SÍNTESE PARA OS ALUNOS SOBRE A CHAMADA «EFICÁCIA EXTERNA DAS OBRIGAÇÕES»
Bibliografia portuguesa mais relevante:
VAZ SERRA, Responsabilidade de
terceiros no não cumprimento de obrigações , BMJ 85, 1959, pp. 345-360
ANTUNES
VARELA, Das obrigações em geral , Almedina, Coimbra, vol. I, 10.ª ed., 2003, pp. 166-169 e 172-182 FERRER CORREIA /VASCO LOBO XAVIER, Efeito externo das obrigações;
abuso do direito; concorrência concorrência desleal , RDE V/1, 1979, pp. 3-19
MENEZES CORDEIRO,
Direito das obrigações , vol. I, AAFDL, Lisboa, 1980, 251-284
L. MENEZES LEITÃO,
Direito das obrigações , vol. I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 97-101
E.
SANTOS JÚNIOR, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito , Almedina, Coimbra, 2003.
I – COLOCAÇÃO DO PROBLEMA : Um terceiro que, sabendo da existência de um crédito contratual, contribua para o respectivo não cumprimento — designadamente, colaborando com o devedor no não cumprimento, instigando-o a não cumprir ou impedindo-o de cumprir — deve ser responsabilizado pelo não cumprimento? Como exemplos concretos desta questão, podem ver-se os casos práticos n.º s 7 e 8, alínea b), de 2003-2004. 2003-2004 . A este problema dá-se também o nome de problema da «eficácia externa das obrigações», da «oponibilidade das obrigações a terceiro» ou, pelo lado negativo, da «relatividade da obrigações em termos de eficácia ». ». Ou ainda: o problema da «lesão do crédito por terceiro». Não se deve confundir esta matéria com a da «relatividade estrutural das obrigações», ou seja, com a afirmação (verdadeira) de que todas as obrigações são
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relativas na medida em que a obrigação assenta, por definição, num dever de uma pessoa determinada, o devedor, perante uma pessoa determinada, o credor. Em rigor, pode haver vários devedores ou credores de uma só obrigação, mas terão sempre de ser pessoas determinadas 1[1]. O direito de crédito é, estruturalmente, um direito relativo; os direitos reais, o direito de autor, a propriedade industrial e os direitos de personalidade são direitos absolutos. A relatividade estrutural das obrigações é pouco discutida e corresponde a um aspecto descritivo e essencialmente teórico da obrigação. Diz-nos o que é uma obrigação, em si mesma considerada, numa análise formal. Pelo contrário, o problema da relatividade em termos de eficácia é amplamente discutido e é verdadeiramente um problema jurídico: jurídico: trata-se de saber se, no caso de um terceiro lesar o crédito, ele será ou não civilmente responsável. Este problema da oponibilidade da obrigação a terceiros é o problema da resposta a um quid iuris . Ainda para esclarecer a importância prática da questão, note-se que, quer o terceiro seja responsável quer não, o devedor é quase sempre responsável. Só não o será se a interferência do terceiro tiver ocorrido independentemente independentemente da sua vontade, o que é pouco frequente. Nos casos mais comuns, o devedor é responsável, porque violou culposamente a obrigação. A pergunta que se faz e a que tentamos aqui responder é se o terceiro também é responsável, além do devedor. O que tem o maior significado quando o devedor não tem património suficiente para indemnizar totalmente o credor lesado. Convém lembrar a terminologia básica: uma obrigação estabelece-se entre credor e devedor . Ao direito do credor chama-se crédito , e é o direito de exigir e
receber a prestação , que é o comportamento devido. O devedor tem um débito (ou dívida , sobretudo se for a entrega de dinheiro). Ao débito também se chama
1[1]
Mesmo que o momento da determinação seja posterior ao da constituição. Cf. art. 511.º CC. 2
relativas na medida em que a obrigação assenta, por definição, num dever de uma pessoa determinada, o devedor, perante uma pessoa determinada, o credor. Em rigor, pode haver vários devedores ou credores de uma só obrigação, mas terão sempre de ser pessoas determinadas 1[1]. O direito de crédito é, estruturalmente, um direito relativo; os direitos reais, o direito de autor, a propriedade industrial e os direitos de personalidade são direitos absolutos. A relatividade estrutural das obrigações é pouco discutida e corresponde a um aspecto descritivo e essencialmente teórico da obrigação. Diz-nos o que é uma obrigação, em si mesma considerada, numa análise formal. Pelo contrário, o problema da relatividade em termos de eficácia é amplamente discutido e é verdadeiramente um problema jurídico: jurídico: trata-se de saber se, no caso de um terceiro lesar o crédito, ele será ou não civilmente responsável. Este problema da oponibilidade da obrigação a terceiros é o problema da resposta a um quid iuris . Ainda para esclarecer a importância prática da questão, note-se que, quer o terceiro seja responsável quer não, o devedor é quase sempre responsável. Só não o será se a interferência do terceiro tiver ocorrido independentemente independentemente da sua vontade, o que é pouco frequente. Nos casos mais comuns, o devedor é responsável, porque violou culposamente a obrigação. A pergunta que se faz e a que tentamos aqui responder é se o terceiro também é responsável, além do devedor. O que tem o maior significado quando o devedor não tem património suficiente para indemnizar totalmente o credor lesado. Convém lembrar a terminologia básica: uma obrigação estabelece-se entre credor e devedor . Ao direito do credor chama-se crédito , e é o direito de exigir e
receber a prestação , que é o comportamento devido. O devedor tem um débito (ou dívida , sobretudo se for a entrega de dinheiro). Ao débito também se chama
1[1]
Mesmo que o momento da determinação seja posterior ao da constituição. Cf. art. 511.º CC. 2
obrigação . A palavra «obrigação» é por vezes usada para designar o conjunto do
crédito e do débito. Leia-se o art. 397.º.
II – «TESE ARCAICA» Houve quem defendesse que seria impossível a um terceiro lesar o crédito, devido à relatividade estrutural. Disse-se que, se só o devedor tem o dever de cumprir, só ele poderia violar o crédito. Os terceiros t erceiros não teriam sequer a «possibilidade lógica» de violar o crédito. Esta tese a que chamamos «arcaica» deduz a relatividade de eficácia a partir da relatividade estrutural, numa argumentação conceptualista. E é evidentemente uma tese errada, errada, já que os terceiros têm muitas maneiras de lesar o direito do credor: quer impedindo o devedor de cumprir (p. ex., sequestrando-o), quer, em termos mais gerais, tornando impossível o cumprimento (a prestação), quer recebendo uma prestação (irrepetível) (irrepetível) em lugar do credor, quer instigando o devedor a não cumprir, quer apoiando-o no incumprimento.
III – TESE TRADICIONAL Podemos chamar tese tradicional àquela que defende, em termos gerais, a relatividade de eficácia das obrigações e dos contratos, embora com os limites abaixo indicados. Alguns autores chamam «intermédia» a esta tese, por se situar entre aquela chamámos «arcaica» e a tese da eficácia externa geral. A tese tradicional tem alguma proximidade com a tese arcaica, porque alguns dos autores que a defendem também não distinguem claramente o problema da relatividade estrutural do problema da oponibilidade. oponibilidade. Contudo, alguns outros autores fazem a distinção. A tese tradicional, todavia, invoca outros argumentos em favor da relatividade de eficácia. Eis os dois mais importantes: importantes: 3
- -
A inoponibilidade da obrigação a terceiros é, para estes autores, um
traço essencial que distingue o direito de crédito dos direitos reais . A obrigação só vincula o devedor. Só o devedor deve cumprir. Pelo contrário, os direitos reais são oponíveis erga omnes , como se vê pelo regime da reivindicação, que pode ser exercida contra qualquer detentor do bem ( ubi rem meam invenio, ibi vindico – cf. art. 1311.º). - -
Um contrato (obrigacional) não pode produzir efeitos para terceiros,
como resulta, na lei portuguesa, do art. 406.º/2 . Para os defensores da tese tradicional, a eficácia externa das obrigações estaria explicitamente afastada pelo art. 406.º/2. E, na verdade, seria inadmissível que duas pessoas, num contrato entre si, estipulassem vinculações para terceiros. Para esta tese, mas também para toda a discussão, o art. 406.º/2 é nuclear. - -
Pode considerar-se um terceiro argumento, que acentua a posição
específica do devedor como obrigado , passe a redundância. Numa obrigação, o
devedor, no caso de não cumprir (culposamente), é responsável pelos danos causados ao credor (art. 798.º). Se um terceiro induzir ou apoiar o devedor no não cumprimento, isto não afasta que, em primeiro lugar, foi o devedor que violou a sua obrigação. Era com o devedor que o credor poderia contar para cumprir e é com o património do devedor que o credor pode contar para uma indemnização por incumprimento. Era inclusive naquela pessoa que o credor podia confiar . Ora, se o devedor indemnizar o credor pelos seus danos, como manda a lei, o problema da eficácia externa perde toda a relevância prática, porque o credor é logo satisfeito pelo devedor, não tendo mais nada que pedir a um terceiro. Se, pelo contrário, o devedor não tem bens, não tem um património suficiente para indemnizar plenamente o credor, a perda que o credor assim sofre deverá, para a doutrina tradicional, ficar com esse mesmo credor, e não ser transferida para um terceiro, já que foi o credor que
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escolheu, contratualmente, o seu devedor e tinha o ónus de escolher um devedor com património suficiente para uma eventual indemnização.
