WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2002. 1. Tragédia e experiência
Para Raymond Williams a tragédia possui vários sentidos. Ela pode ser experiência, um conjunto de obras, um conflito ou um problema acadêmico. Uma experiência que consiste na distância entre o desejo do homem e a sua resistência ao sofrimento. Em nossa cultura o termo tragédia se tornou corriqueiro, assim acontecimentos como: “um desastre numa mina, uma família destruída pelo fogo, uma carreira arruinada, uma violenta colisão na estrada” (p. 30) são intituladas de tragédias. Essas experiências, por vezes, vivenciadas na dimensão individual concorrem com o conceito cristalizado pela crítica literária de tragédia como um gênero de estrutura fixa por mais de vinte séculos: “Tragédia, nós dizemos, não é meramente morte e sofrimento e com certeza não é acidente.
Tampouco, de modo simples qualquer reação à morte ou ao sofrimento. Ela é, antes um tipo específico de acontecimento e de reação genuinamente trágicos e que a longa tradição incorpora. Confundir essa tradição com outras formas de acontecimentos e de reação é simplesmente uma demonstração de ignorância (WILLIAMS, 2002, p. 30-31).
A tragédia é entendida como uma experiência seja ela na dimensão coletiva ou individual que pode se manifestar numa obra de literatura dramática como num acontecimento pessoal. Raymond Williams não introduz apenas o uso do termo “tragédia” fora do esteio da obra de literatura dramática, mas problematiza o uso desse
termo ao longo da tradição literária; que sanciona ou não alguns acontecimentos como trágicos de acordo com uma interpretação pautada no molde elegido pela crítica literária. Raymond Williams coloca em discussão o “curto -circuito” provocado pelo conceito de “tragédia” utilizado na contemporaneidade e de tragédia no viés da tradição. Buscando uma investigação mais alargada do termo, Williams (2002) examina o sentido da tradição e questiona o seu significado e a permanência do seu sentido ao longo da história. 2- Tragédia e tradição
A reflexão de Raymond Williams em torno da tragédia busca um ponto de interseção entre a tradição e experiência. “A palavra tragédia chega a nós a partir da longa tradição da civilização europeia, e é
fácil ver essa tradição como uma importante continuidade: o fato de que tantos dos escritores e pensadores mais recentes r ecentes se mostraram conscientes do papel desempenhado desempenhado por aqueles que os antecederam, vendo a si mesmos como contribuindo para uma ideia ou forma comum. E no entanto as palavras “tradição” e “continuidade” podem nos levar
a uma abordagem completamente equivocada equivocada da tragédia. Quando começamos a estudar a tradição, tornamo-nos imediatamente conscientes da mudança. Tudo o que se pode considerar certo é a continuidade da “tragédia” como palavra. É possível que haja outras continuidades importantes, mas certamente não se pode começar a pesquisa pela mera suposição de que elas existam (p. 33).
“No recorrente contraste verbal entre tradicional e moderno, há sempre uma pressão para comprimir e unificar as variadas reflexões do passado em uma única tradição , „a‟
tradição. No caso da tragédia, há pressões adicionais de um tipo específico da existência de uma tradição comum grego-cristã, que deu origem à civilização ocidental. A tragédia é a primeira vista, um dos mais simples e mais poderosos exemplos dessa continuidade cultural. Ela une, culturalmente, gregos e elisabetanos. Congrega helenos e cristãos em uma atividade comum. [...]. Em certas épocas da nossa própria história, a revitalização da tragédia foi uma estratégia estabelecida pela consciência da necessidade de uma tradição. Em nosso século, especialmente, em que houve uma impressão muito difundida de que aquela civilização estaria sendo ameaçada, o uso da ideia de tragédia para definir toda uma importante tradição em vias de ser destruída por um presente ingovernável tornou-se bastante evidente. [...]. O que está implicado aqui, é mais a compreensão de que uma tradição não é o passado, mas uma interpretação do passado: uma seleção e avaliação daqueles que nos antecederam, mais do que um registro neutro. E, se assim é, o presente, em qualquer época, é um fator na seleção e na avaliação. Não é o contraste, mas a relação entre o moderno e o tradicional aquilo que interessa ao historiador (p. 33-34)”. “Desse modo, examinar a tradição trágica não significa necessariamente interpretar um único corpo de obras e pensamentos ou perseguir variações em uma suposta totalidade. Significa olhar crítica e historicamente para obras e ideias que têm algumas ligações evidentes entre si e que se deixam associar em nossas mentes por meio de uma única e poderosa palavra. É, acima de tudo, observar essas obras e ideias no seu contexto imediato, assim como na sua continuidade histórica, examinando o lugar e a função que exercem em relação a outras obras e ideias e em relação à diversidade e multiplicidade da experiência atual (p.34)”.
