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O estilo, a existência e a linguagem de Rousseau segundo Bento Prado Jr. Uma introdução à leitura de Rousseau Adriano 06/10/2009
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O mais recente ensaio de Bento Prado Júnior acerca do pensamento de Rousseau, A retórica de Rousseau, nos apresenta como concepção de leitura e interpretação filosófica dos textos clássicos um desprendimento da tarefa hermenêutica da leitura estrutural em vista de um encontro com as intuições originárias do filósofo em questão. O que está em jogo é a concepção de tempo lógico como um tipo ligação(acronológica) entre o autor em seu tempo e o leitor em seu tempo. A hipótese de Bento Prado acerca da construção filosófica político-literária elaborada por Rousseau é de que, como um autêntico fazedor de seu ofício, ao colocar-se contrariamente aos movimentos de sua época, remete suas obras a um tempo futuro, a um leitor extemporâneo. Esta hipótese implica um amadurecimento da maneira como se lê o texto através dos séculos (são inúmeras as chaves de leitura: kantismo, marxismo, nietzscheanismo, freudismo, fenomenologia(pelo menos a de Cassirer), frankfurtismo, existencialismo, estruturalismo, e agora, à maneira brasileira, um “literalismo”?). E é exatamente este processo de múltiplas interpretações que torna possível a contribuição dos clássicos de Rousseau às questões que ficaram suspensas para além de seu tempo. Consoante Bento Prado, a época de Rousseau é ainda um crepúsculo da metafísica, é uma pré-ciência do homem em que o universo cultural o obriga a invitar suas idéias para um outro tempo, onde suas questões podem ser retomadas e reelaboradas. É preciso sempre uma nova geração para romper com as valorizações de seus predecessores 1. Rousseau, agora, emerge com uma nova face para nós, para além do circulo hermenêutico que o encerra em seu tempo. A perspectiva historiográfica, na visão de nosso intérprete, se choca com o movimento do pensamento. Ater-se a ela é negligenciar o tempo vivo do discurso, os esforços de reflexão e objetivação do autor no decurso de sua obra. Émile Brehier alude a uma “dialética da separação” na criação filosófica. Não se busca, como outrora, a extinção das contradições, a unidade absoluta, mas sim as distâncias, as lacunas e os limites da obra. É aqui que Bento Prado 1
Esta hipótese e a da pré-ciencia encontram-se amplamente analisadas em A formação do espírito científico de Gaston Bachelard. Ele busca exatamente o ro mpimento com a tradição epistemológica do séc. XIX para o encontro de novas realidades, para uma construção cada vez mais apurada do real dadas as multiplicidades e as dialéticas interpretativas.
trata de uma cumplicidade entre filosofia e literatura. O estilo filosófico escolhido pelo autor é, ao mesmo tempo, ruptura e identidade com determinados aspectos da tradição, como uma ponte que liga os temas clássicos (universais, se é que podemos deduzir isto) aos problemas inéditos, emergentes. É o pensamento que se dobra em busca de novos formas de se atingir um objetivo, por mais inconsciente que possa ser um processo de criação. A Nova Heloísa atesta esta cumplicidadede estilos. Ele desenvolve os grandes problemas postulados pela sua obra tachada filosófica, numa forma pictórica, representativa. Entremos, pois, no núcleo desta teoria, por um lado herdeira de Bergson, Merleau-Ponty, Bréhier, Starobinsky, e por outro de Proust, Antônio Cândido e mais não sei quem.
O sentido da existência
“A Nova Heloísa pode ter uma nova interpretação na medida em que é a realidade da obra que se desloca”.
O homem é um fenômeno cultural. Ele acontece graças a um sistema, uma ordem de relações que o articula com outros seres. Não faz sentido dizer que homem e natureza obedecem exatamente às mesmas razões (a grande distinção do em-si e do para-si). A humanidade é constituída por sua intersubjetividade 2 , e está submetida aos múltiplos olhares e opiniões, radicalmente contrários ao modo objetivo como a ciência nos apresenta a natureza. Bréhier nos indica uma imbricação da filosofia na literatura nas últimas décadas. Há uma ligação interna entre o espaço e a abordagem, não apenas 2
Na Crítica da faculdade do Juízo de Kant, a intersubjetividade é um el emento para a definição do belo. Para Cassirer, em A filosofia das formas simbólicas, As formações culturais(arte, mito, religião, ciência, linguagem) são construções puramente subjetivas, que obedecem à lógica própria de seu círculo ativo.
entre filosofia e literatura, mas em todos os ramos da atividade humana. A distinção entre as duas áreas é empiricamente negada. Para Merleau-Ponty, a literatura “não é uma forma regional de linguagem”, mas sim “solicitada pelo próprio ser”. Rousseau é, pois, um profeta dos temas da contemporaneidade. Ele nos traz a existência e o discurso, a sociabilidade e a linguagem, a natureza e a cultura. Para Bento Prado, é clara a virada estratégica inaugurada por Rousseau: é ele que prenuncia a teoria crítica, a dialética materialista, a o psicologismo e a psicanálise, o existencialismo... enfim, apesar destas leituras serem inéditas, fundamentais para a compreensão da filosofia contemporânea, Starobinsky adverte que cada uma delas encerra o sentido que Rousseau destinou a sua obra. Bento Prado, ao voltar-se para a política atual (não só do “3º mundo”, mas de uma forma geral), vê que esta virada no pensamento ocidental ainda não terminou. As questões abertas por Rousseau ainda não cicatrizaram, e os problemas sociais, são cada vez mais complexos e latentes. O Emílio
e O contrato social são alternativas para um mesmo
pensamento, são vias diversas de um mesmo fio condutor. Cada obra é um momento essencial, um instante do pensamento do autor em desenvolvimento. Não mais é uma tolice procurar o caráter filosófico de discursos que estão fora da
filosofia.