Em favor da tese tradicional, ainda se juntam, por vezes, os três argumentos seguintes, mas que parecem improcedentes: - -
A obrigação não seria oponível a terceiros por razões de «segurança
jurídica». Se a obrigação lhes fosse oponível, qualquer pessoa que contratasse estaria
sujeita a que, mais tarde, lhe viessem opor um contrato prévio que já vinculava a sua contraparte impedindo-a de cumprir licitamente o segundo contrato. Diz-se também, de modo semelhante, que os terceiros não têm nenhum dever de investigar se existia ou não um contrato prévio incompatível com o seu, pelo que não seria possível responsabilizá-los. Supomos, porém, que este argumento é incorrecto. Não há nenhum problema de «segurança jurídica», já que a tese da eficácia externa defende apenas que, se o terceiro souber da obrigação anterior, não poderá ter comportamentos que inviabilizem
o seu cumprimento. Como a tese da eficácia externa pressupõe conhecimento, não há qualquer problema de se criar insegurança com a possibilidade de um terceiro vir a ser surpreendido com uma obrigação anterior. Pela mesma razão, a teoria da eficácia externa não afirma que exista algum dever de investigar obrigações anteriores. Acrescente-se, ainda assim, que, se esta teoria estiver correcta, serão imagináveis alguns casos, embora raros, em que esse dever surgisse (p. ex., quando o credor faça chegar ao terceiro indícios fortes da existência do crédito). - -
Diz-se também que a tese da eficácia externa estaria errada porque a
lei permite a celebração válida de dois contratos cujo cumprimento simultâneo seja impossível . A lei prevê inclusive o modo de proceder quando o devedor não tem meios
para cumprir todas as obrigações que o vinculam. Os credores com créditos anteriores não têm qualquer preferência, designadamente em matéria de concurso de credores (cf. art. 604.º). Esta seria, aliás, outra diferença entre obrigações e direitos reais, já 5
que, celebrando alguém dois contratos com eficácia real incompatíveis, o segundo, normalmente, não teria validade (cf. art. 892.º). Este argumento também parece improcedente, embora, de facto, se dê conta aqui de um regime de direito das obrigações — o do concurso de credores, em que não há , normalmente, prevalências por ordem cronológica 2[2] — sem paralelo em
direitos reais. De qualquer modo, o argumento improcede na medida em que confunde o problema da validade de contratos incompatíveis com o problema da responsabilidade de alguém que interfira com o cumprimento dum contrato
obrigacional prévio. É que a validade dos negócios jurídicos e a responsabilidade são institutos que se colocam em planos substancialmente diferentes. É claramente admissível um contrato válido que, apesar disso, torne responsáveis as partes que o celebraram ou, sobretudo, que o venham a cumprir. A invalidade dos negócios jurídicos, para mais, surge, designadamente, por o seu objecto ser ilícito (cf. art. 280.º), mas esta ilicitude é apenas a que resulte directamente de uma disposição legal injuntiva, nunca estaria em causa a simples incompatibilidade de um contrato com um contrato (obrigacional) anterior, que, aliás, pode a qualquer momento ser revogado pelas partes. Acrescente-se que — eis um aspecto muitas vezes esquecido — mesmo quanto a direitos reais, é válido um contrato que pretenda dispor sobre um direito alheio, pelo menos quando as partes reconheçam essa alienidade (cf. arts. 893.º e 904.º). A venda de bens alheios reconhecidos como tal é perfeitamente válida! 3[3] Embora inoponível ao proprietário. E, se essa venda for cumprida sem consentimento do proprietário, surgirá muito provavelmente uma obrigação de indemnizar, uma vez verificados os pressupostos desta.
2[2]
Não há prevalência cronológica entre os credores comuns. Os credores com garantia real, pelo contrário, prevalecem entre si por ordem cronológica, na maior parte dos casos. 3[3] Em Direito Comercial, toda a venda de bens alheios é válida (art. 467.º/2.º CCom). Note-se, ainda, que o art. 892.º CC é bastante discutível de iure condendo. Por fim, sublinhemos que, de iure condito, o art. 892.º, como resulta da sua letra, não estatui uma verdadeira nulidade («típica»; cf. art. 286.º), mas sim uma invalidade especial, marcada desde logo por duas regras de inoponibilidade. 6
- -
Alega-se, em terceiro lugar, que os casos de eficácia de contratos
(obrigacionais) para terceiros seriam (só) os dos arts. 413.º e 421.º (contrato-promessa e pacto de preferência com eficácia real, além da obrigacional), que seguem, aliás, requisitos bastante apertados. Este argumento também parece incorrecto, já que o nosso problema é apenas o de saber se um terceiro que lese o crédito será civilmente responsável, ou seja, se deverá indemnizar pelos danos do credor. Os arts. 413.º e 421.º não se relacionam com a matéria da responsabilidade civil , mas sim com a exigência de um bem a terceiro por força de um direito real sobre esse bem . Direitos reais são apenas os estabelecidos na lei (cf. art. 1306.º), mas o problema da eficácia externa não é o de conferir um direito real. As pretensões reais e as pretensões indemnizatórias não têm nada em comum, como melhor se verá no fim deste texto.
IV – CINCO LIMITES À RELATIVIDADE DE ACORDO COM A TESE TRADICIONAL A tese tradicional, em suma, defende a relatividade dos contratos e das obrigações, com base na inexistência de equivalente ao art. 1311.º em direito das obrigações e, sobretudo, na disposição do art. 406.º/2. Reconhecem-se, porém, pelo menos, cinco limites à relatividade das obrigações e contratos, que têm assento legal claro (como o próprio art. 406.º/2 ressalva): - -
O contrato a favor de terceiro (arts. 443.º e ss.). Ocorre esta figura
quando as partes estipulam no contrato que um terceiro adquira certo direito. É preciso é que as partes o estipulem, ou seja, o declarem (expressa ou tacitamente). Assim, a máxima res inter alios acta nec nocet nec prodest 4[4] foi praticamente negada quanto à parte final ( nec prodest ). Esta figura do contrato a favor de terceiro foi um importantíssimo passo histórico de restrição à regra da relatividade dos contratos. A 4[4]
À letra, «coisa tratada por outros não prejudica nem favorece». 7
sua aceitação nos sistemas jurídicos foi tardia. Só no séc. XIX foi reconhecida nos direitos continentais, e ainda mais tarde nos anglo-saxónicos. No direito inglês, só com o recente Contracts (Rights of third parties) act de 1999, que afastou os precedentes judiciais em vigor. O contrato a favor de terceiro, de qualquer modo, não tem significado directo para a questão da oponibilidade do crédito a terceiros, porque nele só se atribuem direitos a terceiros. Note-se ainda que o contrato a favor de terceiro não diz respeito apenas ao Direito das Obrigações, pois com ele podem também atribuir-se direitos doutra natureza, p. ex., direitos reais (cf. art. 443.º/2). Mesmo quanto às obrigações, não serve só para constituí-las em favor do terceiro, mas também para extinguir as que o vinculassem (art. 443.º/2, «remitir dívidas»). - -
Os contratos com eficácia real. Diz o art. 406.º/2 que os contratos não
produzem efeitos para terceiros. No entanto, quando um contrato tenha eficácia real, e porque os direitos reais são oponíveis a terceiros (salvo poucas excepções), o art. 406.º/2 não impede essa oponibilidade. Nos contratos com eficácia real, tem interesse distinguir duas situações: por um lado, aqueles em que há a simples atribuição de um direito real de gozo ou de garantia (como a compra e venda, um contrato de constituição de uma hipoteca ou um contrato de constituição de usufruto), através dos quais os terceiros podem ser atingidos de modo algo indirecto; por outro, aqueles em que o contrato constitui uma obrigação «reforçada» por um direito real de aquisição (vide arts. 413.º e 421.º). Este segundo grupo de casos, mais interessante, permite que o próprio conteúdo do contrato venha de alguma forma a ser exercido contra um terceiro. Veja-se que o regime dos arts. 413.º e 421.º faz depender a eficácia real de pressupostos bastante apertados. A «limitação» do art. 406.º/2 pelos contratos reais quoad effectum é, por assim dizer, a sua limitação por excelência, assinalando, no
entendimento tradicional, a diferença entre obrigações e direitos reais.
