TUDO SOBRE
FOTOGRAFIA
EDITORA GERAL
JULIET JUL IET HACKING HACKI NG PREFÁCIO DE
DAVID CAMPANY
TUDO SOBRE
FOTOGRAFIA
SUMÁRIO
PREFÁCIO de David Campany
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INTRODUÇÃO
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1
| DE 1826 A 1855
16
2
| DE 1856 A 1899
86
3
| DE 1900 A 1945
168
4
| DE 1946 A 1976
320
5
| DE 1977 ATÉ HOJE
416
GLOSSÁRIO
554
COLABORADORES
557
CITAÇÕES
558
ÍNDICE
562
CRÉDITOS DE FOTOS E ILUSTRAÇÕES
574
E
stritamente alando, a história completa da otografa seria um registro de todas as otos já tiradas e da reação suscitada por cada uma delas, desde as primeiras experiências realizadas na década de 1830 até os cerca de 30 bilhões de registros otográfcos produzidos por ano no mundo inteiro. Impossível. É preciso azer escolhas. O processo de traçar uma história da otografa não é muito dierente do ato de tirá-las. Trata-se de uma arte ou de uma ciência da síntese. Um trabalho que envolve discernimento, seleção, enquadramento, edição, avaliação e reavaliação. A otografa teve mais vidas do que um gato sortudo, cada qual com sua própria história conturbada. Também teve muitas mortes. O fm desse meio de expressão oi anunciado com regularidade durante mais de um século. A primeira ameaça oi o cinema, seguido pela televisão, pela imagem digital e, mais recentemente, pela internet. A otografa, no entanto, tem se mostrado, acima de tudo, exível e adaptável. Sua essência não está em determinada tecnologia ou unção social. Na verdade, discute-se até hoje se existe de ato uma essência ou apenas uma combinação maleável e inconstante de características. A otografa já estava muito bem estabelecida antes de qualquer tentativa de contar sua história. O primeiro esorço nesse sentido viria apenas com o seu centenário, na década de 1930. Durante boa parte de sua existência, ela simbolizou um presente em movimento, o meio mais adequado para retratar um mundo em rápida transormação. Esse inexorável impulso adiante parecia dissociá-la de seu próprio passado. A otografa dera origem a novos campos de experiência, penetrando cada uma das instituições da vida moderna. Jornalismo, etnografa, arquitetura, publicidade, moda, topografa, medicina, educação, turismo, história, direito, política, design e, naturalmente, arte. Vinha se tornando a ar te moderna por excelência. E também transormava as outras artes, redefnindo o realismo e frmando-se como o meio de reprodução através do qual todas as demais obras de arte seriam conhecidas ora dos museus. Mesmo em 1930, traçar um panorama da otografa era o mesmo que executar um trabalho de Sísio, condenado a repetir sempre a mesma tarea. Aliadas a uma mistura de expertise e ciência, essas primeiras tentativas de historiografa estabeleceram uma lista amiliar de grandes nomes e momentos decisivos de inovação técnica. Desde então, a história da otografa se tornou ainda mais complexa e plural. Entretanto, o ascínio continua o mesmo. Na verdade, para cada voz que afrma que a otografa é responsável pela aniquilação da história, ao soterrá-la em uma avalanche de “instantaneidades” descartáveis, há também quem veja com clareza a relação entre o que a otografa é hoje e o que ela oi no passado. Ao longo das últimas décadas, a otografa se tornou um meio de expressão muito mais autorreexivo, consciente de sua história e capaz de se aproveitar dela com maturidade. Consequentemente, os movimentos de continuidade são tão ormidáveis quanto os de ruptura. Este livro retrata a revitalização do interesse pelo passado da otografa – não como um conjunto de atos mortos, mas como uma maneira de compreender como nos posicionamos atualmente em relação a ela. A internet sem dúvida desempenhou um papel signifcativo nessa revitalização. Em primeiro lugar, a experiência de observar imagens imateriais na tela nos trouxe uma percepção acentuada dos suportes ísicos e materiais que deram orma à otografa durante grande parte de sua existência. Não me refro apenas a impressões, mas também a livros, revistas, jornais, álbuns e arquivos (meios que até hoje não oram engolidos pelo vácuo digital). Em segundo lugar, a internet nos permitiu identifcar as tensões entre as histórias locais da otografa e a globalização desigual da cultura visual. E, em terceiro, tornou o passado da otografa mais disponível do que nunca, com um grau de riqueza jamais visto. Muitos dos desafos, questões e interesses que consideramos exclusivamente nossos oram vivenciados pelos otógraos e apreciadores do passado.
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PREFÁCIO
Por exemplo, a tensão entre a otografa como registro de atos e como expressão artística esteve presente em todas as etapas de seu desenvolvimento na qualidade de arte. Seu status legal e actual é tão inescapável e contestado hoje em dia quanto na época em que William Henry Fox Talbot a descreveu, de orma tão proética, como um “novo tipo de evidência”. As propriedades narrativas da imagem fxa mobilizaram os pioneiros da otografa da mesma orma que mobilizam os produtores de imagens artísticas ou publicitárias contemporâneos. A relação entre as imagens individuais e as múltiplas também oi explorada por esses pioneiros em seus livros e ensaios otográfcos, ao passo que atualmente sabemos que uma otografa é ao mesmo tempo uma imagem singular e parte de um conjunto de obras mais amplo. Registros de pessoas, lugares e objetos continuam sendo undamentais e sempre serão: retratos, paisagens e naturezas-mortas se mantêm não como bastiões de gêneros tradicionais, mas como ormas pictóricas exíveis. E há também as relações proundas entre o impulso colonialista, que diundiu de orma tão rápida a otografa pelo mundo no século XIX, e a nova cultura global, que emana dos centros de produção de imagens. A otografa nos cativa porque, mais do que um tema, ela é um bilhete de viagem. Quando nos interessamos por sua história, podemos explorar todos os aspectos do passado e do presente abordados e transormados por ela, sem nem sequer tirarmos os pés do chão.