A
tradição
separou
os
livros
sérios(objetivos)
dos
delirantes(subjetivos), todavia ao depararmo-nos com a idéia de existência, percebemos que seus escritos “periféricos” adquirem tal importância que reduzir sua filosofia aos seus tratados mais objetivos é um crime contra o filósofo. Não podemos ser racionalistas a ponto de encerrar a subjetividade na ilusão, bem como Descartes que vê a alma encerrada nas paixões. A experiência humana tem alcance ontológico, nos abre um caminho para novas dimensões da realidade, seja ela poética ou política, objetiva ou subjetiva. As elucidações de Merleau-Ponty acerca desta continuidade entre o em-si e o para-si3 nos atestam a necessidade de considerar todos os fatores (objetivos, subjetivos,
contextuais,
extemporâneos,
forças
cósmicas,
etc...)
que
influenciaram sua filosofia e duas diversas expressões. E vemos aqui o pleno caráter da própria filosofia como nos é legada.
3
Fenomenologia da Percepção.
Percebemos também que não há um psicologismo em Rousseau, pois a realidade não está encerrada na interioridade humana. O que ele nos traz é a própria experiência da existência em seus escritos (principalmente os literários). Para uma reflexão política isto é essencial, trata-se da relação humana com o outro. Da mesma forma, é um encontro consigo mesmo numa dimensão ética, no âmbito próprio dela mesmo: é na experiência, na prática que a ética se realiza 4, e não somente na abstração lógico-teórica. A liberdade é, pois, uma experiência. Muito intrigante tudo isso, posto que uma leitura estrutural do contrato social nos diria que a liberdade, na nossa deturpada condição social, é sermos constrangidos por nós mesmos (pela soberania do povo). Em outras palavras, não é mais a natureza que governa o homem, assim sendo, quem o poderá governar melhor que si mesmo? Isso, segundo Rousseau, pode ser chamado de
liberdade,
mesmo
que
implique
uma
série
de
disposições
e
regulamentações conforme um “contrato” entre a sociedade. Em relação à metafísica, esta é uma grandiosa libertação, porém este estado não pode garantir qualquer felicidade que o sujeito viesse a ter com a experiência mística com o transcendente. Mas Rousseau, ao final da proposta do contrato, apresenta-nos o direito à fé, a religião civil, não como um suprimento às necessidades imaginárias do homem, como um formador da moral de um povo. Para além desta psicologia moralista de massa 5, a obra de Rousseau nos traz os grandiosos temas da ordem e da existência , do ser e da aparência , da experiência vivida e da educação, que emergem como fios condutores de suas obras, tanto filosóficas quanto eruditas. Tais fios condutores podem mostrar Rousseau como um iluminista, pois aposta que pode haver ordem, virtude e educação. Mas a análise de seu pensamento nos mostra como todo este idealismo sucumbe, e, portanto, Rousseau ultrapassaria seu tempo, a modernidade ilustrada em que viveu, projetando-se nos grandes problemas contemporâneos de nossa civilização ocidental, inclusive nas formas de como fazer filosofia e ciências humanas. Starobinsky nos diria que acima da estrutura 4
Este é um legado de Wittgenstein para a contemporaneidade: ética não está nos livros. Nossa linguagem não nos permite sequer pensar sobre ela. Apenas pra ticar. 5 Conceito hiper complexo. Da idéia de povo, perpassando a idéia de soberania, chega-se à idéia de classe(metafísica). A idéia de massa vem da teoria crítica.
conceitual existem determinadas imagens que revelam a lei da obra(ordem) e a inteligibilidade da vida(existência). Destarte, seu estilo e seus recursos de linguagem nos remetem à própria forma da experiência humana, sua riqueza e deturpação, e daí temos ensejo para refletir sobre ética e política, sobre arte e filosofia, sobre amor e morte. Não podemos negligenciar que quase todas as questões platônicas são rediscutidas por Rousseau e levadas a um âmbito que nos parece muito mais familiar: as ciências humanas. A reflexão acerca da experiência vivida e a construção teórica do homem e de sua sociedade nunca puderam contar com exponenciais maiores. Bento Prado nos aponta para um paralelismo entre experiência(existência) e reflexão(ordem). A discussão acerca da infância no Emílio nos traz a tona o tema clássico do ser e da aparência, que é o mesmo evocado na passagem do estado natural à sociedade. Nas palavras de Bento: “um véu que se introduz entre as almas e impede o acesso à natureza”. O desejo é o de voltar à pureza original. É o paradigma da vida adulta: a perda da inocência, da virtude, para uma sociedade mascarada, viciosa. Temos, pois, o grande tema para seu romance e uma dívida herdada para o contemporâneo: a transformação social.
Bibliografia
PRADO JÚNIOR, Bento. A retórica de Rousseau e outros ensaios: Bento Prado Jr.. São Paulo: Cosac Naify, 2008.