8
- -
A impugnação pauliana5[5] e o regime da falência. Nos termos dos
arts. 610.º e ss., um terceiro que, de má fé ou a título gratuito, adquira bens de um devedor, impossibilitando ou dificultando assim que os respectivos credores satisfaçam os seus créditos, fica sujeito a que os bens adquiridos continuem a responder pelas dívidas em causa, podendo ser executados no património do adquirente. Deste modo, uma simples obrigação acabará por ser invocada contra um terceiro que lesou o credor através da aquisição de bens do devedor. O regime da falência6[6], inclusive com protecção penal 7[7], desenvolve a ideia básica, com alguns acréscimos. A impugnação pauliana é manifestamente um caso de eficácia externa das obrigações, em sentido amplo. Devem, porém, notar-se duas coisas: primeiro, que a consequência da impugnação pauliana é que o bem adquirido por terceiro pode ser executado para satisfação do credor; pelo contrário, o nosso problema da eficácia externa é o de haver ou não responsabilidade civil , ou seja, a obrigação de indemnizar pelos danos que o credor sofra devido a terceiro. Em segundo lugar, e com alguma importância, deve notar-se que a impugnação pauliana reage contra terceiros que interfiram sobre o património do devedor , ou seja, sobre a chamada garantia das obrigações (arts. 601.º ss.). A impugnação pauliana não se relaciona com o próprio cumprimento das obrigações. O direito do credor ao cumprimento é anterior ao seu
direito de agir sobre o património do devedor em caso de não cumprimento. A impugnação pauliana só se preocupa com este segundo momento de protecção do credor. - -
O abuso do direito (cf. art. 334.º). Apesar do art. 406.º/2, um terceiro
que impeça o devedor de cumprir ou que o instigue a não cumprir com a intenção exclusiva de prejudicar o credor ou devido a um interesse seu de valor insignificante 5[5]
É menos significativa a relação entre o tema da eficácia externa e o da acção sub-rogatória (arts. 606.º e ss.). 6[6] Arts. 151.º e ss. do CPEREF de 1993. São significativos alguns outros preceitos do mesmo código. 7[7] Vejam-se os crimes dos arts. 227.º e ss. CP (quanto aos terceiros, cf. art. 227.º/3, além do art. 28.º). 9
ou desproporcional ficará obrigado a indemnizar o credor, nos termos do art. 483.º. A ilicitude do seu comportamento resulta do art. 334.º 8[8]. Trata-se, de facto, de um exercício inadmissível de situações jurídicas, na modalidade de exercício em desequilíbrio9[9]. Esta é, para a doutrina clássica, a limitação primordial à regra da relatividade das obrigações e dos contratos, atenuando um possível rigor excessivo do art. 406.º/2. Sublinhemos, de qualquer modo, o seguinte: a invocação do abuso de direito para efeitos de responsabilidade civil não tem nenhuma relação específica com o tema da eficácia externa. É um problema geral. Aliás, para ser invocado o abuso do direito (na modalidade de exercício em desequilíbrio) com vista à obrigação de indemnizar, não é necessário existir um crédito atingido , ou seja, não é necessário que o lesado tenha sequer um direito. A lesão pode surgir, por exemplo, quando um terceiro impede a futura celebração de contratos com o lesado (que, é claro, não tem qualquer direito a essa futura celebração). A invocação do abuso do direito nos casos que estudamos, portanto, não representa um modo de protecção do crédito, em si mesmo considerado, mas sim um modo de protecção do património do credor, enquanto valor económico global . Alguns autores opõem-se a esta argumentação assente no abuso de direito. Simplificando, dizem eles que, para haver abuso, seria preciso haver um direito. Como os terceiros aqui visados não exercem nenhum direito subjectivo, o problema não se relacionaria com o art. 334.º. Supomos que este contra-argumento não é correcto, por duas razões. Primeiro, devido a um argumento de maioria de razão. Se quem tem um direito subjectivo, situação jurídica activa por excelência, não pode exercê-lo em certos termos, considerados abusivos, ainda menos poderá agir nesses termos quem nem sequer é titular dum direito subjectivo. Em segundo lugar, e com maior importância, devido à natureza do «abuso do direito» e do art. 334.º, que o consagra. Na verdade, 8[8]
Esta é uma argumentação semelhante à que, no direito alemão, se faz a partir do § 826 BGB, que complementa o § 823 do mesmo código. O § 823 é semelhante ao nosso art. 483.º/1. 9[9] Numa conceptualização mais antiga, falar-se-ia aqui de exceptio doli . 10
trata-se aqui de uma cláusula geral , aliás amplíssima (o art. 334.º é a «cláusula geral das cláusulas gerais»), destinada a permitir ao intérprete-aplicador superar resultados injustos, contrários aos princípios do sistema, a que se chegaria numa simples aplicação do direito estrito, ou seja, simplificando, das disposições legais directa e especificamente reguladoras de cada matéria. O abuso do direito é uma das «janelas do sistema» de fontes, como se costuma dizer, permitindo aproximar o sistema jurídico do «direito justo». Por outro lado, o abuso do direito é um instituto com validade de princípio, pouco dependente de concretizações legais (vários países não o referem na sua legislação, sem que isso tenha grande importância). É um dispositivo jusmetodológico fundamental, ao lado da interpretação-aplicação da lei. Por isso, querer sustentar que o art. 334.º se refira apenas a «direitos», não dispondo para outras situações
jurídicas
(como
a
liberdade
contratual
genérica),
parece
ser
metodologicamente inadequado e contrário à própria função do instituto. - -
A proibição de concorrência desleal (cf. art. 317.º CPI). Outra
restrição ao art. 406.º/2 com claro apoio na lei é a que decorre da proibição de concorrência desleal. Trata-se aqui de uma disposição que visa o exercício da actividade comercial e que proíbe uma série de actos, identificados no art. 317.º CPI como «contrários às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica». Além da cláusula geral do corpo do artigo, esta disposição ainda enumera exemplificativamente alguns actos de concorrência desleal. Ora, a actuação de um comerciante lesiva de um crédito anterior será algumas vezes contrária às «normas e usos honestos» da sua actividade, conforme melhor se estudará no 4.º ano do curso, na disciplina de Direito Comercial. Notemos apenas que, tal como sucedia com o abuso do direito, o instituto da concorrência desleal não tem nenhuma ligação específica com alguma ideia de protecção do credor, mas sim de protecção geral do património e da lisura da actividade comercial. Aliás, os defensores da teoria tradicional da relatividade do crédito afirmam precisamente que, em muitos casos, a actuação de um comerciante terceiro que prejudique outro comerciante favorecendo o 11
não cumprimento de um crédito já constituído seria uma simples actuação de concorrência leal . E sublinhemos ainda que o art. 317.º CPI não tem relevância fora das actuações comerciais (ou equiparadas).
V – UM SEXTO LIMITE: A PROTECÇÃO DA «TITULARIDADE» DO CRÉDITO Além daqueles cinco limites 10[10] à relatividade de eficácia, que têm consagração legal evidente, alguma da doutrina tradicional ainda defende a tutela do credor contra terceiros nos casos chamados de violação da titularidade do crédito. A «violação da titularidade do crédito» ocorre especialmente quando um terceiro se faz passar pelo credor, enganando o devedor e recebendo assim a prestação (que não possa ser renovada) que o credor devia receber. É o que sucede na seguinte situação: António reserva por telefone um bilhete para certo espectáculo, muito difícil de obter. Bento ouve o telefonema e levanta o bilhete dizendo ser António. Este fica sem o lugar. Seriam equivalentes os casos em que o terceiro não engana o devedor, mas consegue receber a prestação sem o seu contributo. O raciocínio da doutrina tradicional sustenta que, enquanto o direito de crédito é (estruturalmente) relativo, a simples qualidade de titular desse direito de crédito é uma qualidade absoluta, que não se define pela pessoa do devedor, mas apenas pela pessoa do credor e pelo direito de crédito, em si mesmo considerado como objecto. Quando um terceiro toma o lugar do credor, recebendo a prestação em seu lugar sem contributo do devedor, o terceiro estaria a lesar directamente a titularidade do crédito, a qualidade do credor como credor e, nessa medida, ficaria obrigado a indemnizá-lo, nos termos do art. 483.º/1. De facto, estes casos de «lesão da titularidade» parecem ser de solução clara. O terceiro deve indemnizar. Ficam dúvidas, porém, sobre se a argumentação usada 10[10]
Tem muito menos interesse o caso do art. 495.º/3. 12
será a melhor. Esta referência à «titularidade» soa demasiado formal para uma decisão jurídica. Voltaremos ao tema.
VI – VERSÃO SIMPLIFICADA DA TESE DA EFICÁCIA EXTERNA DAS OBRIGAÇÕES Opõe-se à tese tradicional a tese da eficácia externa das obrigações, que aqui se apresenta primeiro numa versão simplificada. O credor tem um direito subjectivo: o crédito. Quem viola ilicitamente um direito subjectivo alheio fica obrigado a indemnizar pelos danos a que der origem (art. 483.º). Logo, um terceiro que viole o crédito, impedindo o credor de vir a receber a prestação a que tem direito, terá de indemnizá-lo nos termos desse art. 483.º. Acresce que, se o terceiro incitar ou apoiar o devedor no incumprimento, esse terceiro será instigador ou cúmplice, e estes também são obrigados a indemnizar (art. 490.º). Nesta versão simplificada, porém, a tese da eficácia externa não procede. Quer dizer: talvez a conclusão seja certa, talvez não, mas estes dois argumentos, sem mais, são insuficientes. - -
O art. 483.º, na sua história, visava apenas direitos absolutos. Não só
porque a história da responsabilidade delitual 11[11], nos vários antecedentes do direito português em vigor, desde o direito romano, tem em conta apenas violações de direitos absolutos, mas também porque o art. 483.º/1 é muitíssimo semelhante, na sua letra, ao § 823 BGB, que acrescenta apenas uma exemplificação de direitos violáveis — todos eles absolutos — e que sempre foi maioritariamente 12[12] interpretado no
sentido de não abranger o direito de crédito. Estudaremos melhor o art. 483.º no lugar próprio. É claro que a história de um preceito legal não é um argumento intransponível, mas também não pode ser ignorada. 11[11]
Também chamada aquiliana, extracontratual ou extra-obrigacional, por contraposição à responsabilidade contratual ou obrigacional, a que se refere o art. 798.º e alguns outros, como o art. 801.º/1 e o art. 804.º/1. 12[12] Mas não unanimemente. 13
- -
Pode depois talvez dizer-se que o credor tem um direito perante o
devedor, mas não terá um direito perante o terceiro. Nessa medida, o terceiro não violaria um direito do credor. Este argumento, dito assim, não é inultrapassável. Mas impede que se use o art. 483.º para responsabilizar o terceiro sem que, primeiro , se demonstre claramente qual é a situação do terceiro em face do crédito. - -
Por outras palavras, mais rigorosas, o erro desta versão simplificada da
teoria da eficácia externa é que ela não demonstra a existência do dever genérico de terceiros respeitarem o direito de crédito. O art. 483.º estatui a obrigação de indemnizar de quem ilicitamente cause danos a outrem, o que quer dizer que um terceiro que interfira com o crédito só será responsável se tiver agido em violação de um dever. Ora, ainda não demonstrámos a existência desse dever. - -
De igual modo, invocar o art. 490.º, sem mais, para responsabilizar um
terceiro que colabore com o devedor ou que o instigue a violar o crédito também é insuficiente. Há aqui um salto lógico. É que o cúmplice ou instigador de alguém que viole um direito absoluto tem, sem dúvida, o mesmo dever que o autor directo do acto ilícito. Só podemos usar o art. 490.º para responsabilizar um terceiro que instigue o devedor a não cumprir depois de demonstrarmos que este terceiro tem um dever de respeitar o direito de crédito. E isso, ainda não o fizemos.
