Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Social
PEL AS M ARGENS DO ATL ÂNTI CO:
Um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século XIX) Versão final
Jonas Moreira Vargas
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso
Rio de Janeiro Setembro de 2013
PEL AS M ARG ENS DO ATL ÂNTI CO:
Um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século XIX)
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em História.
Banca Examinadora:
_____________________________________________ Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso
_______________________________ ______________ Prof.ª Dra. Maria Fernanda Vieira Martins (UFJF)
_______________________________ ____________ Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (UFF) _______________________________ ______________ Profª Dra. Helen Osório (UFRGS) _______________________________ ______________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ)
Rio de Janeiro Setembro de 2013
RESUMO
A presente tese tem como objetivo principal estudar as estratégias sociais e econômicas das mais ricas famílias dos proprietários das charqueadas de Pelotas, no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX. O charque (carne-seca) constituiu-se em alimento fundamental na dieta dos escravos das plantations açucareiras e cafeeiras e das populações pobres das cidades litorâneas do Brasil. Portanto, trata-se da análise de um grupo de empresários escravistas cuja produção era destinada principalmente ao abastecimento do mercado interno. Os proprietários das charqueadas, que também tinham nos couros, nos sebos e nas graxas importantes gêneros de exportação, foram os empresários mais ricos do sul do Brasil. A tese também estuda os mercados do gado, a expansão dos charqueadores em busca de fazendas de criação na fronteira rio-grandense e no próprio lado uruguaio, a sua participação nas guerras do Brasil com as repúblicas platinas e a sua atuação no comércio marítimo de longo curso. Tanto na primeira metade do oitocentos, quanto na segunda metade do mesmo, um grupo de famílias tendeu a reunir os principais recursos materiais e imateriais naquele contexto socioeconômico, vindo a aumentar o seu prestígio e compor, juntamente com outras famílias, a elite regional ou provincial. Esta elite charqueadora concentrava riqueza, poder político e status social e alguns de seus membros também alcançaram reconhecimento nacional. Neste sentido, ao dar este salto, estas poucas famílias tinham entre parentes que podiam tornar-se mediadores conectando a esferaosdeseus atuação localalguns com oindivíduos mundo exterior, seja economicamente, seja politicamente falando. Contudo, os charqueadores escravistas de Pelotas, reconhecidos na época como a aristocracia do sebo, não conseguiram resistir ao fim da escravidão, vivendo um período de auge de pouco mais de duas décadas, para sofrer uma derradeira crise nos anos 1880. Portanto, esta tese busca oferecer um modelo de análise das elites locais e provinciais que possa incentivar novos estudos regionais e que auxilie a compreender melhor os sistemas econômico e político no Brasil oitocentista.
ABSTRACT
This thesis aims to study the social and economic strategies of the richest families of charqueadas (livestock ranches) owners in Pelotas, Rio Grande do Sul, during the nineteenth century. The charqui (dried meat) is a very important food in the diet of slaves of sugarcane and coffee plantations and also of the poor people from the coastal cities of Brazil. Therefore, this work is an analysis of a group of slavery businessmen whose production was primarily intended to supply the internal market. The
charqueadas whobusinessmen also had leather, tallow and grease important to export, were owners, the richest in southern Brazil. Thisasthesis also products studies the cattle markets, the expansion of these farmers, who used to seek farms in the border of Rio Grande do Sul and in the Uruguayan side, their participation in wars between Brazil and Rio de la Plata Republics and their role in the long-distance maritime trade. Both in the first and second half of the nineteenth century a group of families tended to gather the main material and immaterial resources in that socioeconomic context which increased their prestige and composed, with other families, the regional or provincial elite. This elite of charqueadas concentrated wealth, political power and social status and therefore some of its members have also achieved national recognition. In this sense, by making this leap these few families had among their relatives some individuals who could become brokers by connecting the local sphere with the outside world, both economically and politically. However, proslavery farmers of Pelotas, who were recognized at the time as the aristocracy of tallow, could not resist to the end of slavery, living in a peak period of just over two decades and then undergoing a final crisis in the 1880s. Therefore, this thesis seeks to provide a model for local and provincial elite analysis which can encourage new regional studies and help to better understand the economic and political systems in the nineteenth century in Brazil.
AGRADECIMENTOS
Começo agradecendo ao professor João Fragoso pela orientação precisa, pela constante disponibilidade, pelo apoio e pela autonomia concedida durante estes quatro anos de Doutorado. Sou grato aos professores Antônio Carlos Jucá de Sampaio e Carlos Gabriel Guimarães pelas sugestões, indicações de fontes documentais e bibliográficas e por compartilharem seus conhecimentos comigo ao longo destes anos, além de comporem a Banca de qualificação e de defesa da tese. Também agradeço às professoras Maria Fernanda Martins e Helen Osório por fazerem parte desta mesma Banca e serem importantes interlocutoras deste trabalho. Sou muito grato ao professor Nuno Gonçalo Monteiro pela orientação durante o estágio doutoral no Instituto de Ciências Sociais, na Universidade de Lisboa, pelo empréstimo de bibliografia, indicação de fontes e pelos preciosos conselhos. Agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro a esta tese ao longo da pesquisa e à CAPES por disponibilizar a minha permanência em Lisboa, no período do estágio doutoral. No ano de 2009, quando morei no Rio de Janeiro, fiz amigos para toda a vida. Maria Fernanda Coutinho, Letícia Guterrez, Rafaela Balsinhas, Moacir Maia, Geórgia Tavares, Joana Medrado, Daniela Carvalho, Adriana Setemmy, Carlos Eduardo Costa, Renata Moreira, Mariana Guglielmo, Francisco Aimara Ribeiro (grande “Chico”), entre muitos outros, foram grandes companheiros e ainda são, pois sei que vamos sempre nos reencontrar. Deste mesmo grupo, Glaydson Matta e Marcelino Lyra tornaram-se grandes amigos, dividindo comigo seus conhecimentos etílicos, historiográficos e futebolísticos. Também desta turma agradeço imensamente ao Pablo Porfírio por ensinar a todos, e em particular a mim, o significado da palavra “amigo” e por tornar a
nossa morada no Rio, nos tempos da dona Diva, mais divertida! Naiara Damas me cativou desde a primeira vez que a conheci e, como se fosse minha irmã, a carrego no meu coração aonde quer que eu vá. Leandro Andrade e Siméia Lopes tornaram-se pessoas tão importantes na minha vida que foram meus companheiros até na travessia do Atlântico! Juntamente com Carlos Augusto Bastos, posso dizer que formamos uma
pequena família no Rio, em Lisboa e em qualquer lugar. Nada que eu escreva pode ser suficiente para dizer o quanto aprendi com todos vocês, o quanto me ajudaram nestes quatro anos e o quanto os estimo. Em Lisboa, conheci pessoas que tornaram minha estadia no Velho Mundo muito mais agradável. Yurgel e Mara Caldas tornaram-se grandes amigos. Juntamente com José Eudes Gomes, Cássia Silveira, Tiago Ribeiro, Sarita Motta, Daniela Gonçalves, Daniel “Zangado” Precioso, deixo o meu muito obrigado por aquela época. Durante estes quatro anos também pude compartilhar da companhia de outros grandes amigos como Marcelo Vianna, Camila Merg, Edison Garcia, Daniel Caon, Henrique Almeida, Mauro Messina, Ricardo de Lorenzo, Luísa Brasil, Eduardo Houston, Tales Albarello, entre outros. Letícia Marques, Carol Becker, Gislaine Borba, Marcos Luft também formaram outro grupo com quem vivenciei muitos momentos de alegria. Amigos e colegas estudiosos de Pelotas me ajudaram bastante compartilhando seus conhecimentos, indicando e emprestando bibliografia e fontes documentais, ou seja, auxiliaram um canoense a conhecer melhor a cidade das charqueadas. Sou muito grato aos historiadores Caiuá Al-Alam, Natália Pinto, Thiago Lemões, Cláudia Tomachewski, Róger Costa, Adhemar Lourenço, Mariana Gonçalves, Mateus Couto, Bruno Pessi e Dúnia Nunes. Entre os colegas historiadores e de outras áreas também sou muito grato a Fábio Pesavento, Manoela Pedroza, Leandro Oliveira, Márcio Kuniochi, Mariana Thompson Flores, Thales Pereira, Thiago Araújo, Vinícius Oliveira, José Iran Ribeiro, Paulo Moreira e, em especial, a Márcia Volkmer, Gabriel Berute e Carla Menegat, por me indicarem e passarem bibliografia e fontes documentais diversas durante esse tempo. Aos professores Roberto Guedes, Robert Slenes e Carla Almeida sou grato às sugestões e comentários realizados aos trabalhos que apresentei em diferentes eventos acadêmicos. Aproveito este espaço para agradecer aos funcionários e estagiários de todos os arquivos e bibliotecas em que pesquisei. Da turma de Santa Maria, também agradeço a Luís Augusto Farinatti que além de me despertar a atenção para a importância dos charqueadores tornou-se grande amigo e companheiro de pesquisas, possibilitando a minha aproximação com um outro grupo de historiadores. Entre os mesmos devo fazer referência a Marcelo Matheus, vulgo “português”,
sujeito extraordinário, que compartilhou comigo os seus conhecimentos
sobre escravidão e que, juntamente com a Clarissa, me deu morada por vários dias em Copacabana. Também sou grato à amizade de Leandro “Castelhano” Fontella, companheiro na conquista do Bi-campeonato da Libertadores, em 2010, pelas trocas de textos e pela indicação de fontes. Do mesmo grupo de amigos agradeço a Max Ribeiro e André Corrêa pelos debates historiográficos embalados pelo bom e velho Heavy Metal. A este mesmo grupo de pesquisadores também sou grato pela companhia nas longas viagens em busca de documentos e arquivos no lado de cá da fronteira (e de vinho barato no outro lado do rio Uruguai). Do nosso grupo de pesquisa na UFSM, também sou grato aos jovens Leandro Oliveira e Amanda Both, sempre solicitos e interessados em nos ajudar e contribuir com a sua empolgação. Na Unicentro, em Guarapuava, fiz amigos que marcaram minha vida nesta reta final da tese. Além da gremistíssima Dani Carvalho, compartilhei da companhia de Tiago Bonato, Thiago Reisdorfer, Marcelo Silva, Milton Stanczyk, Francisco Ferreira, Luciana e Jó Klanovicz. Sempre irei lembrar dos poucos dias que passei com vocês. Também sou muito grato à dona Maria, ao Sr. Luís, à Camilinha, à Cristiane e à Vovó (que hoje também são a minha família) pelos domingos, mates, churrascos e por terem tornado minha vida em Santa Maria mais feliz. Aos meus irmãos Juliano e Jean agradeço pelo simples fato de fazerem parte da minha vida e sempre me apoiarem. À minha mãe Sílvia e à minha avó Edi não agradeço apenas pelo carinho e apoio que tem me dado nos últimos anos, mas também pelo exemplo de força no dia-a-dia, pela capacidade de estarem sempre felizes e pela simplicidade com que levam suas vidas... Por último agradeço à Tassiana que esteve ao meu lado sempre, nos invernos e verões, nos dias de trabalho e de descanso, deste lado do Atlântico e do outro também. Desde o início foi minha companheira nas bibliotecas e nos arquivos, me desviou da tese nas melhores horas e mesmo sem querer me ensinar, me ensinou muita coisa a respeito da vida. Sua companhia trouxe a calma e o equilíbrio que eu precisei para cumprir esta etapa acadêmica e me serviu de inspiração para tudo… Esta tese também tem um pouco de ti.
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS ............................... .................. ................. ................ 11 LISTA DE TABELAS................ .................. ................ .................. ................ ........... 12 LISTA DE GRÁFICOS ................ .................. ................ ................. ................. ........ 14 LISTA DE FIGURAS ................ .................. ................ .................. ................ ........... 15 INTRODUÇÃO ................................ ................. ................. ................. .................. .... 16 CAPÍTULO 1 - A INSERÇÃO ECONÔMICA DAS CHARQUEADAS DE PELOTAS NO MERCADO INTERNO BRASILEIRO (1780- 1835) ................. .... 41 1.1 - A DIVERSIFICAÇÃO DAS CULTURAS E O REVIGORAMENTO DA AGRO-EXPORTAÇÃO NO COLONIAL TARDIO ............................................... 47 1.2 - A CRISE DAS OFICINAS DE CARNE-SECA DO NORDESTE E A ENTRADA DO RIO GRANDE DO SUL NO RAMO DOS NEGÓCIOS................ 59
CAPÍTULO 2 - A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS ESCRAVISTAS EM PELOTAS E NO RIO DA PRATA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS E MERCANTIS ATLÂNTICAS ............................... .................. ................. ................ 73 2.1 - O SEGREDO DAS CARNES : ESPECIALISTAS E ESTRANGEIROS NAS 78 PRIMEIRAS FÁBRICAS DO EXTREMO SUL DA AMÉRICA ............................ 2.2 - A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS PLATINOS E PELOTENSE A PARTIR DAS REDES INTRA-IMPERIAIS E TRANS-IMPERIAIS .................. 87
CAPÍTULO 3 - UMA ALDEIA ESCRAVISTA: A PRIMEIRA GERAÇÃO DE CHARQUEADORES E A SUA ELITE (1790-1835)............................... .............. 106 3.1 - UMA CIDADE NEGRA NO SUL DO BRASIL: TRÁFICO ATLÂNTICO, REDES MERCANTIS E A ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO OITOCENTOS....................................................... 113 3.2 - UMA ELITE LOCAL NO MUNDO ATLÂNTICO: FAMÍLIAS E REDES MERCANTIS ENTRE PELOTAS E OS DEMAIS PORTOS DO BRASIL .......... 130 3.3 – CAPITÃES, COMENDADORES E COMPADRES DE PARDOS: A ORGANIZAÇÃO SOCIAL NO EM TORNO DAS PRIMEIRAS CHARQUEADAS ................. .................. ................. ................. ................. ........... 135
CAPÍTULO 4 - UMA CIDADE ATLÂNTICA: A POPULAÇÃO PELOTENSE, SUA ESTRATIFICAÇÃO SOCIOECONÔMICA E A IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA DURANTE O AUGE E A DECADÊNCIA DAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS (1850-1890) ................. .................. ................ 154
4.1 - ESTRUTURA SOCIAL E ECONÔMICA DA SOCIEDADE PELOTENSE A PARTIR DA ANÁLISE DOS INVENTÁRIOSPOST-MORTEM................. ..... 155 4.2 - UMA CIDADE ATLÂNTICA: PERFIL SOCIO-OCUPACIONAL DE UM ESPAÇO URBANO REPLETO DE ESTRANGEIROS ........................................ 168 4.3 - OS MUITOS DEGRAUS DA PIRÂMIDE : POR UMA ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA DA POPULAÇÃO PELOTENSE ............................... 181
CAPÍTULO 5 - “A CONFUSÃO QUE, ENTRETANTO, É ORDEM”:AS UNIDADES PRODUTIVAS, O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS E O TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS....... 192 5.1 - POR DENTRO DA CHARQUEADA: AS ETAPAS DE PRODUÇÃO DO CHARQUE, DOS COUROS E DOS DEMAIS PRODUTOS ................................ 193 5.2 - O PERFIL DOS TRABALHADORES CATIVOS E SUA DISTRIBUIÇÃO NAS UNIDADES PRODUTIVAS ........................................................................ 206 5.3 - DAS CHARQUEADAS PARA OS CAFEZAIS? O TRÁFICO INTERPROVINCIAL E A CONCENTRAÇÃO DE ESCRAVOS NA ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE ....................................................................... 222
CAPÍTULO 6 - SENHOR E PATRÃO: OS CHARQUEADORES, A ADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS E O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS ................ .................. ................ .................. ................. .............. 238 6.1 - A CABEÇA DO SENHOR, AS MÃOS DO CAPATAZ: AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS NA SEGUNDA METADE DO OITOCENTOS ......................... 241 6.2 - APRENDENDO A SER SENHOR: A ADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS NA PRIMEIRA GERAÇÃO DE CHARQUEADORES ................... 263
CAPÍTULO 7 - OS MERCADOS DO GADO, A EXPANSÃO AGRÁRIA NA FRONTEIRA E A GUERRA COMO RECURSO ECONÔMICO ................. ..... 284 7.1 - NA TRILHA DOS LATIFÚNDIOS: A EXPANSÃO AGRÁRIA RUMO À REGIÃO DA FRONTEIRA COM O URUGUAI .............................................. 288 7.2 - PELAS MALHAS DO PARENTESCO: O MERCADO DO GADO PARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS ........................................................ 293 7.3 - ENTRE DEPUTADOS E GENERAIS OU DE COMO A GUERRA TAMBÉM SE CONSTITUIU EM UM RECURSO ECONÔMICO PARA OS CHARQUEADORES DE PELOTAS .................................................................... 305 7.4 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ANUNCIADA: A TABLADA PELOTENSE ................ ................. ................. ................. ................. .................. .. 321
CAPÍTULO 8 - AS CHARQUEADAS, OS MERCADOS ATLÂNTICOS E OS SEUS INTERMEDIÁRIOS ........................................................................ ... 326 8.1 - EM “BOCAS DESGRACIADAS”: CHARQUEADORES, SALADEIRISTAS E OS CIRCUÍTOS MERCANTIS ATLÂNTICOS DAS CARNES ....................... 327 8.2 - PELAS “MARGENS” DO CAPITALISMO: OS MERCADOS ATLÂNTICOS DOS COUROS E DO SAL .......................................................... 346 8.3 - NO RASTRO DOS “BROKERS”: O FUNCIONAMENTO DO MERCADO EM PELOTAS E OS CHARQUEADORES NO ALTO COMÉRCIO MARÍTIMO............................... ................. .................. ................. .. 353
CAPÍTULO 9 - OS BA RÕES DO CH ARQU E : PERFIL E NÍVEIS DE RIQUEZA, MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE E TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO ENTRE OS CHARQUEADORES ................ .................. ..... 372 9.1 - ALGUNS MUITO RICOS, OUTROS NEM TANTO: HIERARQUIAS DE RIQUEZA E INVESTIMENTOS ECONÔMICOS ENTRE OS CHARQUEADORES DE PELOTAS .................................................................... 372 9.2 - NOVILHOS QUE VIRAM DINHEIRO: OS RENDIMENTOS DA EMPRESA CHARQUEADORA ESCRAVISTA .................................................. 388 9.3 - “O MAIOR LEGADO QUE LHES DEIXO” : A TRANSMISSÃO DE PATRIMÔNIO ENTRE OS CHARQUEADORES ............................................... 399 9.4 - “ENGOLIDOS SEM PIEDADE”: OS CHARQUEADORES E A MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE .............................................................. 412
CAPÍTULO 10 - “A ARISTOCRACIA DO SEBO”: PODER POLÍTICO, NOBREZA, EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA NAS FAMÍLIAS DA ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE ................ .................. ................ ......... 420 10.1 - EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA ENTRE AS FAMÍLIAS CHARQUEADORAS DE PELOTAS ................................................................... 422 10.2 – GOVERNANDO A SOCIEDADE: OS CHARQUEADORES NA ELITE POLÍTICA LOCAL E REGIONAL ...................................................................... 435 10.3 - O IMPÉRIO DOS MEDIADORES: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DOPOLÍTICO ESTADO MONÁRQUICO IMPERIAL E DO...................... 448 FUNCIONAMENTO DO SISTEMA
CONCLUSÃO............................ ................. ................. .................. ................. ....... 468 ANEXOS ................ .................. ................. ................. ................ .................. .......... 478 FONTES PRIMÁRIAS ................. .................. ................ ................. ................. ...... 480 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................ ................. ................. ................. 483
LISTA DE ABREVIATURAS
ABP
Arquivo do Bispado de Pelotas
–
ACRJ AHRS AHI
–
Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
–
ANRJ
–
APERS
BPP CV
–
–
–
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
–
ANTT
BNRJ
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
Arquivo Histórico do Itamarati
–
AHU
Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro
–
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa)
–
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Biblioteca Pública Pelotense
Coleção Varela
MCSHJC MJN
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul
–
–
Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa
Museu João Nunes (São Gabriel)
11
LISTA DE TABELAS
Tabela 1.1
–
População livre e escrava por capitanias (1819) ..................................... 62
Tabela 3.1
–
Estatísticas populacionais em Pelotas (1814
–
1858) ................. ........... 114
Tabela 3.2 - Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833 ............... ................ .................. ................. ................. ................. 116 Tabela 3.3 Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833 (População dividida por nacionalidade, cor, condição jurídica, freguesia, distritos e fogos) ............... ................. ................. .................. ................. .. 117 –
Tabela 3.4 Comparação da população escrava, razão de africanidade e sexo de Pelotas com outras regiões de plantations brasileiras (1829-1840). ....................... 122 –
Tabela 3.5 Estrutura de posse de escravos em Pelotas a partir dos inventários post-mortem (1800-1835)..... ................ .................. ................. ................. ................. 115 –
Tabela 4.1 - Distribuição das riquezas inventariadas por faixas de fortuna (1850-1890) (em libras esterlinas) ................ .................. ................. ................. ........ 157 Tabela 4.2
–
Perfil do patrimônio dos inventariados em Pelotas (1850-1890) (%) .... 161
Tabela 4.3 Concentração dos rebanhos vacuns nos inventários e posse de fazendas fora de Pelotas (157) ............... ................. ................. .................. ................ 165 –
Tabela 4.4 Concentração dos plantéis de escravos entre os inventariados (1850-1885) ............... .................. ................ .................. ................. ................. ........ 167 –
Tabela 4.5 Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras esterlinas (%) ................. ................. ................. .................. ................ .................. ..... 185 –
Tabela 5.1
–
Número de escravos e razão de sexo por período (1831-1885) .............. 217
Tabela 5.2
–
Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885) .......... 218
Tabela 5.3
–
Africanidade e sexo nos plantéis dos charqueadores (1831-1885) .......... 219
Tabela 5.4
–
Africanidade e sexo entre escravos adultos e idosos (1831-1885) .......... 220
Tabela 5.5 Concentração de riqueza entre os charqueadores de Pelotas a partir dos inventários post-mortem, em libras esterlinas (%) ...................................... 225 –
Tabela 5.6
–
Escravos negociados por escritura em Pelotas (1850-1884) ................... 227
12
Tabela 7.1 Hierarquia de fortunas, rebanhos vacuns, títulos de nobreza e altos cargos políticos a partir da análise dos inventários de 51 charqueadores (1845-1900)/ em libras esterlinas e percentuais (%) .................................................. 303 –
–
Tabela 8.1 - Gado bovino abatido nas charqueadas e saladeros da América do Sul (1857-1862) ................ .................. ................ ................. ................. .................. ........ 335 Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas) por períodos (359) ..................................................................................................... 373 Tabela 9.2 - Faixas de fortuna em libras esterlinas (1810-1900) ............................... 377 Tabela 9.3 Composição do patrimônio dos charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras (%) ................ ................. ................. .................. ................. .. 378 –
Tabela 9.4 Estimativa média de rendimentos em uma safra com abate de 20 mil novilhos (década de 1860) ................. ................. ................. .................. ................. .. 396 –
Tabela 9.5 Relação entre riqueza, posse de estâncias e longevidade da família nos negócios com o charque (1810-1900) ......................... ................. ................. ...... 405 –
Tabela 10.1 Relação entre Riqueza, Nobiliarquia, Alta política e Educação entre as famílias charqueadoras de Pelotas (1845-1900) - em libras esterlinas .......... 441 –
13
LISTA DE GRÁFICOS E DIAGRAMAS
Gráfico 3.1 Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas (1790-1835) ................ .................. ................ ................. ................. .................. ........ 138 –
Gráfico 3.2 Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas com as classes subalternas a partir dos registros de batismo de livres (1812-1825) ................ 146 –
Gráfico 4.1 Distribuição do número de inventários em urbanos e rurais Pelotas (1850-1890) ................ .................. ................ ................. ................. .................. ........ 159 –
Gráfico 4.2
–
Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885)
–
em mil réis ....... 166
Gráfico 5.1 Preço dos escravos adultos (de 15 a 50 anos) e sadios nas charqueadas de Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas) ................ .................. ................ ......... 216 –
Gráfico 6.1 Processos criminais envolvendo escravos de charqueadores pelotenses (1830-1888) ................ .................. ................ ................. ................. .................. ........ 254 –
Gráfico 7.1
–
Número de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890)
285
…..
Gráfico 7.2 - Presença de propriedades rurais pertencentes a charqueadores de Pelotas nos inventários e nos livros de notas (1820-1900) ..................................................... 291 Gráfico 8.1 Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890 (em arrobas)........................ .................. ................. ................. ................. ................. 328 –
Gráfico 8.2 - Preço da arroba de charque exportado em réis ($) ................................. 334 Gráfico 8.3 Charque platino e rio-grandense comprados pelo Rio de Janeiro e os totais exportados pelo Rio Grande do Sul (1850-1886) (em toneladas) ................... 343 –
–
Gráfico 8.4 Unidades de couro e arrobas de charque exportadas pelo Rio Grande do Sul (1845-1889) ......................... ................. ................. ................. ................. ...... 347 –
Gráfico 8.5
–
Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) .......................... 348
Diagrama 8.1 Vínculos de parentesco entre os 12 charqueadores mais ricos de Pelotas (1850-1900) .................... ................. ................. ................. .............. 368 –
14
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Localização de Pelotas no espaço fronteiriço do cone sul americano (século XIX) ................. ................. ................. .................. ................ .................. ....... 19 –
Figura 3.1 Sesmaria do Monte Bonito e Sesmaria de Pelotas (início do século XIX) ................. .................. ................ .................. ................ ......... 109 –
–
Figura 4.1 Mapa da Província do Rio Grande do Sul (1875) .................................. 163 Figura 5.1 - Abate em campo aberto ................ .................. ................ .................. ..... 198 Figura 5.2 - Abate na mangueira realizado pelo capataz ........................................... 198 Figura 5.3 - Escravos carregando a rês para a cancha ............................................... 199 Figura 5.4 - Empilhamento das mantas de charque nos saladeros platinos ................ 199 Figura 5.5 - Mantas de charque nos varais (século XX) ............................................ 199 Figura 5.6 - Processo de salgamento dos couros nos galpões de um saladero (século XIX) ................. ................. ................. .................. ................ .................. ..... 200 Figura 5.7 - Representação artística de uma charqueada em Pelotas (1825) por Jean Baptiste Debret .......................................................................................... 200 Figura 5.8 - Ambiente de trabalho em um saladero platino no século XIX ................ 200 Figura 7.1 Regiões alvo dos investimentos realizados pelos charqueadores em estâncias e campos de criação fora de Pelotas (1810-1900) ....................................... 292 –
Figura 8.1 Figura 11
–
–
Litoral sul e fronteira fluvial entre Brasil e Uruguai ............................... 331
Charqueadas em funcionamento no Rio Grande do Sul (1920) ............... 469
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INTRODUÇÃO No dia 30 de outubro de 1860, o charqueador Domingos José de Almeida escreveu ao tenente-coronel Manuel Antunes da Porciúncula lamentando a morte do amigo Antônio Vicente da Fontoura – chefe do Partido Liberal em Cachoeira, no Rio Grande do Sul. Fontoura havia sido assassinado durante as eleições gerais daquele mesmo ano, num processo eleitoral que causou a morte de muitos outros votantes no restante do Brasil. 1 Num tom irônico, Domingos definia o que havia ocasionado tantos crimes: Nas províncias do Norte jorrou o sangue com profusão, e nada menos era de esperar-se com a muito bem pensada reforma eleitoral, que nulificando influências legítimas, entregou esse tão melindroso assunto à polícia e à Guarda Nacional para criar caciquinhos locais, dividir e o Governo audaz nomear comissários ad hoc com pomposo título de representantes da Nação: tudo corre as mil maravilhas.2
A Lei eleitoral de 1855, também conhecida como a “lei dos círculos”, foi responsável por implementar o voto distrital, eliminando o antigo sistema de candidatos em lista, o que favoreceu, assim, a eleição de líderes paroquiais em detrimento de indivíduos com influência política de âmbito mais regional.3 No entanto, para Domingos, os caciques locais que agora possuíam mais chances de se elegerem deveriam reservar-se ao seu espaço de atuação local e não se envolver em assuntos reservados às “influências legítimas” da província. Domingos já havia sido deputado provincial em 1835. Chefe liberal em Pelotas, a leitura de sua correspondência revela que ele mantinha profundo contato com outros deputados provinciais e gerais, além dos presidentes de província, demonstrando que era um líder político conhecido e influente.4 Numa carta escrita a outro amigo, em setembro de 1859, Domingos rememorava 1
FREITAS, Bruno C. N. Pedras no Telhado: Política e Sociedade nas eleições distritais de 1860. In: Anais do XXV Encontro Nacional de História. Fortaleza: Anpuh, 2009. Ver também BARBOSA, Silvana. A política progressista: Parlamento, sistema representativo e partidos nos anos 1860. In: CARVALHO, José Murilo; NEVES, Lúcia M. B. Pereira das. Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e l iberdade. Rio de 2Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 293-324. Carta de Domingos J. de Almeida para Manuel Antunes da Porciúncula, 30.10.1860 ( Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.Porto Alegre, v. 3, 1978, CV-751). Grifos meus. 3 De fato, grandes políticos foram derrubados de suas posições de prestígio ao perderem as eleições nos seus respectivos distritos para líderes locais sem grande expressão. Em 1860, uma nova reforma eleitoral diminuiu o número de distritos criando círculos eleitorais com três deputados ao invés de apenas um (CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 176-180). 4 A coleção de cartas (pertencentes à Coleção Varela) foi publicada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e reúne missivas escritas entre as décadas de 1830 e 1860. A grande maioria delas abarca o período da Revolta Farroupilha (1835-1845), quando Domingos ocupou importantes cargos políticos na República Riograndense (Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.Porto Alegre, v. 3, 1978). 16
o seu apoio à Independência “que com penoso s nossa Pátria”.
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sacrifícios ajudei a conquistar em 1822 para
Portanto, na lógica de Domingos, quando o Império quisesse negociar o apoio
das elites no sul do país para a realização de algum projeto era a homens como ele que deveria se dirigir e não às notabilidades de aldeia. Mulato e filho de moleiros, Domingos era natural de Diamantina, em Minas Gerais. 6 Residindo na Corte, partiu para o Rio Grande do Sul com o objetivo de comprar uma tropa de mulas e vendê-la nas feiras de Sorocaba. Contudo, conforme ele próprio, acabou gostando da nova terra e decidiu estabelecer-se em Pelotas. 7 Comerciante ativo, Domingos logo contraiu matrimônio com Bernardina Barcellos, moça pertencente a uma das famílias mais ricas e poderosas de Pelotas e que era proprietária de muitas charqueadas. Não demorou muito o próprio Domingos arranchou-se nas terras do sogro e ergueu a sua própria fábrica de carneseca (charque). Concentrando comendas honoríficas e patentes de capitão de ordenanças, os laços parentais com os Rodrigues Barcellos lhe ofereceram um prestígio social e político enorme.8 Na nova ordem imperial, esta família ainda teve 3 deputados provinciais, 1 deputado geral e 2 presidentes de província. Portanto, a trajetória de Domingos era a de um migrante de modestas posses que, depois de inserir-se na elite local por meio de um bom casamento e pelos seus negócios, não se via mais como os outros “caciquinhos locais” que insistiam em querer influir na vida política e econômica regional, representando-a na Corte. Usando uma expressão de Carlos Bacellar, pode-se dizer que Domingos, ao agir desta forma, começava a adquirir “consciência de elite”.
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Mas não era de qualquer elite. Era de uma elite que sentia-se como legítima em
representar a província fora dela. Uma elite que ultrapassava a simples visão de mundo localista. Em suma, era uma elite regional.10 Mas Domingos e seus parentes não estavam
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Carta de Domingos para Bernardo Pires. Pelotas 17.09.1859 ( Anais do AHRS, v. 3, 1978, CV-673). MARQUES, Letícia R. Domingos José de Almeida e José Mariano de Matos: A questão dos negros e mulatos na Revolução Farroupilha (1835-1845). Anais do XXVI Encontro Nacional de História . São Paulo, USP, p. 6
1-15. Na realidade não existe um consenso entre os autores a respeito da cor da pele de Domingos. Para considerações sobre a mesma questão e uma posição mais inclinada a considerar que o charqueador era mulato, ver o mencionado texto de MARQUES, Letícia. Op.cit. 7 Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão. Pelotas, 07.12.1859. ( Anais do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, CV-686). 8 MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX).Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2009. 9 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhores de engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997, p. 177-186. 10 DOLHNIKOFF, Miriam. Elites regionais e a construção do Estado Nacional. In: In: JANCSÓ, István. Brasil: a construção do Estado e da Nação. São Paulo/ Ijuí: Hucitec/ Unijuí, 2003; VARGAS, Jonas M. Entre a 17
sozinhos. Neste sentido, os indivíduos e famílias que compartilhavam de uma postura semelhante viam-se como os mais capazes em intermediar as relações entre o governo central e a província, incluindo no interior desta última os inúmeros chefes locais. Contudo, tais negociações eram bastante complexas e estavam permeadas por uma relação de cooperação e conflito, uma vez que os líderes provinciais (elite regional) precisavam dos chefes de aldeia (elites locais) para fortalecer suas redes sociais e clientelares e vencer as eleições para os seus partidos políticos.11 O sentimento de superioridade compartilhado por Domingos, pelos Rodrigues Barcellos e outros charqueadores, comerciantes e estancieiros que compunham a elite regional não decorria apenas da sua posição política e de seu prestígio social. A “consciência de elite” também era consequência da riqueza alcançada pelos mesmos, entre os quais estavam os charqueadores pelotenses – objeto principal desta tese. Estes empresários escravistas foram os proprietários mais ricos do Rio Grande do Sul no século XIX. Concentrando milhares de cativos e abatendo milhões de bovinos, a cidade de Pelotas destacou-se como o grande complexo charqueador do Império do Brasil (Mapa 1). O charque e os couros foram os principais produtos da pauta das exportações rio-grandenses durante quase todo o século XIX. O primeiro deles foi fundamental na alimentação dos escravos das plantations brasileiras, integrando os mercados do sul com os do sudeste e nordeste do Brasil, além de incluir menores remessas para Cuba e Lisboa. O segundo foi um artigo demandado em larga escala pelas indústrias europeias e norte-americanas e conectava o Rio Grande mais fortemente ao mercado internacional. No Rio Grande do Sul, as primeiras charqueadas instaladas nos fins do século XVIII surgiram da necessidade de suprir estes novos mercados. Contudo, ela inseria-se numa conjuntura muito mais ampla e que caracterizou a economia atlântica durante o período colonial tardio.12 A notável ampliação do número de plantations açucareiras tanto no sudeste e no nordeste brasileiro, quanto no Caribe, provocou a entrada de centenas de milhares de escravos africanos nas mencionadas plantações criando uma elevada demanda por alimentos. Neste contexto, não apenas Pelotas como também Montevideu e Buenos Aires, destacaram-se paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: UFSM/Anpuh-RS, 2010. 11 GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX.Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; VARGAS, Jonas. Op. cit. 12 Para uma análise da economia rio-grandense neste período ver OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Uma outra interpretação a respeito do mesmo período pode ser vista em MENZ, Maximiliano. Entre impérios: formação do Rio Grande na crise do sistema colonial português (1777-1822). São Paulo: Alameda, 2009. 18
como os principais centros produtores de carne seca e salgada da América do Sul. 13 Portanto, a formação de tais complexos fabris (Pelotas e Montevideu nos anos 1780 e Buenos Aires depois de 1810) fizeram parte de um mesmo processo onde o tráfico atlântico, coordenado principalmente pelos comerciantes e grosso trato do Rio de Janeiro, foi estruturalmente importante.14
Mapa 1 – Localização de Pelotas no espaço fronteiriço do cone sul americano (século XIX)
Fonte: BELL, Stephen. Early industrialization in the Sou th Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical Geography , 19, 4 (1993), p. 400.
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Desde já é importante considerar que na maioria das fontes, “carne-seca”, “charque” e “tasajo” (este último na região do rio da Prata) são tratados como sinônimos, enquanto a “carne salgada” era um termo destinado para as carnes preparadas e conservadas em barris com salmoura – técnica desenvolvida pelos irlandeses e que será
explicitada no capítulo 2. 14 Sobre a importância do tráfico de escravos para o Rio da Prata ver BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 1835-1855. Montevideo, Ed. Pulmón, 2004; KÜHN, Fábio. Clandestino e ilegal: o contrabando de escravos na Colônia do Sacramento (1740-1777). In: XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012, p. 179-206; ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-História UFF, 2012. Tratarei deste tema no capítulo 2. 19
É neste sentido que Pelotas inseria-se no tasajo trail atlântico estudado por Andrew Sluyter.15 Para o autor, esta rota mercantil de charque que ligava o Rio da Prata à Cuba conectava duas regiões e duas atividades produtivas na qual a escravidão era fundamental, criando um circuito mercantil lucrativo no qual a mercadoria principal, o tasajo, era fabricado “por” e “para”
trabalhadores cativos. Além disso, Mandelblatt insistiu para que se deixe de
ver os escravos no mundo atlântico somente como trabalhadores e como mercadorias, passando a pensá-los também como consumidores.16 Seguindo estas premissas, pode-se perceber a ligação do charque com a manutenção do tráfico atlântico e da escravidão a partir de uma tripla relação. Ao mesmo tempo em que a mão de obra cativa foi essencial para a montagem das charqueadas esaladeros no Rio da Prata e em Pelotas (aumentando a demanda por escravos na região), estas fábricas abasteciam as plantations atlânticas com um alimento rico em proteínas e de baixo preço. Além disso, o produto também acompanhava as tripulações dos negreiros que cruzavam o Atlântico garantindo os suprimentos dos escravos no retorno de suas viagens. Neste sentido, Sluyter afirmou que o tasajo trail ajudou a sustentar os mais proeminentes fluxos mercantis de açúcar e escravos que definiram a própria compreensão do mundo atlântico.17 Em Pelotas, as charqueadas foram fruto de investimentos de comerciantes que viram uma oportunidade de obter lucros com a expansão deste comércio durante o colonial tardio. Além do mais, a crise da produção de charque no nordeste da América portuguesa, ocasionada pelas duras secas nos anos 1770 e 1790, abria um espaço no mercado para novos investidores, como demonstrou Helen Osório em trabalho pioneiro. 18 Portanto, ao contrário dos comerciantes de grosso trato estudados por João Fragoso, que investiram sua riqueza em 19 terras e escravos tornando-se senhores de engenho no agro fluminense , o capital aplicado
nas charqueadas não possuía interesses voltados para a busca de prestígio social, mas sim, o lucro oriundo das atividades mercantis. Nesta conjuntura, Pelotas atraiu comerciantes de 15
SLUYTER, Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1,
2010, p. 98-120. Como será visto ao longo desta tese, Pelotas foi o principal polo charqueador da província, o que não significa que o charque não fosse fabricado em outras localidades do Rio Grande do Sul. Se antes da Guerra dos Farrapos as charqueadas de Porto Alegre e das margens do Rio Jacuí deviam fabricar pouco mais de 25% do charque rio-grandense, é provável que nos anos 1860 e 1870 Pelotas respondesse por quase 90% do charque fabricado na província. Pa uma análise das outras regiões charqueadoras ver MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque.Porto Alegre: Edigal, 1987. 16 MANDELBLATT, Bertie. A Transatlantic Commodity: Irish Salt Beef in the French Atlantic World. History Workshop Journal, n. 63, 2007, p. 21. 17 SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 101. 18 OSÓRIO, Helen. Op. cit. 19 FRAGOSO, João L. R.. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Ja neiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 143-177. 20
diversos lugares e as inversões de capital nestas fábricas exigiu a entrada de centenas de escravos africanos, tornando-a uma cidade negra. Num censo de 1833, por exemplo, 51% de sua população era escrava (mais de 2/3 deles eram africanos), sendo que somente 36,1% dos seus habitantes foram classificados como brancos.20 Após a década de 1820, quando a experiência com a triticultura açoriana entrou em declínio, a hegemonia dos pecuaristas e charqueadores consolidou-se de vez. Neste contexto, os empresários pelotenses constituíram-se nos principais produtores de alimentos do sul do Império. Segundo João Fragoso, os complexos agropecuários voltados para o abastecimento do mercado interno, como as charqueadas no Sul, as lavouras de subsistência no Rio de Janeiro e São Paulo e a produção agropecuária em Minas, formavam um “mosaico de formas
de produção não-capitalistas”, cuja significativa capacidade de acumulação endógena, tornava a economia destas regiões fundamentais na reprodução dasplantations e do próprio sistema escravista agro-exportador. O abastecimento do Rio de Janeiro “implicava a criação de uma ampla rede intracolonial” na qual o Rio Grande inseria -se e “que vem
autarquia da plantation”.
21
a negar a ideia de
Além do sudeste, o charque pelotense também abastecia a
escravaria e a população pobre de Pernambuco e Bahia – regiões que, somadas, perfaziam mais da metade das exportações rio-grandenses ao longo de todo o período. Portanto, este circuito comercial fez surgir distintas elites mercantis e agrárias nas diferentes regiões do Brasil. No Rio Grande do Sul, junto aos comerciantes de grosso trato e aos estancieiros da região da campanha, os charqueadores pelotenses ocuparam o topo da hierarquia social. 22 No entanto, se comparado ao número de criadores de gado e ao de comerciantes existentes na província, os charqueadores pelotenses formavam um diminuto grupo. Ao longo do século XIX, o número de charqueadas a funcionar em Pelotas, não ao mesmo tempo, foi de 43 estabelecimentos.23 Se em 1822, havia 22 charqueadas no município, em 1850, este número atingia a casa dos 30, em 1873, chegava a 35 e em 1880, 38. As 11 charqueadas de 1900 indicam que o declínio do setor coincidiu com o fim da escravidão e a queda da monarquia – cujos charqueadores, nesta época uma aristocracia nobilitada e que, 20
Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém literário, 1994, p. 98). 21 FRAGOSO, João L. R.. Op. cit. 1998, p. 143-177. 22 Sobre os comerciantes ver BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011. Sobre os estancieiros ver FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira meridional do Brasil. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010. Para ambos os grupos no período colonial ver OSÓRIO, Helen. Op. cit. 23 MARQUES, Alvarino da Fontoura. Op. cit., p. 99-102. 21
como se verá, concentrava significativo poder político e econômico, também funcionaram como uma espécie de sustentáculo do Império luso-brasileiro na fronteira sul. A valorização do estudo das atividades econômicas não exportadoras teve importantes contribuições nas pesquisas de Maria Yedda Linhares e Ciro Flamarion Cardoso. 24 Ao criticarem a “visão plantacionista” da história brasileira, os autores estimularam uma nova
geração de pesquisadores que se voltaram para a análise das estruturas econômicas internas daquela sociedade. Neste sentido, Linhares defendeu o desenvolvimento de um programa de pesquisa “com um aprofundamento sistemático das análises demográficas e a multiplicação
dos levantamentos regionalizados, alinhando-se, para tanto, fragmentos de fontes e ‘inventando’ outras”. Tratava-se, portanto, de “reconstruir a hist ória
agrária – como história
econômica e social do mundo rural, sintetizada nas suas diferentes paisagens agrárias”.
25
Seguindo esta linha de orientação, nos anos 1980 e 1990, novos trabalhos vieram contribuir para um melhor conhecimento da paisagem agrária brasileira, da escravidão, da economia de abastecimento e do próprio mercado interno tanto no século XVIII quanto no XIX.26 Utilizando-se de uma metodologia serial e assentados sobre vasta gama de fontes primárias manuscritas, estes estudos inspiravam-se na história regional francesa, que tinham como expoentes Ernest Labrousse, Pierre Goubert e Emmanuel Le Roy Ladurie, por exemplo.27 Tais estudos demonstraram, entre outros aspectos, a importância das produções destinadas ao mercado interno, a disseminação da escravidão para muito além da 24
Ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História do Abastecimento: uma problemática em questão (1530-1918). Brasília: Binagre, 1979; LINHARES, Maria Yedda. Subsistência e sistemas agrários na Colônia: uma discussão. In: Estudos Econômicos. N. 13, 1983, p. 745-762; CARDOSO, Ciro F. O trabalho na Colônia. In: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 69-88. CARDOSO, Ciro F. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979. 25 LINHARES, Maria Yedda. A pecuária e a produção de alimentos na colônia. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (Org.). História Econômica do Período Colonial. São Paulo: ABPHE/FAPESP, 1996, p.112. 26 Como, por exemplo, FRAGOSO, João. Op. cit.; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992; MOTTA, Márcia M. M.. Pelas Bandas d’Além: fronteira fechada e arrendatários-escravistas em uma região policultora (1800-1888). Niterói: ICHF/UFF, 1989; SAMPAIO, Antônio C. Jucá. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução econômica na produção de alimentos (1850-1888). Rio de Janeiro: UFF, Dissertação de Mestrado, 1994; CASTRO, Hebe M. da C. Mattos de. A Margem da História: homens livres pobres e pequena produção na crise do trabalho escravo. Niterói: ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1985; FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goitacazes (1850-1920). Niterói: ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1986; BARICKMAN, Bert. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 27 Nos anos 1970, o diálogo com a historiografia francesa também teve importante contribuição na área da demografia histórica, o que favoreceu um maior conhecimento das estruturas econômicas internas. Ver, por exemplo, MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo: Pioneira/USP, 1973. Para um balanço historiográfico ver BACELLAR, Carlos; BASSANEZI, Maria Sílvia; SCOTT, Ana Sílvia V. Quarenta anos de demografia histórica. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 22, n. 2, jul./ dez., 2005, p. 339-350. 22
agroexportação, a diversidade dos grupos sociais existentes em espaços fora dasplantations, a existência de uma elite de comerciantes de grosso trato no Rio de Janeiro e a reiteração de uma hierarquia social excludente nas mais distintas realidades históricas. Pode-se dizer, portanto, que houve um notável redimensionamento da importância do mercado interno, do papel das variadas realidades regionais, de suas produções e relações sociais para o entendimento da realidade sócio-econômica brasileira. Desde que estas pesquisas tiveram início nos anos 1970, não existe um trabalho que tenha investigado de maneira mais aprofundada o papel dos charqueadores e de suas famílias dentro deste circuito mercantil de acumulação endógena e das transformações sofridas por esta elite ao longo do oitocentos. Para além dos conhecidos relatos de viajantes e das histórias da cidade de Pelotas escritas na passagem do século XIX para o XX, a obra de Fernando Henrique Cardoso, anterior às mencionadas pesquisas indicadas anteriormente, surgiu como uma primeira incursão mais sistemática ao estudo da sociedade e da economia da província, apresentando uma atenção especial às charqueadas pelotenses. 28 A principal contribuição do autor foi demonstrar o equívoco das interpretações até então vigentes sobre a pouca importância da escravidão na sociedade rio-grandense, assim como a ide ia de “democracia racial” que vigoraria nas relações sociais entre senhores e cativos .
Inaugurando um debate acadêmico, sob a inspiração dos relatos de Louis Couty (1881), Cardoso defendeu que as charqueadas entraram em crise devido à irracionalidade econômica dos charqueadores que mantiveram o trabalho escravo em seus estabelecimentos enquanto os saladeiristas platinos se utilizavam de trabalhadores assalariados. Desta forma, a análise da escravidão nas charqueadas serviu para sustentar parte de suas teses. A influência do trabalho de Cardoso entre os historiadores rio-grandenses das décadas de 1970 e 1980 foi marcante, tendo o sociólogo, por meio de seu livro, pautado os interesses de pesquisa e o próprio debate nas décadas seguintes. Dialogando com o autor, Berenice Corsetti deu prosseguimento aos estudos referentes à produção do charque. Utilizando fontes documentais inovadoras para a época, como os inventáriospost-mortem, Corsetti buscou relativizar algumas teses de Cardoso e comprovar outras empiricamente. Sua principal contribuição foi demonstrar que, ao contrário do que Cardoso defendia, os charqueadores haviam investido capitais em inovações técnicas e que também realizavam uma divisão do
28
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 23
trabalho escravo no interior das fábricas. 29 No entanto, a pesquisa de Corsetti diz mais sobre o comércio e a produção do charque do que sobre os próprios charqueadores, que interesses os dividiam e que tipo de estratégias sociais os mesmos realizavam diante da instabilidade econômica que periodicamente afetava o setor. Contemporânea a Corsetti, a obra de Mário Maestri Filho dialoga menos com Cardoso, mas mantém a mesma preocupação voltada em demonstrar a significativa importância do trabalho escravo na economia rio-grandense. Pesquisando principalmente fontes impressas, Maestri busca investigar os diferentes tipos de resistência escrava e as violências a que os mesmos estavam sujeitos no trabalho das charqueadas. 30 Nos anos 1990, o autor orientou outras importantes pesquisas que buscaram aprofundar o uso da mão de obra cativa nos mesmos estabelecimentos. Destes trabalhos, o de Ester Gutierrez foi o que abrangeu interesses mais amplos. Seguindo métodos e fontes documentais utilizados por Corsetti, a autora reconstituiu o complexo espacial e a distribuição geográfica das charqueadas, buscando traçar uma história dos estabelecimentos ao longo do período, assim como da importância da escravidão nos mesmos.31 Mais recentemente, Denise Ognibeni deu continuidade à pesquisa sobre as charqueadas, dedicando um espaço para analisar os charqueadores enquanto grupo social, observando seu cotidiano, o mundo do trabalho 32 e escapando de uma análise exclusiva do processo de produção e comercialização do charque.
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CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983. Para uma crítica as teses de Fernando Henrique Cardoso e a continuidade no debate sobre a racionalidade e a irracionalidade econômica dos charqueadores, ver MONASTÉRIO, Leonardo M. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil meridional. In: História e Economia Revista Interdisciplinar da Brazilian Business School. São Paulo: Terra Comunicação Editorial, v.1, n. 1, 2005, p. 1328. 30 MAESTRI FILHO, Mário José.O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984. 31 GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.Pelotas: UFPel, 2001. Na mesma época, ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (17801888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995. Na mesma linha teórico-metodológica, Jorge Euzébio Assunção aprofundou as questões levantadas por Maestri, elaborando um perfil social dos cativos pelotenses a partir dos inventários post-mortem. Nos últimos anos, a escravidão em Pelotas, mas não especificamente nas charqueadas pelotenses, vem sendo objeto de estudo de alguns historiadores. Ver, por exemplo, COUTO, Mateus de Oliveira. A pia e a cruz: a demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859). Passo Fundo: UPF, 2011; PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850). Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012; PESSI, Bruno. Entre o fim do tráfico e a abolição: a manutenção da escravidão em Pelotas, RS, na segunda metade do século XIX (1850-1884).Dissertação de mestrado em História, USP, 2012. 32 OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005. Mesmo que não tenha as charqueadas como objeto específico de trabalho, não é possível falar sobre o tema sem citar a pesquisa de Helen Osório. Sua contribuição para a presente tese foi identificar que boa parte das charqueadas instaladas na passagem do século XVIII para o XIX foi financiada com o capital mercantil e que muitos comerciantes também exerciam a atividade charqueadora (OSÓRIO, Helen. Op. cit.). 24
Portanto, a abordagem oferecida nesta tese a respeito dos charqueadores é um tanto distinta das mencionadas pesquisas. Mais do que uma análise da escravidão nas charqueadas e do processo de produção e comércio do charque, objetivei realizar uma história social das charqueadas, dos charqueadores e de suas famílias ao longo do século XIX, estudando as suas práticas socioeconômicas, políticas e culturais, além de buscar definir os fatores de hierarquização no interior do grupo e os critérios de distinção que colocavam um conjunto de famílias numa posição elevada diante das demais (o que as qualificava para tornarem-se membros das elites regionais, ultrapassando o espaço local de influência). Para a realização deste trabalho incorporei novas metodologias e fontes documentais, inserindo Pelotas num espaço socioeconômico muito mais amplo. Além disso, os problemas de pesquisa que nortearam esta tese foram outros e dizem mais respeito a uma história das elites que, mesmo periféricas, fizeram a economia atlântica mover-se ao longo do oitocentos, do que uma análise autocentrada na sociedade e economia rio-grandense. A tese também pode ser lida como um capítulo da história internacional da produção e do comércio das carnes preparadas e a diversidade de elites proprietárias que podiam se constituir no interior destes sistemas econômicos atlânticos. Tendo em vista que os grandes estudiosos do tema praticamente não fazem referência ao complexo charqueador pelotense, esta tese também busca inseri-lo no interior do mencionado sistema.33 Como parti de problemas de pesquisa distintos dos historiadores que estudaram as charqueadas em Pelotas, estive longe de me preocupar em dar prosseguimento ao debate acerca da “racionalidade x irracionalidade” no uso do trabalho escravo nos estabelecimentos ,
uma vez que a lucratividade das empresas escravistas no oitocentos já está mais do que aceita na historiografia internacional. 34 Neste sentido, não considerei o uso da escravidão africana como o pecado srcinal das charqueadas e a sua extinção como uma explicação exclusiva de sua crise final. Desta forma, esta tese não pretendeu continuar investigando a história das 33
SLUYTER, Andrew. Op. cit.; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit.; RIXSON, Derrick. The history of meat trading. Nottingham: University Press, 2000; PERREN, Richard. The meat trade in Birtain (1840-1914). London: Routledge & Kegan Paul, 1978; PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since 1840.Aldershot: Ashgate, 2006. A exceção é Stephen Bell (BELL, Stephen. Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4 (1993); BELL, Stephen. Innovacón, desarollo y medio local. Dimenciones sociales y espaciales de la innovación. Revista Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84), 2000. Os autores uruguaios e argentinos que trataram da história dos saladeiros, tratados ao longo desta tese, também referem-se ao complexo charqueador pelotense. 34 Para um balanço geral, assim como as contribuições de Robert Fogel e Stanley Engerman, ver GRAHAM, Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX. In: Estudos Econômicos, n. 13, 1983, p. 223-257. Ver também LIBBY, Douglas. Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho.Belo Horizonte: Itatiaia, 1984; MONASTÉRIO, Leonardo. Op. cit. 25
charqueadas enfatizando-as como estabelecimentos decadentes e arcaicos, fatalmente condenados a extinção. Ora, mesmo com todos os reveses apontados por Cardoso e outros historiadores, mesmo com todos os problemas infraestruturais, os charqueadores pertenceram a elite mais rica, poderosa e prestigiosa do extremo sul da América luso-brasileira e ocuparam o topo da hierarquia social por agregarem recursos materiais e imateriais valorizados na sua realidade histórica. Portanto, aquela sociedade deve ser entendida nos seus próprios termos e não se deve exigir da sua elite um comportamento a-histórico. É importante frisar isto, porque muitos trabalhos, ao privilegiarem a ideia de uma crise inevitável e de uma fatalidade anunciada, acabaram permeando as suas conclusões neste sentido, o que resultam em análises teleológicas onde os charqueadores foram apenas espectadores da ascensão capitalista que irreversivelmente os fez desaparecer enquanto elite.35 A ausência de uma pesquisa mais aprofundada sobre os charqueadores pelotenses inviabiliza um entendimento mais complexo dos circuitos mercantis que vinculavam diferentes regiões do centro-sul do Império, (mas também do mercado marítimo de cabotagem que conectava o Rio Grande ao nordeste brasileiro), uma vez que não permite conhecer melhor as elites que se constituíram a partir destas atividades. Penso que compreender como as hierarquias sociais reproduziam-se nas margens mais “periféricas” do Império e como as elites afastadas dos centros decisórios desenvolviam estratégias para obter ganhos dentro deste sistema, auxilia na compreensão do próprio sistema econômico e político brasileiro no oitocentos. Portanto, esta tese não almeja contribuir somente com o estudo da elite charqueadora pelotense. Com as questões e hipóteses levantadas ao longo dos capítulos objetivo oferecer um quadro analítico mais amplo e que estimule um olhar mais atencioso para outras elites regionais brasileiras, além de buscar entender como as elites econômicas agrárias e mercantis integravam-se nos distintos mercados internos e externos que marcaram o período. Nas últimas décadas, a historiografia brasileira vem oferecendo um maior espaço para que investigações deste tipo sejam empreendidas. Refiro-me ao revigoramento da história das elites a partir do tratamento coletivo das mesmas, ora enfatizando as estratégias familiares, ora combinando-as com a análise das trajetórias individuais. Muitos destes estudos têm como 35
Esta visão é muito comum entre os historiadores que trabalharam com o processo de industrialização e a consolidação da república no Rio Grande do Sul. Neste sentido, a monarquia aparece como um estágio a ser superado pela república e a economia escravista como uma etapa a ser ultrapassada pelo capitalismo. Ver, por exemplo, PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha: frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1980; LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. 26
premissa o fato de que as relações sociais e políticas mantidas pelos agentes históricos envolvidos também devam ser levadas em conta quando se estuda a economia nas sociedades pré-industriais. O já citado trabalho de João Fragoso sobre a elite mercantil da praça carioca (1790-1830) além de motivar muitos debates, também incentivou outras pesquisas sobre os comerciantes no centro-sul do país, com destaque para o período colonial.36 Muitos dos novos estudos sobre as elites mercantis caracterizaram-se por dar uma ênfase importante aos laços de matrimônio e parentesco entre os comerciantes e na diversificação dos seus negócios, demonstrando como estas mesmas relações eram fundamentais nas economias précapitalistas.37 Alguns trabalhos, a partir de diferentes matizes teórico-metodológicos, investigaram as diversas relações entre as elites mercantis e a elite política na Corte.38 E outro grupo de historiadores vem demonstrando que para compreender melhor as elites devemos levar em conta as suas relações com as camadas subalternas da sociedade (escravos, peões, 39 índios, votantes pobres e soldados) que formavam a sua base de poder local.
Se em qualquer sistema econômico a influência do campo político deve ser considerada, nas sociedades pré-industriais esta relação é ainda mais significativa. 40 Neste sentido, um estudo da economia brasileira no oitocentos deve atentar para as estruturas políticas no qual a mesma estava imersa. Nas últimas décadas, as críticas feitas à teoria da dependência aplicada à história econômica chegaram à história política, redimensionando uma 36
Ver, por exemplo, SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese de Doutorado em História, UFF, 2009; OSÓRIO, Helen. Op. cit.; BERUTE, Gabirel. Op. cit. 37 De acordo com João Fragoso, “a importância das relações familiares adquire maior peso quando nos lembramos que em um ambiente pré-capitalista, caracterizado pela instabilidade das flutuações econômicas e pelas poucas opções de negócio, as estratégias extra-econômicas interferem de maneira decisiva nos processos de enriquecimento” (FRAGOSO, João L. R. Op. cit., 1998, p. 331). 38
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997; GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial. São Paulo: Alameda, 2012; FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 143-164; GAMBI, Thiago Rosado. O Banco da Ordem: política e finanças no Império brasileiro (1853-1866). Tese de Doutorado em História, USP, 2010. Neste sentido, eles seguiram um caminho aberto por LENHARO, Alcir. As tropas da moderação (o abastecimento da Corte na formação política do Brasil – 1808-1842). Rio de Janeiro: SMC, 1993. 39 Ver, por exemplo, FRAGOSO, João L. R. Principais da terra, escravos e a república: o desenho da paisagem agrária do Rio de Janeiro Seiscentista. In: Revista Ciência & Ambiente.Santa Maria: UFSM, n. 33, 2006, p. 97-120; GIL, Tiago; HAMEISTER, Martha. Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII). In: FRAGOSO, João, ALMEIDA, Carla; SAMPAIO, Antônio C. J. (org.). Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, Séculos XVI a XVIII.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 265-310; FARINATTI, Luis Augusto. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. Op. cit. 40 FRAGOSO, João; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit., p. 153. 27
série de questões historiográficas em nível internacional. Os antigos modelos de compreensão das estruturas políticas dos impérios coloniais e da formação dos estados nacionais vem sendo revisados a partir de uma profunda contribuição teórica e empírica.41 No Brasil, cada vez mais tem sido aceito o papel das elites regionais no processo de independência e da formação do Estado imperial brasileiro. 42 A partir destes novos estudos já não é mais possível pensar nas elites regionais como passivas diante do processo de consolidação do estado monárquico ou como forças centrífugas prontas a impedir o mesmo. Além disso, as novas pesquisas compartilham, por meio de contribuições distintas, do princípio da negociação entre o governo central e as elites regionais, da mediação política entre ambos os níveis de poder e da convergência de interesses entre os diversos proprietários de terra espalhados pelo Brasil, como fatores importantes no mencionado processo. Neste sentido, parto da premissa de que as elites regionais também devam ser compreendidas nas suas estruturas socioeconômicas internas e na sua interação social com os sistemas econômicos e políticos mais amplos, na 41
GREENE, Jack. Negociated Authorities. Essays in Colonial Political and Constitutional History . Charlottesville and London. University Press of Virginia, 1994; HESPANHA, Antônio M. As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político (Portugal século XVII).Coimbra: Livraria Almedina, 1994; MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro. v. 18, n.in36, 1998; PRADO, Revista Brasileira de História In (Ph.D.) the shadows empires: 2009. transimperial networks and colonial, identity Bourbon Río de la Fabrício. Plata. Diss. - EmoryofUniversity, No Brasil, para o período colonial, ver ART. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 42 Ver, por exemplo, GOUVÊA, Maria de Fátima. Política provincial na formação da monarquia constitucional brasileira: Rio de Janeiro (1820-1850). Almanack Braziliense. São Paulo, n. 7, mai-2008, p. 119-137; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: srcens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005; MARTINS, Maria Fernanda Vieira. “A velha arte de governar”: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889) . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da História: o Império do Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61; SODRÉ, Elaine L. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). Tese de Doutorado em História. PUC-RS, 2009; BIEBER, Judy. O sertão mineiro como espaço político (1831-1850). Revista Mosaico, v. 1, n. 1, p. jan./ jun., 2008, p. 74-86; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial brasileiro: Minas Gerais - Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; RIBEIRO, José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos. Tese de Doutorado em História. PPGHIS-UFRJ, 2009; ARAÚJO, Dilton de Oliveira. O tutu da Bahia (Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850) . Tese de Doutorado em História, UFBA, 2006; RESENDE, Edna M. Ecos do Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena (1831-1840). Tese de Doutorado em História, UFMG, 2008; KLAFKE, Álvaro. O Império na Província: construção do Estado nacional nas páginas de O Pr opagador da I ndústri a Rio-gr andense (1833-1834). Dissertação de mestrado em História, UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004; COMISSOLI, Adriano. A serviço de sua majestade: administração, elite e poderes no extremo meridional brasileiro (c.1808 - c.1831). Tese de Doutorado em História. PPGHISUFRJ, 2011; PIMENTA, João Paulo G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as srcens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003. Ver também as coletâneas de textos organizados por JANCSÓ, Istvan. Op. cit.; COSTA, Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império a outro: estudos sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX.São Paulo: FAPESP, 2007. 28
qual as suas atividades se inseriam, uma vez que poucas são as pesquisas que buscam estabelecer um diálogo entre uma abordagem econômica com outra mais política. É na esteira destas novas pesquisas que a presente tese se insere. A escolha das famílias charqueadoras deu-se pelo fato das mesmas ocuparem o topo da elite econômica da província. No entanto, as suas relações sociais e políticas com outros setores da sociedade e as diferentes esferas de ocupação em que os membros das mesmas estavam inseridos também auxiliavam na manutenção da sua própria posição na hierarquia social. Daí a importância de investigar que tipo de relações os charqueadores mantinham com comerciantes, estancieiros e políticos, isto quando os mesmos não pertenciam as suas famílias. Portanto, o presente estudo oferece uma análise especial dos charqueadores pelotenses que, assim como o mencionado Domingos José de Almeida, não se viam mais como simples caciques locais. Sua influência em termos políticos e econômicos estava um patamar acima destes, os colocando como membros das elites regionais. O critério inicial utilizado para a seleção destas famílias foi a riqueza. Contudo, investigando profundamente a vida das famílias charqueadoras mais afortunadas verificou-se que as mesmas também concentravam os principais cargos políticos, a maior parte dos títulos de nobreza e foram as que mais investiram na educação superior de membros do grupo. Neste sentido, o leitor verificará que tanto na primeira metade do oitocentos, quanto na segunda metade, um grupo com cerca de 8 a 10 grandes famílias ocupava o topo da hierarquia social local, apresentando um alto grau de parentesco entre si. Neste sentido, as principais famílias de charqueadores aqui investigadas ocuparam o topo da hierarquia social pela notável forma como concentraram os recursos materiais e imateriais não apenas da sociedade em que viveram como também no interior do próprio grupo de charqueadores. No que diz respeito ao seu patrimônio econômico, foi possível verificar que estas principais famílias não se reservavam aos seus negócios na charqueada, destacando-se tanto
no comércio marítimo de longo curso, quanto na criação de gado em grandes estâncias na região da campanha ou no norte do Uruguai. Além disso, muitas delas também atuaram no prestamismo local vindo a tornar-se credoras de outros pequenos proprietários. Tal incremento de atividades econômicas e a diversidade de investimentos assemelhavam-se com as práticas dos comerciantes de grosso trato estudadas por Fernand Braudel na Europa dos
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séculos XVI ao XIX e que caracterizou o perfil daquela elite mercantil. 43 No caso dos charqueadores, o investimento em grandes estâncias e embarcações marítimas tinha como objetivo aumentar os seus lucros nos três níveis econômicos no qual o charque estava inserido, ou seja, na criação, na produção e no comércio. Portanto, os charqueadores mais ricos ao apresentarem uma maior capacidade de aproximação dos mercados de gado e dos mercados marítimos potencializavam a sua capacidade de acumular riqueza, diminuíam os riscos advindos destes negócios e reproduziam a desigualdade de recursos no interior do grupo. A concentração de poder, riqueza e status social contribuía para que estas famílias adquirissem uma “consciência de elite”
que foi amadurecendo ao longo do oitocentos,
atingindo seu ápice na segunda metade do século. Tal fenômeno social conferia um sentimento de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos casamentos de seus filhos e na sua política sucessória. A engenharia matrimonial praticada pelas mesmas combinava uma endogamia envolvendo membros do próprio grupo com uma exogamia que buscava genros europeus ou de elites de outras províncias. Além disso, uma preocupação com a educação dos filhos e com os seus matrimônios refletia-se numa política sucessória distinta dos demais charqueadores de menor fortuna no que diz respeito à transmissão da charqueada e a escolha dos primogênitos enquanto sucessores da função empresarial do pai. Favorecidos por uma grande presença de estrangeiros na cidade, os charqueadores também passaram a compartilhar de uma cultura europeizada e de um estilo de vida mais urbano, onde demonstraram interesse pelas artes, pelos espaços de sociabilidade e pela caridade. Foi a partir destes fatores que as mesmas foram vistas pelos seus contemporâneos como uma espécie de aristocracia da terra, devido a sua posição social e o estilo de vida que levavam no final da monarquia. Sua posição social nas últimas décadas do século também foi fruto de um melhor preparo para suportar os reveses que marcaram a segunda metade do oitocentos. Ao drenarem as escravarias dos charqueadores de menores posses, assim como o seu patrimônio por meio de vultosos empréstimos com hipotecas, estas famílias mais ricas também conseguiram resistir melhor às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1870. Contudo, elas próprias não foram capazes de encontrar uma saída satisfatória para o problema da mão de obra na localidade. A fase de apogeu dos charqueadores pelotenses e a permanência das 43
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 30
famílias neste ramo de atividades durou muito pouco tempo, parecendo ter sido um traço estrutural das elites regionais no período. O resultado disto foi que, no início do século XX, as principais famílias charqueadoras abandonaram os negócios com o charque vindo a dedicar-
se a outros negócios. A presente tese norteou-se a partir de distintos referenciais teóricos e metodológicos. Tratando-se de um estudo sobre elites, inspirei-me nos problemas de pesquisa e nas perguntas colocadas por alguns historiadores nos seus respectivos trabalhos sobre o tema e, a partir dos mesmos, busquei a minha própria agenda de investigação e aquilo que mais se adequava ao contexto no qual a elite charqueadora estava inserida. Os estudos de Lawrence Stone e de Nuno Monteiro me possibilitaram perceber a importância dos sistemas sucessórios, das práticas matrimoniais, do estilo de vida e educação, da influência das elites na política, mas, principalmente, da mobilidade social intra-elite.44 No que diz respeito à sociedade brasileira, tomei como referência o tratamento metodológico oferecido por João Fragoso e Maria Fernanda Martins em suas respectivas pesquisas, qual seja, a de combinar uma análise quantitativa no sentido de configurar um perfil social do grupo estudado e das estruturas sociais que conformavam a sua posição com outro mais qualitativo, focado na análise das 45
redes de relações sociais entre as elites econômicas e políticas estudadas pelos autores. Assim como estes autores, busquei realizar um estudo prosopográfico da elite charqueadora pelotense. Tendo como modelo as considerações teóricas oferecidas por Stone46, não me reservei apenas a reunir dados estatísticos e oferecer uma análise quantitativa dos mesmos. Seguindo a aplicação prática daqueles preceitos realizada pelo autor, busquei compreender os diferentes investimentos realizados por esta elite, que tipo de interesses elas perseguiam, qual a importância que davam à educação, em que patamar encontravam-se suas
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STONE, Lawrence. La Crisis de la Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985;
MONTEIRO, Nuno G. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo.Lisboa: ICS, 2012; MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Csa da Moeda, 1998; MONTEIRO, Nuno. G. Casamento, celibato e reprodução social: a aristocracia portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Lisboa, Análise Social, v. 28, 1993, p. 921-950; MONTEIRO, Nuno M. (Org.). História da vida privada em Portugal. Época Moderna. Lisboa: Temas e Debates, 2011; MONTEIRO, Nuno G. 17 th and 18 th century Portuguese Nobilities in the European Context: a historiographical overview. E-JPH, v. 1, n. 1, summer 2003, p. 1-15. 45 FRAGOSO, João. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; FRAGOSO, João & MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. Tal procedimento já havia sido por mim realizado em VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 46 STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, 2011, p. 115-137 [tradução]. Sobre outras considerações teórica e aplicações práticas do método ver também HEINZ, Flávio M. (org.). Por uma outra história das elites.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 31
riquezas e níveis de poder, qual o seu estilo de vida e se a mesma apresentou um ethos próprio.47 Embora esta pesquisa não aplique métodos da demografia histórica, também fui influenciado pela obra de Carlos Bacellar e o tratamento que o autor ofereceu ao estudar os senhores de engenho do oeste paulista dando ênfase nas principais famílias da sua elite econômica. Conforme o autor: A partir do momento em que as famílias de senhores de engenho tomaram consciência de que constituíam um grupo à parte do restante da sociedade, buscaram instituir critérios demarcadores de sua especificidade (…) . A acumulação de riquezas, permitida desde que a grande lavoura de exportação fora introduzida na Capitania de São Paulo, fez com que algumas famílias tomassem consciência dessas ‘diferenças’: possuíam um engenho e muitos escravo s, produziam um gênero de produto voltado para a exportação e tinham acesso a um mercado exportador, através do qual passaram a entrar em contato com um mundo diferente daquele em que viviam. Adquirindo novos parâmetros para analisar a sua própria sociedade, passaram não somente e a se julgar diferenciados, ‘melhores’, mas também a tentar provar isto. Constroem casas maiores, mais imponentes, com materiais relativamente mais refinados. Elaboram extensas genealogias (…). Cobiçam os títulos e patentes, muitas vezes de valor apenas simbólico.48
Em suma, para Bacellar, as mudanças demonstravam “que aquele grupo de senhores de engenho ganhava consciência de que era uma elite”.49 Além dos mencionados autores e de suas contribuições no que dizem respeito ao tipo de questionamentos que se deve fazer quando se estuda as elites das sociedades agrárias e préindustriais, encontrei outro ponto de partida teórico e metodológico para tratar da elite charqueadora pelotense no programa de pesquisa oferecido por Edoardo Grendi, nos anos 1970.50 Considerados como os primeiros textos que inspiraram a experiência historiográfica da microanálise social, os escritos de Grendi constituíram-se em um ponto de encontro de diferentes contribuições interdisciplinares que marcaram os anos 1960 e 1970. 51 No geral, estas referências vinham opor-se ao funcionalismo e ao estruturalismo marcante nos estudos das sociedades antigas, assim como a leitura neoclássica acerca da economia das mesmas sociedades agrárias. Da aproximação com a antropologia econômica, do diálogo com os 47
STONE, Lawrence. Op. cit., 1985. BACELLAR, Carlos. Op. cit., p. 177-181. BACELLAR, Carlos. Op. cit., p. 177-181. 50 GRENDI, Edoardo. La micro-analisi: fra antropologia e storia. In: Polanyi: dall’antropologia economica alla microanalisi storica. Milão: Etas Libri, 1978. 51 Para uma análise dos mesmo ver LIMA FILHO, Henrique Espada.A Micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 48 49
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estudos mais culturais de E. P. Thompson52, da releitura da obra de Karl Polanyi 53 e das interlocuções com Giovanni Levi acerca do mercado de terras no Antigo Regime europeu 54, além de muitas outras referências, Grendi começou a formular um programa de pesquisa que via na microanálise das relações sociais um procedimento teórico e metodológico capaz de auxiliar na resolução dos problemas de pesquisa que lhe interessavam e superar os rígidos esquemas macro-estruturais em voga na época.55 As contribuições de Grendi iam no sentido de estudar os agregados sociais locais sem perder de vista o sistema mais amplo no qual os mesmos estavam inseridos. Partindo das famílias para entender melhor as unidades produtivas camponesas, as comunidades locais e os sistemas sociais maiores, Grendi defendia uma abordagem que aliasse à demografia histórica uma análise das relações sociais entre diferentes indivíduos e famílias. Era no nível micro que o historiador poderia observar os códigos culturais dos sistemas sociais mais amplos buscando compreender as regularidades que regiam as ações e os comportamentos dos homens nestes mesmos agregados sociais maiores. Os resultados desta imersão no nível micro deviam ser comparáveis com outros contextos históricos. Neste sentido, Grendi defendia uma média generalização das hipóteses de trabalho do historiador. Para ele, as sociedades agrárias e préindustriais apresentavam-se como um cenário propenso às experiências microanalíticas e à generalização dos resultados, pois as sociedades camponesas constituíam-se no grande fenômeno social geral da história. Portanto, para uma compreensão mais complexa dos agregados sociais locais, os historiadores deveriam tentar investigar todas as relações sociais dos agentes envolvidos.56 Foi isto que Levi buscou empregar no seu estudo sobre Santena no século XVII.57 Esta abordagem holística tinha nítida inspiração no diálogo de Grendi com a antropologia social.58
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Ver, por exemplo, THOMSPON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 53 Ver, por exemplo, POLANYI, Karl. A Grande Transformação. As srcens da nossa época. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980. LEVI, Giovanni. Economia camponesa e mercado de terra no Piemonte do Antigo Regime. In: OLIVEIRA, Mônica R. de; ALMEIDA, Carla (Org.).Exercícios de micro-história.Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. 55 LIMA FILHO, Henrique Espada. Op. cit. Conforme o próprio Grendi, outras referências teóricas foram importantes para os seus escritos, como os modelos generativos propostos por Fredrik Barth, o interacionismo de Norbert Elias e o método da Network Analisys (GRENDI, Edoardo. Il Cervo e la repubblica: il modello ligure di antico regime. Torino: Eunaudi, 1993, p. VII ). Neste sentido, o estudo das sociedades camponesas realizado por Eric Wolf e Sidney Mintz também contribuiu bastante para as suas reflexões (GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978). 56 GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978. 57 LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 58 LIMA FILHO, Henrique Espada. Op. cit, p. 151-223. 54
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A questão da abordagem holística e do máximo cruzamento de fontes documentais foi fundamental no desenvolvimento desta tese. Pelotas não era Santena, mas a proposta de compreender um grupo social a partir das múltiplas relações que ele mantinha em dado contexto histórico e dos diversos espaços sociais no qual o mesmo estava inserido foi um estímulo importante. Busquei compreender a elite charqueadora não apenas nas suas relações com a sociedade local (seja com as elites ou com as classes subalternas), mas também na sua relação com os sistemas sociais, econômicos e políticos exteriores e no qual os mesmos estavam inseridos e/ou conectados. Em se tratando de uma abordagem interacional, os campos da política, da cultura e da economia, por exemplo, foram tratados de forma integrada. Busquei investigar os charqueadores e suas famílias por todos os lados (tratando dos principais aspectos sociais), realizando um cerco sempre limitado pelas possibilidades das fontes consultadas.59 A preocupação de Grendi com a forma como as comunidades agrárias vinculavam-se 60 aos mercados mais monetarizados também serviu de estímulo a esta pesquisa. E aqui está a
importância do uso do conceito de broker proposto por Grendi no seu diálogo com a antropologia.61 Conforme Levi, os brokers ou mediadores emergiam dos “grupos locais de 62
Os mediadores eram pessoas que possuíam características diferenciadas dentro da sua “aldeia” e que, por conta disto, vinculavam a sua comunidade com o mundo importância”.
exterior, defendendo interesses ligados à sua facção, mas que, indiretamente, beneficiavam outras famílias da localidade. O mediador possuía as chaves de acesso aos poderosos do centro decisório de um sistema maior e o poder de realizar esta conexão transformava-o num potentado local e/ou regional. Os mediadores estão presentes em todas as sociedades agrárias
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No geral, a abordagem holística proposta por Grendi é pouco praticada pelos historiadores que se utilizam da microanálise social no Brasil. Uma das explicações diz respeito a ausência de um número satisfatório de fontes documentais que permitam um cruzamento mais denso de informações (FRAGOSO, João L. R. Afogando em nomes: temas e experiências em história econômica . In: Revista Topoi, Rio de Janeiro: UFRJ, set. 2002, p. 4170.). Neste sentido, a microanálise social é geralmente aplicada de forma parcial, estudando-se apenas os aspectos políticos ou os econômicos ou os culturais da localidade investigada. Além disso, é muito comum o uso de recortes temáticos, como a “escravidão”, a “imigração”, o “comércio”, entre outros, algo que trouxe uma
importante renovação historiográfica nestes espaços de investigação. No caso da presente tese, fui favorecido pelo grande número de estudos temáticos e localizados sobre Pelotas, que serão devidamente referenciados ao longo do texto. 60 GRENDI, Edoardo. Op. cit., 1978. 61 GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009, p. 27-30. 62 LEVI, Giovanni. Op. cit., p. 51. 34
e pré-industriais onde um centro político com fins centralizadores incorpora outras localidades outrora autônomas ou independentes– as chamadas “periferias” de um sistema.63 É neste sentido que deve-se atentar para as estruturas internas das localidades e compreender os fatores que condicionavam as suas hierarquias socioeconômicas, pois era a partir da concentração destes fatores que as suas elites emergiam alcançando espaços de atuação mais amplos. Daí a importância da antropologia econômica e da obra de Witold Kula nas reflexões de Grendi, pois se cada sistema econômico possuía as suas racionalidades próprias é nos seus pontos de contato, nas suas intersecções, que a elite-broker atuava com distinção, colocando os dois espaços econômicos em contato, intermediando as relações de troca entre ambos e provocando alterações na visão de mundo e nos valores culturais dos habitantes do meio agrário.64 De tudo isto resulta um universo social com uma variedade de elites e hierarquias sociais locais e regionais que se relacionavam social, política e economicamente umas com as outras em relações de cooperação e conflito, onde sempre abriam-se canais de mediação ocupados pelos mais “aptos”. As reflexões trazidas por Giovanni Levi acerca das estratégias familiares e de como as redes sociais e os laços de parentesco eram de extrema importância no funcionamento das sociedades pré-industriais do Antigo Regime sintetizam alguns dos pontos que igualmente busquei investigar. Nas suas análises, as articulações entre os aspectos socioeconômicos sempre são vistos de maneira conjunta com as ações políticas, além da relevante importância dada aos pequenos grupos de elites locais, exatamente como Grendi propunha. Além disso, a microanálise das redes de relações sociais ajuda a destacar as relações clientelísticas, as trajetórias familiares, o papel do mediador entre o centro e a periferia do sistema e a
63 Tratei mais profundamente deste conceito em outros trabalhos. Ver, por exemplo, VARGAS, Jonas. As duas faces do coronel Valença: família, poder local e mediação política em Santa Maria (1850-1870). In: WEBER,
Beatriz; RIBEIRO, José Iran (Org.). Nova História de Santa Maria: contribuições recentes. Santa Maria: Câmara Municipal de Santa Maria, 2010, p. 287-320; VARGAS, Jonas M. Op. cit. 64 Com relação ao uso do conceito de mediador ver IMIZCOZ, José María. Patronos y mediadores. Redes Familiares en la Monarquia y patronazgo en la aldeã: la hegemonia de lãs elites baztanesas en el siglo XVIII. In: Redes familiares y patronazgo: aproximación al entramado social del País Vasco y Navarra em el Antiguo Régimen (siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001; SILVERMAN, Sydel F. Patronage and community-nation relationships in central Italy. In: SCHMIDT, S. W. (ed.). Friends, Followers and factions: a Reader in Political Clientelism. Berkeley: University of Califórnia, 1977. As importantes contribuições de Eric Wolf neste sentido podem ser vistas em FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). Antropologia e poder: contribuições de Eric R. Wolf.Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Ed. Unicamp, 2003. Fiz considerações sobre o uso do conceito para uma história social da política em VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010. 35
capacidade de negociação, adaptação e articulação dos atores históricos diante de novas conjunturas políticas e econômicas.65 Neste sentido, as famílias apresentam-se como agentes fundamentais deste trabalho. E aqui me refiro às famílias extensas formadas por casais nucleares ligados a laços consanguíneos e espirituais a outros indivíduos e casais não co-residentes.66 A charqueada era uma empresa familiar e seus proprietários buscavam agir de forma estratégica para manter o patrimônio da família nas gerações seguintes e encaminhar os demais filhos e filhas na vida adulta. Apesar do termo “estratégia” oferecer uma racionalidade dema siada aos agentes, como alertou Edoardo Grendi67, segui as premissas de Giovanni Levi que buscou despi-lo de significados tão rígidos, considerando-o e reafirmando-o como um comportamento que, apesar de racional, era limitado e seletivo. 68 Esta racionalidade limitada obedecia, portanto, aos condicionantes estruturais e conjunturais na qual a família agia e interagia, contribuindo para romper ou reforçar os próprios traços desta estrutura social. A política sucessória constituiu-se em outro fator de distinção entre as famílias charqueadoras mais ricas das menos ricas, conformando uma prática de elite que buscava a reprodução social de sua posição. Exigir uma definição absolutamente rígida do termo “elite” é no mínimo um
procedimento a-histórico, uma vez que as sociedades ao transformarem-se alteram os seus padrões de recrutamento e os atributos e recursos necessários para se ocupar o topo de sua hierarquia social. 69 Desta forma, proponho que os charqueadores não devam ser entendidos somente como uma categoria socio-ocupacional homogênea, mas sim, a partir das suas relações sociais em diversos âmbitos para além do econômico. É neste sentido que busco observá-los assimilando algumas ideias desenvolvidas por Simona Cerutti. Para a autora, devemos tomar cuidado com as classificações socioprofissionais e com o pressuposto de que 65
LEVI, Giovanni. Op. cit., 2000; LEVI, Giovanni. Centro e Periferia diuno Stato Assoluto. Turin: Rosemberg & Seller, 1985. 66 Neste sentido, ver GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 67 GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL, Jacques (org.).Jogos de escalas: a experiência
da microanalise. 68 69
Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 253. LEVI, Giovanni. Op. Cit., 2000.