DAVID CAMPANY ESCRITOR, CURADOR, RADIALISTA E FOTÓGRAFO
PREFÁCIO 7
O
m estudo do astle Berg, com trenó puxado por cães, na Antártida, de autoria de Herbert onting (1911), que ensinou otografa aos membros da expedição de descobrimento do polo Sul, realizada entre 1911 e 1912. s negativos não revelados oram encontrados na tenda em que o capitão Scott, dward Wilson e Henry Bowers morreram durante a viagem de volta, após descobrirem a bandeira norueguesa no polo.
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INTRODUÇÃO
que há de tão sedutor nas imagens otográfcas? O ato de atualmente muitos de nós tirarmos otos todas as semanas, ou até todos os dias, não diminuiu a magia de retratos pessoais ou de obras exibidas em galerias, museus e livros. As otografas coladas em um álbum ou postadas em redes sociais na internet ainda nos azem dar gargalhadas. Quando descobrimos imagens extraordinárias da história da otografa, como as otos da Antártida tiradas por Herbert Ponting (1870-1935) no início do século XX, ainda somos cativados por elas. As imagens de Ponting da Expedição Britânica à Antártida de 1910 a 1913 transormam o passado remoto em um presente vibrante. Contudo, essas imagens não são meros documentos históricos: podemos ver com clareza que, mesmo em condições tão hostis, o otógrao estava determinado a não sacrifcar nada do eeito estético. A otografa pertence tanto à esera da realidade quanto à da imaginação: embora por vezes avoreça uma em detrimento da outra, ela nunca abre mão de nenhuma das duas completamente. Quando, em janeiro de 1839, o mundo recebeu a notícia de que era possível capturar a imagem vista na camera obscura – um equipamento de desenho que projetava o que o artista via numa superície a partir da qual ele poderia copiar a cena –, parecia não haver limites para a engenhosidade humana. A daguerreotipia – desenvolvida na França por Louis-Jacques-Mandré Daguerre (1787-1851) – resultava numa imagem rica em detalhes em uma pequena placa de metal, como se um espelho minúsculo tivesse sido colocado diante da natureza. A divulgação do daguerreótipo em janeiro oi logo segu ida pela notícia de outro processo otográfco desenvolvido na Inglaterra por William (conhecido como Henry) Fox Talbot (18001877). O processo de Talbot, batizado pelo próprio inventor de “desenho otogênico”, resultava numa imagem negativa em papel cujas características a aproximavam das artes gráfcas. Enquanto o daguerreótipo era um objeto único (não h avia negativo), um desenho otogênico poderia ser usado para produzir inúmeras cópias positivas.
Desde seus primórdios, a otografa oscilou entre a singularidade e a multiplicidade. Atualmente, uma impressão otográfca única ou de tiragem limitada de uma celebridade pode ser vendida por mais de 1 milhão de dólares, ao mesmo tempo que a otografa digital – com seu potencial de reprodução aparentemente infnito – desempenha um papel undamental na comunicação global. Tudo sobre otografa conta a história de imagens extraordinárias obtidas por meio de processos otográfcos. Existem milhares de otografas artísticas importantes em coleções públicas ou particulares em todo o mundo, porém a maioria delas não oi produzida com o propósito de fgurar em uma exposição de arte. Algumas oram pensadas como demonstrações do que aquele novo meio de expressão era capaz de azer; outras eram inicialmente documentos, registros ou ilustrações, e somente no uturo seriam vistas como obras de arte. Algu mas otografas, como o ensaio de Eugène Atget (1857-1927) de um grupo de parisienses observando um eclipse, encontram elementos surreais na realidade. Outras, como Autorretrato de um homem aogado (1840; ver p. 21), de Hippolyte Bayard (18071887), brincam com a capacidade da otografa de transormar fcção em ato. Já que a maior parte das grandes imagens otográfcas oi aceita como obra de arte retrospectivamente, sua história não pode ser contada com base em movimentos, escolas ou círculos sociais. Portanto, este livro é dividido em uma série de acontecimentos undamentais, grupos, assuntos e temas. Ao longo destas páginas, você encontrará obras individuais extraordinariamente pungentes, quer tenham sido produzidas como documentos, quer como obras de arte. Desde a invenção da otografa em 1839, a questão da identidade e do status desse meio de reprodução de imagem oi debatida com base não em suas origens tecnológicas, mas em seu relacionamento com as artes. Poucos negavam que a
A otografa de ugène Atget de um grupo de parisienses assistindo a um eclipse (1912) oi utilizada por Man ay na capa do jornal La Révolution Surréaliste, em junho de 1926. Segundo Man ay, Atget considerava suas otografas “meros registros que aço” e se recusou a receber o crédito pela oto em questão.
INTRODUÇÃO 9
ormato carte de visite permitia que até oito retratos em miniatura ossem impressos no mesmo negativo. roduzidos em quantidade, eles podiam ser dados a parentes, amigos e conhecidos. ste exemplo de 1858, de autoria de André-Adolphe-ugène isdéri (1819-1889), mostra o príncipe Lobkowitz em várias poses, até mesmo em trajes pouco convencionais.