Contra a versão simplificada da teoria da eficácia externa, recorre-se ainda, por vezes, a dois argumentos que, contudo, parecem incorrectos: - -
Diz-se que o art. 483.º não trataria dos casos de violação (por terceiro)
do direito de crédito porque as violações dos direitos de crédito seriam reguladas nos arts. 798.º e ss.. Este argumento é incorrecto porque os arts. 798.º a 812.º tratam apenas da violação do crédito pelo devedor, ou seja, determinam apenas os efeitos do incumprimento para as partes na obrigação (devedor e credor). Nestes artigos, não se diz absolutamente nada sobre uma eventual responsabilidade de terceiros. Não se diz
14
que existe, nem que não existe. Portanto, estas disposições não furtam a matéria da eficácia externa a uma eventual aplicação do art. 483.º. - -
Diz-se também que o art. 406.º/2 determinaria justamente e de modo
expresso a inoponibilidade do crédito a terceiros. Como já sabemos, em todo este problema da oponibilidade do crédito a terceiros, o art. 406.º/2 é fundamental. Contudo, veremos a seguir que o art. 406.º/2 não determina nada do que este argumento supõe.
VII – ANÁLISE DO ART. 406.º/2 DO CÓDIGO CIVIL Com isto, chegamos a um ponto essencial para todo o problema. Impõe-se analisar o art. 406.º/2 do Código Civil. Em primeiro lugar, diga-se que o art. 406.º/2 exprime uma regra básica, indiscutível e universal, a regra da relatividade dos contratos. Não tem qualquer valor um contrato ou uma cláusula num contrato em que se estipule um efeito negativo para uma terceira pessoa. Em boa verdade, o art. 406.º/2 não distingue efeitos positivos (vantagens) e negativos (desvantagens), mas já sabemos que as regras do contrato a favor de terceiro permitem que se lhe atribuam direitos. Com efeito negativo , referimo-nos à aquisição ou alargamento de uma situação jurídica passiva (desvantajosa) e à perda ou diminuição de uma situação jurídica activa (vantajosa). Por exemplo, a constituição de uma obrigação, o aumento do montante de uma obrigação, a perda de qualquer direito (real, obrigacional, de participação numa sociedade comercial ou qualquer outro) ou a diminuição do objecto de um direito. Quanto a efeitos positivos , são as hipóteses contrárias. É a elas que se refere o art. 443.º, n.º s 1 e 2. Leiam este número 2!
15
Em termos mais rigorosos, conjugando os arts. 406.º/2, e 443.º e ss., chegamos aos seguintes quatro resultados: - -
Se as partes num contrato estipularem um efeito negativo para um
terceiro, essa estipulação não tem qualquer valor jurídico. P. ex., se uma cláusula de um contrato entre A e B declarar que C fica obrigado a fazer qualquer coisa, essa cláusula é (evidentemente) inválida ou, pelo menos, inoponível ao terceiro. - -
Se as partes estipularem um efeito positivo para um terceiro, o terceiro
pode invocar a estipulação (arts. 443.º e ss.). O efeito produz-se de imediato (art. 444.º/1, aplicável mutatis mutandis nos casos do art. 443.º/2). - -
Quando as partes estipulam um efeito negativo para uma delas, esse
efeito negativo não pode ser transposto para um terceiro. P. ex., se as partes estipularem uma cláusula penal para o caso de uma delas causar certo dano à outra e um terceiro vier a causar esse mesmo dano, essa cláusula é irrelevante para o terceiro, não o prejudica, não é invocável contra ele 13[13]. Há um pequeno grupo de casos, porém, em que ocorre esta «transposição» de um efeito contratual em prejuízo de terceiro. É assim quando o terceiro se encontra numa especial relação de dependência de um contrato, sendo afectado pela revogação deste (cf. art. 406.º/1). Note-se que a revogação é um segundo contrato e é o efeito deste segundo contrato que vai ser transposto para o terceiro. O principal caso é aqui o do subcontrato , e as principais disposições da lei são as dos arts. 1051.º/1, al. c), CC e 45.º RAU. As questões do subcontrato, aliás, criam vários problemas de articulação com o princípio da relatividade dos contratos 14[14]. - -
Quando as partes estipulam um efeito positivo para uma delas, esse
efeito positivo não pode ser transposto para um terceiro. É importante fixar este caso para não o confundir com o do contrato a favor de terceiro. Exemplo: se as partes 13[13]
Assim decidiu o ac. STJ 16-6-1964 (BMJ 138, 1964). Cf., em especial, R OMANO M ARTINEZ, O subcontrato, Almedina, Coimbra, 1989, pp. 103-108 e 155-159. 14[14]
16
estipularem um limite à indemnização para o caso de uma delas causar certo dano à outra e um terceiro vier a causar esse mesmo dano, essa cláusula é inútil para o terceiro; ele não beneficia com ela. Outro exemplo (de um caso previsto no art. 770.º, al. a), a que se chama contrato ou obrigação com prestação a terceiro): Plácido, cantor lírico, contrata com Manel fazer uma serenata à janela de Maria, sob as ordens de Manel; aqui, Maria não pode exigir a Plácido que cante; só Manel tem direito à cantoria. No entanto, também há um grupo de casos em que ocorre uma «transposição» de um efeito contratual em benefício de terceiro. A saber, quando o terceiro se encontra numa posição dependente da posição de certo devedor e este devedor, por contrato, melhora a sua posição perante o credor. Esta transposição favorável pode ocorrer com um subcontrato, mas o exemplo mais simples ocorre na fiança (arts. 627.º ss.). Se o devedor principal vir (por contrato) a sua obrigação diminuída, extinta ou de alguma outra forma aligeirada, esta melhoria repercute-se em princípio na posição do fiador (cf. arts. 637.º/1 e 651.º). Há outros exemplos na área da garantia das obrigações. Em suma, o art. 406.º/2 exprime que as estipulações num contrato só produzem o efeito estipulado nas esferas jurídicas das próprias partes , e não na
de terceiros, salvo quando um efeito positivo seja especificamente 15[15] estipulado para um terceiro. A relatividade dos contratos, consagrada neste art. 406.º/2, é uma decorrência elementar do princípio da autonomia privada. Como se vê até pela origem da palavra autonomia (do grego; nomos , regra, + auto , para o próprio). Podemos criar vinculações («regras») para nós próprios, não para outrem. Isso seria heteronomia!
15[15]
Ou seja, declarando que o direito é para o terceiro. Mas a declaração tanto pode ser expressa quanto tácita. 17
A razão de ser do art. 406.º/2 é a mesma da regra que estatui que não se pode por acto unilateral impor um dever a outrem 16[16]. Uma regra não escrita, mas de que absolutamente ninguém duvidaria. Quem diz um dever, diz outra situação jurídica desvantajosa.