Clássico e medieval
O caráter único da tragédia grega é frequentemente afirmado, mas também frequentemente, à maneira de sua afirmação, negado. As peças sobrevivem: ou seja, trinta e duas peças de um conjunto de cerca de trezentas, escritas por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, e nenhuma escrita pelo grande número de outros trágicos conhecidos de nome. E no entanto o que sobrevive tem um poder extraordinário, mesmo que desigual: umas oito ou dez peças estão entre os maiores dramas do mundo. [...] E no entanto, nunca houve, de fato, uma recriação ou imitação da tragédia grega, o que, na verdade, não deveria causar surpresa, porque a sua singularidade é genuína e, em aspectos importantes, intransferível (p. 35). “A Cultura grega é marcada por uma extraordinária rede de crenças − que se liga a instituições, práticas e sentimentos – e não por princípios sistemáticos e abstratos a que hoje chamaríamos de uma filosofia trágica ou uma teologia. Os mais profundos questionamentos e modos de entendimento remontam, continuadamente, a mitos específicos, e essa característica é de suma importância para o entendimento da natureza dessa arte, porque é da natureza do mito resistir a uma elucidação precedente; os seus desenvolvimentos partem sempre de suas particularidades em direção àquelas que mais recentemente fazem parte da experiência (essa é a dimensão da diversidade de interpretação e de ênfase nos trágicos)” (p. 35-36). “A história que a tragédia apresenta, então, é a transição da prosperidade para a
adversidade, determinada pelo fato geral e externado da mutabilidade. Como tal, e apesar das diferenças que será necessário observar depois, ela tem à primeira vista mais
em comum com a ideia grega de tragédia doq eu com qualquer versão posterior. A tragédia envolve indivíduos, nesta obra, apenas no sentido do primeiro significado de „indivíduo‟ – um membro de um grupo ou lago similar mais do que um ser único que pode ser separado e isolado [...]. As tragédias medievais são geralmentre exemplos copilados de uma lei geral, e a palavra-chave é For tuna” (p. 39). “O efeito da tragédia medieval era então paradoxal, no interior do que se via
indubitavelmente como uma continuidade. Representava uma limitação drástica de raio de ação e uma exclusão de conflitos, sob pressão daquilo que devemos ver como a alienação da sociedade feudal. A ênfase sobre uma condição geral tornou-se tão vinculada a um único caso particular – a queda de príncipes – que referência geral passou a ser amplamente negativa: uma abstração definindo uma ação limitada. De maneira inda mais paradoxal, o elemento exemplar foi suprimido pela própria ênfase sobre a posição social elevada, que passou de uma qualidade genérica e abrangente a uma condição isolada” (p. 43). “A mudança crucial aconteceu na passagem de uma cultura na qual as cat egorias sociais
e metafísicas não podiam ser distinguidas para uma cultura na qual elas eram, pela natureza modificada do metafísico, opostas de uma maneira bastante evidente. A real vinculação entre o poder temporal e a condição espiritual permaneceu, para todas as formulações, sem solução. No âmbito dessa profunda alienação, a tragédia, apesar de todas continuidade que a palavra sugere, tornou-se num caso específico e até mesmo um motivo de polêmica. Tragédia era uma história, um relato, algumas vezes até um arrolamento, porque nestes termos nçao podia ser vista como uma ação (p. 44).”
Renascença