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INTRODUÇÃO
otografa osse uma invenção engenhosa da era moderna, mas muitos a viam como uma ameaça aos valores tradicionais associados às belas-artes. Em uma sociedade simbolicamente dividida entre “cavalheiros” (que exercitavam seu intelecto e sua imaginação) e “operários” (trabalhadores braçais que realizavam trabalhos mecânicos, nos quais não precisavam pensar), uma máquina que produzia imagens era uma ameaça à ordem social vigente. Na década de 1850, tanto o daguerreótipo quanto o calótipo (nome que Talbot deu ao seu processo após importantes melhorias em 1841) oram substituídos pela otografa em colódio úmido, processo baseado no u so de negativos de vidro para a produção de imagens em papel. As imagens resultantes eram geralmente impressas em papel coberto de albumina (clara de ovo) e são caracterizadas pela nitidez dos detalhes, por sua tonalidade amarronzada e superície lustrosa. A prática da otografa, tanto amadora quanto comercial, teve grande expansão em meados da década de 1850. A otografa em papel h avia se livrado das restrições de licenciamento, e dois novos ormatos estavam prestes a se tornar muito populares. A otografa estereoscópica – duas imagens de uma mesma cena tiradas de uma distância ligeiramente dierente e coladas lado a lado em u m pedaço de cartão – apresentava uma imagem tridimensional quando observada através de um visualizador especial. As cenas eram por vezes educacionais, mas geralmente produzidas somente para causar um eeito visual, ou até mesmo excitação. A carte de visite era um retrato do tamanho de um cartão de visitas comum, que enatizava as vestimentas em vez dos traços do retratado. A popularização da otografa em meados do século XIX levou a uma mudança de atitude em relação a esse meio de expressão. A prática da calotipia durante as décadas de 1840 e 1850 na Grã-Bretanha e na França trouxe uma extraordinária série de experimentos e avanços técnicos e estéticos. Diante da rápida comercialização e popularização da otografa nessas décadas, a ideia de que esse processo de reprodução de imagem poderia ser uma arte – e de que otógraos (vindos das classes sociais mais baixas) poderiam ser artistas – parecia absurda para alguns. Em 1857, a crítica de arte e historiadora Elizabeth Eastlake ponderou que a otografa deveria ser louvada, mas apenas se não pretendesse ir além dos “atos”. Poucos anos depois, o poeta e crítico rancês Charles Baudelaire denunciou a otografa comercial
como o “inimigo mais mortíero” da arte. O inuente crítico de arte John Ruskin, que em meados dos anos 1840 maravilhara-se com a fdelidade com que o daguerreótipo representava a natureza ao usá-lo como auxílio visual para suas ilustrações em Veneza, afrmou posteriormente que a otografa “não tem qualquer relação com a arte… e jamais irá substituí-la”. Na década de 1860, a maioria dos otógraos comerciais considerava características técnicas, como a nitidez da inormação visual e uma qualidade de impressão impecável, a melhor maneira de demonstrar a superioridade de suas imagens otográfcas. Essa concepção técnica de excelência signifcava que, para os aspirantes a otógraos profssionais, a otografa era uma ar te do real. Algumas fguras notáveis rejeitaram essa visão ortodoxa, considerando a otografa uma maneira de criar combinações complexas de imaginação e realidade. O mais amoso desses otógraos amadores oi uma mulher: Julia Margaret Cameron (1815-1879). Ela beirava os 50 anos quando começou a otograar e, ao longo da década seguinte, criou uma obra extensa com pretensões exclusivamente estéticas. Julia utilizava oco dierencial, antasias e, por vezes, objetos cênicos para criar retratos com as bordas desocadas e tons quentes, assim como estudos de personagens inspirados em temas bíblicos, literários ou alegóricos. Sua convicção de que estava transormando a otografa em arte era tão audaciosa, e sua prática idiossincrática, tão arontosa às aspirações modestas das obras exibidas nas exposições das sociedades otográfcas, que ela oi rotulada pela comunidade otográfca como uma pobre excêntrica incapaz de utilizar os equipamentos que tinha nas mãos. Foi somente no fm do século XIX que a subjetividade na otografa conquistou uma legitimidade cultural mais ampla. Fotógraos que haviam alcançado “sucesso” nas sociedades otográfcas consagradas e os avanços técnicos que eles tanto valorizavam oram essenciais para o movimento internacional conhecido como artista George rederic Watts, junto com duas das modelos-mirins avoritas de Julia Margaret ameron – lizabeth e Kate Keown –, personifca a inspiração criativa em O sussurro da musa (1865).
INTRODUÇÃO 11
A obra de Anne Brigman é marcada por fguras humanas retratadas em meio a paisagens. Anne, que vivia na aliórnia, não utilizava modelos profssionais, mas, em vez disso, passava o verão acampada na serra evada com seus amigos e suas irmãs, azendo-os posar nos terrenos acidentados da região para criar composições dramáticas, como A harpa eólica (1912).
