1.18; 6.46; 14.8-11). Portanto, às palavras, "e ninguém conhece o Pai senão o Filho", acrescenta-se: e aquele a quem o Filho [oj quiser revelar. Isso não pode ser interpretado no sentido em que o Filho esteja relutante em revelar o Pai, pois justamente um pouco antes (v. 25) o Filho se pôs a louvar o Pai por haver revelado a salvação a seus humildes filhos. As palavras indicam que a salvação dos filhos de Deus em nada depende do homem, mas tão-somente da revelação, e que essa revelação, por sua vez, tem por única base a vontade e o deleite tanto do Pai quanto do Filho, porque não só em essência, mas também em propósito, o Pai e o Filho são um só (Jo 10.30). Do princípio ao fim, pois, a salvação tem por base a graça soberana. Cf. Efésios 2.8. 712
MATEUS
10.34,35
O Conteúdo Que Encoraja Sua Aceitação O Filho tem e conhece, e agora também oferece e dá o de que necessitam os que se acham cansados e sobrecarregados: 28-30. Venham 483 a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados.... O que significa ir a Jesus é claramente descrito em João 6.35: "O que vem a mim de modo algum terá fome, e o que crê em mim de modo algum terá sede." É óbvio, à luz dessa passagem, que "ir" a Jesus significa "crer" nele. Essa fé é conhecimento, assentimento e confiança, tudo de uma só vez. Além do mais, a fé, sendo dom do Espírito Santo, produz o fruto do Espírito: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio (Gl 5.22; cf. Jo 14.15; 15.1-17; Uo2.3). Ela produz as obras de gratidão, realizadas em espontânea obediência a Cristo. E aos cansados 484 e sobrecarregados 483 que o convite se estende. São eles, todos eles, que são convidados com insistência a ir a Jesus. A quem, especialmente, tinha Jesus em mente? Mateus 23.4 fornece a resposta. A referência é a todos os que se acham oprimidos pelo pesado fardo de regras e regulamentos postos sobre seus ombros pelos escribas e fariseus, como se uma pessoa só pudesse ser salva quando em sua vida a obediência a todas essas tradições sobrepujasse a seus atos de desobediência. Quando na mente e coração de uma pessoa se arraiga a crença de que dessa forma, e somente dessa forma, se pode obter entrada na vida eterna, o resultado, na melhor das hipóteses, é uma penosa incerteza; com maior freqüência se dá algo pior, ou seja, terror que escraviza, ansiedade que consome, desespero sem qualquer vislumbre de esperança (cf. Rm 8.15a). 4S1
A palavra usada é õeüw (ôeüpo: para cá. aqui. c íte: venha), istoé, "venha aqui", ou simplesmente "venha", com "aqui" implícito. 484 KOTTíâwzeç. nom. pl. masc. part. pres. at. dexoTuá«. Ver sobre 6.28: também C.N.T. sobre I e 2 Tessalonicenses, p. 134: cf. GI4.I1; Ef 4.28; Ep 2.16. "Jesus, cansado da viagem (exausto em decorrência de uma longa jornada), sentou-se à beira do poço" (Jo 4.6). 483
uf^opTia^évot, nom. pl. masc. perf. part. pas. de i^opuÇw: cf. Lucas 11.46.