[ Parêntese processual: convém lembrar uma regra do direito processual equivalente à do art. 406.º/2. Assim como os contratos são relativos, também os efeitos do caso julgado são relativos. Assim como res inter alios acta nec nocet nec prodest , também res inter alios judicata nec nocet nec prodest . À matéria da
relatividade do caso julgado, chama-se igualmente dos «limites subjectivos» do caso julgado (cf. arts. 497.º e 498.º/1 e 2 CPC). Ainda assim, as restrições à relatividade do caso julgado (ou seja, os casos de oponibilidade do caso julgado a terceiros ou de possibilidade de invocação por terceiros) são mais e maiores do que os limites à regra da relatividade dos contratos, conforme se estuda em Direito Processual Civil 17[17]. A relatividade do caso julgado resulta do princípio do contraditório (cf. art. 3.º/2 a 4 CPC, aparentado com o art. 20.º CRP). A tese da afinidade substancial (nos princípios e nas regras) entre a relatividade do caso julgado e a dos contratos tem consequências práticas e teóricas importantes. Mas é uma tese discutida. ]
Note-se agora que o art. 406.º/2 não diz respeito só à constituição de obrigações. Tal como no contrato a favor de terceiro se podem atribuir vários efeitos jurídicos positivos a terceiros (art. 443.º/2), também o art. 406.º/2 impede que se 16[16]
Salvo, como é evidente, havendo uma situação de autoridade , como acontece com o poder político ou administrativo, no contrato de trabalho (art. 1152.º) e nalguns outros contextos. Com muito menos intensidade, o poder de dar ordens também surge nos contratos de mandato (cf. art. 1161.º, al. a), in fine ) e de empreitada (cf. art. 1216.º). 17[17] Cf., p. ex., arts. 674.º a 674.º-B, 271.º/3, 341.º e 349.º/2 CPC e 522.º, 531.º, 538.º/2 e 635.º CC, entre outros. Também há casos de oponibilidade do caso julgado a terceiros sem previsão legal específica, mas esses têm maiores relações com algumas regras de direito civil de que se fala abaixo. 18
estipulem quaisquer efeitos negativos para terceiros: não se lhes podem constituir obrigações, não se podem extinguir ou modificar créditos que o terceiro tenha sobre uma das partes ou sobre qualquer outra pessoa, não se podem extinguir ou modificar direitos reais do terceiro, não se podem criar direitos menores sobre bens do terceiro (nem direitos reais, nem direitos pessoais de gozo), etc., etc. Toda a estipulação em prejuízo de um terceiro é inválida ou, pelo menos, é-lhe inoponível. Normalmente, no que diz respeito à extinção ou modificação de direitos de terceiros, diz-se que ela é impossível por faltar o pressuposto da legitimidade . Mas parece é que o pressuposto da legitimidade é uma consequência do art. 406.º/2 (e da inadmissibilidade geral de imposição de desvantagens a terceiros), e não o contrário. Mesmo quanto às obrigações, devemos dizer que só o próprio obrigado (o futuro devedor) tem legitimidade para as constituir 18[18]. A propósito da «legitimidade» como pressuposto de certas eficácias jurídicas, note-se que os alunos têm muitas vezes um entendimento errado sobre ela, designadamente quando supõem que a compra e venda de bens alheios, de que já aqui falámos, seria sempre nula. Assim, supõe-se que o art. 406.º/2 tanto vale para as obrigações quanto para os direitos reais. Este artigo impede que se constitua uma obrigação para terceiro, mas também que se constitua um direito real menor contra um terceiro e que se extinga ou modifique um direito real do terceiro. O art. 406.º/2, afinal, não está relacionado com a distinção entre obrigações e direitos reais, ao contrário do que é pressuposto pela teoria tradicional de que falámos.
O que nos leva de imediato a uma conclusão sobre o art. 406.º/2. O art. 406.º/2 consagra a regra da relatividade dos contratos, e não uma regra de relatividade das obrigações. Mesmo a letra do art. 406.º/2 só se refere a contratos.
18[18]
Sem prejuízo, é claro, dos casos de representação (arts. 258.º e ss.). Há casos de produção de efeitos desvantajosos para terceiros próximos dos de representação e decorrentes de certas «autorizações». 19
Não podemos confundir o contrato e a obrigação . Os contratos podem constituir obrigações, mas também produzem outros efeitos jurídicos. As obrigações podem ser constituídas por contrato, mas também por outras fontes. Mesmo quando um contrato é obrigacional, não podemos confundir a causa com o efeito. A causa (a fonte) é o contrato, um negócio jurídico bilateral, constituído pelas declarações das partes. O efeito é a obrigação (e o crédito), uma situação jurídica, o vínculo que fica a subsistir entre as partes após a celebração do contrato. Contudo, sabe-se que, ao longo da história, houve uma grande tendência para confundir a matéria da obrigação com a matéria do contrato. Ainda hoje, usa-se muitas vezes a palavra «contrato» para significar o conjunto das obrigações e doutros efeitos jurídicos resultantes do contrato propriamente dito. Fala-se por vezes do «cumprimento do contrato», quando o ideal seria falar do «cumprimento da obrigação». Nos direitos de influência alemã, como o português, a lei é clara na determinação de um regime para as obrigações, qualquer que seja a sua fonte, no que respeita ao cumprimento, não cumprimento, extinção, transmissão e garantia (cf. arts. 512.º a 561.º e 577.º a 873.º). Nos direitos de influência inglesa e francesa, pelo contrário, estes problemas são tratados a propósito dos contratos. Ora, o art. 406.º/2 estatui a relatividade dos contratos. Não diz nada a respeito da relatividade das obrigações. Nos termos do art. 406.º/2, as partes num contrato só a si próprias se podem vincular, constituindo obrigações. Mas o art. 406.º/2 não nos diz se, depois de constituída a obrigação entre as partes no contrato, os terceiros terão ou não de respeitar a existência daquela obrigação entre aquelas partes e, em especial, se terão ou não de respeitar o direito do credor (o direito de crédito). O art. 406.º/2 não nos diz se os terceiros têm ou não de respeitar o direito daquele credor a uma prestação daquele devedor. Ou seja, o art. 406.º/2 nada nos diz sobre se existirá um dever geral de respeito dos direitos de crédito alheios. O art. 406.º/2 não se opõe a esse eventual dever geral de respeito, embora também nada diga em seu favor. 20
A doutrina tradicional poderia, no entanto, usar o seguinte argumento: se houvesse um dever geral de respeito dos créditos alheios, então, sempre que se celebrasse um contrato com efeitos obrigacionais, estar-se-ia, indirectamente, a criar efeitos negativos (desvantajosos) para terceiros. Na perspectiva da doutrina tradicional, a tese da eficácia externa das obrigações (ou seja, a tese de que existiria um dever geral de respeito do crédito) ainda violaria o art. 406.º/2 do Código Civil, porque, embora a estipulação contida no contrato só possa constituir uma obrigação para as partes, os terceiros seriam indirectamente atingidos, pois passariam a ter de respeitar a existência daquele crédito. E o art. 406.º/2 diz que os contratos não produzem efeitos para terceiros. Contudo, o art. 406.º/2 não impede a produção destes «efeitos indirectos» para terceiros, nem em contratos obrigacionais, nem em contratos com outro tipo de efeitos. Talvez a expressão «efeitos indirectos» não seja muito clara. Apesar disso, há várias razões para entender que o art. 406.º/2 não impede a sua produção: - -
A expressão «efeitos do contrato» visa em primeiro lugar os efeitos
contratuais do contrato. Ou, generalizando, os efeitos negociais do negócio jurídico.
Trata-se dos efeitos correspondentes às estipulações das partes, à «intenção das partes», ao significado juridicamente relevante do negócio. Os «efeitos do contrato» são, acima de tudo, os efeitos contratados, e não o que resulte do direito objectivo. Ora, os efeitos indirectos a que nos referimos não são efeitos estipulados pelas partes; pelo contrário, são efeitos para os quais a vontade das partes é irrelevante. São efeitos que, como se diz por vezes, «tomam o contrato como mero facto». Afirmar, p. ex., que um negócio nulo não produz efeitos é afirmar apenas que não produz os efeitos estipulados, embora possa produzir efeitos indirectos, resultantes, p. ex., da boa fé. Portanto, a própria letra do art. 406.º/2 aponta no sentido de não abranger os efeitos indirectos. 21
- -
Só os efeitos estipulados assentam na autonomia privada; só eles
correspondem a um exercício da liberdade jurígena. Pelo contrário, os efeitos indirectos resultam de outros princípios ou regras. O 406.º/2, como vimos, é uma decorrência da autonomia privada. Logo, só abrange os efeitos que digam respeito à própria autonomia privada.