Para Martins, “o uso mais genérico dessa noção torna -se particularmente útil para estudos de casos como o Brasil, diante da indefinição de papéis sociais, naturalmente não no que se refere à hierarquia, mas basicamente quanto às suas funções”. Este tipo de definição “permite a compreensão do grupo tendo em vista o que seria seu caráter mais peculiar, ou seja, a pluralidade de atividades e funções a que se dedicam seus membros”, uma vez que “os indivíduos que alcançavam os altos postos da administração poderiam ser, e muitas vezes o eram, simultaneamente, políticos, capitalistas, negoci antes, proprietários ou intelectuais”. Soma-se a isto, o fato de que a estrutura social brasileira no Oitocentos acabava vinculando a identidade individual “às relações familiares e às
redes sociais as quais se encontravam associados, o que fazia com que, com freqüência, antes de serem homens públicos, fossem os representantes dos interesses e negócios dos grupos e famílias que os aproximaram do poder” (MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Op. Cit., p. 5-7). 36
os mesmos “podem ser descritos antes mesmo que seja analisado o tecido das relações que os engendrou”. Ao invés disso:
Em lugar de considerar evidente o pertencimento dos indivíduos a grupos sociais (e de analisar as relações entre sujeitos definidos a priori), é preciso inverter a perspectiva de análise e se interrogar sobre o modo pelo qual as relações criam solidariedades e alianças, criam, afinal, grupos sociais. Nesse sentido, o importante não é negar a utilidade de todas as categorias socioprofissionais – exógenas ou contextuais – mas impregná-las das relações sociais que, hoje como então, contribuem para o seu nascimento.70
Portanto, creio que para uma melhor compreensão do estrato superior entre os charqueadores pelotenses é necessário levar em conta outras relações fundamentais para a consolidação da sua posição de elite. A sua importância para o presente estudo deve-se principalmente à sua riqueza acumulada e à posição que os mesmos ocupavam na hierarquia social local e regional. Neste sentido, os charqueadores pertenciam, antes de tudo, à elite econômica não apenas da província, como do Império do Brasil, ou seja, eles estavam entre os proprietários mais ricos de sua época. Além disso, ao longo do texto, o leitor poderá observar que no topo da hierarquia social, num comparativo com outras elites locais, destacavam-se aqueles charqueadores que diversificavam ao máximo as suas atividades econômicas, denotando um traço que já referendei anteriormente e que foi consagrado por Braudel no seu 71 estudo das hierarquias mercantis nas sociedades agrárias do Antigo Regime europeu. Portanto, numa definição abrangente, pode-se pensar nas elites como grupos formados por indivíduos e famílias que concentravam os recursos materiais e imateriais mais valorizados no contexto histórico em que viviam e que, na maioria das sociedades, envolviam critérios de riqueza, poder e status. Neste sentido, as elites reuniam as melhores condições para negociar e impor os seus projetos, influindo, desta forma, decisivamente nos rumos da sociedade na qual ocupavam o topo da hierarquia. Estes mesmos grupos eram legitimamente reconhecidos como as elites tanto pelos habitantes de seus territórios, quanto pelas elites dos territórios vizinhos e grandes centros políticos nos quais estavam inseridos. Por fim, as elites deviam apresentar uma “consciência de elite”, refletida nos seus estilos de vida, nas políticas de sucessão familiar e nas engenharias matrimoniais. Quanto mais um grupo concentrava estes fatores e quanto mais pessoas eles eram capazes de incluir no direcionamento dos seus projetos, mais no topo da hierarquia social os indivíduos e famílias deveriam se encontrar. 70
CERUTTI, Simona. Processo e experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século XVII. in: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, p. 182-183. 71 BRAUDEL, Fernand. Op. cit. 37
As elites regionais geralmente eram compostas por membros da alta burocracia e da elite política provincial, homens ricos e com atividades econômicas diversas (charqueadores, estancieiros e negociantes, por exemplo) e alguns profissionais liberais do mundo urbano (médicos, advogados, engenheiros e alguns jornalistas). Muitas vezes estes indivíduos podiam ocupar diversas funções em diferentes setores ou pertencerem às mesmas famílias ou grupo de relações, o que sedimentava ainda mais a sua posição, podendo resultar em uma coesão de interesses políticos e econômicos. 72 Na presente tese, as famílias charqueadoras mais ricas que terão um tratamento especial, constituem-se em um dos grupos socioeconômicos que compunham as elites regionais (no caso aqui analisado, especificamente do Rio Grande do Sul). Portanto, ao estudá-los de forma mais aprofundada busco demonstrar como um pequeno grupo da elite pelotense (notadamente as principais famílias charqueadoras) se sobressai socialmente, realizando um salto qualitativo a um patamar superior na hierarquia social, sem se desprender das suas bases locais. Neste sentido, espero estar realizando considerações que sirvam para pensar a atuação dos membros destas elites que, como argumentei anteriormente, não se viam como a maioria dos demais charqueadores – cuja esfera de influência era mais reduzida. As elites locais, por sua vez, seriam as autoridades públicas paroquiais (militares, oficiais da Guarda Nacional, delegados, juízes de paz, padres, vereadores, tabeliães), parte dos comerciantes, dos médios fazendeiros, entre outros. Portanto, o “poder local” ou “poder paroquial”
dizia respeito a estes indivíduos e famílias. Eles se caracterizariam por
apresentarem uma esfera de influência reduzida ao próprio município ou arredores e dificilmente alguns deles conseguiam romper esta barreira (ao fazê-lo, podiam ascender à condição de elite regional). A maior parte dos charqueadores não conseguia impor projetos ou exercer influência para além de Pelotas, por exemplo. No entanto, como as escalas provincial e a local possuíam limites um tanto tênues, as elites regionais também podiam absorver alguns dos mais notáveis membros das consideradas elites locais, via casamento ou por intermédio dos diferentes vínculos sociais estabelecidos pelas mesmas. Sobre estes termos ainda é preciso considerar que ambos estão nitidamente relacionados à escala de observação do historiador, como já enfatizei em outra pesquisa.73 Geralmente refere-se à elite local na sua relação com a capital da província. Neste mesmo 72
Uma significativa amostragem de uma elite provincial poderia ser obtida na análise coletiva dos indivíduos nobilitados da mesma. Tal estudo prosopográfico será realizado no capítulo terceiro com o objetivo de conhecer um pouco mais destas famílias rio-grandenses. 73 VARGAS, Jonas. Op. cit. 38
sentido, a noção de elite regional/provincial (que, como eu já disse, podia reunir importantes membros da elite local em estágio de ascensão ou que ocupavam o papel de mediador) é um instrumento de análise que serve para ser utilizado na relação entre o Rio Grande do Sul (ou de outra província qualquer) e o governo central. Portanto, estas definições não devem ser vistas de maneira um tanto rígidas. As suas fronteiras espaciais e seus recortes regionais dependiam muito do poder de influência e da mobilidade dos indivíduos e de suas redes de relações. Alguns poucos eram capazes de ocupar todos estes espaços, fazendo parte destas duas elites (ou três se pensarmos naelite nacional/imperial). Neste sentido, os mediadores ajudavam a tornar as fronteiras regionais e locais mais flexíveis, unindo sociedades e populações com culturas diversas. Algumas famílias também podiam distribuir seus membros pelos mesmos espaços, funcionando como um elo de aproximação por onde circulavam informações e recursos diversos.74 A compreensão dos critérios descritos acima ficará mais evidente ao longo da tese. O texto está dividido em 10 capítulos. Tendo em vista a abordagem relacional proposta, as divisões dos mesmos em campos de investigação, como o político, o social, o econômico, o cultural, entre outros, seria inadequado. Neste sentido, os capítulos são profundamente interdependentes e a leitura de um, ajuda a explicar os eventos e as análises dos outros. Contudo, é possível realizar um esforço para delimitar alguns temas específicos. Os três primeiros capítulos, por exemplo, são homogêneos no que diz respeito à conjuntura histórica: o colonial tardio e as décadas que antecederam a Revolução Farroupilha, ou seja, o período entre 1780 e 1835. Neles eu busquei compreender quem eram os charqueadores que compuseram a primeira geração de empresários escravistas de Pelotas, as relações sociais estabelecidas com outros grupos sociais e a sociedade que os mesmos ajudaram a construir no extremo sul da América portuguesa. Além disso, analiso a conjuntura econômica que favoreceu a formação do complexo charqueador escravista pelotense em sintonia com os saladeiros do Rio da Prata. No quarto capítulo trabalhei intensamente com os inventários post-mortem dos habitantes de Pelotas e recenseamentos locais para tratar dos níveis de concentração de patrimônio no município entre os anos de 1850 e 1890. A forte presença de estrangeiros na 74
Antes de passar para descrição dos capítulos, gostaria de comentar outras duas questões. É sabido que, no século XIX, a região nordeste do Brasil era chamada de região norte. Para facilitar a narrativa e evitar confusões, cometi o pecado de utilizar o termo “nordeste” par a denominar a mencionada região ao longo do texto. Além disso, os termos “rio-grandense” e “sul-rio-grandense” dizem respeito aos naturais da província do Rio Grande do Sul, enquanto o “rio-grandino” referia-se ao nascido na cidade de Rio Grande. 39
cidade e sua integração com a população local também mereceu uma análise mais aprofundada, demonstrando que Pelotas foi um espaço de grande circulação de pessoas. Os capítulos 5 e 6 tratam tanto da mão de obra escrava utilizada nas charqueadas quanto das maneiras como os charqueadores administravam a sua escravaria. Temas como as etapas de produção, o tráfico inter-provincial, o perfil dos plantéis das charqueadas, as condições de trabalho, as possibilidades de alforria, as tentativas de substituição da mão de obra escrava pela assalariada, entre outros, são tratados em ambos os capítulos de forma complementar. Nos capítulos 7 e 8 estudo os mercados do gado e os mercados do charque e dos couros. No primeiro, analiso como as propriedades na fronteira do Uruguai e no próprio país vizinho foram fundamentais para o pleno desenvolvimento das charqueadas pelotenses, o que exigia uma atenção contínua dos charqueadores para as questões diplomáticas e belicosas na fronteira. No comércio atlântico foi possível perceber que uma realocação dos mercados no meado do oitocentos foi prejudicial aos interesses dos charqueadores, fazendo-os perder alguns espaços de consumo para os concorrentes platinos. No capítulo 9 analiso as hierarquias de fortuna não apenas no interior do grupo dos charqueadores, como comparo sua riqueza com a de outras elites econômicas no mundo atlântico. A tentativa em investigar os rendimentos da empresa charqueadora e a análise da mobilidade social intra-elite ao longo do século também tiveram espaço e demonstram como o mesmo grupo de famílias resistiu aos reveses econômicos da época drenando o patrimônio dos charqueadores de menor fortuna. No último capítulo tratei de analisar o estilo de vida das principais famílias charqueadoras, assim como a de outros membros da elite pelotense, dando espaço à atuação política das mesmas. Neste sentido, cultura, educação e poder político, no caso desta elite, estavam intimamente conectados.
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1. A INSERÇÃO ECONÔMICA DAS CHARQUEADAS DE PELOTAS NO MERCADO INTERNO BRASILEIRO (1780-1835)
A Califórnia e a Austrália são dois casos não previstos no “Manifesto”: a criação de grandes e novos mercados a partir do nada. Precisamos rever isso.
Carta de Engels para Marx, 1852
A descoberta do ouro na Califórnia, em 1848, provocou o maior fluxo migratório até então visto nos Estado Unidos. Se naquele ano a localidade contava com cerca de 10 mil habitantes, excluindo os nativos, em 1855, esta população havia saltado para mais de 300 mil pessoas. Tal desenvolvimento populacional fez aumentar a demanda por alimentos, nos quais a farinha constituiu-se num dos mais procurados. Se em 1850, a Califórnia possuía somente 2 moinhos, em 1860, haviam mais de 90 destas instalações, marcando a década em que ela deixou de ser importadora de farinha para tornar-se uma das maiores exportadoras americanas do produto. O rush do ouro também conectou a Califórnia a outros mercados. Nos primeiros anos, embarcações vindas do Chile, Austrália, China, entre outros países, incrementaram suas remessas de diversos bens para a região. Somente no ano de 1850, por exemplo, 1.150 navios aportaram em São Francisco, deixando quase 500 mil toneladas de mercadorias. A agricultura de alimentos, o comércio marítimo e a urbanização caminhavam juntas e, em 1880, a população californiana já atingia quase 1 milhão de pessoas, reunindo gente de todas as partes do mundo.1 Enquanto a população da Califórnia crescia desenfreadamente, o australiano Edward Hargraves, motivado pelas recentes descobertas de ouro no oeste dos Estados Unidos, retornou para o seu país, onde suspeitava poder encontrar o metal precioso em regiões cujo solo era semelhante ao do oeste estadonidense. Seu pressentimento concretizou-se em 1851. O rush do ouro na Austrália deslocou mão de obra das fazendas de criação de ovelhas para as regiões mineradoras, dando início ao fim da Pastoral Age – período que marcou o segundo quarto do século, quando a economia australiana tinha na exportação de lã para a Inglaterra a 1
RAWLS, James; ORSI, Richard (Org.).A golden state: mining and economic development in gold rush California. University of California Press, 1999, p. ix; ST. CLAIR, David. The gold rush and the beginnings of California Industry. In: RAWLS, James; ORSI, Richard. Op. cit., p. 194-197; HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 97. 41
sua principal atividade econômica. Com o grande fluxo de imigrantes, antigos pastores passaram a criar gado bovino que, de início, abastecia a população das novas e cada vez mais populosas cidades australianas. Contudo, não demorou muito e, com a ampliação das fazendas e o estímulo de comerciantes ingleses, a Austrália ingressou de vez no mercado internacional das carnes, tornando-se, como será mencionado ao longo deste trabalho, uma das grandes abastecedoras da Inglaterra que, na segunda metade do oitocentos, foi a maior importadora de carnes do mundo.2 As notícias que vinham da Califórnia e da Austrália e os“novos mercados” criados “a partir do nada” não impressionaram somente
Engels. A forma como os relatos do golden rush
eram contados, narrando histórias de pobres que enriqueceram da noite para o dia e do formigueiro humano erigido em ambas as regiões mineradoras, era capaz de despertar a curiosidade de todas as pessoas, colocando lugares outrora desprezíveis no centro da imaginação mundial. Entretanto, fenômenos como estes não foram os primeiros e nem seriam os últimos a acontecer. No Brasil, no meado do oitocentos, falar em corrida do ouro não era novidade alguma. Na passagem do século XVII para o XVIII, a descoberta do metal precioso na região das Minas Gerais havia provocado“importante impacto não só no destino social e econômico da colônia, mas também na metrópole, na economia do Atlântico Sul e na relação do mundo luso-brasileiro com outras nações européias”.3 Do primeiro relato do achado de jazidas de ouro, em Rio das Velhas, no ano de 1695, até as descobertas que se seguiram em diferentes localidades da Colônia, uma multidão de pessoas aventurou-se por aquelas paragens enfrentando riscos naturais de todo o tipo, além das tribos indígenas hostis.4 Durante o golden rush tupiniquim, a região das Minas Gerais foi desde o início o principal ponto de atração. Os migrantes “ocorreram de todos os modos de vida, das mais diversas srcens sociais e de todos os tipos de lugar”.
Eles vinham das regiões
costeiras do Brasil, do Reino e das ilhas atlânticas da Madeira e dos Açores. Os sempre presentes aventureiros ingleses, irlandeses, holandeses e franceses também estiveram presentes. Frades deixaram seus mosteiros no Brasil e em Portugal e soldados desertaram de 2
PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since 1840. Aldershot: Ashgate, 2006. O mercado mundial das carnes entre 1840 e 1900 será analisado no capítulo 8 desta tese. 3 RUSSEL-WOOD, A. J. R. O Brasil Colonial: o ciclo do ouro (1690-1750). In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 474; 521. 4 Conforme Russel-Wood, a atividade dos bandeirantes no devassamento do sertão continuou durante todo o século. Mas as novas descobertas serviram apenas para confirmar o que a Coroa portuguesa, em 1754, já havia considerado como “áreas de mineração”: Minas Gerais, Cuiabá, Goiás, Mato Grosso, São Paulo e as comarcas
de Jacobina, Rio das Contas e Minas Novas de Araçuaí, na Bahia (RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 471472). 42
suas guarnições costeiras, enquanto negros livres e cativos (fugidos ou despachados pelos seus próprios senhores), paulistas com seus índios escravos, comerciantes, agricultores e “pessoas com laivo de nobreza”
também tomaram o mesmo rumo. Em suma, “todos foram
infectados pela febre do ouro”.5 Em poucos anos, a população das diversas regiões mineradoras cresceu de forma impressionante. Os dados são esparsos, mas o aumento do número de cativos oferece uma estimativa acerca do mencionado fenômeno. Em 1695, por exemplo, as Minas Gerais compreendiam alguns “grupos sortidos de bandeirantes ,
ocasionais fazendeiros de gado, um
punhado de missionários, alguns especuladores e os índios”, mas aparentemente nenhum escravo de srcem africana. No entanto, duas décadas depois, a presença desses cativos na região saltou de zero para 30 mil. Outro exemplo pode ser dado a partir da descoberta de ouro em Minas Novas. Passados três anos dos primeiros achados, essa localidade já apresentava uma população de cerca de 40 mil pessoas, somando brancos e escravos negros. 6 Como consequência desse desenvolvimento econômico, Minas Gerais tornou-se a capitania mais populosa da colônia, reunindo quase 320 mil habitantes, em 1776.7 Se no início do povoamento minerador os primeiros habitantes ainda importavam quase tudo o que consumiam, no meado do século XVIII, já era possível vislumbrar uma vigorosa rede de abastecimento local destacada ao seu redor. Na realidade, desde os primeiros anos, sesmarias foram sendo doadas constituindo-se em importantes áreas de criação e plantação voltadas para o consumo local.8 Neste circuíto, além da pecuária suína e bovina, também tiveram destaque a criação de aves, o fábrico do charque e o cultivo da mandioca. 9 No entanto, nesta conjuntura, uma das maiores beneficiárias foi a cidade do Rio de Janeiro, cuja população saltou de 12 mil pessoas, em 1710, para quase 30 mil, em 1749. Anos depois, ela foi elevada a sede do governo colonial (1763) e, na década posterior, recebeu em seu território um Tribunal de Relação (1774), o que significava uma maior autonomia
5
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit, p. 482. Ibid., p. 494-495. 7 ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 529. 8 CARRARA, Ângelo A. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997; FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a interiorização da Metróploe e do comércio nas Minas setecentistas.São Paulo: Hucitec, 2006, p. 197 -216. 9 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit, p. 502. 6
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administrativa e judiciária, além do crescimento de sua importância política e econômica no interior do Império português.10 A rede mercantil de abastecimento constituída entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro também viu-se fortalecida pela crescende entrada de escravos em direção à primeira e a exportação de metais preciosos por meio das numerosas embarcações que saiam do porto carioca. Este circuíto fez do Rio de Janeiro a principal encruzilhada do Império português, vendo surgir ali uma importante elite mercantil. Paralelamente ao desenvolvimento da economia mineira, o investimento em sítios e fazendas com a finalidade de abastecer a crescente população em ambas as capitanias também marcou a conjuntura econômica do Rio de Janeiro na primeira metade do setecentos, fazendo surgir importantes fortunas em todas as etapas desta mencionada rede de comércio.11 No entanto, a transformação socioeconômica do período não reservou-se a estas duas capitanias, atingindo todas as regiões da América portuguesa. A população total da colônia passou de 300 mil pessoas, em 1700, para quase 3 milhões, em 1800.12 Contribuíram para isso, além do crescimento natural, os contínuos fluxos migratórios, como dos africanos trazidos forçosamente por meio do tráfico e dos portugueses reinóis e das ilhas, atraídos pelas novas possibilidades econômicas que se abriam. Desnecessário dizer que quanto mais a população da colônia crescia, mais aumentava a demanda por alimentos. Neste sentido, conforme A. J. R. Russel- Wood, a mineração provocou “o dese nvolvimento de novos mercados” e:
(…) as minas atuaram como estímulos não só para a agricultura da Bahia, mas
também para a do Rio de Janeiro e de São Paulo. A indústria do gado da Bahia, do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e do Maranhão responderam ao aumento da procura em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso com o crescimento da produção. Os criadores de gado do Sul, de Curitiba a São Pedro do Rio Grande, forneceram gado para as minas por intermédio dos paulistas. O ouro criou, portanto, novos centros de produção e de consumo, ao mesmo tempo em que estimulou a produtividade das regiões mais tradicionais de oferta.13
10
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650– c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 85. 11 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit. 12 Conforme as estatísticas históricas do IBGE, a população total da colônia em 1800 teria sido de 3,6 milhões. No entanto, segundo Dauril Alden, por volta daquele ano ela não teria atingido os 3 milhões. (IBGE. Estatísticas históricas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 1990, 2ª. ed., p. 30; ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 536). 13 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Op. cit., p. 523. 44
A mencionada vinculação da pecuária sulina com os novos mercados gerados a partir da descoberta das minas não foi instantânea e não se deu sobre um espaço econômico ausente de trocas. Antes do boom minerador, as vastas pastagens que compunham a paisagem agrária daqueles territórios de fronteiras mal definidas entre portugueses e espanhóis já era alvo de incursões numerosas, onde os couros vacuns constituíam-se na mercadoria mais cobiçada. De acordo com Martha Hameister, desde os fins do século XVII e entrando o XVIII adentro, a extração dos couros e o seu comércio havia se tornado um verdadeiro “negócio da China”, visto a procura dos mesmos nos mercados coloniais e europeus. Nesta época, milhares de reses eram abatidas para que lhes fossem retirados os couros e sebos, com pouco proveito das carnes. Este fenômeno foi responsável por atrair os ibéricos para o interior do território em busca do gado solto e de fácil captura. Portanto, os primeiros habitantes daquelas áreas entre a Colônia do Sacramento e Laguna eram “coureadores e changadores” que retiravam da pecuária e do comércio dos couros o seu sustento. Aparentados com os espanhóis, mantinham com eles negócios de todo o tipo, lícitos e ilícitos, e com os mesmos eram capazes tanto de aliar-se quanto de engalfinhar-se em disputas por gado, território e motivos diversos. Conforme Hameister, suas relações eram de tal forma emaranhadas que é difícil dizer o que 14 era o Rio Grande e o que era a Banda Oriental naquela época.
Com o aumento do povoamento nas Minas, a demanda por animais cresceu enormemente, colocando a fronteira meridional em uma nova etapa de desenvolvimento econômico. No entanto, conforme Hameister, “não foi a fome dos mineradores que financiou a consolidação” do mercado interno da região das minas com o extremo sul, mas sim, “a sua voraz necessidade de meios de transporte e tração de cargas para os produtos coloniais”.
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Os
cavalos, por exemplo, lideraram as exportações rio-grandenses desde 1730 até 1770, pelo menos. O gado vacum, por sua vez, antes sacrificado exclusivamente por conta dos seus couros, também passou a ser remetido nas tropas que seguiam rumo à Sorocaba e às Minas, por meio da rota terrestre que se constituía. Paralelamente, os lucros destas transações foram sendo reinvestidos pelos negociantes e tropeiros que aos poucos estabeleciam criatórios de mulas – animais bastante valorizados nos mencionados mercados, visto sua grande utilidade no transporte de cargas. Todos estes negócios renderam significativos ganhos aos principais
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HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova pov oação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006, p. 58-71; HAMEISTER, Martha D. O continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c. 1727 – c. 1763). Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2002, p. 244. 15 Idem, 2002, p. 18. 45
agentes envolvidos e estavam por trás da fortuna, prestígio e poder de boa parte das primeiras 16 elites sulinas que tiveram proeminência na segunda metade do setecentos.
Portanto, a mencionada conjuntura de incremento populacional e desenvolvimento econômico foi responsável por conectar o Continente de Rio Grande de São Pedro aos mercados coloniais mais próximos, num lento processo que arrastou-se por quase todo o século XVIII. Se antes da descoberta das Minas, os couros contituíam-se na principal mercadoria negociada por aquelas bandas, com o aumento da demanda por animais de carga, uma vigorosa rede de comércio de animais reunindo criadores e tropeiros começou a tomar forma no centro-sul da Colônia. Mesmo com a decadência da mineração e a invasão dos espanhóis em Rio Grande (1763-1776), o comércio de tropas continuou acontecendo, afastando qualquer ideia de que uma crise agropecuária no centro-sul da Colônia tivesse ocorrido durante o período.17 Como demonstrou Tiago Gil, na passagem do século XVIII para o XIX, os negócios envolvendo as tropas de animais entre os caminhos de Viamão, Curitiba e Sorocaba, ainda mantinham importância. No entanto, os mesmos estavam se tornando claramente menos rentáveis se comparados aos galpões de charquear e ao comércio marítimo, pois ambos vinham entrando em uma nova fase de desenvolvimento nas últimas décadas do 18
setecentos. A intensificação da produção do charque, assim como o seu comércio marítimo, integrou ainda mais o Rio Grande do Sul aos novos mercados que vinham surgindo, conectando-o ao nordeste do território colonial, ao Caribe, à Europa e à América do Norte, por exemplo. No entanto, para que a fabricação e o comércio do charque atraísse maiores investimentos foi preciso que se criasse uma enorme demanda por este produto, o que só foi possível devido a uma nova conjuntura política e econômica que caracterizou o colonial tardio. Neste período, houve um grande desenvolvimento tanto na agroexportação, como na
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HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2002, 2006; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios
do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009; OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007; KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. Tese de Doutorado, UFF, 2006. 17 Conforme Petrone, entre 1750 e 1780, passaram cerca de 5 mil cabeças de gado anualmente no Registro de Sorocaba. Entre 1780 e 1820, esta média dobrou para 10 mil e no início dos anos 1820, ela já era de quase 30 mil. PETRONE, Maria Thereza S. O Barão de Iguape.São Paulo, 1976, p. 20-24. 18 GIL, Tiago Luís. Op. cit., p. 354. Como ressaltou Hameister, o advento das charqueadas litorâneas não encerrou o comércio de tropas para Sorocaba. Em outras palavras, é demasiado simplista achar que houve um “ciclo” das tropas substituído por um “ciclo” do charque. Ambos os espaços econômicos de troca, um terrestre e o outro marítimo, existiram de forma concomitante, constituindo-se em circuitos mercantis distintos. (HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2002, p. 209). 46
produção e no comércio de gêneros alimentícios, favorecendo um intenso fluxo de escravos para ambos os setores da economia brasileira, como demonstro a seguir.
1.1 A DIVERSIFICAÇÃO DAS CULTURAS E O REVIGORAMENTO DA AGROEXPORTAÇÃO NO COLONIAL TARDIO
A ideia de que o chamado “ciclo do ouro” nas Minas Gerais havia deslocado braços e capitais ao ponto de diminuir profundamente a produção agrícola da colônia e de que, com a posterior crise da mineração, a capitania teria entrado em uma franca decadência econômica já foi superada há muitos anos pela historiografia.19 Na segunda metade do setencentos, Minas, que já possuía uma vigorosa rede de abastecimento interna, teria reorientado mais ainda a sua economia para o comércio de alimentos, tornando-se a grande fornecedora destes gêneros ao Rio de Janeiro. 20 Portanto, não teria ocorrido uma crise na capitania, como defendeu Celso Furtado.21 Um dos indícios mais fortes do mencionado desenvolvimento econômico foi o fato de que a população mineira manteve índices de crescimento bastante altos na segunda metade do século XVIII. Entre 1776 e 1821, por exemplo, ela aumentou 60% (de 319.769 para 514.104 habitantes). A comarca do Rio das Mortes, onde a agropecuária voltada para o abastecimento interno era o principal setor econômico, houve um crescimento de 82.781 para 213.617 pessoas. Como resultado deste vigoroso comércio, e tendo em vista que a lavoura de gêneros era genuinamente escravista, Minas tornou-se a capitania com o maior número de escravos no início do oitocentos.22 Como mencionei anteriormente, os vínculos mercantis entre o Rio de Janeiro e as Minas Gerais datavam do início do século XVIII. Desde as primeiras décadas, o Rio tornou-se uma importante área de abastecimento voltada para aquela região, apresentando, com o tempo, um “grande dinamismo” na produção de alimentos. Conforme Sampaio, tal atividade
Ver, por exemplo, CARRARA, Ângelo A. Minas e Currais: produção rural e mercado interno em Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: HUCITEC, 1999; ALMEIDA, Carla M. C. Alterações nas unidades produtivas mineiras. Mariana (1750-1780). Dissertação de Mestrado, UFF, 1994; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit. 20 – LENHARO, Alcir. As tropas da moderação (o abastecimento da Corte na formação política do Brasil 1808-1842). Rio de Janeiro: SMC, 1993; FRAGOSO, João L. R.. Homensde gr ossa aventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 21 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1998. 22 MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In: SZMRECANYI, Tamás; LAPA, José Roberto Amaral (Org.). História econômica da Independência e do Império. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 99-130; FRAGOSO, João. Op. cit. 19
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foi tão atrativa que muitos comerciantes passaram a investir no setor. Portanto, neste contexto, fica difícil falar de um “Renascimento Agrícola” como uma conjuntura posterior à crise da mineração, uma vez que nunca houve um abandono da agricultura e nem mesmo uma decadência da mesma no Rio de Janeiro. Estudando a economia fluminense entre 1750 e 1790, Fábio Pesavento trouxe importante contribuição ao negar a mencionada ideia de crise ou decadência da agricultura no período mencionado. O autor reconheceu que houve momentos de recuo das exportações e do valor dos bens agrícolas negociados, mas o exame das dízimas do açúcar sugerem que se houve uma conjutura desfavorável na economia fluminense, ela não durou muito tempo e deve ter começado na década de 1770, mas sem constituir-se numa crise ou decadência.23 Portanto, tendo em vista a inexistência de uma suposta decadência agrícola, o termo “renascimento” ou “ressurgimento”
da agricultura parece ser inadequado para a realidade aqui
analisada, pois o renascer ou o ressurgir, como enfatizou Sampaio, refere-se a algo que teria desaparecido – o que não foi o caso. 24 Neste sentido, preferi utilizar o termo “revigoramento”, pois, durante o período colonial tardio, ocorreu um visível incremento qualitativo e quantitativo das exportações em todas as regiões do Brasil. Em outras palavras, a agricultura de alimentos continuou sendo praticada, mas ampliou-se de forma notável nas últimas décadas do século XVIII. Nesta mesma época, aumentaram as exportações de diversos produtos e, com os incentivos políticos do Reino, ocorreu uma importante diversificação da pauta dos produtos cultivados.25 Apesar da variedade dos novos cultivos, os principais produtos exportados durante o colonial tardio foram o açúcar, que já liderava as vendas nos séculos anteriores e continuou nesta posição até os anos 1830, o café, que ultrapassou o açúcar em valores exportados nesta mesma década, e o algodão, que teve uma das suas melhores fases exatamente nas décadas aqui trabalhadas. O algodão e o café como produtos de ponta eram sem dúvida uma novidade.
23 PESAVENTO, Fábio. O colonial tardio e a economia do Rio de Janeiro na segunda metade dos Setecentos (1750-1790). In: Estudos Econômicos, v. 42, n. 3, 2012, p. 581-614. 24
Conforme Sampaio, se houve uma crise no setor açucareiro fluminense na primeira metade do setecentos, esta
foi compensada pelo rápido aumento da agricultura alimentar. “Logo, a recuperação do setor açucareiro na
segunda metade do século XVIII deve ser colocada em perspectiva. A sua expansão não somente não se deu sobre uma ‘terra arrasada’, como também não representou a retração da produção de alimentos, que, mesmo com
a decadência dos circuítos auríferos, continuou encontrando um importante mercado para seus produtos na nova capital da colônia” (SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Op. cit., p. 133). 25 Ver, por exemplo, FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Nesta época, produtos agrícolas que antes tinham pouca ou quase nenhuma importância despontaram nas exportações, como o cacau, o arroz, o algodão, o trigo, entre outros. 48
Durante o mencionado período, os três produtos, guardadas as oscilações de preço e de volume negociados, foram demandados em grandes quantidades pelo mercado internacional. A Europa ocidental, que vinha numa fase de acelaração econômica devido aos novos impulsos da Revolução Industrial, foi a principal compradora dos mesmos. Neste sentido, o cultivo do algodão, que servia como principal matéria-prima da indústria têxtil britânica, 26 então em expansão, tornou-se objeto de grande interesse dos comerciantes europeus.
A Revolução Industrial, que tinha nas fábricas de têxteis o seu carro-chefe, fez aumentar a demanda do produto estimulando a sua plantação não apenas no Maranhão, como também em outras localidades do Atlântico. Neste processo, o sul dos Estados Unidos foi o principal cenário da expansão da lavoura algodoeira no período. “Embora estivessem em sua infância, as plantations de algodão dos Estados Unidos elevaram sua produção de 2 milhões de libras-peso para 48 milhões durante a década de 1790”. Tal incremento das exportações deu-se sobre uma notável estrutura agrário-escravista colocando as plantations norteamericanas numa posição de destaque da economia internacional. 27 Além disso, a industrialização britânica foi igualmente favorável aos couros, que também alimentavam os setores artesanais e fabris europeus como matéria-prima e ainda eram utilizados como correia nos maquinários da época. Entre 1804 e 1807, em plena fase de aceleração do processo de montagem das charqueadas pelotenses, os couros foram responsáveis por 32,6% do total das exportações brasileiras para Portugal, perdendo somente para o açúcar.28 Pode-se dizer que os couros provinham de diferentes regiões da colônia, mas grande parte deles era produzida no Rio Grande do Sul, onde os rebanhos bovinos abundavam e a matança acentuou-se ainda mais com a instalação das primeiras charqueadas. Conforme Helen Osório, os couros rio-grandenses chegavam na Europa por intermédio do Rio de Janeiro (o maior importador do produto e que sempre perfazia entre 75% e 95% dos volumes recebidos, depois os reexportando). A Bahia era a segunda maior
Conforme Hobsbawm, a expansão da indústria algodoeira foi tão forte que acabou dominando os movimentos da economia britânica. A quantidade de algodão em bruto importada pela Grã-Bretanha aumentou de 11 milhões de libras (peso) em 1785 para 588 milhões em 1850, enquanto a produção de tecidos saltou de 40 milhões para 2 bilhões de jardas, no mesmo período (HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa (1789-1848).Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009, p. 64). 27 Em 1790, havia 658 mil escravos nos estados do sul, quase o dobro de duas décadas antes. Em 1810, o número de escravos na mesma região já havia chegado a 1.164 mil cativos, ou seja, continou crescendo no mesmo ritmo e no mesmo intervalo de tempo (BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 585-586). 28 ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na cri se do Antigo Regime português. Porto: Afrontamente, 1993, p. 42. Nos outros anos, apesar de não ser o segundo produto, eles sempre ocuparam uma posição privilegiada. 26
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importadora, obtendo 10,8% em 1802, 17,8% em 1808 e 22,1%, em 1815– o seu máximo. De acordo com a autora, as localidades que compravam charque geralmente importavam couros e 29 estes deviam completar as cargas dos bergantins e sumacas. No entanto, houve remessas
exclusivas para Portugal em 1803 (8 mil couros para Lisboa e 3 mil para o Porto) e 1805 (4,5 mil para Lisboa) e para os Estados Unidos, após 1810. Estas variaram entre 4 e 7 mil unidades, mas, de acordo com Osório, foram esporádicas. Tais remessas de couros tinham como destino Filadélfia, Boston, Baltimore, Nova Iorque e Salem. 30 Segundo Osório, não é possível saber em que proporção se dava a reexportação do couro, mas apenas que eles foram o segundo produto na pauta de exportações do Rio de Janeiro depois do açúcar. Em 1796, o açúcar representava 70% das exportações cariocas e os couros 9%. Neste ano, o Rio Grande do Sul exportou 137.637 couros. Na passagem do século XVIII para o XIX, houve um notável crescimento da participação do couro nas exportações para a metrópole. Entre 1796 e 1799, os couros perfaziam 12,1% do total exportado e entre 1804 e 1807, havia atingido 32,6% contra 43,4% do açúcar. Neste período, o maior volume de 31 couro exportado deu-se em 1814, somando 423.304 unidades. Como foi dito, é provável que
grande parte deste produto fosse negociado com os portos ingleses, mas não é possível saber com precisão os seus diversos destinos. Analisando as exportações do Brasil para a Inglaterra, entre 1807 e 1821, foi possível perceber que os couros chegaram a ultrapassar os 15% dos valores negociados no período, embora mantivessem uma média que oscilava entre 5% e 12% e, em alguns anos, foi inferior a 2%. Logo após a abertura dos portos, no ano de 1809, foram remetidas mais de 220 mil libras esterlinas do produto para os portos ingleses – o maior valor do período.32 O mesmo processo de industrialização europeia que incluiu os couros riograndenses no comércio atlântico, incorporou estes mesmos produtos exportados por Montevidéu e Buenos Aires, como se verá nos capítulos posteriores. Açúcar e café, por sua vez, formavam uma combinação que vinha se popularizando entre os consumidores das margens do Atlântico, chegando cada vez mais às mesas das classes trabalhadoras européias e norte-americana. Ambos os produtos tiveram sua demanda aumentada não apenas pelo crescimento da população nas grandes cidades, mas também pelo 29
Contudo, somente no ano de 1790 o couro teve um valor exportado superior ao do charque. Nos anos posteriores, até 1820, o charque sempre apresentou maiores valores, chegando a 44% dos totais exportados em 1808 e 63,2%, em 1819. OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 190-195. 30 OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 202-203. 31 Idem, p. 203-205. 32 ARRUDA, José Jobson de A. A abertura dos portos e a ruptura do sistema colonial luso-brasileiro. In: COUTO, Jorge (Org.). Rio de Janeiro: capital do Império português (1808-1821). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 , p. 105. 50
estímulo dos patrões e autoridades públicas com fins de substituir o consumo de bebidas alcoólicas – condenadas pela nova ordenação moral que vinha enquadrando os trabalhadores das fábricas.33 Outro fator que pesou de forma significativa no aumento das exportações de ambos os produtos foi a grande revolta escrava na colônia francesa de Santo Domingo, em 1791. A rebelião acabou por tornar-se um movimento de independência que durou cerca de 10 anos. A ilha antilhana, que era a maior produtora mundial de açúcar e café da década de 1780, foi praticamente eliminada como exportadora destes produtos. Conforme Schwartz, tal acontecimento favoreceu o surgimento de uma imensa demanda que estimulou não apenas o setor açucareiro no Brasil, como também em outras áreas do Atlântico, como Cuba, Porto Rico e Luisiana, “produtores até então relativamente secundários”.
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Assim sendo, para entender melhor como a expansão das áreas de agro-exportação brasileiras acabou favorecendo a formação do complexo charqueador escravista pelotense é necessário examinar o desempenho dos principais produtos exportados na época, além da relação entre o comércio de abastecimento e a agroexportação no período. Começo pelo algodão. Ainda que nativo do Brasil e já conhecido pelos indígenas, foi somente em 1760, quando a Companhia do Maranhão começou a realizar pequenas aquisições, que o mesmo passou a ser cultivado com propósitos comerciais. Na década de 1770, seu plantio alcançou o Pará, o Ceará e o Pernambuco, concentrando-se nas terras litorâneas entre os dois últimos. Nos anos 1780, a cultura do algodão deslocou-se da costa para o sertão, onde expandiu-se para o interior da Bahia e do Pernambuco, Piauí, Goiás, chegando até Minas Gerais. No entanto, nesta fase inicial, a expansão algodoeira escravista animou mais os produtores das capitanias do nordeste, com destaque para o Maranhão, o Ceará e o Pernambuco. Um dos principais motivos foi o apoio governamental dado aos produtores destas regiões, por meio da formação das companhias monopolistas, da introdução de escravos africanos, do acesso ao 35 crédito e a melhores técnicas agrícolas, o que favoreceu o desenvolvimento do setor.
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del ca pitalismo agrario pampeano: La expansión ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Siglo XXI, 2003, p. 146. A “peste da embriaguez” foi um dos grandes problemas das classes trabalhadoras durante o processo de industrialização e o aumento populacional nas cidades fabris que marcou as primeiras décadas da Revolução Industrial na Inglaterra. A hostilidade a tal fenômeno social era compartilhado não apenas pelos patrões como também pelos movimentos trabalhistas ingleses (HOBSBAWM, Eric. Op. cit., 2009, p. 282-283). 34 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p . 343. 35 O arranque inicial foi surpreendente. Entre 1760 e 1771, as exportações de algodão no Maranhão passaram de 651 para 25.473 arrobas. Até a década de 1820, o algodão foi responsável por 73% a 82% das exportações maranhenses (BARBOSA, Francisco B. da Costa. Relações de produção na agricultura: algodão no Maranhão (1760 a 1888) e café em São Paulo (1886 a 1929). In: Agricultura em São Paulo, v. 52. N. 2, 2005, p. 18-19). 33
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No entanto, o desenvolvimento algodoeiro também foi estimulado pela alta dos preços do produto no mercado europeu. A rápida expansão da indústria têxtil, especialmente na Inglaterra e na França, possibilitada por uma revolução tecnológica sem precedentes, fez crescer a demanda por fibras de alta qualidade para a fabricação de tecidos finos. Embora a maior parte do algodão brasileiro fosse de baixa qualidade, parte do cultivo em Pernambuco e na Paraíba estava entre os melhores do mercado e Portugal os remetia para os seus principais clientes. A guerra de independência dos Estados Unidos (1776-1783), cujas exportações de algodão para a Inglaterra correspondiam a 70% do equivalente exportado pelo Brasil, e a consequente paralização do seu setor algodoeiro, também contribuíram com o aumento das exportações.36 Entre 1776 e 1807, 55,4% do algodão brasileiro teve como destino a Inglaterra e 31,2% a França. Depois disso, o algodão teve mais duas décadas de florescimento, mas nos anos 1820 iniciou seu declínio diante da concorrência norte-americana, cuja tecnologia era mais avançada.37 Apesar do boom algodoeiro que caracterizou o período, foram as regiões de plantations de açúcar que concentraram as maiores populações escravas e garantiram a
liderança das exportações na maior parte do colonial tardio. Neste período, a expansão da lavoura canavieira foi notável. Em Campos, o número de engenhos saltou de 56, em 1769, para 104, em 1778, com um aumento da produção em 235%. Em 1800, já existiam 324 38 engenhos no norte fluminense, chegando a 400, em 1810, e 700, em 1828. No nordeste,
muito antes da Revolução em Santo Domingo, as plantations açucareiras também já vinham apresentando grandes índices de crescimento. Em Pernambuco e na Paraíba, os 268 engenhos existentes em 1761 saltaram para 390 em 1777, intervalo de tempo em que as exportações duplicaram. Na Bahia, entre 1759 e 1790, aconteceu um aumento de 170 para 260 engenhos e as exportações aumentaram 54,6%. Esta ampliação de unidades açucareiras também atingiu o 39 Sergipe, que no final do setecentos já contava com 140 engenhos. A expansão do setor na
Bahia teve continuidade na passagem do século, atingindo outras áreas para além do Recôncavo e, em 1820, já contava com 500 unidades produtivas. Segundo Schwartz, entre 1817 e 1828, foram instalados 110 novos engenhos e, na década de 1830, entraram em operação mais 220. Mesmo que muitos deles tenham parado de funcionar, o crescimento foi notável e, em 1836, Bahia e Sergipe juntas possuíam 603 unidades. No entanto, em 36
Idem, p. 18. ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 569. ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 560; FRAGOSO, João. Op. cit. 39 ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 557-558. 37 38
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Pernambuco o desenvolvimento do setor foi ainda maior, apresentando cerca de 500 engenhos em 1818 e 712 em 1844.40 Em São Paulo, a expansão açucareira aconteceu mais tardiamente, tendo se iniciado nos anos 1780 e ganhado força na década seguinte. Antes disso, a produção paulista era destinada principalmente para o consumo local, onde servia para a fabricação de melaço, aguardente e rapadura. 41 Com a conjuntura favorável (preços atraentes e a construção do caminho do mar), a capitania inseriu-se de vez nos mercados internacionais, entrando numa nova fase de desenvolvimento econômico. A população paulista cresceu 150% entre 1765 e 1808 e, no período de 1797 a 1826, as suas exportações de açúcar aumentaram mais de 5 vezes.42 As duas principais áreas de cultivo eram a costa norte de Santos e o quadrilátero definido pelas vilas de Sorocaba, Piracicaba, Mogiguaçu e Jundiaí. O açúcar tornou-se o líder 43 das exportações paulistas até 1850-1851, quando foi ultrapassado pelo café.
O café, por sua vez, ingressou numa fase de aceleração e expansão agrária na passagem do século XVIII para o XIX. O produto atingiu níveis de exportação extraordinários a partir dos anos 1830, quando ultrapassou o açúcar na condição de principal mercadoria exportada pelo Brasil. Durante este processo de ampliação da lavoura cafeeira, apesar da Bahia também exportar quantidades consideráveis, o vale do Paraíba (fluminense e paulista) constituiu-se na principal área produtora. No Rio de Janeiro, houve localidades que cresceram enormemente em poucos anos, como a freguesia de São Pedro e São Paulo, depois vila de Paraíba do Sul, que em 1789 contava com 292 habitantes e cerca de meio século depois chegava a 14 mil.44 Em São Paulo, a lavoura cafeeira começou a se expandir a partir do meado da década de 1810. O município de Areias, no Vale do Paraíba, foi o principal centro produtor, seguido por Lorena, Guaratinguetá e Bananal, localidades que foram se desmembrando da primeira. Em 1836, cerca de 2/3 da produção cafeeira paulista provinha do Vale da Paraíba. Em 1854, a Província possuía 2.600 fazendas de café com 54 mil escravos– 45 muito mais que os 10 mil cativos nas unidades cafeicultoras de 1829.
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SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 343-346; EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 147. 41 LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 55-56. 42 FRAGOSO, João. Op. cit., p. 135. 43 ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 560). 44 FRAGOSO, João. Op. cit., p. 365-366. 45 LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit., p. 84-88. 53
Portanto, os resultados da expansão cafeeira no sudeste foram notáveis, tendo a exportações pelo porto do Rio passado de 160 arrobas, em 1792, para 318.032 em 1817, 46 539.000 em 1820, 1.304.450 em 1826, 1.958.925 em 1830 e 3.237.190 em 1835. Como
resultado deste vigoroso processo de ampliação agrícola, a demanda por mão de obra aumentou em índices nunca antes vistos. Entre 1790 e 1830, entraram mais de 1.500 navios negreiros no porto do Rio de Janeiro trazendo cerca de 700 mil africanos. Esta cifra, correspondente a somente quatro décadas, representava 20% do total de escravos importados ao longo de 350 anos de tráfico.47 Na mesma época, a Bahia recebeu 395.138 escravos africanos. O Pernambuco, por sua vez, importou, entre 1790 e 1830, cerca de 242.150 escravos no tráfico atlântico. Conforme Matthias Assunção, o Maranhão teria recebido, por intermédio da Companhia Geral de Comércio, 12 mil escravos africanos, entre 1755 e 1778. Contudo, após esta data, devido ao boom do algodão, teriam entrado mais 100 mil escravos na região, o que tornou-a, em 1819, a
capitania com o maior percentual de cativos com relação a sua população total. 48 Observe-se que a soma das entradas de escravos nestas três capitanias do nordeste ultrapassa os cerca de 700 mil cativos que teriam desembarcado no porto do Rio, na mesma época. É necessário afirmar que nem todos os escravos desembarcados nos portos acima mencionados eram destinados para as regiões de plantations e muitos eram reexportados para outras capitanias vizinhas. Não tenho dados para estas negociações no nordeste, mas a análise do mesmo fenômeno no centro-sul ajuda a exemplificar estas transações.Segundo a estimativa de Fábio Pinheiro, numa amostra de 231.808 escravos redistribuídos pelo porto do Rio entre 1809 e 1830, cerca de 40% dos mesmos tinham como destino Minas Gerais, 36% o Rio de Janeiro, 15,5% São Paulo e 8,5% o Rio Grande do Sul.49
46
FRAGOSO, João L. R.; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (c. 1750 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 93. 47 Ibid., p. 95. 48 ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. A memória do tempo de cativeiro no Maranhão. In Revista Tempo, v. 15, n. 29, 2010, p. 69. 49 Cerca de 70% dos cativos negociados eram africanos novos, ou seja, recém-chegados da África, ao contrário dos ladinos, que eram africanos que já estavam estabelecidos certo tempo no Brasil. Os africanos novos correspondiam a 35% do total que o Rio recebeu por meio do tráfico atlântico no período (1809-1830). Dos escravos remetidos para Minas, 97,8% eram africanos novos. Este mesmo índice foi de 90,9% entre os remetidos para o Rio, 94,7% para São Paulo e 72,2% para o Rio Grande do Sul PINHEIRO, Fábio. O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis mineiros, Zona da Mata (c.1809 -c.1830). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2007, p. 79; PINHEIRO, Fábio. Os condutores de almas africanas: concentração e famílias no tráfico de escravos para Minas Gerais. C. 1809-C. 1830. In: XIII Anais do XIII Seminário sobre a Economia Mineira, 2008, p. 2. 54
Portanto, as dezenas de milhares de africanos que desembarcaram pelo porto do Rio não abasteceram somente a província fluminense, mas toda a região centro-sul, e não apenas as suas plantations, mas também as lavouras de gêneros alimentícios, as regiões de criação de gado e as suas principais vilas e cidades. É importante fazer esta ressalva, pois durante muito tempo se acreditou que o tráfico atlântico atendia somente às necessidades das plantations coloniais. Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tem demonstrado que as áreas voltadas para o abastecimento de alimentos concentravam uma grande fatia da mão de obra cativa.50 Em São Paulo, por exemplo, 81% dos proprietários de escravos arrolados nas listas de habitantes da primeira década do oitocentos eram lavradores não ligados à agroexportação.51 No geral, entre 1798 e 1828, somente 2,5% dos chefes de domicílio paulistas eram senhores de engenho e mais de 60% deles eram lavradores e/ou criadores que 52 destinavam grande parte da sua produção ao mercado interno.
Nesta mesma época, o Paraná (que ainda pertencia ao território paulista) também constituiu-se numa importante área de pecuária, reunindo pequenos, médios e grandes criadores, com notável uso de mão de obra cativa.53 Além disso, como as tropas de gado que seguiam do Rio Grande do Sul para São Paulo precisavam parar ao longo do trajeto para recuperar o peso perdido, os campos paranaenses tornaram-se importantes espaços de invernada, gerando lucros aos proprietários da região. Orbitando os campos de criação, havia centenas de sítios que cultivavam milho, feijão, arroz e trigo, remetendo seus excedentes para os mercados paulistas e fluminenses.54
50
Como, por exemplo, MOTTA, Márcia Maria M. Pelas Bandas d’Além: fronteira fechada e arrendatáriosescravistas em uma região policultora (1800-1888). Niterói: ICHF/UFF, 1989; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá. Magé na crise do escravismo: sistema agrário e evolução econômica na produção de ali mentos (18501888). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1994; CASTRO, Hebe M. da C. Mattos de. A Margem da História: homens livres pobres e pequena produção na crise do trabalho escravo. Niterói: ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1985; FARIA, Sheila de Castro. Terra e trabalho em Campos dos Goitacazes (1850-1920). Niterói: ICFH/UFF, Dissertação de Mestrado, 1986; BARICKMAN, Bert. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 51 Os principais gêneros cultivados e comercializados eram o milho, o feijão, o arroz, a farinha de mandioca e o toucinho. Conforme Luna e Klein, “em 1804, o elevado porcentual de 86% dos agricultores proprietários de escravos dedicava-se à produção de “alimentos”; tais produtores controlavam 70% dos escravos pertencentes aos agricultores. Em 1829, aproximadamente três quartos dos proprietários de cativos ocupados na agricultura declararam esses produtos, e seus escravos compunham cerca da metade da força de trabalho cativa empregada na agricultura. Nesse mesmo ano, se incluirmos todos os proprietários de escravos, mesmo os que não se dedicavam à agricultura, os que produziam ‘alimentos’ ainda compunham metade do total de senhores e controlavam 40% dos escravos” (LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbet. Escravidão africana na produção de alimentos. São Paulo no século XIX. In: Estudos Econômicos, v. 40, n. 2, 2010, p. 297). 52 FRAGOSO, João. Op. cit., p. 135-137. 53 GUTIÉRREZ, Horácio. Fazendas de gado no Paraná escravista. Topói, v. 5, jul-dez, 2004, p. 102-127. 54 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, r oceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 144-146. 55
A produção sul-rio-grandense será tratada mais adiante, mas não custa lembrar que no período aqui analisado ela foi a maior produtora de charque da colônia, destacando-se também nas exportações de trigo.55 Santa Catarina, por sua vez, também apresentou uma importante pecuária, embora tenha se destacado mais na produção de farinha de mandioca. As entradas deste produto no porto do Rio, apresentaram um aumento de 307% para o período entre 1799 e 1822. Entre 1799 e 1811, as receitas provenientes das entradas de naus com charque e farinha cresceram, respectivamente, 4% e 10% anualmente.56 O charque e a farinha, como é sabido, eram componentes básicos da dieta das camadas populares livres e dos escravos. Todas estas capitanias do centro-sul tinham parte de sua produção destinada ao abastecimento das suas vilas litorâneas e, em particular, do Rio de Janeiro. A capitania fluminense, cuja população saltou de 168.849 habitantes, em 1789, para 591.000, em 1830 (um crescimento de 250%) havia tornado-se um significativo mercado para os gêneros produzidos pelas outras capitanias do centro-sul. Mesmo antes da vinda da Família Real, em 1808, o Rio já recebia vultosas remessas de alimentos, tanto por vias terrestres quanto fluviais e marítimas. No entanto, após a instalação da Corte no Rio de Janeiro e o incremento 57
populacional decorrente da mesma, a demanda por tais gêneros aumentou mais ainda. O mesmo ocorreu com o tráfico atlântico, que após a abertura dos portos, em 1810, viu as suas entradas praticamente dobrarem. Entre 1799 e 1821, a população da Corte aumentou em 160% e, em 1830, cerca de 16.807 escravos perfaziam 43% da população urbana. 58 Portanto, o Rio de Janeiro havia se tornado um mercado com enorme capacidade de consumo de alimentos, estimulando a produção e o comércio de abastecimento não apenas nos municípios fluminenses, como também das capitanias vizinhas e até mesmo de outros países. Nesta época, mas sobretudo no meado do oitocentos, argentinos e uruguaios, também grandes produtores de charque, disputaram de forma acirrada com os sul-rio-grandenses o mercado consumidor fluminense, como demonstrarei em capítulos posteriores. Foi neste contexto envolvendo o crescimento populacional fluminense que Minas Gerais se consolidou como uma das grandes produtoras de alimentos do centro-sul. Desde os escritos de Alcir Lenharo, passando por outros importantes historiadores, a imagem de Minas 55
Como já demonstraram OSÓRIO, Helen. Op. cit.; SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, século XVIII.São Paulo, Editora Nacional, 1984; CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Dissertação de Mestrado, UFF, 1983. 56 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 95-96; 111. 57 LENHARO, Alcir. Op. cit. 58 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 93-95. 56
Gerais como uma economia decadente, no intervalo entre a crise da mineração e a expansão cafeeira, foi sendo substituída por um outro quadro economicamente mais complexo e dinâmico.59 As principais contribuições destes autores foi demonstrar que uma economia não exportadora, baseada no comércio de alimentos para o mercado interno, tanto no interior de Minas, quanto para outras localidades, como a Corte, também podia possibilitar uma notável acumulação mercantil que favoreceu o tráfico de escravos para a região, tornando-a a província com o maior número de cativos no Império.60 Além da cultura do milho, Minas destacou-se bastante pela sua exportação de toucinho. O incremento de sua economia no colonial tardio possibilitou o surgimento de uma elite regional ligada ao comércio de abastecimento e que teve importante proeminência política e econômica ao longo do oitocentos.61 Analisando a produção e o comércio de alimentos nas mencionadas capitanias/províncias do centro-sul e o processo de acumulação que se constituiu no interior deste mercado interno regional, João Fragoso considerou que os mesmos formavam um mosaico de formas não capitalistas de produção. No centro deste sistema econômico estavam
os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro. Principais agentes do comércio atlântico, eles movimentavam tanto a exportação/importação de mercadorias, quanto o comércio de cabotagem (que envolvia o abastecimento de farinha e charque, por exemplo), além de serem os principais agentes no tráfico atlântico de escravos. Portanto, se a reprodução social das plantations dependia da ampliação das áreas de cultivo de gêneros alimentícios, ambas
dependiam do capital e do crédito assegurado por estes comerciantes, cujas negociações lhes possibilitavam uma notável acumulação endógena, também realizada na dinâmica do mercado
59
MARTINS, Roberto. Op. cit.; ALMEIDA, Carla. Op. cit.; CARRARA, Ângelo. Op. cit.; SLENES, Robert W. A. Os múltiplos de porcos e diamantes: E economia Escrava de Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos. São Paulo. V. 18, n. 3. p. 449- 495. Set.-dez. 1988; PAIVA, Clotilde. População e economias
Minas Gerais do século XIX.Tese doutorado. USP,1996; LIBBY, Douglas. Transformação e Trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais século XIX. São Paulo. Brasiliense: 1988; GRAÇA FILHO, Afonso Alencastro. A princesa do Oeste e o Mito da decadência de Minas Gerais. São João Del Rei (1831-1888). Editora Annablume. São Paulo. 2002. 60 Uma revisão mais aprofundada da contribuição destes e de outros autores pode ser vista em ANDRADE, Leandro Braga. A formação econômica de Minas Gerais e a perspectiva regional: encontros e desencontros da historiografia sobre os séculos XVIII e XIX.Caderno Caminhos da História, v. 6, p. 1-19, 2010. 61 Ver, por exemplo, LENHARO, Alcir. Op. cit.; ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais, Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007; RESENDE, Edna. Ecos do Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena (1831-1840). Tese de Doutorado PPG-História da UFMG, 2008. 57
interno. O período colonial tardio foi o momento onde este sistema encontrou o seu mais maduro e pleno funcionamento.62 Como foi mencionado, este mosaico também envolvia o Rio Grande do Sul, que, por conta das remessas de couros e charque e do crescente consumo de bens manufaturados por parte de sua população, constituiu-se num dos maiores parceiros comerciais do Rio de Janeiro. “Somente a soma das reexportações de tecidos do Rio para o Rio Grande do Sul em 1810, 1811 e 1812 (1:602:984$910 réis) correspondia a 52% de tudo que se importou de Portugal ao longo destes três anos”. As divisas deste comércio provinham das crescentes quantias de trigo, couros e charque que o Rio Grande vinha exportando desde os fins do setecentos. Entre 1799 e 1822, por exemplo, as exportações de charque do Rio Grande para o Rio cresceram 249%.63 Apesar da notável capacidade de acumulação nesta rede de abastecimento no interior de um mercado interno, ainda restrito e bastante regionalizado, que caracterizou o centro-sul da colônia, pesquisas posteriores ao modelo oferecido por João Fragoso colocaram o comércio do Rio Grande do Sul numa posição menos circunscrita ao mercado consumidor fluminense, no que diz respeito, ao menos, às exportações de charque. Conforme Helen Osório, entre 1802 e 1819, a Bahia foi a maior compradora do charque sulino, tendo sido ultrapassada pelo Rio em 1820-1821. No entanto, somadas as exportações para a Bahia e o Pernambuco nestes dois últimos anos, constata-se que o Rio não foi responsável pela maior parte do charque exportado. Portanto, neste período os portos do nordeste sempre foram os 64 compradores da maior parte do charque fabricado no Rio Grande.
Examinando outros dados estatísticos para as décadas 1820 e 1840, verifiquei que esta tendência se manteve ao longo do período, ou seja, mesmo com o café ultrapassando o açúcar na pauta das exportações brasileiras, o charque rio-grandense continuou tendo seu principal mercado consumidor nas plantations açucareiras do nordeste.65 Tais índices, no entanto, apesar de demonstrarem uma maior autonomia da economia charqueadora em relação ao Rio de Janeiro, não desatam o Rio Grande dos mecanismos de acumulação internos e das redes de abastecimento do centro-sul. Se as exportações de charque não tiveram o Rio como principal 62 FRAGOSO, João L. R. Algumas notas sobre a noção de “colonial tardio” no Rio de Janeiro: um ensaio sobre a economia colonial. Locus - Revista de História, Juiz de Fora, v. 6, n. 10, 2000. 63
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Florentino. Op. cit., p. 95-96. OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 200. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Fundo Fazenda, m. 482. Como será demonstrado ao longo desta tese, esta tendência aumentou gradualmente ao longo do século, chegando a proporções de 4/5 das exportações nas décadas de 1860 e 1870. 64 65
58
mercado, as remessas de couro foram quase que exclusivamente direcionadas para o sudeste e as importações rio-grandenses, de manufaturados, mas, principalmente de escravos, tinham na praça carioca o seu principal centro de fornecimento.66 Portanto, o Rio era e continuou sendo o principal parceiro comercial do Rio Grande, mas quando se tratava de negócios envolvendo o charque, outras regiões se apresentavam como as principais compradoras do produto. Esta constatação é de grande importância para a análise da formação e da decadência do complexo charqueador escravista pelotense, mas, por enquanto, observarei a primeira etapa mencionada.
1.2 - A CRISE DAS OFICINAS DE CARNE-SECA DO NORDESTE E A ENTRADA DO RIO GRANDE DO SUL NO RAMO DOS NEGÓCIOS
Se as plantations do sudeste eram abastecidas pelos produtores de alimentos que compunham o mosaico de regiões produtoras descrito acima, suas correspondentes no nordeste da colônia também pareciam apresentar uma estrutura semelhante. Paralelamente à expansão das lavouras de cana e dos engenhos de açúcar, regiões inteiras na Província da Bahia e em Pernambuco, por exemplo, constituíram-se em produtoras de alimentos tanto para as vilas e cidades próximas, quanto para as grandes unidades escravistas açucareiras. Na Bahia, por exemplo, no próprio Recôncavo existiam sítios produtores de farinha e outros gêneros destinados ao consumo dos engenhos, além dos lavradores de cana, que também dedicavam-se parcialmente aos mesmos. No sul do Recôncavo, tanto as unidades fumageiras como as cafeeiras também cultivavam gêneros alimentícios, negociando seus excedentes. Em municípios mais afastados, a lavoura de mandioca tomava proporções ainda maiores, misturando-se com as plantações de outros produtos em menor escala, como arroz, feijão e outros legumes. Mas deste leque de mercadorias, a farinha é a que possuía o maior destaque no comércio de alimentos.67 Em Pernambuco, pesquisas recentes demonstram que as regiões do agreste e do sertão, de longe as que produziam mais alimentos para o abastecimento dos engenhos e do litoral, concentravam algo entre 30% e 40% dos escravos da capitania. O sertão tinha na criação de gado a sua principal atividade econômica e o agreste,
66
Como demonstraram OSÓRIO, Helen. Op. cit.; BERUTE, Gabriel S. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2006. 67 BARICKMAN, Bert. Op. cit., p. 301-303. 59
por sua vez, além de destacar-se pelas plantações de algodão, possuía uma importante lavoura de gêneros.68 No entanto, como as formações sócio-econômicas das regiões sudeste e nordeste eram distintas, a estrutura agrária produtora de alimentos de ambas também acabava se diferenciando. Conforme Luna e Klein, a expansão açucareira no oeste paulista, por exemplo, deu-se de forma diversa da que ocorreu no Recôncavo Baiano. Em São Paulo, as plantações de cana não aderiram à pratica da monocultura e suas áreas de plantio eram conjungadas com espaços reservados à produção de alimentos, como o milho, o arroz, o feijão, além da criação de porcos. Assim sendo, os proprietários dificilmente deixavam de continuar a dedicar parte de suas terras, capitais e mão de obra à lavoura de alimentos. O arroz, por exemplo, era geralmente cultivado em unidades não especializadas e em meio a outras culturas, incluindo o açúcar e o café. Em 1836, “mais da metade da produção de arroz proveio de unidades agrícolas que também produziram café e/ou açúcar”. Mesmo fora destas unidades, “o arroz foi crescentemente um produto cultivado com mão de obra escrava em todas as partes ”. Neste mesmo sentido, o feijão também era plantado em unidades heterogêneas junto com as fazendas de criação e os engenhos de açúcar. As propriedades açucareiras com mais escravos também eram as que cultivavam a maior parte do feijão paulista. Portanto, São Paulo integrou-se ao mercado internacional sem deixar de ser uma grande produtora de alimentos, 69 esboçando uma estrutura agrária mais equilibrada com relação a isto.
Em contrapartida, a estrutura agrária e escravista das plantations nordestinas era distinta. A média nas unidades açucareiras do Recôncavo baiano, por exemplo, era de 65 cativos, mas o tamanho mais comum dos plantéis ficava entre 60 e 100 escravos, e 1/3 deles pertenciam a propriedades com mais de 100 cativos.70 Em Pernambuco, Eisenberg encontrou uma média de 55 cativos nos anos 1840 e de 70 em Jaboatão (um dos distritos açucareiros mais ricos), nos anos 1850. As maiores propriedades também tinham mais de 100 escravos, com algumas ultrapassando os 300.71 Apesar de também possuírem engenhos com mais de 100 trabalhadores, a média de escravos no Rio e em São Paulo era de 30 cativos, ou seja, menos da metade das unidades produtivas do nordeste. Além disso, conforme Schwartz, o uso da terra nas unidades baianas era mais extensivo e os senhores de engenho buscavam reservá68 VERSIANI, Flávio; VERGOLINO, José Raimundo. Riqueza no Agreste e Sertão de Pernambuco (17771887). Estudos econômicos, São Paulo, v. 33, n. 2, abr-jun, 2003, p. 353-393. 69 70 71
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit. 2010, p. 312. Idem., 2005, p. 63-67. EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 169. 60
las somente ao plantio da cana, recusando-se a produzir gêneros alimentícios em sua fazendas.72 O Rio de Janeiro, por sua vez, estava mais próximo de São Paulo no que diz respeito ao tamanho dos plantéis e mais semelhante às unidades açucareira do nordeste no que diz respeito à produção de alimentos. De acordo com Fragoso e Florentino, nenhuma das 73 plantations açucareiras fluminenses com mais de 100 cativos produzia alimentos.
Tendo em vista que os grandes plantadores paulistas não abriram mão da produção de gêneros para o abastecimento, pode-se deduzir que as suas áreas reservadas para o plantio da cana também possuíam dimensões menores. Isto pode ajudar a explicar os ritmos de produção de ambos os setores agroexportadores. De acordo com Schwartz, a produção açucareira de São Paulo era minúscula se comparada à nordestina. Em 1808, por exemplo, a Bahia exportou 20 mil caixas de açúcar, Pernambuco 14 mil, o Rio de Janeiro 9 mil e São Paulo apenas 1 mil.74 O número levemente superior de engenhos e a maior média de cativos por unidade induz a pensar que as capitanias do nordeste possuíam uma maior proporção de escravos nas áreas açucareiras do que as capitanias do sudeste. 75 Soma-se a isso o fato de que mesmo com o grande boom do tráfico na década de 1810, a população cativa do sudeste não superou a do nordeste no período. De acordo com a Tabela 1.1, enquanto o nordeste (incluindo a Bahia) concentrava 51,2% dos escravos, o sudeste detinha 37,2% dos mesmos. Conforme João Fragoso, este perfil demográfico só se alternaria na passagem da primeira para a segunda metade do século XIX.76 Portanto, o mencionado crescimento populacional que marcou o colonial tardio, assim como o aumento da entrada de escravos africanos e o desenvolvimento dos setores agroexportadores, fez crescer enormemente a demanda por gêneros alimentícios. Já fiz referência de como o Rio de Janeiro estava muito bem abastecido por uma grande e diversificada rede mercantil. No nordeste, este setor da economia também teve importância fundamental na sustenção da ampliação das plantations. No entanto, conforme atestam diversos autores, esta região parece ter sofrido maiores reveses se comparada ao sudeste, tanto no abastecimento de farinha, quanto no de carnes. Não é necessário realizar um inventário das 72
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. 74 No entanto, o açúcar compunha a metade das exportações paulistas (SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988, p. 347). 75 Além disso, no Rio de Janeiro as fazendas de café já estavam se proliferando pelo Vale do Paraíba, atraindo grande levas de escravos, inclusive dos engenhos. 76 FRAGOSO, João Luis. O Império escravista e a República dos plantadores: a economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda (org.).História Geral do Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990. 73
61
crises de abastecimento naquela região.77 No entanto, uma delas, em particular, é de fundamental importância para a compreensão do presente objeto de pesquisa, pois abriu um espaço de consumo notável para o charque sul-rio-grandense. Tabela 1.1 – População livre e escrava por capitanias (1819) Capitanias
Total
Livres
Escravos
Amazonas Pará Maranhão Piauí Ceará Rio G. do Norte Paraíba Pernambuco Alagoas Sergipe Bahia Goiás Mato Grosso Minas Gerais Espírito Santo Rio de Janeiro (e Corte) São Paulo Paraná Santa Catarina Rio Grande do Sul
19.350 123.901 200.000 61.226 201.170 70.921 96.448 368.465 111.973 114.966 477.912 63.168 37.396 631.885 72.845 510.000 238.323 59.942 44.031 92.180
13.310 90.901 66.668 48.821 145.731 61.812 79.725 270.832 42.879 88.783 330.649 36.368 23.216 463.342 52.573 363.940 160.656 49.751 34.859 63.927
6.040 33.000 133.332 12.405 55.439 9.109 16.723 97.633 69.094 26.213 147.263 26.800 14.180 168.543 20.272 146.060 77.667 10.191 9.172 28.253
3.596.102
2.488.743
1.107.389
Total
Fonte: IBGE. Estatísticas históricas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, 1987, p. 30
Até a década de 1780, as unidades açucareiras do nordeste contaram com uma pujante rede mercantil que as abastecia de carne-seca. Não custa lembrar que este produto constituiase na principal proteína na dieta dos escravos e que as unidades açucareiras nordestinas, onde praticamente não se produzia alimentos e concentravam-se as maiores escravarias da colônia, formavam um espaço econômico cujo potencial de consumo era notável. Durante todo o século XVII e as primeiras décadas do XVIII, o abastecimento de carne tanto das vilas litorâneas quanto dos engenhos de açúcar era realizado quase que exclusivamente por meio do comércio de tropas que atravessavam o sertão em direção às regiões de consumo, complementando a produção local. Nesta rota terrestre, Goiás, Piauí, Ceará e o interior da 77
Ver, para isso, REIS, João José; AGUIAR, Márcia G. D. de.“Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, 2º sem., 1996, p. 133-160; SOUSA, Avanete Pereira. Poder local, crises de subsistência e autonomia camarária (Salvador, século XVIII). Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, 2011, p. 1-10; SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988. 62
Bahia e de Pernambuco fizeram parte dos principais espaços pecuaristas fornecedores de gado.78 No entanto, o transporte de tropas que atravessava o sertão era penoso e, em épocas de estiagem, o gado chegava muito magro, desagradando os consumidores e trazendo prejuízo aos criadores. Embora a técnica de salgar as carnes para conservá-las já fosse conhecida e realizada artesanalmente, por volta da década de 1730, em Aracati (no Ceará) alguns comerciantes projetaram erguer oficinas de carne-seca às margens fluviais que levavam ao Atlântico. Com o tempo, a região destacou-se como grande produtora de carne-seca e além do próprio Ceará, as capitanias do Maranhão e do Rio Grande do Norte tiveram suas “salgadeiras”, mas
ambas não chegaram perto dos montantes exportados pelo Piauí, que tinha
na vila de Parnaíba o seu principal pólo produtor.79 Além de abastecer as capitanias da Bahia 80 e de Pernambuco, a carne-seca do sertão também era remetida para as Minas Gerais.
A proliferação destas fábricas, no início pequenas, mas, na segunda metade do setencentos, de maiores dimensões e com grande uso de mão de obra cativa, foi um negócio que beneficiou todos os setores econômicos desde a criação dos animais até os consumidores.81 Com o surgimento das oficinas, os fazendeiros não precisavam mais encaminhar seus rebanhos em custosas viagens que duravam dias e que eram danosas demais para os animais. Além disso, o ritmo de abate das oficinas garantia a regularidade da demanda 78
GIRÃO, Valdelice C. As charqueadas. Revista do Instituto do Ceará, 1996, p. 71-92; ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012; REGO, Júnia Napoleão do.
Dos sertões aos mares: história do comércio e dos comerciantes de Parnaíba (1700-1950). Tese de Doutorado, UFF, 2010; BARICKMAN, Bert. Op. cit., p. 90. 79 No Ceará, o Vale do Jaguaribe tornou-se o principal núcleo de fabricação de carne-seca, envolvendo as localidades de Icó, Granja, Sobral, Camocim e Aracati. No Piauí, destacou-se a vila de Parnaíba, como a principal produtora. Para ela eram encaminhados os numerosos rebanhos da capitania, além de tropas vindas do Maranhão. No Rio Grande do Norte, Assú e Mossoró também tiveram suas oficinas, mas destacaram-se muito mais como fornecedoras de sal do que de carne-seca (ROLIM, Leonardo. Op. cit.; GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; REGO, Júnia do. Op. cit). Conforme Rolim, o surgimento das oficinas no sertão não excluiu a permanência do comércio de tropas para o litoral (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 68). 80 CARRARA, Ângelo. Op. cit. 81 Conforme Leonardo Rolim, é provável que nas primeiras décadas de funcionamento das oficinas a mão de obra utilizada fosse a indígena. Com a proibição da escravização do indios, em 1759, e o consequente auge das exportações de carne-seca, grandes levas de escravos teriam sido remetidas para o Ceará fazendo com que a sua população ultrapassasse a do Rio Grande do Norte e a da Paraíba, entre as décadas de 1760 e 1770. A mão de obra escrava era combinada com o uso de trabalhadores livres (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 129-133). No sertão do Acaraú cearense, outra região onde haviam oficinas de charque, uma análise de 478 inventários postmortem, entre 1709 e 1822, revelou que 416 deles (87%) possuíam escravos entre seus bens. Enquanto os proprietários com menos de 5 cativos compunham 2/3 dos escravistas, os possuidores de mais de 15 cativos somavam somente 3% do grupo. Os escravos eram trazidos por comerciantes de gado da Bahia, Pernambuco e Maranhão. Dos 2.080 escravos em que foi possível localizar a informação de sua procedência, 625 (30%) eram africanos (SOUZA, Raimundo N. de; FUNES, Eurípedes. Negros no sertão do Acaraú no século (1709-1822). In: Anais do II Simpósio de História do Maranhão oitocentista.UEMA, 2011, p. 1-16). 63
e bons preços pagos pelo gado. Os proprietários das charqueadas, por sua vez, tinham um acesso facilitado tanto aos rebanhos, quanto às vias fluviais, além de poderem contar com um mercado consumidor estável. Os comerciantes, dentre os quais estavam muitos dos próprios charqueadores, garantiam o fornecimento de mão de obra cativa, de sal (vindo, principalmente, do Rio Grande do Norte) e expandiam seus negócios cada vez mais, levando os carregamentos, inclusive, até o Rio de Janeiro. Na ponta final da cadeia, os senhores de engenho alimentavam a sua escravaria com um produto barato, pronto para o consumo e com melhores condições de conservar-se estocado. Além disso, as populações mais pobres também eram atendidas pelo produto. Os mais de 50 anos em que estes complexos charqueadores nordestinos existiram, período conhecido como o ciclo das oficinas, trouxeram grande prosperidade para as suas regiões de produção.82 No entanto, este capítulo da história econômica do nordeste do Brasil teve um final um tanto trágico. As secas de 1777 e de 1791-92 desfeixaram duros golpes na indústria cearense, trazendo também, principalmente na segunda delas, a crise até as fábricas do Piauí. A morte de milhares de cabeças de gado resultou na decadência irreversível do setor, abrindo um espaço no mercado para um núcleo charqueador que ainda estava no início de seu processo de montagem. Desde a década de 1780, como demonstrarei a seguir, o Rio Grande do Sul já remetia significativas quantias de charque para o Rio de Janeiro. No entanto, como o sudeste estava muito bem abastecido pela mencionada pecuária paulista e paranaense, além do comércio de toucinho mineiro para o Rio, o charque rio-grandense encontrava muitos concorrentes nesta região. A desgraça que assolou as propriedades cearenses e piauienses ofereceu um novo mercado para a remessa do produto, que vinha enfrentando uma baixa de preços na praça carioca, no final da década de 1780.83 Valdelice Girão considera que não foram somente as secas as responsáveis pela decadência da indústria de carne-seca cearense. Quando os reveses causados pelas secas foram superados, um outro processo de expansão agrícola já havia se iniciado naquelas paragens. A febre do algodão nas terras ao norte da colônia, motivada pelos altos preços alcançados pelo produto no mercado europeu (eles chegaram a dobrar, entre 1770 e 1800), despertou o interesse de muitos fazendeiros. Por conta disso, os lucros com o cultivo do algodão passaram a ser maiores do que os obtidos com o açúcar, fazendo com que muitos 82
Sobre a ostentação de riqueza dos proprietários ver GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; REGO, Júnia do. Op. cit. Além dos baixos preços pagos pelo charque no Rio, os comerciantes rio-grandenses reclamavam do monopólio praticado pelos cariocas e da precária distribuição na cidade e nos seus subúrbios, fazendo com que o produto se acumulasse nos armazéns (OSÓRIO, Helen. Op. cit.). 83
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plantadores migrassem de cultura.84 No Ceará, o mesmo teria ocorrido com relação à pecuária, pois o cultivo do algodão começou a tomar o espaço dos antigos currais. Somado aos altos preços do algodão, tem-se ainda o fato de que os investimentos nesta lavoura exigiam baixos custos e uma menor mão de obra se comparados ao açúcar. Além do mais, o algodão convivia muito bem com o plantio de outros gêneros alimentícios, o que não comprometia em demasia a subsistência local. Com a expansão das fazendas de algodão e a consequente diminuição das áreas de pastagens, teria havido uma queda da oferta de gado para o comércio, ao ponto de desestimular novos investimentos e inviabilizar a recuperação da já arruinada indústria da carne-seca.85 Na década de 1790, diante dos problemas enfrentados pelas oficinas de carne-seca do Ceará e do Piauí, o charque do Rio Grande do Sul entrou de vez no mercado nordestino. A produção sulina não sofria das oscilações decorrentes das secas, como nas suas concorrentes, o que se tornava uma vantagem, pois garantia um abastecimento mais regular. Além disso, a economia sul-rio-grandense passava por uma expansão notável e continuaria neste ritmo nas primeiras décadas do oitocentos. Portanto, mesmo recuperando-se dos reveses climáticos, era difícil para a indústria nordestina recuperar-se da crise e competir com o charque sulino, pois este era negociado em vultosas quantidades, com um preço acessível e era capaz de suprir boa parte da demanda de uma economia açucareira onde o número de engenhos e escravos vinha em nítido crescimento, como demonstrei anteriormente. Em 1787, quando o Rio Grande do Sul ainda não exportava charque para o nordeste, suas remessas totalizaram 117 mil arrobas (exclusivas para o Rio). No entanto, com a entrada do mercado nordestino nas transações, o Rio Grande ultrapassou as 400 mil arrobas exportadas em 1793 e as 500 mil arrobas em 1797. Na década de 1800, a capitania exportou uma média anual de 820 mil arrobas, das quais mais da metade tinham como destino os portos do nordeste.86 Conforme Caio Prado Júnior, em sua 84
RIBEIRO JR., José Ribeiro. A economia algodoeira em Pernambuco: da Colônia à Independência. Revista Brasileira de História. São Paulo, set. 1981, p. 235-242. Tal fenômeno fez com que, em Pernambuco, o valor das exportações algodoeiras chegassem a ultrapassar os altos índices atingidos pelo açúcar (ALDEN, Dauril. Op. cit., p. 564-568). A expansão algodoeira em Pernambuco e nas capitanias vizinhas fez aumentar a demanda por carne-seca. Mas antes disso, teve um efeito catastrófico, pois braços e terras antes destinados à produção para o mercado interno, entraram no ciclo do algodão provocando crises alimentares na região (ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 182-183). 85 GIRÃO, Valdelice. Op. cit.; ROLIM, Leonardo. Op. cit., p. 179-180. 86 Conforme Júnia do Rego, na década de 1780, as regiões que concentravam a produção do charque no Ceará abatiam uma média anual de 50 mil cabeças de gado, enquanto Parnaíba, no Piauí, destinava 40 mil reses para o mesmo fim (REGO, Júnia do. Op. cit). Um atento observador declarou que o gado na Ilha de Marajó rendia 3 arrobas de charque (Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Contudo, no Rio Grande do Sul ele podia render de 4 a 4,5 arrobas. Caso cada animal rendesse em média 4 arrobas de carne-seca, o Piauí e o Ceará juntos teriam fabricado algo entre 350 e 400 mil arrobas anuais de carne-seca. No entanto, parte deste 65
análise sobre a expansão do setor no colonial tardio, “excluído o rush do ouro, não se assistira ainda na colônia a tamanho desdobramento de atividades”.
87
Além disso, o circuíto mercantil
Rio Grande do Sul – Bahia – Pernambuco era estimulado pelos próprios comerciantes dos
portos de Salvador e Recife, que aproveitavam as embarcações vindas do Sul para carregá-las de açúcar, fumo, aguardente, escravos e sal, com destino ao Rio Grande 88 – o que provavelmente lhes forneciam lucros maiores do que os ganhos no comércio com o Ceará e o Piauí, por exemplo. Portanto, o charque sul-rio-grandense além de preencher um mercado aberto pelas crises das charqueadas nordestinas, constituía-se numa fonte de grandes lucros aos comerciantes que realizavam seus negócios pelas margens do Atlântico e aos que investiram seus capitais no setor produtivo. O alimento havia se tornado uma fonte de proteínas necessária para o abastecimento dos engenhos e da população pobre das cidades de Salvador e Recife e teve no capital mercantil de ambas as regiões os seus impulsionadores. Pode-se dizer que sem esta rede de abastecimento, que agora ocorria entre capitanias de um extremo ao outro da América Portuguesa, a continuidade da expansão dasplantations açucareiras do nordeste teria encontrado dificuldades. Mas também é necessário considerar aqui que foi a ampliação das escravarias durante o processo de montagem das plantations no colonial tardio que criou as bases fundamentais para que o complexo charqueador escravista pelotense fosse criado. Portanto, é importante que se considere que a mencionada ampliação das plantations, antes e durante o colonial tardio, foi favorecida por fatores políticos e econômicos de ordem interna e externa e que devem ser vistos de forma conjugada. É certo que esta expansão respondeu aos estímulos do mercado internacional e que os reveses conjunturais enfrentados pelos produtores concorrentes tiveram importante papel no seu desenvolvimento. No entanto, nunca é demais lembrar que se tratava de uma fase B do ciclo de Kondratieff, ou seja, boa parte do período aqui analisado foi marcada por conjunturas internacionais de baixa de preços. Portanto, para que os balanços das empresas cafeicultoras e açucareiras fossem favoráveis aos seus proprietários, o lucro deveria ser mantido na ampliação do volume das charque ficava para o consumo local e outra parcela era exportada para o Maranhão, o Pará, o Rio de Janeiro, além de capitanias menores. Tendo em vista as sempre existentes oscilações, é possível considerar que na passagem do século XVIII para o XIX, o Rio Grande já era capaz de suprir os montantes exportados pelas oficinas do sertão para as capitanias açucareiras, pois remeteu, anualmente, algo entre 400 a 500 mil arrobas para a Bahia e o Pernambuco. 87 PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 103. 88 OSÓRIO, Helen. Op. cit. 66
mercadorias exportadas. Tal operação seria viável aumentando as áreas de plantio e o volume de mão de obra empregada (ou da produção por escravo). 89 Esta ampliação, ao mesmo tempo em que era favorecida pela notável oferta de alimentos, constituía-se num estímulo ao crescimento da produção destes mesmos gêneros. A reprodução socioeconômica das plantations em áreas de fronteira dependia do contínuo fluxo de escravos, financiado pelo
capital mercantil atlântico, e do comércio de alimentos, oriundos de unidades produtivas com grande presença de escravos. Os baixos custos da terra, da mão de obra e dos alimentos possibilitaram esta ampliação.90 Neste sentido, os gastos para o sustento dos escravos constituía-se numa preocupação central para os proprietários de plantations. Segundo João Fragoso, por volta de 1830, cerca de ¼ das despesas das grandes plantações cafeicultoras do vale do Paraíba do Sul se constituía em gêneros para os escravos. No século XVIII, nas plantações beneditinas da Bahia, tal índice chegava a 30%.91 Assim sendo, os senhores de engenho podiam não conhecer as teorias econômicas mais elementares, mas sabiam muito bem que seus trabalhadores precisavam se alimentar e que a ampliação de sua empresa dependia de um regular abastecimento a baixos custos. Em 1796, por exemplo, comerciantes baianos realizaram uma representação à Coroa portuguesa solicitando que fossem cessados os encargos que o contratador dos tabacos vinha impondo sobre o charque trazido do Rio Grande do Sul. No documento, eles argumentavam que: (…) o fomento dado à exportação das carnes do Rio Grande por esta Praça e pelas
mais deste Continente em que se empregam acima de 140 sumacas de muitas mil arrobas, tem feito baratear pelo seu concurso a subsistência dos pobres escravos. Do quê resulta a ampliação da cultura do tabaco e açúcar, cujos fazendeiros, animados pela barateza das carnes, quase único mantimento dos cativos, cada dia se multiplicam e prosperam, diminuindo-se-lhe os custos da mantensa , que dantes os forçavam a uma injúria e iniquidade de faltar àqueles desgraçados com o sustento não só abundante, senão às vezes necessário, servindo tudo para o Régio Erário perceber tão crescidas vantagens e não menos no Rio Grande, onde além do Dízimo, que se paga do gado em pé, há o bem sabido tribu to do quinto dos couros (…) .92
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. Em São Paulo, por exemplo, a média dos cativos nas fazendas de café expandiu-se a partir dos finais da década de 1820 (LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2005, p. 88). Este fenômeno deu-se justamente numa época em que os preços do café estavam em baixa. 89
“Há quem afirme que a queda das cotações externas dos produtos exportados era compensada pela
desvalorização cambial, permitindo aos fazendeiros deter parcela expressiva de moeda nacional. Contudo, mesmo em mil-réis, o café, por exemplo, registrou uma queda anual de 2% entre 1821 e 1833, e de 1,4% entre este último ano e 1849. O que de fato ocorria é que a empresa escravista exportadora enfrentava a queda dos preços internacionais pela multiplicação da produção” (FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 125). 90 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. 91 FRAGOSO, João. Op. cit., p. 180. 92 AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, D. 318 (Projeto Resgate). Grifos meus. 67
A partir da leitura desta representação fica nítido que o estímulo aos plantadores não provinha somente dos preços no mercado internacional. A oferta de alimentos baratos (que viabilizava a montagem dos engenhos e a ampliação das áreas de plantio) era entendida pelos contemporâneos como um fator primordial para a ampliação, a multiplicação e a prosperidade – termos utilizados pelos comerciantes –, das unidades açucareiras e da própria
economia colonial. Os fazendeiros e senhores de engenhosanimavam-se com a barateza das carnes. Além disso, se por um lado a representação dos comerciantes baianos foi assinada em uma conjuntura de aumento da demanda internacional do açúcar, a produção estava sendo ameaçada pela drástica queda na oferta da carne-seca do nordeste. Ora, foi nesta conjuntura (1791-1805) que as exportações do charque rio-grandense cresceram quase 250%, substituindo as remessas do Ceará e Piauí e trazendo ânimo aos produtores. A ampliação das unidades escravistas baianas e pernambucanas, abastecidas pelo charque pelotense, colocou o Brasil na posição de maior produtor de açúcar do mundo. Portanto, concordando com Schwartz, o crescimento das exportações de açúcar “não se deveu apenas à revolução haitiana e às oportunidades por ela criadas, por mais importante que tenha sido esse evento”.
93
Uma vigorosa rede de abastecimento regional e o contínuo
fluxo de escravos financiado pelo capital residente dos principais portos da América Portuguesa foram fundamentais neste processo. Além disso, segundo Schwartz, embora o governo de Pombal tenha realizado melhoramentos econômicos que tiveram um alcance limitado (devido às conjunturas desfavoráveis, além de problemas de ordem política), “as sementes do futuro foram quase literalmente deitadas pelos administradores pombalinos”.
Reformas educacionais e institucionais realizadas no Reino foram responsáveis pela formação de uma geração de burocratas e intelectuais comprometidos com àquelas ideias, que incentivavam os mesmos a buscarem formas de “aperfeiçoar a economia e o relacionamento colonial”. Buscava-se,
a partir do estudo e conhecimento das técnicas produtivas em outras
partes do globo, implantar formas mais modernas de organização das mesmas, buscando um avanço nos setores agrícolas, o aceleramento das atividades mercantis e a dinamização da produção de alimentos. Em certa medida, estes administradores eram “afilhados intelectuais das reformas pombalinas”.
94
93
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., 1988, p. 347-349. Idem, p. 347-349. Sobre as Reformas Pombalinas ver FALCON, Francisco Calazans. Pombal e o Brasil. In: MATTOSO, José; TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. Bauru/Lisboa: EDUSC/Instituto Camões, 2001, p. 227-244; RAMINELLI, Ronald. Ilustração e império colonial. História (São Paulo), v. 31, n. 94
68
Neste sentido, a indústria charqueadora sul-rio-grandense também foi favorecida pelos incentivos do governo português, mesmo que, às vezes, de forma indireta e mediada por comerciantes de grosso trato de outros portos da Colônia. Em 1787, por exemplo, a Rainha D. Maria I concedeu a sua graça a uma embarcação para que trouxesse trigo do Rio Grande de São Pedro e deixasse, neste lugar, um carregamento de sal, livre de impostos. 95 Na representação citada anteriormente, onde os comerciantes baianos reclamavam das taxas sobre o charque remetido para Salvador, os mesmos receberam um parecer favorável, beneficiando a produção e o seu comércio. As queixas contra o estanco do sal e os altos valores do produto e de suas taxas marcou a década de 1790 e evitou que a produção de charque crescesse mais ainda. As reclamações foram se sucendendo, mas, no ano de 1805, os ventos do liberalismo econômico sopraram naquelas terras, quando findou o monopólio do produto. Com esta medida, as exportações de charque seguiram crescendo e aumentaram mais ainda na década de 1810, quando a política expansionista na fronteira com região do Prata, colocada em prática pelo Rei D. João VI, favoreceu os rio-grandenses no comércio das carnes.96 Os estímulos políticos e a necessidade do provimento de carnes que marcou a década de 1790, também induziram outros administradores ilustrados a implantar uma indústria charqueadora na Ilha de Marajó, ao norte do Pará. Conforme o Governador Capitão-general Francisco de Souza Coutinho, num relatório escrito em 1792 e enviado para a Coroa, a Ilha possuía um importante potencial para que fossem criadas, próximas às margens marítimas, algumas fábricas de carne salgada em barris com o fim de abastecer a população local e negociar os excedentes com as capitanias próximas, como o Grão-Pará e o Maranhão. O plano do ilustrado administrador era construir uma fábrica (ou até duas ou três, como ele frisava) entregue aos cuidados e vigilância de um inspetor, obrigando todos os criadores de gado da Ilha a remeter anualmente os seus rebanhos para serem vendidos no novo estabelecimento. “Empregados”, sob a dita inspeção, realizariam as atividades fabris, “arbitrando -se
alguma
pequena quantia para a satisfação dos salários”. A carne de salmoura (ou de moura) seria vendida em barris, como faziam os irlandeses, em substituição da carne seca da região, cujo péssimo aspecto e estado de preservação era perigoso para o consumo das classes populares, segundo o Governador. A Coroa facilitaria o acesso ao sal e o fornecimento dos barris. Estes 2, 2012, p. 36-67. Para um impacto na economia fluminense, ver PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos.Tese de Doutorado, UFF, 2009. 95 AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 296 (Projeto Resgate). 96 Ver, por exemplo, MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Editora Hucitec, 2009. Esta conjuntura política será tratada nos capítulos seguintes. 69
deveriam ter a marca da fábrica para evitar as falsificações do produto. Com o funcionamento desta instalação, a fabricação de carne seca realizada pelos fazendeiros ficaria proibida.97 No papel, tratava-se de um belo projeto, prevendo o uso de mão de obra assalariada, o controle da produção, o fortalecimento da rede mercantil e uma melhor higiene no fábrico das carnes, se comparado às artesanais oficinas do interior. No entanto, o documento não traz evidências de que este projeto tenha vingado. O seu autor apenas menciona que a “feliz experiência” com as mesmas carnes salgadas
realizadas na própria ilha o havia estimulado.