713
10.12,13
MATEUS
É óbvio que o urgente convite de Cristo aos cansados e sobrecarregados para que fossem a ele é tão relevante hoje como era então, quando Jesus andava nesta terra. Aplica-se a qualquer um que, por alguma razão, tenta efetuar a salvação, total ou em parte, por meio de seu próprio esforço. E não abriga o coração de todo pecador um fariseu, inclusive mesmo o da pessoa já renascida, porém que ainda vive aqui na terra, pelo menos de vez em quando? Eis a promessa: e eu lhes darei descanso.48'' Tal refrigério não é só negativamente ausência de incerteza, temor, ansiedade e desespero; positivamente, é paz de mente e coração (SI 125.1; Is 26.3; 43.2; Jo 14.27; 16.33; Rm 5.1); certeza de salvação (2Co 5.1; 2 Tm 1.12; 4.7,8; 2 Pe 1.10,11). E prossegue: Tomem sobre vocês meu jugo,487 e aprendam488 de mim... Na literatura judaica, um "jugo" representa a soma total de obrigações que, segundo o ensino dos rabinos, uma pessoa deve assumir. Essa definição explica expressões tais como "jugo da Torá", "jugo dos mandamentos", "jugo do reino do céu", etc. Já ficou demonstrado que, em decorrência das suas interpretações, alterações e acréscimos da santa lei de Deus, o jugo que os mestres de Israel punham sobre os ombros do povo consistia num legalismo m
àrarraúou, prim. pes. sing. fut. ind. at. de ávairaúw. Ver também sobre 26.45. Cf. Me 6.31; 14.41;Lc 12.19; ICo 16.8; 2Co 7.13; 1 Pe 4.14; Ap 6.11. Note Fm 7: "os corações dos santos têm sido reanimados" ou "refrigerados". Note a combinação de ÀVAITARIOOVIAI e KÓTTUI' em Ap 14.13. 4X7 Ver S.BK., Vol. I. pp. 606-610; também artigo de Rengstorf sobre Çuyóç no N.T. (Th.D.N.T., Vol. II. pp. 898-901). 41,11 (iá9exe, seg. pes. pl. aor. imper. at. de pcív9ái'(j. A aprendizagem pode ser por meio de instrução ou da experiência; aqui a ênfase parece estar na primeira ("aprendam de mim"), ainda que a última não fica excluída. Ver também sobre 9.13 e 24.32. O grego moderno reconhece duas formas, pavOávco e paeoúvw. A raiz de palavras como essas e similares, tanto no grego quanto em línguas correlatas, inclusive o inglês e português, é MAN: pensar. Assim o grego do Novo Testamento apresenta (em adição apauôcéuu): à(ia0iiç, ignorante; Katapai'9át'w, eu considero (cuidadosamente); )aa8r|ir|ç: aprendiz, discípulo; na0rp:pi.a: mulher discípula; naOryctÚGi): eu me torno um discípulo, eu faço um discípulo; e owpaSryrrii;: condiscípulo. O inglês tem man (homem, que tem sido chamado "animal pensante"), mente, mental, admoestação, monstro, monumento, medicina, matemática e muitas outras. Ver também sobre 13.52 e sobre 28.19.
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MATEUS
11.28-30
totalmente sem fundamento. Era o sistema de ensino que realçava a salvação por meio da rigorosa obediência a um enorme volume de regras e regulamentos. Agora, aqui em 11.29, Jesus coloca seu próprio ensino em oposição àquele que o povo ficara acostumado. Ao dizer: "Tomem sobre vocês meu jugo, e aprendam de mim", ou "e tornem-se meus discípulos", sua intenção é: "Aceitem meu ensino, a saber, que uma pessoa é salva por meio da simples confiança em mim." E prossegue: porque sou manso e humilde de coração489....Ao explicar a palavra "manso", como ocorre em 5.5, foi realçado que a pessoa mansa é aquela "que encontra refugio no Senhor, entrega-lhe inteiramente seu caminho, deixando tudo nas mãos daquele que o ama e dele cuida". Ver também sobre 12.19,20. E evidente que a pessoa mansa é pacífica e amante da paz. Portanto, não é de estranhar que o Novo Testamento Siríaco (Peshitta) tenha: "Venham a mim e eu lhes darei descanso porque eu sou tranqüilo.... e encontrarão descanso para si mesmos." Isso, ou algo muito semelhante a isso, pode ter sido o que Jesus, falando em aramaico, idioma muito parecido com o siríaco, disse naquele dia à multidão de consciência abalada.490 O sinônimo de "manso" é "despretensioso" ou "humilde", em oposição a "orgulhoso" (cf. IPe 5.5). O resultado de tomar o jugo de Cristo e de tornar-se seu discípulo é: e vocês acharão descanso para suas almas491 (ou "para si mesmos"). O "achar" é "obter". Note o paralelo: "Eu lhes darei descanso" (v. 28) e "vocês acharão descanso" (v. 29). Os homens jamais obterão, a menos que Cristo dê. Jamais descobrirão o que ele não deu a conhecer. E conclui: Porque meu jugo é agradável, e meu fardo é leve. Não se deve jamais es489
O coração (Kapõía) é o cerne, o centro do ser do homem, a sede das disposições, tanto quanto dos emoções e pensamentos. E o próprio eixo da roda da existência humana, de cujo centro procedem todos os raios (Pv 4.23; cf. ISm 16.7). Tudo isso se aplica também à natureza humana de Cristo. 4 ''" Ver W. Jennings, Lexicon to the Syriac New Testament. revisado por U. Gantillon. Oxford, 1926, p. 6. 4,1 Para il^OT. v er nota de rodapé 453, p. 667.