[os exemplos seguintes são meramente ilustrativos; não têm de ser (todos) memorizados] - -
Por outro lado, há inúmeros (outros) efeitos indirectos da
constituição contratual de uma obrigação que não oferecem dúvidas. A partir do momento da celebração de um contrato obrigacional, o património do devedor fica diminuído. Isso é relevante para terceiros, desde logo, na matéria do concurso de credores (cf. art. 604.º). Semelhantemente, a existência do débito pode ser oposta a terceiros nos casos da chamada «impossibilidade moral» de cumprimento da obrigação, que havemos de estudar 19[19]. O débito é ainda relevante através da já conhecida impugnação pauliana (arts. 610.º ss.). A existência do crédito no património do credor, por seu turno, aproveita aos credores do credor, que podem executá-lo para o pagamento dos seus créditos (cf. arts. 820.º CC e 856.º ss. CPC) e podem até, em certos casos, exercê-lo (cf. arts. 606.º ss.) Por fim, a titularidade do crédito (contratual) dá legitimidade ao credor para sobre ele praticar actos com terceiros, como um contrato de cessão de créditos (arts. 577.º ss.), de penhor de créditos (arts. 679.º ss.) ou de usufruto de créditos (arts. 1463.º ss.). - -
Os efeitos indirectos de um contrato, em favor ou em prejuízo de
terceiros, também ocorrem nos contratos de transmissão ou extinção de direitos — sejam eles reais, obrigacionais ou outros — bem como nos contratos de constituição de direitos (reais) menores. Os efeitos indirectos aqui produzidos são bastante 19[19]
De qualquer modo, consulte-se MENEZES CORDEIRO, A «impossibilidade moral»: do tratamento igualitário no cumprimento das obrigações , in Estudos de direito civil , vol. I, Almedina, Coimbra, 1987, pp. 97-114. 22
semelhantes aos vistos no ponto anterior. Note-se, porém, a importância destes efeitos indirectos em termos de responsabilidade civil 20[20]. Se António vende a Bento a sua propriedade sobre certa coisa, o dever geral de respeito relativo a esse bem deixa de beneficiar António e passa a beneficiar Bento. Assim, p. ex., se Carlos danificar a coisa, é apenas Bento, e não António, quem lhe pode exigir uma indemnização. - -
Outro tipo de efeitos indirectos de um contrato ocorre no chamado
contrato com eficácia de protecção para terceiros, em que a existência de um contrato, por força da boa fé (cf. art. 762.º/2), cria para as partes um especial dever de protecção que beneficia alguns terceiros especialmente próximos desse contrato, como os familiares e os trabalhadores das partes. Esta matéria será estudada mais tarde21[21]. Aliás, todos os deveres de protecção que orbitam o contrato são, no sentido que vimos, efeitos indirectos do contrato. - -
deva
ser
Em sede de efeitos indirectos de um contrato obrigacional, talvez ainda lembrada
a
matéria
(Drittschadensliquidation , third
da
parties’ loss ),
liquidação
de
dano
de
terceiro
pouco tratada entre nós, mas já bastante
discutida no espaço alemão e com relevância crescente do direito inglês
22[22]
. Este
problema ocorre na «junção» de dois contratos entre três pessoas: duas delas (o «devedor» e o «lesado») são partes só num deles; a outra (o «intermediário») é parte nos dois. Pode acontecer que esse «devedor» viole a sua obrigação sem causar danos ao intermediário, mas sim ao «lesado», que é parte no outro contrato. E acontece por vezes que esse «lesado» não tem nenhum mecanismo eficaz para pedir uma indemnização ao «devedor», designadamente devido ao próprio princípio da 20[20]
O exemplo seguinte diz respeito a um direito absoluto, porque ainda estamos a discutir se haverá responsabilidade civil de um terceiro em caso de lesão de um crédito. 21[21] De qualquer maneira, pode consultar-se M ENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil , reimp., Almedina, Coimbra, 1997 (1984), 619-625, e, para acentuar a autonomia entre os deveres de protecção e o contrato, C ARNEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de protecção, supl. do BFDUC, sep. do vol. XXXVIII, Coimbra, 1994, 92-114 (esp.te 103-106). 22[22] Quanto ao direito alemão, o tema surge na generalidade dos manuais recentes. Quanto ao direito inglês, são decisivos os acórdãos da Câmara dos Lordes St Martin's Property Corporation Ltd v Sir Robert McAlpine Ltd , de 1994, e Alfred McAlpine Construction Ltd v. Panatown Ltd , de 2000, que se encontram facilmente na Internet . 23
relatividade dos contratos. Nestas circunstâncias, tem-se admitido que o intermediário exija uma indemnização ao «devedor», sendo essa indemnização, contudo, totalmente destinada ao «lesado». O contrato do «lesado» tem assim um efeito indirecto contra o «devedor»; e o contrato do «devedor» tem um efeito indirecto em favor do «lesado». Todavia, esta matéria da liquidação de danos de terceiros é bastante complexa e ainda não está completamente resolvida pela doutrina e jurisprudência.
Ora, é claro que estes «efeitos indirectos» não contendem com a ideia de relatividade dos contratos. Não se trata aqui de impor as estipulações de um contrato a terceiro. Os efeitos indirectos não têm qualquer relação com o art. 406.º/2. E diga-se, por fim, que muitos comportamentos unilaterais têm efeitos indirectos negativos para terceiros, apesar de, como vimos, não ser válido um acto unilateral que estipule um dever para outra pessoa. Exemplos: (1) Se A. põe o seu carro no lugar de estacionamento, isso «proíbe» B. de ali pôr o seu, enquanto A. não sair. (2) Quando um autor literário escreve ou publica a sua obra, surge o dever geral de respeito dessa obra. (3) Se alguém se apropria de um animal selvagem (cf. art. 1318.º), surge o dever geral de respeito da sua propriedade. É claro que estes exemplos, excepto o primeiro, se referem a direitos absolutos. Eles mostram, contudo, que a produção de efeitos indirectos negativos para terceiros não é contrária ao Direito nem às ideias subjacentes ao art. 406.º/2.
VIII – PRIMEIRA CONCLUSÃO Depois de se estudar a versão simplificada da tese da eficácia externa e o argumento legal mais importante da teoria tradicional, chegamos a uma conclusão decisiva: a lei não resolve o problema da eventual eficácia externa das
24
obrigações. Não o resolve com o art. 483.º, como não o resolve com o art. 406.º/2. A lei não nos dá solução para estes casos. Nem num sentido, nem no outro. É claro que, para resolvermos o problema, teremos de respeitar tanto quanto possível todas as directrizes legais. Contudo, já pudemos até aqui extrair a conclusão decisiva de que não há nenhuma disposição legal específica sobre o nosso problema, ao contrário do que defendem alguns autores. Quanto ao problema da responsabilização de um terceiro por lesão do direito de crédito, a lei portuguesa (aliás, como as outras) é perfeitamente lacunar. E ainda bem, porque o pensamento jurídico ainda não chegou a nenhum consenso nesta matéria. A jurisprudência portuguesa não nos dá melhores indicações. Nalguns acórdãos em que os nossos tribunais superiores se pronunciaram sobre esta matéria, houve decisões nos vários sentidos 23[23]. Convém é lembrar o dever de decidir (cf. art. 8.º/1). Não é por falta de indicação nas fontes do direito que os problemas jurídicos deixam de ter de ser resolvidos. Na falta de argumentos textuais, ficam considerações de substância (que também são argumentos jurídicos!).
IX – ARGUMENTOS EM FAVOR DA EFICÁCIA EXTERNA GERAL Vimos que o art. 406.º/2 não se opõe à tese da eficácia externa, mas também não a favorece. A distinção entre efeitos directos e indirectos de um contrato ajuda a mostrar que a tese da eficácia externa é possível, mas não mostra que ela esteja certa. Há, porém, alguns argumentos em favor da eficácia externa, ou seja, da oponibilidade do crédito a terceiros para efeitos de responsabilidade civil. Defender a 23[23]
Por exemplo, nos acórdãos STJ 16-6-1964, BMJ 138, 1964, pp. 342 e ss., STJ 17-6-1969, BMJ 188, 1969, pp. 146 e ss., STJ 27-1-1993, CJ-STJ I/1, 1993, pp. 84 e ss., STJ 25-10-1993, BMJ 430, 1993, pp. 455 e ss.. Nestes quatro acórdãos, temos duas decisões em cada sentido. 25
eficácia externa da obrigação é defender a existência de um dever geral de respeito dos créditos , que, quando violado, dará origem a responsabilidade civil. A teoria da
eficácia externa, de qualquer modo, só defende a responsabilidade civil de terceiros que lesem o credor conhecendo a existência do crédito. Argumentos: - -
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que o credor tem um direito
subjectivo. Tem uma posição de vantagem protegida pelo sistema jurídico e pelo aparelho estatal. Inclusive, o ordenamento dá ao credor a possibilidade de obter coercivamente a própria prestação devida (cf. arts. 817.º e 827.º ss.), e não só um sucedâneo pecuniário. A posição do credor não é a de quem tem uma simples expectativa de ganho económico, mas sim a de quem tem um bem juridicamente protegido. E a existência desta posição do credor tem de ser reconhecida por todos, como já vimos a propósito dos «efeitos indirectos» dos contratos. Ora, se o credor tem este direito a uma prestação do devedor, parece que todos devem respeitá-lo, ou seja, abster-se de interferir sobre a prestação do devedor. Em suma, parece que o próprio conceito de «direito subjectivo» leva a que exista um dever geral de respeito dos créditos. - -
Há casos em que é consensual a responsabilidade do terceiro que lese
o crédito. São, sobretudo, os casos da chamada «lesão da titularidade» do credor (em que o terceiro se faz passar por credor). Estes casos, porém, não estão bem dogmatizados, porque o terceiro nunca afecta a «titularidade» do crédito. O credor continua sempre a ser o titular! O terceiro limita-se a impossibilitar a prestação, tal como quando a recebe com o consentimento do devedor. Esses casos parecem simplesmente mostrar que o crédito é protegido erga omnes para efeitos de responsabilidade civil. - -
Os casos de impugnação pauliana e de protecção do credor contra
terceiros em sede de falência e recuperação de empresas também mostram que o crédito tem protecção contra terceiros. É certo que, nestes casos, só se protege a garantia do crédito, ou seja, o direito de o credor executar o património do devedor 26
para satisfazer o seu interesse, mas, em qualquer caso, o crédito é protegido. Parece que esta protecção do crédito tem de ocorrer também em termos de responsabilidade civil. - -
O nosso tempo mostra em especial a necessidade de protecção do
crédito através do processo geral de desmaterialização dos bens económicos. Noutras épocas, a riqueza correspondeu em regra à propriedade de coisas corpóreas, em especial imóveis e metais preciosos. Cada vez mais, porém, a riqueza assenta em vantagens incorpóreas: depósitos bancários, valores mobiliários, participações em sociedades comerciais, etc.. Estas vantagens incorpóreas são, essencialmente, feixes de direitos de crédito e direitos potestativos dos seus titulares. Na visão do homem comum, p. ex., as pessoas têm dinheiro no banco. A realidade jurídica, porém, é que as pessoas têm apenas o direito de crédito sobre o banco a receber certa quantia. Ora, seria pouco compreensível dar maior protecção às notas que se tem no bolso do que àquelas que se tem direito a receber do banco. A desmaterialização dos bens económicos é mais ampla do que parece à primeira vista. Direitos absolutos como a propriedade industrial e o direito de autor têm por objecto coisas incorpóreas. São direitos economicamente muito diferentes da propriedade sobre coisas corpóreas e não deixam de ter protecção contra terceiros. Os próprios créditos são, cada vez mais, perspectivados enquanto bens susceptíveis de operações que, em tempos, eram reservadas a direitos absolutos como a propriedade. E isso não só nas previsões legais, mas também na vida económica. Pense-se na transmissibilidade das obrigações (cf. arts. 577.º e ss.), nos créditos como objecto de garantia de outros credores (cf. arts. 820.º CC, 856.º ss. CPC e 606.º ss.), em especial no penhor de créditos (679.º ss.), e no usufruto de créditos (cf. arts. 1463.º ss.). Estes instrumentos jurídicos e outros semelhantes são hoje de grande utilização na vida económica. Ora, se o crédito é visto como um bem (em rigor, um direito) equivalente a outros bens (como os objectos da propriedade), merecerá com certeza protecção equivalente.