Portanto, a carne salgada estava sendo fabricada, mas ainda não em uma grande fábrica nas proporções desejadas por ele. Conforme Siméia Lopes, no comércio entre o Pará e o Marajó, as carnes de moura ou salgadas aparecem com frequência como um produto negociado, o que indica que sua fabricação continuou acontecendo no meado do oitocentos. No entanto, a autora também traz referências sobre as transações envolvendo a carne seca, ou seja, apesar da avaliação negativa do Governador Coutinho sobre a péssima qualidade da mercadoria, ela continuou sendo produzida e remetida para o Pará, no século XIX adentro. 98 Portanto, a condição de que com o funcionamento da indústria projetada pelo Governador a produção de carne seca deveria ser interrompida não teve sucesso. Talvez a resposta para isto esteje no próprio Relatório do Governador. Segundo ele, a economia da Ilha era dominada por grandes fazendeiros possuidores de muitos escravos e que, por conta disto, roubavam o gado dos pequenos criadores e ditavam as normas costumeiras da região. Logo, a produção da carne seca lhes beneficiava diretamente, pois eles concentravam grande parcela das terras, do gado vacum e da mão de obra local.99 Portanto, a suposta criação de uma fábrica que organizasse todo o processo desde a produção até o seu comércio e tirasse os lucros daqueles grandes fazendeiros lhes representava uma ameaça e corria um grande risco de não dar certo. 97
Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. LOPES, Siméia Nazaré. O comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840 e 1855. Dissertação de Mestrado, UFPA, 2002). 98 99
Nas palavras do Governador: “Agora fica fácil entender a razão porque dizem os criadores de gado que só os
que tem muitos escravos podem beneficiar as suas fazendas: com todo o benefício se reduz a estas terras e apartações, quem pode trazer efetivos muitos vaqueiros no campo pode fazer o que quiser; assim como pode apartar seus, pode apartar os alheios e é o que sucede; por isso também é contra os que tem esse maior número de escravos que se dirigem as mais veementes queixas. Deste sistema claro está que só resulta utilidade aos que por não terem, ou por terem poucas terras não poderiam ter gado, e aos vaqueiros que por si, e com o nome de seus amos podem fazer os furtos que bem querem, aos outros nenhuma e a razão é: todos os que tem e podem ter grande número de escravos tem grande extensão de terreno, em que poderiam criar muito maior número de reses do que não tem dispersas (…)” (Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 70
Portanto, projetos políticos e econômicos para o período não faltaram. Alguns obtiveram sucesso, mas outros facassaram. Neste sentido, o governo português buscava interferir da forma que acreditava ser a melhor para o desenvolvimento das diferentes regiões e para o benefício dos cofres da Coroa, mas barrava em diversos obstáculos. Um dos principais empecilhos dizia respeito à própria autonomia das elites coloniais que comportavam-se de acordo com os seus interesses, sempre tentando jogar com as normatizações vindas do Reino. Elas realizavam seus próprios cálculos a cerca de quais atividades econômicas seriam as mais propícias e a partir de quais métodos, práticas e escolhas levariam a cabo as mesmas. Concluindo este capítulo, podería-se pensar que se não fosse a vigorosa base produtiva de alimentos que caracterizou a estrutura agrária colonial, a ampliação das plantations teria seu desenvolvimento fortemente comprometido, ao mesmo tempo em que, a ampliação de novas terras para culturas de alimentos e criação de gado, tinha no crescimento populacional e no aumento do número de plantations, a garantia de sua manutenção e ampliação, mas não o seu único fim. É neste sentido que o mercado interno e o externo pareciam se complementar, sendo que a percepção de onde um favorecia a ampliação do outro é bastante complexa. É certo que o comércio de importação e exportação (incluindo o tráfico atlântico) era mais rentável que o setor de abastecimento e que aquele, pode-se dizer, era a principal mola do crescimento econômico alcançado no colonial tardio. Mas isto não torna o segundo um setor exclusivamente subsidiário, pobre e dependente das flutuações externas, ou seja, sem nenhuma autonomia econômica. Ele se alimentou do desenvolvimento da agroexportação, que fez surgirem mercados do nada nas mais distantes hinterlands, ao mesmo tempo que literalmente alimentou este setor. Portanto, ele também possuía flutuações próprias, uma vez que dado o arranque inicial agroexportador, fosse em tempos de crise no agro, de dificuldades climáticas ou de desmontes de engenhos, as pessoas precisavam comer e este era o sentido mais elementar da produção de alimentos. Assim sendo, a grande capacidade dos colonos do interior em montar fazendas e lavouras de cultivos de gêneros a baixos custos foi fator fundamental para a ampliação da agroexportação.100
100
LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2010, p. 312. “Porém, por mais que os escravos tenham sido desviados para o café pelo restante do século, o setor produtor de alimentos permaneceu expressivo e cada vez mais integrado à economia escravista. Assim, o alicerce da agricultura paulista continuou sendo a produção de ‘alimentos’, que se expandiu paralelamente às culturas de ‘exportação’ na primeira metade do século 19. Além
disso, a crescente importação de escravos africanos para as lides açucareiras e cafeeiras significou que até mesmo produtores exclusivamente de “alimentos”, como os que plantavam milho, puderam ter acesso à mão de
obra cativa. Um volume cada vez maior de gêneros de subsistência passou a ser comercializado e a participar do 71
A década de 1810, vislumbrava uma grande participação do açúcar e do algodão nas exportações brasileiras, colocando o nordeste brasileiro como o mais notável eixo econômico colonial e concentrador de escravos. A comparação de ambos os espaços econômicos açucareiros (sudeste e nordeste) e das suas redes regionais de abastecimento demonstra um notável desequilíbrio, pois a produção de alimentos no centro-sul, além de abastecer as suas próprias plantations, ainda fornecia alimentos para as unidades açucareiras do nordeste, por intermédio das remessas do charque sul-rio-grandense. 101 Portanto, a especialização demasiada das plantations açucareiras nordestinas, a decadência das charqueadas do sertão e o seu maior volume de escravos tornaram a região mais dependente das carnes importadas do sul. No entanto, uma leitura mais complexa, teria que acrescentar à lógica da demanda a contrapartida da oferta. Neste sentido, poderia se dizer que a economia charqueadora pelotense, para que continuasse crescendo, passaria a depender da estabilidade e da ampliação do mercado nordestino. Havia somente uma forma desta dependência ser quebrada. Ou o nordeste encontrava uma outra fonte de charque ou o Rio Grande buscava outros mercados consumidores. Nenhum dos dois acabou acontecendo de forma efetiva e, na década de 1880, ambos os complexos escravistas (o charqueador pelotense e o açucareiro nordestino) entraram em uma profunda crise… de mãos dadas.
mercado de várias maneiras, desde alimentar os trabalhadores e animais até suplementar a renda de produtores que faziam experiências com novas culturas, como o café”. 101
Quase um século antes, acontecia o inverso. A Bahia é quem abastecia as Minas Gerais com significativas remessas de mercadorias, envolvendo escravos e gado do sertão nordestino (CARRARA, Ângelo. Op. cit.). Antes do surgimento das charqueadas rio-grandenses, na década de 1770, o nordeste forneceu elevadas cargas de charque para as tropas militares estacionadas em Sacramento (ROLIM, Leonardo. Op. cit.). 72
2. A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS ESCRAVISTAS EM PELOTAS E NO RIO DA PRATA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS E MERCANTIS ATLÂNTICAS
Deus fez o alimento, o diabo acrescentou o tempero James Joyce
Muito antes do surgimento das oficinas de carne seca no sertão do nordeste brasileiro e das charqueadas de Pelotas, o comércio atlântico de carnes preparadas já movimentava centenas de embarcações e viabilizava, por exemplo, o abastecimento das plantations caribenhas e das tripulações dos navios europeus. A partir de meados do século XVII, a Irlanda destacou-se na fabricação e no comércio destes gêneros, dominando o mercado atlântico durante boa parte do século posterior. No amplo circuíto mercantil do qual os comerciantes irlandeses faziam parte, o porto de Cork tornou-se o principal pólo fabril de carne salgada dos séculos XVII e XVIII, desenvolvendo o único sistema bancário considerável na Irlanda. Neste tempo, sua população multiplicou-se várias vezes, tornando a cidade uma das mais cosmopolitas da Europa.1 Uma análise rápida do funcionamento desta rede mercantil, desde a sua formação até a sua decadência, é de fundamental importância para compreender o surgimento dos complexos charqueadores no extremo sul da América, tanto em Pelotas, quanto nas margens do Rio da Prata– em Buenos Aires e Montevidéu. Região de vastas pastagens, a Irlanda já remetia seus rebanhosvacuns e barris de carne salgada para a Inglaterra, mesmo antes da montagem das plantations açucareiras no Caribe. Enquanto o gado era destinado para o abastecimento da população, as carnes preparadas tinham na Marinha inglesa a sua principal consumidora. Entre 1663 e 1664, por exemplo, a pequena ilha exportou mais de 76 mil cabeças de gado para a Inglaterra. Contudo, a crescente importação de bovinos irlandeses, que caracterizou o conturbado período em que Cromwell esteve no poder, não vinha agradando os pecuaristas do norte da Inglaterra. Organizados, estes fizeram intensa pressão sobre o Parlamento britânico e conseguiram que o mesmo promulgasse leis para interromper a entrada do gado irlandês no Reino. Foram os Cattle Acts, 1
MANDELBLATT, Bertie. A Transatlantic Commodity: Irish Salt Beef in the French Atlantic World. History Workshop Journal, n. 63, 2007, p. 26. 73
sendo o primeiro de 1663 (que teve um caráter experimental de seis meses) e o segundo de 1667 (que decidiu pela proibição definitiva das importações). Estas medidas provocaram a baixa dos preços do gado na Irlanda, o que favoreceu o acesso dos pequenos comerciantes no ramo e a consequente ampliação do número de fábricas de carne salgada em Cork, Belfast e Dublin2 – esta última, cidade natal do escritor James Joyce e onde seu pai também foi comerciante. O desenvolvimento da indústria das carnes salgadas também estimulou a expansão de outros ramos da economia atlântica. Como a colocação das carnes no mercado necessitava de uma grande quantitade de barris, a tanoaria irlandesa cresceu conjuntamente, movimentando a importação de madeiras, tanto do interior da Irlanda, como de outras regiões (as colônias inglesas no norte da América, por exemplo). Soma-se a isto, o aumento da demanda por sal – produto indispensável no preparo das carnes – que tinha como principais fornedores a França, a Espanha e Portugal. Além de utilizado na salmoura da carne bovina, o sal também era empregado na salga da carne de porco e na conservação da manteiga, outros dois importantes produtos exportados pelos irlandeses.3 Com os Cattle Acts, os rebanhos irlandeses, anteriormente exportados para a Inglaterra, passaram a alimentar a crescente demanda das novas fábricas de carne. Se no meado do XVII o mercado consumidor das carnes salgadas ainda era relativamente pequeno, nas décadas seguintes o crescimento das exportações foi notável. Em 1665, o volume das remessas do produto dobrou com relação à década de 1640. E em 1683, as exportações duplicaram novamente com relação aos anos 1660. Conforme Thomas Truxes, esta foi a fase de arranque da indústria de carnes irlandesa e, entre 1660 e 1688, nenhuma outra mercadoria negociada pelos portos das ilhas britânicas ultrapassou o volume exportado do produto. 4 Tal fenômeno estava diretamente relacionado ao desenvolvimento do comércio atlântico e à fase inicial da expansão das unidades açucareiras no Caribe, que provocaram o aumento da entrada 2
IOMAIRE, Máirtín Mac Con; GALLAGHER, Pádraic Óg. Irish Corned Beef: a Culinary History. Dublin Institute of Technology, Articles, 2011, p. 7. Seguindo o vocabulário da época, sempre que me referir às “carnes salgadas” estarei falando das carnes em barris, também chamadas de carnes de moura ou em salmoura. O charque ou tasajo (como era chamado no Rio da Prata) dizem respeito à carne-seca. Esta também era tratada com o uso do sal, mas tinha na desitratatação e no seu secamento ao sol as suas formas de conservação. 3 Medidas políticas tomadas pelos irlandeses fizeram com que os mesmos pagassem baixíssimos impostos pelo sal importado (cerca de 10% do que os ingleses pagavam, por exemplo). Os vínculos mercantis entre Irlanda e Portugal mantiveram-se fortes ao longo do século XIX. As salinas de Setúbal abasteceram não somente a produção de carne salgada, como também a fabricação da manteiga irlandesa – produto conhecido em todo o Atlântico (HORTA, José. O comércio do sal português com a Irlanda no século XIX: uma leitura geográfica. In: Anais do I Seminário internacional sobre o sal português. Porto: IHM da Universidade do Porto, 2005, p. 297-310). 4 TRUXES, Thomas M. Irish-American Tr ade (1660-1783). Cambridge University Press, 1988, p. 26-27. 74
5 de escravos para a região, assim como de colonos, mercadores e membros da burocracia.
Além disso, a disponibilidade de grandes extensões de pastagens férteis e próximas das principais cidades portuárias irlandesas e a existência de uma rede de transportes interna bem desenvolvida foram fundamentais para baixar os custos da produção da carne salgada. Conforme Mandelblatt, a razão para o sucesso da carne irlandesa no mercado caribenho era o seu baixo custo em relação a outras fontes de abastecimento.6 Passada a fase inicial de expansão, as exportações irlandesas continuaram crescendo ao longo do século XVIII. Na década de 1710, pela primeira vez elas ultrapassaram os 100 mil barris anuais. Nas décadas de 1720 e 1730, elas atingiram uma média de 140 a 150 mil barris, vindo a superar os 200 mil barris nos anos 1760, média que se manteve constante até o início da década de 1780 e que marcou o auge das exportações irlandesas. A principal causa 7 do boom ocorrido entre 1710 e 1760, foi a ampliação do setor açucareiro francês. Entre 1715
e 1730, a população total das Antilhas Francesas e da Guiana duplicou alcançando 195.073 pessoas (dos quais 160.278 eram negros escravos). Uma geração mais tarde, de acordo com dados de Stanley Engerman, essa população escrava tinha quase dobrado novamente, 8 chegando, em 1750, a 323.433 pessoas, dos quais 281.658 eram escravos. Entre 1718 e 1754,
as ilhas francesas ultrapassaram as inglesas como principais compradoras das carnes9 em diversos anos, reunindo algo entre 40% e 60% do total das exportações irlandesas. Em termos de volume, as quantidades importadas pelas antilhas francesas neste período foram de 10 duas a quatro vezes superiores aos montantes negociados nos anos 1680.
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MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 26. Conforme Robin Blackburn, a “explosão” do comércio colonial foi possibilitada por um crescimento anterior das importações de escravos pelas ilhas inglesas. Este incremento totalizou 263.000 escravos negociados, cuja metade foi remetida para Barbados, secundada pela Jamaica e as Ilhas Leeward. “A população negra das Índias Ocidentais inglesas cresceu de 42% do total em 1660 para 81% em 1700” (BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 325). 6 MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 26. 7 Dentre as ilhas caribenhas francesas, Santo Domingo superava Guadalupe e Martinica como a principal consumidora das carnes irlandesas. No seu auge, entre 1763 e 1791, a “pérola das Antilhas” produziu mais lucros do que qualquer outra colônia caribenha, tornando-se a maior produtora de açúcar do mundo. Com uma enorme população escrava, Santo Domingo possuía um habitante branco para cada dez negros em seu território (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 22). 8 MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 36. 9 Além dos navios mercantis, que negociavam escravos, gêneros alimentícios, tabaco, açúcar e uma série de outras mercadorias, a frota militar também ampliou-se de forma notável. Na França, quando Colbert foi indicado para supervisionar as colônias, a França possuía somente duas dezenas de embarcações em alto-mar. Mas em 1683, a Marinha de Guerra francesa já contava com 117 navios de linha, 30 galeões e 80 fragatas corsárias, totalizando 1.200 oficiais e 53.000 marinheiros (BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 354). Ou seja, um notável aumento de potenciais consumidores de carne em barris. 10 MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 29. Em 1685, Luís XIV decretou um código especial visando regulamentar a escravidão nas colônias francesas. O Code Noir, como ficou conhecido, mandava que cada escravo recebesse, além de 1,2 Kg de mandioca, cerca de 900 gramas de carne salgada ou 1,4 Kg de peixe 75
Outro fator que favoreceu o desenvolvimento econômico da Irlanda neste período foi a liberdade comercial que os ingleses ofereciam às suas colônias dentro dos portos que pertenciam ao “primeiro Império Britânico”.11 Como demonstrou Truxes, uma vigorosa rede mercantil conectava os comerciantes estabelecidos nos portos ingleses e irlandeses com os das colônias do Caribe e da América do Norte. Em New York, Boston e Philadelphia, por exemplo, verdadeiras comunidades de comerciantes irlandeses, ligados por vínculos parentais e religiosos com outros tantos grupos de mercadores estabelecidos nos outros portos, atuavam fortemente nos negócios transatlânticos.12 Conforme Mandelblatt, qualquer grande comerciante em atividade no Atlântico daqueles tempos conhecia a fama das carnes irlandesas.13 Estudando os negociantes franceses Jean e Pierre Pellet, Fernand Braudel destacou a fortuna adquirida por ambos os irmãos numa rede mercantil constituída na primeira metade do setecentos e que alcançou notável amplitude, envolvendo uma série de comissionistas e “capitães gerentes” de seus navios. Sobre a atuação de Jean, Braudel escreveu: A quantidade de suas relações de negócios e de seus negócios é simplesmente espantosa: ei-lo armador, negociante, financista em certas ocasiões, proprietário fundiário, produtor e mercador de vinhos, possuidor de rendimentos; ei-lo ligado à Martinica, a São Domingos, a Caracas, a Cádiz, à Biscaia, a Bayonne, a Toulouse, a Marselha, a Nantes, a Rouen, a Dieppe, a Londres, a Amsterdam, a Middelburgo, a Hamburgo, à Irlanda (para comprar carne bovina salgada), à Bretanha (para comprar tecido) e não digo tudo… E naturalmente aos banqueiros de Paris, de Genebra, de Rouen.14
Passada a época de ouro da carne salgada irlandesa, outros rivais começaram a tomar os mercados consumidores do produto. As colônias inglesas do norte da América sempre foram as maiores concorrentes dos irlandeses e ingressaram no mercado das carnes favorecidas pelos conflitos políticos internos que afetaram a Irlanda após a Revolução salgado por semana, o que também contribuiu para a manutenção das importações de carne salgada. BLACKBURN, 11
Robin. Op. cit., p. 251-253; MANDELBLATT, Bertie. Op. cit. TRUXES, Thomas. Op. cit.; BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 362. Neste circuíto que envolvia o caribe inglês, as ilhas britânicas e as colônias do norte da América, era muito comum a prática do comércio triangular, como o circuíto Boston – Cork – Jamaica – Boston. Das colônias americanas saiam embarcações com madeiras, linhaça e rum para a Irlanda, daonde seguiam para as ilhas caribenhas com carnes salgadas e manufaturas, direcionando-se posteriormente para Boston com mais melaço e rum. Além deste comércio, a América do Norte também remetia trigo e farinha diretamente para o caribe inglês. Na segunda metade do XVIII, estas exportações também atingiram Lisboa, Cadiz e outras partes do Mediterrâneo, trazendo no retorno manufaturas européias (TUXTER, Thomas. Op. cit., p. 111-117). 13 MANDELBLATT, Bertie. Op. cit. 14 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 125-127 (grifos meus). 12
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Gloriosa (1688-1689).15 Na década de 1720, os irlandeses perderam a posição de maiores abastecedores das antilhas inglesas exatamente para estas colônias (muito embora não tenham deixado de ser os maiores exportadores de carnes).16 Além da pesca, o trunfo destas colônias era a agricultura, destacando-se o cultivo do trigo, do arroz, do milho, entre outros.17 Com o desencadear da Revolução Americana, em 1776, a Irlanda começou a perder os privilégios que lhe beneficiavam por fazer parte do sistema comercial no interior do Império Britânico, já que mantinha intensa e lucrativa transação mercantil com os portos da América do Norte. Por mais que os ingleses tentassem impedir, a jovem nação estadonidense expandiu sua rede de abastecimento para todo o Caribe e ampliou as suas exportações de alimentos para a Europa nas décadas que sucederam a sua Independência. 18 A Revolução em Santo Domingo interrompeu momentaneamente o mercado caribenho francês trazendo prejuízos aos comerciantes e provocando uma queda nas exportações de carne salgada irlandesa. 19 Em 1800, a união dos Reinos da Irlanda e da Grã-Bretanha, colocou os primeiros sob a hegemonia do Parlamento inglês, retirando parte da sua autonomia política e econômica. No início do século XIX, a Irlanda continuou exportando carne salgada, mas jamais recuperou os índices setecentistas. Em 1815, por exemplo, as remessas do produto eram quatro vezes inferiores ao que havia sido negociado na década de 1770, e em 1840, os números não chegavam a 3% do que o país havia exportado nos anos 1780.20 A decadência econômica da pequena ilha foi marcada pela Grande Fome (1845-1849) que ceifou cerca de 1,5 milhões de vidas. Apesar disso, o “legado” irlandês na economia atlânticahavia fincado raízes…
15
Nesta época, Pensilvânia, New York, Virgínia e Maryland passaram a exportar suas carnes para o Caribe, quebrando assim o monopólio prático dos irlandeses (TRUXES, Thomas. Op. cit., p. 26-7). 16 No meado do século XVIII, estas colônias também começaram a exportar significativas quantias de peixe salgado para Santo Domingo. No entanto, este mercado jogava com as oscilações e aberturas da política colonial francesa, sem abrir mão do contínuo contrabando. Santo Domingo importava peixe salgado, legumes e grãos
americanos, exportando rum, melaço e outros produtos tropicais (TREUDLEY, Mary. The United States and Santo Domingo (1789-1866). The Journal of Race Development, v. 7, n. 1, jul., 1916, p. 83-145). 17
BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 559-563. Conforme o mesmo autor, “a produtividade agrícola dos fazendeiros e pescadores do Norte era tal que as colônias de plantation das Índias Ocidentais, britânicas ou não, tinham neles seus fornecedores mais baratos”. 18 Conforme Gary Walton, o papel abastecedor das colônias no norte da América já era notável mesmo antes da Independência. Entre os anos 1760 e 1770, elas já exportavam grandes quantias de carnes salgadas (bovina e suína), milho, farinha e trigo para o Caribe e o Sul da Europa. (WALTON, Gary M. The economic rise of early America. Cambridge University Press, 1979, p. 81-82; 193). 19 MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 20. 20 IOMAIRE, Máirtín Mac Con; GALLAGHER, Pádraic Óg. Op. cit. 77
2.1 O SEGREDO DAS CARNES: ESPECIALISTAS E ESTRANGEIROS NAS PRIMEIRAS FÁBRICAS DO EXTREMO SUL DA AMÉRICA
Conforme Mandelblatt, as fábricas irlandesas combinavam especialização da mão de obra, baixos salários e técnicas avançadas de processamento, permitindo a mais eficiente produção de carnes de sua época.21 O resultado disto foi que os irlandeses não legaram apenas um modelo fabril e mercantil das carnes para o mundo atlântico, como também deixaram um exemplo de que era possível obter grandes lucros alimentando escravos e marinheiros. As muitas décadas de exportação de sal para a Irlanda e importação de carne salgada para abastecer as suas tripulações marítimas aproximou bastante os comerciantes portugueses e espanhóis do circuíto mercantil intra-europeu do qual os irlandeses faziam parte. 22 Os comerciantes ibero-americanos nunca estiveram indiferentes às rotas atlânticas das carnes. Portanto, durante o colonial tardio, foi comum comerciantes e proprietários luso-brasileiros e hispano-americanos interessados nos negócios com as carnes fazerem referência aos irlandeses. O modelo de fabricação irlandês constituia-se em preparar as carnes e conservá-las salgadas em barris de madeira com salmoura.23 Nesta época, este tipo de carne era o produto preferido para o abastecimento das tripulações navais. Neste sentido, as Coroas ibéricas, que importavam as mesmas dos irlandeses, pareciam incentivar mais a sua manufatura do que a do charque. Sabedores desta preferência, tanto os comerciantes espanhóis e portugueses, quanto os ibero-americanos, começaram a propor o abastecimento das Armadas ibéricas com este tipo de carne. Em 1789, por exemplo, três comerciantes portugueses requisitaram ao Conselho Ultramarino enviar para o Rio Grande do Sul seus navios com “o sal necessário para a salga das carnes e dos couros”, argumentando que o território era muito próprio para “fazer carnes de moura para o serviço da Marinha, e à imitação das da Irlanda, e tirar o sebo apurado e 21
Observador perspicaz, o ministro Colbert tentou imitar o sucesso dos fabricantes irlandeses patrocinando a
formação de um complexo fabril de carne salgada na própria França. No entanto, devido às guerras, aos grandes custos de produção, aos tributos sobre o sal e à concorrência irlandesa, Colbert deu-se por vencido e abriu de vez o comércio dos portos franceses às carnes irlandesas (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 25-30). 22 Ver, por exemplo, os destinos das exportações de carnes irlandesas ao longo do século XVIII. Por diversos anos, Espanha e Portugal foram a terceira maior compradora atrás do Caribe inglês e francês, que somados sempre ocupavam mais da metade das remessas (TRUXES, Thomas. Op. cit., p. 262-263). 23 Segundo Alfredo Montoya, as carnes cortadas permaneciam numa tina com salmoura por cerca de um mês, para depois serem colocadas em barris com camadas alternadas de sal (MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 25-26). Segundo Anibal Barrios Pintos, no Uruguai, cada barril suportava 4 arrobas (cerca de 60 kg) de carne (PINTOS, Anibal Barrios. Historia de la ganedería en el Uruguay (1574-1971). Montevidéu: Biblioteca Nacional, 1973, p. 148). Mandelblatt, por sua vez, considerou que cada barril, na Irlanda do século XVIII, carregava cerca de 90 kg (MANDELBLATT, Bertie. Op. cit., p. 20). 78
necessário a usos domésticos”.No entanto, suas propostas eram ainda mais ousadas e previam remeter para o Rio Grande escravos da Costa da África e Moçambique e réus condenados que tivessem como ofício a tanoaria e a carpintaria (para serem empregados nas fábricas na manufatura dos barris), estimular a criação de carneiros (para a produção da lã) e porcos (para a fabricação de toucinho), plantar pinhos e carvalhos, “a exemplo do que fizeram os ingleses em Filadélfia e Nova York”, e instalar umafábrica de solas, para aproveitar os couros das charqueadas, além de outros planos.24 Com exceção da entrada de cativos africanos para o Rio Grande do Sul, os demais objetivos não vingaram. A produção de carnes salgadas em barris nesta capitania, embora tenha rendido seus lucros para alguns fabricantes, nunca atingiu índices semelhantes aos das exportação de charque. Nos primeiros anos de funcionamento das charqueadas, muitas vezes as autoridades lusitanas reclamavam da qualidade da carne em barris produzida no Rio Grande do Sul. Em setembro de 1789, por exemplo, alguns comerciantes reinóis disseram que as carnes salgadas trazidas do Rio Grande por Manoel Pinto da Silva não estavam em perfeito estado e que, em Lisboa, ninguém as queria comprar. Os mesmos acrescentavam que a culpa não era das carnes e sim dos métodos usados pelos fabricantes. 25 Anos mais tarde, o capitão de um outro navio ordenou que a tripulação jogasse uma carga inteira de carne salgada em alto mar por ela haver se deteriorado na viagem. 26 No início do século XIX, o Governador da Capitania ainda se ressentia do pouco sucesso das carnes em barris e o Vice-Rei Conde de Resende compartilhou com ele os mesmos anseios: É certo que a primeira amostra da tentativa que se fez das carnes salgadas não correspondeu aos bons desejos que tanto eu como V. Ex.ª teríamos de ver o feliz êxito de tão eficazes diligências (…), mas além do que com o tempo e com trabalho que promete para o futuro grandes lucros é que se [aperfeiçoe] semelhantes fábricas. Penso que a assistência desses homens que vieram do Reino para instruírem sobre o modo de fazer as salgas, ter-se-á adquirido outro melhor conhecimento e mais seguro método; e por [consequência], pôr em giro o comércio das carnes, ainda que por ora, se aplique toda a que se puder beneficiar para o consumo da Esquadra, enquanto aquele não tem maior extensão.27
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Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 237 e 238 (Projeto Resgate). Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 237 (Projeto Resgate). Carta do Conde de Resende para o Governador da Capitania do RS (20.11.1800) apud MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. Charque, charqueadas e charqueadores no primeiro período (1780-1800). Pelotas, Diário da Manhã, 23.08.2010. 27 Carta do Conde de Resende para o Governador da Capitania do RS apud MONQUELAT, A. F.; MARCOLLA, V. Op. cit. 25 26
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Observe-se que o Conde de Resende não apenas tinha esperanças de abastecer a Marinha lusitana, como também colocar no mercado o excedente das carnes salgadas produzidas no Rio Grande. Para que os negócios deslanchassem, os administradores entendiam que era necessário a presença de fabricantes mais instruídos naquele ramo, pois a sua ausência vinha sendo prejudicial aos mesmos. A participação de experts na fabricação das carnes era encarada como algo fundamental para o sucesso tanto nas charqueadas pelotenses, como entre os saladeros platinos do período. No entanto, quem seriam estes experts? Numa outra missiva remetida pelos comerciantes portugueses mencionados anteriormente, os mesmos se obrigavam a: “fazer as carnes de moura à imitação da Irlanda,o que é facílimo assim que haja Mestre, e ainda sem ele, haverá portugueses que a tem feito no ardente clima da Nossa América, e que vão a Índia e voltam à Lisboa”.28
De fato, já existiam portugueses fabricando pequenas quantias de carnes em barris no próprio Rio Grande do Sul e, igualmente, na Ilha de Marajó, como enfatizei no capítulo anterior. Mas o mais interessante, conforme o trecho grifado acima, é que estes especialistas portugueses pareciam ser a segunda opção diante dos indivíduos desejáveis para ocupar a função de “mestre” de salga. Os experts com maior reputação neste ramo de negócios eram os irlandeses e os ingleses. Em agosto de 1801, o Visconde de Anadia recebeu um ofício relatando que o comerciante João Rodrigues Pereira de Almeida enviara para Lisboa uma segunda amostra de carnes em barris “o qual encarregou da dita salga, a dois irlandeses que daqui mandou ir”, com o objetivo de prover o Arsenal Real da Marinha.29 Pereira de Almeida, que era um dos mais ricos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, havia construído uma fábrica de salgar carnes no Rio Grande do Sul. Anos antes, ele socilitou instrumentos de trabalho para os irlandeses João Seechy (mestre), Pedro O’Donnel (salgador) e Diogo Sheehy (curtidor).30 Em 1805, Pereira de Almeida, oferecendo-se para abastecer a Marinha lusa, propôs um contrato de fornecimento de barris de carne, “cuja salga é feita por mestres 31 irlandeses que ali tem, e como a de Irlanda da melhor qualidade”. Em 1808, Pereira de
Almeida ainda possuía a sua fábrica de carnes na capitania sul-rio-grandense. Conforme o 28
Requerimento de 30.09.1789, AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, Doc. 238 (Projeto Resgate). Requerimento de 07.08.1801, AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, Doc. 394 (Projeto Resgate). 30 GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.Pelotas: UFPel, 2001, p. 121. 31 Requerimento de 23.10.1805, AHU-ACL-CU-019, Cx. 10, Doc. 605. Pereira de Almeida recebeu parecer negativo pois o período de 9 anos de contrato foi considerado muito arriscado. Os pareceristas argumentaram que era possível conseguir carne irlandesa de melhor qualidade por um preço mais em conta. Nesta época, conforme os pareceritas, além da Irlanda, Portugal também recebia carnes salgadas da “América” e da Dinamarca. 29
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relato de um contemporâneo sobre o seu “grande e interessante estabelecimento”,ele possuía “grandes ordenados e despesas”, pois mandara “vir a sua custa mestres da Irlanda”.32 Tal exigência não se tratava de uma singularidade luso-brasileira. Entre os hispanoamericanos, a escolha de mestres irlandeses e ingleses para operacionalizarem a produção das carnes salgadas nos primeiros anos também foi marcante. Além do conhecimento técnico que possuíam, a preferência da Marinha européia pelas carnes irlandesas os credenciavam para esta atividade. O saladeirista Francisco de Medina teria sido o primeiro a conseguir realizar tais técnicas com perfeição, “através da instalação de um laboratório montado no estabelecimento, dirigido por técnicos irlandeses”. 33 O desafio em acertar o ponto correto do preparo das carnes, seu sabor e a resistência à deterioração era tão difícil que o Vice-Rei Nicolás de Arredondo comemorou com entusiasmo tal feito.34 O ânimo deve ter tomado conta de muita gente e a notícia se espalhado rapidamente. Em 1794, entre as medidas aconselhadas pelos estancieiros e fabricantes de Buenos Aires e Montevidéu a um ministro espanhol para que a indústria saladeril obtivesse êxito, estavam, primeiramente, “hacer venir de Irlanda de 80 a 100 maestros en salar carnes” e “fundar una Compañía Marítima que tuviera a su cargo el transporte de los barriles a la península”.35 Contudo, na fase inicial desta indústria, além da mão de obra e da orientação técnica qualificada também havia outros problemas. Conforme Aníbal Pintos, a ausência de toneleros constituía-se num obstáculo para a ampliação dos negócios. No fim do século XVIII, só existiam 8 destes especialistas em Montevidéu e os mesmos não davam conta da demanda por barris. A solução, segundo o autor, foi agregar com frequência cerca de 5 ou 6 ingleses que 36 haviam chegado no Prata para caçar baleias e que conheciam das técnicas irlandesas.
Quando não era possível trazer irlandeses ou ingleses, os investidores mais exigentes aceitavam os ibéricos, desde que fossem talentosos nesta atividade. Em 1778, por exemplo, o 32
MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanack da Vila de Porto Alegre. In: FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980, p. 88. Interessante observar como um negociante de grosso trato do Rio investiu capitais no sul da América com claros fins de obter lucros mercantis, ao contrário, por exemplo, de outros comerciantes que tornaram-se senhores de engenho e de grandes escravarias buscando uma atividade agrária com fins não apenas econômicos, mas, também, motivados por critérios de status social e poder local (FRAGOSO, João L. R.. Homensde grossa aventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998). 33 MONQUELAT, A. F. Desfazendo mitos (notas à história do Continente de São Pedro).Pelotas: Ed. Livraria Mundial, 2012, p. 80. 34 Segundo palavras do Vice-Rei, Medina “havia descoberto o segredo e as carnes rioplatenses venceram o mito de suas condições inferiores, pois jamais haviam obtido antes a cor e a consistência das do norte”. O segredo, conforme ele, nada mais era do que “la salmuera del barril com una corta dosis de sal nitro” (MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 80). 35 MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 29-30. 36 PINTOS, Anibal B. Op. cit., p. 150. 81
projeto de implantação de uma fábrica de carnes salgadas enviado à Coroa espanhola pelo sujeitos Cabildo de Buenos Aires solicitava que viessem da Espanha vários toneleros e quatro inteligentes que conhecessem das carnes salgadas.37 Portanto, o know-how trazido por estes
indivíduos foi de extrema importância no início desta fase empresarial. Nos anos 1780, por exemplo, Miguel Ryan, espanhol de ascendência irlandesa, instalou-se na Banda Oriental 38 trazendo antiga experiência com salga de carnes no Chile.
Portanto, desde os primeiros anos de funcionamento dos saladeros no Rio da Prata, os ingleses e irlandeses estiveram presentes tanto entre os experts do setor produtivo, quanto nos setores mais subalternos das fábricas. E, igualmente, desde os anos 1780, os saladeros exportaram quantidades significativas de carnes em barris.39 Em 1781, Manuel Melian, um dos primeiros empresários a instalar-se no Prata, remeteu para Cadiz cerca de 136 barris em dois navios. Em 1785, o catalão Juan Ros remeteu 202 barris do produto para Cuba. 40 Outros seguiram o mesmo exemplo e Montevidéu continuou atraindo comerciantes e investidores nos anos 1780. Da primeira geração de saladeiristas orientais destacaram-se o mencionado Francisco de Medina e também Francisco Maciel. O primeiro deles teria fundado seu estabelecimento em 1780, mantendo uma produção anual de 8 mil quintais de carne salgada 41
(cerca de 360 toneladas). Quando faleceu, Medina possuía um grande patrimônio, onde se destacavam uma estância com 25 mil cabeças de gado e 6 embarcações empregadas tanto no 42 carregamento de sal, quanto na exportação de carnes e couros para a Europa. Em 1788,
Maciel (que era assentista de víveres da Real Armada em Montevidéu), estabeleceu uma fábrica de carnes salgadas, tasajo e sebo, tornando-se um dos mais ricos saladeiristas da região. O sucesso de ambos motivou o estabelecimento de outros empresários. 43 Em 1801
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MONTOYA, Alfredo. Op. cit. MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010. 38
Na realidade, como demonstrou Montoya, estas carnes pareciam estar sendo exportadas desde o século XVII, mas em quantidades muito pequenas, ainda em caráter experimental e com grandes intervalos de tempo (MONTOYA, Alfredo. Op. cit.). 40 PINTOS, Anibal B. Op. cit., p. 147-148. 41 CASTELLANOS, Alfredo. Breve historia de la ganadería en el Uruguay. Montevidéu: Banco de Crédito, 1971, p. 31. Medina teria investido também na pesca da baleia, em 1784. 42 MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 25. 43 Juan Camilo Trápani, Juan Balvín y Vallejo e Don Miguel Ryan tiveram matadouro em Arroio Seco. Manuel Solsona e Luiz Antonio Gutierrez também se estabeleceram nesta década. Em 1790, Nicolás Lacort instalou-se nas imediações de Montevidéu. Em 1791, foi a vez de Esteban Durán e Fernando Martínez; em 1793, Juan Ignacio Martínez, cujo mestre de salga era Tadeo González; em 1797, em La Estanzuela, o de Juan Jose Seco; em 1798, o de Salvador Tort, na Ponta das Carretas, entre outros (PINTOS, Anibal B. Op. cit.). 39
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havia cerca de 30 saladeros na parte oriental do Rio da Prata, abatendo anualmente 120 mil reses e empregando mais de 1.000 homens– livres e escravos – em suas fábricas.44 Contudo, ao contrário de Montevidéu, a região de Buenos Aires teve seus primeiros saladeros somente a partir da década de 1810. 45 Uma das explicações para este investimento tardio pode ser dada pelo fato de que os comerciantes portenhos lucravam muito com as exportações de couro e prata, os desviando de um maior interesse em investir seus capitais em fábricas de carne salgada. A independência do Vice-Reinado do Rio da Prata e a consequente ruptura das rotas mercantis terrestres com a Bolívia e o Peru, cessaram o fluxo de metais para a região, possibilitando as inversões nas fábricas de carne.46 Além disso, o Movimento de Maio de 1810 e a Junta governativa que lhe sucedeu favoreceram a indústria com uma série de medidas. Um grupo de comerciantes e estancieiros que acompanhou o processo de Independência logrou franquias mercantis e tornou-se líder nos negócios com a carne buenairense. Entre eles estava Juan Manuel de Rosas, que viria a ser governador da Província de Buenos Aires. Conforme Horacio Giberti, Rosas não encontrou dificuldades para reunir outros sócios capitalistas e formar a Rosas, Terrero y Cia. , cujo primeiro saladero começou a funcionar em 1815. A influência que exercia em setores governamentais estratégicos e seus 47
laços de parentesco o favoreceram bastante neste ramo de atividades. Além de Rosas e Dorrego, entre os primeiros saladeristas instalados naquelas terras estavam os ingleses R. Staples e J. Mac Neil, que ergueram sua fábrica no ano de 1812. Investindo um grande montante de capital, eles possuíam 60 trabalhadores assalariados, sendo 8 toneleros, 2 carpinteiros e 4 peões trazidos especialmente da Europa. 48 Quase que instantaneamente ao advento desta fábrica, muitos outros montaram seus saladeros na região, chegando a 14 estabelecimentos estreitamente vinculados, de agrado ou por força, à firma de Rosas, que liderava os empreendimentos regionais. 49 Anos depois, seu número aumentou. Segundo Montoya, entre 1822 e 1825, existiam 20 saladeros ao redor de Buenos Aires. 50 Somados aos saladeiristas de Montevidéu, percebe-se que além dos hispano-americanos, que formavam a maioria, alguns deles vinham da Espanha e que outra parte significativa era 44
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 31. Idem. 46 SOCOLOW, Susan M. Economic Activities of the Porteño Merchants: the Viceregal Period. The Hispanic American Historical Review, v. 55, n. 1, Feb. 1975, p. 1-24; ROSAL, Miguel A.; SCHMIT, Roberto. Del 45
Reformismo colonial Borbónico al librecomercio: las exportaciones pecuárias del Río de La Plata (1768-1854).
Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana.N. 20, 2º sem., 1999, p. 69-109. 47 GIBERTI, Horacio. Historia Económica de la ganadería argentina. Buenos Aires: Solar, 1981. 48 GIBERTI, Horacio. Op. cit., p. 84. Staples também foi cônsul britânico em Buenos Aires (1812-1818). 49 GIBERTI, Horacio. Op. cit., p. 85. 50 MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 39. 83
51 formada por indivíduos com sobrenomes ingleses e franceses. Isto revela que quando não
vinham para trabalhar como mestres, tanoeiros ou assalariados, os imigrantes europeus arriscavam-se a montar uma fábrica nas margens do Prata, com capitais parcialmente reunidos no exterior. Os saladeros platinos fabricavam tanto o charque (chamado pelos mesmos de tasajo) quando a carne salgada. Contudo, os dados sobre exportação nem sempre separavam ambos os produtos, contabilizando-os somente como carnes salgadas, quando se sabe que grandes remessas de tasajo eram realizadas nesta época.52 Mas a partir de dados coletados por Alfredo Montoya, sabe-se que em 1798, 1799 e 1800, Montevidéu exportou 24.100, 16.254 e 27.794 barris de carne, respectivamente.53 Trata-se de um alto índice de remessas para uma indústria em sua fase inicial. O Rio Grande do Sul, por exemplo, não chegou nem perto disso. Nos 16 anos entre 1805 a 1820, a capitania sulina exportou 43.499 barris de carne, ou seja, uma 54 média de 2.718 por ano – bem menos que as exportações orientais no final do século XVIII.
A pouca representatividade do Rio Grande do Sul nos investimentos em carnes em barris pode ser explicada por dois motivos. Primeiramente, os proprietários e os trabalhadores ingleses e irlandeses, especialistas ou não, não estiveram muito presentes nas charqueadas de Pelotas. Não é possível saber se esta relativa ausência foi fruto de seu desinteresse pela região, se era consequência de uma política luso-brasileira mais restritiva antes da abertura dos portos (1808) se comparada à Montevidéu ou se os próprios charqueadores pelotense não os queriam por perto. Mais adiante, demonstrarei que especialistas estrangeiros não estiveram ausentes nas charqueadas, mas, sem dúvida, sua maior presença nos saladeros platinos favoreceu a maior invergadura de investimentos que aqueles países conheceram ao longo do oitocentos. Contudo, um outro motivo isenta os charqueadores pelotenses do seu desinteresse pelas carnes em barris. Eles estavam inseridos principalmente em redes mercantis lusobrasileiras, que facilitavam os seus negócios com regiões de antigo consumo de carne-seca, como os escravos do nordeste açucareiro, por exemplo. O charque possuía dentro da própria 51
Anibal Pintos faz referência a vários deles: Stanley Black & Cia, Tomas Tomkinson, Henrique Jones, Pablo Duplessis, Buther & Martin, Juan Jackson, Hipólito Doinnel, Juan Hall e o Sr. Young, entre outros (PINTOS, Anibal Barrios. Montevideo: Los Barrios (I).Montevideo: Ed. Nuestra Tierra, 1971). 52 GARAVAGLIA, Juan Carlos. De la carne al cuero: los mercados para los productos pecuarios (Buenos Aires y su campaña, 1700-1825). Anuario del IEHS. Tandil, n. 9, 1994, p. 61-95; ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit. 53 MONTOYA, Alfredo. Op. cit. 54 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do B rasil. Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 116-118; 134-141. Em 1808, Antônio de Magalhães disse que existiam somente duas fábricas no Rio Grande que fabricavam barris de carne salgada, exportando 3 mil deles por ano (MAGALHÃES, Antônio. Op. cit., p. 88). 84
América portuguesa um vigoroso e promissor mercado consumidor, pronto a gerar bons lucros. Além disso, conforme Andrew Sluyter, o charque tinha algumas vantagens sobre as carnes em barris. Sua prepação era mais simples, ele ocupava bem menos espaço nos navios e podia ser colocado em qualquer canto dos porões. Além do mais, o charque comprado para alimentar as escravarias das plantations não passava por uma rigorosa vistoria, como as carnes salgadas remetidas para as Armadas.55 Portanto, acredito que as poucas quantidades de carnes em barris exportadas pelo Rio Grande do Sul também foram resultado de uma escolha dos comerciantes envolvidos em uma rede mercantil cujo objetivo era abastecer a escravaria das plantations e não as Armadas europeias (algo que fugia, em parte, dos planos da Coroa lusa). Neste sentido, apesar das dificuldades em acertar o “ponto” das carnes em barris, as poucas remessas rio-grandenses não se tratavam apenas da sua incapacidade técnica. Nas palavras de um próprio charqueador de Pelotas, escritas entre 1817 e 1822, isto fica claro: “a carne salgada em barris é, sim, toda ela fabricada em Porto Alegre: no Rio Grande [o que incluía Pelotas] não se fabrica carne em barris, ainda que se podia fabricar quanta se quisesse”.56 Portanto, no Império português a produção de carne salgada era mais para suprir uma demanda estimulada pelo Reino, que queria substituir as compras das carnes irlandesas para a 57 Marinha lusitana, do que um investimento destinado a outros mercados consumidores. Não era comum pensar nas carnes em barris para alimentar os escravos dasplantations lusobrasileiras, por exemplo. Além disso, a produção das carnes salgadas também era estimulada por autoridades estrangeiras que mantinham contato com os burocratas portugueses. Nos anos 1790, Donald Campbell, oficial britânico encarregado do comando de uma Esquadra na América, recomendou à Armada portuguesa que empregasse outros métodos para salgar as suas carnes, pois utilizando meios muito primitivos, elas não estavam sendo satisfatórias no abastecimento da tripulação lusa. 58 É provável que Campbell preferisse as carnes em barris ao invés das mantas de charque. Esta também foi a queixa do Governador do Pará, quando 55
Conforme Sluyter, o produto final tinha várias características vantajosas em relação a outras formas de carne conservadas. A maior secura do charque com relação à carne salgada reduziu tanto o peso e o volume a menores custos de transporte. A maior secura também permitiu o carregamento a granel em porões de navios e a preservação do produto para muitos meses após a sua fabricação, mesmo em climas tropicais (SLUYTER, Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 2010, p. 106). 56 CHAVES, Antônio J. Gonçalves. Op. cit., p. 141. Portanto, toda a carne em barris exportado pelo Rio Grande do Sul era fabricada pelos estabelecimentos do vale do Jacuí e de Porto Alegre e não pelos de Pelotas. 57 Em 1778, um funcionário da Coroa portuguesa recomendou a produção das “carnes salgadas que devem ser exportadas a este reino em lugar das que vem da Irlanda”, e o cultivo do linho cânhamo, que substituiria as importações da Rússia (GUTIERREZ, Ester. Op. cit., 53). 58 XAVIER, Paulo. Salgas de carne. In: Correio do Povo. Porto alegre, edição de 15.03.1974, p. 9. 85
buscou estimular a fabricação de carnes salgadas na Ilha de Marajó, pois estas eram muito mais higiênicas e saborosas do que as carnes secas que lá se fabricavam e que colocavam em risco a saúde da população consumidora.59 Portanto, nos diferentes “projetos” relativos à fabricação de carnes no Rio Grande do Sul, o charque acabou vencendo a carne salgada. No Império espanhol aconteceu algo semelhante. Apesar da significativa produção de tabaco e açúcar em Cuba, suas plantations, no meado do setecentos, eram bastante prejudicadas pelo alto preço dos escravos importados e pela restrição dos mercados, visto que a Espanha não tinha acesso direto ao tráfico atlântico e restringia bastante o comércio de sua colônia caribenha. Na década de 1780, Cuba possuía “uma classe de aspirantes a proprietários de plantations ansiosa para imitar o sucesso das colônias açucareiras das outras potências. Tudo o que precisava era acesso fácil aos escravos e aos mercados”. Em 1787, a livre entrada de escravos foi permitida pela primeira vez e com a Revolta em Santo Domingo, a ilha espanhola importou milhares de cativos e multiplicou a sua produção açucareira. Se em 1787 as exportações atingiram 10 mil toneladas (o dobro da quantidade exportada em 1760), em 1802 este índice saltou para 40 mil toneladas. Na virada do século, mais de mil navios de diversas bandeiras iam anualmente a Cuba.As autoridades coloniais “deram toda ajuda à expansão das plantations, ignorando, quando necessário, a legislação ou as instruções da metrópole”. Comerciantes coloniais, atuando em parceria com norte-americanos, fretavam inúmeras embarcações. Se antes de 1789, Cuba teria importado 100 mil escravos, entre 1790 e 60 1821, este número aumentou para 240 mil cativos africanos.
O aumento das exportações de Montevidéu e Buenos Aires também foi estimulado por uma série de medidas políticas tomadas pelos Bourbons. Em 1776, a Coroa decretou o livre comércio dos portos espanhóis com Buenos Aires, substituindo o exclusivismo de Cadiz. Em 1777, foi criado o Vice-Reinado do Rio da Prata, oferecendo uma maior autonomia administrativa à região. Como resultado destas medidas, o comércio portenho dinamizou-se e uma poderosa classe de negociantes marítimos constituiu-se a partir destas trocas. 61 Entretanto, conforme Montoya, o objetivo inicial dos saladeiristas não era fabricar o tasajo. Por atenderem os anseios vindos de Madrid, muitos deles queriam produzir as carnes 59
Ofício de Francisco de Souza Coutinho a Martinho de Melo e Castro (Pará, 11.10.1792). Coleção Carvalho, Seção Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 60 BLACKBURN, Robin. Op. cit., p. 602-604. 61 SOCOLOW, Susan. Op. cit. O corpo mercantil portenho era composto por imigrantes vindos do País Basco, de Castela, da Galiza e de Santander, além de um grande contingente de nascidos na América. Eles constituiramse nos maiores beneficiários das reformas bourbônicas e passaram a controlar um comércio crescente que ligava Buenos Aires a Montevidéu, Assunção, Córdoba, Tucuman, Jujuy, Salta, Potosi e outras as áreas de mineração andinas, além do Chile (SOCOLOW, Susan. Op. cit., p. 1-2). 86
irlandesas para a Marinha espanhola.62 No entanto, diante do boom açucareiro em Cuba e o crescimento daquele mercado provocado pela entrada de milhares de escravos, a ampliação da fabricação do tasajo foi tentadora e a carne salgada foi lentamente sendo substuída por este, 63 cujas remessas se multiplicaram ao longo do oitocentos.
O comércio de ambos os produtos pareciam ser lucrativos. Contudo, o tipo de carne preparada dependia muito dos interesses e das possibilidades dos fabricantes, da rede mercantil em que os mesmos estavam inseridos, dos estímulos governamentais, das conjunturas econômicas e da qualidade da demanda. Em última instância foi um empreendimento cada vez mais liderado por particulares que expressavam as capacidades de inversão das elites coloniais neste ramo de negócios. Um dos motivos pelo qual a produção de carnes salgadas em barris vingou mais entre os platinos do que entre os rio-grandenses (além do pouco interesse dos charqueadores pelotenses em fábricar tais produtos) foi a notável presença de técnicos irlandeses e ingleses entre os saladeros e a influência e conhecimento que os mesmos detinham no que diz respeito a este produto. Além do mais, a população caribenha estava mais adaptada ao consumo das carnes em barris (por herança das carnes irlandesas) do que a América portuguesa – que já vinha, em parte, sendo abastecida pela carne-seca nordestina (e cujas técnicas64de fabricação já eram conhecidas pelos colonos e indígenas mesmo antes do setecentos). Os ingleses e irlandeses estiveram presentes na indústria das carnes platinas desde a sua fundação. Todo este intercâmbio de homens e ideias foi favorecido pela conjuntura política e econômica que marcou o Império espanhol durante o governo dos Bourbons. Esta interação social não deixou de envolver os luso-brasileiros, notadamente os seus traficantes, conformando um mesmo processo de desenvolvimento fabril no sul da América, que pode ser lido como um fenômenoconstruído tanto pelas redes intraimperiais como pelas redes trans-imperiais, como pretendo demonstrar a seguir.
2.2 A FORMAÇÃO DOS COMPLEXOS FABRIS PLATINOS E PELOTENSE A PARTIR DAS REDES INTRA-IMPERIAIS E TRANS-IMPERIAIS Autoridades coloniais ilustradas de um lado, comerciantes, proprietários e investidores particulares de outro. A conjuntura econômica e política da época favorecia para que as redes 62
MONTOYA, Alfredo. Op. cit. SLUYTER, Andrew. Op. cit. MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque.Porto Alegre: Edigal, 1987; ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690– c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012. 63 64
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mercantis imperiais, das quais os mesmos faziam parte, se ampliassem durante o colonial tardio. No entanto, como muitos agentes ligados à política e à economia coloniais circulavam pelo Atlântico de forma bastante intensa, não é possível pensar na formação dos complexos fabris platinos e rio-grandenses como um produto da colonização sob a exclusiva direção de uma só Coroa, seja a espanhola, seja a portuguesa. Todo o processo foi marcado por um notável protagonismo das elites coloniais e por uma intensa negociação destas com as Coroas ibéricas, além da participação de comerciantes europeus de fala inglesa e francesa, que interagiam profundamente num emaranhado de relações sociais e econômicas com os mesmos.65 Estudando os processos de formação de identidades regionais em Montevidéu durante o colonial tardio, Fabrício Prado deparou-se com diferentes interesses e práticas sociais compartilhadas pelas suas elites. Os indivíduos pertencentes a este estrato superior estavam inseridos não apenas em uma ampla rede de relações sociais que envolviam outros agentes hispano-americanos (redes intra-imperiais), mas como também em redes de relações que os conectavam com indivíduos e famílias luso-brasileiras e anglo-francesas (redes transimperiais). Conforme Prado, embora o contato entre os indivíduos dos dois impérios ibéricos fosse restringido, duradouras redes familiares e mercantis os vinculavam. Um dos fatores que favoreceram a amplitude destas relações foi a permanência de um grande número de portugueses em Buenos Aires, na Banda Oriental, mas, sobretudo, em Montevidéu, mesmo após a sua expulsão da Colônia do Sacramento.66 Comparando censos do período colonial tardio, Prado percebeu que Montevidéu era mais aberta à participação de luso-brasileiros e comerciantes britânicos nos seus negócios do que Buenos Aires.67 Portanto, mesmo que esta última cidade apresentasse uma notável presença de luso-brasileiros em seu território68, Montevidéu constituiu-se na principal zona de 65
Ver, por exemplo, PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009; MOUTOUKIAS, Zacarias. Redes Personales y Autoridad Colonial. Annales. Histoire, Sciences Sociales . Paris, mai-juin, 1992; FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII).Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009. 66 PRADO, Fabrício. Op. cit. 67 Conforme Prado, entre os anos de 1781 e 1786, 74 navios portugueses aportaram em Montevidéu, sendo que 43 destes declararam seu destino para outros portos portugueses no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina no momento da partida. Entre os capitães que faziam essa rota frequentemente estavam pilotos portugueses encarregados de navios portugueses e espanhóis (PRADO, Fabrício. Op. cit.). 68 TEJERINA, Marcela. Luso-brasileños en el Buenos Aires Virreinal: trabajo, negocios e intereses en la plaza naviera y comercial. Bahía Blanca: Ediuns, 2004. 88
interação transimperial do conesul americano. Uma zona de interação, segundo Prado, era
uma região colonial madura onde as elites eram formadas principalmente por europeus ou os seus descendentes, e os mesmos interagiam profundamente com agentes de diferentes srcens geográficas e imperiais. Na zona de interação, os indivíduos confrontavam-se com as diferenças do “outro”, ao mesmo tempo em que compartilhavam dos seus valores, códigos culturais e visões de mundo. Neste contexto, os estrangeiros ou agentes imperias que se casavam com as mulheres locais, criavam raízes e estabeleciam-se na região, transmitindo códigos comportamentais exteriores, contribuíndo para que os nativos compartilhassem do vocabulário social imperial. Portanto, desde os anos 1780, a presença de estrangeiros nos portos platinos foi bastante significativa.69 Neste sentido, as redes de interação transimperiais teriam moldado o processo de formação sócio-econômico da Banda Oriental no final do período colonial. 70 Acrescento às ideias de Prado, a de que as mesmas redes foram fundamentais para a formação do complexo saladeril platino e favoreceram um maior desenvolvimento das charqueadas pelotenses no período, tanto por estimular a competição entre ambas as regiões, quanto por propiciar uma maior troca de informações e experiências por meio dos múltiplos agentes que circulavam pelos seus portos marítimos. As redes transacionavam favores, informações, influências e conhecimentos técnicos, num fluxo não apenas da metrópole para a colônia, como também no seu percurso inverso, além de apresentarem relações tranversais entre as próprias colônias atlânticas ou destas com comerciantes de outras nacionalidades européias. Além das condições políticas e econômicas apontadas até aqui, os complexos fabris platinos e pelotense também compartilhavam de outros fatores estruturais favoráveis. Primeiramente, ambos não tinham grandes concorrentes no Atlântico Sul para além deles próprios. A disputa entre estes dois pólos fabris marcou todo o século XIX, com os pelotenses frequentemente queixando-se da “desleal” concorrência da indústria platina e da falta de proteção das autoridades políticas luso-brasileiras. Além disso, tanto na Capitania do Rio Grande de São Pedro, quanto no Vice-Reinado do Prata, as terras, o gado e a mão de obra constituiam-se em mercadorias bastante acessíveis. Horacio Giberti acrescentou mais outros dois fatores: os mercados consumidores de tasajo eram seguros e tinham possibilidade clara
69 70
PRADO, Fabrício. Op. cit. Idem. 89
de ampliação e, no caso dos platinos, o sal importado da Patagônia possuía um preço bastante atrativo.71 Não há um dos fatores acima apontados em que os fabricantes luso-brasileiros e os hispano-americanos não tenham disputado terreno. O mais paradoxal, no entanto, é que os platinos precisavam dos traficantes luso-brasileiros para incorporar mais mão de obra africana em seus saladeros e em suas estâncias, o que irritava profundamente os charqueadores e comerciantes rio-grandenses.72 Suas reclamações com relação a isto já eram correntes desde os anos 1790. Em outubro de 1796, por exemplo, negociantes rio-grandenses queixaram-se à Coroa que as carnes de Montevidéu estavam sendo ilegalmente carregadas em grandes quantidades para a Bahia e Pernambuco – capitaniais que as “recebem e acoitam”. Estas embarcações ao retornarem cometiam a “transgressão de trazerem avultadas porções de escravos”, o que não apenasprejudicava a produção rio-grandense, como também aumentava o preço dos escravos nesta praça.73 Dois anos depois, um número maior de comerciantes, estancieiros e pelo menos outros 12 charqueadores assinaram um requerimento ainda mais contundente contra o comércio platino nos portos brasileiros, cujo número de navios empregados nestas transações era, segundo os mesmos, “escandaloso”. Os assinantes solicitavam: Que seja expressamente declaradas e ampliadas em seu inteiro vigor as providentes leis e ordens promulgadas para não haverem neste Brasil comércio com Nações estrangeiras e que naqueles três portos relatados fique sendo contrabando os gêneros produtivos desta Capitania acima indicados. Que seja também vedada inteiramente a Exportação dos escravos para fora destes domínios que tanto dano causam ao Estado e ao aumento da Agricultura. 74
Observa-se que os comerciantes e charqueadores sabiam da importância do charque para a manutenção das plantations e da agricultura colonial. Além disto, o requerimento dos mesmos apresenta uma inversão de algumas clássicas concepções teóricas acerca das relações entre a metrópole e a colônia. Ora, ao invés de reclamarem das restrições mercantis impostas GIBERTI, Horacio. Op. cit., p. 83-84. Giberti estava correto no que diz respeito ao colonial tardio, uma vez quem na segunda metade do oitocentos, um dos grande problemas dessa indústria foi a ausência de mercados consumidores para além de Cuba e o Brasil. 72 Esta questão foi muito bem tratada por Gabriel Aladren que analisou a forma como as guerras estiveram relacionadas à escravidão na fronteira aqui estudada (ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 17771835). Tese de Doutorado. PPG-História UFF, 2012). 73 Requerimento de 01.10.1796, AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, Doc. 317 (Projeto Resgate). 74 Ofício de 24.11.1800, AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, Doc. 373 (Projeto Resgate). Os requerentes também diziam que podiam produzir 500 mil arrobas de charque por ano, o que, segundo eles, era suficiente para abastecer os três portos brasileiros. E como último recurso, os rio-grandenses argumentavam que as carnes espanholas eram de baixa qualidade e possuíam um péssimo cheiro. 71
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por Lisboa, os comerciantes e charqueadores estavam implorando para que a Coroa executasse o exclusivo comercial! Suas reivindicações demonstram que o comércio ilícito era praticamente a norma naquelas paragens. Segundo Fábio Kuhn, o contrabando de escravos para o Rio da Prata já era significativo desde a primeira metade do setecentos e tinha na Colônia de Sacramento o seu principal núcleo de atuação. Para o autor, estas “práticas nos mostram que os conceitos de contrabando e corrupção precisam ser repensados para as sociedades de Antigo Regime, onde a separação da esfera pública e da esfera privada era praticamente inexistente”.75 Ainda de acordo com Kuhn: A própria distinção entre práticas legais e clandestinas parece ser anacrônica, se nós considerarmos o universo social em relação às representações jurídicas, com suas regras bem estabelecidas e aceitas. Assim, as práticas (…) podem revelar uma lógica social global partilhada pelos meios que somente nosso olhar contemporâneo dissocia. No mundo português setecentista, os contrabandistas seriam empreendedores que pertenciam ao sistema, com boas conexões com as elites governantes. O comércio ilegal tolerado era um comércio controlado, permitido pelas mesmas pessoas cujas funções oficiais pressupunham exatamente combatêlo.76
Como Kuhn alertou, isto não significa dizer que a Coroa não se importava com a ilegalidade destas trocas. Como lembra o autor, as tentativas de repressão existiam, mas, segundo Ernest Pijning, elas eram direcionadas principalmente contra os excessos.77 Além do mais, o seu alcance era precário e dependia do empenho das autoridades locais envolvidas e das suas redes de relações.78 Portanto, deve-se atentar para o grau de tolerância (e do próprio envolvimento) dos administradores coloniais, pois eram eles, em última instância, que representavam os interesses da Coroa nas localidades. O grande problema talvez seja a interpretação que se dá acerca desta relação, uma vez que, em boa parte das vezes, os 75
KÜHN, Fábio. Clandestino e ilegal: o contrabando de escravos na Colônia do Sacramento (1740-1777). In: XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012, p. 179-206. Analisando o comércio de contrabando entre os séculos XVII e XVIII, Roquinaldo Ferreira considerou que “o contrabando não só se tornou a pedra angular das relações comerciais – sangrando continuamente o erário –, mas também contribuiu significativamente para o surgimento de centros de comércio fora da metrópole e das relações comerciais diretas entre colônias”. (FERREIRA, Roquinaldo. “A arte de furtar”: redes de comércio ilegal no mercado imperial ultramarino português (c.1690-c.1750) In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org). Na trama das redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 203-241). 76 KÜHN, Fábio. Op. cit., p. 195. 77 PIJNING, Ernest. Contrabando, ilegalidade e medidas políticas no Rio de Janeiro do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, n. 42, 2001, p. 397-414. O autor também destacou o contrabando no Rio da Prata considerando: “a idéia de que o comércio ilegal era imoral e errado era vista com perplexidade. Se o comércio ilegal era por vezes estimulado pela Coroa portuguesa, como no caso do comércio com o rio da Prata, como poderia ser considerado imoral?” (PJNING, Ernest. Op. cit., p. 407). 78 Ver, por exemplo, GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810).Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. 91
interesses das elites locais não eram antagônicos aos do Reino. Conforme Fabrício Prado, as Coroas espanhola e portuguesa tinham conhecimento deste vultoso comércio ilícito realizada no Atlântico sul. No entanto, eram estas transações que ajudavam a garantir a manutenção das sociedades coloniais ali constituídas. As economias coloniais naquelas regiões dependiam destas redes mercantis para se reproduzirem e os próprios agentes envolvidos nestas transações enriqueciam o seu patrimônio e o da Coroa agindo no interior das mesmas. 79 A permanência deste modelo de organização sociopolítica e econômica fornecia mais espaços de autonomia àquelas elites coloniais, algo comum em todo o Império português e espanhol, por exemplo.80 A prova de como o tráfico ilícito de cativos tinha atingido enormes proporções pode ser dada na comparação entre o número de escravos entrados no Rio Grande do Sul e no Prata. Conforme Alex Borucki, pelo menos 70 mil escravos, vindos de portos brasileiros e africanos, foram desembarcados no Rio da Prata, entre 1777 e 1812.81 Em contrapartida, conforme os dados compilados por Gabriel Aladrén, que segundo o autor estão um pouco subestimados, o Rio Grande do Sul teria recebido aproximadamente 35 mil escravos entre 1788 e 1833, ou seja, a metade dos cativos remetidos para o Prata e num espaço de tempo 82
maior. Portanto, mesmo que o problema dos sub-registros apontados por Aladren fosse resolvido, creio ser possível afirmar que o Rio da Prata recebeu muito mais escravos que o Rio Grande durante o período em que o tráfico esteve vigente naquela região. Tal comércio era prejudicial aos charqueadores, pois os altos preços pagos pelos platinos estimulavam os traficantes a desembarcarem os cativos no porto oriental, ao menos que os rio-grandenses cobrissem a oferta dos saladeiristas. Os negócios ilícitos com o Rio da Prata eram muito lucrativos para os comerciantes luso-brasileiros e os mesmos buscavam atender a grande demanda dos hispano-americanos por mão de obra escrava. Segundo alguns autores, os saladeiristas platinos pareciam preferir mais a mão de obra cativa do que o trabalhador assalariado. Em 1777, por exemplo, para montar as fábricas saladeris da região, o Cabildo de Buenos Aires solicitou à Coroa espanhola 79
PRADO, Fabrício. Op. cit.; GIL, Tiago Luís. Op. cit. GREENE, Jack. Negotiated Authorities. Charlottesville: University Press of Virginia, 1994; ELLIOT, John. Atlantic empires of the 18th century. Cambridge: Oxford University Press. 2006; FRAGOSO, João; GOUVEA, Maria F.; BICALHO, Maria Fernanda. O antigo regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; CARDIM, Pedro; MONTEIRO, Nuno G. et al. Optima pars Elites do Antigo Regime. Lisboa, ICS, 2005. 81 BORUCKI, Alex. From shipmates to soldiers: emerging black identities in Montevideo, 1 770-1850. PhD Dissertation. Atlanta: Emory University, 2011 apud ALADREN, Gabriel. Op. cit., p. 56. 82 ALADREN, Gabriel. Op. cit., p. 53-55. 80
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que facilitasse o “envío de negros, ya sea de asiento o de cualquier outro modo, porque ya demasiadamente se nota la falta que hai en estas Províncias de ellos”.De acordo com os requerentes, o trabalho dos peões livres era repleto de problemas e não correspondia aos custos com salário e manutenção com os mesmos. Em 1799, o administrador de uma estância na Banda Oriental, aconselhava aos seus contemporâneos a substituírem os seus peões pelos escravos, porque além dos menores gastos, num breve tempo o produto do seu trabalho recuperava o valor investido.83 Conforme Alex Borucki, Karla Chagas e Natalia Stalla, mesmo com a extinção do tráfico atlântico, em 1812, a entrada de cativos de forma clandestina, pelo porto marítimo, pela fronteira terrestre ou servindo como “colonos”, manteve-se resistente até a década de 1830. A escravidão, por sua vez, esteve presente nos saladeros uruguaios até os anos 1840, quando a instituição foi abolida.
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Compilando uma série de fontes documentais, Monquelat
também verificou que os saladeros orientais utilizavam-se amplamente da mão de obra escrava.85 Conforme Sluyter, em Buenos Aires, escravos, libertos e seus descendentes também serviram de mão de obra nos saladeros. 86 De acordo com Mariana Thompson Flores, a abolição da escravidão no Rio da Prata trata-se de um processo bastante complexo. Na realidade, o desrespeito à extinção do tráfico no Rio da Prata, em 1812, e à própria abolição do cativeiro, em 1813, tornou necessário um outro acordo com os britânicos para o fim do comércio negreiro, em 1839. A liberdade definitiva dos escravos argentinos só foi decretada mais tarde, através da Constituição de 1853. No entanto, conforme a autora, algumas cidades só aceitaram a medida abolicionista em 1860.87 As redes mercantis estabelecidas pelos mesmos com os comerciantes brasileiros certamente foram um facilitador para a entrada de africanos no Rio da Prata. Como foi mencionado anteriormente, Francisco Maciel era um dos maiores saladeristas de Montevidéu. 83 84
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 17-19. Após a abolição definitiva da escravidão uruguaia (1846), a entrada de escravos brasileiros nas estâncias
orientais como peões contratados continuou a ocorrer de forma constante (BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 18351855. Montevideo, Ed. Pulmón, 2004, p. 21-23). Tratarei mais deste tema no capítulo 7. 85 MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010. 86 SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 103-105. 87 THOMPSON FLORES, Mariana Flores da Cunha. Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). Tese de Doutorado em História, PUCRS, 2012., p.196-202. Portanto, a comparação clássica realizada por Fernando H. Cardoso entre as charqueadas rio-grandenses escravistas e os saladeros com mão de obra assalariada deve ser relativizada, servindo principalmente para a segunda metade do século XIX (CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul.2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977). 93
Contudo, suas redes de relações com comerciantes cariocas também lhe colocaram na posição de um dos maiores traficantes platinos.88 Nesta condição, Maciel deve ter abastecido com mão de obra africana muitos saladeros, incluindo o de Francisco de Medina – outro rico fabricante de tasajo. Conforme Monquelat, Medina teria empregado cerca de 200 trabalhadores nas suas diferentes unidades produtivas, sendo que mais de 100 eram escravos. 89 Estudando a produção do tasajo em Buenos Aires, Andrew Sluyter também teceu as mesmas considerações e acrescentou que era possível que parte significativa da mão de obra nos saladeros platinos fosse realizada por escravos, libertos ou descendentes de escravos nascidos livres.90 Portanto, os complexos fabris aqui estudados simplesmente não teriam sido montados sem a existência da escravidão africana. Escrevo isto não apenas pensando no seu uso como mão de obra, mas numa interpretação mais abrangente. O tráfico atlântico imprimia um triplo fator sobre a economia das fábricas de carne platinas e pelotenses. Ao mesmo tempo em que traziam escravos para o sul da América (possibilitando a ampliação da produção) e para as plantations brasileiras e cubanas (aumentando o número de consumidores), os negreiros
necessitavam de um grande volume de mantimentos para cruzar o Atlântico e lá se manterem por semanas até o fechamento de todos os negócios com os intermediários africanos. Analisando uma amostra de 50 navios que realizaram este comércio a partir do porto do Rio, entre 1827 e 1830, Manolo Florentino percebeu que 97% deles carregavam charque. As quantidades eram suficientes para garantir a alimentação dos africanos na viagem de volta, podendo, cada embarcação, carregar quase 2 toneladas de carne-seca em seus porões. Um planejado suprimento dos navios era fundamental no sucesso do empreendimento dos traficantes, podendo reduzir a taxa de mortalidade e aumentar os lucros dos mesmos. 91 Além do mais, pode-se dizer que, depois de muitas semanas de viagem, os escravos desembarcavam no Brasil já acostumados com uma das refeições que faria parte de suas vidas, talvez para sempre. 88
PRADO, Fabrício. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII. Topói, v. 13, n. 25, jul./dez., 2012, p. 175. 89 MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010. 90 Conforme Sluyter, em 1810, a população escrava e seus descendentes formavam 1/3 da população de Buenos Aires (SLUYTER, Andrew. Op. cit., p. 103-105). 91 Em épocas de alta demanda, os navios ancorados nos portos africanos demoravam de 4,5 a 5,5 meses para lotar os negreiros. O retorno do Congo-Angola para o Rio de Janeiro durava, em média, 68 dias. Tudo deia ser calculado pelo traficante. Um exemplo concreto pode ser dado no caso do fretamento da nau Arsênia. Ela partiu para Cabinda e levava para a manutenção da tripulação e dos escravos 8 sacas de feijão, 13 de arroz, 110 de farinha, 130 arrobas de charque, 8 pipas de aguardente e 160 alqueires de sal. Em sua viagem anterior ela havia trazido 272 escravos para o Rio de Janeiro (FLORENTINO, Manolo.Op. cit, p. 122-125; 174). 94
Andrew Sluyter chamou de tasajo trail esta rota mercantil de carnes que ligava os portos platinos à Cuba e que manteve-se forte ao longo de todo o século XIX. Além disso, segundo o autor, ao mesmo tempo em que os principais consumidores do tasajo platino eram os escravos cubanos, a mão de obra utilizada na fabricação do produto, pelo menos nas primeiras décadas de seu funcionamento, também era cativa. Portanto, como já se disse, o tasajo era fabricado “por” e “para” escravos. Neste sentido, a rede mercantil estabelecida
entre o Rio Grande do Sul e os portos brasileiros do sudeste e do nordeste possuía uma conformação semelhante. O charque pelotense também era fabricado “por” e “para” escravos , embora não fosse consumido exclusivamente por estes. Contudo, este comércio não se dava somente no interior de ambas as rotas intra-imperiais. Enquanto os platinos também exportavam suas carnes para os portos brasileiros, o Rio Grande do Sul, principalmente na primeira metade do oitocentos, remeteu porções significativas de charque para Havana.92 Portanto, esta transversalidade comercial srcinada nos finais do setencentos, e viabilizada pelos comerciantes situados no interior das redes transimperiais, tiveram significativa importância no processo de formação dos complexos fabris. Elas garantiram a entrada de escravos africanos no Rio da Prata e o acesso aos mercados consumidores transimperiais para ambos os produtores. Muitas vezes, estas interações sociais eram estimuladas pelos próprios administradores ilustrados que ocuparam os seus cargos durante o colonial tardio. O Vice-Rei Juan José de Vértiz, por exemplo, “hombre activo y progresista”, logo que assumiu seu cargo, em 1778, fez chegar ao Cabildo de Buenos Aires uma Dissertación de la Sociedad de Sevilla, sobre el método, reglas y ventajas de la salazón de carnes. No mesmo ano, o Cabildo fez uma
proposta de instalação de uma fábrica, mas ela era repleta de exigências e a Coroa não a aceitou. O sucessor de Vértiz no Vice-Reinado, o Marquês de Loreto (1784-1789), voltou a incentivar os investidores, mas desta vez defendeu que os saladeiristas deviam agir por conta própria e sem subsídios do Estado. Foi nesta época que os saladeros se desenvolveram em Montevidéu. Conforme Montoya, “la industria de carnes saladas surgió en el Río de la Plata por la sola iniciativa de algunos particulares que afrontaron por su cuenta y riesgo todas las dificultades que ofrecía la empresa”. Mas segundo ele, “justo es reconecer que sus esfuerzos 92
Segundo Helen Osório, os anos de maior pico foram 1814, 1816 e 1818, quando os cubanos receberam 9,7%, 6,5% e 13,1% do volume total exportado pelo Rio Grande do Sul (OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e c omerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p. 198). Na década de 1840, este mesmo índice atingiu, em alguns anos, cerca de 10% (BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011, p. 73). 95
siempre contaron com la adhesión y estímulo de las autoridades del Virreinato y de los Ministros de la Corona”.93 As relações de sociabilidade entre fabricantes de carnes, agentes mercantis e autoridades coloniais podia ocorrer nas principais cidades atlânticas, em salões, clubes, nos campos de batalha, no portos marítimos ou nos próprios saladeros. Montevidéu, enquanto zona de interação destes agentes, também constituiu-se num notável espaço de sociabilidade destas elites. Cultivando a cultura teatral de Cadiz, Cipriano de Melo, oficial da Coroa espanhola encarregado de reprimir o contrabando em Montevidéu, fez questão de instalar um teatro na cidade – ponto certo da circulação de saladeiristas, proprietários, bacharéis e burocratas. Conforme Fabrício Prado, Cipriano hospedava em sua casa importantes comerciantes, traficantes e governantes, e lhes convidava para os seus diversos jantares. Poder político, redes de influência e capital mercantil andavam juntos. Além disso, alguns dos capitães portugueses que direcionavam seus navios para Montevidéu eram parceiros de negócios de Cipriano, ironicamente o encarregado em combater o contrabando. Sua rede envolvia parentes e amigos envolvidos no comércio de açúcar, tabaco e escravos entre Montevidéu e o Rio de Janeiro, por exemplo.94 As muitas décadas de convivência em uma fronteira não muito definida colocava lusobrasileiros e hispano-americanos numa relação conflituosa, mas que, dependendo das conjunturas e dos fatores e recursos que estavam em jogo, podia ser utilizada positivamente. Com relação a isto é possível oferecer mais exemplos. Conforme o depoimento de um padre, conhecido de Francisco Maciel, este saladeirista, que já fabricava carnes em barris, decidiu produzir charque e toucinhos “ao estilo dos portugueses do Brasil”. Para tal intento, em 1786, o saladeirista “mandou trazer expressamente do Brasil homens inteligentes no ramo”.95 As trocas de experiências também podiam se dar por intermédio de cartas e anotações diversas. O saladeirista Francisco de Medina possuía entre os seus bens inventariados diversos livros de economia e ciências, entre outros, assim como papéis onde constavam cópias de um método para fazer tasajo, um volume contendo apontamentos sobre a salga de carnes e o aproveitamento das graxas e sebos, além de uma carta escrita em português por um tal José 93
Essa negociação com as autoridades rendia medidas políticas importantes, como as Ordens Reais de 10.04.1793 e 20.12.1802, onde as carnes salgadas estiveram livres de todo o direito de introdução, extração e comércio (MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 17-21). 94 Ao analisar as pessoas que faziam parte da rede de Cipriano, Prado ofereceu um modelo do tipo de relações estabelecidas pelos saladeiristas platinos, demonstrando que os mesmos podiam apresentar íntimas conexões com comerciantes luso-brasileiros e autoridades coloniais de prestígio (PRADO, Fabrício. Op. cit., 2012). 95 CASTELLANOS, Alfredo. Op. cit., p. 31-32. 96
Arouche sobre os mesmos métodos fabris.96 O próprio Medina, no início dos seus empreendimentos na indústria pesqueira, contou com o auxílio de “arponeros” ingleses e portugueses.97 Tratam-se de indicações de que salgadores e comerciantes luso-brasileiros mantinham próximo contato com os saladeros de Montevidéu, ou correspondiam-se com os seus proprietários, transmitindo conhecimentos técnicos e trazendo outros que poderiam ser levados para o Rio Grande. Tais conexões revelam a circulação de pessoas em ambos os lados da fronteira num processo de mútua influência. Como tenho dito, estas experiências não significavam que as relações entre os grupos que interagiam tanto na fronteira terrestre quanto nos portos marítimos fossem necessariamente de cooperação. Em 1801, luso-brasileiros e hispano-americanos engalfinharam-se em uma nova guerra, desta vez pela conquista das Missões. Não foi o primeiro e nem seria o último conflito belicoso entre ambos e tal contenda militar não cessou o comércio realizado entre os portos atlânticos ao sul. Tanto que em 1803, os charqueadores, os estancieiros e os comerciantes rio-grandeses voltaram a reclamar com o governo central – prática em que eles eram muito talentosos e que faria escola ao longo do século XIX. O comércio entre Montevidéu e os portos brasileiros continuava afetando negativamente a economia do Rio Grande e desta vez foi o próprio Governador da Capitania, Paulo Gama, que reclamou com Lisboa.98 Como se verá em capítulos posteriores, a concorrência entre os charqueadores pelotenses e os saladeiristas platinos foi corrente ao longo do século XIX e compôs um cenário de conflitos e disputas que marcaram a vida na fronteira, envolvendo diferentes grupos sociais. Se durante o período Joanino, os rio-grandeses apoiaram a política expansionista da Corte, com a ocupação da província Cisplatina (1822-1828), a interação social e econômica com a campanha oriental e a praça de Montevidéu tornou-se ainda mais notável. Neste processo, os rio-grandenses começaram a apropriar-se dos vastos campos do Estado Oriental. As consequências desta tensa relação fronteiriça resultaram em algumas importantes guerras ao longo do oitocentos e tratarei delas, e da participação dos charqueadores nas mesmas, em capítulos posteriores. No momento, a questão que interessa é demonstrar a permanência das relações sociais entre comerciantes e charqueadores de ambos os lados da fronteira, assim como a transmissão de conhecimentos técnicos entre os mesmos. 96 97
98
MONTOYA, Alfredo. Op. cit., p. 24; MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010. MONQUELAT, A. F. Notas à margem da escravidão.Pelotas: Ed. da UFPel, 2009, p. 80. Ofícios de 25.07.1803 – A.1.01 (Arquivo Histórico do RS). 97
Aquela fronteira, como muitos atestaram, não foi somente um espaço de conflitos. Ao lado destes havia relações de reciprocidades entre os súditos de ambas as coroas, que permaneceu forte após o processo de independência. Isto se explica pelo simples fato de que as relações familiares, de amizade, de compadrio, ou seja, as relações mais afetivas, conviviam juntas com relações de negócios e alianças militares e políticas, configurando uma complexa interação social característica de uma sociedade de fronteira. 99 Um exemplo destas conexões pode ser dado pelo próprio comportamento de alguns charqueadores nos meses iniciais da Revolta Farroupilha. Com medo de terem seus negócios prejudicados, pelo menos 4 charqueadores migraram para Montevidéu levando seus escravos e capitais, vindo a erguer outros saladeros no país vizinho. Entre os mesmos estavam Antônio José Gonçalves Chaves e o seu sogro Joaquim José da Cruz Secco. É interessante notar que sua migração foi facilitada pelo fato dos mesmos pertencerem a uma rede de mercadores com conexões na Banda Oriental. Chaves chegou em Montevidéu dizendo à polícia uruguaia que iria morar na casa de Diego Martínez. Talvez este cidadão fosse parente de Francisco Martínez Nieto. Em 1836, este saladeirista, que provavelmente já conhecia Chaves de muito 100 antes, alugou os escravos deste para trabalharem em sua fábrica.