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10.12,13
MATEUS
quecer que um jugo, literalmente falando, era uma armação de madeira, colocada sobre os ombros de uma pessoa a fim de tornar um volume ou fardo mais fácil de carregar, distribuindo seu peso em proporções iguais aos lados opostos do corpo. Isso, contudo, não excluía inteiramente a possibilidade de que. se o fardo fosse por demais pesado, o jugo poderia não ser suficiente para ajudar o usuário. Conseqüentemente, mesmo um jugo poderia chamar-se pesado (At 15.10). Portanto, para tornar agradável a tarefa de carregar, o jugo não só tinha de estar bem ajustado aos ombros, não provocando irritação, mas também a carga não podia ser demasiadamente pesada. Simbolicamente falando, Jesus aqui assegura às pessoas oprimidas a quem se dirige, tanto de outrora como de agora, que seu jugo, isto é, o que ele os convida a usar, é agradável,492 e seu fardo, isto é, aquilo que ele requer de nós, é leve. O que ele está de fato dizendo, portanto, é que a simples confiança nele e a obediência a seus mandamentos, por gratidão pela salvação já comunicada por ele, são deleitosos. Produzem paz e alegria. A pessoa que vive esse gênero de vida não é mais escrava. Tornou-se livre. Serve ao Senhor espontânea, solícita, entusiasticamente. Está fazendo o que ele (o "novo homem'" nele) quer fazer. Cf. Rm 7.22. Ao contrário, a tentativa de se salvar por meio de escrupulosa adesão a todas as regras artificiais e regulamentos arbitrários, sobrepostos à lei pelos escribas e fariseus (23.4) significa escravidão. Produz desgraça e desespero. Portanto, diz o Senhor: "Venham a mim." No estudo dessa maravilhosa passagem (vv. 28-30), um fato geralmente passa despercebido. Ei-lo: o conselho autoritativo que Jesus oferece não é apenas bom para a alma; quando levado a sério, também beneficia grandemente o corpo. O descanso - paz de coração e mente - que Jesus aqui provê é precisamente o oposto da gravíssima tensão mental que envia tantas 4W
Grego xpipTOç; cf. Le 6.35. The New Teslament in Modem Greek. Londres. 1943. tem Kodóç, significando no grego moderno bom. bondoso, comparável a uma de suas conotações no grego homérico, o clássico e o K.oinê.
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Cap. 11
pessoas aos médicos, aos hospitais e à morte. A ausência de paz, quer na f o r m a de ansiedade ou de rancor e vingança (o desejo ardente de "acertar contas") pode produzir úlceras, colite, hipertensão, ataques cardíacos, etc. O ensino de Cristo, se levado a sério, tem um efeito terapêutico na pessoa toda, alma e corpo. 41,3 Ele é um Salvador completo.