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INTRODUÇÃO
“pictorialismo”. A otografa pictorialista é caracterizada por técnicas e eeitos emprestados das artes gráfcas. Embora a imagem pictorialista osse geralmente derivada de um negativo de alta defnição, as manipulações na câmara escura, que podiam ser extensivas e buscavam aastá-la desse realismo cristalino, signifcavam que cada impressão poderia ser considerada única. As imagens resultantes, muitas vezes impressas em tons vibrantes e de aparência desocada, nebulosa e onírica, pretendiam provocar reações estéticas, e não objetivas. Muitas das composições pictóricas invocavam a gravidade artística do simbolismo contemporâneo, como na otografa A harpa eólica (1912), de Anne Brigman (1869-1950). Na época, a fgura mais envolvida na promoção da otografa artística era Alred Stieglitz (1864-1946), um nova-iorquino que possuía uma relação próxima com a Europa. Após abandonar o Camera Club de Nova York e criar a Fotossecessão em 1902, Stieglitz dirigiria a revista Camera Work, que apresentava o que se azia de melhor em termos de otografa artística em todo o mundo, incluindo suas próprias obras. Stieglitz e a Camera Work tiveram um papel tão importante no distanciamento do pictorialismo quanto haviam tido em sua promoção. Em 1904, o crítico Sadakichi Hartmann utilizou, em um artigo da revista, a expressão “otografa convencional”, em contraste com a estética ambígua do pictorialismo. A terceira classe (1907; ver p. 182), publicada na Camera Work em 1911, é geralmente considerada a primeira otografa moderna. No entanto, somente na última edição da revista, em 1917, é que uma estética convencional para a otografa se concretizou de ato. A edição oi dedicada aos trabalhos de Paul Strand (1890-1976) e incluía sua agora icônica Wall Street (1915; ver p. 179), que combinava uma geometria pictórica arrojada com um tema da vida moderna. A ideia de que a otografa pudesse ter uma estética própria e se basear em qualidades específcas do suporte oi altamente sedutora para os otógraos artísticos americanos, muitos dos quais renunciaram ao pictorialismo. Edward Weston (1886-1958) chegou a deender a ideia de que o trabalho criativo da otografa não deveria mais ser conduzido na câmara escura, mas sim na “prévisualização” da cena por parte do otógrao e em sua composição antes de expor o negativo na câmera. Em 1932, um grupo dedicado à promoção da otografa convencional, conhecido como Grupo /64, oi ormado na Caliórnia, com
Edward Weston e Ansel Adams (1902-1984) entre seus membros. Weston, com suas naturezas-mortas e seus nus quase abstratos, e Adams, com suas líricas otografas de paisagens, dominariam a otografa artística nos Estados Unidos por décadas a fo. Na Europa, a Primeira Guerra Mundial teve um impacto proundo na produção artística. Artistas insatiseitos buscaram desenvolver métodos de expressão pictórica que pudessem exprimir a crise de é nos valores tradicionais causada pelo conito. As primeiras otografas não fgurativas, que invocavam o tempo, o espaço e outros conceitos abstratos, oram realizadas durante a guerra, e esse espírito de inovação radical inspirou a produção artística de vanguarda a partir da década de 1920. Como uma tecnologia moderna de cunho popular, a otografa estava em ótima posição para assumir um papel central na arte de vanguarda. Esse meio de expressão – que então assumira a orma generalizada de imagens em “preto e branco” em prata – oi utilizado pelos dadaístas alemães em obras mordazes de crítica social; pelos construtivistas da União Soviética para orjar novos estilos pictóricos para uma nova sociedade; por surrealistas como Man Ray (1890-1976) em Paris, em seus chistes visuais e suas explorações do subconsciente; e por modernistas de todo o mundo para celebrar novas ormas de arte e design. A otografa se prestava a esses objetivos estéticos tão distintos por conta de sua capacidade de apreender a realidade. Como uma tecnologia moderna, ela celebrava a contemporaneidade e o materialismo. Como um dispositivo de gravação mecânico, imbuía a imaginação e o irracional do peso dos atos objetivos. Em países tão ideologicamente opostos quanto a União Soviética e os Estados Unidos, um pequeno porém inuente grupo de artistas de vanguarda passou a ver a otografa como o meio de comunicação visual ideal para a era moderna. A otografa pode ter sido amplamente utilizada por artistas de vanguarda, mas isso não signifca que eles sempre tenham reconhecido sua igualdade em relação às outras artes. Isso se devia, em parte, à sua comercialização na orma de retratos de celebridades e ao seu uso na publicidade e na moda. Essa preocupação quanto ao status da otografa era compartilhada por biógraos, historiadores da arte e curadores, que minimizavam os elementos comerciais das carreiras dos otógraos para garantir que ossem reconhecidos como artistas. Atualmente, sabe-se que todos os grandes otógraos da vanguarda parisiense da década de 1920 – Man Ray, André Kertész (1894-1985) e Brassaï (1899-1984) – trabalharam sob encomenda.
A otografa Larmes, de Man ay (mais conhecida como Lágrimas de vidro), tirada no começo da década de 1930, é muitas vezes relacionada à sua separação de Lee Miller (1907-1977), a modelo e otógraa americana. A imagem, que brinca com a natureza da realidade, também sugere alsidade, com suas lágrimas artifciais e sua maquiagem pereita.