Francisco Nieto possuía certo destaque entre os saladeiristas uruguaios, pois foi ele o primeiro a utilizar caldeiras a vapor nas graxeiras. A primeira caldeira deste tipo que se tem 101 notícia foi importada da Inglaterra e chegou em Montevidéu no ano de 1831. Não demorou
muito e a ideia foi levada para Pelotas, segundo o charqueador Domingos José de Almeida, por ele mesmo.102 Ora, Almeida era sócio e grande amigo de Chaves e acredito que ambos, assim como muitos outros charqueadores, estavam muito bem sintonizados com as inovações que desembarcavam em Buenos Aires e Montevidéu, por meio destas redes de relações sociais e mercantis em que estavam inseridos. Um exemplo inverso desta troca entre 99
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de Extradição e de Limites. Porto Alegre: PPG-História da UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2002; GUAZZELLI, SOUZA, Susana B. e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX. In: GRIJÓ, Luiz A.; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, César A. B.; NEUMANN, Eduardo. Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS, 2004; MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (18081831). São Paulo: Editora Hucitec, 2009; THOMPSON FLORES, Mariana F. da C.; FARINATTI, Luis A. A fronteira manejada: apontamentos para uma história social da fronteira meridional do Brasil (século XIX). In: Flávio Madureira Heinz. (Org.). Experiências Nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina.São Leopoldo: Oikos, 2009, v. , p. 145-177. 100 MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2010; 2012. 101 PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 172. 102 Carta de Domingos para Manoel Lourenço do Nascimento, 15.11.1862. CV – 792, in: Anais do AHRS, v. 3, 1978. 98
charqueadres e saladeiristas pode ser dado no saladero de Juan Hall, em Montevidéu. Em 1841, conforme Anibal Pintos, Hall “incorporó algunos adelantos (…) como se acostumbraba a utilizar en el Brasil”. Pintos se referia à cancha, espaço com piso liso onde o animal era esfolado e carneado e cujas extremidades apresentavam um declive para que o sangue escorresse em canaletas até o rio, e o torno, que provavelmente estava acoplado ao guindaste utilizado para erguer e transportar o bovino abatido e laçado até a cancha. 103 De fato, tanto o guindaste quanto a cancha já existiam em Pelotas desde a década de 1820, como deixou registrado Nicolau Dreys.104 Estas trocas devem ter se estreitado mais ainda durante a Guerra dos Farrapos, pois, como demonstrou César Guazzelli, o porto de Montevidéu foi seguidamente utilizado pelos rebeldes durante o conflito.105 No meado do século, o número de brasileiros com saladeros no Uruguai, nas margens fluviais que faziam fronteira com o Rio Grande do Sul, já chegava a mais de 10 proprietários. Dentre eles, estavam Delfino Lorena de Souza, João Jacintho de Mendonça, Honório Luís da Silva e João Vinhas, entre outros. 106 Vinhas, que também possuía uma charqueada em Pelotas, havia comprado o terreno (onde construiu o seu saladero) de Samuel Lafone, comerciante inglês nascido em Liverpool, e um dos principais saladeiristas do 107
Uruguai. Lafone trouxe mudanças 108 no que diz respeito à higiene dos estabelecimentos, sendo imitado por outros empresários. Imigrantes trazendo capitais não foram raros nas paragens do Rio da Prata, sendo que os mesmos agiam por meio de uma cadeia de informações que ligava as colônias às praças mercantis ibéricas. Em 1779, por exemplo, Manuel Melián informou-se de que a Coroa espanhola procurava abastecer a Real Armada com carnes salgadas fabricadas na América. Foi até Cadiz, onde reuniu todas as informações sobre o processamento de carnes e depois embarcou para o Prata com o fim de arriscar-se nos negócios.109 As trajetórias de Lafone e Melián são elucidativas de como os estrangeiros
103
PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 173. DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: IEL, 1961, p. 134. 105 GUAZZELLI, César A. B. A República Rio-grandense e a praça de Montevideo (1836-1842). In: HEINZ, Flávio; HERRLEIN JR., Ronaldo. Histórias regionais do Conesul.Santa Cruz: Edunisc, 2003, p. 147-166. 106 Relação dos charqueadores existentes no Rio Grande do Sul, s/d. (Coleção de manuscrito. BN do Rio de Janeiro). 107 MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2012, p. 129. 108 PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 173. 109 PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 147-148. 104
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(muitos deles anglo-franceses) chegavam da Europa com significativos recursos financeiros, algo que parece não ter ocorrido em Pelotas com a mesma desenvoltura.110 Portanto, as inovações tecnológicas, a resolução de problemas técnicos e o tão falado “espírito empreendedor” podiam marcar a trajetória tanto de colonos, quanto de membros da burocracia imperial ou comerciantes vindos das metrópoles. Tratando-se de um ramo de negócios relativamente recente e envolvendo um número não muito grande de empresários, os equívocos e os fracassos devem ter sido muito recorrentes. Contudo, visto a proximidade dos circuítos mercantis e a inserção nas mesmas redes mercantis, as inovações pareciam ser comumente incorporadas tanto por parceiros de negócios como por concorrentes. Neste sentido, no interior destas redes de relações, o sucesso de um empreendimento era imitado pelos demais, enquanto o fracasso devia ser evitado. Daí que, numa realidade agrária, préindustrial e com uma diminuta comunidade mercantil e fabirl, além de um contexto de profunda interação entre os diversos agentes nela envolvidos, as ações individuais tomavam proporções mais decisivas. Um contemporâneo, em 1794, dizia ter conhecido os catalães Don Miguel Ryan e Don Manuel Solsona, que tomando o exemplo de sucesso de Francisco Medina, resolveram remeter carnes para Espanha, “y à imitación de estos van inclinándose 111
algunos otros”. Neste sentido, não se tratava apenas de um espaço aberto112às inovações de caráter econômico, mas igualmente de transformações de ordem sociocultural. Como vem sendo demonstrado, as interações socioeconômicas não se davam somente entre sul-americanos e ibéricos. Por se tratarem de cidades portuárias, no caso de Buenos Aires e Montevidéu, ou bastante próximas a um porto marítimo, como Pelotas, o mundo Atlântico estava ao alcance dos mesmos e os colocavam em contato com um número diverso de agentes mercantis. Com a abertura dos portos, em 1808, o fluxo de estrangeiros para o porto de Rio Grande se ampliou. Como notou Gabriel Berute, o comerciante inglês John Luccock, que esteve em Rio Grande em 1810, deixou anotado o impacto daquela lei, pois os produtos ingleses já vinham substituindo os portugueses de forma notável, devido aos preços mais atrativos e o “gosto pela exibição” que vinha crescendo entre as pessoas “pois que as possibilidades que a riqueza concedia se escoavam por vários canais”. 113 110
Um outro comerciante revelou em suas memórias que havia chegado no rio da Prata, em 1790, munido de grandes capitais para investir em saladeros e, segundo ele, baixo a sua direção, teriam surgido 11 estabelecimentos, entre grandes e pequenos. (BARRIOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 148-149). 111 PINTOS, Anibal B. Op. cit., 1971, p. 148. 112 BARTH, Fredrik. Process and form in social life.London: Oxford, 1981. Em especial o Capítulo 6. 113 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 122; BERUTE, Gabriel. Op. cit., p. 74. 100
Tratando-se de uma cidade portuária, a população estrangeira de Montevidéu devia ser bem maior que a de Pelotas. Em 1835, dos 128.371 habitantes do Estado Oriental, 23.404 residiam na capital. Com relação a estes índices, Pintos não computou o total de estrangeiros na cidade, mas, no país inteiro, havia 25 mil europeus (quase 20% do total) e 4 mil brasileiros.114 No mapa populacional de 1833, Pelotas, cuja população total era de 10.873 habitantes, apresentava 378 indivíduos classificados como estrangeiros brancos, sendo 185 portugueses, 40 espanhóis, 20 hispano-americanos, 34 franceses, 10 ingleses, 4 norteamericanos, além de alemães, italianos e indivíduos de outras nacionalidades. Contudo, o percentual de negros (cativos e libertos) em Pelotas superava muito os de Montevidéu. Enquanto a população “afro-criolla” da cidade oriental, durante o colonial tardio, alcançou aproximadamente 25% do total115 , em Pelotas, no início dos anos 1830, os 5.623 escravos e os 1.137 libertos somados ultrapassavam os 62% da população. 116 Desnecessário lembrar que se tratava de uma população considerada fixa e que tais estatísticas não dão conta dos agentes que se locomoviam no cotidiano de ambas as localidades. Contudo, a partir dos dados enunciados, é possível supor que enquanto os charqueadores pelotenses estavam mais rodeados de escravos e libertos, os comerciantes e saladeiristas de Montevidéu, pelo próprio caráter portuário da cidade, tinham um maior contato com os europeus. Tais fenômenos sociais não poderiam deixar de apresentar significativas marcas socioculturais em ditos grupos de empresários.117 No entanto, como já mencionei, isto não significa que estrangeiros não tenham buscado investir nas charqueadas sul-rio-grandenses. Certamente o caso mais ilustrativo envolve o francês Jean Baptista Roux – provavelmente um dos pioneiros em empregar mão de obra assalariada nas charqueadas pelotenses. Instalando-se primeiramente em Triunfo, Roux passou por Porto Alegre, Rio Pardo e Rio Grande até que, em 1846, arrendou a charqueada do Visconde de Jaguari, em Pelotas. Neste estabelecimento, ele empregou trabalhadores de diferentes nacionalidades juntamente com 30 escravos alugados, num empreendimento que,
114
PINTOS, Anibal B. Op. cit.,1971 , p. 169. O percentual da população em Montevidéu (18%) é confirmada por BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Op. cit., p. 7. 115 BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N.Op. cit., p. 19. 116 Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém literário, 1994, p. 98). 117 Com relação aos charqueadores pelotenses, tais fatores serão analisados no capítulo posterior. Na segunda metade do século, Pelotas viu esta situação se inverter e um grande número de estrangeiros tomou conta das ruas da cidade, como demonstro no capítulo 4. 101
em sociedade com Eugène Salgues, durou pouco mais de cinco anos.118 Décadas mais tarde, a filha de Roux deixou registrado as lembranças da charqueada do pai: “Tinha uma casa grande, com jardim, uma quinta com laranjeiras e outras frutas. Perto um grande terreno, onde matavam os animais, beneficiavam as carnes e couros, tinha centenas de trabalhadores entre bascos, franceses, espanhóis, argentinos, correntinos, paraguaios, orientais e africanos. Para morar, tinham cabanas, muitos tinham família. O trabalho era de quatro horas da manhã ao meio dia. (...). Depois os homens iam se lavar na beira do rio e se divertiam cada qual a sua maneira. Os bascos jogavam bola, os argentinos e correntinos cartas, que acabavam as vezes por disputas”.119
Talvez nenhum charqueador tenha sido tão bem relacionado com estes comerciantes estrangeiros como Antônio José Gonçalves Chaves. Além das suas próprias relações com Montevidéu, seu filhos circularam o mundo de forma tão diversificada que pareciam estar inspirados pelo cosmopolitismo do pai. Em 1836, seu filho Tito encontrava-se nos Estados Unidos, provavelmente em negócios, conforme o próprio relato do irmão. Quase na mesma época, o primogênito, que administrava a charqueada do pai em Montevidéu, era Vice-Cônsul brasileiro no Uruguai. Uma das filhas de Chaves casou-se com o comerciante inglês Robert Barker e outro dos seus filhos formou-se médico, em Paris. Não causa surpresa que SaintHilaire tenha deixado escrito o seguinte trecho sobre o charqueador: “O Sr. Chaves é um homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma, “um dos homens mais esclarecidos da região”.120 Todo este conhecimento de Chaves, assim como suas opiniões sobre política e economia, bastante liberais para a época, foram transpostas para o papel entre os anos de 1817 e 1822, sendo impressos num único volume.121 A impressão que se fica é que homens como Chaves procuravam manter relações mercantis e pessoais com indivíduos de visão de mundo e interesses semelhantes e que pertenciam a um restrito círculo de relações. O sogro de Chaves, Joaquim José da Cruz Secco, numa das viagens para Montevidéu, foi acompanhado do comerciante francês Júlio Paulet, proprietário de um brigue no porto de Montevidéu. Secco também possuía livros entre seus 118
OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Tese de Doutorado em História, PUCRS, 2005, p. 115-116. De fato, Roux aparece com frequência nas escrituras públicas dos cartórios de Pelotas no período (APERS). 119 LEITE, José A. Mazza. “Xarqueadas” de Danúbio Gonçalves:memória de um trabalho através da arte social. Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2003. A memória parece ter sido escrita no final do século XIX e é provável que haja um exagero quanto à quantidade de trabalhadores estrangeiros que, certamente, não eram vistos às “centenas”. 120 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul.Brasília: Senado Federal, 2002, p. 103. 121 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978. 102
bens inventariados, indicando que mantinha o gosto pelas letras.122 Um dos seus sócios, o charqueador Domingos José de Almeida, foi o principal mentor intelectual da Revolta Farroupilha, citando um repertório variado de pensadores e escritores da época nos muitos artigos que escreveu na imprensa. Talvez o projeto mais ambicioso de ambos tenha sido a construção do primeiro navio a vapor da região sul. As peças do mesmo foram trazidas dos Estados Unidos (onde o filho de Chaves residia) e o projeto contou com o apoio do charqueador José Vieira Vianna e do mercador José Marques Canarim – um súdito da Coroa portuguesa que, conforme Fernando Osório, era nascido na Kanara, sudoeste da Índia.123 A demonstração de mais exempos das relações sociais mantidas pelos charquadores pelotenses com indivíduos de outras regiões seria demasiado cansativo, mas os mesmos serão mencionados ao longo dos capítulos. Portanto, apesar dos irlandeses, franceses e ingleses não estarem tão presentes no complexo charqueador escravista pelotense, seja como trabalhadores e mestres, seja como proprietários, não resta dúvida de que parte significativa dos charqueadores interagiram bastante com os estrangeiros, sobretudo, no porto de Rio Grande. De ambos os lados da fronteira – as margens do Atlântico foram cenário de forte interação social entre hispanoamericanos, luso-brasileiros, norte-americanos e europeus de nacionalidades diversas. Diante de tal cenário, não causa surpresa que se pudesse encontrar num jornal de Montevidéu o seguite anúncio a respeito de um escravo fugido: Um negro Fugiu na tarde de 27 do corrente, de nome João, veste uma jaqueta tecido azul, muito esfarrapada, calças de cor, muito sujas, é natural do Rio de Janeiro, fala portugês, espanhol e genovês, lhe falta um pouco de cabelo na parte da frente da cabeça, de cor muito negra (…) Quem o entregar na rua São Carlos (…) será bem gratificado.124
É possível concluir este capítulo reafirmando que, ao mesmo tempo em que os saladeros competiam com as charqueadas pelos mercados consumidores e o acesso a certas mercadorias, a interação social portuária e urbana representava uma substancial troca de culturas e ideias, alimentada pela crescente circulação de burocratas, mercadores e mestres de salga pelas margens do Atlântico, entre os muitos portos que compunham a rota desde Buenos 122
Inventário de Thereza Angélica de Sá, n. 126, m. 10, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedoria. 1828 (APERS). 123 OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas.Pelotas: Armazém Literário, v. 1, 1997, p. 68. 124 Jornal El Nacional, edição de 30.09.1841 apud MONQUELAT, A. F. Charqueadores, Saladeristas y Esclavistas. Pelotas: UFPel, 2010, p. 97 (tradução de Monquelat, grifos meus). 103
Aires até Recife, passando por Havana, Cadiz, Lisboa e Cork, entre outros. As conexões mercantis estabelecidas no período colonial no interior das redes intra-imperiais acabaram condicionando os mercados do tasajo e do charque na primeira metade do século XIX. Enquanto os pelotenses tinham nos portos brasileiros os principais consumidores do charque, os platinos tinham em Cuba sua principal compradora. Entretanto, isto não significa que o comércio não tomasse sua forma transversal. Ainda no período colonial, o Rio Grande do Sul remeteu grandes quantidades de charque para Cuba, enquanto as exportações platinas para o Rio, a Bahia e o Pernambuco, sempre constituíram-se numa das grandes dores de cabeça dos charqueadores pelotenses. Tanto no que diz respeito às exportações de charque, quanto às de carne salgada, a concorrência platina foi lentamente corroendo o complexo charqueador pelotenses, como demonstrarei adiante. Portanto, não creio ser possível compreender a história da formação destes três pólos fabris de forma separada, visto que eles estavam inseridos numa mesma conjuntura mercantil atlântica que caracterizou o colonial tardio na América do Sul. Esta conjuntura envolvia um espetacular aumento do tráfico atlântico de escravos num momento de expansão das plantations açucareiras e cafeeiras nas Américas. Não fossem estas ligações que
caracterizaram o colonial tardio, dificilmente as charqueadas e os saladeros teriam sido montados com tamanho sucesso no período. Por outro lado, as redes de relações sociais entre comerciantes e autoridades administrativas garantiram o abastecimento de escravos, o fornecimento de capitais, o conhecimento técnico, além de favores políticos e informações preciosas sobre os mercados. Neste contexto, é difícil destrinchar as malhas de mútua influência entre os dois complexos fabris escravistas surgidos quase na mesma época. Se por um lado a competição entre hispano-americanos e luso-brasileiros fornecia um tempero adicional aos fabricantes de carne, por outro, a interação cooperativa entre indivíduos pertencentes a impérios distintos também era praticada, apresentando-se como a outra face da mesma moeda. Apesar do crescimento do setor cafeeiro ter sido extraordinário no período aqui analisado, o carro-chefe da economia colonial tardia foi o açúcar e foi a expansão açucareira que garantiu o aumento da demanda por carnes secas e salgadas tanto no Caribe, quanto no Atlântico Sul, entre 1650 e 1830. Se na América portuguesa, a produção de charque nordestino e sulino tinha nas plantations açucareiras a sua principal consumidora, no Prata, Buenos Aires e Montevidéu também tinham em Cuba, o principal mercado. Portanto, a economia atlântica se movia neste contraste entre o doce e o salgado, entre o negro e o 104
branco, entre a riqueza de poucos e a pobreza de muitos. Mesmo que cada localidade pertencente ao mundo atlântico possuísse as suas singularidades e fosse muito mais complexa que estes mencionados contrastes, a sociedade escravista que se formou em Pelotas, como demonstro nos capítulos seguintes, não poderia ser diferente daquele contexto, apresentando uma profunda desigualdade social…
105
3.
UMA
ALDEIA
ESCRAVISTA:
A PRIMEIRA GERAÇÃO DE
CHARQUEADORES E A SUA ELITE (1790-1835) Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia Leon Tolstoi
Na década de 1780, as oficinas de carne-seca nordestinas ainda não haviam entrado na crise que desencadearia a sua decadência. Portanto, quando surgiram as primeiras charqueadas na localidade em que viria a ser Pelotas, os mercados do sudeste e do nordeste da colônia ainda estavam sendo abastecidos de charque por aquela região. Recentemente, a história de que o português José Pinto Martins, charqueador em Aracati, no Ceará, teria migrado para o sul da colônia após a seca de 1777, e instalado em Pelotas a primeira charqueada do local, foi desconstruída.1 Pouco se conhece da fase inicial de instalação dos galpões de charquear em Pelotas, mas quando Pinto Martins chegou na capitania sulina, provavelmente na passagem da década de 1780 para a de 1790, o charque já era fabricado no Rio Grande do Sul em larga escala. No entanto, a atuação deste charqueador neste contexto não deve ser desprezada. Caso não tivesse possuído um papel importante nos primórdios do complexo charqueador pelotense, dificilmente Pinto Martins teria sido lembrado como o grande “empreendedor” da localidade no século XVIII. Creio que a contribuição de Pinto Martins para a história das charqueadas pelotenses não foi ter instalado a primeira fábrica, mas sim, ter contribuído para a abertura dos mercados nordestinos para o produto, o que fez a produção aumentar em extraordinária escala. Mas vamos por partes. Afirmei, anteriormente, que o saladeirista Francisco Maciel foi um grande traficante de escravos em Montevidéu. Para obter sucesso nestes negócios, Maciel deveria possuir relações muito próximas com os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, uma vez que a maior parte dos escravos entrados no Prata vinha daquele porto. E, de fato, ele as possuía. Conforme Fabrício Prado, em 1780, Maciel (que era grande parceiro de negócios do administrador de Montevidéu, o senhor Cipriano de Melo) foi ao Rio de Janeiro “como delegado representando os interesses dos mercadores de Montevidéu”. Desembarcando na 1
Conforme Vieira Júnior, em 1787, quando o Rio Grande do Sul já exportava grandes quantidades de charque para o Rio de Janeiro, Pinto Martins ainda residia em Recife (VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. De Família, Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824). In: Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 16. N. 30, dez, 2009, p. 187.214. 106
cidade, reuniu-se com comerciantes e autoridades locais “a fim de adquirir 90 escravos e comprar tabaco, açúcar e tecidos”. No entanto,
segundo Prado:
(…) a parte mais importante de sua viagem foi restabelecer a rota de comércio entre
o Rio de Janeiro e o Rio da Prata. Maciel garantiu que navios portugueses seriam bem-vindos a Montevidéu, especialmente alegando necessidade de aportar para reparos, sendo esta uma garantia apresentada pelo segundo comandante Cipriano de Melo. Apesar da estratégia suspeita, o Vice-rei recebeu garantia de don Brás Carneiro Leão, mercador de “boa reputação e grande crédito” no Rio de Janeiro, 2 dando testemunho da confiabilidade autoridades e dos mercadores de Montevidéu e garantindo a segurança dos das navios.
A viagem de Maciel ao Rio demonstra o quanto eram importantes os acordos prévios e as combinações com as autoridades luso-brasileiras num mercado atlântico onde o comércio estava longe de ser totalmente livre, muito embora as elites coloniais moviam-se no seu interior com uma notável autonomia. Neste contexto, figuras como Brás Carneiro Leão potencializavam ainda mais o seu poder e influência, uma vez que o seu prestígio não decorria somente de sua riqueza, mas também do número de pessoas que conheciam e dos favores que podiam conceder. Carneiro Leão, enquanto membro de uma das famílias de comerciantes de grosso trato mais importantes do Rio, relacionava-se com um grande número de negociantes e traficantes e, por conta disto, devia ser procurado por vários indivíduos dos diferentes portos do Atlântico sul.3 Um destes indivíduos foi o comerciante rio-grandense Alexandre Inácio da Silveira. Preocupado com as poucas cargas de sal que eram remetidas para as charqueadas do Rio Grande, Alexandre recebeu da Coroa o direito de extrair o produto na capitania fluminense e para isto contou com o apoio de Carneiro Leão, que lhe colocou a disposição os seus escravos. Os mesmos foram empregados por Alexandre no trabalho das salinas de Cabo Frio, juntamente com outros cativos e índios da localidade.4 No entanto, as conexões mercantis de Alexandre não estavam restritas ao Rio de Janeiro. Em 1793, encontrando-se em Lisboa, ele peticionou à Rainha com o objetivo de embarcar para o outro lado do Atlântico diversas mercadorias, entre as quais 2 mil moios de 5
sal. Em 1795, Alexandre voltava a incomodar a Rainha, desta vez escrevendo de Recife, 2
PRADO, Fabrício. A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII. Topói, v. 13, n. 25, jul./dez., 2012, p. 174. 3 Sobre este grupo de comerciantes, ver FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 4 MONQUELAT, A. F. Diário da Manhã.Pelotas, 22 de novembro de 2010. 5 MONQUELAT, A. F. Desfazendo mitos (notas à história do Continente de São Pedro).Pelotas: Ed. Livraria Mundial, 2012, p. 63-67. Alexandre dizia encontrar-se em Lisboa por quase um ano e meio. 107
onde estava realizando outros negócios envolvendo carne seca e sal. 6 A preocupação com o sal se dava pelo fato de que ele próprio investia seus capitais na fabricação de carnes em barris e nesta empreitada pareceu trabalhar em parceria com João Rodrigues Pereira de Almeida, um dos mais ricos comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro e que também remetia barris de carne para Lisboa, como mencionei no capítulo anterior. 7 Em seus requerimentos, era comum Alexandre argumentar no sentido de querer o melhor para o comércio de todas as capitanias e o desenvolvimento do Reino, reproduzindo uma retórica imperial provavelmente compartilhada por outras elites coloniais.8 Apesar de ter conseguido alguns pareceres favoráveis aos seus requerimentos, os entraves e barreiras com relação ao comércio de sal cessaram somente em 1801, quando o estanco do produto foi extinto.9 Neste processo, Alexandre da Silveira destacou-se como um dos principais intermediários entre os comerciantes e estancieiros rio-grandenses e as autoridades imperiais, apresentando-se à Rainha como p rocurador “de todos os moradores da Capitania do Rio Grande do Sul”.
10
Mas de onde provinha tal legitimidade? Alexandre era
neto do alferes Antônio de Mendonça Furtado e dona Isabel da Silveira – casal tronco de uma das famílias mais importantes da capitania no século XVIII. Conforme Martha Hameister, as filhas de Furtado, oriundas da Ilha do Faial, tinham o “tratamento de Dona desde que 6 7 8
Ofício de 14.02.1795. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 296 (Projeto Resgate). Ofício de 07.08.1801. AHU-ACL-CU-019, Cx. 5, doc. 394 (Projeto Resgate). Em 1795, comerciantes do Rio Grande pediam para que suas embarcações retornassem da Bahia e Pernambuco
com sal, ao invés de terem de improvisar lastro de areia. Segundo eles, este comércio servia “a todas as
capitanias de Portugal especialmente a de Pernambuco e Rio Grande, que ambas exportam os gêneros que tem de sobras nos seus países e recebem o que precisam como Pernambuco que agradece as porções de carnes e mais mantimentos que vão do Rio Grande pela esterilidade em que se acha (…) e pode exportar para o Rio Grande o sal que sobra nas suas oficinas”. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 296 (Projeto Resgate). Em certa medida, também tratava-se de um sentimento de pertencimento ao Império português, talvez compartilhado, sobretudo, por grandes negociantes e funcionários da Coroa, além de outros setores das elites coloniais. Ver, por exemplo, GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (Org.). Na trama das redes. Política e negócios no império português. Séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 9 Como o Rio Grande do Sul não produzia sal, a sua importação sempre foi essencial para o funcionamento regular das charqueadas. Portanto, a montagem do complexo charqueador nos fins do século XVIII e início do século XIX, dependeu dos fluxos deste produto para o sul da América lusitana e da produção das salinas brasileiras. Como o consumo do produto cresceu bastante ao longo dos setecentos, em meados do mesmo século, Portugal estabeleceu uma legislação especial para o comércio de sal no Brasil. Ao mesmo tempo em que visava o aumento da arrecadação tributária com os contratos de comércio, a legislação proibia a ampliação das salinas de Pernambuco, Cabo Frio e Rio Grande do Norte. Portanto, entre 1755 e 1801 vigorou o regime de monopólio sobre as transações envolvendo o sal e seu abastecimento não podia ser feito pelos rio-grandenses através de importações diretas, tornando-se necessária a sua importação pelos chamados “portos do Estanco”, ou seja, na Bahia, Rio de Janeiro, Santos ou Recife. Em 1801, a extinção deste monopólio possibilitou a livre comercialização do sal e a ampliação da produção nas salinas brasileiras. O fim da antiga prática deve ter sido mais um dos fatores que favoreceram o desenvolvimento do complexo charqueador no período (CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983, p. 109-112; 201. 10 Ofício de 09.06.1795. AHU-ACL-CU-019, Cx. 3, D. 298 (Projeto Resgate). 108
chegaram ao Continente” e “seus maridos não faziam parte do contingente de camponeses de poucas posses ou de homens de ofício”. As irmãs Silveira, como ficaram conhecidas, “casaram-se
dentro do seleto grupo de detentores de sesmarias de grandes proporções, de
grandes rebanhos de gado, arrematadores de contratos e oficiais da Câmara ”.11 Portanto, a parentela de Alexandre formava um poderoso grupo da elite local e ele, assim como outros de seus parentes, constituiu-se num importante mediador entre a capitania e Lisboa.12 Figura 3.1 – Sesmaria do Monte Bonito e Sesmaria de Pelotas (início do século XIX)
Fonte: GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: mão de obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888).Pelotas: Universitária, 2004.
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HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova pov oação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006, p. 163. 12 Uma vez que os membros da família atuaram em diferentes atividades econômicas e ocuparam distintos cargos, ela também foi estudada por outros historiadores que analisaram as elites sul-rio-grandenses no século XVIII. Ver, por exemplo, KUHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. Tese de Doutorado. Niterói: PPG em História da UFF, 2006; COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara municipal de Porto Alegre (1767 -1808). Porto Alegre: Gráfica da UFRGS, 2008; HAMEISTER, Martha e GIL, Tiago. Fazer-se elite no extremo sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII) . In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla & SAMPAIO, Antônio C. J. Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 265310; MARQUES, Rachel dos Santos. Por cima da carne seca: hierarquia e estratégias sociais no Rio Grande do Sul (c. 1750-1820). Curitiba. Dissertação de Mestrado, UFPR, 2011. Os maridos das irmãs Silveira são comumente referidos pelos mesmos como o “bando dos cunhados”. 109
Esta família teve papel proeminente na história de Pelotas. O município srcinou-se em um território inicialmente formado por 7 sesmarias concedidas a diferentes proprietários. Mas as fábricas de carne, estabelecidas a partir dos anos 1780, ocupavam principalmente o espaço geográfico formado por duas destas sesmarias (separadas pelo arroio Pelotas). Uma levava o nome deste próprio arroio e a outra, chamada Monte Bonito, concentrou o maior número de charqueadas, tanto nas margens do canal do São Gonçalo, quanto do arroio Pelotas. Ambas as sesmarias eram propriedade das irmãs Silveira e Alexandre era filho de uma delas: a dona Maria Antônia.13 Portanto, não é difícil imaginar de onde se srcinava o prestígio social de Alexandre Inácio da Silveira. Ao atuar no interior das rotas mercantis envolvendo carnes em barris, charque, sal e escravos, Alexandre conheceu um grande número de autoridades administrativas e negociantes, entre os quais devia estar Pinto Martins, que era comerciante ativo nos portos do nordeste e residia em Recife. É muito provável que ambos tenham tido seus primeiros contatos no interior destes circuitos, além de tantos outros comerciantes que também compartilhavam da longa rota mercantil que se estendia desde Buenos Aires até Recife, sem contar Lisboa e os portos da África. Um forte indício de que Pinto Martins pertencia a uma destas redes mercantis atlânticas que tiveram papel direto no desenvolvimento das charqueadas em Pelotas pode ser visto num requerimento datado de outubro de 1796. O documento foi assinado conjuntamente por comerciantes baianos e riograndenses e os mesmos, proclamando-se os “Fiéis Vassalos de Vossa Majestade” , argumentavam: A colônia do Rio Grande, que tem nos seus vastos campos um manancial inexaurível de riquezas em pães e gados, e porventura de outros gêneros que o tempo, a cultura, o aumento e a facilidade de meios industriosos descobrirão, jazia inerte e pobre, fazendo um pequeno e pouco animado comércio de meras permutações. Nós, Senhora, a tiramos daquele desalento, enviando lá, anualmente, mais de 30 embarcações, além do dobrado número que vai do Rio de Janeiro e Pernambuco, fazendo algumas duas e três viagens no ano, e que lhes levam meios de mais cômoda subsistência e de ampliar a cultura dos campos, onde se veem já os Povos multiplicados, fartos, contentes e aplicados – com energia indizível a reproduzir as verdadeiras e mais certas riquezas dos Estados.14
Um dos primeiros a assinar este documento foi exatamente Pinto Martins, revelando que pertencia à rede mercantil mencionada. O trecho não poderia ser mais eloquente. Os 13
Para uma detalhada descrição das mesmas ver GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.Pelotas: UFPel, 2001. 14 Ofício de 01.10.1796. AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, doc. 318. 110
mesmos comerciantes, sem nenhuma modéstia, afirmavam que eles retiraram a capitania sulrio-grandense do marasmo econômico em que se encontrava, substituindo uma época em que ela vivia de “meras permutações” por outra de prosperidade, onde os povos encontrav am-se “fartos” e “contentes”.
A abertura dos mercados consumidores do nordeste da colônia foi a
responsável por esta “nova carreira” ou o “novo comércio”, como os próprios negociantes argumentavam. E de fato, como demonstrou Helen Osório, as primeiras remessas do charque rio-grandense para o nordeste ocorreram entre 1789 e 1790, o que respalda as afirmações dos mesmos. A “conquista” do mercado consumidor nordestino fez as exportações de charque riograndense mais do que quadruplicarem entre 1787 e 1797. 15 Ou seja, para aqueles que viveram próximo às margens dos rios Pelotas e São Gonçalo e puderam presenciar este boom, realmente tratou-se de uma transformação sem precedentes. Portanto, o feito narrado pelos comerciantes que assinaram o requerimento, e dentre os quais estava o próprio Pinto Martins, parecia não ser exagero. Este negociante pertencia a uma importante rede mercantil com agentes estabelecidos em Salvador e Recife e os mesmos, associados a outros negociantes de Rio Grande e do Rio de Janeiro, projetaram ampliar a produção do charque rio-grandense para exportá-lo aos portos do nordeste, já que, antes disso, os mesmos eram remetidos somente para a capitania fluminense. As secas do início da década de 1790 tornaram este novo comércio ainda mais fundamental, pois fez aumentar bastante a demanda por carne-seca nos engenhos nordestinos, uma vez que as oficinas do sertão encontravam-se em grandes dificuldades. Nas palavras dos mesmos comerciantes que assinaram o requerimento: Grande parte da costa e sertão do Brasil padece por seis ou sete meses falta de carnes, não descendo as boiadas pelas chuvas e inundações do inverno ou pelas secas do estio. Então as carnes curadas são o único alimento dos pobres mesmo das cidades e todo o ano o são das escravaturas nas ditas povoações, por maior barateza, por indispensável necessidade dos engenhos, afastados da borda d’água, aos que não chega nenhum gênero de pescado, geralmente caro onde o há. 16
Note-se que as exigências desta demanda acabaram condicionando o tipo de carne fabricada. Embora Alexandre da Silveira prometesse remeter carnes de moura para a Marinha reinol, foi o charque que vingou naquelas terras. O certo é que após as secas de 1791-92, Pinto Martins, que já conhecia as técnicas do charqueamento em Aracati, decidiu migrar de vez para o Rio Grande onde as possibilidades de instalar uma nova oficina de carne-seca eram 15
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 16 Ofício de 01.10.1796. AHU-ACL-CU-019, Cx. 4, D. 318 (Projeto Resgate). 111
bastante animadoras. Creio que, antes e durante este processo de mudança, Pinto Martins tenha tido contato com comerciantes do Rio Grande e do Rio, quando ficou sabendo das favoráveis condições para se fabricar charque no sul da colônia. Em Recife, ele deve ter conhecido o inventivo Alexandre da Silveira, acostumado a negociar por aquelas bandas, e este pode ter sido uma das pessoas que convenceram Martins a migrar para o Sul. Sou inclinado a pensar nisso pelo simples fato de que, após chegar à capitania do Rio Grande, Pinto Martins arranchou-se exatamente nas terras da família de Alexandre, escolhendo um terreno próximo às margens do arroio Pelotas, onde ergueu a sua charqueada, deve ter tido a 17 assistência da família Silveira e permaneceu ali até o fim de sua vida.
Uma leitura atenta do testamento e inventário post-mortem de Pinto Martins, abertos em 1827, oferece um outro suporte para estas afirmações. A prova mais fundamental desta longa relação entre Pinto Martins e a família Silveira foi que, em seu testamento, o charqueador, que sempre manteve-se em estado de solteiro, revelou ter tido 3 filhos, cujo uma das mães, a parda Antônia, havia sido escrava na Fazenda Pelotas (a principal propriedade da família Silveira na época), e outra delas, “Francisca crioula forra”, havia sido cativa do charqueador João Duarte Machado – genro de dona Dorotéia da Silveira, irmã de Alexandre. Estas relações de Pinto Martins com as mencionadas forras são muito reveladoras da proximidade que ele possuía com a família Silveira e seus muitos escravos e agregados. Como atestam diferentes historiadores, a família de Pinto Martins era uma das mais notáveis na produção e no comércio das carnes no norte e nordeste da colônia. Portanto, sua migração não resultou em uma ascensão social, pois Martins já era membro das elites da capitania cearense.18 Tal posição social pode ter facilitado o seu contato com Alexandre e legitimado a sua aproximação com os Silveira. Além do mais, Pinto Martins não migrou sozinho, pois o seu irmão Antônio, que negociava o tão desejado sal no nordeste da colônia, residia com ele na charqueada. A fonte de prestígio dos irmãos certamente decorria do fato deles conhecerem as principais rotas mercantis do nordeste da colônia, incluindo os seus principais comerciantes e as limitações e possibilidades daqueles mercados. O presente 17
MONQUELAT, A. F. Op. cit., 2012, p. 123-125. Conforme o autor, nesta época foi comum os charqueadores erguerem seus galpões em terrenos de terceiros, arranchando-se em terras de familiares, por exemplo. Isto será tratado mais adiante. 18 VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Op. cit.; ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes”: no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012; OLIVEIRA, Almir L. de. O comércio de carnes secas do Ceará na segunda metade do século XVIII: as dinâmicas do mercado colonial. In: MOURA, Denise; LOPES, Maria; CARVALHO, Margarida (Org.). Consumo e abastecimento na história. São Paulo: Alameda, 2011, p. 167188. 112
capítulo busca analisar esta nova sociedade surgida nas margens do São Gonçalo e do Pelotas durante a Era de Pinto Martins.
3.1 UMA CIDADE NEGRA NO SUL DO BRASIL: TRÁFICO ATLÂNTICO, REDES MERCANTIS E A ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO OITOCENTOS
Nos primeiros anos de funcionamento das charqueadas, Pelotas não era nada mais do que um mero povoado sob a jurisdição da vila de Rio Grande. No entanto, no início do século XIX, as margens dos rios São Gonçalo e Pelotas já estavam pontilhadas por rústicos galpões de charquear rodeados de ranchos, estâncias e vendas de beira de estrada. Nas primeiras estatísticas do início do século XIX, organizadas em 1805, já era possível perceber que aquela aldeia havia crescido, contribuindo para que a freguesia de Rio Grande, da qual ela fazia parte, compusesse quase ¼ da população total da capitania.19 Esta freguesia reunia 10.168 habitantes, dos quais 3.295 eram escravos, 351 eram libertos e 57 eram índios. A população classificada como branca reunia 3.497 homens e 3.008 mulheres, totalizando 64% das pessoas.20 Não é possível saber o percentual de moradores livres e escravos que pertenciam tanto à vila de Rio Grande quanto ao povoado de Pelotas, mas é muito provável que uma boa parte daquela escravaria (ela somava 23,9 % dos cativos de toda a capitania) estivesse trabalhando nas charqueadas.21 Em 1814, tem-se a primeira estimativa tratando exclusivamente da população de Pelotas – elevada à condição de freguesia dois anos antes e que naquela época ainda era denominada São Francisco de Paula. Na ocasião, a localidade apresentou 1.226 escravos numa população de 2.419 habitantes, ou seja, 50,7% da população era cativa. A Tabela 3.1 demonstra que, em menos de 20 anos, este contingente quase quintuplicou atingindo 5.623 escravos, que perfaziam 51,7% dos recenseados no ano de 1833. Portanto, as décadas de 1810 e 1820 apresentaram uma intensa entrada de africanos destinados principalmente ao trabalho nas charqueadas. Este fluxo de cativos, não apenas para Pelotas como também para a 19
Ofício de 30.09.1806. AHU-ACL-CU-019, Cx. 11, Doc. 669 (Projeto Resgate). A capitania era composta por 14 freguesias. Sua população total era de 41.023 pessoas, das quais 13.800 eram escravos e 2.502 libertos. 20 Os recém-nascidos somavam 556 e os mortos 183. Ambos os grupos não foram contabilizados entre o “Total da Povoação”. 21
Os escravos estavam divididos em 125 pardos, 94 pardas, 2.280 pretos e 796 pretas. Os libertos em 127 pardos, 131 pardas, 31 pretos e 62 pretas. 113
capitania, acompanhou os ritmos do tráfico atlântico no porto do Rio de Janeiro, cuja entrada de navios negreiros acentuou-se bastante entre 1809 e 1825, algo já comentado no primeiro capítulo.22 A eclosão da Guerra dos Farrapos (1835-1845) favoreceu a retração deste comércio e a dispersão das escravarias, colaborando com a diminuição da população cativa no município charqueador, de forma que a sua população total, em 1858, crescera de forma mais 23 desacelerada, atingindo 12.893 almas, sendo 37,1% escravos.
Tabela 3.1 – Estatísticas populacionais em Pelotas (1814 – 1858) Ano
Brancos
Índios
Libertos
Escravos
Total
1814 1833 1858
712 3933 7753
105 180 -
232 1137 342
1226 5623 4788
2419 10873 12883
Fontes: ASSUMPÇÃO, Jorge E. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Porto Alegre, PPGH/PUCRS, Dissertação de Mestrado, 1995; Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833 . Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, 1994, p. 98); FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul (censos do RS de 1803 a 1950). Porto Alegre: FEE, 1981.
Uma análise mais pormenorizada do mapa populacional de Pelotas (1833), de longe o que apresenta os dados mais completos, fornece um bom retrato da sociedade escravista pelotense antes da Guerra.24 Em linhas gerais, verifica-se que 36,1% dos habitantes foram classificados como brancos, sendo provável que entre os mesmos estivessem alguns mulatos e mestiços que podem ter ascendido socialmente. 25 Cerca de 52% desta população branca residia na vila, apresentando um significativo índice de urbanidade que discutirei no capítulo posterior, assim como, a presença estrangeira em Pelotas, algo que, em 1833, ainda estava em 22
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX).São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 41-50. No período de expansão do tráfico (1809-1824), Berute verificou um índice de 95% de africanos importados, sendo 19% ladinos (BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: caracerísticas do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de Mestrado, PPG-História da UFRGS, 2006, p. 51). 23 A guerra paralisou a cidade de Pelotas e obrigou muitas famílias a migrarem para Montevidéu, Rio Grande e Rio de Janeiro. Além do mais, a extinção do tráfico atlântico, em 1850, contribuiu para a desaceleração do crescimento da população escrava, embora ela tenha continuado aumentando até a década de 1870, como analisarei em capítulo posterior. 24 Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833. Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 98). 25 Mais adiante relatarei dois casos de proprietários de charqueada que eram filhos de pais portugueses com pardas e pretas forras. Exemplos de como esta mobilidade não era rara podem ser vistos em GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – 1850). Rio de Janeiro: Mauad X/ FAPERJ, 2008. 114
sua fase incipiente. O interesse maior neste momento é o percentual cativo das estatísticas. A Tabela 3.2 mostra que dos 5.623 escravos recenseados em Pelotas, 67,4% eram africanos. Este índice era consequência de anos de tráfico atlântico e do maior poder aquisitivo dos charqueadores se comparado aos criadores do interior do Rio Grande do Sul. Além disso, outras pesquisas demonstraram que a Lei de 1831 não foi capaz de inibir o tráfico de africanos para Pelotas.26 Com relação às cores da população cativa tem-se 5.169 qualificados como pretos (somando 92% dos escravos, com 3.744 homens e 1.425 mulheres) e 454 como pardos (compondo 8% do total, com 186 homens e 268 mulheres). Cruzando estes dados com os da Tabela 3.3, percebe-se que havia tanto crioulos quanto africanos entre os escravos classificados como pretos, com um percentual maior dos segundos (78% entre os homens e 60,7% entre as mulheres). Como não foi discriminada em quais faixas etárias os crioulos e os africanos foram distribuídos, não é possível verificar a quantidade de africanos em idade adulta. Este dado só é possível de ser verificado entre os escravos pretos e pardos.27 No total, 80% da população escrava possuía entre 11 e 50 anos, sendo que destes, 71,5% eram homens e 28,5% mulheres (razão de sexo de 256 homens para cada 100 mulheres). Analisando este mesmo índice somente entre os pretos tem-se 80,7% com uma razão de sexo de 285 e entre os pardos de 70,1% com uma razão de sexo de 153. Observa-se, a partir destes dados, que o desequilíbrio entre os sexos estava presente tanto entre pardos como entre pretos – denotando o tráfico tanto de africanos como de crioulos para a região.
26
PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850). Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012; COUTO, Mateus. A pia e a cruz: a demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859). Passo Fundo: Ed. da UPF, 2011. 27 É certo que quase a metade dos crioulos e crioulas de cor preta estavam arrolados na população menor de 10 anos, uma vez que o número de crianças africanas era muito baixo. 115
Tabela 3.2 - Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula deem Pelotas dezembro de 1833 Idades Até 5 anos 6 a 10 anos 11 a 15 anos 16 a 20 anos 21 a 25 anos 26 a 30 anos 31 a 35 anos 36 a 40 anos 41 a 45 anos 46 a 50 anos 51 a 55 anos 56 a 60 anos 61 a 65 anos 66 a 70 anos 71 a 75 anos 76 a 80 anos 81 a 85 anos 86 a 90 anos 91 a 95 anos 96 a 100 anos Soma
Pardos 186
Estrangeiros Brancos Homens Mulheres 9 8 5 5 15 5 48 2 55 8 56 5 30 7 35 8 18 4 16 2 11 5 7 2 3 2 3 1 2 1 316 62
Pardas 268
Brasileiros Brancos Homens Mulheres 359 295 270 264 198 234 148 240 108 156 115 128 102 100 125 105 78 59 80 60 67 27 69 41 38 19 16 12 8 2 12 6 7 3 2 2 1 800 1755
Crioulos 819
Escravos Crioulas 559
ndios Homens 10 15 9 7 2 5 1 2 4 7 2 2 2 1 1 1 2 73
Africanos 2925
Libertos Escravos Total Pardo Pretos Pardo Pretos Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres 13 74 90 10 17 30 43 145 151 1254 16 69 52 19 10 18 25 182 108 1058 11 50 47 7 11 25 89 221 130 1052 16 48 57 10 13 22 35 452 235 1333 10 34 55 4 7 18 16 460 185 1118 8 28 37 3 16 23 23 587 205 1239 4 12 22 8 15 12 9 452 101 875 10 19 22 9 20 15 8 416 111 905 2 12 15 3 13 7 6 273 57 551 7 20 8 18 18 5 9 229 58 537 5 15 15 13 7 6 1 136 35 345 2 11 7 10 7 1 2 78 17 256 8 2 5 2 1 37 10 125 1 1 2 6 2 2 21 13 80 1 2 1 2 2 18 1 42 1 3 1 16 2 43 1 1 3 1 19 3 39 1 1 4 2 1 12 1 2 6 1 3 107 407 436 135 159 186 268 3744 1425 10873
Africanas 866
Total 5623
Fonte:Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo.P elotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 98).
116
Tabela 3.3 – Mapa da população da Vila de São Francisco de Paula de Pelotas em dezembro de 1833 . População dividida por nacionalidade, cor, condição jurídica, freguesia, distritos e fogos (1833) População divida pelos fogos e freguesias N. de Fogos
Freguesia Vila de São F. de Paula Pelotas Boqueirão Buena Soma
1º Distrito 2º Distrito 3º Distrito 4º Distrito 5º Distrito
Estrangeiros
Brasileiros
Brancos
Brancos H M 386 345 514 495 358 351 325 336 217 228
257 366 260 253 263
H 118 131 37 10 20
M 24 26 7 1 4
1.399
316
62
1.800
1.755
ndios H 11 11 9 15 27 73
Libertos
M 10 26 11 24 36 107
Pardos H M 45 58 81 93 101 107 110 105 70 73 407
436
Escravos Pretos
H 11 35 36 25 28 135
M 33 52 34 18 22 159
Pardos H M 37 76 42 34 40 107 34 34 33 17 186
268
Total
Pretos H M 749 360 566 338 1435 359 573 229 421 139 3.744
2263 2444 2992 1839 1335
1.425
10.873
Fonte:Biblioteca Pública de Pelotas (reproduzido por ARRIADA, Eduardo.P elotas: gênese e desenvolvimento urbano. Pelotas: Armazém Literário, 1994, p. 98).
117
A partir dos mesmos indicadores também é possível observar um maior contingente de escravos concentrados no 3º distrito de Pelotas, onde a maioria das charqueadas estava estabelecida.28 Nele, a população escrava de cor preta era muito superior aos demais distritos e a razão de sexo era de 316, evidenciando a concentração de homens cativos e africanos no universo das charqueadas. O rápido crescimento do número de escravos e sua concentração numa área pequena passou a preocupar alguns proprietários pelotenses, sobretudo os charqueadores, que eram os principais senhores escravistas. Em maio de 1832, por exemplo, temendo alguma ação das classes subalternas em geral, a Câmara de vereadores escreveu ao Presidente da Província alertando-o: (...) sendo esta Vila pela sua posição sujeita ao geral trânsito do povo de toda a fronteira, e onde diariamente aparecem pessoas desconhecidas, e malfeitores, além de ter em seu distrito numerosa escravatura, e que por isso é indispensável à autoridade encarregada da polícia ter a sua disposição uma força com que possa contar para diligências rápidas (...).29
Meses depois, os vereadores escreveram novamente para avisar que não permitiriam que os Guardas Nacionais do município fossem destacados para a fronteira, com o fim de defendê-la contra os supostos invasores uruguaios. Os motivos de tal receio eram bem claros: Esta Câmara (...) não pode deixar de levar ao conhecimento de V. Exc. quanto seria perigosa a marcha dos Guardas Nacionais deste município para a fronteira na presente crise em que os do Estado vizinho apenas fazendo a guerra entre si enviam emissários disfarçados para revoltarem a escravatura, com a qual, segundo notícias verídicas, esporão reforçar suas débeis fileiras, sendo bem constante que o distrito desta vila tem para mais de quatro mil escravos, quase unidos segundo a posição das charqueadas, e a única força para os conter são os Guardas Nacionais, que fazem este distrito respeitável.30
Portanto, como os uruguaios estavam em guerra civil, o maior temor era das investidas de chefes militares estrangeiros com o fim de recrutar possíveis aliados e soldados entre os negros, com a promessa de liberdade. Dois anos depois, por motivos semelhantes, o Juiz de Paz Guilherme Carvalho escreveu ao Presidente reclamando da ida dos Guardas Nacionais para outro município, quando os mesmos: (...) podem nesta mesma Vila [Pelotas] fazerem o serviço necessário e conterem alguma insurreição de escravos que os boatos públicos anunciam 28 29 30
ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano.Pelotas: Armazém Literário, 1994. Câmara Municipal de Pelotas, 11.05.1832. AMU, m 103, AHRS. Câmara Municipal de Pelotas, 06.08.1832. AMU, m 103, AHRS. 118
ser a arma favorita de que se pretendem servir os desordeiros do Estado vizinho. Tendo pois esta mesma Vila e seus subúrbios uma multidão desta escravatura e não havendo força que os faça conter em seus delírios, pode resultar então desastrosos e irremediáveis males.31
Para as autoridades pelotenses o fato dos escravos nas charqueadas estarem todos reunidos em estabelecimentos bastante próximos uns dos outros e em grande número seria um atrativo aos “desordeiros” que poderiam com facilidade sublevar a escravaria, levando-os para lutar no país vizinho. Mas um outro episódio trouxe um novo ingrediente para este clima de insegurança que marcou os primeiros anos da década de 1830. Em 1834, começaram a agir nas imediações do município os negros organizados no quilombo de Manoel Padeiro. De acordo com Caiuá Al-Alam a atuação dos quilombolas trouxe grande pavor entre as elites locais, pois mostrara aos mesmos “como suas forças eram insuficientes na hipótese real de que, um dia, os escravos intentassem uma revolta em massa”.32 A apreensão dos grandes senhores de escravos também se devia pelo simples fato de que muitas lideranças do quilombo eram ex-escravos de ricos charqueadores que, mesmo fugidos, continuavam mantendo contato com seus antigos companheiros de cativeiro, obtendo informações preciosas sobre o que acontecia na casa dos seus senhores. Tendo sido presos alguns quilombolas envolvidos no episódio, alguns dos seus planos foram descobertos, sendo o mais alarmante o fato de eles planejarem saquear a Câmara municipal, os quartéis de Pelotas e as charqueadas de alguns senhores em busca de mulheres escravas e mantimentos. Uma das negras detidas confidenciou a uma cativa de um charqueador que “eles sabiam tudo o que ocorria, fosse na vila, fosse nas charqueadas”.33 Em 1835, estourava a Revolta dos Malês na Bahia, encerrando um ciclo de rebeliões escravas que se iniciara naquela província em 1807.34 A rebelião em Salvador chegou até os ouvidos das autoridades no extremo sul do Império, acentuando ainda mais o medo de que algo parecido ocorresse em Pelotas. Em fevereiro de 1835, a Câmara de Pelotas escreveu Juizado de Paz de Pelotas, 04.07.1834. Justiça, M. 18, Pelotas, AHRS. AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, pena de morte e correção em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Sebo Içaria/ Edição do autor, 2008, p. 53. Sobre o mesmo assunto ver também o estudo recente de MOREIRA, Paulo; AL-ALAM, Caiuá; PINTO, Natália. Os calhambolas do General Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra dos Tapes (RS, Pelotas, 1835) . São Leopoldo: Oikos, 2013. Tratei inicialmente deste clima de tensão e medo das elites escravistas para com o contingente cativo em Pelotas em VARGAS, Jonas M. “Para conter os seus delírios: os charqueadores e o governo dos escravos em Pelotas (c.1820- c.1850”. Texto apresentado na V Jornada Histórica do PPGH-UFRJ. Rio de Janeiro, 2011. Outras reflexões deste mesmo texto estão presentes no capítulo 6 desta tese. 33 AL-ALAM, Caiuá Cardoso. Op. cit., p. 52-56. 34 REIS, João José. O levante dos malês: uma interpretação política. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Br asil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 99-122. 31 32
119
novamente ao Presidente alertando-o de que mesmo com a repressão aos Malês, “podem ainda os seus efeitos causar danos irreparáveis, porquanto, sendo esta província ordinariamente o receptáculo dos escravos de má conduta que doutras províncias do Império vêm a vender, principalmente depois que a do Maranhão deixou de os receber”. O receio dos vereadores baseava-se nas informações de que uma “porção de escravos nagôs e haussás” seriaemetida r da Bahia para o porto de Rio Grande e: (...) já é de acreditar que eles sejam dos implicados naquela insurreição, e os seus donos os subtraindo à vingança das leis, ou queiram ver-se livres de escravos cujas (...) por vezes têm posto em prática crimes tão horrorosos; e sendo evidente que se tais escravos vieram, serão vendidos – a maior parte – para as charqueadas (...), onde contém de 2 a 3 mil cativos quase em contato uns dos outros pela proximidade em que se acham ditas charqueadas, receando-se deste modo que eles venham engrossar o número de desmoralizados (...), e tentarem desordens (...).35
Não há notícias de algo mais sério do que as ameaças do quilombo de Manuel Padeiro tenha ocorrido na época. O fato é que no imaginário social compartilhado por alguns charqueadores havia um possível perigo de alguma rebelião acontecer, e tal medo parecia se justificar pelo grande contingente de trabalhadores escravos num espaço territorial bastante diminuto, como já foi dito. 36 Guardadas as devidas proporções, os índices de percentagem de escravos e da população africana existentes em Pelotas no início da década de 1830, eram bastante próximos das principais regiões de plantations açucareiras e cafeeiras do Brasil, o que demonstra o impacto do tráfico atlântico em Pelotas e como a economia charqueadora dependia dele. Na Tabela 3.4, busquei indicadores semelhantes para as mencionadas regiões de plantations, privilegiando os períodos aproximados ao ano do censo pelotense de 1833. Como nem todos os pesquisadores tiveram acesso a estatísticas mais detalhadas e às listas de habitantes, a comparação tem alguns limites, mas trata-se somente de um exercício analítico. Os dados elencados podem variar de município para município dentro de uma mesma província e na mesma região dependendo do ano em que se observa. No entanto, busquei estatísticas das localidades mais representativas das determinadas regiões e setores econômicos e as com melhores informações para a comparação. Além disso, o período em 35
Câmara Municipal de Pelotas, 27.02.1835. AMU, m. 103. AHRS. Conforme Jorge E. Assumpção, na mesma época, um outro charqueador alertou a Câmara de que o perigo propagado por alguns proprietários reserva-se apenas aos escravos minas e que o temor contra aliciadores orientais era infundado (ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit., p. 269). Tratarei mais da administração dos escravos das charqueadas no capítulo 6. 36
120
recorte não corresponde ao auge do agro de cada região. Se em Minas, o complexo cafeeiro dava os seus primeiros passos, em Vassouras ele já começava a entrar no seu período de expansão. O mesmo serve para o açúcar, que, passado sua época de grande auge, vinha perdendo espaço para o café no quadro das exportações brasileiras, fenômeno que parece refletir-se nos dados, ao menos para estes municípios. Talvez estes indicadores ajudem a mostrar que complexos escravistas mais jovens, como o cafeeiro e o charqueador, necessitavam importar mais mão de obra do que regiões açucareiras mais estabelecidas, como Campos e Iguape, o que ajudaria a explicar o menor índice de africanos e a menor razão de masculinidade destes últimos. Tabela 3.4 – Comparação da população escrava, razão de africanidade e sexo de Pelotas com outras regiões de plantations brasileiras (1829-1840)37 Ano
Africanos (%) 67,4
Razão de sexo
1833
População escrava (%) 51,7
Campos dos Goytacazes (RJ) Oeste paulista (SP)
1836
59,2
1829
36,0
53,2 (1790-1831) 56,0
166 (1790-1831) 189
Iguape (BA)
1835
54,0
53,1
156
Vassouras (RJ)
1840
69,5
Areias (SP)
1829
45,0
68,8 (década 1820) 73,5
231 (1831-40) 221,8
1833/35
52,5
48,2 (1831-1840)
229*
Pelotas (RS)
232
Regiões açucareiras
Regiões cafeeiras
Paraibúnas (MG)
Fonte: ver nota (37). Os indicadores entre parênteses foram produzidos pelos autores a partir da análise de inventários post-mortem. Os demais provem das listas de habitantes. * A autora calculou o índice somente para os escravos maiores de 10 anos 37
Para Vassouras consultei SALLES, Ricardo. E o vale era escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Os dados de Santana da Paraibuna foram retirados de OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias: mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira (1780-1870). Bauru/Juiz de Fora: EDUSC/Funalfa, 2005. Para os indicadores de Areal, consultei LUNA, Francisco Vidal. Areias: posse de escravos e atividades econômicas (1817-1836). Cadernos N. E. H. D, n. 2, 1995; LUNA, Francisco Vidal. População e atividades econômicas em Areias (1817-1836). Estudos Econômicos, 24(3), set/dez, 1994, p. 433-463. Iguape era uma “freguesia açucareira tradicional do Recôncavo baiano” localizada na comarca de Cachoeira. Seus dados foram retirados de BARICKMAN, Bert. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do Recôncavo Baiano em 1835. Afro-Ásia, n. 29/30, 2003, p. 79-132. Para o oeste paulista utilizei LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Evolução da Sociedade e Economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 77. Os números da tabela reúnem dados reunidos pelos autores nas consideradas “vilas açucareiras”, ou seja, Campinas, Guaratinguetá, Porto Feliz, Itu, Jundiaí, Mogi Mirim, Pindamonhangaba, São Sebastião e Piracicaba. Para Campos dos Goitacazes utilizei SOARES, Márcio de S. Presença africana e arranjos matrimoniais entre os escravos em Campos dos Goitacazes (1790-1831). História: Questões & Debates, Curitiba, n. 52, 2010, p. 75-90. 121
Assim como em todas as regiões do Brasil, boa parte da população cativa de Pelotas estava concentrada nas mãos de poucos senhores. Contabilizando o número de escravos arrolados nos inventários post-mortem do município entre 1800 e 1835, verifiquei que os proprietários com 50 ou mais cativos, apesar de representarem somente 5,4% dos inventariados, eram donos de 33,6% dos escravos. A partir da Tabela 3.5 também é possível perceber que mais de 40% dos donos de escravos em Pelotas eram senhores de pequenos plantéis (de 1 a 4 cativos). Portanto, assim como em outras regiões do Brasil, apesar da concentração verificada, a posse de cativos estava disseminada por todos os setores da sociedade. A inexistência de listas de habitantes, comumente utilizada pela historiografia paulista e mineira, impede uma análise mais abrangente neste sentido. Tendo em vista as semelhanças apontadas entre Pelotas e as demais regiões (conforme a Tabela 3.4), não vejo motivos para crer que em Pelotas fosse tão diferente.
Tabela 3.5 – Estrutura de posse de escravos em Pelotas a partir dos inventários post-mortem (1800-1835) Plantéis 1a4 5 a 19 20 a 49 50 a 99 Mais de 100 Total
Inventários N. % 77 41,1 78 41,7 22 11,8 07 3,8 03 1,6 187 100,0
Escravos N. % 184 7,4 743 29,6 738 29,4 447 17,8 397 15,8 2.509 100,0
Fonte: a partir de PESSI, Bruno (Org.).Documentos da escravidão: inventários. Porto Alegre: (CORAG), 2010, v. 1-2.
Uma comparação dos índices de concentração de cativos verificados nos inventários pelotenses com as demais regiões de plantations mencionadas anteriormente torna-se um tanto problemática visto que as listas de habitantes são capazes de dar conta de uma amplitude de pequenos proprietários, algo que os inventários post-mortem possibilitam com muito menor abrangência. Talvez seja por isso que Ricardo Salles tenha se impressionado com o grau de concentração da escravaria em Vassouras comparando os dados de seus inventários com as listas de habitantes de Minas e São Paulo. Nas palavras do autor: “Se em São Paulo, em 1829, os proprietários de 20 ou mais escravos possuíam 46% da escravaria, em Vassouras, eles detinham 73,3% do total de cativos, sendo que somente os que eram donos de 50 ou mais escravos detinham 34,5% deles!”. 38 Ora, utilizando o mesmo tipo de fonte que Salles e 38
SALLES, Ricardo. Op. cit., p. 168. 122
separando somente os inventários entre os anos de análise do autor (1821-1835), percebi que os donos de 50 ou mais escravos em Pelotas também detinham 34,4% dos escravos, ou seja, o mesmo índice de Vassouras. Provavelmente, se existissem listas de habitantes para Pelotas e Vassouras os índices de concentração seriam menores, o que não significa que apresentariam uma estrutura de posses igual à de Minas e de São Paulo. Portanto, Pelotas também parece servir como laboratório de análise para se entender as regiões de grandes plantéis de escravos no Brasil. Seus dados acerca do percentual de cativos em relação aos homens livres, a razão de sexo e africanidade e os índices de concentração de escravos são equivalentes ao das regiões deplantations açucareiras e cafeeiras. Isto demonstra que a sua economia era bastante dependente do tráfico atlântico e ajuda a explicar o apego da sua elite à escravidão.39 Neste sentido, a posse de cativos pode servir como ponto de partida para definir a primeira elite charqueadora em Pelotas. Sabe-se que o tamanho do plantel de escravos no espaço agrário brasileiro do oitocentos estava bastante relacionado com a posição dos seus proprietários nas hierarquias socioeconômicas locais. 40 Dos 20 maiores escravistas pelotenses inventariados entre 1800 e 1835 (possuidores de 35 ou mais cativos) pelo menos 15 eram proprietários de charqueada. Estes 15 charqueadores, apesar de comporem somente 8% dos inventariados, concentravam 41% dos escravos e apresentaram um plantel médio de 69 cativos. Dentre os mesmos, José da Costa Santos foi o maior proprietário com 172 escravos e José Pinto Martins o menor com 35. Estes 15 inventariados constituíam-se num grupo representativo do total de charqueadores do período, uma vez que verifiquei a existência de pelo menos 62 indivíduos exercendo esta atividade em Pelotas, entre 1790 e 1835. 41 Esta primeira geração de charqueadores era formada por homens naturais de diversos lugares do Império português. 39
Mas seria um equívoco considerar que estas regiões explicassem por si só a natureza da escravidão no Brasil, uma vez que, nos últimos anos, se tem demonstrado que parte substancial dos cativos estavam concentrados nas mãos de pequenos produtores e em regiões voltadas para o abastecimento de gêneros. Tratarei mais deste tema nos capítulos 5 e 6. 40 LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Op. cit., 2005, p. 138. A listagem foi elaborada a partir de uma relação de charqueadores descrita por João Simões Lopes Neto nos anos 1920 e reproduzida em MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque.Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102. A partir dela, busquei complementar a lista localizando todos os proprietários que possuíam charqueadas em seus inventários post-mortem (em Pelotas). Acrescentei outros nomes a partir das contribuições de outros autores, como GUTIERREZ, Ester. Op. cit., OSÓRIO, Helen. Op. cit.; ARRIADA, Eduardo. Op. cit. Muitos tiveram seu patrimônio inventariado somente depois de 1835 e outros não tiveram seus bens inventariados. Incluí neste grupo de 62 charqueadores aqueles cujas propriedades estavam instaladas para além das margens do São Gonçalo e do Pelotas, tanto ao norte, na Estância São Lourenço, quanto ao sul, às margens do rio Piratini. Este grupo é pequeno (inclui cerca de 10% dos proprietários), mas estes charqueadores e seus familiares tiveram importante destaque na história de Pelotas e uma análise mais completa da elite charqueadora não poderia deixá-los de fora. Uma listagem completa de todos os charqueadores em Pelotas no século XIX está reproduzida nos “Anexos” desta tese. 41
123
Localizei esta informação para 48 deles (77,5%). 42 Destes, 23 eram nascidos no Brasil, 22 em Portugal e Ilhas, 2 na Colônia de Sacramento e 1 na Espanha. Dos luso-brasileiros, 3 eram mineiros, sendo um de Diamantina e outro de Mariana, 2 eram do Rio de Janeiro e 1 era de Recife. Os demais eram nascidos na capitania sul-rio-grandense. Entre os portugueses, a metade era formada por imigrantes vindos do Minho, 3 eram de Lisboa, 2 de Coimbra e 1 das Ilhas. A predominância dos minhotos num grupo com forte caráter mercantil foi comum na época, como atestaram outros autores. 43 Portanto, eram homens de diferentes locais do Império português e um nascido na Espanha. Trata-se de um perfil um tanto distinto do platino, uma vez que nenhum estrangeiro de língua inglesa ou francesa foi proprietário de uma charqueada pelotense no período.44 A diversidade de locais de procedência e as suas respectivas redes de relações para com agentes fora da capitania foram fundamentais na montagem do complexo charqueador escravista em Pelotas. A inserção dos charqueadores em tais redes mercantis, como venho enfatizando desde o capítulo anterior, viabilizava um melhor acesso ao tráfico atlântico, ao mercado externo, a espaços de poder político e redes de informações e favores, de amplo ou curto alcance, dependendo dos indivíduos com quem os mesmos vinculavam-se. Neste sentido, o fato de um complexo fabril escravista ter sido montado por comerciantes de diferentes localidades é revelador do nível de interação social e de conexão mercantil em que os mesmos estavam inseridos. Em suma, o complexo charqueador em Pelotas, assim como no Prata, foi resultado do investimento particular de alguns negociantes imperiais – na definição 45 de João Fragoso – com capitais financeiros e relacionais suficientes para tal intento.
Apesar de compartilharem dos valores escravistas, monárquicos e católicos do Império português, estes primeiros charqueadores traziam conhecimentos, valores culturais e experiências distintas para o interior da comunidade pelotense. Um exemplo disso pode ser dado na própria trajetória de José Pinto Martins. Natural do Porto, José era filho de um
As informações foram coletadas nos testamentos, em diferentes genealogias e publicações relacionadas à história de Pelotas. 43 Ver, por exemplo, PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Tese de Doutorado. UNL: Lisboa, 1995; ALMEIDA, Carla. Homens ricos, homens bons: Produção e hierarquização social em Minas Colonial: 1750-1822. Tese de doutorado Niterói. ICHF/UFF. 2001; OSÓRIO, Helen. Op. cit. 44 Alguns poucos estrangeiros de língua inglesa e francesa arrendaram estabelecimentos de charqueada em Pelotas, principalmente, após a década de 1830, como Jean Batista Roux e Eugene Salgués. 45 FRAGOSO, João. Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do Império português (séculos XVII e XIX). História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, 2002, p. 99-127. Helen Osório percebeu que as primeiras gerações de comerciantes no Rio Grande eram formadas por mercadores oriundos do Rio Janeiro (OSÓRIO, 2007). 42
124
cavador de poços pertencente a uma família de lavradores da freguesia de Mexomil, no Porto. Migrou para o Ceará, onde, na companhia de outros 3 irmãos, encabeçou os negócios de charque e comércio em Aracati por muitos anos. 46 Nos fins da década de 1780, Pinto Martins encontrava-se como negociante em Recife, e menos de 10 anos depois, já estava em Pelotas, fabricando charque. Mesmo residindo no sul do Brasil por mais de 30 anos, suas redes de relações pessoais com o nordeste mantiveram-se vivas. Em seu testamento, Pinto Martins deixou 200$000 para a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em Pernambuco, da qual ele fazia parte, pedindo para que fossem rezadas “missas pelas almas dos falecidos irmãos terceiros da dita ordem”. Isto demonstra que, além das relações mercantis com Recife, Pinto Martins continuou mantendo relações de caráter pessoal e afetivo na mesma cidade, para onde havia recentemente enviado um brigue carregado de charque, conforme uma conta no seu próprio inventário. 47 Outro caso pode ser dado na trajetória de Domingos José de Almeida. Nascido em Diamantina, na capitania das Minas Gerais, Domingos encontrava-se realizando negócios na Corte, quando partiu para o Rio Grande onde planejara comprar uma tropa de mulas, como ele mesmo confidenciou em uma carta. Chegando ao sul, acabou ficando por aquelas terras. 48 Por meio do matrimônio inseriu-se numa das famílias de charqueadores mais poderosas de Pelotas, onde, ele próprio, erigiu uma charqueada próxima à fábrica do seu sogro. De acordo com Carla Menegat, quando Domingos foi vereador na Câmara de Pelotas, usava exemplos da administração municipal em Minas Gerais para defender suas propostas. 49 Outro caso pode ser dado na trajetória do espanhol Domingos Rodrigues que, uma vez estabelecido em Pelotas, ergueu sua charqueada e alcançou riqueza e prestígio notáveis. Seus dois filhos, nascidos no Rio Grande do Sul, dividiram-se entre os negócios no Uruguai e no Rio de Janeiro. Pelo fato do Rio ser o principal porto da América portuguesa, os olhares e projetos destes comerciantes e charqueadores rio-grandenses estavam sempre atentos aos seus fluxos
46
Para detalhes a respeito da trajetória dos membros da família ver Habilitação de Familiares, maço. 157, doc. 1267. Direção Geral de Arquivos. Torre do Tombo (Lisboa). O primeiro a utilizar tal fonte com propriedade foi VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. Op. cit. 47 Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, Rio Grande, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1832 (APERS). 48 Carta de Domingos para o presidente da Província Joaquim Antão Fernandes Leão, Pelotas, 07.12.1859. Anais do AHRS. Porto Alegre: Corag, v. 3, 1978, p. 154. 49 MENEGAT, Carla. Domingos José de Almeida: o Estadista da República Rio-grandense . Curitiba: Instituto Memória, 2010. 125
mercantis.50 Com a vinda da família real, em 1808, e o estabelecimento da Corte na mesma cidade, esta proeminência tomou proporções políticas e administrativas ainda maiores. Os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro atuavam em setores-chave da economia colonial, como a exportação de açúcar e café, o abastecimento de alimentos e o tráfico atlântico, entre outros. Como o Rio Grande do Sul não participava diretamente do comércio com os portos da África e, até 1808, nem com outros portos do Atlântico norte, os charqueadores tiveram que estabelecer relações mercantis com agentes externos ao porto sulino. Neste sentido, a formação de circuitos mercantis eivados de relações sociais, de clientelas e redes de reciprocidade entre agentes de diferentes regiões foi comum na época e tornou-se fundamental para o funcionamento do mercado colonial e o desenvolvimento das próprias elites locais no interior do Império português.51 Pode-se dizer que ao se estabelecerem na extremadura da América portuguesa, os comerciantes e charqueadores buscavam reproduzir o mesmo comportamento das suas regiões de srcem, além de investir o capital mercantil na produção, mas sem deixar de desprender-se das práticas e conexões mercantis externas. No entanto, somente uma minoria conseguia atuar em ambos os ramos de atividades com sucesso. Uma análise mais profunda das atividades econômicas realizadas pelos charqueadores desta primeira geração revela uma significativa presença de alguns deles no alto comércio. Pesquisando os inventários post-mortem dos 62 charqueadores atuantes na época, elenquei somente aqueles que tiveram seus bens avaliados antes de 1850, totalizando 28 documentos. Destes 28, pelo menos 7 possuíam embarcações de longo curso, como sumacas, bergantins e brigues (alguns em sociedade com outros comerciantes). Como eu já disse, tratava-se de um grupo pequeno. Contudo, os inventários postmortem não são suficientes para dar conta deste tipo de pesquisa, pois, muitas vezes, os
charqueadores faleciam numa idade mais avançada de suas vidas, quando já haviam abandonado as atividades mercantis, buscando uma condição econômica mais segura– algo 52
comum entre os comerciantes da época. Portanto, é necessário buscar mais vestígios da sua atuação mercantil em outras fontes. Nas escrituras públicas de compra e venda realizadas em Rio Grande entre 1808 e 1835, por exemplo, 7 charqueadores aparecem negociando embarcações marítimas (alguns mais de uma vez e 4 deles não são os mesmos que localizei 50
OSÓRIO, Helen. Op. cit. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. FRAGOSO, João L. R.. Homens de grossa aventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 51 52
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53 nos inventários), indicando que atuavam no comércio marítimo. Rastreando os nomes de
todos os charqueadores nos livros de matrículas da Real Junta de Comércio da Corte, entre 1808 e 1835, também foi possível verificar a presença de 9 deles entre os matriculados como 54 “negociantes de grosso trato” nas praças mercantis do Rio Grande do Sul.
Conforme Gabriel Berute, que pesquisou profundamente o corpo mercantil riograndense na primeira metade do oitocentos, os negociantes de grosso trato da capitania atuavam em diferentes setores do alto comércio. Analisando as listagens elaboradas pelo autor, também localizei alguns charqueadores pelotenses entre os membros daquela elite mercantil, atuando principalmente na importação de sal e de escravos e na exportação de gêneros como o charque e os couros.55 Com exceção de alguns poucos, a grande maioria dos charqueadores, caso o quisesse, não possuía cabedais para atuar no tráfico atlântico diretamente com a África. Portanto, o papel dos rio-grandenses estava reservado à consignação e revenda dos cativos a partir do porto de Rio Grande. Examinando os dados fornecidos por Gabriel Berute foi possível perceber que pelo menos 24 dos 62 charqueadores envolveram-se nesta rede mercantil registrando escravos nos livros de siza como compradores e vendedores. No total, estes indivíduos registraram 286 cativos entre 1812 e 1822. 56 Um exemplo desde comércio de consignação pode ser dado no caso do charqueador Miguel da Cunha Pereira. Conforme Berute, em janeiro de 1815, ele foi consignatário de duas embarcações vindas do Rio de Janeiro. O bergantim Águia Volante lhe trouxe 26 escravos, 6.000 tijolos de barro e 2.000 telhas e a sumaca Boa Fé, 10 escravos e 18.000 tijolos de barro. No mês seguinte, o charqueador José da Costa Santos foi consignatário da carga da sumaca Estrela, vinda do Rio com 81 escravos, 30 sacas com arroz, 48 sacos de açúcar, 600 alqueires de sal, entre outras mercadorias. 57 Estas duas transações de cativos não foram registrados nos livros de siza, o que indica que a participação dos charqueadores como intermediários nesse
53
Livros de notas do 2º Tabelionato de Rio Grande (1808 a 1850) - APERS. Agradeço a Gabriel Berute tanto pela busca nominal em seu Banco de Dados quanto pelo fornecimento destas informações. Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170, volumes 1, 2 e 3 (ANRJ). Uma importante relação dos comerciantes da época também pode ser verificado em MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanack da Vila de Porto Alegre. In: FREITAS, Décio.O capitalismo pastoril. Porto Alegre, EST, 1980, p. 88. 55 BERUTE, Gabriel. Op. Cit., p. 2011. 56 Códice da Fazenda (F-69). Sizas de Escravos. Rio Grande: 1812-1822 (AHRS). Agradeço novamente a Berute pela busca e transcrição referentes a este Códice. Dos 24 charqueadores, 11 foram registrados como vendedores. No entanto, conforme Berute, não fica claro se os compradores vieram a ser os proprietários dos cativos ou se os revenderiam. A hipótese da revenda é bastante plausível, sobretudo nos casos onde se comprava uma grande leva de escravos, como a realizada pelo charqueador José da Costa Santos que, em 26 de novembro de 1819, registrou 138 cativos no livro de sizas. 57 BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 91-92. 54
127
comércio era muito maior, visto o reduzido período abarcado pelos mencionados livros e os sub-registros desta fonte. Além disso, segundo Berute, Miguel da Cunha Pereira também negociou escravos com o interior da capitania, entre os anos de 1813 e 1819. Portanto, é provável que fizesse parte de uma rede de atravessadores constituída desde a chegada dos escravos nos portos do Rio, Recife e Salvador até a sua negociação em Pelotas e nos municípios do interior e que os charqueadores envolvidos com o comércio marítimo de mercadorias estivessem inseridos no interior destas mesmas cadeias de relações.58 Além disso, apesar de a maioria ter recebido cativos por meio de consignações, alguns charqueadores parecem ter trazido escravos nas viagens de retorno dos seus próprios navios, quando do desembarque de charque nos portos do Rio, Bahia e Pernambuco. Em 1839, Domingos José de Almeida, por exemplo, teve o seu Brigue Leal apreendido “por ser encontrado com pretos africanos a bordo para o comércio de escravos”.59 Entre os importadores de sal, além do mencionado José da Costa Santos, foram localizados na listagem de Berute, Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco dos Anjos e João Simões Lopes.60 Certamente o número devia ser maior, embora não devesse envolver muitos outros charqueadores além do pequeno grupo citado até aqui. Estes mesmos comerciantes também deviam estar envolvidos com as exportações de charque e couros, visto que era comum os mesmos navios que descarregavam sal retornarem com os produtos das charqueadas.61 Estas conexões mercantis também podem ser medidas a partir na análise das procurações passadas em Rio Grande. Pesquisando tais documentos, entre 1811 e 1850, Berute verificou que, em Rio Grande, foram passadas 7.745 procurações pra 2.181 pessoas 58
Sobre o tráfico atlântico e os traficantes ver FLORENTINO, Manolo. Op. cit.; RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio deJaneiro (17801860). São Paulo: Cia das Letras, 2005; REIS, João José; GOMES, Flávio; CARVALHO, Marcus. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853). São Paulo: Cia. das Letras, 2010; FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do comércio intracolonial: geribitas, panos asiáticos e guerra no tráfico angolano de escravos (século XVIII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 341-378; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; RIBEIRO, Alexandre. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo mercantil (c. 1750 - c. 1800). Tese de Doutorado: PPGHIS/UFRJ, 2009; BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006. 59 MONQUELAT, A. F. Notas à margem da escravidão.Pelotas: Ed. da UFPel, 2009, p. 52. 60 A listagem dos importadores de sal realizada pelo autor teve como base registros entre 1804 e 1815 e de 1834 a 1851. 61 SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX. Monografia de conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006. Os dados de exportação de charque e couro elencados por Berute são posteriores a 1830. Neles aparecem alguns charqueadores, mas os mesmos fogem do período de análise tratado neste capítulo. 128
diferentes. Separando somente os outorgantes que eram comerciantes (1.519 procurações ou 17,8% do grupo) ele constatou que o Rio de Janeiro concentrava 21,2% das mesmas, enquanto Santa Catarina, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Maranhão somavam 20,6% delas. Portugal foi o destino de 5,5% das procurações e o Uruguai 0,8% delas. Um dos 10 agentes acionados em Portugal pelo comerciante Mateus da Cunha Telles foi Manuel Souza Freire & 62 Cia, “um dos mais importantes negociantes e contratadores de Lisboa”.
Cruzando todas estas fontes e listagens mencionadas até aqui, é possível considerar que, dos 62 charqueadores desta primeira geração, um grupo aproximado de 12 a 15 charqueadores (19% a 24%, sendo alguns deles aparentados), dependendo dos critérios que se usa, pode ser analisado de uma forma distinta dos demais, pois tiveram uma relação mais próxima com o comércio marítimo de longo curso, seja atuando diretamente nestas atividades por meio de suas embarcações, seja atuando na exportação e importação consignada a partir dos armazéns do porto de Rio Grande.63 Mas nem mesmo este pequeno grupo deve ser visto de forma homogênea. Alguns charqueadores têm o seu nome mais associado aos negócios marítimos do que outros. Portanto, o comércio de cabotagem pelas margens do Atlântico sul estava reservado a poucos rio-grandenses – notadamente a elite econômica na qual comerciantes e charqueadores se destacavam. Poucos charqueadores devem ter se aventurado em viagens mais longas. Talvez o Comendador Antônio José de Oliveira Castro tenha sido o que maior sucesso obteve nestas empreitadas. Matriculado como negociante de grosso trato na Corte desde 1816, ele foi o único charqueador que esteve presente em todas as listagens organizadas por Gabriel Berute. Em 1848, por ocasião da morte de sua esposa, o advogado de Castro justificou a demora da avaliação dos bens do casal: “como é notório, tem a casa do suplicante muitas e diversas transações, cuja liquidação depende de notícias e informações de vários pontos não só do Império, mas ainda da Europa, para onde dirige seus navios”. Tendo em vista o volume de negócios que praticava, não causa surpresa que a avaliação dos seus bens, em 1848, 62
Souza Freire “mantinha comércio regular com o Brasil. Sua firma era autora de diversos processos de conbranças de dívidas apresentadas ao Juízo da Índia e Mina, em Lisboa. Em geral, tinham srcem em fretes e mercadorias (entre outras, açúcar, algodão, trigo, couros, tabaco, cacau e aguardente), transportadas por ele de praças como Maranhão, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Participava igualmente do tráfico negreiro ‘entre Angola e mais portos permitidos na Costa da África com qualquer porto do Brasil’, conforme declarou, em 1821. Neste sentido, chama atenção suas transações envolvendo tabaco e aguardente, mercadorias largamente utilizadas na aquisição de escravos” (BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 242-243). 63 Os principais eram Antônio José de Oliveira Castro, Antônio Francisco dos Anjos, Domingos Rodrigues, Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José Gonçalves Chaves, Boaventura Rodrigues Barcellos e os seus irmãos, José Pinto Martins, Antônio Soares de Paiva, José da Costa Santos, Joaquim José da Cruz Secco, entre outros. 129
apresentava o maior patrimônio e plantel de escravos de Pelotas na primeira metade do oitocentos – prova de que o capital mercantil estruturava e organizava o capital produtivo, ou 64 seja, as bases do complexo charqueador escravista pelotense. Contudo, os benefícios
decorrentes desta posição superior na hierarquia social não eram exclusivamente econômicos, como demonstro a seguir.
3.2 UMA ELITE LOCAL NO MUNDO ATLÂNTICO: FAMÍLIAS E REDES MERCANTIS ENTRE PELOTAS E OS DEMAIS PORTOS DO BRASIL O comerciante Mateus da Cunha Teles e o charqueador Antônio José de Oliveira Castro, respectivamente com 45 e 28 procurações passadas, estavam entre os 10 maiores outorgantes registrados nos livros de notas de Rio Grande analisados por Gabriel Berute. 65 Os maiores procuradores de Cunha Telles no Rio eram os irmãos João José da Cunha e Francisco José da Cunha. Este último, que também era Cavaleiro da Ordem de Cristo, era cunhado de Cunha Telles e por aí já é possível perceber que no interior destas redes mercantis os laços de parentesco eram notórios, como muitos autores já indicaram. 66 Tais vínculos parentais funcionavam como facilitadores e colocavam importantes famílias no centro de circuítos comerciais de longa distância. Neste sentido, Berute verificou a presença de rio-grandenses que, matriculados como negociantes de grosso trato no Rio, remetiam escravos para o Rio Grande do Sul.67 Um destes agentes foi o capitão Antônio Soares de Paiva, que também teve uma charqueada, mas destacou-se por ser “negociante de grosso trato no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, e contratador dos dízimos das carnes e couros do Rio Grande durante
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Inventário de Francisca Alexandrina de Castro, n. 293, m. 21, 1848, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria
(APERS). 65 BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011, p. 239. 66 RODRÍGUEZ, Manuel Bustos. Cádiz en el sistema atlántico: la ciudad, sus comerciantes y la actividad mercantil (1650-1830). Universidad de Cádiz, 2005, p. 185-230; KICZA, John E. Empresarios coloniales. Familias y negocios en la ciudad de México durante los Borbones. México, FCE, 1986; SOCOLOW, Susan. Los mercaderes del Buenos Aires virreinal: familia y comercio. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 1991. SAMPAIO, Antônio C. Jucá. “Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos”. In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio C. J.; ALMEIDA, Carla (Org.). Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, século XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 225-264; PEDREIRA, Jorge. Op. cit; OSÓRIO, Helen. Op. cit., FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. 67 BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p. 143. 130
vários anos”. Enviando seus navios para o Rio e o nordeste, o capitão também teve sociedade 68 na arrematação de contratos com importantes comerciantes cariocas.
O prestígio social e a riqueza do capitão Paiva possibilitaram bons casamentos aos seus filhos. Um deles contraiu matrimônio com uma filha do charqueador Domingos de Castro Antiqueira. Apesar da esposa de Antiqueira ter falecido em 1829, o inventário dos bens do casal foi aberto somente em 1840. Segundo o seu advogado: “não pode o suplicante proceder prontamente nos termos do respectivo inventário, em razão de estar embaraçado com a liquidação de grandes contas que tinha em diferentes praças do Império, de cujo resultado dependia a fatura do mesmo inventário”.69 Estes negócios devem ter sido importantes e certamente estavam na base da fortuna deste charqueador. Em 1852, em seu testamento, Antiqueira, que agora já assinava como Visconde de Jaguari, mandou rezar mil missas no Rio 70 de Janeiro “por atenção daquelas pessoas com quem tratei negócios”. As procurações que
ele passou em 1832, deixam claro quem eram alguns dos seus parceiros comerciais no interior da província, no Rio e em Pernambuco. No entanto, um dos mais importantes estava na Bahia.71 Natural do Rio Grande, Antônio Pedroso de Albuquerque estabeleceu-se definitivamente em Salvador por conta da Revolta dos Farrapos. Conforme Pierre Verger, Albuquerque foi um dos comerciantes mais ricos da Bahia. Atuou no tráfico atlântico no nordeste e no Rio de Janeiro, tendo sido proprietário de 20 navios. Carregava charque para o nordeste e não causa surpresa que tenha continuado mantendo relações mercantis com sua 72 terra natal, onde sua família possuía importante prestígio em Rio Pardo.