27
- -
A doutrina tradicional, como veremos abaixo, invoca a liberdade de
concorrência como argumento contra a eficácia externa. Contudo, o que parece é que a liberdade de concorrência acaba quando se chega à decisão de contratar. A concorrência é concorrência até se chegar ao contrato. Nesse momento, elegeu-se o concorrente «vencedor» atribuindo-lhe uma
posição
juridicamente
protegida .
Intervenções posteriores dos «vencidos» serão ilícitas. - -
A interpretação do art. 483.º/1 no sentido de abranger apenas direitos
absolutos tem fundamento histórico, mas parece não ter mais nenhum fundamento. Designadamente, não decorre da sua letra. Mesmo em termos históricos, não parece que o legislador de 1966 tenha querido dar ao art. 483.º/1 o sentido restritivo que na Alemanha é dado ao seu equivalente. E este género de argumento histórico não é decisivo em termos de interpretação. O art. 483.º parece dever ser entendido como uma cláusula geral, que também protege os créditos. Esta questão, porém, é muito discutida. - -
O direito comparado aponta com alguma clareza no sentido de o
crédito ter protecção contra terceiros em sede de responsabilidade civil. Em França, em Itália, em Espanha e nos países do common law — pelo menos, no Reino Unido e nos Estados Unidos 24[24] — tem sido reconhecida a responsabilidade civil do terceiro que lese o crédito. Pelo contrário, a Alemanha mantém-se muito restritiva nesta matéria: a responsabilidade do terceiro ocorreria só nos termos do abuso do direito (ou melhor, na lei alemã, nos termos do § 826 BGB) ou da concorrência desleal. É minoritária, desde sempre, a doutrina que defende a sua responsabilização em termos gerais. O que se pode pensar é que, na Alemanha, o rigor da distinção entre direitos de crédito e direitos reais (e, afinal, da sistematização germânica do direito civil) se
24[24]
Lembre-se que não há um direito privado unitário, nem no Reino Unido, nem nos EUA. Nos EUA, há tantos sistemas jurídicos privados quantos os estados membros, ainda que se influenciem uns aos outros e que haja muita investigação jurídica no plano interestadual. No Reino Unido, há os direitos de Inglaterra e Gales, da Escócia e da Irlanda do Norte, além de alguns semi-autónomos. 28
terá cristalizado na doutrina com demasiada rigidez, impedindo os desenvolvimentos que, noutros países, surgiram com naturalidade. - -
Acrescente-se apenas o seguinte. Há casos consensuais em que um
terceiro causa o não cumprimento e não é responsável, mas essa ausência de responsabilidade decorre de regras gerais da responsabilidade civil. A teoria da eficácia externa não pretende, de modo nenhum, afastar os pressupostos gerais da responsabilidade civil. P. ex., suponha-se que um taxista transporta uma cantora para o local onde ela dará um concerto. A cantora, como o taxista sabe, está contratualmente obrigada perante o organizador do espectáculo a actuar nesse dia. No caminho, devido a negligência do taxista, há um acidente em que a cantora é ferida, ficando impedida de actuar. O taxista (ou a sua seguradora) é responsável pelos danos que a cantora sofra. Contudo, é também consensual que o taxista não é responsável perante o organizador do espectáculo, apesar de o taxista ter sido o causador da ausência da cantora. Esta solução decorre da falta de «nexo de causalidade suficiente», como veremos quando estudarmos essa matéria.
X – ARGUMENTOS EM FAVOR DA RELATIVIDADE Há alguns argumentos fortes em favor da relatividade das obrigações em termos de responsabilidade civil. Já sabemos que não se trata aqui de invocar o art. 406.º/2. Quanto à distinção entre créditos e direitos reais, voltaremos a ela abaixo. Mas os defensores da relatividade têm ainda alguns fundamentos substanciais para a sua tese, ou seja, para negarem a existência de um dever geral de respeito dos créditos. - -
Em primeiro lugar, repita-se que o devedor tem uma posição especial
enquanto obrigado ao cumprimento e responsável pelo incumprimento. Já 29
falámos disto. A teoria da eficácia externa não nega que o devedor é, em primeiro lugar, o responsável pelo não cumprimento. O devedor é quem tem o dever de cumprir. Terceiros que fossem responsáveis sê-lo-iam sempre numa posição algo «secundária», salvo nos casos menos frequentes de o não cumprimento ser imputável apenas a esses terceiros, mas não ao devedor. A posição primordial do devedor decorre de ser com ele apenas que o credor pode contar. E de ser apenas com o património do devedor que o credor pode contar em caso de não cumprimento. Era no devedor que o credor legitimamente podia confiar. Se o devedor indemnizar na íntegra o credor pelo seu não cumprimento, uma responsabilidade de terceiro perde toda a relevância. Mas, se o devedor não tem património suficiente para satisfazer o credor, o terceiro parece não dever ser prejudicado com isso, até porque incumbe ao credor o ónus de procurar devedores com património suficiente para responder pelas suas
dívidas. Esta posição de responsável primordial, nos seus vários aspectos, parece mostrar que — pelo menos nos casos em que tenha havido acordo entre o devedor e o terceiro com vista ao não cumprimento — só se justifica que o credor peça um indemnização ao devedor, e não ao terceiro. 25[25] Em suma, o facto indiscutível de o devedor ser o responsável primordial parece dever levar-nos a concluir que ele é o único responsável.
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A posição de obrigado primordial do devedor mostra-se ainda no facto
de caber ao devedor, e não a um terceiro, uma eventual negociação e acordo com o credor no sentido de revogar o contrato que o vinculava a cumprir. É possível que o terceiro contrate com o devedor que este não cumprirá o contrato inicial na suposição de que o devedor virá a chegar a acordo com o credor no sentido de se
desvincular desse contrato. Mais do que isso, o terceiro não terá de se preocupar em saber se o contrato inicial se irá manter ou não. E, se o devedor não conseguir
25[25]
Quem admitir a teoria da eficácia externa deveria também admitir, segundo parece, que o terceiro tivesse pleno direito de regresso contra o devedor. 30
convencer o credor a celebrar um contrato de revogação do contrato inicial, parece que o terceiro não poderá ser responsabilizado por isso. - -
A favor da relatividade das obrigações joga ainda o princípio da livre
concorrência económica. Um terceiro que colabore com o devedor no não cumprimento celebrando com ele um contrato incompatível com o primeiro parece estar simplesmente a agir como concorrente, num exercício normal da sua actividade económica. Por que é que os terceiros hão-de ficar limitados na sua actividade económica pelo facto de já antes alguém ter celebrado um contrato? 26[26] - -
Também pode invocar-se a favor da relatividade um argumento
histórico. As discussões de direito civil são particularmente sensíveis aos termos da sua história, sobretudo porque o nosso direito civil se vem desenvolvendo ao longo de dois milénios de maturação em que se estabelecem marcos culturais bastante sólidos e em que a generalidade dos problemas e teorias tiveram oportunidade de ser testados. É claro que a história não é tudo e que, p. ex., continuam a ser possíveis descobertas jurídicas, mas a «eficácia externa» das obrigações talvez não seja uma delas. Ora, nesses dois mil anos, a responsabilidade por violação de direitos absolutos sempre foi um dado adquirido. Pelo contrário, a ideia de responsabilizar um terceiro que colabore com o devedor no incumprimento ou que o induza a isso nunca teve consagração legal, jurisprudencial ou doutrinal clara. E, como é evidente, não é nova a possibilidade de um terceiro fazê-lo. Veja-se que, ao invés, a impugnação pauliana (arts. 610.º e ss.) é uma figura assente; ou seja, em termos históricos, parece que o credor merece protecção apenas no que respeita à garantia patrimonial do seu direito contra o devedor, e não quanto ao próprio objecto da prestação. - -
A teoria da eficácia externa invoca em seu favor o próprio conceito de
direito subjectivo. Contudo, o conceito de direito subjectivo não é suficientemente
26[26]
A este propósito, ainda se podem tentar invocar argumentos de eficiência económica , ao gosto da análise económica do direito, mas a verdade é que esses argumentos poderiam inclusive levar ao resultado oposto à relatividade. A questão não é clara. 31
delimitado para servir de apoio a essa teoria. Na verdade, direitos subjectivos são o direito de propriedade sobre uma esferográfica, o direito à vida, o direito de autor de uma obra literária, o direito de crédito a uma prestação.... Ora, a variedade substancial desta figura é amplíssima. Trata-se de situações jurídicas com conteúdo, dignidade, função e estrutura radicalmente diversas. Quer a tese da eficácia externa, quer a tese da relatividade são perfeitamente compatíveis com o conceito de direito subjectivo. - -
O art. 483.º estatui a responsabilidade do devedor quer em casos de
dolo, quer em casos de negligência. Contudo, os defensores da eficácia externa só a admitem quando o terceiro conheça 27[27] a existência do crédito, ou seja, quando haja dolo de sua parte. Isto demonstra que a teoria da eficácia externa introduz uma perturbação no direito da responsabilidade civil, ou seja, um conjunto de soluções dificilmente harmonizáveis com o sistema. - -