INTRODUÇÃO 13
Man Ray, nascido Emmanuel Radnitzky em Filadélfa, Pensilvânia, mudou-se para Paris em 1921 e se destacou como um inovador iconoclasta na pintura, na escultura, no cinema e na otografa. Hoje não acreditamos que sua criatividade tenha sido comprometida por suas otografas jornalísticas ou de moda (ver p. 261). Por vezes, como no caso de sua célebre oto intitulada Preto e branco (ver p. 224), o trabalho comercial em si serviu de estopim para a criatividade. A otografa humanista oi outro importante desdobramento que teve suas origens na França durante o período entreguerras. Diretamente ligado à ascensão de revistas populares ilustradas com otografas, como a Lie, esse tipo de otografa retratava temas de interesse humano. O otógrao mais conhecido desse estilo oi Henri Cartier-Bresson (1908-2004), cujas otorreportagens realizadas ao redor do mundo também oram publicadas em uma série de livros inuentes. Produzida dentro de uma estética realista, a obra de Cartier-Bresson devia tanto ao surrealismo quanto à otografa convencional, ato ocultado durante a segunda metade do século XX por conta da apropriação da otografa pela ortodoxia modernista. O Museum o Modern Art de Nova York (MoMA) oi a base ideológica do modernismo – a estética de vanguarda dominante em meados do século XX, que incluía arte, design e arquitetura. O MoMA realizou uma importante exposição de otografa em 1937 e, posteriormente, em 1940, inauguraria seu próprio departamento otográfco. Contudo, o status da otografa como arte ainda não estava assegurado. John Szarkowski (1925-2007), que assumiu o posto de curador otográfco do MoMA em 1962, oi quem conseguiu, de orma mais efciente, assimilar a otografa ao modernismo. Segundo ele, a otografa legítima era “direta” e democrática no que dizia respeito aos seus temas e possuía um orte componente ormal. Fotografas não eram obra da imaginação, mas ragmentos da realidade pictoricamente organizados de modo a reetir um ponto de vista pessoal contundente. Nas palavras do acadêmico Douglas Crimp: “Se a otografa oi inventada em 1839, ela oi descoberta somente nas décadas de 1960 e 1970 – refro-me à otografa como essência, à otografa em si.” Assim como outros de seu círculo, Crimp criticava a incompreensão gerada pela transerência de otografas das gavetas dos arquivos para as paredes dos museus de arte. Como não poderia deixar de ser, esse grande interesse pela otografa, junto com textos como Un art moyen (Uma arte média, 1965), de Pierre Bourdieu, On Photography (Sobre a otografa, 1977), de Susan Sontag, e A câmara clara (1979), de Roland Barthes, serviu para elevar ainda mais o status cultural desse meio de expressão. O texto de Barthes – um relato comovente de sua busca por uma imagem “verdadeira” de sua mãe – é talvez o exemplo mais inuente da tentativa de defnir a otografa em termos essencialistas. Em seu livro, Barthes ormulou a ideia do “punctum”, o detalhe em uma oto que causa no observador uma sensação semelhante a uma pontada de dor. Como outros textos modernistas sobre o tema, A câmara clara sugere que a otografa pode ser datada de uma natureza própria, que a distingue de qualquer outro meio de comunicação visual. Um conceito oposto de otografa afrma que ela não possui características inatas. Sua identidade, portanto, dependeria dos papéis e das aplicações a ela atribuídos. Essa teoria az parte da crítica ao modernismo conhecida como pós-modernismo. O desejo de ver novamente a arte como parte de um engajamento social e político, em vez de pertencente aos domínios da pureza criativa, conduziu os acadêmicos de volta aos textos de Walter Benjamin, o crítico e flósoo associado à Escola de Frankurt na década de 1930. Ao afrmar que uma cópia otográfca destruía a “aura” de uma obra de arte original, permitindo às massas apreciar a arte por meio desse simulacro, a otografa simbolizava, para Benjamin, a possibilidade de despojar os nazistas de seu poder cultural e, em última análise, político. Na década de 1980, teóricos de esquerda começaram a reconceitualizar a história da otografa em termos de como esse meio de expressão havia sido aplicado ao exercício do poder. A noção de objetividade otográfca oi ainda mais solapada pelos textos desses acadêmicos e intelectuais, em especial por Jean Baudrillard, que atacou a ideia de uma realidade preexistente que seja meramente capturada ou reetida pelos meios de comunicação visual. Segundo Baudrillard, a imagística é a realidade por meio da qual podemos conhecer o mundo. Na década de 1970, a otografa artística estava relacionada a imagens icônicas do século XIX e do início do século XX. Hoje, o termo se reere a obras produzidas 14
INTRODUÇÃO
aproximadamente ao longo dos últimos 35 anos. Até o momento em que este livro oi escrito, a otografa mais cara do mundo – O Reno II (1999), de Andreas Gursky (1955) – havia sido vendida em leilão por 4,3 milhões de dólares. Apenas 12 anos antes, bem no início do século XXI, o recorde mundial era de 860 mil dólares – para A grande onda, Sète (1856-1859), de Gustave Le Gray (1820-1884; ver p. 98). O aumento signifcativo do valor das otografas é muitas vezes apontado como prova de que esse meio de expressão oi fnalmente aceito como arte. Entretanto, nos ensaios contidos neste livro, você verá que esta não é a primeira vez que a otografa é identifcada como uma atividade artística. O que dierencia o presente do passado, porém, é que hoje em dia a inormação, em qualquer uma de suas ormas, raramente é transmitida sem imagens fxas ou em movimento: a otografa, em sua orma digital, é uma maravilha moderna tão ascinante quanto o daguerreótipo era em 1839.
Andreas Gursky é um dos mais amosos artistas contemporâneos a trabalhar com a mídia otográfca. sta otografa do eno oi tirada em 1999 com uma câmera de ormato médio. A imagem resultante oi escaneada em um computador e retrabalhada digitalmente por Gursky, que pôde criar o eeito desejado ao descartar elementos da cena original – como os prédios na margem oposta do rio –, que em sua opinião distraíam o observador.