Portanto, as margens do Atlântico foram um cenário de intensos fluxos não apenas de mercadorias, como também de mercadores. Tais movimentos não se davam apenas na direção do extremo sul, mas, também, no seu sentido oposto. Com relação a isto, Afonso Graça Filho 68
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937, p. 128; OSÓRIO, Helen. Op. cit., 2007, p. 323. 69 Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS). 70 Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS). Procurações, 1º Tabelionato de Pelotas, Fundo 48, Livro 1, 19v (APERS). VERGER, Pierre. Notícias da Bahia (1850). Salvador: Corrupio, 1981, p. 45; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2010, p. 203. O Comendador Antônio Pedroso de Albuquerque diversificou seu capital após o final do tráfico, em 1850, tornando-se “proprietário da fábrica de tecidos Todos os Santos, em Valença, (…) da Companhia de Vapores Bonfim e Santa Cruz e era um dos diretores da Companhia de Navegação Baiana”. Nesta mesma época, assim como outros comerciantes, converteu seu capital para a agricultura de exportação: “possuía ainda engenhos em Itaparica, São Francisco do Conde e Santo Amaro e um total de 560 escravos, conforme seu inventário de 1883” (VASCONCELLOS, Pedro. Salvador, rainha destronada? (1763-1823). História (São Paulo), v. 30, n. 1, jan/jun, 2011, p. 183-184). Sobre a sua família em Rio Pardo ver LAYTANO, Dante de. Guia histórico de Rio Pardo. Rio Pardo: Prefeitura Municipal de Rio Pardo, 1979. Um dos seus irmãos, Manoel Pedroso de Albuquerque, era procurador de Antiqueira em Rio Pardo, para onde o charqueador devia remeter escravos e mercadorias diversas. 71 72
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observou que durante as décadas de 1830 e 1840, o alto comércio de abastecimento na Corte teve seus principais agentes substituídos por um novo grupo de comerciantes. Segundo o autor, alguns eram rio-grandenses que migraram para o Rio atraídos por este rentável comércio, como Militão Máximo de Souza, J. J. Cunha Teles e outros. Como notou Graça Filho, Jean Batiste Debret teria percebido o início deste processo quando escreveu sobre quem eram estes novos comerciantes de carne seca na Corte:“todos parentes de correspondentes dos charqueadores, recebem diretamente sua mercadoria nas embarcações que aportam no Rio de Janeiro, pretexto de que abusam às vezes para aumentar o preço desse gênero quando ocorrem atrasos nas entregas”.73 O próprio Irineu Evangelista de Souza, posteriormente Visconde de Mauá, foi um dos jovens rio-grandenses que migraram para a Corte neste período, estabelecendo-se como caixeiro de João Pereira de Almeida – um dos maiores comerciantes de grosso trato do Rio.74 Portanto, tais migrações não representavam uma ruptura com os seus locais de origem. Comerciantes rio-grandenses que migravam para o Rio ou o nordeste não se desconectavam de suas redes de relações anteriores e os “forasteiros” que se instalavam em Pelotas pareciam fazer o mesmo.75 O pertencimento às redes mercantis nas quais os comerciantes de grosso trato cariocas estavam inseridos trazia benefícios diversos aos charqueadores, pois, quando bem manejadas, elas potencializavam a sua posição de elite nas hierarquias sociais locais. Neste sentido, proponho que as margens do Atlântico sul, sobretudo nas suas cidades portuárias, sejam vistas também como um espaço de interação social entre negociantes imperiais, repletas de redes mercantis com conexões as mais diversas, compostas por parentes
e parceiros comerciais76, e não somente como um espaço de competição entre negociantes de
73
FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880).Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 91; 129. 74 Sobre Mauá e o próprio Militão Máximo de Souza ver GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997. 75 Em 1827, o charqueador José da Costa Santos, natural da freguesia de Santa Rita, na cidade do Rio de Janeiro, legou em testamento bens para parentes residentes no Rio, mencionando que perdoava a dívida do seu irmão Serafim para com ele (Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS)). 76 Neste sentido, conforme Fragoso, “era extremamente difícil para uma casa comercial setecentista manter uma rede de comércio que envolvesse distantes regiões e diferentes produtos – como era o caso do tráfico atlântico de escravos – sem o r ecurso, a relações de reciprocidade que podia, inclusive, chegar a casamentos entre famílias de sócios. As famílias Velho, Carneiro Leão e Pereira de Almeida – residentes no Rio de Janeiro, majoritárias no comércio de africanos e nas exportações para Portugal, em princípios do oitocentos – mantinham irmãos, primos e/ou genros em Lisboa e em outras cidades do além-mar. Ao mesmo tempo, o império aparece como espaço de circulação de famílias empresariais, a exemplo da experiência dos Loureiro, portugueses com estadias e negócios no Brasil e na Índia” (FRAGOSO, João. Op. cit., 2002, p. 113-114). 132
diferentes praças, onde o papel das mais ricas era apenas subordinar as menos ricas aos desígnios do acúmulo do capital. Um exemplo disto pode ser dado na trajetória de Antônio Francisco dos Anjos. Natural da Colônia de Sacramento, ele deve ter migrado para o Rio Grande após a expulsão dos portugueses daquela localidade, em 1777. Nos anos 1790, instalado em Pelotas, já é possível encontrá-lo, juntamente com outros proprietários, realizando requerimentos à Coroa. Com o tempo, o charqueador tornou-se capitão-mor da localidade. Em 1808, necessitando de um atestado para ter um requerimento aprovado pela Corte do Rio de Janeiro, Anjos recebeu o auxílio de um grupo de senhores de grande respeito no Império português:
Nós abaixo assinados, comerciantes desta Praça atestamos, e o juraremos se necessário for, em como o Capitão Antônio Francisco dos Anjos morador no Rio Grande é um dos principais negociantes daquela Vila, aonde faz umas grandes charqueadas, e faz navegar um grande número de couros e carnes, não só para esta capital, mas também para a Bahia e Pernambuco. Rio de Janeiro. [rasurado] de novembro de 1808. [Assinado] João Gomes Barroso, Amaro Velho da Silva, Elias Antônio Lopes, Manoel Velho da Silva, Amaro Velho da Silva Sobrinho, Fernando Carneiro Leão, Antônio Gomes Barroso, Joaquim Antônio Martins.77
Os sobrenomes Carneiro Leão, Gomes Barroso e Velho da Silva eram conhecidos e respeitados por qualquer comerciante marítimo do Atlântico sul. Tratavam-se de homens envolvidos no tráfico negreiro e na exportação de açúcar e que estavam inseridos em redes mercantis de longo alcance.78 Portanto, o capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos era reconhecido como membro da elite local tanto pelos seus pares como pelos grandes comerciantes do Rio. Ser reconhecido e tratado como o “cacique” de sua aldeia (ou um dos líderes da mesma) era fundamental para o homem que quisesse ocupar o topo da elite de um lugar e manter tal posição.79 Contudo, como em qualquer elite local e regional, Antônio Francisco não estava sozinho e plenamente acomodado com relação a sua posição. Em 1815, o visitador D. José da Silva Coutinho considerou que os homens mais ricos da pequena freguesia eram Domingos de Castro Antiqueira, Domingos Rodrigues, Antônio Francisco dos Anjos, José Tomas da Silva, 77
Seção de Manuscritos. Documentos Biográfios (Antônio Francisco dos Anjos) – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 78 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit. 79 Às vezes estas relações mercantis podiam transformar-se em relações de amizade ou até de compadrio, como no caso de Manuel Fernandes Vieira, importante comerciante e estancieiro, membro das família Silveira descrita anteriormente, e que tornou-se compadre de Anacleto Elias da Fonseca, um dos mais importante comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro (HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2006, p. 165-166). 133
Manuel Alves de Moraes, José Pinto Martins, Antônio José Gonçalves Chaves, Joaquim José 80 da Cruz Secco, Cipriano R. Barcellos e demais irmãos e Agostinho Nunes. Com exceção do
último, os demais eram todos charqueadores. Além disso, Domingos Rodrigues, Domingos Antiqueira e José R. Barcellos estavam entre os cinco mais ricos charqueadores com fortuna inventariada na primeira metade do XIX, o que confere credibilidade ao relato do Bispo. Todos estes charqueadores atuavam no comércio marítimo e tinham condições de disputar influência e o poder local com o capitão dos Anjos. O prestígio social do mencionado capitão possibilitou bons casamentos para os seus filhos. Antônio Rafael dos Anjos casou-se com a filha do capitão João Francisco Vieira Braga, o pai. O filho homônimo de Vieira Braga, que também foi charqueador durante um período curto de tempo e veio a tornar-se o Conde de Piratini, casou-se com a filha do capitão Domingos Rodrigues – o charqueador mais rico do período colonial.81 Assim como Antiqueira, Vieira Braga, Antônio Francisco dos Anjos e outros, o capitão Domingos Rodrigues também mantinha negócios diretamente com outros portos do Brasil. Quando faleceu, em 1819, os inventariantes esperavam uma embarcação sua retornar de Recife. Nesta ocasião, sua viúva remeteu procurações para Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, a fim de resolver os trâmites de seu inventário. Destaque para os procuradores no Rio que eram João Rodrigues Ribas e o tenente Miguel Ferreira Gomes. 82 O primeiro era o seu próprio filho primogênito que estava atuando como negociante no Rio, onde investiu no comércio negreiro, conforme a listagem de traficantes organizada por Manolo Florentino. 83 O segundo dispensa comentários. Comerciante de grosso trato no Rio, Ferreira Gomes concentrou grande parte dos carregamentos de charque remetidos para o Rio de Janeiro no período.84 Portanto, este pequeno grupo de comerciantes-charqueadores, além de atuar no comércio marítimo, estava muito bem relacionado com grandes comerciantes de outros portos brasileiros. O historiador interessado em definir melhor os diferentes estratos e cadeias de interação social entre o espaço econômico agrário centrado em comunidades locais e os espaços de poder e comércio mais centrais não pode tratar de forma homogênea as elites de 80
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPGHistória UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009, p. 64. 81 O filho de um charqueador deixou escrito sobre Pelotas no final do setecentos: “Em toda a região, apenas se destacava da uniforme chateza o sobrado de Domingos Rodrigues, velha construção de 1784, contemporânea dos primórdios do distrito” (ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 94). 82 Inventário de Domingues Rodrigues, n. 32, m. 2, Pelotas, cartório de Órfãos e Provedoria, 1818 (APERS). 83 FLORENTINO, Manolo. Op. cit., 2010, p. 256. 84 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 200. 134
um município, de uma capitania ou de uma província. Este pequeno grupo de charqueadores que atuava no comércio marítimo não possuía seu olhar voltado exclusivamente para o âmbito local. Por estabelecerem conexões com a sociedade exterior e serem reconhecidos como a elite da localidade tanto por comerciantes quanto por autoridades administrativas externas a sua aldeia, eles se legitimavam enquanto elite local e regional e, em termos analíticos, não podem ser tratados como os demais membros de sua comunidade. Neste sentido, a inserção dos charqueadores pelotenses em redes mercantis atlânticas foi fator determinante para colocá-los num patamar superior aos charqueadores que não possuíam cabedais para tanto.85 Quanto maior a inserção do charqueador naquelas redes de comércio externo maiores eram as chances dele ocupar o topo da hierarquia do grupo, acumulando maior fortuna, patentes, comendas e ofícios diversos. Neste sentido, os mesmos reuniam elementos para tornarem-se brokers – no sentido conferido por Edoardo Grendi ao estudar os mercados em sociedades agrárias e pré-industriais86 – pois eram os mais capacitados para funcionarem como conectores entre um espaço econômico de trocas mais agrário e não monetário e um espaço de trocas mais mercantilizado e vinculado ao comércio internacional. Contudo, esta posição diferencial não precisava ser reconhecida somente pelos “de fora”. A conquista da legitimidade social era uma necessidade entre os seuspróprios pares e suas gentes…
3.3 CAPITÃES, COMENDADORES E COMPADRES DE PARDOS: A ORGANIZAÇÃO SOCIAL NO EM TORNO DAS CHARQUEADAS Domingos de Castro Antiqueira nasceu em Viamão, município próximo a Porto Alegre, no ano de 1763, e estabeleceu-se com uma charqueada nas margens do arroio Pelotas no início do século XIX. Comerciante ativo e grande escravista, ele apoiou a expansão do Império português sobre a Banda Oriental no período joanino, ajudou a financiar a Guerra da Cisplatina (1825-1828) e combateu os rebeldes na Revolta dos Farrapos. Por conta da sua 85
Gabriel Berute já havia notado este fator ao examinar as ligações dos comerciantes do Rio Grande do Sul com a praça do Rio de Janeiro: “As trajetórias (…) dos demais comerciantes mencionados acima, sugerem que existiram mecanismos através dos quais ao menos uma parte dos comerciantes estabelecidos no Rio Grande tiveram condições de reunir o cabedal e as relações necessárias para serem matriculados como negociante de grosso trato. Provavelmente, a manutenção de negócios com o Rio de Janeiro cumpriu um papel de grande importância para uma possível ascensão na hierarquia mercantil” (BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p.145). 86 GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social. In: OLIVEIRA, Mônica; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 19-38. 135
fidelidade aos monarcas portugueses e brasileiros e do seu comprometimento com a Coroa foi reconhecido Fidalgo Cavaleiro da Casa de S. M. o Imperador, recebeu a comenda da Imperial Ordem do Cruzeiro e os títulos de Barão e Visconde de Jaguari. 87 Sua trajetória não teria nada de incomum se não fosse por um detalhe. A mãe de Antiqueira, Maria de Ávila, era filha de índios de uma tribo charrua, tendo se casado com o paraguaio José de Castro Antiqueira. Seu avô índio era de Salto, na Banda Oriental. Não bastasse ser um nobre de sangue mestiço, Antiqueira ainda teve um filho ilegítimo com a parda forra Genoveva.88 Esta íntima relação com algumas famílias pertencentes às classes subalternas daquela sociedade não impediu Antiqueira e outros de ascenderem socialmente e veicular pelos espaços mais prestigiosos de Pelotas. Entre os bens do seu patrimônio, avaliados em 1829, verificou-se grande plantel de escravos, imóveis, prataria, jóias e uma carruagem mandada vir diretamente de Londres. No seu círculo de parentesco, por meio do matrimônio de seus filhos e netos, a família Antiqueira uniu-se ao capitão Antônio Soares de Paiva, ao marechal Conde de Porto Alegre, ao Barão de Butuí e aos Silveira Martins. 89 Além disso, ele também foi compadre do Conde de Piratini e do próprio capitão Paiva. Quando Saint Hilaire esteve na casa deste, em 1822, deixou anotado: “Vários negociantes do Rio Grande e alguns proprietários da vizinhança, todos muito bem vestidos, estavam reunidos na casa do coletorgeral”.90 O mencionado círculo de parentes de Antiqueira era somente um dos diferentes núcleos que formavam a elite sul-rio-grandense da época. Grupos formados por comerciantes, estancieiros, funcionários da Coroa, oficiais das milícias, vereadores e comendadores, muitos deles aparentados entre si, eles compunham um cenário típico da América portuguesa durante o período colonial. Soma-se a isto o fato de que o reconhecimento da autonomia política e do papel das elites locais no governo de seus povos constituía-se num traço estrutural do Império português.91 E desta dinâmica surgiu uma prática de distribuição de mercês régias, comendas
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 127-128. Genealogia construída por Luiz Antônio Alves. Para maiores detalhes da sua obra “Memorial Açoriano” (que totaliza 52 volumes de pesquisa genealógica) ver h ttp://www.fuj.com.br/?a=livro (consultado pela última vez em 30.05.2013). Um catálogo mais sintético pode ser consultado em ALVES, Luiz Antônio. Memorial Açoriano: Genealogia do Século XVIII– Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS: EST Edições. 2005. 89 CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 127-128). Estas famílias, na segunda metade do século XIX, estiveram entre as mais poderosas do Rio Grande do Sul, concentrando riqueza e grandes cargos políticos no Senado e em Gabinetes ministeriais. 90 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul.Brasília: Senado Federal, 2002, p. 113. 91 Como demonstraram BOXER, Charles R. O Império colonial português. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002; FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs).O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 87 88
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honoríficas e distinções que denotavam a posição social dos seus portadores e que ainda estavam vigentes no início do oitocentos.92 Dos 62 charqueadores, por exemplo, pelo menos 12 receberam a patente de capitão, 2 a de tenente e 1 a de coronel – dentre os quais estavam muitos dos mais atuantes no comércio marítimo – e outros 6 possuíam comendas honoríficas, denotando um grande prestígio social local. 93 Uma vez que a participação nos mercados regionais e as concessões de crédito eram atividades eivadas por relações pessoais, é possível imaginar, como demonstrou Tiago Gil, o grau de influência que capitães exerciam em tais operações.94 Soma-se a isto o fato de que a elite dentro da elite charqueadora estava fortemente aparentada, formando um núcleo que além dos vínculos sociais com comerciantes de fora da província também possuía laços de parentesco com os próprios charqueadores. Tal traço, como diversos autores demonstraram, foi comum nas práticas mercantis do período colonial tardio.95 Dos 62 charqueadores aqui analisados, 36 aparecem como padrinhos dos filhos de outros charqueadores do mesmo grupo nos registros paroquiais de batismo da paróquia de São Francisco de Paula (Pelotas), entre 1812 e 1825.96 Somado aos laços de parentesco matrimoniais (considerei sogros e genros, cunhados e charqueadores cujos filhos e filhas casaram-se unindo ambas as famílias) e consanguíneos (considerei somente irmãos, pais e filhos, tios e sobrinhos), a teia de relações parentais apresenta uma nítida concentração (ver Gráfico 3.1). Portanto, Pelotas já nasceu com uma riqueza, prestígio social status e altamente concentrados nas mãos de poucas famílias. 2001; MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites iberoamericanas do Antigo Regime.Lisboa: ICS, 2005. 92 São muitas as pesquisas que evidenciam estas práticas na América portuguesa. Ver, por exemplo, GOMES, José Eudes. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará setecentista. Rio de Janeiro: FGV, 2010; STUMPF, Roberta G.. Cavaleiro do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares nas Minas setecentistas. Brasília. Tese de Doutorado. PPGHIS/UnB, 2009. 93 Estas informações foram coletadas a partir de uma busca nominal nos registros de batismo e casamento de Pelotas entre 1812 e 1825, nos inventários post-mortem e na bibliografia consultada. 94 Estudando o comércio de tropas entre Viamão, Curitiba e Sorocaba, Gil considerou: “Em primeiro lugar, devese ter em conta a importância dos oficiais, especialmente os capitães, na economia local, como agentes econômicos diretos, comandando negócios, criações de animais, lavouras, lavras de minérios, dentre outras atividades que constituíam a base da economia regional. É certo que era uma economia relativamente pobre, se comparada, por exemplo, com os negócios desenvolvidos na Praça do Rio de Janeiro na mesma época. Mas eram estes capitães locais, à exemplo dos capitães e coronéis Carneiro Leão e Gomes Barroso, que comandavam a dinâmica econômica. No caso da rota das tropas, os capitães eram os senhores daquela pobre economia, como os do Rio de Janeiro eram de grossa aventura” ( GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009, p. 227). Sobre a estrutura de organização das milícias e tropas militares no Império português ver GOMES, José Eudes. Op. cit. 95 Ver nota 66. 96 Tive acesso aos srcinais dos Livros de Batismo de Livres e Escravos graças à historiadora Dúnia Nunes que me disponibilizou-os em formato digital. A análise dos dados não teria sido possível sem o auxílio do historiador Leandro Oliveira, que trabalhou na transcrição dos mesmos. Agradeço a ambos pela gentileza. 137
No Gráfico 3.1, os pontos marcados em preto são comerciantes-charqueadores matriculados e/ou proprietários de grandes embarcações marítimas e charqueadores com comendas e/ou patentes de milícias, podendo um único indivíduo concentrar mais de uma destas distinções.97 A partir dele, pode-se perceber que este grupo, composto por 26 charqueadores (42% dos 62 proprietários), era fortemente aparentado entre si, concentrando a maioria dos vínculos representados no gráfico. Os charqueadores sem nenhuma das mencionadas distinções estavam mais soltos e sem laços parentais com outros charqueadores. Isto evidencia uma prática endogâmica entre as famílias do topo do grupo, sedimentada por relações de compadrio e parentesco consanguíneo. Neste sentido, pode-se dizer que a primeira elite do complexo charqueador escravista pelotense parecia formar umagrande família.
Gráfico 3.1 – Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas (1790-1835)98
Fonte: Livropost-mortem de batismodedePelotas livres,(APERS). n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas); Testamentos e Inventários
Contudo, estes laços parentais não se davam apenas no sentido horizontal e sua verticalidade não encontrava somente vínculos para cima. Conforme Carvalho, o charqueador 97
No geral, 10 foram classificados como comerciantes de grosso trato, 15 possuíam patentes de oficiais e 6 detinham comendas. Como alguns deles acumularam qualificativos, o número total chega a 25. 98 As representações das redes foram montadas utilizando o software UCINET versão 6 for Windows. Para a listagem dos charqueadores com suas respectivas siglas ver Anexo 1. 138
Domingos Antiqueira, neto de índios, possuía uma chácara na Ilha dos Marinheiros, a qual denominou “Filantropia”, porque “o produto de sua renda contribuía para o bem estar de grande número de famílias pobres”. Conforme Alves, estas pessoas pobres deveriam ser descendentes da tribo a qual pertencia o seu avô. 99 Difícil avaliar a veracidade destas afirmações, mas rastreando a vida de Antiqueira descobri, em seu inventário, que ele realmente possuía uma Fazenda chamada “Filantropia” e que ela se localizava na Ilha dos Marinheiros. A busca também revelou que, em 1820, ele batizou Leopoldino, filho legítimo do índio Joaquim Lencina com Francisca Antônia – indicando que as afirmações dos autores podem ter um fundo de veracidade.100 Esta história abre um espaço para se pensar que, assim como outras elites, os charqueadores também imprimiam sua autoridade local nalegitimação do exercício de dominação social sobre as camadas mais pobres da sociedade. Sobretudo na época das safras, os charqueadores e as classes subalternas em geral conviviam e circulavam por praticamente os mesmos espaços e seria demasiado simples considerar que a sua aproximação se pautasse exclusivamente em relações de conflito. Não é demais lembrar que, nesta época, mais da metade da população era escrava e algo próximo de 1/3 era branca. Neste sentido, é possível perceber que as charqueadas, segundo relatos de contemporâneos, funcionavam como aldeias aglutinadoras de diferentes setores da sociedade, reunindo grande população de cor, entre cativos e libertos. Nas palavras do abolicionista Alberto Coelho da Cunha, as charqueadas possuíam o seu “agregado próprio”: Onde quer que um estabelecimento de charqueada existisse, pelos seus arredores tinha-se formado um agrupamento de ranchos de moradia do pessoal de dependência do movimento da fábrica e nas suas aproximações, situada a uma volta do caminho, a vendinha a que se iam suprir dos gêneros de consumo diário (…) Nas aproximações das charqueadas se foram localizando famílias de trabalhadores, colocando os seus arranchamentos a feição de aldeolas, agasalho de braços prontos a acudir ao içar da bandeirola que anunciava a hora da matança. Certa animação alegrava as suas cercanias, por ser incessante, no tempo das safras, o movimento de gente que, a pé e a cavalo, ou de carroças e carretas, que entravam e saíam pela porteira da charqueada.101
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Ver nota 80. Com este exemplo, reforço o fato de que estou analisando somente um grupo de elite. Os charqueadores batizaram filhos de um grande número de pessoas de diferentes estratos sociais. Mas foge às pretensões desta pesquisa tratar de todos estes vínculos. Além do mais, eles também casaram seus filhos com famílias de outros grupos sociais, como criadores e negociantes. O papel das mulheres no interior destas malhas parentais de compadrio e matrimônio também merece uma pesquisa específica. Para um exemplo de como tal empreitada por render bons frutos ver HAMEISTER, Martha. Op. cit. 101 ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 91-93. 100
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As impressões de Cunha, que era filho de um charqueador, demonstram que se nas entressafras aqueles estabelecimentos já eram rodeados de uma população de dependentes, no período de abate, a quantidade de pessoas a orbitarem as pequenas fábricas aumentava bastante. Mas além dos escritos de Cunha, outros dois relatos, desta vez de contemporâneos que estiveram em Pelotas na década de 1810, oferecem uma visão interessante do espaço social em que os galpões de charquear estavam erguidos. Conforme John Luccock: Uma grande extensão de terra é ali designada pelo nome de charqueadas, sendo famosa pela sua produção luxuriante e pelo seu gado numeroso e nédio. Vêem-se casas disseminadas por ali, muitas delas espaçosas, e algumas com certas pretensões ao luxo; existem capelas anexas a muitas delas e em volta de uma encontra-se tamanho número de habitações menores que o conjunto bem mereceria o nome de aldeia.102
De acordo com o relato do comerciante inglês, muitas das charqueadas possuíam capelas anexas e numa delas, que ele diz ter visto, um número de habitações menores a cercava. A associação entre a charqueada com uma aldeia e o destaque dado para as capelas, no centro do território das mesmas, também foi realizada por Nicolau Dreys: À pouca distância da cidade e rodeando-a como um centro, estão as charqueadas do Rio Grande (…) formando cada uma delas um círculo de população especial, tão vasto às vezes e encerrando um número tal de brancos, de agregados e de negros de serviço, que parece, à primeira vista, uma verdadeira aldeia com suas ruas e sua capelinha, cujo campanário domina em certas charqueadas as diversas moradas dos habitantes.103
Estes trechos não poderiam ser mais eloquentes e destacam, além do caráter concentrador em termos populacionais, o fator religioso que o espaço charqueador representava – visto a centralidade de suas capelas e oratórios, algo que destacarei posteriormente. Este aglomerado de pessoas que rodeavam as charqueadas, fossem familiares, livres pobres, agregados ou escravos, também pode ser atestado por outros relatos. Conforme Fernando Osório, a charqueada que Pinto Martins construiu em Pelotas atraiu grande número de pessoas, algumas das quais empregaram-se por ali, sendo que outras famílias se instalaram em torno do estabelecimento. 104 Nesta ocasião, o próprio Pinto Martins teria se arranchado 102
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil.São Paulo: USP, 1975, p. 142. 103 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: IEL, 1961, p. 117118. 104 OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas.Pelotas: Armazém Literário, v. 1, 1997, p. 54-55. 140
nas terras da família Silveira e não estava sozinho, pois daquele mesmo espaço compartilhavam outras famílias, além de charqueadores, que margeavam os principais rios de Pelotas.105 Portanto, neste cenário inicial que marcou o colonial tardio, muitos charqueadores ergueram seus galpões de charquear em terrenos de terceiros, dividindo-os com um variado número de pessoas de toda a cor e condição social. Além disso, quando proprietários, os charqueadores podiam permitir que outras pessoas se arranchassem em suas terras. Conforme Eduardo Arriada, nos terrenos do charqueador Antônio Pereira da Cruz, por exemplo, estavam estabelecidos Antônio Ferreira das Fontes, o preto Bartolomeu Correia, Manuel Domingues, 106 Joaquim Silveira e Souza, Manuel do Nascimento e Manuel Cordova.
Foi deste “círculo de população especial”,conforme as palavras de Dreys, que também reunia os agregados, os libertos, os índios e, principalmente os escravos, que Pinto Martins encontrou as mães dos seus herdeiros reconhecidos em testamento. Além dele, que viveu em estado de solteiro, e Antiqueira, que apesar de ter tido três esposas ao longo da vida, teve filho com a parda forra Genoveva, o charqueador Ignácio José Bernardes, sócio de Pinto Martins e talvez um dos homens com maior nível de educação em Pelotas, também teve 3 filhos pardos: José Ignacio Bernardes da Costa, Eugênia Ignacia dos Prazeres e Ignacia Xavier dos Prazeres. Apesar de não citar o nome da (s) mãe (s), no mesmo documento o charqueador deixou dois escravos para a parda Domingas Xavier e mandou descontar os 600$000 que o filho José da Costa gastou na Bahia, sem a sua autorização, o que pode indicar a sua conexão com os portos do nordeste. O charqueador também era cirurgião e em seu inventário constam uma série de 107 livros em português e francês, dos quais falarei em capítulo posterior.
Estes casos revelam uma abertura, mesmo que ínfima, para a mobilidade social e geracional de pardos e pretos na sociedade pelotense do período colonial tardio.108 Ao lado do mulato Domingos José de Almeida e do mestiço de índios Domingos de Castro Antiqueira, tinha-se, agora, o pardo Liberato Pinto Martins, novo charqueador-herdeiro da comunidade, e José I. Bernardes da Costa, que herdou a charqueada do pai cirurgião. Ambos eram filhos de mulheres egressas do cativeiro. Na presente análise, o estudo destas trajetórias torna-se importante porque ajuda a compreender melhor a heterogeneidade de indivíduos que compunham a primeira geração de charqueadores. Na segunda metade do oitocentos, por 105
MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 124-125. ARRIADA, Eduardo. Op. cit., p. 70. É muito provável que tais relações também reunissem conflitos entre proprietários e o restante da população que orbitava tais terrenos, mas não tive fôlego para investigá-las de forma aprofundada. 107 Inventário de Ignácio J. Bernardes, n. 217, m. 15, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1838 (APERS). 108 Sobre esta questão, ver GUEDES, Roberto. Op. cit., 2008. 106
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exemplo, quando a elite charqueadora já estava mais sedimentada social, política e economicamente, não localizei indivíduos pertencentes às classes subalternas integrando o mencionado grupo de empresários. Os casos de charqueadores com filhos ilegítimos talvez não tenham sido raros. O capitão José Ferreira de Araújo, por exemplo, teve uma exposta batizada em sua casa, filha de pais incógnitos. Anos depois, o charqueador veio a reconhecer a paternidade da criança. 109 O charqueador João Duarte Machado, ex-proprietário de uma das mães de um filho de Pinto Martins, reconheceu em testamento a paternidade de uma “enjeitada” que vivia em sua casa.110 É bastante provável que outros charqueadores tenham se envolvido e tido filhos com pardas e pretas, sem que os mesmos tivessem sido reconhecidos em documentos, mas que fossem de conhecimento dos mais chegados.111 Isto talvez ajude a explicar a indignação do charqueador Antônio José Gonçalves Chaves com relação a estas íntimas relações entre proprietários brancos e mulheres de cor. Em 1822, ele deixou escrito: Deve a natureza, no progresso de sua procriação, operar igual número de mulheres e homens; vêm de Portugal muitos homens e suposto que alguns deles escapam à praça e queiram casar, devem não achar com quem celebrar núpcias, pois dado o caso que os brancos em tão pequeno número tenham a sua população em geral quantidade nos dois escandalosos sexos, não restam para aosgente que de vêmcor; deefora e daqui se seguem celibatários pelas mulheres misturas com em prejuízo desta resulta uma população a mais desprezível e uma desmoralização universal.112
Nas palavras de Chaves, a principal justificativa para a “escandalosa” união entre portugueses e negras, era o pequeno índice de mulheres reinóis que vinham para o Brasil. Analisando o Livro de casamentos dos livres de Pelotas entre 1812 e 1825 foi possível verificar que o charqueador tinha razão. Dos 254 matrimônios registrados no documento havia 46 noivos portugueses e somente 1 mulher reinol. Das Ilhas eram 18 homens para 2 mulheres. Mais de 80% das noivas eram naturais do Rio Grande do Sul. Portanto, era um mercado matrimonial em que os imigrantes reinóis, caso desejassem se casar, estavam obrigados a unirem-se às mulheres da terra. Contudo, devido ao pequeno número de famílias 113 de elite, não havia lugar para todos os que buscassem um bom casamento. Desta situação decorria algo semelhante ao que Florentino e Machado identificaram para a freguesia de 109
Livro de batismo de livres, n. 1, 06.11.1818, p. 100v, (Arquivo do Bispado de Pelotas). Inventário de João Duarte Machado, n. 123, m. 10, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1828 (APERS). Até porque não foram localizados muitos testamentos dentro do grupo. 112 CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 62. 113 Livro de casamentos n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas). 110 111
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Inhaúma, no Rio de Janeiro, ou seja, a mancebia entre mulheres pardas e negras com portugueses solteiros, como os charqueadores Pinto Martins e Ignácio Bernardes, por exemplo.114 Pelotas apresentava índices de ilegitimidade tão altos como em outras regiões do Brasil.115 Cerca de 21,5% das crianças batizadas na freguesia, entre 1812 e 1825, eram fruto de relações não abençoadas pela Igreja Católica. 116 Alguns anos depois, quando da sua visita paroquial em Pelotas, o Bispo Antônio Vieira da Soledade deixou registrado em livro o que considerava uma “libertinagem”: O Reverendo Francisco Florêncio da Rocha, natural da Bahia, idade 43 anos, ordenado na mesma cidade, em 1802, serviu de pároco encomendado nesta freguesia por 2 anos, onde se prestou a todos, para o bem e para o mal. Clérigo concubinado com escândalos dos poucos bons que há nesta freguesia, onde é ordinária a mancebia, e por isso pouco estranhada, e por muitos que não vivem nela, é todavia disfarçada por certa doutrina de libertinagem que aqui se prega com a liberdade do tempo, muito perniciosa à moral do Evangelho.117
Além da condenável “mancebia”, os vínculos entre os charqueadores desta primeira geração e as classes subalternas estreitavam-se mais ainda quando se observa o parentesco espiritual. Como Pelotas foi elevada à condição de freguesia somente em 1812, até esta data os oratórios privados espalhados pelas estâncias e charqueadas possuíam grande importância no exercício dos sacramentos católicos. Antes da instalação da freguesia e de sua matriz, o visitador Agostinho José Mendes dos Reis anotou a presença de 9 oratórios no povoado de Pelotas. O prestígio social do Capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos se destaca novamente, pois destes 9 ele foi o único proprietário de oratório que teve o seu nome citado, ao invés do nome da fazenda ou da localidade sede dos mesmos. Possuir um oratório em suas terras era de extrema importância não apenas no sentido religioso que tal fenômeno representava, mas também, pelo fato de que o mesmo devia servir como fonte de influência, poder e status diante da população mais pobre. Estudando os engenhos de açúcar em Cuba, Fraginals verificou a presença de capelas no interior das unidades produtivas com os seus
114 FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Migrantes portugueses, mestiçagem e alforrias no Rio de Janeiro imperial. In: FLORENTINO, Manolo (Org.).Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos
XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 367-388. 115 BRETTEL, Caroline; METCALF, Alida. Costumes familiares em Portugal e no Brasil: paralelos transatlânticos. População e Família, v. 1, n. 1, 1998, p. 127-152. 116 Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas). 117 Visitas Pastorais, Livro VP-21 (1824-1825) - Cúria do Rio de Janeiro. 143
respectivos santos padroeiros, denotando a importância da igreja e das práticas religiosas para a sacarocracia cubana no século XVIII.118 A vida religiosa nas pequenas vilas e freguesias ocupava um espaço central entre as famílias de elite. Conforme Denise Ognibeni, na década de 1810, os charqueadores, juntamente com suas esposas, “ participavam ativamente nas decisões concernentes aos assuntos religiosos na nova freguesia, decidindo o local da igreja, patrocinando as obras, realizando procissões com o santo padroeiro”, além de exercerem cargos e desempenharem papéis de destaque nas Irmandades e procissões locais. Os padres muitas vezes hospedavam-se nas charqueadas ou viviam de agregados em algumas propriedades, onde poderiam rezar suas missas nos oratórios privados dos próprios senhores. 119 Por conta disto, na década de 1810, o
charqueador José da Costa Santos, juntamente com sua esposa, a dona Ana Joaquina Gonçalves, e suas 4 filhas, solicitaram licença para poder rezar missa no oratório privado de sua Estância de São Lourenço. O tenente-coronel José Antônio de Oliveira Guimarães, uma das testemunhas convidadas a depor sobre a idoneidade dos requerentes, respondeu que o casal vivia “à maneira da nobreza” e que “há na dita Fazenda perto de duzentas pessoas que são da família dos impetrantes”. É difícil saber se todos seriam de fato seus familiares. No entanto, o próprio requerimento oferece uma pista de quem seriam estas duzentas pessoas. Segundo a vontade do charqueador: E as missas que nos dias santos e festas de preceitos no dito oratório se celebrarem poderão ouvir os suplicantes com todos os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas, como também seus hóspedes nobres, com declaração que os ditos parentes, familiares e hóspedes nobres, somente estando presentes à celebração do Santo Sacrifício da Missa os mencionados impetrantes (…).120
Interessante notar que por duas vezes eles diferenciaram os parentes consanguíneos e afins dos “familiares”. Além disso, também é considerada a presença dos criados. No total, Costa Santos possuía 172 escravos espalhados pela sua Fazenda. O testamento do 118
FRAGINALS, Manuel M. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. I, 1989, p. 138-139. Stuart Schwartz, ao estudar os engenhos de açúcar do Recôncavo baiano, mencionou que os escravos não iniciavam o trabalho no período da safra sem antes dos párocos benzerem os estabelecimentos e as máquinas. “Os escravos levavam aquilo tão a sério quanto os senhores. Recusavam-se a trabalhar se a moenda não fosse abençoada e, durante a cerimônia, muitas vezes tentavam avançar para receber algumas gotas de água benta no corpo” (SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e e scravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 96). 119 OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 86-91. 120 Requerimento de oratório privado de José da Costa Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394. Cúria do Rio de Janeiro. 144
charqueador, aberto em 1827, ajuda a explicar quem pertencia a este contingente de parentes, familiares e criados. No documento ele deixa bens para afilhados, compadres, capatazes, agregados, além de alforriar um grande número de escravos. 121 É provável que além dos indivíduos mencionados houvesse muitos outros que não mereceram menção especial do falecido, dentre os quais podiam estar libertos e índios com suas roças e pequenos rebanhos 122 vacuns espalhados pelas vastas terras do charqueador.
Portanto, o compadrio, cuja importância era bastante significativa naquela sociedade, abria espaços para que os charqueadores estabelecessem laços de parentesco espiritual com setores das classes subalternas. No Gráfico 3.2, todos os pardos, pretos e índios que encontrei tendo seus filhos batizados por charqueadores, entre 1812 e 1825, foram marcados em cor cinza. Também incluí entre estes os pardos filhos ilegítimos de charqueadores citados anteriormente. Uma visão que entendesse que tais vínculos diminuiriam a condição de elite do charqueador poderia supor que as alianças com tais setores da sociedade estivessem reservadas aos charqueadores de menor riqueza e prestígio social. Mas não é isso que se verifica. É exatamente o setor mais notável da elite charqueadora (grifado em preto) que concentra as alianças de compadrio com os grupos subalternos (grifados em cinza). Entre muitas coisas, isto pode indicar que alguns setores das classes subalternas possuíam amplo conhecimento das hierarquias sociais locais, buscando estabelecer este tipo de alianças com a elite charqueadora. Tais vínculos poderiam ser usados pelos indivíduos mais pobres como forma de inserir-se em uma rede social de forma mais ou menos estratégica e, assim, adquirir diversos recursos para beneficiar seus parentes e amigos. Estas teias eram sem dúvida muito mais amplas, pois não contabilizei os compadres e comadres das esposas e dos filhos dos 123 charqueadores e nem acresci nesta análise os batismos de escravos. O compadrio era o
lugar possível para a realização de vínculos parentais entre ricos e pobres, uma vez que, 124 devido à forte endogamia de classe, o matrimônio não estava aberto aos mesmos.
121
Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS).
Sou inclinado a pensar nisto pelo grande percentual de libertos na população pelotense recenseada em 1833. Conforme a Tabela 3.3, eles somavam 1.137 indivíduos (10,5% da população total). 123 Sobre a importância do compadrio nas redes de relações das famílias de elite e do parentesco espiritual com as classes subalternas ver HAMEISTER, Martha. Op. cit., 2006; FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca 122
Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII: uma contribuição metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, jul/dez, 2010, p. 74-106; FARINATTI, Luís Augusto. Os escravos do Marechal e seus compadres: hierarquia social, família e compadrio no Brasil (c.1820-c.1855). In: XAVIER, Regina (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de
análise. São Paulo: Alameda, 2012, p. 143-174. 124 Isto não significa que os charqueadores menos ricos e de menor prestígio não possuíssem tais vínculos, pois a análise centra-se no 1º livro de batismo dos livres entre 1812 e 1825. Uma pesquisa mais abrangente e que envolvesse os batismos de escravos poderia trazer resultados adicionais, mas não tive fôlego para tanto. 145
Gráfico 3.2 – Vínculos de parentesco entre os 62 charqueadores de Pelotas com as classes subalternas a partir dos registros de batismo de livres (1812-1825)
Fonte: Livropost-mortem de batismodedePelotas livres, (APERS). n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas); Testamentos e Inventários
O estudo do compadrio sob uma perspectiva geracional não deve ser excluído da análise, que também podia envolver a mobilidade social entre compadres de condição inferior. Quanto a isto, posso oferecer um exemplo recorrendo novamente ao incansável capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos. Em 1815, ele batizou a pequena Benigna, filha de Manuela Francisca Moreira e Severino Gonçalves, ambos pretos libertos e casados. Em 1821, a mesma Manuela teve o filho Herculano pardo batizado pelo genro de Francisco dos Anjos, o capitão João de Souza Mursa. E em 1824, novamente Manuela convidou um filho de Francisco dos Anjos, Antônio Rafael, para batizar outro filho seu, desta vez no oratório da charqueada. Nesta ocasião, tanto a criança como o seu pai, Zeferino Inácio da Siqueira, foram classificados pelo padre como “brancos”, enquanto Manuela não teve sua cor mencionada, o que poderia indicar uma suposta mobilidade social desta preta liberta, ao longo de 10 anos. 125 Mas os grandes trunfos em arrematar compadres e comadres entre as classes subalternas foram o seu outro filho Domingos e o mencionado genro Mursa. Este era natural do Rio de 125
Conforme o sugerido por GUEDES, Roberto. Op. cit., 2008. 146
Janeiro, e batizou duas crianças pardas e dois índios, todos filhos de casais diferentes. O capitão Domingos dos Anjos, por sua vez, batizou outras duas crianças pardas, uma filha de índios e também a pequena Ana, exposta na casa do charqueador José Ferreira da Araújo, que, anos depois, reconheceu-se ser filha do próprio charqueador.126 Portanto, o capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos, um dos homens mais poderosos daquela pequena aldeia, reconhecido por visitadores e comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro enquanto tal, também possuía uma notável malha parental composta por índios, pardos e pretos forros. Na prática, esta diversificada teia de compadres e parentes, onde brancos ricos com distinção honorífica ou patentes ocupavam uma posição de destaque, podia ser acessada em momentos de necessidade, tanto no cotidiano quanto em ocasiões especiais, representando um pedido ou uma retribuição de algo, como, por exemplo, em situações de recrutamento e guerra, disputas políticas e territoriais, períodos de safra ou para se obter favores dos mais diversos. As cartas que o charqueador Domingos José de Almeida enviou para a sua esposa nos anos de 1835 e 1836 são bastante reveladoras da importância desta malha parental na vivência de suas famílias. Em junho de 1835, quando Domingos foi a Porto Alegre assumir sua vaga de deputado provincial, escreveu para a esposa mandando “abraços a nossos filhos e saudações a teus pais, compadre José Félix, teus irmãos, José Pedro, João da Cunha e a todos de casa”.127 Tendo iniciado a Revolta dos Farrapos, três meses depois, ele tomou parte do lado rebelde. Nesta ocasião, a dona Bernardina, retirando-se para lugar mais seguro com os filhos do casal, esteve cercada por esta ampla gama de amigos, parentes e compadres, como fica claro nas cartas. Domingos sempre as terminava recomendando aos mesmos, para quem pedia favores diversos. Numa carta em que dava instruções de como agir com os escravos, ele recomenda-a aos “compadres José Félix, Joaquim, João, Chaves, Chastan, Chevalier e David”.128 Em outras, faz referências a mais quatro compadres. Rolino, que também era capataz, Cipriano, Rafael e Belchior, além de muitas outras pessoas, às vezes, denominadas 129
como “amigo”. Não surpreende que, em uma130carta de Bernardina para Domingos, ela deixara escapar: “a nossa família é muita grande”. 126
Livro de batismo de livres, n. 1 (Arquivo do Bispado de Pelotas). Carta de Domingos para Bernardina, 20.06.1835, CV - 174. Carta de Domingos para Bernardina, 14.03.1836, CV - 195. 129 Cartas de Domingos para Bernardina, 02.10.1835, 05.01.1836, 23.02.1836, CV - 176, 186 e 191. 130 Carta de Bernardina para Domingos, 19.12.1842, CV – 167. Sobre esta família ver também MENEGAT (2010). O uso de familiares nas unidades produtivas dos charqueadores será analisado de forma mais detalhada nos capítulos posteriores. 127 128
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Com muita atenção, este agregado de dependentes e parentes pode ser verificado em outras fontes. Em 1821, um escravo do charqueador Antônio José Gonçalves Chaves matou um parceiro de cativeiro, vindo a fugir para o mato. Uma das testemunhas, o também charqueador Comendador Boaventura Rodrigues Barcellos, disse ter oferecido “o seu capataz e sua gente para procurarem e prenderem a dito matador e que não sendo preso desta ocasião, o fora depois”. 131 Em 1828, por ocasião do inventário do charqueador João Duarte Machado, foi declarado na avaliação dos bens que um potreiro fazia divisa com um valo que o 132 charqueador Joaquim José de Assumpção “fez com sua gente no Banhado”. No próprio requerimento do charqueador José da Costa Santos, citado anteriormente, fica claro que as missas rezadas no seu oratório privado poderiam ser assistidas por ele, sua esposa, suas filhas, “com todos os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas”, ou seja, a sua gente.Neste sentido, se por um lado alguns charqueadores temiam uma rebelião escrava naquelas paragens, outros estabeleceram alianças espirituais com indivíduos das classes subalternas, num emaranhado de complexas relações e comportamentos sociais que merecem maiores estudos. Portanto, creio que este agregado populacional que orbitava às charqueadas devia manter distintos vínculos com esta elite, desde o parentesco espiritual até as relações de trabalho, de negócios eventuais ou as abastecendo com gêneros alimentícios produzidos em suas pequenas roças. Esta convivência podia ser mais ou menos harmônica, mas andava lado a lado com a dependência econômica e certamente combinava-se com a existência de muitos embates e conflitos no seu cotidiano. Tal estrutura social, mais característica da fase inicial da montagem das charqueadas, ou seja, do colonial tardio, possuía alguns traços muito semelhantes com o que João Fragoso verificou nas unidades açucareiras fluminenses dos séculos XVII e XVIII. Segundo o autor, aquela paisagem agrária, enquanto espaço econômico de interação social, reunia verdadeirasaldeias coloniais, onde a nobreza da terra disputava o poder local aliando-se a outras famílias, relacionando-se com um grupo significativo de dependentes, parentes e agregados de distintas posições sociais. 133 Portanto, olhando para 131
Processo crime n. 119, m. 4, Pelotas, 1821, APERS. Inventário de João Duarte Machado, Pelotas, n. 123, m. 10, 1828, Cartório órfãos e provedoria (APERS). 133 FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: Conquistadores e negociantes: Histórias de elite s no Antigo Regime nos tr ópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 33-120. João Fragoso utilizou o termo “bando” para se referir “à teia de alianças que as famílias da fidalguia tropical criavam entre si e com outros grupos sociais, tendo por objetivo a hegemonia política ou a sua manutenção. Esses pactos eram com senhores de engenho não nobres, oficiais do rei e comerciantes. Assim como um bando, podia falar de amplas redes de amizade que incorporavam elites de outras regiões coloniais, autoridades em Salvador e em Lisboa. Os bandos resultavam, ainda, de reciprocidades com segmentos subalternos da sociedade: lavradores, escravos, 132
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Pelotas, me parece que aquele pequeno mundinho construído por charqueadores minhotos, pernambucanos, mineiros, cariocas e rio-grandenses, no final do setecentos, bebia daqueles parâmetros socioculturais que caracterizaram àquelas aldeias coloniais, embora a presença de tais traços estivessem em plena transformação e na segunda metade do século XIX, o mencionado mundinho já havia se desagregado… *** Tendo em vista o que foi exposto até aqui, creio ser necessário realizar algumas considerações finais sobre o espaço de atuação dos comerciantes-charqueadores no interior do sistema mercantil considerado. Foi possível demonstrar que num total de 62 charqueadores havia um grupo diminuto, composto por 25 charqueadores que, fortemente aparentados, podiam ser reduzidos a algo entre 10 ou 13 famílias (dependendo dos critérios que se usa), que foi capaz de destacar-se regionalmente, de receber o reconhecimento de sua posição por parte das elites de fora da região e de manter relações mercantis com comerciantes de outros portos. Entre os seus membros mais destacados estavam Antônio Francisco dos Anjos, José da Costa Santos, Domingos Rodrigues, Domingos de Castro Antiqueira, Antônio José de Oliveira Castro, além das famílias Rodrigues Barcellos, Gonçalves Chaves, Vieira Braga, Cunha, Soares da Silva, Azevedo e Souza, Soares de Paiva, seus respectivos parentes, entre outros. Eles concentravam as maiores fortunas inventariadas e as maiores escravarias entre seus bens. Esta elite dentro da elite não pode ser vista como os demais charqueadores, comerciantes e estancieiros da capitania/província que não ocupavam com distinção as esferas sociais e econômicas anteriormente mencionadas. Eles estavam mais bem posicionados no interior das redes mercantis com o mercado externo e acumularam mais riquezas, comendas, ofícios e patentes de ordenanças. Além disso, praticaram uma estreita endogamia. Neste sentido, a sua posição superior na hierarquia regional não passava exclusivamente pela acumulação do patrimônio material, pois também precisava ser reforçada em outros espaços de atuação e distinção para além da esfera econômica.134
índios flecheiros, etc” (FRAGOSO, João. Op. cit., 2007, p. 69). Na documentação que pesquisei para este período não encontrei conflitos locais muito nítidos que favorecessem a visualização das facções rivais que disputavam o poder na pequena freguesia, o que pode se tornar um objeto de estudo futuro. A disputa pelo local em que a igreja matriz seria construída, ocorrida em 1812, apresentou três grupos distintos, mas as informações sobre o ocorrido são muito escassas. 134 Os mecanismos de reprodução da economia não passavam somente pela lógica do mercado internacional, mas, também, na exploração econômica das próprias comunidades locais inseridas numa variada gama de atividades e com uma limitada possibilidade de influência nos rumos da localidade, embora agissem estrategicamente para melhorarem suas condições de existência. 149
A compreensão das lógicas que estruturavam a formação desta primeira elite de comerciantes-charqueadores teve importante contribuição na primordial obra de Helen Osório, que abriu um notável espaço de pesquisa a cerca das elites coloniais no Rio Grande do Sul. No entanto, comparando as fortunas e atividades dos comerciantes rio-grandenses com os do Rio de Janeiro, a autora considerou que “o grupo mercantil sediado no Rio Grande do Sul não abrigou homens de negócio de grosso trato”. Examinando o patrimônio inventariado de ambos os grupos, Osório considerou que era “incomparável o grau da acumulação mercantil sediada no Rio de Janeiro em relação ao do extremo Sul”. Portanto, tal posição de “subalternidade” no interior do sistema mercantil “sublinha a debilidade dos negociantes riograndenses”.135 Este quadro interpretativo foi relativizado por Gabriel Berute. Segundo o autor, a afirmação de Osório deve ser revista no que diz respeito a não existência de comerciantes de grosso trato na capitania. Os negociantes envolvidos no comércio marítimo de longo curso possuíam uma boa margem de atuação no interior do sistema mercantil, sendo considerados tanto pelos seus pares de outras províncias, quanto pela Real Junta de Comércio sediada na Corte como “negociantes de grosso trato”.136 No que diz respeito à comparação das fortunas é necessário fazer uma outra ressalva. Com exceção de Brás Carneiro Leão e João Gomes Barroso – cuja riqueza surpreendeu, inclusive, Jorge Pedreira137 – as demais faixas de fortuna não eram tão “incomparáveis” com a dos comerciantes-charqueadores mais ricos, pois uma análise do monte-mor de ambos os grupos não revela fortunas tão distantes como Osório sugeriu.138
135
OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 262; 265; 289; 318. BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2006, p. 145. Sobre a riqueza dos dois negociantes cariocas, inferiores aos mais ricos comerciantes de Lisboa, Pedreira considerou como sendo “quantias que embora inflacionadas pelo alto nível de preços, eram sem dúvida impressionantes” (PEDREIRA, Jorge. Op. cit., p. 299-300). No capítulo 9 tratarei mais deste tema. 138 Helen Osório baseou sua afirmação comparando as fortunas de ambos os grupos. “Confrontando especificamente fortunas de negociantes, vê-se que o maior monte-mor encontrado no extremo sul era de 40.000 libras, enquanto, para o Rio de Janeiro, Fragoso apresenta mais de 20 nomes de negociantes de grosso trato que ultrapassavam as 50.000 libras” (OSÓRIO, Helen. Op. cit., p. 265). Na realidade, os dados elencados por Fragoso reunem 20 fortunas superiores a 50 contos de réis. Sobre estes indicadores, que reúnem as maiores 136 137
fortunas mercantis inventariadas entre 1794 e 1846, Fragoso comentou: “a riqueza da elite mercantil (…) que retrata, entre outras, as fortunas daqueles negociantes listados pelo Conde de Rezende, em geral ultrapassa a cifra de 20 mil libras, podendo superar 50 mil libras. No intervalo de tempo por nós apreendido, não encontramos nenhuma fortuna agrário-escravista, sem srcem mercantil, que alcançasse a cifra de 50 mil libras, fato que reforça a preeminência de uma elite de negociantes na hierarquia econômica da sociedade colonial e, portanto, a sua supremacia econômica sobre a aristocracia escravista” (FRAGOSO, João. Op. cit., p. 315). Dos 29 inventários de charqueadores que reuni entre 1800 e 1850 (período aproximado ao da tabela formulada por João Fragoso), 15 possuíam fortunas acima de 50 contos de réis, sendo que 2 detinham fortunas acima de 50 mil libras. Dialogando com a obra de Fragoso, Maria Viveiros Araújo também utilizou a faixa de 50 contos de réis (estipulada pelo autor) para comparar as fortunas dos comerciantes paulistas com a dos cariocas (ARAÚJO, Maria L. Vieiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 51). Sem dúvida, os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro eram os mais ricos da 150
Contudo, é preciso deixar bem claro que o fato de haver comerciantes de grosso trato no Rio Grande do Sul e de suas fortunas não serem tão desprezíveis assim, não significa que os comerciantes-charqueadores ocupassem uma posição de igualdade com os comerciantes cariocas. Muito pelo contrário. Estes últimos dominavam o tráfico atlântico de escravos – uma das chaves da reprodução da sociedade colonial como um todo – e o seu “raio de atuação”, conforme João Fragoso, era muito mais amplo. Além do mais, seus negócios e investimentos eram muito mais diversificados.139 Portanto, não apenas os charqueadores e fazendeiros, como todos os setores sociais que necessitavam da mão de obra cativa, dependiam do comércio negreiro e das redes de relações em que os traficantes estavam inseridos. Tendo em vista que provavelmente cerca de 100 mil escravos foram remetidos para o Rio Grande do Sul e a região do Prata durante o colonial tardio e as primeiras décadas após a independência do Brasil, o Rio de Janeiro era simplesmente a “Meca” das elites escravistas e dos negociantes do extremo sul da América. Conforme Berute, os atravessadores que agiam no interior do tráfico atlântico revendendo “seus escravos a prestações ou em troca de mercadorias roduzidas p pelos compradores” tinham a sua importância “reconhecida pelas autoridades coloniais e, até mesmo, pelos grandes homens de negócios”. Como a escravidão também foi estrutural n a formação do complexo saladeiril no Rio da Prata, é provável que os atravessadores naquela 140 região possuíssem a mesma importância enquanto elite colonial hispano-americana. Neste
sentido, manter uma boa relação com os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro era fundamental para o bom andamento dos seus negócios e os charqueadores sabiam muito bem disso. Como ensinou Fernand Braudel, no interior dos circuitos comerciais de longa distância, onde a regra era comprar barato e vender caro, ocorria uma transferência dos lucros América portuguesa e o perfil de suas fortunas era mais mercantil do que a dos charqueadores, mas creio que a palavra “incomparável” não é adequada para definir esta relação. A presença de comerciantes e charqueadores com consideráveis fortunas no extremo sul da América portuguesa reforça ainda mais a tese de João Fragoso no que diz respeito à capacidade de acumulação endógena do capital mercantil residente e dos grandes lucros auferidos pelo comércio de abastecimento na colônia. A correção dos números utilizados por Osório não afeta a tese da autora, mas coloca a elite charqueadora e mercantil rio-grandense em uma posição mais importante no interior da hierarquia socioeconômica do Atlântico sul e justifica a necessidade de novas pesquisas sobre elites locais e regionais brasileiras – algo que esta tese buscou contribuir. 139 E neste sentido, o “incomparável” não estava no valor das fortunas acumuladas, mas sim, nas possibilidades e capacidade de investimentos. Pelotas no início do oitocentos era uma aldeia se comparada à praça mercantil carioca e não oferecia muitas opções de inversão além de imóveis urbanos, escravos e terras. 140 Como, por exemplo, o saladeirista oriental Francisco de Medina (PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009). Soma-se a isto, o que Helen Osório notou ao estudar a arrematação de contratos no centro-sul da América portuguesa. Estes estavam acessíveis somente aos negociantes cariocas e constituíam-se em outra importante fonte de enriquecimento, expressando um nítido privilégio de um corpo mercantil mais estabelecido e com maior acesso à Corte portuguesa (OSÓRIO, Helen. Op. cit.). 151
mercantis para as mãos dos negociantes mais bem posicionados.141 No entanto, havia espaços suficientes para que os distintos grupos mercantis, atuantes em diversas regiões dos mencionados Impérios, mantivessem seus lucros e ocupassem o topo das suas hierarquias sociais locais e regionais (com seus respectivos limites de atuação, níveis de grandeza e fortuna) sem que interrompessem os processos de enriquecimento uns dos outros. Basta ver que qualquer grupo de elite local ou regional concentra em diferentes proporções os recursos materiais, extorquindo a riqueza de sua comunidade local. No caso aqui estudado, ser bem relacionado com um comerciante de grosso trato do Rio podia representar a compra de sal e escravos por um preço e prazos melhores, evitar que suas contas fossem liquidadas na ocasião de uma safra ruim ou conseguir favores com fretes e informações preciosas do mundo dos negócios. Agindo desta forma, os grandes comerciantes e traficantes cariocas, comendadores e capitães assim como o pequeno grupo de comerciantes-charqueadores analisado, estariam seguindo a boa e velha tradição do Império português, onde as grandes autoridades políticas reconheciam, mesmo que de forma hierarquizada, a autonomia e a importância das elites locais e regionais para o funcionamento do mesmo Império. Esta dinâmica não subverte a hierarquia política e mercantil que vinha se construindo no Brasil desde 1808, mas apenas complexifica o processo histórico e oferece um grau de negociação e de protagonismo às elites locais e regionais maior do que vem sendo aceito por parte da historiografia. As elites de um determinado lugar, caso fossem hipoteticamente transpostas para outro espaço, não seriam obrigatoriamente elites, pois os patamares de riqueza, poder e prestígio social sempre possuem as suas diferenças, ainda mais em territórios tão amplos como o do Império português e, posteriormente, o do Brasil. Em regiões mais periféricas as condições materiais para ocupar os estratos superiores da hierarquia social eram menos exigentes, o que não significa que os seus detentores não tivessem sua posição reconhecida enquanto tal. Ciosas de sua posição de elite local e regional, elas barganhavam com os grandes centros de poder, negociando seu apoio e auxiliando a manter a ordem social local sob a garantia de 142 receber mais mercês e honras que reforçassem a sua posição. Isto ajuda a explicar não 141
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 357. Sobre este fenômeno na América portuguesa, Charles Boxer escreveu: “ os grandes proprietários de terras, fossem senhores de engenho, criadores de gado ou donos de minas de ouro, mostravam-se cada vez mais ávidos de títulos, honrarias e postos militares, em busca de poder e prestígio”. Neste sentido, “os governadores coloniais tinham consciência desse fato e muitas vezes lembraram à Coroa que a distribuição judiciosa de postos e títulos militares era melhor e mais barato meio para assegurar o que, do contrário, somente a lealdade duvidosa dos poderosos do sertão garantiria” (BOXER, Charles. Op. cit., p. 322). 142
152
apenas as alianças entre os luso-brasileiros e os chefes indígenas, por exemplo, como também o grande prestígio que pequenos líderes locais da fronteira sul possuíam pela capacidade em arregimentar um grande número de homens armados, mesmo não estando entre os mais ricos da região.143 Portanto, ao invés de pensar nas elites locais e regionais do período reservadas aos seus projetos meramente periféricos, proponho, como já enunciei na introdução desta tese, um outro modelo onde uma pequena parcela das elites locais– uma elite dentro da elite – conseguia ocupar este espaço exatamente pelo tipo diferencial de relações sociais que mantinha com os principais centros econômicos e políticos, no caso aqui proposto o Rio de Janeiro, e pelos recursos materiais e imateriais que concentrava. Ao dar este salto, este estrato social transformava-se em elite regional, mas sem deixar de desprender-se dos interesses de sua comunidade, embora, em termos de visão de mundo e poder de influência, ele estivesse muito acima dela.
143
GIL, Tiago L. Infiéis Transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. 153
4. UM A C I DADE ATLÂ
NTI CA
: A POPULAÇÃO PELOTENSE, SUA
ESTRATIFICAÇÃO SOCIOECONÔMICA E A IMIGRAÇÃO ESTRANGEIRA DURANTE O AUGE E A DECADÊNCIA DAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS (1850-1890) A nossa melhor colônia é o Brasil, depois que deixou de ser colônia nossa
Alexandre Herculano
A dona Felisbina Antunes da Silva era esposa do coronel Anibal Antunes Maciel, um dos homens mais ricos e poderosos da Pelotas oitocentista. Quando ela faleceu, em 1871, o casal teve seu patrimônio avaliado em 1.893:256$602 réis. Proprietários de 159 escravos, ambos também possuíam casas na cidade, uma charqueada, 3 embarcações de grande porte e 5 estâncias no Uruguai, onde pastavam mais de 25 mil cabeças de gado, além de outros bens.1 A fortuna da dona Felisbina Antunes da Silva era 7.898 vezes maior que a fortuna, se é que se pode chamar assim, de Felisbina Francisca Domingues. Pobre Felisbina. Não bastasse possuir como único bem uma casinha “em ruínas”, ainda tinha uma dívida de 246$600 réis, o que
comprometia em mais de ¾ o seu pequeno patrimônio. Das diversas jóias que a Felisbina rica possuía, apenas uma já seria o suficiente para saldar este débito. O anel de ouro com pedras de brilhantes, por exemplo, equivalia a quase cinco vezes o valor das dívidas da Felisbina pobre. Para entender melhor o comportamento social da elite charqueadora pelotense é necessário conhecer a população do município, sobretudo aqueles grupos que orbitavam ao redor das charqueadas e as pessoas que viviam na cidade– palco de ostentação do luxo e riqueza das principais famílias da localidade e onde os charqueadores residiam nas épocas de entressafra. Nessas ocasiões, enquanto sua numerosa escravaria era empregada em diferentes serviços, os mesmos, juntamente com suas famílias, desfrutuvam dos muitos espaços de lazer que a cidade oferecia, compartilhando com estrangeiros de diferentes classes sociais a vida urbana que cada vez mais se disseminava por Pelotas. Neste sentido, tendo em vista a pluralidade de pessoas e grupos sociais que formavam a população pelotense, uma divisão da mesma entre ricos e pobres seria tão ingênua quanto uma divisão entre senhores e escravos. A Pelotas da segunda metade do oitocentos apresentava uma estratificação social com certo
1
Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS). 154
nível de complexidade que não deve ser desprezada. Entre a Felisbina rica e a Felisbina pobre havia muitas pessoas de diferentes condições sociais e econômicas. É certo que a economia pelotense era muito mais que um aglomerado de galpões de charquear. Entretanto, a cidade, enquanto espaço privilegiado das relações sociais de grande parte dos pelotenses, só tornara-se uma realidade possível por conta das charqueadas erigidas às margens dos principais rios do município.2 Boa parte das atividades econômicas locais tinham significativas relações com as charqueadas, como a criação de gado, a produção de gêneros agrícolas, o grande e o pequeno comércio, o artesanato e os demais serviços. A economia charqueadora gerava impostos para o município e a província, alimentava o tráfico de escravos, fornecia matéria-prima para as fábricas locais (como sebo, graxa, ossos e couros), empregava um grande número de marinheiros e trabalhadores eventuais e das famílias charqueadoras saíam os médicos, os advogados, os juízes e os políticos que, simplesmente, conectavam a cidade com o mundo exterior. Os anos 1850 a 1890, analisados neste capítulo, marcam um maior desenvolvimento socioeconômico de Pelotas se comparado aos anos que precederam a Revolta Farroupilha. Este período abarca não apenas o auge da indústria charqueadora escravista, como também o início da sua decadência. São entre estas décadas que a sociedade escravista pelotense encontra a sua fase mais madura atingindo um desenvolvimento pleno da economia e sua elite é alçada à alta política, recebendo títulos de nobreza, acumulando uma riqueza nunca antes vista na localidade. Por volta da década de 1880, as charqueadas completavam um século de existência e as famílias fundadoras do povoado ainda possuíam os seus descendentes residindo no município. Portanto, este capítulo busca perceber como os charqueadores se situavam no interior da complexa pirâmide social que se constituiu neste período, além dos diversos grupos que ocupavam os muitos degraus desta mesma hierarquia.
4.1 ESTRUTURA SOCIAL E ECONÔMICA DA SOCIEDADE PELOTENSE A PARTIR DA ANÁLISE DOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM Para obter uma melhor compreensão acerca da distribuição da riqueza na sociedade pelotense na segunda metade do século XIX, analisei os patrimônios avaliados em todos os inventários post-mortem, num intervalo de 5 em 5 anos, entre 1850 e 1890. Esta triagem 2
ARRIADA, Eduardo. 1994.
Pelotas:
gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém literário, 155
resultou num corpo documental de 302 processos. Entretanto, muitos não tiveram prosseguimento ou não apresentaram a avaliação dos bens de forma completa, restando 256 documentos.3 É sabido que os inventários post-mortem sobre-representam as camadas mais abastadas da população analisada, pois não oferecem um mesmo tratamento aos mais pobres da sociedade, cujos bens praticamente não eram passíveis de serem inventariados. Paradoxalmente, como já evidenciaram João Fragoso e Renato Pitzer, é mais fácil termos acesso à população escrava da localidade, pois os mesmos eram propriedade dos inventariados e como tal deviam ser arrolados e avaliados, do que “às camadas mais miseráveis dos homens livres pobres”. 4
Entretanto, isto não invalida a utilização desta fonte documental para a análise pretendida. Com ressalvas e cruzando-se com outras fontes documentais ela pode servir para o estudo dos estratos sociais mais pobres, mas certamente é privilegiada para investigar a elite econômica de determinada região e os graus de concentração das fortunas. Neste sentido, os inventários tornam-se uma fonte privilegiada, pelo seu caráter massivo e recorrente. No primeiro, ele pode revelar a diversidade entre os grupos sociais da região analisada e no segundo, ele oferece uma visão dinâmica da mesma, ao longo do tempo, com suas mudanças 5
e permanências. A partir da observação dos patrimônios inventariados é possível perceber que a riqueza estava concentrada nas mãos de poucas pessoas. Os 10 indivíduos mais afortunados, ou 3,9% dos inventariados, somavam 611.287 £, ou 53,8% do total avaliado. 6 Entre estas pessoas do topo da hierarquia socioeconômica estavam 5 charqueadores, 3 estancieiros e 2 comerciantes. A Tabela 4.1 permite uma visualização mais detalhada desta concentração de riqueza no município. A base desta pirâmide socioeconômica revela que 73,8% dos inventariados 3
Esta documentação está sob a guarda do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS. FRAGOSO, João; PITZER, Renato Rocha. Barões, homens livres pobres e escravos - notas sobre uma fonte múltipla. Os Inventários Post-mortem. In: Revista Arrabaldes, n. 2, 1988, p. 37. 5 FRAGOSO, João; PITZER, Renato. Op. cit. A utilização de inventários post-mortem e o seu tratamento 4
quantitativo já tornou-se um método mais que consolidado na historiografia brasileira. Sobre esta e outras possibilidades de pesquisa em História Agrária ver, por exemplo, LINHARES, Maria Yedda. História Agrária. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 165-184. Também recorro a estas fontes pela inexistência de listas de habitantes para o Rio Grande do Sul, cujos documentos, desde as pesquisas de Marcílio, têm sido muito importante na historiografia brasileira (MARCÍLIO, Maria Luíza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São Paulo: Pioneira/USP, 1973). 6 Todos os valores em mil réis foram convertidos para libras esterlinas. Tal método, comum entre os historiadores que realizam este tipo de análise ao estudar a economia brasileira do período, tem em vista diminuir as oscilações de valores da moeda brasileira e favorecer uma comparação entre períodos diversos, uma vez que a moeda inglesa era mais estável. A tabela de conversão utilizada foi a de MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil.São Paulo: Brasiliense, 1982, Anexos. 156
detinham apenas 9,9% dos bens avaliados. Levando-se em conta que os inventários sobrerepresentam as camadas mais ricas da sociedade, conclui-se que a concentração de riqueza era ainda maior, pois uma ampla gama de pobres e despossuídos não é contemplada na documentação.7 Tabela 4.1 - Distribuição das riquezas inventariadas por faixas de fortuna (1850-1890) (em libras e sterlinas) Monte-mor (libras)
Inventários (N.)
Inventários (%)
Fortuna (libras)
Fortunas (%)
Acima de 50 mil De 20 a 50 mil De 10 a 20 mil De 5 a 10 mil De 2 a 5 mil De 1 a 2 mil De 500 a 1 mil De 100 a 500 Menos de 100
5 8 9 18 27 43 39 74 33
1,9 3,1 3,5 7,0 10,6 16,8 15,3 28,9 12,9
421.249 267.225 124.921 123.803 85.969 60.732 28.562 20.784 1.966
37,1 23,6 11,0 10,8 7,6 5,3 2,6 1,8 0,2
Totais
256
100%
1.135.211
100%
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
Esta desigualdade na distribuição das riquezas foi um traço característico da sociedade brasileira desde os tempos coloniais. Analisando inventários post-mortem do Rio de Janeiro, entre 1790 e 1835, João Fragoso e Manolo Florentino observaram que o “agro e cidade
continuaram a apresentar o décimo superior de suas populações detendo cerca de 2/3 da riqueza, com os cinco décimos mais pobres possuindo 4% a 8%”. Os autores verificaram que esta estrutura de concentração também era observada em outras regiões do Vale do Paraíba. 8 Em Lorena, município cafeicultor paulista, 16,7% dos inventariados concentravam 89,5% da riqueza local entre 1830 e 1879. 9 Em Alegrete, município sul-rio-grandense que tinha na pecuária a sua principal base econômica, os 10% mais ricos da década de 1860, concentravam 70% da riqueza. Entre 1825 e 1865, os 50% mais pobres nunca detiveram mais que 10% das 7
Apenas para lembrar o leitor, a população total de Pelotas foi recenseada, em 1858, como possuindo 12.883 habitantes. Em 1872, ela devia ter aproximadamente 25 mil, e em 1890, possuía 41.591 pessoas (FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul (censos do RS de 1803 a 1950).Porto Alegre: FEE, 1981) . 8 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 172; 175-179. 9 MARCONDES, Renato Leite. A Arte de acumular na gestação da economia cafeeira: formas de enriquecimento no vale do Paraíba paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado em Economia. USP, 1998, p. 129-130. Para um estudo sobre a cidade de São Paulo, ver também MELLO, Zélia Cardoso de. Metamorfose da Riqueza, São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1985. 157
fortunas.10 Esta mesma concentração de riqueza pode ser observada em diferentes regiões do Brasil como Minas Gerais, Bahia e Pará, por exemplo.11 Com relação ao perfil do patrimônio dos inventariados, percebe-se que do total de 256 inventários, 149 possuíam imóveis no espaço mais urbano de Pelotas (58,2%) e 142 possuíam imóveis rurais (55,4%). Refinando estes dados, tem-se que 88 inventários (34,4%) possuíam exclusivamente imóveis urbanos e 107 (41,7%) somente rurais. A partir destes índices, é possível considerar que o número de inventariados que residiam na cidade era ligeiramente maior do que o indicado, pois em muitos documentos não foi possível verificar se os proprietários de imóveis urbanos e rurais (61 processos) moravam na cidade, mas é provável que uma parte dos mais ricos o fizesse. A maioria dos charqueadores possuía casas na cidade e lá residia na maior parte do ano, como demonstram diversos documentos cartoriais, como procurações e escrituras públicas, além da sua presença nas listas de qualificação de votantes da paróquia de São Francisco de Paula, a mais urbanizada do município.12 A partir do Gráfico 4.1 é possível verificar que, ao longo do período analisado, houve um aumento dos inventariados que moravam na cidade, o que pode ser um reflexo da crescente urbanização no município. Neste sentido, é provável que um índice próximo dos 40% ou 50% de moradores na 13 cidade devesse ser a realidade pelotense entre as décadas de 1850 e 1880. Analisando dados compilados pela Câmara Municipal da época, Ester Gutierrez verificou que, em 1880, Pelotas possuía 3.348 domicílios na cidade, sem contar os prédios públicos, as casas comerciais, as
10
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 54. 11 Ver, por exemplo, ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.; BATISTA, Luciana Marinho. Muito além dos seringais: Elites, Fortunas e Hierarquias no Grão-Pará (18501870). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2004; MATTOSO, Kátia de Q. Bahia: Século XIX (Uma Província no Império). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992; GRAÇA FILHO, Afonso A. A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais. São Paulo: Annablume, 2003; ALMICO, Rita de Cássia da Silva. Fortunas em movimento: um estudo sobre as transformações ocorridas na riqueza pessoal em Juiz de Fora 1870/1914. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 2001. 12 Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865. Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. 13 Este índice parece ter sido alcançado em décadas anteriores. Em 1822, por exemplo, um memorialista registrou que 50% dos 3.400 habitantes da freguesia de São Francisco de Paula (primeiro nome de Pelotas antes de tornar-se cidade) residiam em 217 prédios urbanos (GUTIERREZ, Ester. Barro e Sangue: mão de obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888). Pelotas: Universitária, 2004, p. 145). O percentual da população urbana certamente oscilou durante o século XIX. Sabe-se que durante a Guerra dos Farrapos (18351845) muitos moradores abandonaram Pelotas. Tendo em vista que a própria cidade foi crescendo e incorporando novos espaços ao seu redor, que as migrações eram intensas e que os limites entre o rural e o urbano eram bastante tênues, estes dados devem ser entendidos como indicadores aproximados. 158
fábricas, os hospitais e as escolas.14 Se cada propriedade possuísse, em média, algo entre 4 ou 5 moradores, a população residente no espaço urbano poderia ser estimada entre 13 mil e 17 15 mil pessoas, o que comporia 44% a 55% da população pelotense na época.
Gráfico 4.1 – Distribuição do número de inventários em urbanos e rurais Pelotas (1850-1890) 25 20 15 10 5 0 1850 1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 1890
Exclusivamente urbanos
Exclusivamente rurais
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
Tal índice de moradores na cidade era alto para o contexto rio-grandense da época. Luís Augusto Farinatti encontrou 11% de inventários com este perfil para Alegrete, entre 1825 e 1865, e Helen Osório localizou 26% para toda a capitania, entre 1765 e 1825. 16 É importante repetir que esta urbanização possuía um caráter incipiente e que os limites entre o urbano e o rural não eram muito claros.17 Neste sentido, este “urbano” deve ser entendido a partir dos parâmetros da época e num contexto regional. A vida na cidade era compartilhada por boa parte da população se comparada aos outros municípios do Rio Grande do Sul e talvez só encontrasse uma correspondente em Porto Alegre e Rio Grande. Diante do olhar dos viajantes e cronistas que escreveram sobre a província, a cidade de Pelotas se destacava diante das outras, chamando a atenção, inclusive, de um membro da família real que a visitou nos anos 1860. Conforme o Conde D’Eu: 14
GUTIERREZ, Ester. Op. cit. Contudo, a média de moradores por habitação parecia ser maior. Os 14.762 habitantes da paróquia de São F. de Paula, a mais urbana de Pelotas, residia em 1829 “casas”, o que rusu lta numa média de 8 moradores por habitação. Não me arrisco a considerar estes índices como equivalentes ao espaço da cidade, porque parte dos moradores da paróquia residiam nos limites rurais da mesma. Mas caso esta média fosse considerada, o percentual de moradores na cidade ultrapassaria os 60% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br). 16 FARINATTI, Luis Augusto. Op. cit; OSÓRIO, Helen. Op. cit. 17 Ver, por exemplo, ARRIADA, Eduardo. Op. cit. 15
159
Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e próspera cidade. As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem (fenômeno único na província), sobretudo os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com as suas elegantes fachadas, dão idéia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a cidade predileta do que chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode empregar a palavra aristocracia falando-se de um país do novo continente. Aqui é que o estancieiro, o gaúcho cansado de criar bois e matar cavalos no interior da campanha, vem gozar as onças e os patacões que ajuntou em tal mister. (...) O rápido desenvolvimento de Pelotas é um fato notável que não encontra análogo na província e que pressagia a esta cidade um futuro considerável.18
O Conde D’Eu ainda finalizou escrevendo que, ao invés de Porto Alegre, era Pelotas que deveria ser a capital da província. A ênfase nesta urbanidade não se trata de algo simplório para os objetivos desta pesquisa. A vida urbana, como demonstrarei posteriormente, teve fundamental importância nas práticas sociais da elite charqueadora, de como ela se via e de como gostava de ser vista. No entanto, a Tabela 4.2 demonstra que, apesar da maioria dos inventários serem urbanos (ou possuírem imóveis exclusivamente urbanos frente aos exclusivamente rurais), o peso dos investimentos em bens agrários era muito maior. Até a década de 1870, nunca os imóveis rurais, os escravos e os animais formaram menos de 53% do total dos patrimônios avaliados.19 A diminuição dos seus valores nos anos 1880 e em 1890 eram resultado não apenas do processo de emancipação dos escravos, da sua abolição e da crise das charqueadas, como também do nítido aumento da urbanização e da valorização dos imóveis urbanos que mais do que dobraram a sua representatividade no interior dos bens avaliados. Portanto, a riqueza material do município estava principalmente vinculada às atividades rurais. Traço distinto podia ser verificado na análise dos inventários post-mortem dos habitantes do Rio de Janeiro, entre 1797 e 1870. Neste intervalo de tempo, os percentuais em imóveis urbanos ficaram sempre entre 24% e 38%, as apólices e ações atingiram 13,1% e 18,6% em 1860/70 e os bens rurais somados aos escravos, em 1870, foram inferiores a 16% – denotando um perfil muito mais urbano e mercantil do que Pelotas. 20 Portanto, a urbanidade pelotense era regionalmente considerável, como já argumentei.
18
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.São Paulo: USP, 1981, p. 130-131. Em Alegrete, o percentual destes bens formava mais de 80% dos patrimônios inventariados entre 1831 e 1870 (FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 51). Algumas pesquisas vêm demonstrando que após a Lei de Terras, em 1850, o preço das mesmas sofreu uma grande valorização, o que acabava por se refletir na composição das fortunas dos inventariados rio-grandenses. Como, por exemplo, GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPG-História da UFRGS, 2005. Sobre o mesmo tema ver também CRISTILLINO, Cristiano L. Litígios ao Sul do Império: A Lei de Terras e a consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese de Doutorado. Niterói: UFF, 2010. 20 FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades 19
econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. 160
Tabela 4.2 – Perfil do patrimônio dos inventariados em Pelotas (1850-1890) (%)
1850/55 1860/65 1870/75 1880/85 1890
Imóveis rurais
Imóveis urbanos
Dinheiro
Dívidas ativas
Ações
Escravos
Animais
40,5 30,0 32,4 36,7 40,3
11,8 10,5 21,1 22,2 26,5
11,6 12,4 6,0 8,6 7,2
19,5 9,4 14,4 9,4 12,1
0,7 0,4 1,9 6,7 6,1
7,9 20,5 10,3 4,5 -
6,4 9,0 11,1 8,2 0,9
Jóias 0,05 0,3 0,2 0,02 0,1
Dívidas Total Passivas Invent. 0,8 4,4 2,5 16,6 10,2
25 41 65 70 55
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
Tanto os valores em imóveis urbanos, quanto em imóveis rurais estavam concentrados nas mãos de poucas pessoas. O total dos investimentos em todos os imóveis somava 391.871£ em imóveis rurais (sendo 94.247£ em propriedades no Uruguai) e 203.899£ em urbanos. Levando-se em conta que dos 256 inventários somente 8 possuíam terras avaliadas no Uruguai, já é possível perceber, comparando os montantes discriminados, o quão valorizados eram os campos no país vizinho. Talvez a grande diferença entre os possuidores de imóveis urbanos e rurais é que a maioria dos proprietários urbanos possuía os seus imóveis na cidade de Pelotas, enquanto um montante significativo dos imóveis rurais inventariados, e dentre eles os de maior valor, estavam localizados em outros municípios, como demonstro a seguir.21 Inicio pelas propriedades rurais. Apesar de Pelotas também possuir grandes fazendas, elas não atingiam as dimensões, a quantidade e a qualidade dos pastos das que formavam a principal zona pecuarista da província. As grandes estâncias de criação da região da campanha, no oeste e sudoeste do Rio Grande do Sul, formavam o principal espaço econômico da pecuária rio-grandense e dividiam a paisagem agrária com pequenos e médios proprietários, além dos arrendatários.22 Com pastagens melhores, as terras do norte do Uruguai também eram cobiçadas por estes grandes proprietários. Dos 256 inventários entre 1850 e 1890, 142 possuíam imóveis rurais. Destes, 111 tinham estabelecimentos exclusivamente em Pelotas e 14 possuíam imóveis rurais exclusivamente fora de Pelotas.
In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 144 21 Dos 149 inventários com imóveis urbanos, somente 12 os possuíam em outro município, além dos existentes em Pelotas. As localidades em que se encontravam os imóveis urbanos são Alegrete, Arroio Grande, Bagé, Cangussu, Dom Pedrito, Livramento, Piratini, Rio Grande, Santa Vitória do Palmar e São Gabriel. Portanto, não foi localizado nenhum investimento em imóveis em Porto Alegre e nem na região mais ao norte da Província. 22 Como demonstraram GARCIA, Graciela B. Op. cit; FARINATTI, Luís Augusto. Op. cit.; LEIPNITZ , Guinter T. Entre contratos, direitos e conflitos: arrendamentos e relações de propriedade na transformação da campanha rio-grandense: Uruguaiana (1847-1910). Dissertação de Mestrado. PPG-História da UFRGS, 2010. 161
Além destes, outros 17 detinham terras tanto em Pelotas, quanto em municípios vizinhos. 23 Destes 17, outros 5 também possuíam campos de criar no Uruguai. Os 10 maiores investimentos econômicos em propriedades rurais (excluindo as propriedades localizadas no Uruguai) somavam 199.847 £, de um total de 297.624 £. 24 Ou seja, 10 inventários (7% dos 142 inventários com propriedades rurais) detinham 67% dos valores investidos em imóveis rurais. Trata-se de uma concentração fundiária bastante alta. Entre os 10 inventariantes mencionados, estão 6 charqueadores, 2 filhos de charqueadores e 1 genro de charqueador. Três deles possuíam propriedades somente em Pelotas e 7 tanto em Pelotas, quanto em municípios vizinhos. Outros 3 também eram donos de estâncias no Uruguai. Tratando-se de um município próximo ao litoral da província e com traços mais urbanizados do que os demais, é necessário matizar melhor esta concentração de imóveis rurais. Como já mencionei, os 3 distritos rurais de Pelotas possuíam uma paisagem agrária distinta da região da campanha, prevalecendo os matos das serras dos Tapes e da Buena, além de outras pequenas e médias propriedades. Mesmo assim, o município possuía estâncias dedicadas à criação de gado, apesar dos seus campos e pastos não serem tão valorizados como os da campanha e do norte do Uruguai, por exemplo. 25 Daí o fato de que as grandes fortunas rurais inventariadas incluíam propriedades fora do município e do próprio país, onde as dimensões, os valores e as qualidades das mesmas eram maiores. Basta uma comparação entre os valores para se ter uma ideia mais detalhada. Os imóveis rurais localizados em Pelotas estão presentes em 128 inventários e somam 173.610£. Já as propriedades rurais em outros municípios do Rio Grande do Sul e no Uruguai estão presentes em apenas 27 inventários, mas totalizam 218.261£.26 Embora também possuíssem terras em Pelotas, os mais ricos investiam o seu capital em estâncias de dimensões muito maiores e com uma melhor qualidade de pasto
23
Os locais em que os proprietários possuíam imóveis rurais eram Piratini (5 inventários), Bagé (3), Canguçu (3), Santa Maria (2), Rio Grande (5), Arroio Grande (1), Camaquã (2), Livramento (2), Alegrete (1), Cacimbinhas (1), Uruguaiana (1), São Gabriel (1), Santa Vitória do Palmar (1), Dom Pedrito (1), Viamão (1), Encruzilhada (1), Caçapava (1), Jaguarão (1). Ver Mapa 4.1. Excluí os bens no Uruguai deste cálculo da concentração porque eles apresentam um valor muito alto, o que iria distorcer os dados. 25 Em 1858, o governo provincial organizou um mapa estatístico reunindo a quantidade total de animais vacuns por município. Pelotas, que teve somente os gados vacuns do 3º e 4º distrito recenseados, possuía um rebanho total estimado em 59.600 reses, ficando entre os últimos municípios em quantidade de animais. As localidades com os maiores rebanhos eram Alegrete com 762.232 reses e Bagé com 531.640 reses ( Mapa numérico das 24
estâncias existentes dos diferentes municípios da província, de que até agora se tem conhecimento oficial, com declaração dos animais que possuem e criam, por ano, e do número de pessoas empregadas no seu custeio Fundo Estatística, maço 02, AHRS). Agradeço a Leandro Fontella pela digitalização deste documento. 26
Caso a comparação levasse em conta o tamanho das propriedades, provavelmente a diferença se manteria, mas uma grande parcela dos imóveis não possuía as suas dimensões discriminadas, o que dificultou este tipo de análise. 162
localizadas fora dos limites do município. Eis aqui uma primeira diferenciação entre os que eram capazes de realizar esta inversão e os que não possuíam capitais para tanto.
Figura 4.1 – Mapa da Província do Rio Grande do Sul (1875)
Fonte: Adaptado de FELIZARDO, Julia Netto (planejado e organizado pelo cart.) Evolução – Divisão de administrativa do Estado do Rio Grande do Sul (Criação dos municípios), IGRA
Geografia e cartografia e Fundação Economia e Estatística de Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RSde1803-1950. Porto Alegre, 1981.
Selecionando somente os inventários com propriedades rurais em Pelotas, sem somar os valores dos bens fundiários de outros municípios e do Uruguai, têm-se uma grande redução nos valores totais, mas a concentração fundiária se mantém. Os 10 maiores investimentos rurais realizados somente nas terras do município somam 96.147 £, ou seja, 55% do total dos 163
valores dos imóveis rurais de Pelotas. No entanto, 7 dos 10 grandes proprietários com terras em Pelotas também estão entre os 10 com terras fora de Pelotas. Portanto, tratava-se de uma elite economicamente bem sedimentada e que variava seus investimentos rurais geograficamente, conseguindo manter-se no topo concentrador. Destes 7 que se situavam entre os maiores proprietários com terras em Pelotas e em municípios vizinhos temos 5 charqueadores, 1 filho de charqueador e 1 genro de charqueador. Tendo em vista que os imóveis rurais compunham aproximadamente 40% dos patrimônios inventariados e que junto com os escravos e os animais eles ultrapassavam os 50%, pode-se concluir que os charqueadores e seus familiares ocupavam uma posição privilegiada nesta hierarquia econômica. A mesma concentração encontrada entre os imóveis rurais é verificada entre os urbanos. Do total de 203.899£ investidas nestes bens, cerca de 91.318£, ou 44,7%, pertenciam a 10 pessoas (4% de todos os inventários). Estes 10 indivíduos possuíam um patrimônio urbano que somado reunia 75 casas, 44 terrenos, 9 sobrados, 6 armazéns e 5 meias-águas. 27 Neste pequeno grupo encontram-se 2 charqueadores e 2 genros de charqueadores. Dos 10 charqueadores presentes no total dos inventários aqui analisados 8 possuíam casas no espaço urbano pelotense. A cidade era um local necessário para estes empresários. Era onde fechavam seus negócios com comerciantes locais e estrangeiros, mas também onde recolhiam informações sobre a política e a economia provincial e nacional e ostentavam sua riqueza andando em carruagens e frequentando o teatro, os clubes e associações da cidade, como descreverei posteriormente.28 Associados às estâncias de criação, estavam os rebanhos de gado vacum, matériaprima fundamental para as charqueadas. Pelotas também possuía grandes criadores, muito embora as melhores fazendas destes estivessem localizadas fora do município (como já mencionei). Nos 52 inventários cuja quantidade de reses de criar foi arrolada, ou seja, 20,3% dos totais inventariados, tem-se 103.191 animais. Assim como os outros bens até agora descritos, a maioria do gado também estava nas mãos de poucas pessoas. A análise da Tabela 4.3 demonstra que 4 indivíduos, ou 7,7% dos proprietários de reses de criar, possuíam 50% do total dos rebanhos inventariados. Aumentando-se o recorte analítico para os 10 maiores 27
Esta concentração já vinha de décadas. Em 1822, por exemplo, Gonçalves Chaves estimou os valores das 217 casas da povoação em 342:500$000, destacando que 37 delas correspondiam a 47% deste montante (CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit). 28 Ver, por exemplo, MULLER, Dalila. “Feliz a população que tantas diversões e comodidades goza”: Espaçõs de sociabilidade em Pelotas (1840-1870). Tese de Doutorado. PPG-História da Unisinos, 2010. 164
criadores de gado vacum, verifica-se que os mesmos possuíam mais de 90% dos animais. Entre estes 10 maiores criadores estavam 5 charqueadores, o que novamente evidencia a variedade de investimento dos mesmos. Os números também demonstram que os maiores proprietários de gado também eram donos de estâncias fora do município de Pelotas, incluindo o Uruguai, onde melhores pastos serviam para engordar o gado. Desnecessário dizer que os pequenos proprietários criavam seus animais em modestas terras nos distritos rurais do município ou nos campos de terceiros. Tabela 4.3 – Concentração dos rebanhosvacuns nos inventários e posse de fazendas fora de Pelotas Tamanho do Inventários % Reses % rebanho + de 10.001 reses 4 7,7 51.536 50,0 5.001 a 10.000 reses 6 11,5 41.402 40,1 2.001 a 5.000 reses 1 1,9 2.552 2,4 1.001 a 2.000 reses 2 3,9 3.500 3,5 501 a 1.000 reses 2 3,9 1.430 1,3 101 a 500 reses 11 21,1 1.938 1,8 Até 100 reses 26 50,0 833 0,9 Total 52 100% 103.191 100% Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
Prop. outros municípios 100,0% 66,6% 50,0% 50,0% 27,2% 15,3% -
Prop. no Uruguai 100,0% 33,3% -
A extinção do tráfico atlântico de escravos em 1850 constituiu-se em uma ameaça para aqueles que dependiam da mão de obra cativa na condução de suas atividades econômicas. A alta dos preços dos escravos na década de 1860, como outros autores já trataram, foi consequência da diminuição da oferta de mão de obra escrava e da corrida de comerciantes para adquirir cativos e revendê-los aos grandes centros agroexportadores do sudeste.29 De acordo com o Gráfico 4.2, a média dos preços dos escravos masculinos em idade produtiva quase triplicou entre 1850 e 1865. No primeiro período, eles somavam 570$ e quinze anos depois chegavam à 1:617$. A queda dos preços se iniciou anos depois, chegando a 857$ em 1880 e 400$ em 1885, quando a onda abolicionista já havia libertado a maioria dos escravos em Pelotas.30 Nos primeiros 10 anos, homens e mulheres cativas equivaliam-se em preços, 29
Como, por exemplo, BERGAD, Laird W. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais, 720-1888. Bauru: EDUSC, 2004; SLENES, Robert W. The demography and economics of Brazilia n slavery: 1850-1888. Tese de Doutorado, Stanford: Stanford University, 1976; CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao Sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987; SCHEFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro (1849-1888). Dissertação de Mestrado. PPG-História da UFSC, 2006. 30 Para a idade produtiva entre 15 e 40 anos utilizei BERGAD, Laird W. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru: EDUSC, 2004, p. 246-259. No capítulo seguinte analiso somente a escravidão nas charqueadas, abrangendo na idade produtiva os cativos até os 45 anos, realizando também uma análise dos preços em libras esterlinas. 165
mas a partir da década de 1860, acentuou-se um distanciamento em favor dos homens. A grande queda do valor destes e a quase aproximação com as mulheres nos últimos dois períodos indicam que a escravidão estava com seus dias contados.