A invocação do princípio do neminem lædere é insuficiente como
apoio da teoria da eficácia externa. Por um lado, não é facilmente demonstrável que exista esse princípio, o que desde logo decorre da falta de consagração legal 28[28] e da circunstância de a causação de alguns danos ser um facto inerente a toda a vida em comum. Por outro lado, o princípio do neminem lædere não justificaria uma especial protecção do crédito, mas sim a protecção contra quaisquer danos, quer correspondessem à lesão dum crédito, quer não correspondessem à lesão de direito subjectivo nenhum («danos patrimoniais puros» no sentido mais restrito do termo 29[29]). 27[27]
Ou, no máximo, em casos de desconhecimento particularmente grave, devido a negligência grosseira. 28[28] Quando se diz que o neminem lædere estaria consagrado no art. 483.º/1, o que se pretende significar é que todos os danos causados ilicitamente deveriam ser indemnizados. Diferente é a afirmação do neminem lædere em sentido próprio, ou seja, a afirmação de que, em princípio, causar danos é ilícito. Por outras palavras: para alguns autores, o art. 483.º/1 estatui que a causação ilícita de danos cria a obrigação de indemnizar. É preciso, porém, que haja uma causação ilícita de danos. Diferente é dizer que toda a causação de danos a outrem é, em princípio, ilícita. 29[29] P. ex., se certo acto contribui para que diminuam as vendas futuras de certo comerciante, esse acto produz um dano patrimonial puro, já que, quando é praticado, o comerciante não tinha qualquer direito a receber os preços que lhe pagarão em cumprimento dessas compras e vendas. 32
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Por fim, veja-se que a teoria da eficácia externa parece conduzir a
alguns resultados absurdos. Suponha-se que A é dono de um automóvel e que B se obriga perante C a comprar o automóvel de A e a entregá-lo a C. De acordo com a teoria da eficácia externa, parece que, a partir do momento em que A soubesse da existência do acordo entre B e C, A ficaria impedido de, p. ex., desmontar o automóvel para utilizar algumas das peças e vender outras a terceiros, já que a desmontagem impossibilita o cumprimento da obrigação de B. 30[30] Diga-se em abono da verdade, porém, que este argumento contra a eficácia externa não procede. Estes «resultados absurdos» acontecem em casos em que o devedor se obriga a fazer algo que depende de terceiros. Ora, dada a regra da relatividade dos contratos (o art. 406.º), esses terceiros não estavam vinculados a permitir ao devedor o resultado pretendido. Do contrato não decorre nenhum direito subjectivo contra o terceiro. Assim, qualquer conduta desse terceiro visado ou doutros terceiros, na medida em que respeite apenas à esfera jurídica do terceiro visado (no exemplo dado, «A»), será sempre lícita. A teoria da eficácia externa não defende o contrário e, portanto, não é afectada por este género de exemplos. A teoria da eficácia externa só defende a existência dum dever geral de respeito dos créditos; não defende que a constituição de um crédito limite de alguma forma a intervenção de terceiros na esfera jurídica de terceiros.
XI – POSSIBILIDADE DE SOLUÇÕES INTERMÉDIAS A teoria tradicional da relatividade e a teoria da eficácia externa geral não oferecem as únicas soluções concebíveis para o problema da intervenção de terceiros sobre o crédito. São imagináveis várias soluções intermédias, designadamente, as soluções de que o terceiro só responderia em certos casos ou de que o terceiro só 30[30]
Um exemplo de THON apresentado por V AZ SERRA no estudo citado sobre esta questão. 33
responderia em termos diminuídos. Nalguns países, sobretudo no common law , sustenta-se ou sustentou-se que só seria responsável o terceiro que agisse ou «com uma intenção malévola» ou «de modo impróprio», o que, de toda a maneira, é bastante vago. 31[31] Soluções intermédias mais claras seriam, p. ex., (1) só responsabilizar o terceiro nos casos em que fosse notoriamente difícil para o credor encontrar um devedor substitutivo do primeiro, (2) só responsabilizar o terceiro que conhecesse ou devesse conhecer a insuficiência do património do devedor para indemnizar o credor, (3) só responsabilizar o terceiro nos casos em que o devedor não é responsável ou (4) responsabilizar o terceiro a título subsidiário, ou seja, atribuindo-lhe em regra uma posição equivalente à de fiador do devedor. Seriam imagináveis ainda outras soluções. Mas, p. ex., não se vê qualquer possibilidade de encontrar argumentos em favor da solução (1), e a solução (4) seria talvez defensável de iure condendo , mas não é fácil fundamentá-la no direito constituído. Pelo contrário, podem
convocar-se argumentos bastante razoáveis em favor das soluções (2) e (3) ou mesmo de uma junção das duas. Apresentam-se mais à frente alguns argumentos em favor da seguinte solução intermédia: um terceiro que conheça o direito de crédito e cause o seu incumprimento é obrigado a indemnizar o credor quando o devedor não satisfaça plenamente o direito do credor a uma indemnização e esta falta de indemnização seja imputável ao terceiro. Defende-se aqui, portanto, que um terceiro será responsável por lesão do direito de crédito quando se verifiquem os seguintes quatro pressupostos: a) conhecimento pelo terceiro da existência do crédito; b) nexo de causalidade suficiente, nos termos gerais da responsabilidade civil, entre a conduta do terceiro e o incumprimento do crédito; isso acontece, designadamente, quando o terceiro instiga o devedor a não cumprir ou quando o impede de cumprir; c) o devedor não indemniza (totalmente) o credor, o que acontece quando o devedor não tem culpa no não 31[31]
Embora leve a uma responsabilização do terceiro muito maior do que aquela que a doutrina tradicional pretende conceder através da figura do abuso do direito. 34
cumprimento (p. ex., se o terceiro, só por si, impedir o cumprimento) ou quando o património do devedor não é suficiente para ressarcir o credor; d) imputação ao terceiro da ausência de indemnização (total) pelo devedor, o que acontece sobretudo quando o terceiro, só por si, impossibilita conscientemente que o devedor cumpra e quando o terceiro sabe ou devia saber que o património do devedor não é suficiente para ressarcir o credor. Em suma, esta solução intermédia defende que um terceiro é responsável pelo não cumprimento quando, além do mais, lhe seja imputável a inexistência ou insuficiência da responsabilidade do devedor. Antes de apresentar os argumentos em seu favor, convém que os alunos tenham em mente que esta solução não é a solução do problema da eficácia externa das obrigações. É apenas mais uma hipótese, mas que parece tão razoável, à partida, como a teoria tradicional ou a teoria da eficácia externa genérica. O problema continua em aberto. Os argumentos são, então, os seguintes: - -
A posição primordial do devedor como responsável é reconhecida. O
terceiro surge como um responsável de segunda linha, na falta de responsabilidade (e pagamento) do devedor. - -
A tese intermédia concilia-se bem com o facto de, na lei expressa , a
tutela do credor perante terceiros estar estabelecida apenas quanto à garantia das obrigações (com os exemplos do 610.º e do direito da falência). Ou seja, tal como na impugnação pauliana, esta tese intermédia defende o credor apenas nos casos em que o devedor não o satisfaça através da responsabilidade patrimonial. - -
A tese intermédia concilia-se bem com a solução (unânime) para os
casos de «lesão da titularidade». É que, nesses casos, o problema parece ser justamente o de o terceiro lesar, só por si, o crédito, sem contributo do devedor e, portanto, sem que este indemnize.
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XII – SEGUNDA CONCLUSÃO O problema da eficácia externa das obrigações é um problema em aberto. Não há muitas soluções que devam ser aprendidas; há é argumentos que devem ser compreendidos. Por outro lado, os problemas concretos têm de ser resolvidos (vide , aliás, o art. 8.º/1). Quando estes problemas surgem a um tribunal, o tribunal tem de resolver. E se um destes problemas surgir num caso prático, o aluno tem de o resolver. Tem de concluir. E para concluir tem de argumentar. Quanto a mim, PFM, não estou certo de qual seja a solução correcta. Inclino-me, de qualquer maneira, para a teoria da eficácia externa genérica (havendo conhecimento pelo terceiro), que me parece oferecer os melhores argumentos. E não defenderia menos do que a tese intermédia. Mas a minha posição não é argumento, e é bom que os alunos se convençam disso.
XIII – EXCURSO: A DISTINÇÃO ENTRE DIREITOS DE CRÉDITO E DIREITOS REAIS Esta questão já não respeita ao problema da eficácia externa das obrigações, embora esteja com ela relacionada. É preciso ter em conta que mesmo quem defenda a eficácia externa continuará a reconhecer que existem importantes diferenças práticas ( i.e., de regime) entre os direitos de crédito e os direitos reais. Em síntese, são as seguintes: - -
Há meios de protecção (contra terceiros) específicos dos direitos reais
ou, pelo menos, dos direitos absolutos, sem paralelo no direito de crédito, como sejam a acção de reivindicação (cf. art. 1311.º), a acção negatória (sem artigo
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