INTRODUÇÃO 15
182
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D FGF (p. 18)
18 Boulevard du Temple, Paris / Louis-Ja
G
DGU
LÓ BÂ (p. 42)
1 | de 1826 a 1855 DÇ
UZ- (p. 62)
G
FG
182
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18
0
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ques-andé Daguerre (p. 22)
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O palheiro / William Henry Fox albot (p. 24)
DGU (p. 26)
O Templo de Vesta, Roma / Joseph-hilibert Girault de rangey (p. 30) O Sena, a margem esquerda e a Île de la Cité / Frédéric artens (p. 32)
(p. 34)
Associação dos Artistas de Hamburgo / arl Ferdinand telzner (p. 38) Sem título (Duas mulheres posando com uma cadeira) / lbert . outhworth e Josiah J. Hawes (p. 40)
The Reading Establishment / Benjamin owderoy (p. 46) Santa Lucia, Nápoles / everendo alvert ichard Jones (p. 48)
UH FGÁF (p. 50)
UD D G (p. 54)
Vale da sombra da morte / oger Fenton (p. 52)
Sandy (ou James) Linton, seu barco e seus filhos / David ctavius Hill e obert damson (p. 56)
HU (p. 58)
Sem título (Passagem da melancolia para a mania) / Hugh Welch Diamond (p. 60)
As areias do tempo / homas ichard Williams (p. 64)
D Ú (p. 66) Transporte da estátua Bavária para Theresienwiese / lois Löcherer (p. 68)
(p. 70)
As margens do Nil o em Tebas | John Beasly Greene (p. 72)
LÓ FÊ (p. 74)
A escada / Henri-Victor egnault (p. 78) A floresta de Fontainebleau / Gustave Le Gray (p. 80)
F BL- (p. 82)
0
Placa XXIX do álbum de Delacroix / ugène Durieu (p. 84)
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180
18
A
imagem desocada e granulada acima representa um divisor de águas na história da otografa. Tirada pelo inventor rancês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) em 1826-1827, Vista da janela em Le Gras é a oto mais antiga preservada até os dias de hoje. Tendo passado praticamente despercebida na época, somente em 1839 ela seria revelada ao mundo de orma dramática. No entanto, muitos de seus elementos undamentais já eram conhecidos bem antes. No século IV a.C., Aristóteles havia descoberto o princípio da câmara escura: a passagem da luz de uma onte externa para um espaço escuro, através de um uro ou outra pequena abertura, orma uma imagem invertida da cena externa em superícies como uma parede ou uma tela. Em meados do século XVI, os pouco efcientes oriícios oram substituídos por lentes, dando origem a imagens mais nítidas. No século XVII, a câmara escura oi acoplada a uma tenda ou liteira para que pudesse ser transportada e, posteriormente, oi reduzida ao tamanho de uma urna. Durante o século XVIII, artistas passaram a utilizar com regularidade o instrumento para projetar uma imagem da vida real que pudessem copiar em seguida. Contudo, para que a otografa evoluísse era undamental que uma substância sensível à luz osse encontrada. Os eeitos da luz sobre objetos ísicos eram bem conhecidos – a capacidade da luz do sol de bronzear a pele, por exemplo – e alquimistas já haviam identifcado várias substâncias que reagiam à luminosidade, geralmente escurecendo. Em 1777, Carl Wilhelm Scheele utilizou luz para fxar
PRINCIPAIS ACONTECIMENTOS 1826-1827
Joseph Nicéphore Niépce tira uma otograia que é considerada uma das primeiras. Foi tirada da vista de sua janela em Saint-Loup-de-Varennes.
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William Henry Fox Talbot otograa a janela da biblioteca de sua propriedade, Lacock Abbey. O resultado é o mais antigo negativo preservado até os dias de hoje.
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Louis-Jacques-Mandé Daguerre produz O ateliê do artista, o primeiro daguerreótipo a ser exposto, revelado e fxado com sucesso.
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Daguerre tenta vender seu processo (juntamente com a heliografa de Niépce) por encomenda, sem sucesso.
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A invenção do daguerreótipo é divulgada ao público em janeiro, embora os detalhes venham à tona somente em agosto. Talbot divulga seus “desenhos otogênicos”.
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Sir John Herschel anuncia que o hipossulfto de sódio (tiossulato de sódio) pode “fxar” de orma permanente uma imagem otográfca.
uma imagem em um rasco contendo uma solução química. A química escocesa Elizabeth Fulhame explorou várias ideias, sendo a mais intrigante delas a ormação de imagens otográfcas de rios em ácido cloroáurico otossensível num mapa de pano. Embora aparentemente nenhum de seus trabalhos tenha sobrevivido, sua monografa, An Essay on Combustion, with a View to a New Art of Dying and Painting (Um ensaio sobre combustão, com vistas a uma nova arte de impressão e pintura, 1794) oi a primeira publicação a analisar de orma explícita um processo otográfco. Por volta da mesma época, Thomas Wedgwood (1771-1805) começou a utilizar nitrato de prata otossensível em papel e couro. Sem conseguir azer com que uma quantidade sufciente de luz atravessasse a lente de uma câmera, ele criou “otogramas”, posicionando objetos diretamente sobre superícies otossensíveis. Ao publicar um resumo dos resultados de Wedgwood em 1802, Humphry Davy observou: “Basta que se descubra uma orma de evitar que as partes descobertas da gravura não escureçam ao serem expostas à luz do dia para que o processo se torne tão útil quanto elegante.” Wedgwood havia concebido a ideia de otografa e criado imagens, mas não oi capaz de preservá-las. Em seguida, surgiram dois caminhos distintos que determinariam o uturo da otografa. Por volta de 1816, Niépce, motivado por seu interesse na arte da litografa, realizou suas primeiras experiências com a câmara escura. Abandonando os sais de prata, ele passou a utilizar betume – um “revestimento” (camada protetora) para placas de impressão que endurecia sob a ação da luz. Por volta de 1826-1827, teve sucesso, criando Vista da janela em Le Gras em uma placa de estanho. Em 1829, associou-se ao parisiense Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851), que havia tempos vinha tentando descobrir sem êxito um método para produzir otografas. Niépce aleceu em 1833, sem que o público conhecesse seu processo de “heliografa” (que signifca “desenhar com o sol”). Poucos meses depois da morte de Niépce, e desconhecendo completamente seu trabalho, o inglês William Henry Fox Talbot (1800-1877) embarcou em sua busca pessoal pela otografa. Em outubro de 1833, Talbot visitou a Itália acompanhado de vários amiliares. Em suas horas livres, o grupo azia desenhos da paisagem local – com exceção de Talbot, um exímio cientista e linguista, mas péssimo desenhista. A princípio, ele buscou ajuda na câmara clara – uma invenção portátil que utilizava um prisma na ponta de uma haste para projetar uma imagem em uma superície, mas, ao contrário da câmara escura, sem a necessidade de uma onte de luz intensa. Quando o artista posicionava o olho sobre o prisma, era possível sobrepor a imagem à superície inerior, o que lhe permitia traçar seus contornos. O aparelho, no entanto, era diícil de dominar. Talbot então se lembrou da câmara escura; na primavera de 1834, em Lacock Abbey, sua propriedade em Wiltshire – e ainda sem conhecer o trabalho de Wedgwood –, ele havia aplicado compostos de prata em papel. Porém, ao contrário de Wedgwood, Talbot encontrou um “fxador”, uma maneira de estabilizar a imagem. O desenho otogênico Bryonia dioica – a norça-branca (à direita) é um exemplo do tipo de imagem que ele conseguiu produzir. Talbot então voltou sua atenção para os vários assuntos científcos e políticos de seu interesse sem levar sua invenção a público. Nesse meio-tempo, Daguerre realizou um incrível avanço ao descobrir que placas de prata iodadas podiam ser reveladas com mercúrio, produzindo positivos
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Tendo descoberto o conceito de imagem latente (uma imagem invisível que pode ser revelada em um negativo) em 1840, Talbot registra a patente de seu processo, a calotipia.