Gráfico 4.2 – Preço dos escravos entre 15 e 40 anos (1850-1885)– em mil réis
1800 1600 1400 1200 1000 800 600 400 200 0 1850
1855
1860
1865
Mulheres
1870
1875
1880
1885
Homens
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
A diminuição da oferta dos escravos e o aumento do seu preço contribuiu para ampliar a concentração dos cativos nas mãos de poucos senhores, como demonstra a Tabela 4.4. Dos 201 inventários post-mortem, entre 1850 e 1885, 81 (40%) não possuíam cativos arrolados entre seus bens, o que reforça ainda mais a mencionada concentração dos mesmos no interior da população. Os 120 restantes somavam 1.304 escravos inventariados. No entanto, 13 deles, ou 10,7 %, detinham 54,5% do total da escravaria. Já os proprietários de 5 ou menos escravos, que compunham 60% dos inventariados, possuíam apenas 14,6% dos cativos. Entre os 13 maiores proprietários de escravos estavam 7 charqueadores. Eles eram os únicos a possuírem mais de 100 cativos e formavam a metade dos que detinham entre 51 e 100 cativos. Ainda pode-se enfatizar que o patrimônio acumulado em vida era diretamente proporcional à posse de escravos. Destes 13 maiores escravistas pelotenses, 8 estavam entre os 10 mais ricos inventariados. Numa pesquisa mais aprofundada, Bruno Pessi estudou a posse de escravos em todos os inventários post-mortem de Pelotas entre 1850 e 1884. Reunindo 1.077 processos, o autor verificou que 712 deles (66,1%) possuíam cativos arrolados entre seus bens e que 42
166
(5,9%) eram charqueadores. Estes empresários eram responsáveis pela posse de 2.244 31 escravos, mais de 1/3 de todos os escravos arrolados nos inventários pelotenses (34,6%).
Além disso, os dados apresentados confirmam o que diversos autores identificaram para outras áreas do Brasil no mesmo período, ou seja, embora houvesse uma nítida concentração de cativos nas mãos de poucas pessoas, a posse dos mesmos estava disseminada entre vários setores sociais da população, incluindo os pequenos proprietários.32 Entretanto, o fim do tráfico e o aumento do valor dos cativos ajudou a dificultar o acesso destes ao tráfico inter-provincial e intra-provincial como compradores, reservando-lhes o papel de vendedores. Tal fenômeno trouxe dificuldades econômicas para grande parte das famílias mais pobres e neste processo, os grandes senhores lentamente foram drenando parte dos escravos dos pequenos.33 Um dos reflexos deste processo foi o aumento do número de inventários sem escravos ao longo do período estudado. Conforme Pessi, os não possuidores de escravos compuseram 6,1% de todos os inventariados no quinquênio de 1850-1854, 31,6% no de 18651869, e 54,8% no de 1880-1884.34
Tabela 4.4 – Concentração dos plantéis de escravos entre os inventariados (1850-1885) Tamanho do plantel 1a2 3a5 6 a 10 16 a 25 26 a 50 51 a 100 Mais de 100 Total
Número de inventários
% de inventários
Número de escravos
% de escravos
31 41 18 17 7 4 2 120
25,8 34,2 15,0 14,3 5,8 3,3 1,6 100%
41 150 138 263 223 271 218 1.304
3,1 11,5 10,7 20,2 17,0 20,8 16,7 100%
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
31
PESSI, Bruno S. Entre o fim do tráfico e a abolição: a manutenção da escravidão em Pelotas, RS, na segunda metade do século XIX (1850-1884).Dissertação de Mestrado em História, USP, 2012., p. 72. 32 Isto já foi mencionado no capítulo anterior para a primeira metade do século. Para dados relativos às décadas posteriores à extinção do tráfico atlântico em todo o Brasil ver MARCONDES, Renato Leite. Desigualdades regionais brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na década de 1870. Tese de livre-docência. Ribeirão Preto, USP, 2005. 33 Ver, por exemplo, VARGAS, Jonas M. Das charqueadas para os cafezais? O tráfico inter-provincial de escravos envolvendo as charqueadas de Pelotas (RS) entre as décadas de 1850 e 1880. In: XAVIER, Regina L. (Org.). Escravidão e liberdade: temas, problemas e perspectivas de análise. São Paulo: Alameda, 2012. 34 PESSI, Bruno S. Estrutura da posse e demografia escrava em Pelotas entre 1850 e 1884. In: Anais do V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 14 167
A concentração de bens também era visível no que diz respeito ao dinheiro em moeda e às dívidas ativas. A quantia total de dinheiro avaliada nos 256 inventários foi de 101.495£, mas 73,6% deste montante estava nas mãos de somente 10 pessoas (3,9% dos inventariados), sendo que 3 eram charqueadores e outros 3 eram parentes de outros charqueadores. Com relação às dívidas ativas, o mesmo foi verificado. O valor total destes bens somados era de 153.089£, mas 62% deles pertenciam a 6 indivíduos, ou 2,3% dos inventariados, dentre os quais havia 2 charqueadores. A metade dos maiores credores também estava presente entre os 10 maiores possuidores de dinheiro. Portanto, um grupo diminuto parecia concentrar a liquidez na localidade e na ausência de dinheiro, eles eram capazes de possuir uma fatia considerável do crédito.35 Tal concentração torna-se ainda mais notável quando se percebe que muitos dos maiores senhores de escravos e animais também surgem no topo da lista dos mais endinheirados e dos principais proprietários de imóveis rurais e urbanos. Desnecessário dizer que os charqueadores e seus parentes eram os que mais se destacavam no interior deste grupo. Mas entre eles e os trabalhadores escravos havia uma série de categorias socioeconômicas que ainda é preciso investigar melhor, como demonstro a seguir.
4.2 UMA CIDADE ATLÂNTICA: PERFIL SOCIO-OCUPACIONAL DE UM ESPAÇO URBANO REPLETO DE ESTRANGEIROS Muito já se escreveu sobre a Pelotas do século XIX, mas ainda se sabe pouco sobre a sua população e como ela estava estratificada em termos sociais e econômicos. As páginas anteriores evidenciaram uma profunda concentração dos bens materiais nas mãos de uma elite privilegiada. No entanto, Pelotas era muito mais do que um núcleo charqueador e não estava polarizada entre os senhores da carne e seus escravos. No final dos anos 1870, o município possuía quase 30 mil habitantes e a cidade havia se tornado o cenário de um grande número de profissionais de diferentes áreas, atingindo um notável grau de desenvolvimento econômico e cultural para os padrões da província. Mas quem eram as pessoas que compartilhavam daquela época de auge? Para tentar matizar os estratos sociais que compunham a população pelotense no período tomei uso de diferentes fontes documentais. Além dos inventários post-mortem, foram consultadas listas de qualificação de votantes, censos e estatísticas diversas. 35
Estes números tornam-se mais importantes ainda numa sociedade com pouca moeda em circulação e cujas instituições bancárias atendiam uma pequena parte da população. 168
36 Apesar das já conhecidas limitações que envolvem o censo imperial de 1872 , ele é o
documento mais abrangente no que diz respeito ao total da população da época, já que os seus 37 indicadores não excluem escravos, mulheres, crianças e idosos. No entanto, Pelotas
constitui-se num caso diverso da maioria dos municípios rio-grandenses recenseados na época, uma vez que uma de suas quatro paróquias não teve os seus dados populacionais arrolados. Por conta disto, e de sub-registros ocorridos no recenseamento, a população escrava do município foi bastante subestimada. 38 Somando as estatísticas das três paróquias recenseadas tem-se um total de 21.258 habitantes, sendo que a de São Francisco de Paula, com 14.762 almas, era responsável por mais de 2/3 deste total. Contudo, apesar dos problemas desta fonte, creio que os dados contidos no censo são bastante favoráveis para o estudo da mencionada paróquia – que era a que concentrava todos os habitantes da cidade e de seus subúrbios próximos. Como as estatísticas referentes aos escravos são consideradas as mais imprecisas, analisarei somente a população livre. Isto vai ao encontro dos objetivos deste capítulo, pois é exatamente a caracterização dos setores intermédios da sociedade pelotense que estou buscando analisar.39 A paróquia de São Francisco de Paula possuía 12.376 habitantes livres, sendo 6.799 homens e 5.577 mulheres. Deste grupo, 9.021 foram40classificados como brancos, 1.347 como pardos, 1.848 como pretos e 160 como caboclos. Comparando estes dados com os do recenseamento realizado no 1º distrito de Pelotas, cerca de 40 anos antes, percebe-se que a sua paróquia mais urbana alterou significativamente o seu perfil social. Entre 1833 e 1872, a população total (livre e escrava) residente na localidade mais urbana de Pelotas aumentou de 36
BOTELHO, Tarcísio R. População e nação no Brasil do século XIX. 1998. Tese de Doutorado em História. USP, 1998; RODARTE, Mário S.; SANTOS JR., José M. A estrutura ocupacional revisitada: uma proposta de correção dos dados do Recenseamento Geral do Império de 1872. Anais do XIII Seminário de Economia Mineira. Diamantina, 2008, p. 1-21; MONASTERIO, Leonardo. O Rio Grande do Sul de 1872: análise setorial da ocupação nos municípios. In: Anais do II Encontro de Economia Gaúcha. Porto Alegre, 2004, CD-ROM. 37 Censo Geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br). 38 De acordo com o Censo de 1872, as três paróquias recenseadas somariam 3.590 escravos. No entanto, o registro de matriculas de escravos para o ano de 1873 marcou 8.141 cativos, ou seja, mais do que o dobro recenseado. Para maiores detalhes destes dados, ver VARGAS, Jonas M. Op. cit. Não é possível saber o número de escravos na paróquia de N. S. da Conceição do Boqueirão (a que não foi recenseada em 1872), mas é certo que ela não possuía um contingente tão grande de cativos ao ponto de completar o restante que faltava para chegar aos mais de 8 mil escravos. O mais provável é que as outras duas paróquias rurais também tenham apresentado sub-registros. Começo a desconfiar que parte dos proprietários pelotenses criavam empecilhos neste sentido. Na relação de fazendeiros de 1858 mencionada anteriormente, o 2º distrito inteiro não teve seus trabalhadores e seu gado registrados pelas autoridades. Se esta prática for confirmada, é possível que haja sub-registro até mesmo nas estatísticas do censo provincial de 1858 (o que ajudaria a explicar a diminuição da população pelotense se comparada ao censo de 1833, como demonstrei no capítulo 3). 39 A população escrava no mesmo período será tratada no capítulo posterior. 40 Somados os livres com os escravos, a população classificada como preta era de 3.167 e a parda de 2.404. Entretanto, como o número de escravos da paróquia parece estar sub-representado, é possível que a população de cor na mesma ultrapassasse os 6 mil habitantes. 169
4.707 para 14.762 pessoas. Se os dados referentes aos escravos estiverem corretos, o número de cativos teria aumentado de 2.202 para 2.386. No entanto, como a população livre cresceu bastante, o percentual de escravos teria caído de 46,8% para 16,2%, mas é provável que a queda tenha sido um pouco menor, visto o já comentado sub-registro de escravos no censo. No que diz respeito à cor dos seus habitantes, se em 1833 o percentual da população classificada como branca e residente na vila era de 43,3%, em 1872, conforme o indicado acima, ela saltou para 72,7%.41 Apesar do número de escravos ter continuado crescendo no município de Pelotas até meados da década de 1870, é notável que a população branca aumentou em taxas maiores. Um dos motivos deste fenômeno, comum em todo o Brasil, foi a extinção do tráfico atlântico em 1850. No entanto, este branqueamento urbano, ao menos na cidade de Pelotas, também se explica pela expressiva entrada de imigrantes na urbe. 42 O desenvolvimento econômico da região atraiu pessoas de diversas partes da província, de outras regiões do Império, mas, sobretudo, de outros países. Se em 1833 somente 6,3% dos moradores da vila foram identificados como estrangeiros, em 1872 a paróquia urbana contava com 20,4% do total da população formada pelos mesmos. Calculando estes dados somente entre a população livre, os mesmos índices teriam aumentado de 11,9% para 24,4%. Em números absolutos, foi um salto de 299 para 3.009 pessoas estrangeiras em menos de 40 anos e num intervalo de tempo que ainda contou com uma longa guerra civil (ocasião em que muitas pessoas retiraram-se da localidade). Contudo, destes 3.009 estrangeiros, 361 eram africanos livres, diminuindo um pouco a presença dos europeus e americanos brancos no espaço urbano. Mesmo assim, para uma pequena cidade como Pelotas, o aumento do número de estrangeiros em cerca de 9 vezes num intervalo de 4 décadas deve ter resultado num impacto significativo em sua urbe. Excetuando as regiões de colonização alemã da Província, o percentual de estrangeiros entre os habitantes livres da cidade de Pelotas só era inferior à Rio Grande (28,8%) e Itaqui (25,6%) – ambas cidades mercantis, o que explica esta concentração de estrangeiros.43 Na cidade do Rio de Janeiro, em 1890, cerca de 30% da 41
Conforme demonstrei no capítulo anterior, no ano de 1833 a população não branca em todo o município de Pelotas era ainda maior. Somente 31% eram considerados como brancos. Como duas paróquias não foram analisadas no censo de 1872 fica difícil calcular com maior precisão a população branca em toda a Pelotas naquele período. Provavelmente ela tenha se aproximado dos 65% da população total do município, visto o grande número de colonos europeus que foram se fixando em seus distritos rurais a partir do meado do século. 42 Embora a população escrava e a população livre de Pelotas tenham crescido entre os anos 1830 e 1870, o percentual dos cativos em relação ao total caiu bastante. Em 1833, 51% da população pelotense era cativa, enquanto que, em 1858, este índice já havia caído para 37,1% e, em 1872, é provável que tenha ficado entre 30% e 33%. 43 Itaqui, no outro extremo da província, também possuía uma importante comunidade de comerciantes estrangeiros que, por meio do rio Uruguai, movimentava amplos negócios com os países do Prata. Ver, por 170
população era estrangeira, sendo que 70% destes eram portugueses.44 Nesta época, em outras capitais de província e grandes cidades do Império o índice de estrangeiros era bem menor. 45 Mesmo que em proporções populacionais muito menores, Pelotas parecia-se mais com a Corte – no que diz respeito à grande presença de estrangeiros na cidade– do que com as principais capitais do Império. Portanto, por volta do meado do século, do ponto de vista das migrações em escala global, Pelotas havia se tornado uma das inúmeras localidades das Américas que receberam europeus em seu território. Conforme René Remond, a emigração de europeus no século XIX foi um dos “grandes fatos demográficos do mundo”. Entre 1815 e 1914, a população da
Europa cresceu em altos índices, ultrapassando o seu dobro. Em 1800, por exemplo, ela possuía 187 milhões de pessoas e, em 1900, tinha ultrapassado os 400 milhões. As consequências sociais deste crescimento demográfico associado a momentos de crise econômica e política foram o pauperismo, o desemprego crônico e a baixa dos salários, levando parte de sua população a migrar para terras que prometiam uma vida melhor. O grosso da emigração europeia, portanto, foi constituído principalmente “de camponeses sem terra, de operários sem trabalho e de burgueses arruinados” e os países que contribuíram mais
com este fluxo foram os mais atingidos pela falta de trabalho e pela miséria. Calcula-se em cerca de 13 milhões o número de europeus que se expatriaram entre 1840 e 1880. A mesma cifra voltou a emigrar num intervalo de tempo menor (1880 a 1900). A partir de 1900, o índice atingiu 1 milhão de pessoas por ano dos que partiam somente para os Estados Unidos. No total, não é exagero afirmar que cerca de 60 milhões deixaram a Europa para estabelecerse em outros continentes além-mar. Mais da metade foi para os Estados Unidos e cerca de 8 milhões migraram para a América do Sul.46 Segundo David Eltis, a partir de 1820, as migrações por todas as partes do mundo 47 tomaram um perfil cada vez mais voluntário, substituindo a era das migrações forçadas. No
exemplo, VOLKMER, Márcia S. Compatriotas franceses ocupam a fronteira: imigração e comércio na fronteira oeste do Rio Grande do Sul (segunda metade do século XIX). Tese de Doutorado em História, UFRGS, 2013. 44 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 79. 45 Nas paróquias urbanas de São Paulo (Sé, Santa Efigênia e Consolação) este índice era de 11,8% entre os habitantes livres. Em Recife, era de 6%, em São Luis, no Maranhão, era de 6,8%, em Salvador, era 5,8% e em Ouro Preto era 3,3% (Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br). 46 REMOND, René. O século XIX (1815-1914).São Paulo: Cultrix, 1990, p. 197-199. 47 ELTIS, David. Migração e estratégia na História Global. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre a escravidão (1). Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 13-35. Eltis reconhece a singularidade brasileira no que diz respeito ao fluxo voluntário que marcou a colonização portuguesa na América, antes do século XIX. 171
Brasil, ao mesmo tempo em que se intensificava o processo de imigração europeia, sob incentivo das autoridades imperiais e provinciais, a longa história da entrada de cativos africanos estava com seus dias contados. Tratavam-se de dois grandes ciclos migratórios distintos (o primeiro forçado e o segundo voluntário) que caracterizaram a formação do mundo atlântico entre os séculos XVI e XIX. Pelotas participou de ambos os fluxos migratórios, recebendo um grande número de africanos na primeira metade do século XIX e um significativo contingente de europeus não portugueses em todo o oitocentos, mas, sobretudo, a partir dos anos 1850. Neste sentido, estudar a imigração para Pelotas é estudar os fluxos migratórios que caracterizaram o período em diferentes partes do mundo Atlântico, oferecendo um exemplo de como se deu a interação social entre nativos e estrangeiros numa escala microanalítica. Para se ter uma maior dimensão desta entrada de estrangeiros em Pelotas seria necessário saber qual o perfil desta população flutuante que chegava anualmente na cidade, vindo a estabelecer-se nela ou não. Uma das documentações mais eloquentes com relação à migração para Pelotas são os passaportes policiais emitidos aos estrangeiros entrados na cidade. A lista mais completa que localizei com relação aos mesmos reúne todos os que entraram na cidade ao longo do ano de 1855. Este documento apresenta o nome de 48148 pessoas e arrola a sua nacionalidade, idade, estado civil, profissão e local de procedência. Entretanto, esta fonte apresenta uma sub-representação do fluxo de pessoas, pois entre os listados não há nenhuma mulher (apesar de 18,2% dos indivíduos fichados serem casados). Outro problema do documento é que ele não revela o motivo pelo qual os recém-chegados estavam na cidade, não sendo possível saber se vinham provisoriamente, se estavam de passagem para outro município ou se desejavam estabelecer-se em Pelotas. É provável que todos estes, além de outros, fizessem parte do repertório de motivos do grupo listado. Analisando os dados do documento, percebe-se que cerca de 59% dos indivíduos listados eram portugueses. Entre eles é possível verificar um número diversificado de profissionais. Caixeiros, sapateiros, alfaiates, chapeleiros, mascates, comerciantes, trabalhadores, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, ferreiros, tanoeiros, pedreiros, oleiros, entre outros. Pelos seus ofícios não é difícil perceber que se tratavam de indivíduos de poucas posses. A migração de portugueses para o Brasil manteve altos e baixos e foi constante até o século XX. A facilidade da língua e a presença de parentes nestas terras encorajava a travessia
48
Lista de estrangeiros que receberam passaporte policial (1855). Fundo Polícia, Pelotas, Maço 15, AHRS. 172
49 dos migrantes. Além de Portugal, mais 22 lugares formavam os outros 41%. Os franceses
são os segundos mais numerosos (8,5%), seguidos pelos espanhóis (8%), alemães (6,5%), uruguaios (6%) e italianos (5,2%). O restante reunia ingleses, norte-americanos, irlandeses, dinamarqueses, suíços, suecos, argentinos, paraguaios e austríacos. Outro item importante é o que se refere à procedência dos indivíduos. A grande maioria destes estrangeiros (77,5%) vinha de Rio Grande, o que não causa surpresa, pois o porto marítimo localizava-se nesta cidade. O interessante talvez seja que 22,5% chegava em Pelotas partindo de outras localidades, o que evidencia que este deslocamento não se dava somente pela via marítima, mas também pela navegação fluvial e pelas precárias estradas que levavam até o polo charqueador. Assim, encontram-se entre os locais de procedência o Uruguai (8,5%) e a Argentina (0,5%), além de estrangeiros vindos da região da campanha (4,2%), da vizinha Jaguarão (3,8%), de outros municípios próximos como Piratini, Canguçu e Camaquã, e dos próprios distritos rurais de Pelotas.50 Com relação às profissões foram localizados 60 ofícios diversos. O grupo mais expressivo era formado pelos caixeiros (23%), seguido pelos trabalhadores (12,8%) e comerciantes (9,3%). Estes números revelam que muitos vinham vender e comprar mercadorias, além de pagar e cobrar parceiros de negócios ou mandavam seus caixeiros realizar tais tarefas. Outros vinham buscar trabalhos eventuais podendo então fixar-se na região. Entretanto, uma boa parte dos estrangeiros exercia ofícios mecânicos e artesanais diversos. A construção civil, o artesanato com o couro, a madeira ou os metais, as atividades ligadas à pecuária e à agricultura e ofícios marítimos eram os que mais atraíam. 51 Tais dados
49
Para alguns lugares como Espanha e Uruguai são citadas as cidades de onde o listado nasceu e não o país. O mesmo é percebido para Alemanha e Itália, que ainda não possuíam um estado nacional unificado. 50 A diversidade destes estrangeiros que vinham do interior da província era grande. De Bagé, por exemplo, temos um saboneiro alemão de 48 anos; de Camaquã, um lavrador da Galiza, 46 anos; de Livramento um austríaco que era afilador; de Jaguarão um italiano vitrifi cador, casado e com 33 anos; da “Campanha”, um francês curtidor, casado e com 30 anos, além de um menino espanhol de 14 anos, que era carreteiro, entre tantos outros. A lista é longa e reunia trabalhadores ligados ao ramo das navegações (armeiro (1), calafate (1), marinheiro (2), veleiro (2)), aos ofícios artesanais envolvendo couro, madeira, metais e outros materiais (abridor (2), alfaiate (22), cadeireiro (2), carpinteiro (22), chapeleiro (6), charuteiro (3), correeiro (4), ferreiro (19), marceneiro (13), ourives (12), afiador (1), curtidor (3), saboneiro (4), penteeiro (1), sapateiro (25), tanoeiro (6)), aos serviços nas charqueadas ou estâncias (campeiro (3), capataz (1), descarnador (1), graxeiro (2), peão (4)), aos serviços na lavoura (lavrador (14), roceiro (2), chacareiro (1), serrador (2)), aos ofícios ligados à construção civil (oleiro (2), pedreiro (6), pintor (1), vitrificador (1)), ao setor de transportes de cargas (carreteiro (9), carretilheiro (1)), às profissões liberais (cirurgião (1), música (3), violeiro (1), escritor (1)) e à prestação de serviços diversos (açougueiro (3), aguadeiro (1), barbeiro (4), cozinheiro (6), figurista (1), padeiro (5), taberneiro (1)), entre outros. Relacionando a nacionalidade com o tipo de ofício listado é possível verificar algumas especializações. Os cadeireiros eram italianos e os barbeiros, chapeleiros e charuteiros portugueses. Praticamente todos os alfaiates eram portugueses, metade do grupo dos 19 ferreiros era composto por franceses e a maioria dos 51
173
convergem com o informado por Joel Serrão, ou seja, o grosso da emigração portuguesa para o Brasil na segunda metade do século XIX era formada por pobres trabalhadores rurais e urbanos.52 A faixa etária dos estrangeiros variava, abarcando crianças de 10 anos até idosos de 63 anos. Cerca de 58,5% dos estrangeiros possuía entre 16 e 30 anos, demonstrando que este fluxo era majoritariamente de pessoas jovens. O grupo mais representativo era formado pelos caixeiros portugueses entre 10 e 20 anos, provenientes de Rio Grande. Eles perfaziam 14% dos listados. Conforme Ana Sílvia Scott, foi comum a vinda de caixeiros para o Brasil integrados a redes mercantis e de parentesco transatlântica. 53 Além disso, os dados da lista de 1855 combinam com o perfil da população estrangeira recenseada em 1872. Descontados os 361 africanos que foram classificados como estrangeiros livres – sem dúvida um número expressivo – os 2.648 restantes estavam divididos em: 1.495 portugueses, 323 alemães, 256 uruguaios, 201 franceses, 115 espanhóis, 84 italianos e 68 ingleses, apenas para ficar entre os grupos mais representativos.54 É importante lembrar que estes eram os que residiam no espaço mais urbano de Pelotas. Os distritos rurais do município também concentravam significativos contingentes de estrangeiros, sobretudo, europeus.55 Tendo em vista que a imigração que marcou o meado do oitocentos reunia principalmente jovens e adultos, como demonstram os passaportes policiais de 1855, a presença estrangeira no seio da população adulta da cidade de Pelotas era ainda maior do que os percentuais citados anteriormente. De acordo com os dados relativos à paróquia de São Francisco de Paula em 1872, a população masculina e livre classificada como branca e com idade entre 11 e 70 anos somava 4.252 pessoas. Ora, se o número de estrangeiros do sexo masculino era de 2.443 e praticamente todos estavam nesta mesma faixa etária, é provável saboneiros eram formada por alemães. Todos os campeiros eram uruguaios e a maioria dos carreteiros e peões também era do Estado Oriental. 52 SERRÃO, Joel. Conspecto histórico da emigração portuguesa. Análise Social, Ano 8, n. 32, 1970, p. 597617. 53 SCOTT, Ana Sílvia. As duas faces da imigração portuguesa para o Brasil (décadas de 1820-1930). Anales
del Congreso de Historia Económica de Zaragoza , 2001, p. 3. Ver também ROWLAND, Robert. Velhos e novos Brasis. In: BETHENCOURT, Francisco (Org.).História da Expansão Porguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. 54 O restante era formado por paraguaios (62), argentino (16), suíços (9), austríacos (7), gregos (3), dinamarqueses (2), holandeses (2), norte-americanos (2), suecos (2) e boliviano (1). 55 Em 1858, por exemplo, foi fundada a colônia São Lourenço na zona rural de Pelotas. Um dos motivos da instalação desta colônia foi a excessiva especialização do município na produção das charqueadas e a ausência de lavouras que suprissem a demanda alimentícia da crescente população. Um ano após a instalação da colônia, a mesma possuía 206 habitantes. No entanto, cerca de 10 anos depois, a colônia possuía 1.637 almas divididas em 340 famílias, sendo 1.277 protestantes e 360 católicas. Os mesmos cultivavam trigo, centeio, cevada, milho, feijão e batatas, destinadas ao consumo das cidades de Rio Grande e Pelotas (CAMARGO, Antônio Eleuthério. Estatística provincial de 1868, Fundo Estatística, AHRS, p. 93). 174
que mais da metade dos homens adultos livres residentes no espaço urbano pelotense fosse formada por estrangeiros! Trazendo ofícios e conhecimentos de outras partes do mundo, estes homens moviam-se pela cidade contribuindo com serviços cotidianos indispensáveis para a população local, envolvendo-se com todas as camadas sociais da localidade, além de ocuparem-se de grande parte da indústria, comércio e artesanato da urbe, como evidencio a seguir. Através do censo de 1872 pode-se verificar como os habitantes da paróquia de São Francisco de Paula foram classificados no que diz respeito as suas atividades econômicas. Dos 12.376 habitantes livres da paróquia, 6.063 foram qualificados como “sem profissão”. Monastério e Zell esclareceram que o alto número destes “sem profissão” deve-se ao fato das crianças terem sido incluídas neste grupo. 56 No caso de Pelotas, a população com 15 anos ou menos somava 3.513 habitantes. Talvez uma parte dos indivíduos entre 16 e 20 anos, e que somavam 1.299 moradores, também tenha sido qualificada no grupo citado por não exercer funções que se enquadrassem nas outras categorias do censo. Contudo, e ntre os “sem profissão” estão 1.136 pessoas casadas ou viúvas, o que indica que eram adultas. Destas, 994
eram mulheres. Portanto, é possível que muitas delas deviam ser “donas de casa”, o que aos olhos dos censores poderia fazerparte do grupo “sem profissão”. A parcela restante dos “sem profissão” parecia incluir os considerados “inválidos”, os muito pobres e uma parte dos que viviam de suas agências.57 A análise que se segue inclui, portanto, os 6.313 habitantes livres e adultos que possuíam alguma profissão reconhecida pelo censo (4.435 homens e 1.878 mulheres). As mulheres pelotenses exerciam um número bem menor de atividades econômicas e profissionais se comparadas aos homens. As principais ocupações femininas eram a de “serviço doméstico”, que contava com 882 mulheres, e a de “costureira”, que reunia 668
delas. Portanto, cerca de 82,5% das mulheres livres com profissão foram classificadas como costureiras ou serviços domésticos. Destas, ¾ eram solteiras. Desconheço se outras atividades foram condensadas na categoria “costureira” (visto o seu alto índice de 35,5% das mulheres
com profissão). É um contingente enorme de trabalhadoras que permanece invisível
esperando por algum estudo específico. As outras mulheres foram classificadas como capitalistas e proprietárias (91), comerciantes (70), artistas (34) e professoras (14). A única 56
MONASTERIO, Leonardo; ZELL, Davi. O Rio Grande do Sul de 1872: análise setorial da ocupação nos municípios. Anais do II Encontro de Economia Gaúcha. Porto Alegre, 20 e 21 de maio de 2004. 57
De acordo com o próprio censo, a paróquia possuía 18 cegos, 14 surdo-mudos, 42 aleijados, 10 dementes e 8 alienados. 175
categoria em que as mulheres estrangeiras conseguiram superar as brasileiras foi na de “artistas”.
Entre os homens, a categoria “comerciantes, guarda-livros e caixeiros” apresentava 58 1.255 indivíduos ou 28,3% dos homens livres com profissão. Dos homens deste grupo, 59%
eram estrangeiros. Outro grupo com representação significativa eram os operários das “produções manuais ou mecânicas” que reunia 1.000 homens. Eram 156 operários em metais,
398 em madeiras, 84 em couros e peles, 36 em chapéus, 5 em mineração e 321 em calçados. Nestas profissões, 67% dos homens eram estrangeiros. Os artistas reuniam 530 homens livres, sendo 61% de estrangeiros. Penso que a diferença deste grupo de operários para com os “artistas” é que aqueles eram assalariados e, portanto, não trabalhavam por conta própria. O grupo dos “manufatores e fabricantes” compunha 250 homens. A grande maioria, ou 87,3%
deles, eram estrangeiros. É possível que muitos fossem patrões dos operários citados. A descrição de algumas indústrias existentes em Pelotas neste período ajuda a colorir os números apresentados. Conforme Fernando Osório, entre 1835 e 1912, podia-se contar em torno de 6 mil firmas que apareceram e giraram na cidade. Em 1910, existiam 188 fábricas, 278 oficinas e 822 casas de negócio diversas. Entretanto, até a década de 1870, não existiam muitas. Em 1845, o francês Carlos Ruelle fundou a primeira fábrica de seges e carros, que, em 1865, recebeu a visita do Imperador D. Pedro II. Também em 1845, João Barcellos fundou uma chapelaria e 3 anos depois, Antônio Lopes dos Santos abriu sua Loja de Ourivesaria. Em 1855, Diogo Higgins fundou uma oficina para consertar instrumentos musicais. Em 1860, José Gonçalves estabeleceu uma Latoaria na cidade e em 1864, Frederico Lang fundou uma fábrica de sabão. O autor ainda cita outros estabelecimentos como olarias, fábricas de anil, de papel, de louças e carnes em conserva. 59 No entanto, foi a partir dos anos 1870 que as indústrias e companhias fabris começaram a se proliferaram por Pelotas. Marcos dos Anjos verificou um grande número de novas fábricas de fumo, de sabão e velas, de cerveja, de chapéus, de curtição e de massas, entre outras. Das 38 que foram registradas na Junta Comercial, mais de 52% pertenciam a estrangeiros e 26% possuíam um dos sócios estrangeiro. 60 Estes dados vão ao encontro dos percentuais do Censo de 1872, uma vez que entre os fabricantes, os operários especializados, 58
Este índice converge com o encontrado para o total da categoria “comércio” na lista dos estrangeiros entrados na cidade de Pelotas em 1855 (28%) e da lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1865 (23%). 59 OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas.Pelotas: Armazém Literário, v. 2, p. 141-142. 60 ANJOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX. Dissertação de Mestrado em História. PUCRS, 1996, p. 62-67. 176
os manufatores e os artistas, a maior parte era composta por estrangeiros. Somados aos índices dos comerciantes, é possível inferir que estas eram as ocupações econômicas mais acessadas pelos mesmos. Estes estrangeiros eram na sua maioria homens de setores médios e subalternos, destacando-se socialmente pela sua inventividade e iniciativa nestes setores econômicos. Uma pequena parte deles chegou a possuir riqueza e prestígio social considerável.61 Conforme Anjos, que realizou uma rigorosa pesquisa nos periódicos pelotenses da época, estes estrangeiros, sobretudo os europeus, colaboraram profundamente com a modernização da cidade de Pelotas. Entre os mesmos, uma série de engenheiros e arquitetos contribuíram com projetos na área da urbanização, iluminação, redes de esgoto e abastecimento de água, entre outros. Datam do início dos anos 1870, a formação da Companhia Hidráulica Pelotense, o início do trânsito de carros de passageiros realizado pela Companhia Ferro Carril e Cais de Pelotas e a construção da estação férrea. Além disso, um outro grande número de europeus também formava um contingente que permanecia por algumas temporadas atuando em diferentes áreas, para depois seguir viagem por outras cidades da América. Na área cultural e artística, por exemplo, diversas companhias teatrais, pintores e fotógrafos estrangeiros enchiam as páginas dos jornais da cidade de anúncios e arrebatavam importante clientela. Professores de piano, de línguas, de etiquetas e empregados em escolas particulares também tinham um importante espaço. 62 Neste sentido, Pelotas apenas acompanhava uma tendência das principais cidades do mundo ocidental. Com o maior desenvolvimento do capitalismo a vida das pessoas foi gradualmente sendo deslocada para as cidades. No início do século XIX, gigantes como Londres e Paris possuíam respectivamente 1 milhão e 500 mil habitantes. Contudo, estas eram dimensões excepcionais para a época, pois, na Europa, somente estas duas cidades ultrapassavam os 500 mil habitantes. No entanto, cerca de cem anos depois, em 1913, este número já havia chegado a 149.63 Esta maior urbanização colaborou com a disseminação do estilo de vida burguês, a ampliação dos meios de comunicação e transportes, a circulação de novas ideias sobre a ciência e o progresso e tudo isso afetou consideravelmente a vida nas grandes cidades europeias e americanas. Mas apesar deste novo protagonismo das cidades, a 61
ANJOS, Marcos Hallal dos. Op. cit. ANJOS, Marcos Hallal dos. Op. cit., p. 36-37, 84-95, 102-103. Os italianos dominavam o ramo da hotelaria e, na Santa Casa e em clínicas particulares, vários médicos europeus exerceram a sua profissão. Para uma análise da imigração italiana em Pelotas ver POMATTI, Angela B. Italianos na cidade de Pelotas: doenças e práticas de cura (1890-1930). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2011. 63 REMOND, René. Op. cit., p. 137. 62
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grande maioria da população mundial ainda era rural. Na própria Europa, em 1913, somente 15% dos europeus moravam em cidades.64 Neste contexto, se Pelotas possuía uma população urbana importante ao comparar-se com a grande maioria das cidades do Império (chegando a 15 mil nos anos 1870), diante das grandes capitais ela era uma pequena vila, pois, nesta época, a cidade do Rio de Janeiro possuía 275 mil habitantes, Salvador 130 mil e Recife mais de 115 mil. Num patamar inferior, apresentavam-se, entre outras, São Paulo com pouco mais de 30 mil e Porto Alegre com cerca de 25 mil.65 Na medida em que as cidades cresciam juntamente com a sua população, a demanda por gêneros alimentícios também aumentava. A partir da segunda metade do século, os distritos rurais de Pelotas foram alvo de intensa especulação e mais de 60 colônias agrícolas foram fundadas entre os anos 1860 e 1890. As elites possuidoras de terras na Serra dos Tapes foram as que mais investiram nestes negócios e os charqueadores e seus familiares tiveram um papel de destaque neste processo. Em 1869, por exemplo, Custódio Gonçalves Belchior, fundou a colônia Santa Silvana e, em 1889, Heleodoro de Azevedo e Souza deu o nome de Santa Eulália à colônia que criou. Os colonos possuíam srcens diversas. Em 1848, a colônia D. Pedro II, cujo maior acionista era o charqueador Antônio Rafael dos Anjos, era formada por irlandeses e ingleses. Anos mais tarde, a colônia São Feliciano, teve nos franceses os seus primeiros imigrantes. A colônia São Lourenço, a mais conhecida de todas, era formada por famílias germânicas. 66 No entanto, uma parte da elite pelotense entendia que a vinda de colonos para o trabalho agrícola não era suficiente para o desenvolvimento da cidade. Em 1861, um charqueador escreveu ao presidente da Província, esboçando que desejava também a “vinda de outros colonos senão científicos, inteligentes, como até com capitais, na certeza de que na
64
REMOND, René. Op. cit., p. 137.
Neste sentido, é necessário mencionar que o último quartel do século não marcou somente o início da modernização e o processo de ampliação da urbanização pelotense. Em São Paulo, conforme Zélia C. de Mello, os anos 1870 representariam a “segunda fundação” da cidade, quando ela se tornou, segundo conte mporâneos da modernização paulista, a “capital dos fazendeiros” e deu seus primeiros passos para tornar-se a “metrópole do café” (MELLO, Zélia C. de. Op. cit., p. 84). Estudando os padrões de riqueza em Juiz de Fora na passagem do século XIX para o XX, Rita Almico percebeu que o mesmo período marcou o impulso modernizador e a urbanização da localidade, refletida na valorização dos imóveis da cidade – processo viabilizado pelo crescente comércio e riqueza da cafeicultura da Zona da Mata mineira (ALMICO, Rita. Op. cit.). 66 ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 44-49; 60. Outros investidores seguiram o exemplo, como os herdeiros do charqueador Domingos de Castro Antiqueira (Colônia São Domingos, 1875), José Bento de Campos (Colônia Santo Bento, 1899), Manoel Batista Teixeira (Colônia Santa Áurea, 1893), Pedro Nunes Batista (Colônia São Pedro), Epaminondas Piratinino de Almeida (Colônia Santa Bernardina e Colônia São Domingos). 65
178
Pátria a adotarem deparariam co m meios infalíveis de felicitarem suas proles”. 67 Neste sentido, conforme Anjos, alguns pelotenses defendiam, por intermédio da imprensa, a ideia de que os europeus deveriam trazer a sua inteligência para além do trabalho agrícola, exercendo os seus ofícios e saberes como se estivessem nos seus países de srcem. Para isso, era preciso criar indústrias e oferecer o suporte necessário para que eles executassem as suas atividades. 68 E, de fato, aproveitando-se deste estímulo local, os estrangeiros passaram a participar cada vez mais da vida urbana pelotense, onde pareciam sentir-se muito à vontade, visto que não eram poucos: Determinados meses do ano caracterizavam-se por uma expressiva atuação das sociedades estrangeiras radicadas em Pelotas, em especial as italianas, francesas e portuguesas. Nos meses de setembro, os italianos comemoravam a unificação italiana, nos meses de julho, o dia 14 não passava desapercebido pelos franceses e, no 1º de dezembro, os portugueses festejavam a restauração monárquica. Os jornais noticiavam as festividades, que variavam de seletas e íntimas reuniões a grandes desfiles pelas ruas, com direito a fogos de artifício, batismo de estandartes e calorosos discursos, onde o orador estrangeiro enaltecia a pátria natal e bendizia o país hospedeiro.69
Portanto, os europeus formavam comunidades reconhecidas localmente, onde seus costumes, festas e identidades coletivas eram mantidos a partir da organização de associações e sociedades diversas. Conforme Anjos, “as associações de elementos de uma mesma
nacionalidade se materializavam, em especial, através da criação de sociedades beneficentes e de auxílio mútuo, mas também esportivas, literárias e educacionais”. Nelas, “o estrangeiro, além de labutar por objetivos concretos, participava da elaboração de uma identidade cultural ímpar”. Neste sentido, seus laços com sua terra natal jamais eram desfeitos e os acontecimentos políticos do velho continente eram acompanhados mesmo do outro lado do Atlântico.70 Não demorou muito, também surgiram jornais em sua própria língua, como o
67
Carta de Domingos José de Almeida ao presidente da Província do Rio Grande do Sul. Pelotas, 04.10.1861. Anais do Arquivo Histórico do RS, CV-686, p. 154. 68 69 70
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 52-53. Idem, p. 89. “Apesar de distantes de seus países de srcem, os estrangeiros continuavam ligados a eles por fortes laços de
subordinação, veneração e por afetos familiares. Através das entidades coletivas organizadas, o contato com a pátria mãe e a atuação frente a episódios de repercussão internacional tornava-se mais fácil, propiciando, àqueles estrangeiros envolvidos, um reforço positivo no íntimo de suas cidadanias enfraquecidas. Assim, em 1878, a comunidade francesa compadeceu-se pela morte de Thiers; em 1883, a comunidade alemã da cidade uniu-se na tentativa de amenizar o sofrimento das vítimas das inundações e do inverno cruel que abalara a Alemanha naqueles anos; em 1890, os portugueses em Pelotas fizeram subscrições e angariaram fundos para serem remetidos a Portugal, caso houvesse um conflito com a Inglaterra (questão da Zambesia); e, durante o ano de 1898, a ‘colônia espanhola’ mobilizou-se na formação de uma ‘Liga Patriótica’ para angariar donativos a serem enviados ao governo da Espanha, que se encontrava em guerra com os Estados Unidos” (Idem, p. 90). 179
italiano “Il Venti Setembro”, de Carlos Cantaluppi, e o alemão “Deutsche Presse”. 71 Isto
também ajuda a explicar a grande importância que os jornalistas pelotenses davam à cultura, economia e política internacional nas primeiras páginas de seus periódicos. Não é difícil imaginar que a elite pelotense devia compartilhar de parte destas informações e debates com os estrangeiros mais notáveis nos clubes, bailes, cafés, jantares e nas praças da cidade. Se a população de Pelotas e as dimensões de sua cidade eram bem menores que as demais capitais brasileiras citadas anteriormente, mas a proporção de estrangeiros era maior que a das mesmas cidades (com exceção do Rio de Janeiro), é provável que, no seu cotidiano, os pelotenses que circulavam pelas ruas da urbe mantinham um contato muito mais próximo com os europeus que compartilhavam deste mesmo espaço.72 Além do mais, estabelecendo vínculos afetivos com os pelotenses, muitos deles inseriam-se nas famílias locais por meio de matrimônios e laços diversos. Eram estrangeiros que interagiam com a população pelotense, unindo-se às mulheres da terra e, ao se misturarem com os brasileiros, contribuíram para dar uma nova cara à cidade. 73 Contudo, tendo em vista tal proximidade, não se deve descartar a latente possibilidade de conflitos entre as diferentes comunidades e grupos sociais, visto as distinções étnicas, culturais, religiosas e econômicas que caracterizavam a sua população. Escapando das pretensões desta tese, tal fenômeno ainda merece ser melhor estudado. No entanto, apesar da considerável importância dos estrangeiros na vida social e na sua economia, algumas atividades estavam mais restritas a sua participação. O s “capitalistas e proprietários” contidos no Censo de 1872 reuniam 97 homens, mas somente 20% eram
estrangeiros. Outro exemplo pode ser dado no grupo dos criadores e lavradores dos subúrbios da cidade, que somavam 216 pessoas e também apresentavam 80% de brasileiros. Portanto, ainda era possível vislumbrar um grupo de “estabelecidos” na cidade, notadamente, uma parte
significativa de sua elite. Os estrangeiros, com exceção dos portugueses na primeira metade do século, praticamente não tiveram acesso ao restrito círculo das fábricas de charque. Cada
ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 89; 112. A grande presença de estrangeiros era reconhecida pela própria população. Na edição de 20 de julho de 1884, o Correio Mercantil de Pelotas iniciava uma matéria sobre as Sociedades de Socorros Mútuos da seguinte forma: “Em todas as cidades populosas como a nossa, onde avulta o element o estrangeiro, este deve congregar-se (…)” (apud ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 89). 73 É possível que muitos tenham deixado suas esposas em seus países, mas como se trata de uma população fixa e não flutuante, estes casos não devem ser muitos. Os dados do Censo de 1872 contribuem novamente para esta questão. Se entre os brasileiros o número de mulheres era maior que o de homens, entre os estrangeiros, para cada mulher havia 4 homens. Dos 2.443 estrangeiros do sexo masculino, 935 eram casados, e das 566 mulheres estrangeiras, 187 eram casadas. Portanto havia um grande número de estrangeiros casados para um pequeno número de mulheres estrangeiras casadas. Estes dados além de revelarem que os homens migravam muito mais, demonstram que vários deles tendiam a contrair matrimônio com as mulheres da terra. 71 72
180
vez mais a elite charqueadora fechava-se diante de investidores vindos de fora – algo completamente distinto do que ocorria no Rio da Prata na mesma época, onde ingleses, franceses e espanhóis continuavam com entrada franca na indústria da carne, no comércio e na pecuária, já em moldes capitalistas.74 A única porta aberta aos mesmos era o matrimônio, visto que alguns ricos charqueadores estabeleceram tais alianças com europeus, como tratarei num capítulo posterior. Portanto, no final do período aqui estudado, os estrangeiros ocuparam principalmente os estratos intermédios da sociedade pelotense. Tal constatação pode indicar que as mencionadas alianças matrimoniais com os charqueadores não interessavam somente aos primeiros. Elas possuíam um duplo interesse, uma vez que inserir-se numa família da elite estabelecida oferecia um leque de possibilidades aos candidatos a genro estranhos àquela
localidade. Mas ainda é necessário realizar uma última consideração sobre a estratificação social em Pelotas. Para isso tomarei uso novamente dos inventários post-mortem, acrescendo outras fontes, como demonstro a seguir.
4.3 OS MUITOS DEGRAUS DA PIRÂMIDE: POR UMA ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA DA POPULAÇÃO PELOTENSE Apesar de tratar da maior parte da população, o Censo de 1872 possui um caráter genérico com relação as suas classificações, por homogeneizar as suas categorias dificultando uma caracterização das especificidades socio-ocupacionais de cada província e município. Um exemplo disto pode ser dado com relação a atividade econômica do charqueador. Como na maioria das outras províncias não existiam charqueadas, o Censo não contempla a categoria “charqueador” ou “indústria de carnes”, por exemplo . Além disso, como muitos
charqueadores também criavam gado, atuavam no comércio e eram proprietários de vários imóveis, não é possível saber em que grupo os censores os classificaram. Por outro lado, uma diversidade de indivíduos com ofícios característicos das camadas mais pobres da população eram enquadrados em categorias muito genéricas como “profissões manuais e mecânicas” ou “profissões industriais”, por exemplo. Portanto, o cruzamento dos dados do Censo com os de
74
Para uma consideração a cerca desta diferença ver BELL, Stephen.Early industrialization in the South Atlantic: political influences on the charqueadas of Rio Grande do Sul before 1860. Journal of Historical
Geography, n. 19, 1993, p. 399-411. Tratarei disto nos capítulos posteriores. 181
outras fontes documentais pode ajudar a enriquecer a presente análise e direcionar os resultados obtidos para uma proposta de hierarquização socioeconômica. As listas de qualificação de votantes da paróquia de São Francisco de Paula para os anos de 1865 e 1880, fornecessem dados importantes para uma aproximação desta diversidade ocupacional.75 A análise destes documentos permite verificar qual o perfil socio-ocupacional de mais da metade dos chefes de família, dos viúvos e dos homens solteiros e maiores de 21 76 O primeiro anos da sede do município, onde muitas das charqueadas faziam limite.
indicador a ser destacado é que em 1865 e em 1880, Pelotas apresentou respectivamente 74 e 91 ocupações econômicas e profissões diversas, o que exemplifica a maior complexidade do documento se comparado ao Censo. Tratando-se do distrito mais urbano, não causa surpresa que os indivíduos classificados como comerciantes formavam o grupo de maior representatividade. Em 1865, eles chegavam a 20,8% e, em 1880, a 23,1% dos votantes. Analisando mais profundamente as ocupações socio-profissionais da lista de 1865 percebe-se que do total de 718 votantes qualificados, 280 (39%) pertenciam a ocupações econômicas de setores mais ricos (ou no mínimo intermediários) da saciedade local. Tratavam-se de comerciantes (150), proprietários (76), criadores (26), charqueadores (14), negociantes (11) e capitalistas (3). A ausência da discriminação da renda nos impede de confirmar tal posição para todos os qualificados deste grupo, sobretudo da categoria “comerciante” , que certamente reunia indivíduos ricos que atuavam comércio de atacado ao
lado de varejistas de pequeno porte. O mesmo serve para os negociantes. Além disso, também não é possível saber o tamanho dos rebanhos dos criadores. Portanto, o índice de 39% entre os setores mais ricos e intermédios para ricos deve ser inferior, talvez ficando em torno de 1/4 dos votantes. Um segundo grupo a ser considerado pode ser chamado de profissão/burocracia e envolvia os profissionais liberais e empregados públicos. Este é de longe o menor grupo, visto o alto índice de analfabetismo e a baixa burocratização da sociedade da época. Juntos, eles 75
Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865 (Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul). Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense - transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva). 76 Ambos os documentos oferecem uma amostra significativa dos homens livres maiores de 21 anos e com r enda anual superior a 100$000, ou seja, os qualificáveis. Ao contrário do que se defendeu durante muito tempo, uma parcela significativa da população masculina participava das eleições imperiais, uma vez que a renda não era um grande empecilho. De acordo com Richard Graham, 50,6% de todos os homens brasileiros livres maiores de 21 anos votaram nas eleições do início da década de 1870 (GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 147). Tendo em vista o grande número de estrangeiros em Pelotas, que segundo às leis da época só podiam votar caso fossem naturalizados, é provável que os indivíduos arrolados nas listas de votantes correspondessem a mais da metade da população masculina. 182
reuniam 65 indivíduos, ou seja, 9% dos qualificados como votantes. Merecem destaque os médicos (8) e os advogados (4) que possuíam um forte prestígio social. Os empregados públicos somam 27 pessoas, distribuídas em diferentes setores que a lista não discrimina. Outros grupos importantes são os professores (12) e os militares (5).77 Um terceiro grupo da lista que merece menção pertence a estratos médios e baixos da sociedade. Ao todo considerei 373 indivíduos como pertencentes a este grupo, ou seja, 52% do total dos votantes. 78 Entre eles é possível vislumbrar a presença de carpinteiros (37), alfaiates (31), marítimos (22), carreteiros (19), jornaleiros (19), tropeiros (19), capatazes (8), marceneiros (8), pedreiros (7), lombilheiros (5), boleeiros (5), pescadores (3), cortadores (3), campeiros (3), entre outros. Como já foi dito, a lista de votantes de 1880 apresenta o mesmo perfil da anterior, trazendo somente algumas ocupações profissionais novas, como o surgimento de um repórter, um redator e dois telegrafistas – indicando que os meios de comunicação haviam atingido um maior nível de desenvolvimento. Os dois maquinistas presentes nesta lista, por outro lado, revelam que os meios de transporte haviam entrado na era das ferrovias. Dois gerentes e três administradores também demonstram uma especialização profissional na condução dos negócios de indústrias ou empresas. Um dos gerentes qualificados, por exemplo, era Vicente Lopes dos Santos Filho, cujo pai possuía uma charqueada. A presença de um despachante também é novidade e talvez sua aparição seja consequência da burocratização do Estado na segunda metade do século XIX. O fato de haver um cabeleireiro na lista também merece destaque e indica que as senhoras da elite pelotense estavam demandando não apenas artigos de luxo, mas também serviços mais sofisticados. A análise das ocupações econômicas sugere que muitos deles estavam vinculados direta ou indiretamente ao processo de produção das charqueadas, assim como das atividades ligadas às mesmas, como a criação de gado e os transportes terrestres e fluviais. Além disso, também havia todos os ofícios que dependiam do couro, do sebo, das carnes e dos chifres e 77
Seria um equívoco analítico considerar os membros do grupo profissão/burocracia descolados do grupo das
ocupações econômicas. Uma abordagem que privilegie a investigação das famílias ao invés dos indivíduos, perceberá que 3 dos 4 advogados mencionados são filhos de charqueadores. O mesmo ocorre para 4 dos 8 médicos. Ou seja, dentro dos setores ocupacionais e profissionais dos extratos médios e ricos da sociedade podia haver um entrelaçamento parental que caracteriza a própria estratégia das famílias da elite e que podiam reunir comerciantes, criadores, burocratas, advogados e charqueadores numa mesma parentela. Nos próximos capítulos esta relação será tratada com maior profundidade. 78 O significado que davam ao exercício do voto não é o mais importante para esta análise, muito embora o documento tenha sido produzido com fins eleitorais. E é muito provável que a maioria exercesse tal função com interesse em manterem-se vinculados a uma rede clientelar local, uma vez que era o significado mais imediato que poderiam dar a tal ato. Para uma discussão aprofundada ver VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul. Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-RS, 2010. 183
que eram empregados em setores de transporte terrestre, fluvial e marítimo. Neste círculo de profissionais que podemos verificar na lista de 1880, estão os açougueiros (2), armadores (3), calafates (2), capatazes (25), fazendeiros (30), criadores (26), lombilheiros (4), correeiros (3), seleiros (3), chapeleiros (2), curtidores (2), colchoeiro (1), sirgueiros (2), estafeta (1), marinheiros (81), sapateiros (53), carreteiros (33), tamanqueiros (3), carneadores (2), trançador (1) e graxeiro (1). Somados aos 29 charqueadores da lista tem-se que 23% dos qualificados exerciam atividades que deviam manter relações próximas com as charqueadas ou compartilhavam de interesses econômicos comuns. Mas este índice é bem maior, uma vez que não adicionei os comerciantes (313), os proprietários (126) e os que viviam de suas agências (128), pois não é possível saber em que ramo de atividades os mesmos estavam inseridos. Portanto, através das próprias classificações ocupacionais é possível identificar uma estratificação social básica, pois algumas delas eram atividades exclusivas de setores mais abastados e outras de setores subalternos da sociedade. No entanto, buscando matizar melhor os níveis da estrutura socioeconômica na qual a sociedade pelotense estava hierarquizada, volto a utilizar os inventários post-mortem analisados anteriormente. Como se pode observar na Tabela 4.5, classifiquei os indivíduos inventariados em 9 faixas de fortuna desde os mais ricos (com patrimônios superiores a 50.000£) até os mais pobres (com menos de 100£). Buscando uma análise mais elaborada, agrupei estas faixas em três grupos de riqueza, cujos limites, apesar da possível distinção, são um pouco fluídos. As faixas A, B e C reúnem as camadas mais ricas desta hierarquia e compunham 8,5% do total inventariado. A soma dos imóveis rurais, escravos e animais apresentam respectivamente 62,1%, 60,0% e 48,6% de seus bens, demonstrando que a riqueza era diretamente proporcional ao perfil agrário do seu patrimônio. Entretanto, nunca é demais lembrar que boa parte de suas terras e gado não se encontravam em Pelotas, mas sim, em outros municípios ou até mesmo em outro país, no caso, o Uruguai. Em contrapartida, pelo fato dos charqueadores estarem em peso neste grupo mais rico, a grande maioria dos escravos das faixas A, B e C encontrava-se no próprio município. Dos 22 componentes deste grupo, somente 2 não possuíam imóveis urbanos. Eles eram proprietários de muitos sobrados, casas e armazéns na cidade, mas o valor conjunto dos mesmos não superava o de seus imóveis rurais, visto a alta valorização das terras no período. Como muitos eram charqueadores e comerciantes, o peso do dinheiro e das dívidas ativas em seus patrimônios apresentava-se bastante alto. O reduzido volume de suas dívidas passivas indica que os mesmos possuíam uma relativa autonomia econômica na região. 184
Tabela 4.5 – Perfil dos patrimônios inventariados por faixas de fortuna em libras esterlinas (%)79 Fortunas Inventariadas A B C D E F G H I
Imóveis Imóveis Dinheiro Dívidas Ações rurais urbanos Ativas
Escravos
Animais Embarc./ Dívidas M.U. M.R. Mist. Total carros Passivas % % % Invent.
n
%
+ de 50 mil De 20 a 50 mil De 10 a 20 mil De 5 a 10 mil De 2 a 5 mil De 1 a 2 mil De 500 a 1 mil De 100 a 500 Menos de 100
40,2 44,7 25,6 18,1 40,1 14,6 26,5 25,5 39,5
8,2 18,8 16,9 30,5 19,5 42,7 34,1 33,0 25,3
8,1 9,0 14,5 7,3 10,6 7,0 3,8 5,7 4,6
18,4 7,6 13,2 12,2 12,8 15,0 7,5 5,0 7,7
0,3 2,4 4,3 5,4 7,4 3,4 -
378 264 116 140 132 100 88 77 01
9,5 8,2 10,4 11,2 11,1 9,8 19,0 23,3 -
12,4 7,1 12,6 3,8 1,2 1,6 4,0 3,7 6,6
0,8 1,2 0,5 0,2 1,1 0,5 1,2 -
0,02 4,5 3,6 13,4 15,4 11,2 18,8 17,4 28,6
11,2 38,8 33,3 53,5 28,2 39,2 24,3
100 87,5 77,6 38,8 29,6 18,6 28,2 9,4 3,1
5 8 9 18 27 43 39 74 33
Total
34,5
17,9
8,9
13,5
2,3
1.296
9,9
8,4
0,8
5,6
34,4 41,7 23,8
256
12,5 11,2 16,6 29,6 20,9 38,5 37,8 48,4
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS)
Embora o interesse principal desta tese seja estudar os charqueadores, não é possível falar da elite econômica pelotense sem reconhecer que a mesma também era formada por ricos fazendeiros e comerciantes atacadistas. Estas três atividades podiam ser exercidas por um mesmo indivíduo, mas, no geral, não o eram. Em 1852, por exemplo, 35 comerciantes de Pelotas, notadamente a elite mercantil da cidade, remeteram um requerimento para a Corte exigindo uma fiscalização mais eficaz contra o contrabando na fronteira com o Uruguai. 80 Tratavam-se de atacadistas importadores e exportadores que também fretavam carretas de mercadorias para a região da campanha. O grupo, que contava com alguns estrangeiros, possuía somente três indivíduos que vieram a tornar-se charqueadores anos mais tarde, demonstrando tratar-se de um grupo mercantil que possuía certa autonomia com relação aos negócios envolvendo a manufatura dos couros e charque. Com relação aos fazendeiros do município, consultei a relação dos principais criadores de gado do 3º e do 4º distrito de Pelotas, elaborada pelas autoridades locais em 1858. Num total de 46 proprietários, somente 81 um era charqueador e nenhum deles estava na lista dos comerciantes de 1852.
Portanto, tratavam-se de esferas econômicas cuja maioria dos agentes envolvidos formavam grupos de atuação distintos, embora interagissem social e economicamente. Mas 79
A sigla M.R. significa proprietários que possuíam imóveis exclusivamente rurais e que, por conta disto, classifiquei como “moradores rurais”. Neste mesmo sentido, M.U. correspondia aos “moradores urbanos”Mist e . significa “Mistos”, ou seja, o inventariado possuía casas na cidade e no meio rural. Nem todos os índices de M.R, M.U e Mistos somam 100% porque alguns inventariados não possuíam nenhum imóvel. 80 Requerimento dos comerciantes de Pelotas. Seção dos Manuscritos. Coleção Rio Grande do Sul (Biblioteca Nacional do RJ). 81 Anexos dos ofícios de 24.03.1858 e 09.04.1858. Fundo Autoridades municipais, Pelotas, AHRS. É possível verificar em ambas as listas que havia comerciantes e fazendeiros que eram parentes de charqueadores, algo que irei tratar melhor nos capítulos posteriores. 185
esta separação deve ser relativizada. Se ela serve para a maioria dos comerciantes, charqueadores e estancieiros, ela não é suficiente para compreender as atividades econômicas da minoria: a elite dentro da elite econômica. Os mais ricos comerciantes raramente reservavam-se as suas atividades mercantis, assim como os maiores fazendeiros não ficavam presos à terra. Portanto, o topo mais rico desta pirâmide socioeconômica costumava diversificar as suas atividades e investimentos, lembrando o modelo verificado por Fernand 82 Tal Braudel no interior da hierarquia mercantil europeia entre os séculos XVI e XIX. modelo também se verifica entre os charqueadores, uma vez que os mais ricos não se
reservavam aos negócios com o charque, atuando na pecuária, no comércio e no prestamismo, como analisarei nos capítulos posteriores. Um primeiro exemplo pode ser dado através de Ambrósio Gabino Crespo. Com fortuna situada na faixa A e um dos assinantes do requerimento dos comerciantes pelotenses de 1852, ele pertencia à elite mercantil da cidade. Seu patrimônio, inventariado em 1875, estava constituído de campos no Uruguai com um vasto rebanho e diversas casas espalhadas por municípios da campanha, como Bagé, Cangussú, D. Pedrito, Lavras e São Gabriel. Na cidade, Crespo era proprietário de 8 casas e 4 armazéns. Além disso, também possuía ações e mais de 100 contos de réis83 em ativos pertencentes a sua casa comercial, além de 320 contos de réis em dívidas ativas. Crespo também era sogro do Dr. João Chaves Campello, que foi deputado provincial e Presidente da Província. Entre os fazendeiros mais afortunados, pode-se citar o Comendador João Antônio Martins. Proprietário de diversas estâncias e casas no Uruguai, de 51 escravos e mais de 14 mil reses de criar, Martins foi o mais rico inventariado da década de 1850. Contudo, ao contrário das centenas de estancieiros que habitavam a região da campanha, ele estabeleceu-se na cidade de Pelotas, onde possuía muitas casas, terrenos e um armazém. Martins também possuía mais de 170 contos de réis em dívidas ativas e mais de 160 contos em dinheiro, sugerindo que devia atuar como prestamista e, possivelmente, no comércio. A posse de ações no teatro de Pelotas, livros e um piano indicam o seu gosto pela vida cultural da cidade – muito mais ativa do que nos municípios rurais da fronteira oeste, onde ele possuía suas fazendas. O Comendador investiu na educação dos filhos e um de seus netos foi, sem dúvida, um dos políticos de maior prestígio do sul do Brasil. Além de deputado geral, Gaspar Silveira
82
BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 83 Inventário de Ambrósio Gabino Crespo, n. 84, m. 3, 1875, 1º cartório do cível e crime, Pelotas, APERS. 186
Martins foi senador e conselheiro de Estado. Quando faleceu, em 1901, Gaspar era proprietário de mais de 120 mil hectares de terra em Bagé, mostrando que a elite política e a elite econômica da província estavam intimamente conectadas.84 Seguindo na análise da Tabela 4.5, percebe-se que a partir da faixa D até a faixa G, que reuniam 49.5% dos inventariados, ocorrem algumas alterações na estrutura das fortunas elencadas. As mais representativas demonstram a ocorrência de uma maior urbanização (nas faixas D, E e F), acompanhada de uma significativa diminuição dos percentuais em dinheiro e, em menor medida, das dívidas ativas. Tal urbanização também é acompanhada pela redução do percentual dos valores investidos em animais. Mas o fator que mais impressiona é o aumento da representatividade das dívidas passivas com relação aos mais ricos, caracterizando-o como um grupo mais urbano e endividado. Os inventariados desta faixa também são os com maiores bens investidos em apólices e ações. Alguns diriam que parte dos indivíduos destas faixas seria representativa de uma embrionária classe média, mas talvez seja cedo para se enxergar tais traços naquela sociedade. Cruzando estes dados com os dos censos e listas de qualificação é possível considerar que este setor intermediário era formado por profissionais liberais, empregados públicos diversos, comerciantes e criadores de fortuna mediana, pequenos fabricantes e artesãos, idosos e viúvas que viviam de rendas, além de trabalhadores diversos. São exemplos deste grupo não apenas o carpinteiro André Landart, o mercador David Davis, o coronel Francisco Vieira Braga, o fabricante de chapéus Ricardo Moreira e o negociante de sal Francisco da Costa e Silva, como também Daniel Olsen, que possuía uma venda no meio da colônia Santa Silvana, Fortunato Faria, proprietário de uma olaria e Francisco Meirelles Leite, dono de uma fábrica de sabão e velas. A diversidade dos bens avaliados e as histórias que se pode contar a partir dos próprios inventários é muito rica. Um caso interessante deste grupo intermediário foi o do correeiro Mathias Trarback. A partir da leitura do inventário de sua esposa, em 1870, foi possível perceber que o mesmo compartilhava o espaço cotidiano com outros pequenos artesãos, como sapateiros e lombilheiros – homens que, assim como ele, utilizavam os couros em seus ofícios e que deviam orbitar o espaço ao redor das charqueadas em busca de matériaprima para seus negócios.
84
Inventário de João Antônio Martins. N. 317, maço 22, Cartório de órfãos e provedoria de Pelotas, APERS;
CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937, p. 265; Inventário de Gaspar Silveira Martins. Processo 289, maço 7, Ano 1901, 1º Cartório do Cível e Crime de Bagé, APERS. 187
Comerciantes, artesãos, escravos e trabalhadores diversos, estrangeiros e brasileiros, deviam dominar o espaço econômico do centro da cidade. O Conde D’Eu impressionou-se com o comércio de artesanato nas ruas de Pelotas, deixando um depoimento interessante: É também em Pelotas que, ao pé dos ricaços que estão a descansar, florescem em todo o seu esplendor as indústrias que alimentam o verdadeiro luxo rio-grandense, o dos arreios. Essas indústrias, como se sabe, são duas: a dos couros lavrados, cinzelados, coloridos, bordados de mil maneiras, e a das peças de prata, não menos artisticamente trabalhadas. As diferentes classes da população estão, porém, bem separadas: em certas ruas as residências ricas; noutras, as lojas. Especialmente na rua do Comércio e na rua S. Miguel se vê uma fila contínua dessas lojas, onde estão expostos estribos, esporas enormes, peitorais e freios, tudo de prata, ostentando esplendor deslumbrante, que iguala, não digo já o da Rua do Ouro, de Lisboa, mas até o da “Strada degli Orefici”, de Gênova.85
Não é raro encontrar os mencionados objetos de prata entre os bens dos inventariados das faixas de fortuna intermediárias e até nas mais pobres, o que demonstra o amplo consumo destes artigos. Um exemplo pode ser dado com José da Silva Lisboa, que não possuía praticamente nenhum bem passível de ser avaliado a não ser seus móveis, entre os quais estavam 1 bomba de prata, 1 espada, alguns livros e 1 relógio de ouro. Assim como ele, Manoel Pacheco possuía uma pequena porção de terras na serra da Buena, com 20 cabeças de gado e outros poucos animais, 2 carretas velhas, 1 enxada, 1 machado, além de 2 bombas e 1 par de esporas de prata.86 Ambos pertenciam aos setores mais pobres da sociedade, que reuni nas faixas H e I. Estas faixas compunham 41,8% dos inventariados. Contudo, é importante não esquecer que os indivíduos pertencentes às mesmas não estavam na pior situação da pirâmide social, pois abaixo deles havia pessoas miseráveis, cujos bens não eram passíveis de serem inventariados. As faixas mais pobres desta pirâmide social estavam ocupadas tanto por artesãos e trabalhadores, como o pedreiro Sebastião Idiart, o funileiro Antônio Braga e a costureira Ana Behocaray, quanto por pequenos criadores como George Motz. Uma parte significativa era formada por pequenos lavradores espalhados pelos distritos rurais do município. Os sobrenomes estrangeiros reforçam ainda mais o que venho descrevendo até aqui com relação a sua presença na sociedade pelotense. Eles estavam distribuídos em todas as camadas sociais, desde pobres lavradores como Pedro Koesgen, que plantava milho e criava porcos na serra
85 86
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul.São Paulo: USP, 1981.
Inventário de Ana Maria Pacheco, n. 391, m. 27, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1855, Pelotas, APERS; Inventário de José Pereira Lisboa, m. 108, 1880, 1º cartório de órfãoes e ausentes, Pelotas, APERS. 188
dos Tapes, até médios proprietários como Theodoro Dux e comerciantes bem estabelecidos como Chistobal de Leon e José Calero. Apesar do tratamento conjunto dado às duas últimas faixas de fortuna, a faixa I apresenta características distintas da H, demonstrando que havia limites aos que ocupavam a base da pirâmide. Primeiro, na faixa I ocorre um retorno no predomínio dos imóveis rurais sobre os urbanos e uma elevação na importância do valor dos animais. Segundo, ela é 87 Disto conclui-se despossuída de escravos e altamente endividada se comparada à faixa H.
que na medida em que as fortunas vão afastando-se do setor intermédio, tanto para cima da pirâmide quanto para baixo, elas retomam os maiores percentuais do patrimônio investido em bens rurais, denotando que tanto pobres quanto ricos vinculavam seu patrimônio aos bens agrários. Pertenciam, por exemplo, a esta última faixa de fortuna o português Manoel Guilherme que era ferreiro, Manoel Gonçalves que era alfaiate e Custódio Lima, que era patrão de um iate e deixou como único bem o dinheiro de seu bolso. A Felisbina pobre, de quem falei quando iniciei este capítulo, também pertencia a este grupo. Além destas, outras considerações podem ser realizadas com relação à análise dos inventários. As últimas três faixas (que somam 146 inventários) não apresentam nenhum investimento em ações ou apólices e, com exceção de 1 inventário na faixa H, não possuíam embarcações ou carros. Portanto, a composição de suas fortunas era mais simplificada e alguns bens eram vedados aos mesmos. Nas faixas G e H, os escravos eram bens que pesavam bastante nos patrimônios dos mesmos, chegando a perfazer quase ¼ dos valores inventariados na segunda. Os indivíduos destas faixas eram, na sua grande maioria, pequenos proprietários de escravos, apresentando uma média de 2,6 cativos, sendo que somente um deles possuía mais de 10 escravos. Seus poucos cativos representavam parte fundamental da sua economia doméstica, podendo alugá-los ou usá-los como escravos de ganho, por exemplo. Para este grupo, o aumento do preço dos escravos e das terras e o difícil acesso aos mesmos deve ter sido mais marcante, pois os cativos envelhecidos, doentes ou falecidos deviam ser substituídos com extrema dificuldade, visto o aumento dos preços dos mesmos. Peço ao leitor que retorne à Tabela 4.3 para uma última consideração. A partir dela é possível verificar que o percentual de dinheiro diminui nas últimas décadas na mesma proporção em que as dívidas passivas aumentam bastante. Tal fenômeno tem relação direta 87
É bem verdade que 12 inventários são de 1890. Entretanto as outras faixas também possuem inventários desta data e o número de cativos á bem mais alto. Portanto, a ausência de escravos é mais pela pobreza do que pela época em que os inventários foram abertos. 189
com o que foi mencionado anteriormente, visto que foram as camadas sociais menos privilegiadas as que mais se endividaram. Se os 22 inventários que apresentaram as maiores fortunas inventariadas (acima de 10.000£) tinham um percentual de dívidas passivas inferior a 3%, os 33 mais pobres (com fortuna inferior a 100£) tinham 28,6% do seu patrimônio comprometido em dívidas. Somente 1 destes 33 inventariados mais pobres possuía escravos. A grande maioria das pessoas pertencentes a esta faixa mais pobre concentrou-se exatamente no final do período analisado, pois 26 dos 33 indivíduos deste grupo foram inventariados em 1880, 1885 e 1890. Portanto, é muito provável que o agravamento as crises nas charqueadas entre os anos 1860 e 1870 e o início de sua decadência nos anos 1880 tenha afetado a economia local, favorecendo o empobrecimento de muitas famílias de setores médios, colocando-os, anos depois, entre os mais pobres e endividados. A decadência das charqueadas pode ter afetado muitos dos que dependiam direta e indiretamente dos bens das mesmas. A diminuição do volume de dinheiro deve ter diminuído o consumo de muitos artigos, afetando a produção de pequenos alfaiates, carpinteiros e artesãos em geral, sem contar os setores ligados à pecuária, transporte e comércio. Com a crise econômica, o fluxo de pessoas endinheiradas na cidade também deve ter diminuído, prejudicando a economia local e seus negócios. Tal fenômeno deve ter obrigado muitos a se endividarem. Portanto, a economia das charqueadas foi capaz de gerar grandes fortunas, mas, com a decadência iniciada nos anos 1880, também trouxe inevitavelmente grande pobreza, pois cada uma das crises conjunturais era capaz de liquidar, de forma indireta, a economia dos pequenos, drenando seus escravos e demais recursos econômicos. Como este é um estudo sobre um grupo de elite tive que resistir à tentação de investigar mais profundamente a vida dos homens livres pobres, cujas histórias insistiam em aparecer nas mais variadas fontes. Eram, na sua maioria, trabalhadores que viviam na cidade, colonos europeus com uma pequena data de terras e um diminuto rebanho e lavradores nacionais e libertos espalhados pela Serra dos Tapes e em outras localidades rurais do município. Sua mão de obra era essencialmente familiar, mas eles podiam gabar-se por estar acima de outros mais miseráveis, que deviam vagar em busca de meios de subsistência ou atividades provisórias na cidade e nas zonas rurais. Por mais de duas gerações, algumas famílias da elite pelotense viram a cidade transformar-se e alterar o seu perfil social diante dos seus próprios olhos. Como foi visto no capítulo 3, durante o colonial tardio, Pelotas podia ser tratada como uma cidade “africana” ou uma cidade “negra”, visto a pequena proporção de habitantes brancos. Passado mais de meio 190
século, sua pretensiosa elite buscou fazer dela uma cidade “europeia”. Neste duplo movimento, ela jamais deixou de ser uma cidade atlântica, recebendo um grande número de migrantes forçados e voluntários, das mais diversas regiões da Europa, da América e da África, desde o início da sua história. Neste sentido, as transformações ocorridas no mundo atlântico oitocentista podiam ser observadas nas próprias ruas da cidade, perante uma diversidade de línguas, de cores, de culturas. Era sobre esta base social extensa e complexa que os charqueadores ocupavam o topo da hierarquia socioeconômica local. Quando o Conde D’Eu falou dos “ricaços que estavam a descansar” na cidade diante do comércio que tomava
as ruas, era destes empresários que estava falando. Nos anos 1870, os charqueadores, com suas esposas e filhos deviam compor entre 1,5 e 2% da população total de Pelotas, mas concentravam uma riqueza muito superior. Contudo, esta elite sofria de uma existência profundamente paradoxal, pois aos olhos de muitos europeus, Pelotas não representava somente luxo e dinheiro, mas também a barbárie. A srcem de suas fortunas, ou seja, da mencionada riqueza que assegurava o luxo, a educação e o lazer de suas famílias era fruto de umespetáculo “horrendo”, nas palavras do inglês Herbert Smith. Neste sentido, a escravização de milhares de trabalhadores negros e a matança desenfreada de milhões de cabeças de gado contrastava com a pretensa civilidade que os mesmos buscavam demonstrar nos espaços urbanos de sociabilidade. E o cheiro que exalava dos estabelecimentos e nas margens fluviais causava certa repugnância aos mesmos europeus que os charqueadores queriam tanto agradar. Para entender melhor esta elite é preciso conhecer como ela acumulava a sua riqueza, ou seja, é necessário entender o funcionamento das charqueadas e o espetáculo “horrendo” da matança. Convido o leitor a cerrar as narinas, pois nas próximas páginas adentraremos no interior destes estabelecimentos…
191
5. “A CONFUSÃO QUE, ENTRETANTO, É ORDEM” : AS UNIDADES PRODUTIVAS, O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS E O TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS Há um não sei o que de revoltante e ao mesmo tempo cativador nestes grandes matadouros; os trabalhadores negros, semi-nus, escorrendo sangue; os animais que lutam, os soalhos e sargetas correndo rubros, os feitores estolidos, vigiando imóveis sessenta mortes por hora, os montes de carne fresca dissorando, o vapor assobiando das caldeiras, a confusão, que entretanto é ordem: tudo isto combina-se para formar uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pode caber na imaginação. De toda esta carnificina dimanou a riqueza de Pelotas, uma das mais prósperas entre as cidades menores do Brasil. Herbert Smith, naturalista norte-americano, 1882.
Com seu olhar perspicaz, Smith notou que por trás de uma suposta “confusão” aos olhos do observador comum escondia-se uma verdadeira “ordem” sob a direção do charqueador. Um aglomerado de instalações com escravos trabalhando desordenadamente não 1
poderia render lucros tão significativos aos seus senhores. Apesar das dificuldades enfrentadas pelos primeiros charqueadores, ainda no colonial tardio, o nível de organização atingido no último quartel do século XIX parecia ter se configurado na prática costumeira, depois de décadas de trabalho no ramo, e sem um maior auxílio de manuais ou de um conhecimento técnico e científico mais aprimorado. Tratava-se de uma ordem com uma racionalidade própria e que tinha organização do trabalhado escravo as suas engrenagens mais profundas. No entanto, ao menos para os observadores estranhos àquele mundo, ela não era a única ordem possível. A confusão aos olhos de um estrangeiro decorria do fato de que a mão de obra empregada nas charqueadas era escrava, ao contrário das demais fábricas na Europa ou em outras partes das Américas. Neste sentido, os relatos de viajantes e testemunhos da época sempre devem ser contextualizados e no caso daqueles que deixaram depoimentos sobre a escravidão no Brasil o perigo parece ser ainda maior. Suas posições, quando à favor 2 ou contra a escravidão no mundo moderno, geralmente condicionavam as suas opiniões.
Este capítulo trata do perfil da mão de obra escrava no complexo charqueador pelotense e de como os cativos estavam distribuídos nas unidades produtivas dos 1
Como será tratado no capítulo 9. Ver, por exemplo, SLENES, Robert. Na Senzala uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil, sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 2
192
charqueadores. Apesar do tema já ter sido tratado parcialmente por outros autores, ofereço uma análise mais complexa, a partir de outros critérios metodológicos e da proposição de questões ainda não tratadas com relação a este tema. 3 O presente capítulo é melhor compreendido se lido conjuntamente com o seguinte. Enquanto este oferece um tratamento mais quantitativo acerca do tema, o posterior trata mais qualitativamente da administração dos trabalhadores nas charqueadas, as tensões sociais entre estes e os seus senhores/patrões, assim como as formas de viabilizar a existência do complexo charqueador escravista por quase um século.
5.1 POR DENTRO DA CHARQUEADA: AS ETAPAS DE PRODUÇÃO DO CHARQUE, DOS COUROS E DOS DEMAIS PRODUTOS Os melhores documentos para se compreender o mundo do trabalho nestas fábricas são os processos-crime envolvendo conflitos no interior das charqueadas, os inventários post-
mortem de charqueadores e os relatos dos contemporâneos que conheceram estas propriedades. A análise a seguir busca evidenciar o processo de produção do charque e dos couros desde a chegada dos animais vacuns nas charqueadas até o encaminhamento dos produtos beneficiados para o porto de Rio Grande, mas sem preocupar-se com os mercados do gado e dos efeitos produzidos, uma vez que estas etapas serão descritas em capítulos posteriores, pois merecem uma análise mais específica. Todas as charqueadas ficavam dispostas nas margens fluviais do município, sendo que quase 90% delas nas do São Gonçalo e do Pelotas. Se os estabelecimentos concentravam-se mais próximos aos rios, o restante do terreno da charqueada, sobretudo no núcleo fabril, estendia-se por mais de um quilômetro em direção ao logradouro público, formando extensas faixas de terra paralelas umas as outras. Este tipo de disposição espacial caracterizava boa parte dos estabelecimentos sem que o complexo fabril propriamente dito primasse por uma 3
CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983; GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995; MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984. Mais recentemente, alguns trabalhos renovaram os seus olhares para este mesmo objeto. Ver, por exemplo, PESSI, Bruno. O Impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (c. 1846– c. 1874). Monografia de Graduação em História, UFRGS, 2008; PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850). Dissertação de Mestrado em História, Unisinos, 2012. 193
estrita homogeneidade. Na década de 1880, por exemplo, Louis Couty disse que não havia um modelo de organização espacial bem definido para as charqueadas, apesar de a diferença de tamanho entre as maiores e as menores não ser tão grande.4 A análise dos inventários post-mortem demonstra que uma charqueada podia ser composta por diversas benfeitorias e possuir inúmeros equipamentos e utensílios no seu espaço de trabalho, variando de acordo com a riqueza do seu proprietário. Nas primeiras décadas do século XIX foi comum os encarregados em arrolar os bens separarem as instalações no momento da avaliação, destacando a barraca de couros, o galpão de charquear, a graxeira, a mangueira, a senzala, o forno de secar sal, os varais, as caldeiras, entre outros. Com o tempo, e, sobretudo na segunda metade do oitocentos, foi comum todo o complexo fabril ser avaliado unicamente sob a denominação de “um estabelecimento de charqueada” ou “uma charqueada”, sem discriminar todas as instalações.
5
A organização das mesmas, assim
como as técnicas de preparo do produto e dos subprodutos, como sebo, graxa e couros, nem 6 sempre foram realizadas da mesma forma, mudando ao longo do tempo.
Apesar de muitos viajantes estrangeiros terem registrado as atividades das charqueadas, as melhores descrições do processo de produção do charque foram realizadas por três viajantes europeus. Os franceses Nicolau Dreys (1839) e Louis Couty (1880) e o norte-americano Herbert Smith (1882) deixaram preciosos relatos sobre o funcionamento das charqueadas escravistas do oitocentos.7 A distância do primeiro para os outros dois relatos permite uma comparação das mudanças tecnológicas em mais de 60 anos, uma vez que as anotações de Dreys referem-se ao período entre 1817 e 1827, quando ele residiu na província.8 Todo o processo se resumia em poucas etapas: à chegada das tropas de gado na charqueada e sua permanência na mangueira seguiam-se o seu abate, o transporte do animal para a cancha, a esfolação, a despostação (esquartejamento), o retalhamento das carnes 4
COUTY, Louis. A erva-mate e o charque. Pelotas: Seiva, 2000, p. 130. Ester Gutierrez, no entanto, propôs uma tipologia geral a partir dos escritos de viajantes, do exame de inventários e de suas pesquisas arqueológicas. Os pisos cerâmicos e paredes de tijolos e telheiros eram o material de construção mais utilizado. A mangueira de matança, a cancha e os galpões de salga formavam um único segmento e podiam apresentar diferentes tamanhos. Relativamente afastados destas encontravam-se a graxeira e a barraca dos couros. Na beira do rio, há alguns metros da charqueada, havia um pequeno trapiche por onde os iates eram carregados. A proximidade das águas também servia para que nela se jogassem todos os detritos não aproveitados no processo de fabricação do charque e dos seus sub-produtos. A paisagem se completava com um extenso pátio ocupado pelos varais onde a carne salgada era exposta ao sol (GUTIERREZ, Ester. Op. cit.). 5 Tratarei mais sobre esta questão no capítulo 9. 6 Tal fenômeno já foi evidenciado por CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit. 7 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: IEL, 1961; SMITH, Herbert. Do Rio de Janeiro a Cuiabá, 1922; COUTY, Louis. Op. cit. 8 Outros viajantes deixaram relatos sobre as charqueadas pelotenses e serão devidamente mencionados ao longo dos capítulos. 194
(charqueamento), o salgamento das mesmas, o empilhamento das mantas, o seu secamento nos varais e o posterior transporte via fluvial para o porto de Rio Grande, onde a mercadoria seguia o rumo das margens do Atlântico. A seguir descreverei minuciosamente todas estas etapas9, com exceção da primeira e da última, pois tanto a compra do gado quanto a venda do produto final, como já mencionei, serão tratadas em capítulos posteriores.
a) O abate Geralmente no mês de novembro, o hasteamento de uma bandeira vermelha na entrada da charqueada era um sinal entendido por todos. Potreiros e mangueiras arrebatavam-se de gado gordo vindo de diversas partes da fronteira. Escravos e trabalhadores livres eram mobilizados nas muitas etapas de produção. Dezenas de iates carregados de sal congestionavam as vias fluviais que levavam até às charqueadas. Comerciantes, caixeiros, peões, tropeiros e gente de todo o tipo animavam os arredores dos estabelecimentos. Os escravos carneadores afiavam suas facas. Os capatazes tinham certeza de muito trabalho em frente. Estava aberta a safra. Durante todo o verão até quase chegar o inverno, algo entre 300 e 400 mil cabeças de gado eram abatidas nas mais de 30 charqueadas que pontilhavam as margens do São Gonçalo e do Pelotas. Após a fase de engorda, quando as reses pastavam nos vastos campos da região da campanha rio-grandense ou do norte do Uruguai, as tropas de gado eram levadas por terra até Pelotas, distante muitas léguas daquelas estâncias. De acordo com Nicolau Dreys, nos anos 1820, havia três formas de se abater os novilhos. Duas delas eram bastante semelhantes e naquela época já vinham entrando em desuso. É necessário descrevê-las para entender o significado da inovação trazida pela terceira. Na primeira, os peões montados a cavalo aproximavam-se do animal recolhido a um curral aberto. Um dos peões posicionava-se diante do boi e agitava um “poncho colorado”, até que o novilho
se sentisse atraído e perseguia-o
pelo campo. Instantaneamente, outro peão disparava com uma lança afiada e comprida cortando-lhe o jarrete e, depois disso, o mesmo se posicionava estrategicamente para abater a próxima rês. Assim que o animal ferido e ainda vivo caía um escravo tomava conta do mesmo para sangrá-lo. Dreys diz que este método era perigoso, mas era tido como uma aventura entre os peões. Na segunda forma, um peão a cavalo laçava um novilho no curral. Se o boi corresse 9
Uma exposição semelhante foi realizada por CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit. Contudo, tanto no presente capítulo, quanto no posterior, trago novos elementos de análise. 195
sobre o cavaleiro, este disparava fazendo com que o animal o seguisse para o campo aberto onde outro peão o abatia (assim como na primeira forma). Mas se o animal resistisse, o peão arrastava-o, dando início a uma briga entre ambos até que o boi fazia força para se livrar do laço. E era neste momento que outro peão lhe cortava a articulação das pernas fazendo o animal tombar, para logo desfechar um golpe fatal.10 Na opinião de Dreys, estes dois métodos eram muito inseguros para os trabalhadores e muito cruel com os animais. A terceira forma de abate havia se tornado dominante nas charqueadas e indicava uma melhor organização desta indústria na época se comparado aos tempos coloniais. O gado cercado no curral era “impelido na direção de dois corredores separados um do outro por uma espécie de esplanada ” que estava erguida a 7 ou 8 palmos do chão. Quando o boi aparecia num destes corredores estreitos, um peão, de pé sobre a esplanada, o laçava. A corda usada pelo peão estava atada fora do recinto a uma roda de
ferralho (uma engrenagem, como um torno) manejada por dois escravos. Laçado, o animal era puxado pela força do torno até encostar a cabeça no cercado onde, do lado de fora, um especialista (“ordinariamente um capataz”), sobre uma espécie de pedestal, cravava uma faca na nuca do boi, que ficava privado dos seus movimentos.11 Mais de 50 anos depois, as descrições de Herbert Smith e de Louis Couty revelavam algumas alterações. Quando o gado chegava à charqueada era mantido por muitas horas em cercados que se chamavam mangueiras. Estas se afunilavam numa das extremidades que se comunicava com um curral menor chamado mangueira de matança, capaz de conter trinta cabeças de gado juntamente cercadas. Tendo entrado todo o gado na mangueira de matança, a mesma era fechada. Até aqui não há muita diferença do descrito por Dreys. Mas de acordo com Smith, este recinto estava pavimentado com pedras lisas e escorregadias e chapas inclinadas para a extremidade oposta à entrada. Por fora da cerca, e rodeando-a, havia um passeio de tabuões por onde os trabalhadores se locomoviam à vontade a uma altura superior a do animal. Um dos bois aparecia no brete e era logo laçado por um escravo que lhe esperava atento. Este laço possuía sua extremidade presa a uma junta de bois que movimentavam um guincho e, mesmo que o animal resistisse, logo vinha a escorregar até em baixo, próximo do cercado, onde o desnucador, um capataz treinado (assim como nos anos 1820), o esperava com um punhal comprido e muito afiado. A introdução da lâmina no bulbo deixava a rês imobilizada. 10 11
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134. Idem, p. 134. 196
Segundo Smith, toda a operação do abate de uma rês levava um minuto e num só dia era possível abater de 600 a 700 animais, o que não significa que tal capacidade era empregada, como argumentarei posteriormente. Sessenta anos antes, Dreys disse que a operação de abate poderia levar até dois minutos, mas não mencionou quantos animais podiam ser abatidos por dia. Dreys também não fez referência à existência de um declive escorregadio, citado por Smith. É possível que tal dispositivo tenha facilitado o procedimento, economizando força e tempo de trabalho. Mas tanto o terceiro modo de abate descrito por Dreys quanto a maneira descrita por Couty e Smith traziam uma nítida racionalização de tempo e mão de obra se comparada à forma do abate em campo aberto dos fins do setecentos. Tratava-se de uma reutilização espacial dos terrenos que alterou toda a dinâmica de charquear. Seria esta uma das inovações trazidas por José Pinto Martins nos fins do século XVIII? Não é possível afirmar, mas no seu inventário (1827) estava presente tanto a “mangueira” quanto o “guindaste”.