Sumário do Capítulo 11 Após a descoberta dos Rolos do Mar Morto, muitos têm tentado ligar João Batista ao movimento de Qumran. Ver. por e x e m p l o , General Bibliography, s o b W. H. B r o w n l e e e J. Daniélou. Entre as semelhanças que têm sido apontadas em alguns dos muitos livros e artigos estão estas: ambos (João e a comunidade de Qumran) estavam associados com o deserto na vizinhança geral do Mar Morto. A m b o s eram austeros. A m b o s enfatizavam a necessidade de arrependimento e batismo. A m bos tiveram sua origem 110 sacerdócio (o pai de João Batista era sacerdote). A m b o s reagiram vigorosamente contra o "sistema estabelecido", isto é, a autoridade reconhecida dos fariseus e saduceus, etc. Há certas semelhanças exteriores, e deve-se admitir que João poderia ter-se familiarizado com a comunidade de Qumran. Não obstante, em relação a certos itens mais ou menos essenciais, ele era diferente. Ele não tentava manter suas doutrinas em segredo, mas a comunicava às multidões bem-vindas. Não só os homens, mas também as mulheres, iam ouvi-lo e se convertiam (Mt 21.31,32). Seus discípulos não eram um grupo bem organizado, mantido sob controle por estritas regras e regulamentos e por um rígido código de disciplina. Acima de tudo, João proclamava um Messias que já havia chegado. Disse ele: "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do m u n d o . " " E u batizo com água com vistas à conversão, mas aquele que vem após m i m é mais poderoso do que eu...." 4 :
" ' Ver também S. I. McMillen. op. f/7., pp. 60.62,67.70-75,86. Na p. 99. o autor se retere a esta mesma passagem, tile cita os versículos 28 e 29.
Cap. 11
MATEUS
Ainda, porém, que João falasse com profunda convicção sobre Jesus, chegou um m o m e n t o em que ele começou a nutrir dúvidas. Ver Mateus 11.1-19. Portanto João envia a Jesus alguns de seus discípulos com a pergunta: " E s tu aquele que vem, ou devemos esperar algum outro?" Prováveis razões para sua dúvida: a. Ele se achava numa prisão sombria e lúgubre e não fora resgatado; b. As atividades de Jesus, relatadas a João Batista, pareciam não harmonizar-se com a maneira com que João descrevera o Messias. João havia descrito o juízo iminente (o machado já se acha posto na raiz das árvores), mas palavras de graça emanavam dos lábios de Jesus, e obras de misericórdia eram por ele realizadas. Contudo, o que João havia dito era correto, baseado na profecia. N ã o obstante, ele não fora capaz de distinguir entre a primeira vinda e a segunda. Portanto esperava que se cumprissem na primeira vinda as predições relativas à segunda vinda. Jesus o trata com muita benevolência. Dirigiu sua atenção para aquele aspecto da profecia do Antigo Testamento - promessas de cura, livramento e restauração - que pertencia à primeira vinda, e o tranqüilizou mostrando que justamente agora essas boas novas estão sendo gloriosamente cumpridas. Ao m e s m o tempo, defendeu João ante o público, falando com aprovação distinta da obra que ele realizara como arauto. João não era uma cana agitada pelo vento, nem um bajulador. Houvera sido um bajulador e estaria agora m e s m o no palácio do rei, em vez de numa masmorra do rei. Portanto, o povo devia levar a sério a pregação de João acerca do arrependimento. Não deviam proceder como crianças a brincar na praça do mercado, condenando prontamente o que acabavam de aplaudir, quer em João quer no Filho do homem. Na segunda seção (vv. 20-24), Jesus censurou as cidades em que a maioria de suas obras poderosas havia sido realizada, porquanto não tinham se arrependido. Lição: o juízo não será brando para os impenitentes privilegiados.
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Cap. 11
Na terceira seção (vv. 25-30), a censura fustigante é substituída por terno convite. O regresso dos missionários com um relatório cheio de entusiasmo é para Jesus ocasião de externar uma emocionante ação de graça. Ele conclui com o terno convite: "Venham a mim todos os que se acham cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso...."
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