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A Royal Academy o Science de Bruxelas exibe as primeiras estereografas – imagens que, através de um visor especial, criam a ilusão de proundidade.
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Anna Atkins publica uma edição limitada de
British Algae: Cyanotype Impressions(Algas britânicas: impressões em cianotipia), o primeiro livro ilustrado com otografas.
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Os primeiros volumes de The Pencil of Nature (O pincel da natureza), de Talbot, chamam a atenção do grande público para a otografa.
1 Vista da janela em Le Gras (1826-1827)
Joseph Nicéphore Niépce heliografa 16,5 x 20cm Harry Ransom Center, Universidade do Texas, Austin, Texas 2 Bryonia dioica – a norça-branca (c .1839)
William Henry Fox Talbot desenho otogênico • 22,5 x 18,5cm National Media Museum, Bradord, Reino Unido
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Frederick Scott Archer inventa o processo do “colódio úmido”, no qual uma placa de vidro é banhada em sais de prata e colódio para criar um negativo.
A Photographic Society o London (posteriormente Royal Photographic Society) é undada.
O NASCIMENTO DA FOTOGRAFIA
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3 O ateliê do artista (1837)
Louis-Jacques-Mandé Daguerre daguerreótipo • 16 x 21cm Société Française de Photographie, Paris, França 4 Dictyota dichotoma em estágio jovem; & adulta (1843) • Anna Atkins
cianótipo • 44 x 33cm New York Public Library, Nova York, EUA 5 Autorretrato de um homem afogado (1840) • Hippolyte Bayard
positivo direto em papel 25,5 x 21,5cm Société Française de Photographie, Paris, França
20 DE 1826 A 1855
diretos, como se vê em O ateliê do artista (acima). Em 1838, exibiu exemplos como Boulevard du Temple, Paris (ver p. 22) e tentou vender seu processo por encomenda, sem sucesso. Em janeiro de 1839, François Arago, da Académie des Sciences, anunciou a invenção de Daguerre, juntamente com a intenção do governo rancês de comprar seus direitos em todo o mundo. Embora tenha optado por uma abordagem bastante independente, e radicalmente distinta da escolhida por Daguerre, Talbot oi orçado a anunciar sua própria descoberta. Muitos outros aspirantes à arte da otografa também vieram a público. Hippolyte Bayard (1807-1887), um uncionário público rancês, inventou de orma independente um processo que aliava o positivo direto de Daguerre ao uso de papel de Talbot. Seu Autorretrato de um homem afogado (à direita, embaixo) expressa sua rustração por ter sido ignorado pelo público em geral. Daguerre não voltaria a contribuir de modo relevante para a otografa, mas, em um espaço de dois anos, outros utilizaram bromo para aumentar a sensibilidade do daguerreótipo, protegendo-o com cloreto de ouro. No fm de 1840, Talbot realizou outro grande avanço ao descobrir a imagem latente e o poder amplifcador da revelação. O tempo de exposição para negativos de papel diminuiu de dezenas de minutos para meros segundos e o registro em 1841 da patente de seu processo, o calótipo, deu origem à primeira otografa negativo/positivo verdadeiramente prática. Um alto nível de detalhes era o maior truno do daguerreótipo, reorçado por uma análise minuciosa com uma lente de aumento. A superície lisa da placa de metal ajudava, pois não havia fbras para poluir a imagem, como no caso de uma olha de papel. Some-se a isso o ato de que o daguerreótipo era uma imagem original produzida dentro da própria câmera e que apenas as limitações da lente restringiam sua visibilidade. Contudo, essa singularidade era também a maior desvantagem do aparelho. Embora osse possível azer cópias de daguerreótipos originais, era totalmente impraticável disseminar imagens em placas de cobre revestidas de prata. Imagine um livro ilustrado com páginas de metal… O surgimento do primeiro livro ilustrado com otografas se deve a um dos primeiros membros do sexo eminino da Botanical Society o London, Anna Atkins (1779-1871). Atkins já havia realizado as belas aquarelas que ilustravam as publicações científcas de seu pai e reconhecia seu potencial de atrair um público mais amplo para obras do gênero. Em 1842, seu amigo Sir John Herschel (1792-1871) inventara o cianótipo, um negativo otográfco em papel baseado em sais de erro em vez de prata. Impróprio para exposições com câmeras, o processo se distinguia pela produção de otogramas muito estáveis e altamente detalhados, apesar de