12
Uma tentativa de representar algumas destas etapas pode
ser visualizada nas Figuras 5.1 até a 5.8 expostas nas próximas páginas.
b) Da esfolação ao charqueamento Após o abate do animal era necessário retirá-lo do corredor para que a operação reiniciasse e outro novilho fosse rapidamente abatido. O processo de transporte do boi para a
cancha, ou seja, o espaço externo e contíguo ao local de abate onde as operações seguintes eram realizadas, foi descrito diferentemente na época de Dreys (década de 1820) e na de Smith e Couty (década de 1880). Conforme Dreys, após o novilho ter sido abatido, um guindaste, rodando sobre seu eixo, elevava o animal asfixiado e preso pelo laço para fora do cercado do curral e o transportava para a cancha.13 Se nos anos 1820 a introdução do guindaste giratório foi inovadora, nos relatos da década de 1880, ele já não estava mais presente. Smith escreveu que após o novilho ser abatido, uma porta se abria quase que instantaneamente e o animal, que ainda urrava e apresentava contrações, caía sobre um carro ou vagão, onde era puxado por escravos, sendo um deles a cavalo.14 Alguns charqueadores,
12 13 14
Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, 1832, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS). DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134. SMITH, Herbert. Op. cit., p. 135-142. 197
como José Inácio da Cunha e Tomás José de Campos, apresentaram trilhos instalados no pátio 15 da charqueada, onde o vagão deslizava carregando os animais abatidos até à cancha.
Figura 5.1 – Abate em campo aberto
Fonte: Arte de Juan Manuel Besnes e Irigoyen. In: PINTOS, Anibal Barrios. Historia de la ganedería en el Uruguay (15741971). Montevideo: Biblioteca Nacional, 1973, p. 99.
Figura 5.2 – Abate na mangueira realizado pelo capataz
Fonte: Arte de D. Maillard. In: PINTOS, Anibal Barrios. Op. cit., p. 100.
15
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 187-188. Inventário de Virgínia Louzada de Campos, n. 335, m. 23, 1851, Pelotas, 1º cart. órfãos e provedoria (APERS); Inventário de José Inácio da Cunha, n. 600, m. 38, 1865, 1º cart. de órfãos e ausentes, Pelotas (APERS). 198
Figura 5.3 – Escravos carregando a rês para a cancha
Fonte: Arte de Danúbio Gonçalves. Disponível no sítio: http//www.garagemdearte.com.br (acesso em 10.02.2013).
Figura 5.4 – Empilhamento das mantas de charque nossaladeros platinos
Fonte: Arte de Adolfo Hequet. In: PINTOS, Anibal Barrios. Op. cit., p. 162.
Figura 5.5 – Mantas de charque nos varais (século XX)
Fonte: Fotografia disponível no sítiowww.blogdetropeiros.blogspot.com.br(acesso em 30.04.2013)
199
Figura 5.6 – Processo de salgamento dos couros nos galpões de umsaladeiro (século XIX)
Fonte: Arte de Adolfo Hequet. In: PINTOS, Anibal Barrios. Op. cit., p. 227.
Figura 5.7 – Representação artística de uma charqueada em Pelotas (1825) por Jean Baptiste Debret
Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste.Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, figura 89.
Figura 5.8 – Ambiente de trabalho em umsaladero platino no século XIX
Fonte: Arte de Jean León Palliere. Disponível no sítio: www.imagenshistoricas.blogspot.com.br(acesso em 05.05.2013).
200
Chegando à cancha diversos escravos eram encarregados de executar as operações seguintes. A cancha ficava praticamente contígua à mangueira de matança e constituía-se num espaço circular com um piso de laje lisa e coberto por um telheiro. 16 Conforme Gutierrez podia haver duas canchas, uma de cada lado dos trilhos. Cada cancha comportaria de 20 a 40 animais. Quando chegava na cancha, o boi era rapidamente derrubado do vagão por dois cativos ou puxado por uma corda fixada a uma das patas dianteiras, sendo então arrastado por um escravo a cavalo. Logo que era largado no piso da cancha, os escravos executavam as operações restantes. De acordo com Gutierrez, algumas vezes as reses apresentavam reflexos muito marcados, em outras tentavam levantar-se e executavam movimentos desordenados, emitindo gritos afônicos durante a hemorragia. Ao abrir o pescoço da rês buscava-se enterrar uma faca no seu coração (que ainda batia) dando início ao processo da sangria. Este era um procedimento indispensável que retirava do animal cerca de 12 a 13 kg de sangue e caso não fosse executado a carne passava a cheirar mal, tomando um aspecto visual nada agradável. Durante esta operação os cativos ficavam cobertos de sangue e o restante do esfolamento durava poucos minutos.17 Conforme Dreys, a disposição da cancha era tão bem feita que após as operações quase não se detectava vestígios da mesma.18 Esfolado e sem vida, iniciava-se o esquartejamento ou a despostação do animal. Conforme Couty, a rês fornecia 11 pedaços: o lombo, a s duas mantas, o “colchão”, os músculos anteriores do membro posterior, o “tatu” ou “pato”, os músculos posteriores do mesmo membro, e as duas paletas (“paleta de dentro” e “paleta de fora”). Para alimentar o
pessoal empregado nas charqueadas e os escravos eram reservadas as costelas. A cabeça, o tronco e as vísceras eram separadas e colocadas ao redor das canchas, onde outros cativos as recolhiam. O espaço era rapidamente esvaziado a espera dos próximos animais a serem esquartejados. Toda a operação da despostação, segundo Couty, durava de cinco a seis minutos.19 Em um ou mais galpões, um grupo de escravos com suas facas devidamente afiadas esperava as partes do animal para dar início às etapas seguintes. Os pedaços que eram transportados até ali ficavam suspensos em suportes especiais chamados tendidas, onde era feita a desossa. Os ossos eram separados e as carnes enviadas para outros escravos. Dava-se início à charquia, a operação mais delicada de todas. O objetivo era transformar os grandes 16
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134. GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 187-189. DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134. 19 COUTY, Louis. Op. cit., p. 97-112. 17 18
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pedaços de carne com formatos irregulares em mantas de 1,5 cm de espessura com superfícies de 1,50 metros de largura. Esta operação era realizada por dois experientes escravos, colocados um de cada lado diante da carne estendida sobre uma barra de madeira. A habilidade dos escravos carneadores era tão grande que chamava a atenção dos contemporâneos. Observador do trabalho nas charqueadas escravistas nos anos 1820, Friedrich von Weech escreveu: É obra de poucos minutos agarrar o animal, matá-lo, esticá-lo e fracioná-lo e estamos convencidos de que 60 açougueiros europeus não estão em condições de competir com 20 peões do Rio Grande do Sul. Tais homens, dedicando-se somente a este trabalho desde a mais tenra juventude, atingem nele uma prática tão extraordinária, que podem chegar a enviar ao salgadeiro, num único dia, de 70 a 80 bois.20
Durante a charquia era comum os escravos deixarem o galpão para afiarem suas facas retornando ao serviço em seguida.21 c) Do salgamento ao secamento nos varais De acordo com Dreys, após a retalhação, levavam-se as mantas de carne para outro galpão chamado “salgadeiro”, que era um “vasto alpendre guarnecido de todos os lados, até mesmo no chão, de folhas de butiá”.
22
Assim que as mantas eram entregues, outros escravos
realizavam a lanhagem ou loncagem, quando eram feitas incisões paralelas em diversas partes da carne, de cinco a quatorze centímetros aproximadamente e bastante profundas. O objetivo era aumentar a superfície exposta ao ar e ao salgamento. Após esta operação, as mantas eram colocadas sobre mesas côncavas cheias de sal, onde escravos especializados, os salgadores, as impregnavam com o produto, sobretudo nos pontos lanhados.23 Depois de salgada, a carne era empilhada no próprio galpão. Conforme Smith, o empilhamento era realizado em camadas, sendo uma de sal, outra de carne e assim por diante. As pilhas formavam uma espécie de cúpula de base quadrangular que diminuía no sentido da altura e chegava a muitos metros. Para comprimir a base da pilha com fim de torná-la o mais horizontal possível e favorecer o restante do empilhamento recorria-se a mais ou menos cinco 20
WEECH, Friedrich Von. A agricultura e o comércio do Brasil no sistema colonial . São Paulo: Martins Fontes, 1992 apud OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 132. 21 CUNHA, Alberto C. da. Um episódio de charqueada. In: MOREIRA, Maria Eunice (Org.). Narradores do Partenon Literário. Porto Alegre: IEL/CORAG, 2002, p. 41-49. 22 DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 133-134. 23 COUTY, Louis. Op. cit., p. 105. 202
cativos que de pé, em cima das pilhas, e usando as mãos ou outras ferramentas conseguiam o resultado desejado. Uma pilha formada com as carnes de 200 bois media aproximadamente 5 metros de comprimento e de largura, com 0,8 metros de altura nas pontas e 1,3 metros no centro. O empilhamento possuía um duplo efeito de impregnar a carne com o sal e de escorrer os líquidos contidos nela por meio da própria pressão. Este efeito era aumentado reempilhando-se as mesmas carnes no dia seguinte, de modo que as camadas de cima, tiradas primeiro, formavam a base da nova pilha. Ao longo desta operação, o sal derretido e supérfluo que escorria das pilhas caía depositado em reservatórios inferiores conhecidos como tanques. Nestes recipientes eram colocadas, posteriormente, as costelas, línguas e outras partes que os proprietários achassem conveniente conservar na salmoura. Em toda esta operação utilizavase uma média de 10 kg de sal para cada animal, podendo a quantidade variar conforme o seu tamanho.24 Uma charqueada que abatesse 20 mil reses numa safra, consumiria 200 toneladas de sal na mesma. Passados um dia ou dois, se o tempo estivesse suficientemente favorável, as carnes salgadas eram desempilhadas e transportadas para fora do galpão onde se iniciava a etapa do secamento. As mantas de carne eram estendidas nos varais– barras de madeira bastante longas que eram colocadas transversalmente a um metro e meio do solo, aproximadamente. No fim da tarde, as carnes eram amontoadas em vários pontos dos varais e cobertas com lonas. Encontrando tempo limpo este processo levava de 5 a 6 dias. Caso contrário, eram necessários 15 ou mais dias. Segundo Couty, após o secamento, a carne era colocada em uma pilha definitiva e separada em duas qualidades diferentes.25 Conforme Dreys, cada boi podia dar, em média, de 4 a 5 arrobas de charque (60 a 75 Kg).26
d) O tratamento dos sub-produtos: a graxa, o couro, o sebo e outros O charque era somente um dos produtos fabricados nas charqueadas. Muito antes de ele ter se tornado mercadoria importante, o couro já ocupava um papel de destaque no circuito mercantil que envolvia o Rio Grande do Sul, as capitanias do Brasil e até mesmo a Europa. O tratamento do couro nas charqueadas pelotenses também sofreu alterações ao longo do período analisado. Na primeira metade do oitocentos estacava-se o couro no chão para o seu secamento, dando-lhe um declívio para deixar correr as águas. Mas na época de Smith e 24 25 26
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 189. Para uma avaliação destes cálculos ver capítulo 9. COUTY, Louis. Op. cit. DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 142. 203
Couty os couros eram banhados em tanques de salmoura, como se faziam nas charqueadas platinas. Ao sair da fossa, os couros eram amplamente polvilhados de sal e dobrados em dois, de maneira que os pelos ficassem para o lado de fora. Depois eram dispostos, um ao lado dos outros, em camadas de couros alternadas por camadas espessas de sal. Desta forma eram colocados em edifícios especiais ou barracas, onde formavam pilhas extensas, retangulares ou quadrangulares, e de pouca elevação, contendo de 10 a 15 camadas expostas umas sobre as outras. Uma vez salgado e empilhado o couro conservava-se por longo tempo e estava pronto para ser exportado para a Europa, onde se estimava muito o produto preparado desta forma, conhecido como couro salgado.27 Mudanças na forma do preparo dos sebos e das graxas também aconteceram. Estes dois produtos constituíam-se nas partes gordurosas do boi, sendo a graxa uma gordura mais fina e o sebo, mais grosseira. Sua utilidade era industrial, pois eram empregados na fabricação de sabão, velas e ceras, embora a graxa, muitas vezes, também fosse utilizada para fins comestíveis. Na época de Dreys, os ossos, a cabeça e as extremidades do animal eram colocados numa caldeira fervente, servindo, com os miolos e o tutano, à preparação da graxa, que era, depois, encerrada na bexiga e nos intestinos grossos, para ser comercializada. Chamo atenção para este momento do preparo do produto, pois conforme Debret, era a única etapa em que ele viu mulheres escravas trabalhando no interior das charqueadas. Elas eram as responsáveis por ensacar estes sub-produtos, atividade que não exigia força, mas sim, jeito. 28 Ainda de acordo com Dreys, as partes mais sebáceas eram socadas na mesma caldeira para comporem uns pães de sebo grosseiro, que também eram vendidos. A grande inovação com relação à extração destes produtos foi a instalação das graxeiras a vapor, verificáveis nos inventáriospost-mortem a partir das décadas de 1840 e 1850. Conforme o charqueador Domingos José de Almeida, numa carta a outro empresário, ele teria incentivado a introdução destas instalações em Pelotas. 29 As graxeiras a vapor proporcionavam um melhor aproveitamento de todas as partes do animal, oferecendo subprodutos de melhor qualidade e produzidos em menor tempo. De acordo com Couty, para o preparo da graxa eram lançados cabeças, encéfalos, estômagos, corações e certas vísceras de 150 a 200 animais. O cozimento, feito a vapor de pressão, durava de 36 a 50 horas. Ao lado 27
COUTY, Louis. Op. cit. DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: USP, T. 1, 1972, p. 243. De fato, examinando todos os plantéis de escravos dos charqueadores, foi somente na graxeira que encontrei mulheres e somente num inventário, que será tratado no capítulo 9. 29 Carta de Domingos para Manoel Lourenço do Nascimento, 15.11.1862. CV – 792, in: Anais do AHRS, v. 3, 1978. 28
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da caldeira, os proprietários colocavam pipas e barricas prontas para serem cheias. Algumas delas chegavam a medir quatro ou cinco metros de altura. Na elaboração do sebo, entravam os intestinos e as membranas envolventes do peritônio. O seu período de cozimento era menor que o da graxa. Este era feito em cubas menores, de madeira grossa, reforçadas com aros de ferro, as quais tinham uma abertura lateral na parte de baixo, por onde o sebo escorria em condutos especiais.30 A charqueada ainda aproveitava outros subprodutos do animal. As línguas eram vendidas a estabelecimentos especiais que as preparavam e colocavam no mercado. Os chifres também eram exportados para diversos usos artesanais e o sangue, em algumas charqueadas, era utilizado para se fazer gelatina. Das canelas se extraía o óleo de mocotó, utilizado com efeitos medicinais. Com a introdução dos vapores na graxeira, os ossos receberam uma importância que não possuíam. Eles passaram a ser incinerados nas fornalhas que produziam este vapor e suas cinzas eram exportadas para a Europa, onde serviam como fertilizante. Portanto, em meados dos oitocentos, o preparo das gorduras e do sebo passou a exigir aparelhos especiais e dispendiosos, em que se empregava o vapor de alta pressão. Todo este investimento era justificável, pois segundo Couty, estes sub-produtos representavam para o 31
charqueador a metade do preço do animal, e ofereciam grandes lucros à charqueada. Todo o processo descrito até aqui provocava certa repugnância entre os viajantes estrangeiros. Em 1822, Saint-Hilaire deixou registrado: “Apesar de ter cessado, há meses, a matança nas charqueadas, ainda nos arredores há um forte cheiro de açougue, donde se pode fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matança”. Na época da safra, concluía ele, “não se pode aproximar das charqueadas sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa
multidão de animais decapitados, o sangue a correr em borbotões, a prodigiosa quantidade de carne exposta nos secadores, vejo que tais lugares devem inspirar contrariedade e pavor”.
Quando passou nas charqueadas do rio Jacuí, próximas de Porto Alegre, Saint Hilaire escreveu: “Antes de chegarmos, sua situação foi-nos
anunciada por nuvens de urubus, que
32
escureciam o céu”. Na mesma época, o visconde de São Leopoldo deixou um registro semelhante: “Seria útil que se prescrevessem regulamentos coercitivos p ara a limpeza e asseio
das charqueadas, pois que a demora do sangue, urina e resíduos dos animais, além de ser uma srcem de infecção, torna esses lugares nojentos, e só serve de multiplicar uma praga de 30
COUTY, Louis. Op. cit., p. 124-127. COUTY, Louis. Op. cit., p. 121-127; GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 190. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, USP, 1974. 31 32
205
moscas e de daninhos ratos, tão grandes que chegam a intimidar os gatos”.33 Herbert Smith, em 1882, deixou uma impressão semelhante. Mal chegava ao canal de São Gonçalo e “já os
nossos narizes nos tinham contado outra história, e nuvens de urubus voavam suspeitamente junto a tal coisa. Era a carne seca ou charque no processo de preparação”. 34 Na época, estimou-se que nos dias de abate cada charqueada largava cerca de 6,5 toneladas de sangue nos rios.
5.2 O PERFIL DOS TRABALHADORES CATIVOS E SUA DISTRIBUIÇÃO NAS UNIDADES PRODUTIVAS Parafraseando o comentário que o jesuíta André João Antonil fez com relação aos engenhos de açúcar nos séculos XVII e XVIII, pode-se dizer que os escravos eram as mãos e
os pés do charqueador. Como foi visto até aqui, sem a existência da escravidão africana e o tráfico atlântico a montagem do complexo charqueador ficaria fortemente comprometida. Mas qual as características da escravidão nas charqueadas pelotenses? De início, é necessário investigar melhor como os mesmos estavam divididos nas unidades produtivas destes proprietários. Para realizar esta análise e chegar o mais perto possível da distribuição de funções dos mesmos cativos, selecionei, entre os 45 inventários post-mortem de charqueadores (1831-1885), somente aqueles em que mais de 80% das ocupações dos 35 escravos foram mencionadas no inventário, resultando em 17 documentos. Analisando tais
inventários, proponho uma divisão em quatro grupos de atividade distintos no qual os escravos podiam estar divididos: a) os ligados diretamente à produção do charque, trabalhando no interior dos estabelecimentos; b) os que eram empregados em atividades acessórias às charqueadas e externas aos estabelecimentos; c) os artesãos especializados em algum ofício; d) os de serviço doméstico. Esta divisão não era rígida. É muito provável que em alguns momentos no auge da matança, e conforme as necessidades do proprietário, os
33
PINHEIRO, José F. Fernandes.Anais da Província de São Pedro.Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. SMITH, Herbert. Op. cit., p. 135-142. No caso dos inventários com plantéis avaliados mais de uma vez (quando os bens do casal eram avaliados na morte de um cônjuge e, anos depois, o do viúvo) foram mantidos somente aqueles que possuíam informações mais completas. 34 35
206
campeiros, marinheiros e artesãos diversos fossem realocados para as tarefas no interior da charqueada.36 a) Entre os trabalhadores da charqueada, verificavam-se os carneadores, descarneadores, charqueadores, tripeiros, salgadores, sebeiros, chimangos, graxeiros e serventes, além dos aprendizes. Estes escravos eram, sem dúvida, as engrenagens da charqueada. Na maior parte dos inventários, eles ficavam entre 40% e 65% de todo o plantel do proprietário, atingindo uma média geral próxima dos 56% (aonde o mínimo chegava a 36% e o máximo a 90% do plantel de um charqueador). No interior deste grupo de escravos, os mais numerosos eram os carneadores. Em alguns plantéis eles compunham a metade dos escravos deste grupo e em outros chegavam a 2/3 do mesmo. Os segundos mais numerosos eram os escravos salgadores e os serventes, seguidos pelos chimangos e graxeiros. Os serventes aparecem em alguns plantéis como “serventes de charqueada”. Os me nos
comuns
eram os tripeiros, os descarnadores e os sebeiros. Observados com atenção, estas sub-ocupações parecem revelar a própria transformação e especialização no interior das charqueadas. Carneadores e graxeiros aparecem nos inventários desde a década de 1810. Os serventes, os salgadores e os sebeiros só começam a aparecer a partir da década de 1820. Os primeiros chimangos discriminados como tal só surgem nos plantéis da década de 1840. Os escravos mais especializados como os tripeiros surgem somente nos inventários da década de 1850 e os descarnadores na década de 1860.37 Tal fenômeno não significa que as atividades executadas pelos tripeiros e descarnadores, por exemplo, não eram realizadas anteriormente, mas sim, que a intensificação das mudanças de ordem técnica passou a exigir cada vez mais o treinamento e a especialização de alguns escravos do plantel (algo que ocorria com maior destaque nos
saladeros platinos)38, ao ponto de eles serem reconhecidos pelos avaliadores comoexperts naquele ofício.
36
Também é provável que esta divisão fosse menos rígida entre os menores plantéis, podendo os escravos exercer mais de uma função ao mesmo tempo. Mas o fato de eles serem avaliados nos inventários com uma especialização e declararem as mesmas quando informantes ou réus em processos-crime significa que havia um grau de especialização que precisa ser levado em conta. Abaixo, analiso melhor estes quatro grupos. Uma análise neste sentido foi realizada por Berenice Corsetti e Ester Gutierrez. Contudo, acrescentei outras considerações e diferentes metodologias de tratamento e exposição dos dados pesquisados. 37 Uma consideração semelhante foi feita por PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX. Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 97-114. 38 COUTY, Louis. Op. cit. 207
Com relação ao treinamento é importante dar destaque aos “aprendizes”. Eles estão ausentes nos inventários das décadas de 1810 a 1830, começando a aparecer somente na década de 1840. Os aprendizes de carneador eram os mais numerosos, visto esta ser uma das atividades mais difíceis de ser executada na charqueada. Os aprendizes de salgador também estavam presentes nos plantéis e junto deles há os que somente foram definidos como “aprendiz”.
Eles também poderiam ser aprendizes de graxeiro, pois encontrei dois mestres
graxeiros, entre os escravos. Tal fenômeno revela uma preocupação do proprietário em treinar seu plantel para otimizar a produção, algo que apresentava traços de uma maior racionalização do trabalho. Sobre isto há outro fator interessante. Os descarnadores, tripeiros, aprendizes e mestres estão presentes somente nos maiores plantéis, geralmente os acima de 70 escravos, mas, sobretudo, entre os inventariados com mais de 100 cativos. Seria a riqueza e o número de escravos pré-condição para uma especialização do plantel? Ou seria o contrário? Charqueadores com uma visão mais “avançada” de organização do trabalho na charqueada
teriam maiores chances de enriquecer podendo assim ampliar seu plantel? Creio que um fator complementasse o outro, mas me inclino a pensar que, naquela conjuntura, a fortuna sorriu aos mais “empreendedores” – questão que será tratada de forma mais aprofundada no capítulo
9. A seguir, escolho alguns exemplos para demonstrar tal fenômeno.
Nos inventários das décadas de 1810 a 1840, a maioria dos documentos apresentava uma precária divisão do trabalho. O plantel menos especializado era o de Domingos Rodrigues (1818), cujos 42 escravos foram descritos com a ocupação “serviço da casa e da charqueada”.
39
Portanto, não havia uma distinção muito clara sobre as atividades dos cativos.
Pode-se argumentar que foi desleixo do escrivão e dos avaliadores ou que a feitura dos documentos da época não especificava estas ocupações. Entretanto, estas hipóteses não se verificam nos outros inventários da mesma época. Em contrapartida, o mais especializado daquele período era o plantel de José Pinto Martins (1827), aquele que apelidei como o mito fundador das charqueadas40em Pelotas e que teria inovado na organização fabril do município nos fins do século XVIII. A especialização do seu estabelecimento se comparada aos de sua época é mais um indício de que seu papel como“empreendedor” local foi importante.
39
Inventário de Domingos Rodrigues, n. 32, m. 2, 1818, Pelotas, 1º cart. órfãos e provedoria (APERS). Inventário de Inventário de José Pinto Martins, n. 354, m. 15, 1832, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS). 40
208
No entanto, como um divisor de águas, o inventário de Maria Augusta da Fontoura (1845) destoa dos outros de sua época. 41 Ela era esposa do charqueador Joaquim José de Assumpção. No seu plantel de 125 escravos, o número de aprendizes é muito maior que o dos outros. Havia 4 aprendizes de carneador e 3 de salgador, além de outros 3 denominados somente “aprendizes”. Fora da charqueada havia 2 aprendizes de campeiros, 1 de carpinteiro e
1 de calafate. Talvez este charqueador possuísse uma visão mais empresarial sobre a forma de organização do trabalho em sua unidade produtiva e possa ter influenciado os outros a seguirem o seu padrão. Seu filho homônimo herdou o estabelecimento paterno e tornou-se o Barão do Jarau. Se o pai apresentou uma fortuna mediana em sua época, o filho foi o charqueador mais rico de Pelotas na segunda metade do oitocentos. Portanto, a herança de Joaquim para o filho não foi composta somente por bens materiais, mas também por conhecimentos técnicos e uma prática de organizar a produção e o trabalho escravo de forma mais especializada, ou seja, uma herança imaterial que deve ter auxiliou o filho a ampliar a fortuna do pai.42 b) Um outro grupo de escravos importante era formado por aqueles que realizavam tarefas acessórias à charqueada, sem ser diretamente ligadas à matança e fabricação do charque e dos sub-produtos. Algumas delas estavam quase integradas ao estabelecimento. Os mais importantes eram os campeiros, encarregados de tratar das reses nos potreiros da charqueada antes do abate, e os marinheiros, que trabalhavam no transporte fluvial e marítimo dos produtos da charqueada. Muitos campeiros também eram empregados nas estâncias dos charqueadores, geralmente em outros municípios. No serviço do transporte terrestre havia os carreteiros e carroceiros. E trabalhando nas chácaras e lavouras dedicadas a abastecer a charqueada de alimentos havia os tafoneiros, roceiros e lavradores. Mas nem todos os plantéis possuíam escravos deste grupo. Os marinheiros só estavam presentes entre os que tinham alguma embarcação e os campeiros eram mais comuns entre os que possuíam estâncias. O mesmo serve para os roceiros, lavradores e tafoneiros com relação às lavouras e chácaras. Na maioria dos inventários, os escravos deste grupo perfaziam de 10% a 15% dos plantéis, havendo casos com um mínimo de 2% e outros com um máximo de 32%. 41
Inventário de Maria A. da Fontoura, n. 514, m. 22, 1845, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS) No entanto, esta especialização, que se intensificou a partir de meados dos oitocentos, não foi linear e evolutiva e nem envolveu todos os escravos e plantéis. Um plantel com aprendizes e descarnadores também era composto de escravos sem um ofício definido ou escravos com dois ofícios, como alfaiate/salgador ou carpinteiro/carneador. Algo até certo ponto compreensível para uma empresa que funcionava somente durante seis a sete meses ao ano. Portanto é possível que alguns charqueadores tenham especializado o seu plantel servindo de exemplo para outros, mas tal fenômeno apresentou um processo gradativo e certamente cheio de percalços. 42
209
A posse de tais cativos também podia indicar uma importante busca de autosuficiência das unidades produtivas no que diz respeito ao transporte fluvial e marítimo, ao abastecimento de alimentos para os cativos e de gado para a charqueada. 43 Aníbal Antunes Maciel, por exemplo, era o charqueador com o maior número de escravos campeiros. Eles totalizavam 20 cativos com este ofício. Analisando seu inventário, percebe-se que o coronel Aníbal era o dono do maior rebanho entre os charqueadores. Ele possuía mais de 25 mil reses de criar pastando nas suas estâncias. O mesmo serve para a relação entre o número de marinheiros e o de embarcações, por exemplo.44 Neste grupo também localizei aprendizes de campeiro e de marinheiro. Os aprendizes de campeiro eram muito jovens, tendo 12 ou 13 anos.45 Com relação aos marujos, destaco os “aprendizes de marinheiro de brigue”. E aqui é possível fazer duas considerações. A primeira
é de que, assim como outros ofícios, também havia treinamento para ser marinheiro dentro da própria charqueada. A segunda é a de que havia uma separação entre os marinheiros de um iate e os que podiam ultrapassar esta barreira, podendo estar a bordo de um brigue, uma embarcação de maior porte, utilizada em viagens marítimas de longo curso e que exigia um maior treinamento. A presença de escravos com o apelido de “capitão” sugere que os mesmos deviam treinar estes aprendizes. c) Outro grupo importante no plantel dos charqueadores eram os escravos artesãos ou com ofícios especializados. Entre eles existiam carpinteiros, alfaiates, sapateiros, pedreiros, tanoeiros, lombilheiros, marceneiros, oleiros, correeiros e ferreiros. Considerei que as mulheres costureiras também deveriam fazer parte deste grupo. Eles podiam compor entre 3% e 12% do plantel, com uma média de 6%. Os carpinteiros eram os mais numerosos, seguidos dos pedreiros, sapateiros e alfaiates. Este grupo era muito importante nas charqueadas, pois seus serviços eram utilizados para reformar o próprio estabelecimento e seus equipamentos, visto que as instalações deviam sofrer uma manutenção anual. Além do mais, como já mencionei, suas atividades também eram importantes na construção civil e na fabricação de vestimentas para os escravos. A possibilidade de alugar os seus trabalhos, também os tornava um grupo importante. Entre os mesmos também verifica-se um número significativo de aprendizes, mas estes já estavam presentes nos inventários dos fins do século XVIII e início 43
Contudo, como se verá no capítulo7, a autosuficiência no abastecimento de gado era impossível de ser alcançada. 44 Inventário de Felisbina da S. Antunes, n. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime; Inventário de Anibal A. Maciel, n. 815, m. 48, 1875, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 45
Como será evidenciado a seguir, existiam crianças escravas classificadas como “campeiras” com idades
menores do que os 12 anos. 210
do XIX e não causam muita surpresa, pois estes ofícios mecânicos sempre foram praticados por escravos, envolvendo relações entre mestres e aprendizes. Outro fator importante do grupo é que muitos escravos exerciam este ofício combinado com outro que dizia respeito a alguma tarefa realizada no interior da charqueada, surgindo cativos discriminados como pedreiro/carneador,
servente/sapateiro,
graxeiro/carpinteiro,
alfaiate/salgador/
tanoeiro/tripeiro, entre outros. d) O último grupo reúne os escravos de serviço doméstico ou ligados a atender as necessidades mais pessoais do charqueador e de sua família. Entre os mesmos encontram-se as mucamas, lavadeiras, cozinheiras, engomadeiras, copeiros e serviços domésticos. Também coloquei neste grupo os boleeiros, visto conduzirem seus senhores diariamente pela cidade. Como pode-se perceber, é neste grupo que as mulheres se faziam mais representadas. As tarefas realizadas por este grupo também eram essenciais para o senhor, mas a sua quantidade também devia revelar um maior status social. É possível que algumas das cozinheiras aqui elencadas trabalhassem nas charqueadas preparando a comida para os demais cativos e que alguns serventes colocados no primeiro grupo aqui analisado estivessem presentes neste, conforme se percebe nos inventários. O trânsito de escravos entre as instalações da charqueada e a casa do senhor devia ser corrente, mesmo quando este morava na cidade. Apesar dos seus plantéis apresentarem uma razão de sexo muito alta (os homens perfaziam 82% dos escravos) em mais de 85% deles havia crianças, o que indica a existência de laços familiares, e, portanto, do contato entre as distintas senzalas (charqueada, estâncias e chácaras) e a casa do senhor, mas também, possivelmente, das escravas do charqueador com libertos e homens livres pobres. A observação individualizada de alguns plantéis também auxilia a perceber a divisão do trabalho no interior das unidades produtivas. A análise da escravaria do casal José Antônio Moreira e Leonídia Gonçalves (o Barão e a Baronesa do Butuí) serve para complexificar esta 46 análise, pois seus inventários trazem informações não existentes em outros plantéis. A
Baronesa faleceu em 1867 e o Barão em 1877. Em 1867, foram arrolados 132 escravos e, em 1877, 158. No interior do segundo processo foi anexada a cópia dos registros de matrícula dos escravos do inventariado, realizadas em 1872/1873, com detalhes sobre a idade, naturalidade,
46
Inventário do Barão e da Baronesa de Butuí. Pelotas, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 211
profissão, estado civil e filiação de 142 cativos.47 O diferencial da documentação envolvendo o Barão de Butuí é que o escrivão anotou o local em que moravam e trabalhavam os respectivos escravos, algo não verificável com tamanhos detalhes para os outros charqueadores. Entretanto, todos foram matriculados como “serviço de charqueada”. Como no inventário de 1867 os escravos tiveram suas especialidades discriminadas, cruzei os dois documentos para compreender como o plantel do casal estava dividido entre as diferentes unidades produtivas do charqueador. A partir da cópia das matrículas de 1872, o plantel de escravos do Barão de Butuí estava dividido da seguinte forma: residentes na cidade (27), na charqueada (79), na Serra dos Tapes (3), na Estância de Poncho Verde, localizada no município de Bagé (18), a bordo da Barca Pombinha (5), do Patacho Moreira (3), do Iate Santa Rita (4) e do Iate Novo São Jerônimo (3). A partir desta divisão já é possível perceber que 55% do plantel residia na charqueada, 19% na cidade, onde o Barão possuía dois sobrados e diversas casas e terrenos. Na estância e na chácara nos Tapes estavam 15% deles e a bordo e alguma embarcação encontravam-se 10%. Na charqueada havia 68 homens adultos e 2 mulheres adultas, 5 meninos e 4 meninas menores de 12 anos. As crianças eram filhas das escravas Carlota (2), que não pertencia mais ao plantel, Regina (4) que trabalhava na charqueada no serviço doméstico, e Agostinha (3), que era engomadeira e morava na cidade.48 Das crianças, todas não possuíam ofício, com exceção do menino Norberto, que com 12 anos já era servente de charqueada e devia estar aprendendo algum ofício mais especializado. Dos homens adultos, um prestava serviços domésticos e outro era o cozinheiro da charqueada. O restante foi definido como “servente de charqueada”. Mas cruzando com os dados do inventário da Baronesa, de 1867, é possível
discriminar a sua função no interior do estabelecimento. Destes 66 escravos, 19 eram carneadores, 11 eram chimangos, 10 eram salgadores e 2 eram descarnadores. Havia também 1 graxeiro/carpinteiro e 1 chimango/alfaiate. Para os outros 22 não foi possível definir a especialização. Portanto, como afirmei anteriormente, a razão de sexo no estabelecimento de 47
Sobre a legislação que ordenava a feitura dos registros das matrículas dos escravos e as possibilidades de pesquisa com esta documentação ver SLENES, Robert. O que Rui Barbosa não queimou: Novas Fontes para o Estudo da Escravidão no Século XIX. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, jan./abr. 1983, pp. 117-149. 48 Não foi possível saber quem eram os pais das crianças. Sobre os limites do uso de inventários post-mortem para estudo da família escrava em Pelotas ver PESSI, Bruno S. A família escrava em Pelotas na segunda metade do século XIX a partir de inventários post-mortem. Anais da IX Mostra de pesquisa do APERS.Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 245-264. Para o estudo da família escrava em Pelotas na primeira metade do século XIX ver PINTO, Natália Garcia. Op. cit. Sobre o uso de fontes paroquiais e o estudo da escravidão em Pelotas ver COUTO, Mateus de Oliveira. A pia e a cruz: a demografia dos trabalhadores escravizados em Herval e Pelotas (1840-1859). Passo Fundo: UPF, 2011. 212
charqueada era maior que a do plantel inteiro do charqueador. Enquanto no primeiro somavase 97% de homens (contando apenas os adultos) ou 92% (somando as crianças), no plantel total tinha-se 92% e 87%, respetivamente. Na estância do Ponche Verde havia 11 homens adultos, 3 mulheres adultas, 3 meninas e 1 menino. Dos 11 homens, 10 eram campeiros e 1 cozinheiro. Entre as mulheres havia 1 costureira, 1 roceira e 1 doméstica. Observe-se que na estância, a diferença dos sexos era menor (78% entre os adultos), embora ainda fosse alta. Os 3 escravos da Serra dos Tapes eram roceiros e os 15 escravos nas embarcações, com exceção do cozinheiro José, eram todos marinheiros. Dos 27 escravos residentes na cidade, havia 18 homens adultos, 5 mulheres adultas, 3 meninos e 1 menina. Entre os mesmos, estavam 2 escravos alfaiates, 2 carpinteiros, 4 pedreiros, 1 sapateiro, 2 copeiros, 2 cozinheiros, 1 boleeiro, 3 costureiras, 2 engomadeiras, 1 lavadeiro, 2 serventes e 1 campeiro que estava na cidade para ser vendido. É muito provável que os escravos com ofícios artesanais que viviam na cidade fossem alugados auferindo significativos lucros ao senhor. Portanto, verificam-se crianças na charqueada, na cidade e na estância em Bagé. Creio tratar-se de três núcleos escravistas distintos, muito embora, como já mencionei, havia trânsito entre os mesmos. É provável que os pais destas 17 crianças estivessem trabalhando nos mesmos núcleos, muito embora os filhos da escrava Agostinha, residente na cidade, estivessem na charqueada. Estes 17 escravos num plantel de 142 significavam que 12% do total do plantel era renovado com as chamadas “crias de casa”. Analisando somente a charqueada, este valor mantem-se em 11%. Tratava-se de um índice superior à média total de crianças de 6,9% apresentada para todas as charqueadas entre os anos 1866 e 1885, que será analisado mais adiante. Um dos fatores que potencializava a reprodução natural de cativos era a posse de estâncias, chácaras e a presença de escravas domésticas, uma vez que, como foi demonstrado, havia somente duas mulheres na charqueada. Portanto, privilegiados eram os escravos que conseguissem circular para além das charqueadas, para, quem sabe, ir ao encontro de uma das demais cativas do senhor. O número de mulheres adultas fora da charqueada era 4 vezes superior ao número de mulheres na charqueada. Contudo, o círculo de relações afetivas dos escravos não se restringia às senzalas do charqueador, podendo, como demonstrarei no capítulo posterior, estender-se para fora do cativeiro. Portanto, a análise do plantel do Barão de Butuí é um bom exemplo de como um charqueador rico dividia a sua escravaria. É necessário destacar que 85% dos cativos arrolados nas matrículas eram comprados. Com relação aos seus valores (mas sem levar em 213
conta as idades) os mais caros eram os carneadores, com uma média de 1:420$, seguidos pelos copeiros (1:400$), cozinheiros (1:400$), campeiros (1:340$), salgadores (1:100$) e carpinteiros (1:000$). O alto valor dos cozinheiros e copeiros demonstra os gastos de Butuí com os escravos domésticos, além da sua preocupação em investir na distinção social, o que denota o comportamento de uma família de elite. É necessário também referendar que somente 55,6% do plantel concentrava-se na charqueada. Portanto, para atuar com sucesso em outras atividades econômicas (pecuária e alto comércio) os charqueadores necessitavam de uma extensa mão de obra. Isto ajuda a compreender porque os plantéis dos 12 charqueadores mais ricos de Pelotas na segunda metade do oitocentos (aqueles que legaram mais de 50 mil libras e que serão analisados mais profundamente nos capítulos 7, 8 e 9) possuíam uma média de escravos acima da média geral (115 cativos contra 56 da média geral). Neste sentido, o tamanho da escravaria era diretamente proporcional à riqueza acumulada pelo charqueador e a amplitude de seus investimentos. Analisando o trabalho cativo nas charqueadas, Fernando Henrique Cardoso formulou a tese da “economia de desperdício” nestes estabelecimentos. Tal afirmação sustentava -se
no
fato de que a safra nas charqueadas durava em torno de 6 a 7 meses (novembro a abril/maio). Inspirado em Louis Couty, Cardoso afirmou que numa empresa capitalista, com o término da matança, os empregados seriam dispensados e recontratados na próxima safra, enquanto que nas charqueadas os senhores eram obrigados a manter o sustento de seus plantéis improdutivos por mais um semestre.49 Berenice Corsetti e Ester Gutierrez já refutaram esta afirmação, pois havia uma série de atividades para além das charqueadas, em que os escravos podiam ser empregados.50 Além da charqueada, muitos empresários também possuíam olarias, algo que não era privilégio dos charqueadores mais ricos. Somavam-se às mesmas as carpintarias, ferrarias, fábrica de curtumes, de colas ou estaleiros que podiam compor o patrimônio de outros charqueadores. Nas chácaras e datas de terras de matos (muito mais comuns do que os estabelecimentos citados acima) o trabalho cativo também era importante. Dali provinha parte da alimentação dos cativos, mas também a madeira para o forno das graxeiras à vapor e das olarias. Estudando a charqueada de Domingos José de Almeida, Carla Menegat também constatou que os extensos pomares presentes nas propriedades permitiam que parte da
49
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul.2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 50 CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit. 214
escravaria tivesse seus serviços direcionados para a produção de alimentos, as olarias, as fábricas de sebo e velas e as atafonas. Analisando as cartas escritas pelo charqueador, a autora verificou que Domingos deixava claro aos capatazes a importância da produção de alimentos, recomendando que fosse muito bem cuidada e que se vigiasse a escravaria. A plantação de mandioca tinha nas suas terras a dupla função de manter os escravos ocupados e de prover sua alimentação. Ela era um apêndice importante da charqueada, além de permitir as negociações do excedente.51 Ainda é necessário realizar uma análise maisaprofundada do perfil dos plantéis dos charqueadores pelotenses. A análise de 48 inventários post-mortem de charqueadores (entre 1831 e 1885) que, quando faleceram, ainda possuíam seus estabelecimentos, ajuda a definir alguns fatores a este respeito. Os documentos reúnem 2.732 escravos, mas nem todos trazem as informações de ocupação, idade, naturalidade e preço. No que diz respeito ao sexo dos escravos tem-se 440 mulheres e 2.290 homens (2 não tiveram a informação identificada), o que resulta numa alta razão de sexo de 520 homens para cada 100 mulheres. No entanto, este era o índice referente ao plantel total dos senhores (somando escravos da charqueada com os domésticos, marinheiros, campeiros, entre outros) e não aos que trabalhavam exclusivamente na charqueada. Como foi visto anteriormente, o número de homens com relação às mulheres no trabalho da charqueada era muito maior. Para analisar o preço dos escravos das charqueadas selecionei somente os escravos adultos (incluí nesta faixa os cativos entre 15 e 40 anos) e excluí todos aqueles avaliados como “doentes”, “quebrados” ou com alguma anotação dos avaliad ores que fizesse diminuir o
seu valor no plantel.52 Também converti os valores anuais para libras esterlinas calculando as médias quinquenais.53 A partir do Gráfico 5.1 percebe-se que até 1860 o preço das mulheres 51
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPGHistória UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009, p. 147. Alberto Coelho da Cunha, filho do charqueador José Ignácio da Cunha, quinta maior fortuna entre estes, escreveu que: “Fazendo concorrência aos modestos
agricultores, os estancieiros e abastados charqueadores se consideravam em dever de também possuírem datas de matos na Serra”. Cunha refere-se à Serra dos Tapes, que era coberta por uma grande e densa mata, de onde se extraíam as melhores madeiras. Sobre o aproveitamento daquelas terras, o autor comentou: “A mais extensa
cultura de então faziam-na os charqueadores, quase todos proprietários de datas, que, no intervalo das safras, para continuarem a tirar proveito do capital, punham a negrada a derrubar matos e a plantar milho e feijão”. Daí
entende-se a presença de roceiros, serradores, marceneiros, lustradores, mas, sobretudo, carpinteiros nos plantéis dos charqueadores (GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 123). 52 Eliminei da análise duas cativas de Inácio Rodrigues Barcellos avaliadas em 1863. Desconheço o motivo, mas os seus valores em mil réis correspondiam a 1/5 do da grande maioria das mulheres cativas do mesmo período, o que causaria uma grande distorção na c urva “1861-1865” do gráfico. 53 Juntei os anos 1831-35 a 1836-40 porque como o Judiciário esteve paralisado em Pelotas durante a Guerra dos Farrapos, houve poucos processos no período. 215
acompanhou o dos homens, para estacionar-se na década de 1860 e sofrer uma queda brusca após a Lei do Ventre-Livre (1871). Enquanto isto, os preços dos cativos do sexo masculino mantiveram-se em ascensão até atingir o ultrapassar os 1:600$ em 1861-65, para depois iniciar uma queda. Na década de 1880, quando a escravidão já estava condenada, os valores dos escravos de ambos os sexos encontravam-se num notável declínio (além disso, neste último período não havia mulheres sadias nos inventários com informações do preço e da idade). Os índices também demonstram que no período em que o tráfico esteve vigente, mesmo que considerado ilegal pela Lei de 1831, os preços dos escravos mantiveram-se relativamente baixos e estáveis. Gráfico 5.1 – Preço dos escravos adultos (de 15 a 40 anos)e sadios nas charqueadas de Pelotas (1831-1885) (em libras esterlinas)
200 180 160 140 120 100 80 60 40 20 0
Mulheres
Homens
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)
Para refinar melhor a análise dos dados a seguir separei os inventários em três períodos distintos. O primeiro elenca inventariados antes da Lei Eusébio de Queiroz, o segundo reúne cativos inventariados durante a fase de grande ascensão dos preços dos escravos adultos nas charqueadas de Pelotas e o terceiro reúne os inventariados durante a fase da queda dos mesmos até o fim da escravidão. Analisando a Tabela 5.1 percebe-se que a média de escravos foi decrescente ao longo de todo o período, enquanto a razão de sexo 54 aumentou, chegando a 850 escravos homens para cada 100 mulheres nos últimos decênios.
54
Estabelecendo uma análise de 5 em 5 anos, Bruno Pessi percebeu que entre 1850/54 e 1880/84 a média caiu de 59,5 para 44,3 cativos por charqueador. Contudo, neste meio tempo, elas oscilaram bastante, chegando a 81,2 escravos em 1865/69 e 42,9 escravos em 1870/74 (PESSI, Bruno. Op. cit., 2012, p. 74). 216
Ester Gutierrez defendeu que não houve redução nos plantéis dos charqueadores ao longo do período, pois a média da década de 1880 teria sido superior à média de todas as décadas anteriores.55 No entanto, incorporando uma quantidade maior de inventários de charqueadores entre 1850 e 1884, Bruno Pessi demonstrou que, embora os indicadores apresentassem oscilações, houve uma diminuição dos mesmos.56 De fato, de acordo com os inventários que pesquisei e a ampliação da escala em longa duração (estabelecendo para isto períodos analíticos de 15 a 20 anos), é possível perceber que a média dos plantéis dos charqueadores caiu ao longo dos anos. Observando os mesmos inventários por décadas, percebi que nos anos 1840 a média era de 65 escravos por charqueada. Na década de 1850, esta média cai bastante, chegando a 51 cativos. Na década de 1860 ela volta a subir para 59 escravos. Na década de 1870 cai para 55 cativos e entre 1881 e 1885, apresenta uma média de 42 escravos – a menor de todo o período.
Tabela 5.1 – Número de escravos e razão de sexo por período (1831-1885) 1831-1850
Inventários Escravos Média por inv. Homens Mulheres Razão de sexo
1851-1865
1866-1885
Total
15
19
14
48
1.016* 67,7 830 (81,7%) 185 448
1.022* 53,8 839 (82%) 182 461
694 49,5 621 (89,4%) 73 850
2.732 56,9 2.290 440 520
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS) * Um cativo não teve o sexo identificado
Contudo, a queda da média de escravos por plantel precisa ser melhor matizada, pois, como será visto a seguir, até o meado dos anos 1870 a população cativa em Pelotas mantevese em crescimento. No entanto, se os charqueadores estavam sofrendo uma diminuição na média dos seus plantéis, o maior número de homens escravos em relação às mulheres escravas (em nítido crescimento) demonstra que enquanto um grupo devia estar comprando novos cativos homens no tráfico interno um outro grupo não conseguia obter o mesmo sucesso na reposição dos escravos velhos e doentes. Portanto, não é adequado falar em uma crise geral de braços no setor, mas sim, numa crise que afetou um grupo de charqueadores, mas não afetou
55 56
GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 178. PESSI, Bruno. Op. cit., 2008. 217
outro.57 Além disso, também é possível verificar que a Lei do Ventre Livre (1871) retirou o interesse dos charqueadores em repor os seus plantéis com mulheres cativas, colaborando com a maior diminuição do número de escravas em termos absolutos, se comparadas aos homens. Tabela 5.2 – Faixa etária e sexo dos escravos dos charqueadores (1831-1885) 1831-1850
1851-1865
1866-1885
Total
419 (82,9%) 86 (17,1%)
445 (90,1%) 49 (9,9%)
228 (88,7%) 29 (11,3%)
1.092 164
33,6
26
18,3
26,1
Sexo
Adultos De 15 a 40 anos
M F
Média por invent. Razão de Sexo Subtotal
487
908
786
665
505* (49,7%)
494 (48,4%)
257 (37,1%)
1.256* (45,9%)
Crianças A
M
24
21*
12
57
De 1 mês a 7 anos
F
21
21
8
50
Crianças B
M
28
12
20
60
De 8 a 14 anos
F
20
10
8
38
93 (9,1%)
64 (6,2%)
48 (6,9%)
205 (7,4%) 792
Subtotal Idosos
M
239
231
322
Acima de 41 anos
F
25
27
13
65
Subtotal
265* (26,2%)
258 (25,3%)
335 (48,2%)
858 (31,4%)
Idade não identificada
153 (15%)
206 (20,1%)
54 (7,8%)
413 (15,1%)
1.016*
1.022*
694
2.732
Total
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS) * Um cativo não teve o sexo identificado
Na Tabela 5.2 separei os cativos em 4 faixas etárias. O foco principal foi definir a representatividade dos escravos adultos nos plantéis, tendo elencado nesta categoria os escravos de 15 a 40 anos, como já disse. Decidi separar as crianças em dois grupos, tendo como critério a primeira idade em que elas foram classificadas com um ofício de trabalho. Como o pequeno Clemente, de 8 anos, foi arrolado como “campeiro” do charqueador João
Simões Lopes escolhi esta idade como um divisor. 58 A Tabela demonstra que a média de escravos adultos entre os plantéis apresentou uma grande queda, ao mesmo tempo em que a 57
Mais adiante demonstro que foi exatamente isto o que aconteceu, ou seja, um grupo de charqueadores conseguiu resistir com algum sucesso ao fim do tráfico atlântico e o aumento do preço dos escravos, às custas de outros escravistas com menores condições, entre os quais estavam charqueadores arruinados. 58 Pesquisando o perfil dos escravos traficados para o Rio Grande do Sul, Gabriel Berute localizou uma grande quantidade de crianças e jovens. Para o autor, tal perfil se explica pelo fato de que o ofício de campeiro era ensinado a escravos bem jovens e que a própria atividade podia ser exercida pelos mesmos, pois não exigia força e sim destreza com o cavalo (BERUTE, Gabriel Santos. Op. cit., 2006). 218
razão de sexo quase dobrou do primeiro para o segundo período, reforçando o que foi dito acima. O número alto de homens idosos no primeiro período indica a intensidade do tráfico atlântico na primeira metade do XIX. Além disso, analisando em conjunto os indicadores de razão de sexo entre os idosos (956 no primeiro período e 2.476 no último) com a ainda significativa presença de homens adultos entre 1866-1885, pode-se verificar a permanência dos efeitos do tráfico, desta vez juntamente com o comércio interno, mesmo às vésperas do fim da escravidão. Além disso, o grande aumento da razão de sexo entre as crianças B no último período indica que as mesmas também estavam presentes no circuito mercantil interno. Analisando os mesmos dados ainda é possível perceber que no último período os escravos idosos somavam quase a metade do plantel dos senhores, apresentando, como em outras regiões, um envelhecimento do plantel dos charqueadores. Tabela 5.3 – Africanidade e sexo nos plantéis dos charqueadores (1831-1885) 1831-1850 Africanos
314 H 270 86%
Crioulos
Africanidade Não Identificados Totais
422
M 42 14%
H 386 91,5%
M 50 33,6%
H 171 66,8%
149 H 99 66,4%
1851-1865
M 36 8,5%
256* M 84 33,2%
1866-1885 222 H 217 97,7%
958 M 5 2,3%
H 873 91,1%
M 31 11,8%
H 502 75,1%
263 H 232 88,2%
Total
M 83 8,9%
668 M 165 24,9%
67,8%
62,2%
45,7%
58,9%
554 (54,5%)
344 (33,6%)
209 (30%)
1.107 (40%)
1.016
1.022
694
2.732
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS) * Um cativo não teve o sexo identificado
A Tabela 5.3 busca investigar o percentual de africanos nos plantéis dos charqueadores. Vimos no capítulo 3 que 67,4% dos 5.623 escravos recenseados em Pelotas no ano de 1833 eram africanos, denotando um significativo vínculo da economia local com o tráfico atlântico. Os dados apresentados confirmam esta tendência nos inventários entre 1831 e 1850, quando 67,8% dos escravos com informações eram africanos. Entre 1851 e 1865, este índice diminui em 5,6%, vindo a apresentar uma grande queda no último período, como seria de se esperar. Dos 252 escravos com informações sobre a sua naturalidade entre 1875 e 1885, 101 (40%) eram africanos. Assim como nas outras tabelas, a razão de sexo também aumenta ao longo de todo o período atingindo grandes índices entre africanos (4.340) e crioulos (748) nos últimos anos, parecendo demonstrar que as charqueadas sempre mantiveram-se 219
fortemente vinculadas primeiro ao tráfico atlântico (até a sua abolição em 1850) e depois ao tráfico interno de escravos (visto o alto índice de homens adultos nos últimos decênios). Portanto, torna-se ainda mais evidente que o declínio da escravidão foi um dos grandes 59 responsáveis pelas crises sofridas pelas charqueadas pelotenses.
Tabela 5.4 – Africanidade e sexo entre escravos adultos e idosos (1831-1885) 1831-1850
1851-1865
1866-1885
Total
Sexo
Africanos adultos
M
157 (82,2%)
229 (94,2%)
18 (94,7%)
404
De 15 a 40 anos
F
33 (17,2%)
14 (5,8%)
1 (5,3%)
48
191*
243
19
453*
Crioulos adultos
M
44 (67,7%)
94 (81,1%)
150 (90,3%)
288
De 15 a 40 anos
F
21 (32,3%)
22 (18,9%)
16 (9,7%)
59
Subtotal
Subtotal
65
116
166
347
74,6%
67,7%
10,3%
56,6%
256
359
185
800
M
95 (92,2%)
130 (92,2%)
196 (98%)
421
F
9 (7,8%)
11 (7,8%)
4 (2%)
24
104
141
200
445
M
21 (80,7%)
26 (83,8%)
61 (93,8%)
108
F
5 (19,3%)
5 (16,2%)
4 (6,2%)
14
Subtotal
26
31
65
122
Africanidade (idosos)
80%
82,9%
75,4%
78,5%
Total
130
172
265
567
Africanidade (adultos) Total Africanos idosos Subtotal Crioulos idosos
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (1831-1885) (APERS)
Completando estas informações com as da Tabela 5.4, percebe-se que o grande número de africanos idosos entre 1831 e 1850 confirmam o tráfico para o período de montagem das charqueadas (1790-1820). A grande permanência de idosos africanos nos anos 1870, também evidencia que o comércio ilegal de escravos manteve-se forte após a Lei de 1831, como já mencionei. Além disso, a média de escravos acima dos 50 anos nos maiores plantéis do agro fluminense entre 1810 e 1830 ficava em torno de 15% 60, enquanto nos 59
Como vários autores já haviam indicado, mas que aqui reforço com outros dados o peso deste processo (MAESTRI, Mário. Op. cit.; CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit.; ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit.; PESSI, Bruno. Op. cit. 60 FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Famílias e mercado: tipologias parentais de acordo ao grau de afastamento do mercado de cativos (século XIX). Afro-Ásia, n. 24, 2000, p. 56. Para uma análise mais 220
inventários de Pelotas no período (1831-50) era de 10,5%.61 Tendo em vista a permanência da alta razão de sexo entre os crioulos adultos no último período, percebe-se novamente como os charqueadores conseguiram manter plantéis produtivos, mesmo numa época de crise de mão de obra e envelhecimento dos cativos. A Tabela 5.4 demonstra que a taxa de africanidade entre os adultos despencou do primeiro e o terceiro período, na mesma medida em que o percentual de homens crioulos aumentou. Entre os idosos, o aumento do percentual de crioulos e de africanos merece destaque e a pequena presença de escravas neste grupo revela o forte vínculo das charqueadas com o mercado de escravos. Portanto, os plantéis dos charqueadores foram marcados por um notável desequilíbrio entre os sexos. Isto também se refletia no número de crianças com 7 anos ou menos (Tabela 5.2). No primeiro período tem-se 4,4% de crianças neste grupo, índice que foi de 4,1% e 2,8% nos períodos posteriores. Somando as categorias crianças A e B temse, respetivamente, 9,1%, 6,1% e 6,9%. Tratava-se de um baixo índice que pode ser explicado pelo pequeno número de mulheres nas senzalas do charqueador. Analisando dados referentes às plantations de café e açúcar no oitocentos, Florentino e Machado verificaram que unidades com plena inserção no mercado de escravos apresentaram índices entre 15% e 25% de crianças.62 Com relação à razão de sexo, enquanto nos plantéis analisados por Florentino e Machado os homens ficavam na casa dos 53% (Engenho Novo da Pavuna (1852)) e 59% (Fazenda Resgate (1872)), em Pelotas a média era de 82% no período. Portanto, se o plantel da Fazenda Resgate, em Bananal, durante a década de 1860, conseguia reproduzir-se de forma natural63, o mesmo não pode ser dito para as charqueadas. Neste sentido, estes estabelecimentos constituíam-se em unidades fabris com um perfil de mão de obra um tanto distinto das plantations açucareiras e cafeicultoras. A menor presença de mulheres fez aumentar a sua dependência para com o mercado de escravos, pois elas apresentavam uma baixa reprodução natural e certamente um menor índice de famílias conjugais, o que não significa que os cativos não estivessem imersos em malhas parentais na senzala e mantivessem relações fora dela. Mas num contexto de fechamento do tráfico atlântico pós-
aprofundada ver FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José R.A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro (c.1790 – c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 61 Utilizando os dados do Censo de Pelotas de 1833, verifica-se que este mesmo percentual no município era de 7,6%. 62 FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Op. cit., p. 53. 63 FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda. Op. cit., p. 57. 221
1850, tratava-se de um delicado problema a ser revolvido por estes empresários. Neste sentido, como os charqueadores fizeram para manter suas fábricas funcionando num contexto de diminuição do número de cativos nos estabelecimentos? É o que busco entender a seguir.
5.3 DAS CHARQUEADAS PARA OS CAFEZAIS? O TRÁFICO INTER-PROVINCIAL E A CONCENTRAÇÃO DE ESCRAVOS NA ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE A Lei Eusébio de Queiroz (1850) e a Lei do Ventre-livre (1871) representaram uma ameaça à elite charqueadora que dependia do contínuo fluxo de cativos para manter sua produção. Enquanto a primeira Lei anunciava que a diminuição da mão de obra nas próximas décadas seria questão de tempo, a segunda deu a certeza de que este processo se aceleraria cada vez mais. Como se sabe, nos anos posteriores, a escravidão foi perdendo sua legitimidade, vindo a definhar completamente nos fins da década de 1880. Até pouco tempo, a maioria dos estudos sobre o tráfico inter-provincial que marcou as décadas que antecederam a Lei Áurea (1888) analisaram principalmente as províncias agroexportadoras. Neste mesmo sentido, as regiões com uma economia mais voltada para o abastecimento do mercado interno eram quase que exclusivamente vistas como perdedoras de escravos no interior destes circuitos. Recentemente, novas pesquisas vêm dedicando-se a investigar mais profundamente 64 estas regiões, onde plantéis bem menores compunham o patrimônio das elites locais. No
caso do Rio Grande do Sul, a visão que destaca somente a perda de escravos ganhou força com o estudo de Robert Conrad. De acordo com o autor, a província foi de longe a que mais perdeu cativos na década de 1870.65 A obra de Conrad acabou tornando-se referência fundamental sobre o tema e induziu os historiadores a interpretarem outros dados estatísticos à luz de suas contribuições. Amparando-se no censo geral de 1872, muitos encontraram estatísticas bastante contundentes para sustentar a suposta perda de escravos no Rio Grande do Sul, ainda na década de 1860. Em 1872, a população cativa recenseada na província foi de 67.791 escravos. Já os 64
Ver, por exemplo, FLAUSINO, Camila Carolina. Negócios da Escravidão: tráfico interno de escravos em Mariana, 1850-1886. PPG em História da UFJF, 2006 (Dissertação de Mestrado); SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico inter-provincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Programa de PPG em História da UFSC, 2006 (Dissertação de Mestrado); ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2008 (Dissertação de Mestrado). 65 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil - 1850-1888 . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 351. 222
indicadores de 1863 apresentavam 77.419 cativos, ou seja, num intervalo de 9 anos, o Rio Grande do Sul teria subtraído quase 10 mil escravos – mais de mil por ano.66 O mesmo vale para a população cativa de Pelotas. Se em 1858 o município possuía 4.788 escravos, no censo de 1872 apresentava uma população cativa de 3.575, ou seja, 1.213 a menos. Seguindo estas estatísticas, pesquisadores que se dedicaram ao estudo das charqueadas de Pelotas, de longe as unidades produtivas com os maiores plantéis de escravos da província, acabaram concluindo que a sua economia teria sido duramente afetada por esta precoce perda de cativos. Berenice Corsetti, por exemplo, considerou que “a partir de 1850, a questão da mão de obra para as charqueadas gaúchas deve ser examinada dentro de um contexto que passou a configurar a conhecida ‘crise de braços’”. Desde então, o Rio Grande do Sul teria
começado a perder cativos para o sudeste, o que “se constituiu em elemento expressivo no processo de desarticulação” da economia charqueadora pelotense.
67
Duas décadas depois,
Leonardo Monastério defendeu que a “realocação” da mão de obra do Rio Grande do Sul para 68 o sudeste cafeeiro foi uma das principais causas da decadência das charqueadas em Pelotas.
No entanto, o número de escravos contidos no censo geral de 1872 estava longe de corresponder à realidade. Num artigo clássico, Robert Slenes apontou que a população cativa sul-rio-grandense foi bastante subestimada.69 Analisando dados extraídos dos registros de matrículas dos cativos, anexos aos Relatórios da Diretoria Geral de Estatística do Império, Slenes verificou que, em 1873, o Rio Grande do Sul possuía 83.370 escravos e não os 67.791 arrolados no censo. Portanto, até este ano, o número de cativos na província teria aumentado e não diminuído, como se acreditava.70 O mesmo vale para Pelotas. Analisando os relatórios da
66
Ver Censo geral de 1872 (disponível em: http//www.ibge.gov.br). Relatório do Presidente da Província do Rio Grande do Sul Espiridião Eloy de Barros Pimentel, 1864, p. 46. 67 CORSETTI (1983, p. 142-144). Esta tese da “crise de braços” na economia rio-grandense (na década de 1860) recebeu uma importante crítica de ARAUJO, Thiago. Op. cit. Estudando Cruz Alta, região de criação de gado e produção ervateira, o autor verificou que o número de cativos deste e de outros municípios aumentou durante este período. 68 MONASTÉRIO, Leonardo. A decadência das charqueadas gaúchas no século XIX: uma nova explicação. In: Anais do VIII Encontro Nacional de Economia Política.Florianópolis: SEP, 2003. 69 SLENES, Robert. Op. cit., 1983. 70 Obviamente que uma afirmação sobre o aumento ou a diminuição de escravos entre 1863 e 1873 depende da real população cativa para o primeiro marco temporal. Mas mesmo que as estatísticas de 1863 possam estar subestimadas, os dados da matrícula de 1873 ajudam a refutar qualquer idéia acerca da suposta crise de braços. Neste sentido, ver ARAÚJO, Thiago Leitão de. Novos dados sobre a escravidão na Província de São Pedro. In: Anais do V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011; MATHEUS, Marcelo. Escravidão, pecuária e liberdade: o Livro de classificação de escravos (Alegrete, década de 1870). História Unisinos, n. 17, Jan./Abr. 2013, p. 24-36. 223
DGE – os mesmos estudados por Slenes – verifiquei que, em 1873, Pelotas possuía 8.141 escravos e não 3.575, como o censo de 1872 apontava.71 Portanto, a grande queda das estatísticas referentes à população cativa rio-grandense foi posterior a 1873. Na província inteira, entre 1874 e 1884, esta população diminuiu em 15.302 escravos.72 É neste período que se intensificou a saída de cativos para o sudeste cafeeiro. Segundo Slenes, a segunda metade da década de 1870 marcou o auge das transferências de cativos para os cafezais do sudeste. Entre 1877 e 1879, de 17% a 25% dos escravos comercializados em Campinas provinham do Rio Grande do Sul. Para o autor, “o declínio da produção escravista de charque”,
na década de 1870, teria estimulado o fluxo de
73
cativos para a região. De fato, em 1876, Pelotas contava com 7.556 escravos e, em 1884, possuía 5.918.74 Portanto, a diminuição teria se iniciado em 1874, mas se intensificado entre 1877 e 1884. Contudo, tal afirmação de que houve uma relação direta entre a crise das charqueadas e a saída de cativos precisa ser verificada empiricamente. Para tanto, é necessário analisar qual foi a proporção de cativos alforriados e falecidos entre 1874 e 1884 e se as charqueadas de Pelotas perderam tantos escravos para o tráfico inter-provincial. Primeiramente, deve-se atentar para um processo ocorrido ao longo do século XIX e que apresentou uma crescente concentração de riquezas e de escravos entre os charqueadores de Pelotas. De acordo com a Tabela 5.5, onde elenco somente inventários de charqueadores, é possível verificar que as maiores fortunas localizadas entre os mesmos situam-se exatamente no período da mencionada “crise” das charqueadas (a partir da década de 18 70,
quando as
exportações sofrem diminuições pontuais). As riquezas acima de 100 mil libras só começam a aparecer nos inventários deste período. No entanto, este enriquecimento foi acompanhado de um agravamento da desigualdade da distribuição das fortunas, denotando uma maior concentração das mesmas nas mãos de alguns charqueadores em índices superiores aos das décadas anteriores.
71
Relatório da Diretoria Geral de Estatística apresentado ao Ministério do Império pelo Conselheiro Manoel Francisco Correa. Rio de Janeiro: Tipografia Franco-Americana, 1874, p. 187. Este relatório e os citados doravante estão disponíveis no site: http://memoria.nemesis.org.br. (Consultados em 1 0.06.2011). 72 CONRAD, Robert. Op. cit., p. 217. 73 SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci (org.) Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, USP, 1986, p. 133. 74 Relatório da Diretoria Geral de Estatística apresentado ao Ministério do Império pelo Conselheiro Manoel Francisco Corrêa. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878, p. 142; LONER, Beatriz. 1887: A Revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. In: História em Revista, Pelotas, v. 3, 1997, p. 30. 224
Ainda de acordo com a Tabela 5.5, entre 1871 e 1885, 13,3% dos inventários concentravam 56,6% da riqueza. No período posterior, 25% dos inventariados detinham 74,5% dos bens. Entre 1871 e 1885, o limbo desta pirâmide econômica compunha 33,2% dos charqueadores que detinham somente 3,3% da riqueza e no último período 37,5% deles somavam somente 2,8% dos montantes. Portanto, fica evidente que tais patrimônios foram acumulados também em detrimento da ruína econômica de outras famílias charqueadoras. É bem verdade que antes de 1870 já havia uma desigualdade na distribuição das riquezas, mas os índices de concentração dos últimos dois períodos e a diferença entre os que ocupavam o topo da hierarquia econômica e os que estavam na base tornaram-se muito maiores. Tanto entre 1846 e 1855, quanto entre 1856 e 1870, a fortuna do charqueador mais rico era 16 vezes maior que a do charqueador mais pobre. No entanto, entre 1871 e 1885, o montante do mais rico era 64 vezes maior que o do mais pobre, e no último período esta diferença atingiu 87 vezes!75 Tabela 5.5 – Concentração de riqueza entre os charqueadores de Pelotas a partir dos inventários post-mortem , em libras esterlinas (%) Até 5.000
10.000 a 20.000
Riqueza
Inventários
Riqueza
Inventários
Riqueza
16,6 14,2 26,6 25,0
4,1 2,4 1,9 1,3
33,3 21,4 26,6 6,6 12,5
18,9 5,9 7,5 1,4 1,5
33,3 14,2 20,0 20,0 12,5
30,7 9,9 11,5 5,9 3,2
1815-1845 1846-1855 1856-1870 1871-1885 1886-1900
20.000 a 50.000
1815-1845 1846-1855 1856-1870 1871-1885 1886-1900
5.000 a 10.000
Inventários
50.000 a 100.000
Mais de 100.000
Totais
Inventários
Riqueza
Inventários
Riqueza
Inventários
Riqueza
Inv.
Riq.
16,6 28,5 40,0 20,0 12,5
46,2 28,2 39,5 15,8 6,1
21,4 13,3 13,3 12,5
53,4 41,0 18,2 13,4
13,3 25,0
56,6 74,5
06 14 15 15 08
82.208 341.410 432.839 652.451 490.229
58
2.004.137
Totais Fonte: Inventáriospost-mortem dos charqueadores de Pelotas (APERS)
A concentração de renda, que se acentuou na década de 1870, veio acompanhada de uma concentração de cativos e de um aumento da distância entre os maiores plantéis e os menores plantéis inventariados. Dividindo os inventários entre 1846 e 1885 em períodos de 10 anos, é possível verificar que no primeiro (1846-1855) 14% dos inventários possuíam 30% 75
Tratarei mais das fortunas dos charqueadores no capítulo 9. 225
dos escravos, mas no terceiro (1865-1875), 16% dos inventários detinham 49% dos escravos. No decênio seguinte, 2 charqueadores (28% dos inventariados) possuía 60% dos escravos. Mas se um diminuto topo conseguiu manter plantéis superiores a 150 cativos em todas as décadas, na parte de baixo desta pirâmide percebe-se que o número de charqueadores com plantéis menores que 25 escravos aumentou ao longo do tempo. De 1846 a 1870, somente 2 inventariados apresentaram este índice. Mas entre 1871 e 1885, 6 proprietários possuíam um plantel nesta faixa – considerada pequena para os padrões das charqueadas. Portanto, a desigualdade entre o maior escravista e o menor escravista aumentou muito durante as décadas. Enquanto na primeira faixa o proprietário de cativos possuía 3,1 vezes o plantel do último, na última faixa o plantel do maior era 19,8 vezes maior que o do último. Portanto, o topo da elite charqueadora resistiu muito mais aos problemas relativos à mão de obra, o que não ocorreu com outros charqueadores menos afortunados. Esta concentração de riqueza ajudou a condicionar quem vendeu e quem comprou escravos após a extinção do tráfico atlântico. No entanto, isto não significa dizer que estes charqueadores da base da pirâmide perderam seus cativos para o sudeste cafeicultor. Conforme mencionei anteriormente, até 1874, a população cativa da província apresentou índices crescentes. Portanto, foi após esta data que as estatísticas apontam uma queda do número de escravos e um aumento da saída de cativos rio-grandenses para o sudeste. A partir de agora analisarei as escrituras públicas de compra e venda de escravos e as procurações de venda de cativos realizadas no município de Pelotas. O primeiro corpo documental engloba o período de 1850 a 1884, e reúne os negócios efetuados diretamente entre ambas as partes envolvidas.76 O segundo grupo de fontes debruça-se sobre as vendas realizadas por procuração, reunidas exclusivamente nos Livros de Procurações , e elencam o período entre 1874 e 1880. São nestes documentos que o tráfico inter-provincial se torna mais nítido.77 Observando esta fonte é possível perceber que boa parte dos procuradores 78 encarregados de vender os escravos era de fora de Pelotas. Antes de começar a análise é
76
Livros de Transmissões e notas, Registros Diversos e Registros Ordinários do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas, Fundo 48, APERS. 77 Sobre este tipo de transações ver também SLENES, Robert. Op. cit., 1976, p. 155-158. 78 Livros de Procurações do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas e 3º e 4º Distrito de Pelotas, Fundo 48, APERS. Também existe um número diminuto de procurações deste tipo nos livros de Registros Ordinários, na década de 1860, mas não os incluí na presente análise por privilegiar o período de maior saída de cativos. Além do mais, os livros específicos de procurações iniciam-se exatamente no ano de 1874 e se estendem até o período republicano. No entanto, não localizei nenhuma venda por procuração a partir de 1881, daí o marco temporal final de 1880. Tal fenômeno explica-se pelo fato de que entre 1879 e 1880, as Assembléias Legislativas de São Paulo e Minas Gerais votaram impostos de 1:000$ a 2:000$ por cada escravo entrado nas suas províncias (BAKOS, Margareth. 226
necessário dizer que não descarto o fato de que negociações não registradas em cartório deviam ocorrer. Até a década de 1860, as escrituras de compra e venda de escravos não eram obrigatórias e isto deve ser levado em conta. Entretanto, foi na década de 1870, que a população cativa de Pelotas começou a diminuir. Mesmo com a impossibilidade de trabalhar com os sub-registros e as lacunas documentais, creio que as escrituras públicas e as procurações aqui analisadas fornecem uma base aproximada do volume de escravos que Pelotas perdeu para o tráfico inter-provincial.79 As escrituras públicas de compra e venda de escravos em Pelotas, entre 1850 e 1884, reúnem 50 transações envolvendo 334 cativos (Tabela 5.6). A maior negociação envolveu 56 escravos numa única escritura, quando além dos cativos, o charqueador Cipriano Rodrigues Barcellos e o seu genro e sócio Domingos Pinto Mascarenhas também venderam o seu estabelecimento com todos os pertences, potreiros e o iate Benjamim para Cândido Antônio Barcellos.80 Mas 29 escrituras, ou 58% das mesmas, envolviam somente um escravo, perfazendo a maioria das escrituras. No entanto, reunidas elas englobavam somente 8,6% dos cativos negociados. Tabela 5.6 – Escravos negociados por escritura em Pelotas (1850 -1884) Escravos por escritura 1 2 3 4 De 10 a 20 De 21 a 30 De 31 a 40 De 41 a 50 De 51 a 60
Escrituras
Escravos
29 9 1 1 4 2 2 1 1
58,0% 18,0% 2,0% 2,0% 8,0% 4,0% 4,0% 2,0% 2,0%
29 18 3 4 61 54 67 42 56
8,6% 5,3% 0,9% 1,2% 18,2% 16,2% 20,3% 12,5% 16,8%
Total
50
100%
334
100%
Fonte: Livros de Transmissões e notas, Registros Diversos e Registros Ordinários do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas, Fundo 48, APERS.