seus peculiares tons de azul vivo. A partir de 1843 e ao longo de uma década, Atkins utilizou com sucesso algas secas achatadas como negativos, posicionando-as em olhas de papel otossensível sob a luz do sol. Dessa orma, produziu milhares de exemplares do seu British Algae: Cyanotype Impressions (1843-1853). Publicadas inicialmente em edições separadas e posteriormente em volumes maiores, placas como Dictyota dichotoma em estágio jovem; & adulta (à direita) demonstravam com nitidez a precisão dessas reproduções otográfcas. Levar a otografa às páginas dos livros sempre havia sido o objetivo de Talbot. Em junho de 1844, ele lançou o primeiro livro ilustrado com otografas a ser distribuído comercialmente: The Pencil of Nature. Talbot vislumbrava uma ampla gama de usos para a otografa e o propósito de seu livro era demonstrar essa diversidade. Seu antigo criado e assistente, Nicolaas Henneman (1813-1898), mudou-se para Reading em 1843 para montar um dos primeiros laboratórios otográfcos do mundo. Como não havia maneira de converter otografas em tinta de impressão, The Pencil of Nature oi ilustrado com otografas originais coladas às páginas. Henneman utilizou vários dos negativos calótipos de Talbot para editar as impressões. Lançados em série, cada um dos ascículos de The Pencil of Nature continha diversas otografas, acompanhadas de textos escritos pelo próprio Talbot, entre elas O palheiro (1844, ver p. 24). Inelizmente, a transposição de uma arte pessoal para uma escala industrial revelou sua ragilidade inerente. Fotografas jamais seriam tão permanentes quanto a tinta de impressão, que já havia passado pelo teste do tempo. Quando as placas de The Pencil of Nature começaram a se apagar, seja por alhas internas ou por exposição à poluição, o sonho de publicar otografas originais também chegou ao fm. Talbot voltou sua atenção às otogravuras. Pouco depois de sua morte, otografas impressas em tinta se tornariam o método universal para transmitir inormações visuais. LJS
O NASCIMENTO DA FOTOGRAFIA 21
oulevard du emple, aris
1838
LOUIS-JACQUES-MANDÉ DAGUERRE 1787-1851
1 POSIÇÃO DA CÂMERA
Tomando por base os três prédios altos da oto, que estão de pé até hoje, é possível determinar a posição da câmera de Daguerre. Como seres humanos, veículos e animais se moviam rápido demais para serem registrados – por conta do longo tempo de exposição necessário –, os primeiros daguerreótipos tendem a mostrar apenas paisagens arquitetônicas.
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DE 1826 A 1855
2 RIQUEZA DE DETALHES
Desde tábuas expostas, passando por telhas e galhos de árvores, as imagens de Daguerre tinham uma nitidez sem precedentes. Samuel Morse se mostrou maravilhado em uma carta ao irmão: “O detalhismo da imagem é inconcebível. Nenhuma pintura ou gravura jamais chegou aos seus pés.”
NAVEGADOR 1
2
A
pós anos de experimentos, em 1837 Louis-Jacques-Mandé Daguerre por fm conseguiu fxar de modo permanente as imagens vistas na câmara escura. Seus primeiros sucessos oram naturezas-mortas. Logo, no entanto, ele sairia do estúdio e não se limitaria a representar paisagens arquitetônicas, passando a registrar a vida em si. Em algum momento entre 24 de abril e 4 de maio de 1838, Daguerre montou sua câmera em uma janela no andar superior de sua residência no número 5 da rue des Marais, logo atrás do seu Diorama (um teatro adaptado por ele, no qual os espectadores podiam assistir a séries de cenas pintadas em movimento), e tirou a primeira oto com seres humanos de que se tem notícia. Carruagens, cavalos e pessoas passavam pelo movimentado bulevar naquela manhã, mas o longo tempo de exposição e a pressa com que se moviam os relegou à condição de antasmas. No entanto, a preocupação de um homem com a aparência de seus sapatos aria com que ele e seu engraxate fcassem parados por tempo sufciente para azerem história. Esta oi uma das imagens que Daguerre apresentou orgulhosamente no início de 1839 ao inventor Samuel Morse e outros. Após a divulgação dos detalhes do processo em 1839, Daguerre tornou a apresentá-la ao rei da Bavária, que a exibiu publicamente em Munique em outubro do mesmo ano. A placa sobreviveu a um devastador bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial, para ser quase totalmente apagada em uma tentativa equivocada de limpá-la por volta de 1960. Por sorte, o curador otográfco e historiador Beaumont Newhall solicitara uma reprodução de alta qualidade da imagem de modo a imprimi-la para sua exposição pioneira no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1937. Em 1979, Peter Dost e Bernd Renard puderam usar essa reprodução para criar o um ac-símile do daguerreótipo, que atualmente se encontra mais uma vez exposto em M unique. Todas as diversas reproduções deste daguerreótipo em livros e revistas se devem ao negativo de Newhall. Por ironia, considerando que seu rival afrmava ser o inventor da otografa, oi o processo de negativo/positivo de William Henry Fox Talbot que preservou o legado de Daguerre. LJS
Daguerreótipo 15 x 18,5cm Bayerisches Nationalmuseum, Munique, Alemanha 3 VULTOS NUM BANCO
4 HOMEM E ENGRAXATE
Há quem veja cinco ou até seis pessoas nesta imagem. Seria um casal sentado no banco? Ou um homem lendo jornal? Outros acreditam ver um menino olhando de volta para Daguerre de uma das janelas do prédio branco em primeiro plano.
O homem cujo sapato está sendo engraxado é a fgura mais clara deste daguerreótipo. Ele mantém o pé frme enquanto inclina o tórax um pouco para a rente. O engraxate enérgico, possivelmente um menino, encontra-se menos defnido. É possível que Daguerre tenha pagado aos dois, ou os tenha encorajado de alguma outra orma a azer a pose.
O NASCIMENTO DA FOTOGRAFIA
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