RS: Escravidão & Abolição. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1982, p. 67). Tal medida diminuía muito os lucros obtidos no tráfico, inibindo-o. 79 Ao contrário do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, no Rio Grande do Sul não vigorou uma taxa fixa para a cobrança das meias-sisas – imposto de transmissão de escravos. O valor cobrado era de 6% sobre as transações. A ausência de uma taxa fixa nos impossibilita calcular o número de escravos negociados por município a partir do total arrecadado nas coletorias, como fez Slenes para o Rio de Janeiro (SLENES, Robert. Op. cit., 1986, p. 121-124). 80 Transmissões e Notas, Pelotas, 1º Tabelionato, Fundo 48, Livro 9, APERS, p. 105. 227
Analisando estes mesmos documentos para outros municípios do Rio Grande do Sul, Rafael Scheffer trouxe números importantes sobre o comércio interno na província e que possibilitam algumas comparações. Se entre 1850 e 1884, Pelotas teve 334 cativos negociados, Porto Alegre, entre 1854 e 1884, teve 1739 escravos transacionados. Para o mesmo período, Rio Grande teve 487, Cruz Alta 549 e Alegrete 139 cativos comercializados.81 A partir destes dados percebe-se que os índices da capital são muito altos se comparados aos outros municípios. Analisando os dados dos Relatórios da DGE percebe-se que Porto Alegre está entre os municípios que mais perderam cativos na década de 1870, 82 enquanto Pelotas posiciona-se entre os que menos perderam. Portanto, se os escravistas de
Porto Alegre estiveram mais vulneráveis ao comércio interno, os de Pelotas conseguiram resistir mais a tais transações, seja para fora do município, seja para fora da Província. No entanto, as escrituras públicas não trazem muitas informações a respeito dos compradores e vendedores de escravos. Mas como venho pesquisando há anos a população e as elites de Pelotas e possuo uma base de dados com centenas de nomes de habitantes (composta por diferentes fontes pesquisadas), consegui determinar ao menos os que são estabelecidos no município. Das 50 escrituras relacionadas, pelo menos 25 (50%) possuíam compradores que residiam no próprio município. Entretanto, estas 25 pessoas compraram 303 escravos, ou seja, 90,7% do total. Portanto, a grande maioria dos escravos negociados nas escrituras permaneceu no município e não foi enviada para o sudeste do Brasil. Dos outros 9,3% de cativos que foram vendidos para proprietários que creio serem de fora do município, nenhum pertencia a um charqueador. Portanto, de acordo com este corpo documental, nenhum dos escravos vendidos para fora de Pelotas (e da Província) fazia parte do plantel de alguma charqueada. Dos 31 escravos vendidos para fora de Pelotas, 17 eram homens e 14 mulheres. Além do mais, 20 deles foram negociados após 1874. Contudo, isto não significa que os charqueadores não vendessem seus escravos. Das 50 escrituras, 19 apresentaram estes proprietários envolvidos como compradores e 11 como vendedores, sendo que destas vendas, 10 foram para charqueadores. O total de escravos negociados entre dois charqueadores ou entre um charqueador e um familiar próximo são de 279 cativos, ou seja, 83,5% dos escravos negociados pertenciam aos charqueadores e, portanto, foram transferidos de um proprietário para outro. Tal índice revela uma enorme 81
SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos no Rio Grande do Sul (1850-1888): transferências intra e interprovinciais, perfis de cativos negociados e comerciantes em cinco municípios gaúchos. In: Anais do V Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 2. 82 Relatório de 1878. Op. cit., p. 142. 228
concentração nestas transações, mas também que alguns destes empresários vinham sentindo as dificuldades financeiras do período, tendo que repassar parte do seu patrimônio para outros concorrentes. Portanto, estas transações revelam que a grande maioria destes escravos continuou a permanecer no município. Cruzando estes dados com os verificados anteriormente sobre a concentração de renda e de cativos, é possível perceber que os charqueadores compradores eram exatamente os mais ricos do grupo inventariado ou os seus próprios filhos. Juntos, José Antônio Moreira, João Simões Lopes, Antônio José da Silva Maia, Dr. Antônio José Gonçalves Chaves, Aníbal Antunes Maciel, Antônio José de Oliveira Castro, Possidônio Mâncio Cunha e Cândido Antônio Barcellos, compraram 58,6% de todos os escravos negociados no período ou 70,3% dos escravos negociados somente entre charqueadores. Portanto, os charqueadores mais pobres tiveram sua escravaria drenada pelos charqueadores mais ricos. Estas transações foram intensas nas três primeiras décadas e tenderam a cair na última, pois 105 cativos foram vendidos nos anos 1850, 90 nos anos 1860, 96 na década de 1870 e 43 na de 1880. Além do mais, é provável que muitas outras transações comerciais entre os charqueadores envolvendo escravos foram realizadas sem que tenham sido registradas nos livros de notas dos tabelionatos. Um exemplo pode ser dado no processo de liquidação da charqueada da Viúva Vianna & Filho, entre 1864-1866. Dos 38 escravos leiloados, 15 foram comprados por charqueadores, dentre os quais estavam aqueles pertencentes ao grupo dos mais ricos, como José Antônio Moreira (o Barão de Butuí), Felisberto Inácio da Cunha (o 83 Barão de Corrientes) e Joaquim da Silva Tavares (o Barão de Santa Tecla). Nenhuma destas
compras foi registrada em cartório e, portanto, elas não estão contabilizadas no cálculo realizado acima. Os charqueadores deviam estar sempre atentos aos leilões dos falidos, pois se tratava de uma grande oportunidade de levantar mais mão de obra para suas fábricas. Como mencionei anteriormente, para obter uma visão mais privilegiada do tráfico inter-provincial é necessário analisar as procurações de venda de escravos assinadas em Pelotas para outras localidades. A partir da leitura das mesmas, localizei 382 escravos sendo negociados por procuração entre 1874 e 1880. 84 Trata-se de um número muito grande de cativos negociados num curto espaço de tempo e que supera de longe as transações realizadas nas escrituras públicas analisadas anteriormente. Pouco mais de 90% das procurações
83
Processo de Liquidação de Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). Na realidade localizei 403 cativos sendo negociados. Entretanto, 21 deles tratavam-se dos mesmos escravos sendo vendidos outra vez pelo mesmo senhor, o que indica que a primeira transação havia fracassado. 84
229
analisadas negociam somente um escravo. As demais envolvem mães com filhos menores ou no máximo dois escravos. Além do mais, os anos iniciais apresentaram um fluxo de vendas maior que os finais, demonstrando que no fim da década de 1870 a inserção de Pelotas no tráfico interno vinha se enfraquecendo.85 Nem todos os negócios analisados envolviam a saída de escravos de Pelotas para o exterior da província. Dos 382 escravos negociados por procuração, 83 (21,7%) não pertenciam a senhores de Pelotas. Tratavam-se, na verdade, de proprietários de municípios vizinhos que foram até Pelotas para venderem seus escravos ou enviaram procuradores para tal fim.86 Esta simples informação revela que Pelotas, como núcleo urbano e comercial de destaque na Província, também era um pólo que reunia muitos compradores de cativos. Portanto, ao invés de somente adentrarem o interior da província procurando escravos para comprar, creio que os traficantes também permaneciam em Pelotas e Rio Grande a espera dos mesmos.87 Portanto, como 83 dos 382 escravos pertenciam a senhores de outros municípios, somente 299 eram de proprietários de Pelotas. Mas ainda é necessário fazer outra ressalva. Destes 299 escravos, 47 foram vendidos por procuração para municípios da própria província, ou seja, não entraram no circuito do tráfico inter-provincial. Destes 47 escravos, 18 eram de distritos rurais de Pelotas e foram vendidos na própria cidade. 88 Trata-se de uma outra modalidade de comércio que poderia ser chamada de intra-municipal e que transferia mão de obra de pequenos senhores de áreas rurais para outros mais bem capitalizados. Infelizmente não é possível saber quais proprietários em Pelotas foram os compradores destes escravos, pois o documento traz apenas o nome do procurador, autorizando-o a vendê-lo pelo maior 85
Como se pode verificar: em 1874 (42 cativos vendidos), em 1875 (115), em 1876 (116), em 1877 (41), em 1878 (33), em 1879 (31), em 1880 (4). A partir das procurações que pesquisei em Pelotas foi possível localizar 169 indivíduos ou firmas diferentes envolvidas neste comércio. Destes, 104 (61,5%) negociaram somente 1 escravo e não voltaram a aparecer nos registros. Mas no topo deste grupo, 5 comerciantes concentraram 47% dos escravos transacionados. Só a firma Bastos, Souza & Cia negociou 96 dos 382 cativos ou 25,1% do total. Em seguida, aparecem Angelino Soveral com 29 escravos negociados, João José Ribeiro Guimarães com 21 cativos, Leivas, Saraiva & Cia com 20 e Duarte Souza & Cia com 16. Os mais destacados eram Canguçu (22), Piratini (17), Caçapava (7) e Jaguarão (5). Destes 83 escravos que pertenciam a senhores de fora de Pelotas, somente 14 tiveram procurações assinadas para serem vendidos exclusivamente em Pelotas. Portanto, a maioria era destinada para outros mercados, sobretudo no sudeste do Império. Destes 83 cativos, 66 tiveram procurações passadas para serem vendidos no sudeste. Estas podiam aparecer como procurações passadas para o Rio de Janeiro (15 casos) ou “qualque r parte 86 87
do Império” (51 casos). Cruzando o nome dos agentes envolvidos neste comércio, creio que os escravos encaminhados para “todo o Império” também eram enviados para o Rio e daí para os cafezais do sudeste. Tal
definição devia ser necessária para não causar empecilho nos casos dos escravos serem vendidos em São Paulo com a mesma procuração. 88 Destes 47 escravos, 6 foram vendidos para Rio Grande, 5 para Porto Alegre, 3 para Alegrete, 2 para Santa Vitória do Palmar, 1 para Santa Maria, 1 para Bagé, 1 para Canguçu e o restante tiveram procurações para serem vendidos em qualquer parte da província. Algumas destas transações são realizadas entre parentes. 230
preço possível. Mas como vimos que um grupo de charqueadores drenou boa parte dos cativos comercializados pelas escrituras públicas é possível que alguns deles possam ter comprado estes escravos também. Portanto, dos 382 escravos negociados, 252 (66%) pertenciam a proprietários pelotenses e foram remetidos por procuração para o sudeste do Brasil. 89 Como estou interessado no tráfico inter-provincial e na participação do plantel dos charqueadores no mesmo, analisarei somente este grupo de cativos. É somente nele que encontrei charqueadores vendendo escravos. Destes 252 cativos, 92 eram mulheres e 160 eram homens. Portanto, as mulheres também compuseram de forma significativa o grupo de escravos remetidos para o sudeste, pois totalizaram 36,5% dos cativos vendidos. As idades destes escravos vão desde crianças de poucos anos negociadas juntamente com suas mães até adultos de 52 anos. Separando somente os escravos entre 15 e 40 anos temos 69 mulheres (75% das negociadas) e 120 homens (75% dos negociados). Quanto à naturalidade dos escravos, verifica-se que somente 10 não apresentaram tais informações. Do restante, 218 (90%) haviam nascido no Rio Grande do Sul, mas também existiam crioulos provenientes de outras províncias, como Bahia (6), Pernambuco (4), Mato Grosso (1), São Paulo (1), Maranhão (1), Minas Gerais (1), Paraná (1) e Santa Catarina (1). Do grupo total de escravos negociados, somente 7 eram africanos, ou seja, 2,7%. Trata-se de um índice bastante pequeno para uma localidade onde a presença de africanos nos inventários após 1850 alcançou uma média de 31,8%.90 As fontes não revelam se havia uma preferência dos comerciantes por escravos crioulos e se os mesmos seriam mais fáceis de serem vendidos aos cafeicultores, mas outras pesquisas podem contribuir com este ponto.91 O fato é que a análise da naturalidade dos cativos revela que alguns deles, como o carneador João Baiano, migraram forçosamente para outra região pela segunda vez, vivenciando uma realidade sócio-econômica e cultural distinta. É possível que João tivesse trabalhado cortando cana ou plantando fumo na Bahia ou até mesmo em um engenho de açúcar de algum proprietário empobrecido. Chegando em Pelotas, foi empregado na 89
Destas 252 procurações, 249 foram assinadas para o Rio ou Império, 2 para São Paulo ou Rio e 1 exclusivamente para Minas Gerais. Como já mencionei, as procurações enviadas para o Império também envolviam comerciantes estabelecidos no Rio. 90 PESSI, Bruno S. Estrutura da posse e demografia escrava em Pelotas entre 1850 e 1884. In: Anais do V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 14 91 Estudando o tráfico interno em Mariana, Camila Flausino localizou 10,9% de africanos sendo negociados na década de 1860 e 9,3% na década de 1870 (FLAUSINO, Camila. Op. cit., p. 80). Mas estas transações não envolviam regiões não-cafeicultoras para regiões cafeicultoras, como a totalidade das transações de Pelotas, por exemplo. 231
charqueada de Junius Brutus de Almeida, onde teve que aprender o ofício de carneador e adaptar-se ao rigoroso inverno da região. Em 1875, o destino lhe reservara outra viagem sem volta. Desta vez, João Baiano foi vendido para comerciantes cariocas para provavelmente servir como mão de obra em alguma fazenda de café, em São Paulo. Quanto às profissões dos mesmos 252 escravos, 81 não apresentaram informações ou não possuíam ofícios. 92 Entre os homens, havia 37 campeiros, de longe o grupo mais representativo. Também merecem destaque os cozinheiros (11), os copeiros (10), os roceiros (8), os serventes (6), os marinheiros (5), os serviçais domésticos (5) e os carpinteiros (4). Entre as mulheres, as cozinheiras eram as mais vendidas, somando 20 cativas. As mesmas eram seguidas pelas serviçais domésticas (16), as costureiras (8), as lavadeiras (8), as mucamas (3) e as engomadeiras (2). É possível verificar que, apesar do número significativo de campeiros, uma boa parte dos escravos exercia atividades mais vinculadas aos serviços domésticos. A partir das profissões elencadas acima já é possível extrair conclusões sobre a pouca participação das charqueadas no tráfico inter-provincial. Para matizar melhor estas informações, separei todos os senhores dos 252 escravos vendidos em dois grupos: os charqueadores e os não-charqueadores. Do total de escravos, somente 29 (ou 11,5%) pertenciam ao grupo dos charqueadores, que reunia 19 proprietários. O empresário que mais vendeu cativos para o sudeste foi Junius Brutus de Almeida, que remeteu 6 escravos. José Antônio Moreira Júnior vendeu 3, e mesmo assim foram cativos herdados do seu avô. Outros 3 charqueadores venderam 2 escravos cada. O restante perdeu somente um escravo para os cafezais do sudeste. Arrolando o sexo e a profissão dos escravos vendidos, a participação do plantel das charqueadas no tráfico torna-se ainda mais irrisória. Dos 29 escravos negociados, 4 eram mulheres, sendo uma doméstica, uma cozinheira e outras duas sem ocupação declarada. Portanto, não estavam vinculadas diretamente ao rude serviço das charqueadas. Sobram, portanto, 25 homens. Para 7 deles não foi declarada a ocupação. Do restante, havia 4 campeiros, 4 marinheiros, 3 copeiros, 3 carneadores, 2 cozinheiros, 1 cangueiro, 1 calafate e 1 carpinteiro. Não é possível saber se os escravos campeiros estavam exercendo seus ofícios nas charqueadas ou nas estâncias dos seus senhores localizadas em outros municípios. 92
Dos que não tiveram a ocupação declarada no documento, 37 eram maiores de 14 anos, 22 tinham 14 anos ou menos e 6 não tiveram a idade revelada. Dos que foram classificados como “sem ofício”, 13 possuíam 14 anos ou menos e 3 eram maiores de 14 anos. 232
Apesar da importância de todos os escravos arrolados, é necessário dizer que havia somente 3 carneadores, ofício diretamente vinculado ao trabalho no interior das charqueadas, entre os cativos vendidos para o sudeste. A venda de cozinheiros, copeiros e domésticas talvez revele que alguns charqueadores preferiam abrir mão de uma vida senhorial rodeada por serviçais, a ter que diminuir a mão de obra especializada em suas fábricas. Portanto, dos 252 escravos que Pelotas perdeu para o tráfico inter-provincial entre 1874 e 1880, somente 29 pertenciam a charqueadores e destes só 3 eram carneadores. Pode-se somar a estes os campeiros e marinheiros, economicamente importantes, mas que prestavam serviços principalmente fora dos galpões de charquear. Estes 11 cativos perfaziam 4,3% dos escravos que Pelotas perdeu para o tráfico inter-provincial e representam 0,07% dos 15.448 cativos que a província inteira perdeu por óbitos, alforrias e tráfico interno, entre 1874 e 1884. Se as charqueadas participaram do tráfico inter-provincial de escravos, certamente não foram como vendedoras, mas sim como compradoras de cativos. Investigando os dados referentes à naturalidade dos escravos nos inventários de charqueadores abertos após 1872, é possível verificar uma significativa parcela de cativos nascidos no nordeste brasileiro nos plantéis das charqueadas.93 Dentre os 142 escravos do plantel do Barão de Butuí, 18 (12,6%) eram naturais do nordeste. Tratava-se de 16 cativos baianos, 1 sergipano e 1 cearense. Do plantel de 120 escravos do coronel Aníbal Antunes Maciel, 7 (6%) eram “nordestinos”, sendo 4 baianos e 3 pernambucanos. Mas não eram somente os charqueadores ricos que participavam ativamente deste tráfico. No plantel de um charqueador como Domingos Soares Barbosa, que apresentou uma fortuna mediana de 9 mil libras, este índice foi de 19,5%. Dos seus 83 escravos, 9 eram cearenses, 3 baianos, 3 pernambucanos e 1 paraibano. Portanto, quase 1/5 do seu plantel havia sido comprado de senhores do nordeste. 94 Esta entrada de cativos de outras províncias para o Rio Grande do Sul também foi verificada por Rafael Scheffer. Ao analisar as escrituras de notas em Rio Grande, o autor verificou que 25% dos escravos negociados vinham de outras províncias, sendo o Rio de Janeiro o principal fornecedor de cativos com 13,7%, seguido por Pernambuco, Santa Catarina e a Bahia. 95 Uma 93
Como é sabido, deste ano em diante as cópias das matrículas dos escravos deviam ser obrigatoriamente anexadas aos inventários. Estes documentos trazem informações importantes acerca das profissões, naturalidade, filiação dos cativos, entre outros. Conforme informado na introdução desta tes e, uso o termo “nordeste” para facilitar a narrativa, uma vez que o mais adequado para a época, em se tratando daquela região, era chamá-la de “norte” do país. 94
Inventário do Barão e da Baronesa de Butuí. N. 647, m. 41, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1867/1877 (APERS); Inventário de Aníbal Antunes Maciel, N. 815, m. 48, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875 (APERS); Inventário de Domingos Soares Barbosa. N. 943, m. 54, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1881 (APERS). 95 SCHEFFER, Rafael. Op. cit., p. 16. 233
carta enviada pelo comerciante baiano Antônio Vieira da Silva ao comerciante e charqueador de Pelotas, Manoel das Neves Lobos, ilustra bem este fluxo de cativos do nordeste para o Rio Grande do Sul: Bahia, 15 de junho de 1861. Amigo e Sr. Nesta ocasião, segue a nossa Barca Henriqueta a sua consignação e lastro de sal do Assú e também com alguma carga a frete levando também 22 escravos para V. Mce. os vender pelo melhor preço que puder, bem entendido dos preços que vão marcados da lei para cima, sendo que V. Mce. os não possa vender pelos preços marcados V. Mce. me avisará logo no primeiro vapor para eu dar as minhas ordens para fazer seguir para o Rio de Janeiro (…).96
Tendo em conta o grande fluxo de navios que retornavam do nordeste para o Rio Grande do Sul (nos anos 1870, mais de 80% do charque era remetido para Salvador e Recife), não é difícil concluir que ao invés de perder escravos para os cafezais, como se defendeu, os charqueadores foram responsáveis, mesmo que em menor medida, pela baixa dos cativos do nordeste, o que de certa forma inverte as explicações clássicas sobre a relação da mão de obra escrava, a crise nas charqueadas e sua inserção no tráfico interno. Na década de 1870, Pelotas ainda era uma grande compradora de cativos. Em 1876, por exemplo, 217 escravos haviam entrado no município97, ou seja, muito mais do que os 116 vendidos por procuração para os cafezais do sudeste naquele mesmo ano. Analisando também a segunda metade da década de 1870, Rafael Scheffer verificou que 29,6% das procurações para venda de escravos passadas em Alegrete, município rio-grandense da fronteira oeste, autorizavam a negociação dos mesmos em Pelotas.98 Tal fluxo que tinha como destino Pelotas deve ter se repetido em outros municípios do interior do Rio Grande do Sul, pois Pelotas foi a localidade da província que apresentou o maior êxito em retardar a perda de cativos durante o auge do tráfico interprovincial. Comparando os dados da população escrava no Rio Grande do Sul entre 1859 e 1884, percebe-se que Pelotas foi um dos dois municípios que não tiveram sua população cativa diminuída neste intervalo de tempo.99 Além do mais, em 1884, Pelotas constituía-se no município com o maior número de escravos na Província, lugar que havia sido ocupado por Porto Alegre na década precedente.100 Portanto, além de estender seus braços para o exterior da província, comprando cativos do nordeste, um pequeno grupo de charqueadores parecia estar drenando parte da escravaria dos municípios vizinhos e da própria população
96
Processo de Liquidação de Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142. SCHEFFER, Rafael. Op. cit., p. 6. 99 BAKOS, MArgareth. Op. cit., p. 22-23. O outro município foi Santa Maria. 100 Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142. 97 98
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pelotense.101 Isto tudo ajuda a explicar a permanência da alta razão de sexo entre os plantéis dos charqueadores dos anos 1860 ao ano 1880. Não é possível saber a quantidade de escravos vendidos e comprados em Pelotas, cujas transações não foram registradas em cartório. Mas creio que as compras devem ter compensado as vendas, pois, conforme os dados que apresentarei agora, os números de escravos vendidos por Pelotas que analisei até aqui são próximos do que de fato o município teria perdido no período. Somando as vendas por procurações com as vendas por escrituras, é possível verificar que Pelotas perdeu 272 escravos entre 1874 e 1884. Estes números podem ser testados comparando a população cativa de Pelotas entre 1873 e 1884. Se em 1873 Pelotas teve 8.141 escravos matriculados e em 1884 contava com 5.918, significa que sofreu uma diminuição de 2.223 cativos no período. Esta diminuição foi resultado dos óbitos, das alforrias e das vendas para fora da Província. Entre 1874 e 1884, conforme Beatriz Loner, foram arrolados 1.175 óbitos de escravos em Pelotas.102 Com relação às manumissões, Jorge Euzébio Assumpção localizou 893 escravos sendo libertados em Pelotas, entre 1874 e 1883.103 Portanto, somando-se os óbitos, as alforrias e os escravos negociados, tem-se 2.340 cativos. É um número que supera os 2.223 cativos mencionados acima, mas apresenta uma margem de erro totalmente aceitável, uma vez que os censos e estatísticas da época não primavam por uma exatidão. A diferença também pode ter sido consequência da entrada de cativos em Pelotas que não foram registradas em cartório. Portanto, estas cifras revelam que as alforrias e os óbitos foram os grandes responsáveis pela diminuição do número de cativos no município perfazendo 38% e 50% das perdas no período.104 Assim sendo, não houve uma crise nas charqueadas capaz de provocar um grande deslocamento dos seus escravos para o sudeste e nem a suposta perda dos escravos das charqueadas para os cafezais estava na raiz da crise final das charqueadas, como alguns autores defenderam. Amparado na mencionada tese de Berenice Corsetti, Robert Slenes 101
Este fenômeno não é uma peculiaridade sul-rio-grandense. Em outras províncias, grandes proprietários de
terra conseguiram ter mais sucesso em manter os seus plantéis, em detrimento dos médios e pequenos proprietários. Mas como já mencionei, em Pelotas nem todos conseguiram participar deste mercado como compradores, pois as crises que afetaram o setor desde a década de 1850 derrubaram muitas famílias charqueadoras, como será tratado em capítulos posteriores. Richard Graham e Erivaldo Neves, por exemplo, demonstraram esta tendência para a Bahia (GRAHAM, Richard. "Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil". Afro-Ásia, n. 27, 2002, p. 121-160; NEVES, Erivaldo Fagundes. Sampauleiros traficantes: comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o Oeste cafeeiro paulista. In: Afro-Ásia, n. 24, 2000). 102 LONER, Beatriz. Op. cit., p. 30. 103 ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit., p. 290. 104 É muito provável que tal afirmação também sirva para todo o Rio Grande do Sul, diminuindo o impacto do tráfico interno na escravaria provincial – defendido por Robert Conrad. 235
argumentou neste sentido ao perceber que entre 1877 e 1879 cerca de 17% a 25% dos escravos comercializados em Campinas provinham do Rio Grande do Sul. 105 Entretanto, foi exatamente entre os anos de 1877 e 1879 que a economia charqueadora apresentou um rápido salto econômico. Além das exportações de charque e dos preços do produto terem aumentado em tal conjuntura (ver os Gráficos 8.1 e 8.2 no capítulo 8), a safra de 1877/1878 apresentou um enorme incremento em termos de abate. Se em 1877, foram abatidos 307.837 novilhos, no ano posterior este índice alcançou os 414.147, ou seja, o maior entre 1875 e 1890 (ver o Gráfico 7.1 no capítulo 7). Portanto, é difícil pensar que os anos entre 1877 e 1879 possam ter sido desanimadores tanto para os criadores de gado (visto que o número de novilhos remetidos da região da campanha para Pelotas aumentou bastante) quanto para os charqueadores ao ponto de configurarem uma crise que os levasse a vender seus escravos para os cafezais do sudeste. Portanto, o aumento do fluxo de escravos rio-grandenses para o sudeste na década de 1870 realmente existiu, mas não significa que sua saída tenha sido consequência de uma suposta crise nas charqueadas, uma vez que regiões inteiras que não apresentavam conexões 106 com o comércio de gado para Pelotas foram grandes perdedoras de cativos no período. O
Rio Grande do Sul, nesta época, era muito mais do que um gigante campo destinado a engordar e abater bovinos. A economia provincial entre as décadas de 1850 e 1880 apresentou uma significativa produção de alimentos agrícolas que, além de abastecer o mercado interno 107 na província e fora dela, não dependia das pulsações da economia charqueadora. Portanto,
não é possível relacionar diretamente as substanciais saídas de escravos da província com a crise das charqueadas pelotenses sem verificar quais eram as regiões e os senhores que 108 estavam perdendo cativos e quais os escravos do seu plantel estavam sendo vendidos. O
105
SLENES, Robert. Op. cit., 1986, p. 133. Como, por exemplo, os municípios de Porto Alegre e São Leopoldo, que estão entre os que mais perderam escravos para o tráfico (Relatório da DGE. Op. cit., 1878, p. 142). Passo Fundo, Cachoeira do Sul e Triunfo, por exemplo, também sofreram uma enorme perda entre 1859 e 1884 (BAKOS, Margareth. Op. cit., p. 22-23). 107 Sobre a produção agrícola na Província ver ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho. 106
Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 1997; ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul . Porto Alegre: Editora Globo, 1969; FARINATTI, Luis Augusto. Sobre as Cinzas da Mata Virgem: os lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria: 1845-1880). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGH-PUCRS, 1999. Sobre como as exportações rio-grandenses de farinha, feijão e milho haviam se intensificado nas décadas de 1850 e 1860, chegando inclusive, em alguns anos, a superar Minas Gerais no abastecimento da Corte, ver GRAÇA FILHO, Afonso de A. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880). Rio de Janeiro: UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 33-34. Para uma análise da importância da produção agrícola rio-grandense na época ver SOARES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1977. 108 Camila Flausino chegou a conclusões interessantes ao estudar o tráfico interno em Mariana. Contrariando uma historiografia tradicional que insistia na perda de cativos das regiões auríferas após a crise mineradora, a 236
processo que marcou as décadas finais da monarquia apresentou uma nítida drenagem de mão de obra dos ricos charqueadores para com os pequenos e médios. Em se tratando de um estudo sobre elites, é possível considerar que estes charqueadores mais ricos compunham um importante setor da elite regional que conseguiu impor-se sobre os demais concorrentes tanto no meio mercantil quanto no meio agrário. Concentrando riqueza e mão de obra, este charqueadores conseguiram resistir às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1880 e que serão tratadas nos capítulos posteriores. Contudo, numa conjuntura em que os plantéis se renovavam continuamente e na qual o número de mulheres era bastante pequeno, como os charqueadores administravam seus escravos? Tratarei disto no capítulo posterior.
autora demonstrou que as transações de escravos foram, sobretudo, intra-municipais. Cerca de 61% dos cativos vendidos entre 1850 e 1886 permaneceram em Mariana. A tese de que os municípios cafeicultores drenaram os escravos das regiões auríferas também foi relativizada, pois somente 6,9% dos negociados tiveram como destino os cafezais (FLAUSINO, Camila. Op. cit., p. 111-116). 237
6. S ENH OR E P ATRÃ O: OS CHARQUEADORES, A ADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS E O MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more No, I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more
Well, I wake in the morning Fold my hands and pray for rain I got a head full of ideas That are drivin’ me insane It’s a shame the way she makes me scrub the floor I ain’t gonna work on Maggie’s farm no more
Bob Dylan - Maggie’s Farm (1965)
Em janeiro de 1886, o presidente da Província do Rio Grande do Sul escrevia ao Ministro do Império solicitando o seguinte: Joaquim da Silva Tavares, irmão do Barão de Itaqui e do Dr. Francisco da Silva Tavares, libertou, no mesmo município de Pelotas e em igualdade de condições, 68 cativos, tornando-se merecedor de que o Governo Imperial, em remuneração de tão assinalado serviço à humanidade, conceda-lhe o título de Barão de Pirahy ou de Santa Tecla. Para que V. Ex. se digne de apreciar a importância daquele ato de abnegação, informo, ainda, a V. Ex. que, em consequência dele, as charqueadas daquele cidadão acham-se hoje abandonadas, porque muitos dos libertos sob condição de prestação de serviços têm deixado de cumprir a obrigação do respectivo contrato.1
No meado dos anos 1880, tanto o Império quanto a economia charqueadora e a escravidão – um casamento que havia dado certo por mais de 60 anos – agonizavam nitidamente. Os Tavares, que já haviam defendido a monarquia com toda a sua força em 1835, contribuíram com o Império em todas as guerras que marcaram o período, vindo a sofrer as consequências da mencionada decadência das charqueadas. Anos antes, quem poderia imaginar que no seio de família tão poderosa, nem os seus ex-escravos os respeitariam, quebrando os contratos de trabalho firmados com seus ex-senhores? O título de Barão de Santa Tecla foi o seu prêmio de consolação. O estatuto nobiliárquico como compensação econômica estava distante do que um dia havia sido. Conforme José Murilo de Carvalho os títulos de nobreza apresentaram um forte boom nos anos 1870 e 1880 como uma 1
Ofício do Presidente da Província para o Ministro do Império, 02.01.1886, SPE-IJJ9 (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro).
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espécie de indenização por perdas materiais relativas ao fim da escravidão. 2 E no caso dos charqueadores que viveram naqueles tempos finais da monarquia o que não faltaram foram perdas... Como será visto nos próximos capítulos, as décadas de 1850 e 1870 foram marcadas por grandes flutuações dos preços dos couros e do charque, por crises de superprodução, perda de mercados consumidores para os concorrentes platinos e o aumento dos preços do gado. Por conta disto, um grande número de charqueadores faliu. No terreno legal, a Lei Eusébio de Queiroz (1850) os obrigou a recorrer ao mercado inter e intra-provincial para abastecer continuamente os seus plantéis pagando preços cada vez mais elevados. A Lei do Ventre Livre (1871), que, entre outras questões, regulamentava as manumissões e oferecia maiores garantias jurídicas aos escravos contra os seus senhores, trouxe a certeza de que a presença da mão de obra cativa nos estabelecimentos não duraria muito mais tempo. Se os charqueadores pelotenses conseguiram resistir às investidas dos comerciantes de escravos prontos para levarem seus trabalhadores para os cafezais do sudeste, eles não encontraram uma solução definitiva que possibilitasse uma transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado nas charqueadas. Neste capítulo exercito algumas reflexões a este respeito. Neste sentido, a história do Barão de Santa Tecla e de sua escraviaria está inserida num contexto maior que caracterizou o mundo das charqueadas na segunda metade do século e que tem relação não apenas com as expectativas de futuro dos senhores como, também, com as expectativas de futuro dos próprios escravos (dentro e fora do cativeiro), pois entendo que estes processos podem ser melhor compreendidos quando analisados conjuntamente. Assim sendo, as tentativas para escapar da crise de braços que se anunciava afetaram, mesmo que desigualmente, a vida dos senhores e dos seus escravos.3
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CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 320-322. 3 Embora já se tenha escrito bastante sobre a escravidão em Pelotas, uma análise mais aprofundada a respeito deste não foi realizada. Ver, por escravocrata exemplo, CARDOSO, Fernando e escravidão Brasilprocesso meridional: o negro na sociedade do Rio Grande do H. Sul.Capitalismo 2. ed. Rio de Janeiro: Paznoe Terra, 1977; CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983; MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST, 1984; GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001; ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888).Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, Dissertação de Mestrado, 1995; MONASTÉRIO, Leonardo M. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil meridional. In: História e Economia Revista Interdisciplinar da Brazilian Business School. São Paulo: Terra Comunicação Editorial, v.1, n. 1, 2005, p. 13-28; PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX.Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS. Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 97-114.
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Entretanto, algumas das reflexões realizadas neste capítulo não se encaixam diretamente para a grande maioria dos senhores de escravos do Brasil. Hoje, já se tem como algo amplamente aceito, um dos aspectos que caracterizava a escravidão era a preponderância dos pequenos proprietários de cativos. Além disso, o tipo de trabalho executado nas charqueadas e a sua alta razão de sexo as tornam mais exceção do que regra. Portanto, o leitor pode se perguntar: qual a representatividade da presente análise? Respondo que qualquer estudo das relações entre senhores e escravos é representativa da história desta instituição que marcou praticamente todas as sociedades do mundo ocidental. 4 Quando se aceita a heterogeneidade e a diversidade de tais sociedades, percebe-se a necessidade de se estudar cada vez mais este mosaico de formações socioeconômicas surgidas nos quadros do escravismo moderno.5 Isto não significa que não existam pontos comuns nas mais diferentes sociedades escravistas. De início, afirmo que um dos principais aspectos (e talvez um dos principais interesses no presente estudo) é o fator econômico da relação social entre senhores e escravos. Nas charqueadas de Pelotas, a exploração do trabalho cativo tomou proporções notáveis. Mas, uma vez que estamos lidando com seres humanos, deve-se pensar que cada senzala possuía os seus caprichos e cada senhor possuía as suas formas de punir os desobedientes e premiar os bem comportados. Em relações que alternavam estabilidade e conflito6, busco contribuir com a compreensão da maneira na qual o charqueador se comportava enquanto senhor de escravos e enquanto patrão de uma empresa que visava obter lucros no mercado.7
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PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social: um estudo comparativo.São Paulo: EDUSP, 2011. BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no novo mundo: do Barroco ao Moderno (1492-1800). Rio de Janeiro: Record, 2003. 6 Algo também amplamente aceito pela historiografia brasileira desde os anos 1980. Ver, por exemplo, o clássico REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. 7 Alguns charqueadores também eram absenteístas se pensarmos naqueles que detinham estâncias a dezenas e até centenas de quilômetros de Pelotas. Mas como esta pesquisa não trata das relações de trabalho nas estâncias, 5
darei atenção ao mundo das charqueadas. Com relação trabalho cativo nas estâncias ZARTH, Paulo.maior História Agrária do Planalto Gaúcho. Ijuí: Editora da ao UNIJUÍ, 1997; OSÓRIO, Helen.ver Escravos da Fronteira: trabalho e produção no Rio Grande do Sul, 1765-1825. In Anales de la XIX Jornada de História Económica. AAHE, San Martín de los Andes, CD-ROM, 2003; FARINATTI, Luis A. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010; ARAÚJO, Thiago L. de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2008; MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no e xtremo sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2012; FONTELLA, Leandro G. Sobre as ruínas dos Sete Povos: estrutura produtiva, escravidão e distintos modos de trabalho no Espaço Oriental Missioneiro (Vila de São Borja, Rio Grande de São Pedro, 18281858). Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2013.
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6.1 A CABEÇA DO SENHOR, AS MÃOS DO CAPATAZ: AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO NAS CHARQUEADAS ESCRAVISTAS NA SEGUNDA METADE DO OITOCENTOS
A partir da década de 1840, as graxeiras a vapor importadas da Europa, um novo equipamento que necessitava de operadores com maior treinamento, foram adotadas por muitos charqueadores pelotenses. Além de ampliar a quantidade produzida de graxa e sebo, o novo maquinário oferecia um melhor aproveitamento das vísceras e outras partes dos novilhos e acelerava o seu processo de fabricação. Tal mudança tecnológica, mesmo que limitada, evidencia algo que outros historiadores já trataram, ou seja, os charqueadores não se mantiveram inertes com relação às instalações de suas fábricas, mas investiram em inovações que buscavam aumentar a produtividade e os ganhos da empresa, como enfatizei no capítulo anterior.8 Estas inversões, na realidade, faziam parte de um processo muito mais amplo e que envolvia transformações de ordem econômica e sociocultural. Como resultado da Lei Eusébio de Queiroz (1850) e do processo de expansão do capitalismo e dos investimentos britânicos no Brasil, a segunda metade do oitocentos foi marcada por muitos debates a respeito do uso da mão de obra escrava e livre nas lavouras brasileiras 9, pela introdução de mudanças pontuais em equipamentos e técnicas para desenvolver melhor a produção em diversos setores econômicos10 e inversões em outras áreas, como as altas finanças e as sociedades comerciais,
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CORSETTI, Berenice. Op. cit.; GUTIERREZ, Ester. Op. cit. Ver, por exemplo, EISENBERG, Peter. A mentalidade dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878. In: LAPA, José R. Amaral (Org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 167194. 10 Para uma análise das mudanças nos engenhos de açúcar e os investimentos em sua modernização ver EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. Na Companhia mineradora de Morro Velho, em São João del Rei, Douglas Libby demonstrou o impacto das máquinas de estilhaçar pedras e da dinamite na economia mineradora (LIBBY, Douglas. Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 115; 121). Na pecuária, a introdução de raças bovinas e ovinas estrangeiras trouxe um aumento nos 9
rendimentos da carneJulio. por animal e marcou o cenário agrario de inovações do coneLa sulexpansión americanoganadera (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Historia del capitalismo pampeano. hasta 1895 . Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI; GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas finais do período imperial (1870-1890). Tese de Doutorado em História: UFF, 2010, p. 78). Para as charqueadas, Corsetti já realizou um inventário a respeito das principais inovações técnicas do período (as mesmas que descrevi no capítulo anterior) (CORSETTI, 1983, p. 152-177). Uma análise do mesmo na indústria algodoeira pode ser vista em CANABRAVA, Alice. O algodão em São Paulo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984. Na cafeicultura, tanto para as inovações quanto para a ausência delas, ver STEIN, Stanley. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990; SPINDEL, Cheywa. Homens e máquinas na transição de uma economia cafeeira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; FRAGOSO, João. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas de produção (1850-1920). Dissertação de mestrado em História, UFRJ, 1983.
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demonstrando um espaço aberto para debates e investimentos de capitais, antes presos ao tráfico atlântico, por exemplo.11 Entre os ricos proprietários, o trabalho livre e escravo, as inovações tecnológicas e o aumento da produção eram temas tratados conjuntamente e as alterações num destes aspectos podia afetar e exigir mudanças nos outros. Com relação às charqueadas pelotenses, é sabido que, apesar das raras exceções, elas nunca abriram mão do uso da mão de obra escrava. Assim sendo, as inovações tecnológicas e a racionalização da produção tiveram que ser realizadas dentro dos quadros de uma empresa escravista, o que não poderia deixar de afetar o mundo do trabalho nas charqueadas, provocando algumas alterações na sua organização e tendo que se adaptar a outras. Tais transformações envolveram pelo menos três aspectos durante a segunda metade do oitocentos: o uso da mão de obra livre assalariada em alguns setores dos estabelecimentos, os incentivos monetários aos cativos como estímulo ao aumento da produção e a tentativa de uma maior racionalização da produção para compensar a queda da média dos plantéis nas charqueadas. Foi na trilha da inovação trazida pelas graxeiras que os assalariados entraram para dentro dos estabelecimentos da charqueada e se disseminaram pelas fábricas. Em 1862, por exemplo, quando os deputados provinciais rio-grandenses discutiam aspectos relativos aos mercados consumidores do charque, às outras formas de conservação das carnes e ao trabalho escravo, o charqueador Manoel Lourenço do Nascimento, representante de Pelotas, respondeu ao deputado Felipe Neri: Não questiono que o braço escravo seja um mal, e é por isso que os charqueadores tratam de removê-lo, tanto que se o nobre Deputado fosse hoje a um desses estabelecimentos, veria que já as graxeiras, a salga de couro e outros trabalhos são feitos por braços livres. Antigamente, em qualquer daqueles estabelecimentos, não se via homens livres além do capataz e algum patrão de iate (…).12
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Ver, por exemplo, GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997; GRAHAM, Sãoda Paulo: Ed. Brasiliense, 1973; Grã-Bretanha o início da As modernização no Brasil. FRAGOSO, Richard. João L. R.; MARTINS, eMaria F. V. elites nas últimas décadas escravidão - as atividades econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 143-164. Tratarei da forma como os charqueadores se comportaram com relação a estas novas oportunidades de investimento no capítulo 9. 12 Neri defendia que o uso do trabalho escravo era um dos fatores da crise pela qual as charqueadas vinham passando. Ver discursos dos dias 02.10.1862 e 04.11.1862 (PICCOLO, Helga. Coletânea de Discursos parlamentares da Assembléia Legislativa Provincial. Porto Alegre: ALRS, v. 1, 1998). Na realidade, como demonstrarei nos capítulos posteriores, um dos grandes motivos da crise dos anos 1860 foi a superprodução de charque que fez baixar os preços do produto. Tanto no Rio Grande do Sul, como em Montevidéu e Buenos Aires, a década foi marcada pela busca de novos mercados para além das plantations de Cuba e do Brasil.
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Conforme Nascimento, podia-se verificar o uso de trabalhadores livres em diferentes espaços da charqueada. Na liquidação da empresa da firma Viúva Vianna & Filhos, por exemplo, foi possível verificar a cobrança de salários por dois capatazes, um rondador, o patrão do iate e os peões da charqueada.13 Algumas charqueadas também possuíam guardalivros e outras, além destes, ainda tinham um administrador da fábrica – uma espécie de gerente de produção (que podia ser um parente do charqueador) mas que talvez só veio a aparecer nas últimas décadas.14 Contudo, com relação aos trabalhadores de menor prestígio, o assalariamento era algo bastante precário. Analisando o trabalho livre nas charqueada, Denise Ognibeni afirmou que o pagamento destes trabalhadores era “protelado conforme a vontade do patrão”.15 De fato, na liquidação da firma mencionada acima, o patrão do iate cobrou salários referentes aos últimos 20 anos de trabalho. Suas anotações revelavam que ele era pago eventualmente e que o charqueador se utilizava tanto de dinheiro quanto de mercadorias e bens diversos para remunerá-lo. Com os totais que recebeu ao final do processo judicial, o trabalhador comprou um escravo marinheiro da massa falida dos charqueadores (talvez seu companheiro de trabalho durante anos) e deve ter dado um importante salto em termos de 16 mobilidade social, podendo fazer fretes por sua conta.
Portanto, o trabalho assalariado na charqueada constituía-se numa relação social e econômica muito complexa, pois ao mesmo tempo em que ele se sustentava nos vínculos de dependência dos empregados para com o patrão, também devia estimular os trabalhadores a buscarem relações de trabalho melhores em outras charqueadas ou ramo de atividades. E isto talvez fosse muito comum, pois, conforme Louis Couty, um dos motivos pelos quais os charqueadores preferiam utilizar escravos ao invés de assalariados livres era a inconstância e sazonalidade destes últimos. Para os charqueadores, os escravos seriam menos difíceis de controlar.17 Uma vez que a inconstância do trabalho livre era uma das grandes queixas dos charqueadores, cabia ao empresário criar mecanismos para manter aqueles trabalhadores por perto e em tempo disponível na safra.18 A análise de alguns processos criminais nos quais os 13
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). 14 Ver, por exemplo, processo-crime n. 1176, m. 32, Tribunal do Júri, Pelotas, 1881 (APERS). 15 OGNIBENI, Denise. Charqueadas pelotenses no século XIX: cotidiano, estabilidade e movimento. Porto Alegre: PPGH/PUC-RS, Tese de Doutorado, 2005, p. 117. 16 Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). 17 COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque.Pelotas: Seiva, 2000 [1880]. 18 O problema da inconstância dos trabalhadores livres nos saladeros e charqueadas e nas estâncias da campanha e da região platina não foi incomum. Ver, por exemplo, MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 17-19; MONSMA, Karl. Esclavos y trabajadores libres en las
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mesmos eram testemunhas permitiu verificar que muitos destes trabalhadores moravam na própria charqueada, em quartos exclusivos para os mesmos e tinham alimentos fornecidos pelo próprio charqueador, que provavelmente eram descontados dos seus salários.19 De acordo com Denise Ognibeni, aos empregados “restava manter uma relação de maior dependência usufruindo como pagamento, de seu local de moradia este, em alguns casos, associado a outros suprimentos como alimentação e terras para roçar”. 20 Nos saladeros platinos, os patrões também utilizavam a alimentação como parte do pagamento dos trabalhadores. Couty diz que além dos vencimentos, cada operário recebia de 3 a 4 quilos de carne por dia de trabalho. Soma-se a isto o fato de que os trabalhadores não estavam descolados do mundo rural do qual as charqueadas também faziam parte. Sua sazonalidade era motivada por uma vida social e econômica que devia vinculá-los a outras pessoas de fora da charqueada, sobretudo seus familiares. Neste sentido, os trabalhadores também possuíam as suas estratégias de sobrevivência na qual o trabalho na charqueada podia ser somente uma das atividades realizadas pelos mesmos.21 Nas firmas mineradoras inglesas instaladas em São João del Rei, por exemplo, os britânicos encontraram grande dificuldade em lidar com a sazonalidade dos trabalhadores. Após os feriados e dias santos, muitos não iam trabalhar, fazendo o mesmo nas épocas de colheitas – o que demonstra seu vínculo familiar com outros setores produtivos e que o trabalho nas minas era encarado como uma atividade entre outras possíveis. Ou seja, os patrões tinham que negociar com os trabalhadores livres para garantir sua permanência nas fábricas. Conforme Libby, este era o principal fator pelo qual os ingleses preferiam a mão de 22 obra escrava nas minas, pois o controle sobre os mesmos era maior (mesmo argumento dos
charqueadores, na visão de Couty). Neste sentido, os trabalhadores assalariados tanto em Minas quanto em Pelotas não devem ser vistos como operários clássicos. E isto funcionava igualmente em Montevideu. Conforme Barran e Nahum, o saladeiro era uma empresa rural, com técnicas de trabalho mais rústicas, realizadas por peões acostumados com a vida estancias del siglo XIX. Un estudio comparativo de Rio Grande do Sul y Buenos Aires. In: REGUERA, Andrea; HARRES, Marluza. (Org.). De la región a la nación. Formas históricas en la construcción del Estado: identidad y representación. Brasil y Argentina en perspectiva comparada (ss. XIX y XX). Tandil: Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, 2012, p. 83-120; FARINATTI, Luís A. Op. cit. 19 Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS; Inventário de José P. Sá Peixoto, n. 276, m. 19, 1847, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 20 OGNIBENI, Denise. Op. cit., p. 117. 21 Um caso semelhante envolvendo os peões de estância no Rio Grande pode ser visto em FARINATTI, Luís A. Op. cit. 22 LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 100-102.
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campeira. Foi somente com a chegada dos frigoríficos que o complexo fabril das carnes tornou-se um verdadeiro espaço de trabalho característico de operários urbanos. 23 Portanto, a dependência pessoal foi fator marcante nas relações de trabalho livre nas charqueadas e parecia ser um mecanismo utilizado pelos charqueadores para poder contar com estes trabalhadores eventuais por perto. Mas esta relação devia ser bastante tensa para aqueles que não se enquadravam na lógica empregada pelo patrão. O próprio Couty, que era um crítico da escravidão e estimulava o assalariamento do trabalho nas charqueadas, lamentava que “as condições dessa transformação” do trabalho cativo ao trabalho livre seriam “bem complicadas”, recomendando aos charqueadores: “será preciso também, e eu insisto neste ponto que poderia parecer acessório, romper com hábitos seculares e não querer submeter operários livres e responsáveis (…) à vigilância perpétua e aos procedimentos de direção que são necessários com os escravos”. 24 Indignado, Couty parecia sugerir que os charqueadores tratavam alguns dos seus assalariados como se fossem escravos. Um caso ocorrido em 1881, um ano depois da obra de Couty, confirma sua afirmação. Num dos interrogatórios relativos ao crime de um escravo na charqueada de Paulino T. da Costa Leite, o charqueador testemunhou afirmando que o graxeiro João César de Castro, que ele havia demitido, apareceu em sua casa “dizendo que estava pobr e, sem recursos, desempregado no meio da safra e com família para sustentar”. O graxeiro, que morava numa peça alugada pelo capataz, reclamou ao charqueador “que vivia num inferno, porque o capataz até com carne lhe faltava para o seu sustento”.25 Numa sociedade onde as classes subalternas também eram ciosas dos espaços de autonomia que conseguiam adquirir, morar na charqueada e ser alimentado por um capataz era quase viver em condições semelhantes a dos próprios escravos, e isto devia incomodar muito os trabalhadores livres que viviam na charqueada. Neste sentido, é possível compreender a instabilidade da mão de obra assalariada também a partir do não pagamento corrente dos salários e do mau tratamento que os mesmos recebiam. Talvez seja este um dos motivos pelo qual as experiências de trabalho com os mesmos tenham fracassado. Entrevistando um charqueador, Couty disse que as tentativas de contratarem carneadores 23
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 101. 24 COUTY, Louis. Op. cit., 2000, p. 153. 25 O charqueador disse que mandara seu filho “despedi-lo para não ter empregados que em vez de viverem no trabalho da charqueada se ausentavam preterindo obrigações”. O patrão teria lhe dito que “de fome não havia de morrer, que continuaria a dar-lhe vencimentos até que encontrasse emprego” e que talvez ele mesmo o empregasse na sua chácara ou na fábrica de cola, mas na charqueada não mais (Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS).
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assalariados na charqueada não obtinham o sucesso desejado. Além disso, conforme o autor, a combinação de homens livres e escravos no espaço de trabalho provocava inúmeros inconvenientes. Conforme Couty, os charqueadores também não confiavam a operação das graxeiras a vapor aos escravos, contratando trabalhadores livres para o mesmo serviço. 26 Num contrato estabelecido entre os irmãos Barcellos e Antônio José de Oliveira Leitão, em 1861, os mesmos estipulavam que o trabalho na extração dos sebos e graxas deveria ser realizado por um “graxeiro branco”.27 Observe-se que, mais do que a condição jurídica, o contrato estabelecia a cor do graxeiro, indicando que o ofício deveria ser exercido por homens livres sem raízes no cativeiro, dando a entender que os charqueadores não confiavam nos escravos e libertos para exercerem certos tipos de atividade na charqueada. Tal comportamento era muito diverso da postura dos empresários ingleses em São João del Rey, por exemplo. De acordo com Libby, os escravos das minas trabalhavam como maquinistas, eram promovidos para setores de supervisão e operadores de máquinas de estilhaçar, entre outros setores. As promoções incluíam as próprias mulheres cativas. 28 Segundo o autor, tratava-se de um gerenciamento que oferecia certa confiança à capacidade do trabalho técnico dos escravos. Além disso, os britânicos colocavam lado a lado o trabalho livre e o cativo em praticamente todas as suas unidades de produção, algo que os charqueadores preferiam não realizar. E a experiência não deve ter sido “traumática” nem para os escravos e nem para os britânicos, uma vez que os escravos alforriados voltavam a trabalhar na empresa como assalariados e a Companhia mineradora foi uma das empresas mais lucrativas do Império.29 Confiando-se nos depoimentos dos charqueadores dados a Couty é possível verificar que isto não ocorria em Pelotas, ou seja, os libertos dificilmente voltavam a trabalhar nas charqueadas dos seus ex-senhores. 30 Portanto, se ingleses e pelotenses concordavam a respeito do emprego dos escravos para superar os problemas da inconstância do trabalho livre, suas posições com respeito às capacidades dos cativos e dos libertos eram distintas.
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COUTY, Louis. Op. cit., 2000, p. 149-152. Contrato de Sociedade entre os irmãos Luís, Eleutério e Boaventura Teixeira Barcellos e Antônio José de Oliveira Leitão, Códice JC-20, Fundo Jundo Comercial, AHRS. 28 De todos os inventários de charqueadores consultados encontrei mulheres escravas trabalhando como graxeiras em somente um deles (Inventário de João Simões Lopes, m. 366, m. 26, 1853, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas). 29 LIBBY, Douglas. Op.cit., p. 31-35; 103. 30 Não localizei documentos que divergissem da informação de Couty. De qualquer forma, esta questão ainda está em aberto, esperando novas pesquisas. 27
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Mas os escravos alforriados não retornavam para as charqueadas como assalariados porque não queriam ou porque os charqueadores não possuíam interesse? Esta é uma pergunta complexa e que talvez tenha uma resposta positiva para ambas as opções. Mas para começar a refletir sobre a mesma é preciso iniciar a análise de duas questões fundamentais no período e que vinham alterando o mundo do trabalho nas charqueadas: a racionalização do trabalho e os pagamentos de prêmios por produtividade. Como mencionei anteriormente, para contornar a diminuição do número de escravos nas fábricas e aumentar a produção diante das baixas de preços do charque, outras soluções foram tentadas pelos charqueadores. Uma primeira transformação dizia respeito ao próprio aproveitamento do espaço de trabalho e da divisão dos escravos em tarefas diversas, otimizando o tempo e, mesmo que com muitos limites, racionalizando a produção. Como afirmei no capítulo anterior, se os carneadores e graxeiros apareciam nos inventários desde a década de 1810, os salgadores e os sebeiros só começam a aparecer a partir da década de 1820. Os primeiros chimangos discriminados como tal só surgem nos plantéis da década de 1840. E os escravos mais especializados como os tripeiros e os descarnadores surgem somente nos inventários da década de 1850 e 1860, respectivamente.31 Nos dias de matança a jornada de trabalho começava por volta da meia-noite e estendia-se até o meio-dia, com pelo menos uma parada no meio do turno. 32 As tarefas eram realizadas sob a máxima capacidade de divisão de trabalho para os padrões das charqueadas33 e os escravos as realizavam organizados em turmas, sob o ritmo das canções entonadas pelos mesmos.34 Neste processo, os escravos faziam“marcas” especiais nos couros e nas mantas de 31 É o mesmo que defendeu PESSI, Bruno S. A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIX. Anais da VIII Mostra de pesquisa do APERS.Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 97-114. 32 GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 211. Detalhes minuciosos da jornada de trabalho nas charqueadas de Pelotas foram descritas por Alberto Coelho da Cunha em seu conto “Um episódio de charqueada”, publicado em 1872 na Revista do Partenon Literário de Porto Alegre. Cunha era filho de um rico charqueador e aderiu ao movimento abolicionista na década de 1870 (CUNHA, Alberto C. da. Um episódio de charqueada. In: MOREIRA, Maria Eunice (Org.). Narradores do Partenon Literário.Porto Alegre: IEL/CORAG, 2002, p. 41-
49). 33 Conforme Libby, para os padrões da época a divisão de trabalho nas fábricas era um procedimento que fazia toda a diferença na produção. “Ela é típica de empreendimentos capitalistas do século passado, cujos níveis tecnológicos não eram muito elevados, mas que conseguiam aumentar a produtividade pela organização racional da força de trabalho” (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 111). Couty nunca disse que não havia divisão de trabalho nas charqueadas pelotenses. O que o observador francês afirmou foi que, numa comparação com a divisão do trabalho nos saladeros platinos, as charqueadas apresentavam uma organização muito incipiente e desordenada nos dias em que não havia matança. Nestas ocasiões os escravos realizavam tarefas diversas (carregar e descarregar os iates, por exemplo, exigia um dia inteiro de trabalho) onde eram mobilizados conjuntamente, sem divisão de tarefas (COUTY, Louis. Op. cit.). 34 Alberto Cunha narrou que o escravo Felipe Maranhão, carneador idoso, já não usava sua afiada fa ca “como ontem acompanhada de uma canção alegre” (CUNHA, Alberto C. Op. cit., p. 43). Em março de 1853, o escravo
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charque.35 E para quê se usavam tais marcas? Por um outro motivo que envolvia uma alteração ainda mais importante no processo produtivo. Junto destas mudanças, os charqueadores também criaram um sistema de gratificação monetária ao número de novilhos carneados além da cota diária. Conforme Couty, que entrevistou um charqueador a respeito, o sistema teve uma boa resposta por parte dos escravos. O controle da produção realizava-se na contagem do número de pares de orelhas que o carneador retirava das reses preparadas por ele, entregando as mesmas ao capataz no final da jornada. Segundo Couty, os charqueadores costumavam pagar entre $30 e $35 réis por cada novilho preparado a mais e, por conta deste estímulo, o ritmo de trabalho dos cativos tornara-se intenso. A média de novilhos antes preparados era de 6 a 8 animais por carneador. Depois do novo dispositivo ela saltou para 12 a 14 animais.36 Conforme Couty, “vê-se que o escravo pode fazer verdadeiras economias. Alguns escravos do Sr. da Costa, onde este excelente uso é antigo, já puderam libertar-se”.37 Este novo sistema podia render mais de 2$ por dia de abate. Contabilizando 20 dias de matança no mês, um cativo acumularia 280$ numa safra – isto sem contar outros ganhos com diferentes atividades que ele poderia exercer.38 Portanto, a relação entre o aumento do ritmo de trabalho 39
com a compra da liberdade era totalmente factível. Mas o dinheiro ganho não servia apenas para juntar pecúlio. É provável que estes carneadores fossem procurados para ajudar outros escravos e acabavam se tornando figuras importantes dentro do plantel de uma charqueador. Contudo, como resultado deste mesmo processo, um grupo de trabalhadores acabava se vendo em desvantagem. Como notou Alberto da Cunha, os escravos mais velhos, por exemplo, não Nicolau, marinheiro do charqueador Joaquim José de Assumpção, foi castigado por não cantar enquanto içava as cordas do navio (Processo-crime n. 32, 1853, Tribunal do Júri, Pelotas, APERS). 35 COUTY, Louis. Op. cit., p. 149-150. 36 COUTY, Louis. Op. cit., p. 149-150. O pagamento de prêmios aos escravos também foi estipulado no contrato de sociedade em uma charqueada mencionado anteriormente (Contrato de Sociedade entre Boaventura Teixeira Barcellos e Antônio José de Oliveira Leitão, Códice JC-20, Fundo Jundo Comercial, AHRS). 37 COUTY, Louis. Op. cit., p. 150). Em julho de 1879, em meio a uma investigação de uma quadrilha que roubava charque dos varais dos estabelecimentos, a polícia prendeu os suspeitos e requisitou que os charqueadores seus escravos a delegacia reconhecerem as suas mantasdodeComércio charque. de E, Pelotas de fato, os carneadores enviassem as reconheceram devido até às marcas que para realizavam nas mesmas ( Jornal de 02.07.1879 e 03.07.1879 (Biblioteca Pública Pelotense)). 38 Douglas Libby diz que um escravo trabalhador nas minas de São João del Rey podia receber anualmente em horas-extras até 10% do seu próprio valor (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 99). Tendo em vista que a média mais alta dos cativos adultos inventariados nas charqueadas de Pelotas foi de 1:500$, percebe-se que o potencial de acúmulo de pecúlio na charqueada poderia ser bem maior. 39 Neste sentido, os ingleses instalados em São João del Rei perceberam que a ideia de liberdade era tão estimulante no universo do trabalho cativo que a Companhia mineradora implementou um programa de concessão de alforrias. Entre 1861 e 1866, por exemplo, 97 escravos foram libertos por meio do mesmo. Contudo, muitos deles retornavam para o trabalho das minas. Sendo treinados nos ofícios conseguiam emprego certo (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 103).
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conseguiam acompanhar o ritmo acelerado dos mais jovens. 40 Além disso, a grande capacidade de acumular pecúlio por parte dos carneadores provocou a inflação dos preços pagos pelas cartas de alforria nas senzalas dos charqueadores. Os valores pagos pelas mesmas, entre os anos 1860 e 1870, estavam entre os mais altos de todo o Rio Grande do Sul. Em 1868, por exemplo, o carneador Firmino Mina pagou 3:000$ por sua liberdade – cifra muito acima do verificável em outros municípios da província. 41 Com esta quantia, o seu ex-senhor podia comprar de dois a três escravos no mercado local. Exemplos como este justificavam mais ainda a permanência da escravidão como uma instituição economicamente rentável para o charqueador, numa complexa relação compartilhada por senhores e escravos. Por outro lado, o aumento do valor pago pelas alforrias poderia dificultar o acesso à liberdade para aqueles que não possuíam condições de acúmulo semelhante aos carneadores mais produtivos ou que não pertencessem ao círculo de relações dos mesmos.42 Contudo, nem todos os escravos estavam dispostos a pagar tamanhas quantias ou utilizar o seu dinheiro somente com a finalidade de se alforriar. A partir das conversas que teve com os charqueadores, Couty declarou: “É preciso confessar que, na maioria das vezes, [os carneadores] fazem de seus ganhos outros usos, pois eles pouco desejam uma liberdade 43
comprada por trabalho ou privações”. Além disso, penso que eles podiam continuar trabalhando mais um tempo na charqueada para conseguir melhores condições e preparar-se para uma condição mais segura em sua vida pós-cativeiro, tanto para si, quanto para seus familiares. Tratava-se de uma estratégia muito bem traçada e que podia ser potencializada caso o escravo contasse com outros parentes em situação semelhante ou pessoas que ele tinha interesse em ajudar.44 Um caso envolvendo um escravo de Joaquim da Silva Tavares exemplifica bem esta situação. Em novembro de 1861, o preto mina Joaquim, carneador, 28 anos, assassinou a preta liberta Juliana com uma facada, dentro da casa da mesma. Perguntado 40
CUNHA, Alberto C. da. Op. cit. Assim como ele, muitos outros cativos de charqueada pagaram valores superiores a 2:000$, cifra menos comum de se encontrar em outros municípios da província se comparados a Pelotas. O preço de 3:000$ foi o mais alto que localizei ao pesquisar as alforrias pagas em todos os municípios do Rio Grande do Sul durante o 41
século Esta do busca foi possível conta dados publicação das mesmas cartas organizadas pelo ArquivoXIX. Público Riosó Grande do Sul.por Escravos charqueadores Honório Luísde daliberdade Silva e Manoel Francisco Moreira, e dos comerciantes de charque Domingos Félix da Costa e família Cardia, também pagaram o valor de 3:000$. Fora estes, somente um outro senhor recebeu uma quantia igual por ter libertado seu cativo (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.Documentos da escravidão catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, CORAG, v. I e II, 2006). 42 Como se verá a seguir, os carneadores ajudavam outros cativos a se libertarem. Por este motivo, penso que os valores pagos por outros escravos para se alforriarem tenderiam a aumentar, pois os charqueadores deviam saber que os carneadores ajudavam alguns de seus companheiros de cativeiro. 43 COUTY, Louis. Op. cit., p. 150. 44 Ver, por exemplo, MATHEUS, Marcelo S. Op. cit.
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do motivo pelo qual cometeu o crime, o réu respondeu: “que vivendo com uma preta Juliana, a quem ele havia forrado, e recebendo dela ingratidões, apaixonou-se a ponto de a assassinar 45 em novembro do ano passado, e que hoje está arrependido de cometer esse crime”.
Esse não foi o único crime envolvendo carneadores apaixonados por forras e cativas que viviam distante das charqueadas. Em dezembro de 1868, por exemplo, o preto mina José, 50 anos, escravo marinheiro do charqueador José Antônio Moreira, matou Sofia alegando ter emprestado mais de 1:000$ para ela se alforriar, mas a vítima teria usado o dinheiro para libertar um outro escravo com qual vivia. 46 Em março de 1871, o cativo Joaquim Angola, 40 anos, cozinheiro e carneador, matou com uma facada um outro preto que estava na casa da preta Martha, com quem Joaquim “tinha relações”.47 O número de casos envolvendo carneadores, salgadores e outros escravos com pretas cativas e forras que viviam na cidade ou na Serra dos Tapes devia ser muito maior, visto que foram poucos os que perderam a cabeça por ciúmes, vindo a deixar seus vestígios em processos criminais. Como o número de mulheres era cada vez menor nas senzalas do charqueador (ver capítulo 5), ficava difícil para os escravos constituir família ou relacionar-se com outras escravas dentro do seu próprio plantel ou no dos vizinhos. Neste sentido, é provável que muitos carneadores insistissem com seus senhores para poderem ter a oportunidade de eventualmente sair ao encontro de outras pessoas do seu interesse. O charqueador podia, inclusive, negociar tal autonomia aos escravos mais produtivos durante a jornada semanal, por exemplo. No mesmo processo criminal mencionado acima é interessante notar que o escravo Joaquim havia recebido um recado da preta Martha dizendo que a mesma o esperava em sua casa. Era uma quarta-feira. Contudo, ele mandou respondê-la que neste dia não poderia e que ela esperasse mais 4 dias. Ou seja, o escravo marcou o seu encontro para um domingo, sabedor de que era a sua folga e, de fato, cumpriu o prometido à Martha. Portanto, Joaquim conhecia os seus limites e suas obrigações para com o charqueador, mesmo porque os mesmos deviam ter sido fixados a partir de uma negociação entre ele e o seu senhor. 48 Neste sentido, é provável que um grupo de carneadores atingisse uma notável importância dentro da 49 senzala podendo negociar em melhores condições com os senhores e capatazes.
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Processo-crime n. 587, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1861 (APERS). Processo-crime n. 264, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1869 (APERS). Processo-crime n. 925, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS). 48 Processo-crime n. 925, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS). 49 Com relação a isto ver MATHEUS, Marcelo S. Op. cit. 46 47
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Além disso, alguns cativos também estavam em melhores condições de fazer uma leitura muito bem planejada do contexto em que se encontravam. A cautela dos escravos carneadores em migrar instantaneamente para a vida de liberto era ainda mais compreensível no caso de os mesmos observarem com atenção a forma como alguns trabalhadores assalariados viviam suas vidas fora da charqueada. A situação dos operários livres das indústrias da carne não era muito digna nem em Pelotas e nem em outros países. Nos saladeros platinos, por exemplo, Barran e Nahum afirmaram que a situação dos trabalhadores tendeu a piorar ao longo do século XIX, por conta das crises enfrentadas pelo setor e da mão de obra mais abundante. Um traço constante era “el empleo de niños que sólo se encuentra en las formas primeras de la acumulación capitalista” junto com demais operários que enfrentavam “las grandes jornadas de dieciséis, dieciocho y aún más horas, señalan el máximo grado de tensión de las fuerzas del trabajador”. Em suma, tratava-se de “una brutal plusvalía, que sólo la industria europea en los albores de la revolución industrial presenció”.50 Analisando os horários de trabalho dos escravos na Companhia mineradora Morro Velho, em São João, Libby percebeu que na primeira metade do século, elas totalizavam 12 horas diárias, com duas equipes se intercalando nos trabalhos. Contudo, depois que a imprensa inglesa começou a pressionar a companhia britânica instalada no Brasil, as jornadas diminuíram para 8 horas, com três equipes se dividindo nas tarefas. Conforme Libby, “pelo menos teoricamente, o regime de horários em Morro Velho poderia ser comparado muito 51 favoravelmente com os horários vigentes na indústria britânica do mesmo período”. O
próprio Couty, que defendia o assalariamento do operário platino em detrimento da escravidão em Pelotas, descreveu a situação difícil enfrentada pelos trabalhadores dos saladeros. De acordo com ele, o saladeirista possuía vantagem sobre o charqueador, porque em situações de baixa ele “pode, mesmo, fechar seu saladeiro e estará seguro de encontrar, quando ele reabrir, operários em quantidade suficiente. Esses operários devem aproveitar, como o saladeirista, anos favoráveis e grandes abates para se prevenir contra o desemprego: eles lutam individualmente por sua vida”.52 Nos Estados Unidos, a situação dos operários da indústria da carne também era lastimável, tornando-se mundialmente conhecida através do romance The Jungle (1906), de 50
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 101. LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 124. Para um retrato contemporâneo das condições de vida dos operários ingleses ver ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.São Paulo: Boitempo, 2008. 52 COUTY, Louis. Op. cit., p. 146. 51
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Upton Sinclair. O livro atacava as condições de fabricação das carnes e dos trabalhadores nos frigoríficos de Philipp Armour, o Barão das carnes de Chicago. Liderando diversas greves nos anos 1880, os operários exigiam uma jornada de trabalho de 8 horas e o direito de sindicalizar-se, mas eram seguidamente reprimidos de forma violenta por milícias formadas pelos próprios empresários do setor.53 Conforme James Green, enquanto trabalhadores norteamericanos (com uma família de 5 membros) recebiam um salário básico de 15,40 dólares por semana, os trabalhadores dos frigoríficos venciam 9,50 dólares. Convertendo para mil réis, no ano de 1885, este valor equivalia a quase 24$, o que daria cerca de 100$ mensais e 1:200$ anuais.54 Em Montevideu, os saladeiristas pagavam aos seus carneadores, em cada safra, algo entre 1:000$ e 1:600$, dependendo do valor das diárias. 55 Era mais de 3 vezes o salário de um peão de charqueada.56 Contudo, qualquer comparação mais aprofundada com o trabalho nas charqueadas deve envolver os custos de vida com alimentação e moradia de um trabalhador 57 em Chicago, Montevidéu e Pelotas, algo que esta pesquisa não pretendeu realizar.
Portanto, não há como refletir sobre os projetos individuais e coletivos dos trabalhadores livres e escravos empregados em setores fabris no século XIX e não pensar em suas condições de trabalho e de vida. Neste sentido, ao ponderarem sobre a sua condição após o cativeiro, realizando cálculos sociais (como qualquer trabalhador o faz) acerca das suas condições e o que poderia estar em jogo em cada uma de suas escolhas, os carneadores eram muito mais inteligentes do que Couty poderia supor. Talvez até mesmo um ex-companheiro de cativeiro que tenha se alforriado e caído em condições de precariedade podia lhe servir 53
GREEN, James. Death in the Haymarket: a story of Chicago, the first labor movement and the bombing that divided gilded age America.New York: Pantheon Books, p. 103-104; 158-160. 54 Para a conversão utilizei MOURA FILHO, Heitor P. Taxas Cambiais do Mil-Réis.Exchange rates of the milreis (1795-1913). MPRA Paper N. 5210. Disponível em , 2006. 55 Conforme Couty, os carneadores recebiam de 25 a 40 francos por dia. Tendo em vista a taxa de câmbio calculada por Couty e a estimativa de que estes trabalhadores carneavam 25 dias por mês, o vencimento em 5 meses podia rondar entre 1:000$ e 1:600$, como foi dito (COUTY, Louis. Op. cit., p. 143). 56 A partir do processo de Liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos foi possível verificar alguns trabalhadores livres cobrando seus salários referentes à safra que se encerrava. A partir dos mesmos, é possível calcular os respectivos vencimentos anuais para o capataz (1:536$), o patrão do iate (480$), o graxeiro (384$), o camarada do (320$), o peão da casa (340$) e o rondador Os empresários carneadores livres. Masiate como os graxeiros exerciam um serviço bastante(337$). especializado é provávelnão queutilizaram um carneador não recebesse mais do que isto. Os serviços de um escravo carneador, estipulados na mesma fonte, eram calculados em 30$ mensais (Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS). 57 Ao comparar o salário dos trabalhadores livres brasileiros com o dos europeus na Companhia mineradora de São João del Rey, Libby chegou aos mesmos índices, ou seja, os europeus recebiam 3,4 vezes o salário dos brasileiros, exercendo as mesmas funções. Nos anos 1860, o salário dos broqueiros brasileiros era de 37$500 por mês (pouco mais que o de um peão de charqueada ou do valor do trabalho de um escravo de charqueada na mesma época, que ficavam em 30$) (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 104-105). Portanto, o trabalho assalariado exercido por um brasileiro em comparação com um estrangeiro era muito desvalorizado tanto em Pelotas quanto em São Joao del Rey.
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como exemplo. Neste sentido, alguns escravos possuíam uma noção muito clara do contexto em que se encontravam e deviam buscar gerenciar os seus recursos de uma forma que sua 58 vida de liberto não fosse pior que a sua vida de cativo.
A afirmação feita por Couty de que dificilmente os escravos alforriados retornavam para trabalhar nas charqueadas pode ser interpretada de várias formas. A primeira delas é que muitos deles conseguiam uma nova vida na qual não precisavam mais se sujeitar a um serviço reconhecidamente muito desgastante. A segunda é a de que, mesmo em situação de miséria, eles não desejavam retornar para a administração do seu ex-senhor. E a terceira é que seus próprios ex-senhores não desejavam contar com o seu trabalho nas fábricas, visto a “inconveniência” de misturar livres e cativos na matança. Obviamente que estas escolhas variavam de senhor para senhor e de escravo para escravo, visto que muitos libertos deviam continuar mantendo relações com a família senhorial. 59 Em janeiro de 1873, em meio aos interrogatórios sobre a morte de um capataz, uma das testemunhas chamou a atenção. Francisco Catarina não era escravo, possuía 70 anos, era natural da África, solteiro, declarouse “carneador”, mas residia num rancho ao lado da charqueada de Joaquim José de Assumpção. Dizia que estava indo com uma vasilha pegar água no riacho quando escutou os gritos do capataz. Então60“ele testemunha fechou o seu rancho e foi à casa do capataz e aí, com efeito, o achou morto”. É possível que Francisco tenha sido escravo da família, visto que era carneador e que sua presença ali estimulasse outros carneadores a buscarem aquele mesmo projeto de vida. Portanto, a política de incentivos monetários implantada pelos charqueadores, nos casos de sucesso, tornava o investimento em escravos ainda mais rentável. Contudo, o aumento da produção talvez tenha ultrapassado os limites suportáveis por muito cativos, gerando certas tensões nas relações de trabalho nas charqueadas. Uma das formas que encontrei para testar minha hipótese foi a análise dos processos criminais envolvendo escravos de charqueadores. Tendo em vista que o número de charqueadas manteve-se constante entre as décadas de 1830 e 1870 e que a média dos plantéis de cativos por charqueada diminuiu, o aumento do número de crimes durante o mesmo período merece ser levado em conta.61 Uma análise qualitativa dos conflitos envolvendo capatazes e as brigas 58
MATHEUS, Marcelo S. Op. cit. MATHEUS, Marcelo. Op. cit. Processo-crime n. 965, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS). 61 Não descarto a hipótese de que os processos criminais também aumentaram devido a ampliação do aparato judicial e a maior interferência da esfera estatal nas relações de trabalho nas charqueadas. Contudo, uma 59 60
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dentro das charqueadas pode revelar uma possível tensão entre feitores (sob à orientação do charqueador para que aumentassem a produção) e escravos (que procuravam imprimir o seu próprio ritmo ao trabalho).62 Disto resultavam inúmeros conflitos cujo desfecho mais grave era a morte ou do capataz ou dos escravos.63
Gráfico 6.1 – Processos criminais envolvendo escravos de charqueadores pelotenses (1830-1888)
Fonte: Construído a partir de PESSI, Bruno; SILVA, Graziela (Org.). Documentos da escravidão: processos crime: o escravo como vítima ou réu.Porto Alegre: CORAG, 2010.
Em julho de 1856, o escravo Inácio, 27 anos e trabalhador de charqueada, assassinou o capataz de José Antônio Moreira após uma briga com o dito empregado. 64 Em setembro de 1864, o preto mina Matheus, roceiro, 45 anos, matou o capataz Francisco José de Campos a facadas, depois de uma discussão na charqueada de Antônio José de Azevedo Machado. 65 Em dezembro de 1873, o capataz João Paredes Villar, depois de desferir “bordoadas” e castigar o escravo Feliciano, 22 anos e servente de charqueada de Joaquim José de Assumpção, foi assassinado pelo mesmo cativo que usava uma faca. 66 Numa madrugada de janeiro de 1880, o escravo Faustino, de 18 anos de idade e alugado ao charqueador Domingos Soares Barbosa, alteração mais profunda na estrutura judicial pelotense só ocorreu em 1875, quando ela foi elevada à comarca. Antes os feitosconflitos eram julgados Rio Grande. O baixo índice de crimes nas décadas talvez indiquedisso, que alguns fossem em resolvidos no nível da unidade produtiva, semprimeiras muita interferência de poderes externos. As charqueadas ficaram quase que inativas entre 1836 e 1841 e isto certamente também afetou os índices. De qualquer forma, trata-se apenas de um indicador que merece pesquisas futuras. 62 Para uma análise neste sentido ver SILVA, Róger Costa da. Criminalidade e escravidão, Pelotas, segunda metade do século XIX. In: Anais do 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 1-18. 63 Para um apanhado geral destes conflitos, questões relativas às fugas e a r esistência escrava nas charqueadas de Pelotas ver ASSUMPÇÃO, Jorge E. Op. cit. 64 Processo-crime n. 788, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1856 (APERS). 65 Processo-crime n. 668, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1864 (APERS). 66 Processo-crime n. 965, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS).
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por conta de desavenças com o capataz Antônio de Oliveira Graça, o matou com algumas cacetadas na cabeça. O capataz havia dito que lhe colocaria nos ferros, o que motivou o cativo a planejar a sua morte.67 Acompanhando com atenção as queixas dos escravos, é possível verificar que os motivos dos conflitos entre capatazes e escravos decorriam dos excessivos castigos aplicados não apenas para corrigir a sua má conduta como também as falhas decorrentes de seus serviços na charqueada. Em janeiro de 1879, por exemplo, o escravo Antônio, 40 anos, cozinheiro e carneador, foi castigado pelo capataz por não conseguir cortar os couros que preparava da maneira correta, os estragando.68 Em janeiro de 1873, Feliciano matou o capataz por ele o haver “mandado trepar para cima de uma pilha de carne verde para trabalhar e ele réu lhe dissera não poder fazê-lo por ter os pés e as mãos ardidas do sal”. 69 O escravo Matheus, citado acima, também revoltou-se com o capataz pois não queria trabalhar “no valo” que cercava o terreno da charqueada, alegando estar com os pés rachados. 70 O aumento dos ritmos de produção e a pressa dos escravos em aumentar suas tarefas foi capaz de provocar um infeliz acidente na charqueada de Manoel Jacintho Lopes, em 1871. Eram cerca de 4 horas da madrugada quando Manoel, 34 anos, baiano, ao retornar correndo com um grande pedaço de carne para o galpão de charquear, esbarrou no cativo Joaquim, ferindo-o mortalmente com sua faca. Os demais carneadores e trabalhadores assalariados confirmaram a versão do réu, alegando que o local de trabalho estava muito pouco iluminado (a matança era realizada de madrugada sob as luzes de seis lampiões, sendo que no galpão de charqueada havia somente 2 71 deles) o que favoreceu o acidente. Manoel foi absolvido.
Como foi dito, as queixas contra os excessos de castigos também eram comuns. 72 Talvez eles estivessem excedendo o nível suportado pelos escravos. Por estarem convivendo com trabalhadores livres no interior das charqueadas, recebendo dinheiro como pagamento por seus serviços e vendo alguns parceiros de cativeiro se libertando é provável que os mesmos já não aceitassem mais o tratamento que lhes era conferido anteriormente. Talvez esta fosse uma das “inconveniências” 73 reclamadas pelos charqueador es em misturar escravos e assalariados nos galpões de charquear. Os cativos estavam sujeitos a medidas disciplinares 67
Processo-crime n. 1.147, Tribunal do Júri, Pelotas, 1880 (APERS). Processo-crime n. 1.135, Tribunal do Júri, Pelotas, 1879 (APERS). 69 Processo-crime n. 965, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1873 (APERS). 70 Processo-crime n. 668, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1864 (APERS). 71 Processo-crime n. 926, Tri bunal do Júri, Pelotas, 1871 (APERS). 72 Neste sentido, ver também SILVA, Róger da Costa. Op. cit. 73 COUTY, Louis. Op. cit. 68
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que não envolviam os assalariados, como dormir sob uma senzala trancada e ter seus espaços de autonomia restringidos pelo senhor. Neste sentido, ao não serem castigados (e caso o fossem, não devia ser na mesma proporção) os assalariados deviam oferecer exemplos de conduta que podiam ser internalizados pelos escravos mais zelosos de sua posição na senzala. A análise dos processos criminais também revela que as charqueadas estavam longe de se constituírem em “penitenciárias”, como declarou Nicolau Dreys.74 A mobilidade com que alguns escravos do serviço das charqueadas circulavam pela cidade era algo notável. 75 Além daqueles carneadores que saíam ao encontro de libertas com quem mantinham relações, encontram-se vários crimes e conflitos praticados por escravos dos charqueadores enquanto andavam pela cidade, como o preto Joaquim, assassinado a machadadas por não pagar uma dívida de jogo que contraiu na cidade ou o escravo Porfírio que matou seu companheiro de cativeiro no caminho da Serra dos Tapes, porque desconfiou que o mesmo o estava roubando.76 O pardo João, em 1855, após cometer um crime em Pelotas, foi até Porto Alegre (distante mais de 250 Km) pedir proteção ao seu senhor moço, que, na ocasião, era deputado provincial.77 E, em 1882, apenas para dar mais um exemplo, o carneador Ulisses, depois de sua jornada de trabalho, foi dar um passeio na cidade onde consumiu bebida alcoólica em algum78 bolicho e depois foi até uma loja comprar ceroulas, ocasião em que foi acusado de furto. Entretanto, esta margem de locomoção não devia estar acessível a todos e alguns escravos, aos olhos do senhor, deviam possuir mais direitos do que outros. Como foi dito anteriormente, é possível que os carneadores e outros escravos tivessem mais privilégios. Não surpreende que os casos de crime envolvendo relacionamentos passionais com libertas 74
DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IEL, 1961. Esta constação já havia sido realizada por Caiuá Al Alam ao estudar a escravidão e criminalidade em Pelotas na primeira metade do século XIX (AL-ALAM, Caiuá Cardoso. A negra forca da princesa: Polícia, pena de morte e correção e m Pelotas (1830-1857). Pelotas: Sebo Icária/ Edição do autor, 2008, p. 53). 75 Na realidade isto foi uma constante na vida dos escravos de diversas regiões, pois faz anos que a historiografia brasileira vem demonstrando a mobilidade dos cativos tanto nas cidades quanto nos meios rurais. Ver, por exemplo, MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982; REIS, João José. Sodré um sacerdote africano: escravidão, liberdade candomblé na forra Bahiaparda, do século XIX. Domingos São Paulo: Cia das–Letras, 2008; FRAGOSO, João. Efigênia Angola, eFrancisca Muniz seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, 2010, p. 74-106; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1990; CASTRO, Hebe M. Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; MOREIRA, Paulo. Os Cativos e os Homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre: EST, 2003; OLIVEIRA, Vinícius P. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras meridionais.Porto Alegrete: EST, 2006. 76 Processo-crime n. 623, Tri bunal do Juri, Pelotas, 1862 (APERS). 77 Processo-crime n. 463, Tri bunal do Juri, Pelotas, 1855 (APERS). 78 Processo-crime n. 1.200, Tribunal do Juri, Pelotas, 1882 (APERS).
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envolviam carneadores e marinheiros. Estes últimos deviam conhecer um grande número de pessoas fora da charqueada. Além disso, por conta de sua circulação e da leitura que faziam do meio social no qual viviam, alguns escravos também conseguiam tecer uma rede de alianças mais ampla, envolvendo forros e homens livres, vindo a utilizá-las em caso de necessidade. Em 1879, o escravo carneador Antônio, com medo de ser castigo novamente pelo capataz de sua charqueada, foi ao encontro de outros charqueadores para procurar “apadrinhar-se”. E, de fato, o carneador foi protegido e escapou, momentaneamente, de ser castigado na charqueada de seu senhor.79 Outros escravos, aliados a pequenos mercadores, roubavam charque e couros, revendendo-os na cidade– empreitada que rendia certos ganhos 80 econômicos, mas também podia resultar em problemas com a polícia.
O fato é que cada charqueada possuía um número muito grande de escravos para que o senhor os tratasse de forma igual e tivesse um controle rígido sobre os mesmos. Nesta última tarefa ele devia ser auxiliado pelo capataz, mas não era fácil encontrar trabalhadores de confiança para tal função. Com o objetivo de acelerar a produção, impor disciplina aos escravos e não desapontar o charqueador, os capatazes viam-se diante de uma situação bastante delicada, pois a insatisfação dos cativos e a revolta de alguns deles tinham neles os alvos mais imediatos. E tendo em vista o aumento do número de mortes e ataques aos capatazes mencionados anteriormente é certo que estes trabalhadores sabiam da sua condição e do perigo que corriam quando se excediam nos castigos. Um caso muito interessante ocorrido em janeiro de 1873 pode servir como exemplo. Após o assassinato do capataz Villar, na charqueada de Joaquim J. de Assumpção, todos os escravos manifestaram que o seu administrador os tratava mal, o que motivou o crime. Para confirmar as informações dos cativos, as autoridades judiciais mandaram perguntar sobre a conduta de Villar nos demais lugares em que ele trabalhou. Em maio do mesmo ano, foram consultados três charqueadores que deram as seguintes respostas: “Em resposta à carta que V. Sª me dirigiu tenho a responder ao primeiro quesito que João Paredes Villar durante o tempo em que foi capataz de minha charqueada era ríspido com os escravos e que muitas vezes tive de contê-lo nos castigos que fazia. É esta a resposta que tenho a dar a V. S.ª podendo fazer dela o uso que quiser” (João Maria Chaves). “Em resposta à carta supra de V. S.ª tenho a dizer -lhe que é verdade que o falecido João Paredes Villar, há 18 anos, mais ou menos, esteve como capataz na minha 79 80
Processo-crime n. 1.135, Tribunal do Juri, Pelotas, 1879 (APERS). Processo-crime n. 255, Vara cível e crime, Pelotas, 1876 (APERS).
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charqueada, e que durante o tempo em que esteve como empregado mostrou sempre um gênio rigorosíssimo e até bárbaro para com os escravos, castigando-os as vezes tão imoderadamente que via-me na necessidade de intervir, afim de evitar uma desgraça. Pode V. S.ª fazer desta o que lhe convier”(José Bento de Campos). “Respondendo a carta de V. S.ª, quanto ao p rimeiro quesito declaro que esteve na administração da charqueada nos anos de 1861 a 1867, quanto ao segundo quesito declaro que João Paredes Villar é um homem que tinha a mania de dar bordoadas imoderadamente por simples gosto nos escravos, ao ponto de ter eu por muitas vezes de sujeitá-lo obrigando-o a reprimir seu gênio extraordinariamente ríspido; na verdade era nesse sentido um louco. É esta a resposta que tenho a dar-lhe fazend V. S.ª dele o uso que lhe convier (Major José Quirino Candiota).81
Os depoimentos convergiam com os relatos de testemunhas e escravos no processo. Se por um lado os senhores demonstravam um senso de proteção que os escravos podiam recorrer, por outro, mesmo achando Villar um louco, o Major Candiota o deixou trabalhando por 6 anos em sua charqueada. Como demonstrarei adiante, é certo que alguns charqueadores condenassem os exageros de seus capatazes, até porque não desejavam perder seus escravos por tamanho descontrole e deixar a senzala em desarmonia, mas, ao que parece, alguns não se opunham em tolerar feitores rígidos por algum tempo, desde que sua escravaria não lhes dessem problemas. Em suma, senhores, capatazes e escravos apresentavam uma relação triangular extremamente complexa. Conforme Eugene Genovese, estudioso da escravidão nas
plantations algodoeiras do sul dos Estados Unidos, os cativos habilmente tentavam jogar o senhor contra os capatazes e muitas vezes o conseguiam.82 Os capatazes, em resposta, deviam jurar vingança aos mesmos. Contudo, é importante que se diga que em outros processos criminais houve capatazes cuja conduta foi considerada boa pelos cativos.83 Neste sentido, se os charqueadores e os capatazes classificavam os escravos em desobedientes e obedientes, os 84 cativos também possuíam suas formas de classificar senhores e capatazes.
Neste contexto de aumento da criminalidade nas charqueadas, o ano de 1881 tornou-se um marco, pois foi a primeira e única vez em que um senhor foi interrogado como um dos 81
Processo-crime n. 965, Tri do Júri, Pelotas, 1873 (APERS). GENOVESE, Eugene D. bunal A terra prometida: o mundo que os escravos criaram.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 33-41. 83 Ver, por exemplo, Processo-crime n. 1.147, Tribunal do Júri, Pelotas, 1880 (APERS). 84 Conforme Genovese, “os escravos tiravam proveito desses conflitos para facilitar as coisas para si, e até mesmo alguns duros senhores de vez em quando intervinham em favor deles (…). Os senhores demitiam os administradores por diversos motivos. Despediam os que tratavam os escravos com excessiva leniência ou, com muito mais frequência, os que demonstravam em relação a eles dureza excessiva (…). Havia limites, que os escravos conheciam, pois eles mesmos os haviam ajudado a fixar, além dos quais normalmente um administrador não ousava ir (…). Alguns senhores acusavam seus administradores de se comportarem com demasiada familiaridade, mas essa acusação poderia significar muitas coisas, desde deitar-se com as negras até se preocupar demais com o bem-estar dos escravos” (GENOVESE, Eugene. Op. cit., p. 34-43). 82
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réus no processo. Os irmãos Costa Leite, proprietários da charqueada, não pertenciam a uma família tradicional no ramo dos negócios. Eram comerciantes portugueses que decidiram investir nas charqueadas por volta dos anos 1860 e que, talvez, não tivessem muito jeito e nem experiência no tratamento com os cativos, visto o excesso desmedido dos castigos que os levaram à Justiça pela morte de um escravo. O caso tomou as páginas da imprensa local e o charqueador, furioso, demitiu três dos seus empregados que o haviam denunciado à polícia.85 No calor do movimento abolicionista que vinha se fortalecendo, o episódio tomou proporções nacionais. Em 1881, o próprio Joaquim Nabuco manifestou-se sobre o caso. A Gazeta da
Tarde do Rio de Janeiro registrava em sua capa um discurso inteiro do deputado abolicionista onde se podia ler numtrecho: “No extremo sul as mesmas atrocidades dos charqueadores da fronteira, matando em surras os míseros escravos, como acaba recentemente de praticar um potentado em Pelotas”.86 Nos anos 1880, alguns motins de escravos agitaram Pelotas e na mesma época os charqueadores começaram a libertar seus cativos em grandes levas, lhes impondo contratos com cláusulas de trabalho – prática cada vez mais comum naquele contexto e que precisa ser melhor estudado por outros pesquisadores.87 Portanto, no início dos anos 1880, o fim da escravidão era uma realidade já esperada por todos, mas os charqueadores não tiveram tanta habilidade para conduzir o processo de transição do trabalho cativo para o trabalho livre. A partir dos relatos de Couty, e das fontes pesquisadas e analisadas neste e no capítulo anterior, é possível considerar que os charqueadores continuaram utilizando a mão de obra cativa nas suas fábricas por três motivos principais. O primeiro deles é que tal investimento era economicamente rentável. Por volta dos anos 1860 e 1870, um trabalhador assalariado exigia 360$ anuais por serviços de charqueada (e, mesmo que se argumente que os peões não trabalhassem os 12 meses do ano, foi este o valor que a firma Viúva Vianna & Filhos teve que pagar aos mesmos). O valor do trabalho de um escravo, na mesma época, era calculado em 30$ mensais, ou seja, não havia muita diferença com relação ao custo do trabalho de ambos. Entretanto, o charqueador gastava uma média de 50$ anuais por escravo com as despesas básicas e mais o valor investido em sua compra.88 O preço de 1:500$ foi a média dos cativos homens adultos 85
Processo-crime n. 1194, m. 33, Apelação crime, Pelotas, 1882, APERS. Gazeta da Tarde. 12.05.1881 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 87 Para uma análise das tensões entre charqueadores e escravos nos anos 1880 ver LONER, Beatriz. 1887: A Revolta que oficialmente não houve ou de como abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. In: História em Revista, Pelotas, v. 3, 1997. 88 A média de 50$ foi declarada pelos relatórios da Companhia mineradora inglesa estudada por Libby e coincidem com o que calculei para as charqueadas pelotenses, como será tratado no capítulo 9 (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 104). Estes cálculos podem ser refeitos no que diz respeito aos trabalhadores livres das charqueadas, 86
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inventariados no meado da década de 1860 (estou escolhendo o valor mais alto de todo o período). Calculando este investimento inicial de 1:500$ somados aos 250$ relativos a 5 anos de sustento, posso dizer que, com o trabalho do escravo, o senhor amortizava o investimento inicial e mais as despesas básicas em 5 anos (360$ x 5 anos = 1:800$). Contudo, o retorno do capital investido na compra do escravo podia ser maior ou menor de acordo com o preço pago pelo mesmo. Em 1866, por exemplo, no leilão dos escravos da massa falida da Vianna & Filhos, 16 dos 31 escravos arrematados foram comprados por charqueadores (14 eram homens). Eles pagaram preços muito variados, desde 610$ até 1:750$, com uma média de 1:230$.89 Portanto, o investimento dos charqueadores em escravos, entre os anos 1850 e 1870, pareceu-me economicamente racional, ainda mais nos casos em que os carneadores livres cobravam salários maiores do que o calculado anteriormente e os escravos eram comprados por preços menores. Se o escravo trabalhasse para o charqueador por cerca de 4 ou 5 anos – algo bastante plausível e que constituía-se numa média de tempo de serviço que os charqueadores costumavam exigir nas cartas de alforria com contratos de trabalho realizados nos anos 1880 – o investimento era viável, ainda mais nos casos em que se pagasse menos de 1:500$ por escravo. Contudo, se forem levados em conta outros dois fatores alegados pelos charqueadores, a utilização dos cativos torna-se ainda mais compreensível. Segundo Couty, o Sr. Costa lhe confidenciou que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre envolvia muitos fatores. O charqueador tinha plena consciência de que continuar utilizando escravos nas charqueadas não era uma boa solução se fossem pensar na conjuntura emancipacionista da época, mas ele dizia que os charqueadores viam-se obrigados a utilizá-los porque os trabalhadores livres eram muito inconstantes e que não havia colonos europeus disponíveis para substituir todos os cativos de uma charqueada.90 Contudo, entre os charqueadores não havia um consenso sobre o que ser feito. Couty alegava que o trabalho dos colonos alemães não era adequado e que os charqueadores não queriam trazer trabalhadores do Prata. Outros empresários achavam que a utilização dos escravos ainda estava de bom tamanho e apenas alguns poucos eram mais favoráveis em investir capitais para financiar a vinda de colonos da Europa. De fato, como os libertos e os pois não foi possível saber se o charqueador fornecia alimentos aos mesmos, o que aumentaria os gastos com o trabalho assalariado e justificaria mais ainda o uso dos cativos dentro da lógica dos rendimentos da empresa. 89 Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). 90 COUTY, Louis. Op. cit., p. 150-153.
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trabalhadores livres da região haviam sido descartados pelos charqueadores de um suposto processo de transição, a saída, para alguns, seria o incentivo à vinda de colonos europeus ou trabalhadores da região do Prata. Este, por exemplo, foi um modelo adotado tanto pelos cafeicultores paulistas quanto pelos saladeiristas platinos.91 Contudo, os charqueadores pelotenses pareciam não ter nenhum espírito associativo neste sentido. Em 1862, na Assembleia Legislativa, um charqueador discursou dizendo ser contra as associações porque isto traria a política para dentro dos negócios e ele não via com bons olhos estas disputas partidárias.92 Enquanto os saladeiristas platinos conseguiam entrar em consenso para resolver seus problemas93, os charqueadores não tiveram o mesmo sucesso. Além disso, não há notícias de que eles tenham enviado representantes para os Congressos Agrícolas ocorridos em Recife e no Rio de Janeiro (1878) e, nem mesmo em nível provincial, os mesmos pareceram organizar algo do tipo para discutir o problema da mão de obra.94 Dentro da perspectiva de uma elite escravista que via-se numa conjuntura desfavorável com relação à oferta de braços, creio que os charqueadores acertaram em implantar um sistema de incentivos monetários relacionados à produção escrava. Com isso, eles compensaram a perda de mão de obra após o fim do tráfico e criaram uma expectativa bastante real de liberdade para aqueles que ampliassem as suas tarefas diárias. Mas insistindo em tal medida sem promover os cativos para o assalariamento pleno e melhorar as condições de vida dos trabalhadores livres, tal medida era mais uma sobrevida para a charqueada 91
Ver, por exemplo, COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos.São Paulo: UNESP, 1999, p. 195-232; HALL, Michael; STOLCKE, Verena. A introdução do trabalho livre nas fazendas de café em São Paulo. In: Revista Brasileira de História, n. 6, set., 1983; EISENBERG, Peter. Op. cit., 1980. Conforme Couty, “no Rio da Prata, não somente são estrangeiros que instalaram a maioria dos saladeros, mas são também estrangeiros – franceses, italianos, espanhóis – que preparam a carne-seca; e as equipes de operários contam, sobretudo, com um grande número de bascos franceses e espanhóis. Foram também bascos que se tentou, há alguns anos, trazer a Pelotas; a tentativa teve resultados muito incompletos e há muito tempo que não mais permanece nas charqueadas um só dos operários contratados” (COUTY, Louis. Op. cit., p. 152). Barran e Nahum confirmam a enorme presença de operários europeus nos saladeiros (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 100). Uma visão mais a longo prazo compartilhada por todos os charqueadores talvez os tivessem condicionado a buscar outras alternativas. Mas isto jamais ocorreu. E aqui tendo a concordar com Bell. A maior presença de estrangeiros entre os saladeros não apenas motivava os mesmos a trazerem operários
Early europeus para o Prata mobilizavam mais capitais em charqueadas tais empreitadas (BELL, Stephen. industrialization in thecomo Southtambém Atlantic: political influences on the of Rio Grande do Sul before 1860. In: Journal of Historical Geography, 19, 4, 1993, p. 399-411. 92 Ver discursos dos dias 02.10.1862 e 04.11.1862 (PICCOLO, Helga. Op. cit.). 93 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. 94 Conforme o cálculo realizado por José Murilo de Carvalho, não havia representantes do Rio Grande do Sul no Congresso do Rio de Janeiro CARVALHO, José Murilo de. Introdução. In: Congresso agrícola do Rio de Janeiro (1878). Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, Edição fac-similar, 1988, p. v-ix. Agradeço à Melina Perussato que gentilmente me indicou e passou esta obra. Eisenberg também não menciona a presença de representantes rio-grandenses (EISENBERG, Peter. Op. cit., 1980). Para uma análise do comportamento dos deputados provinciais do Rio Grande do Sul a respeito da mão de obra escrava e do processo emancipacionista ver BAKOS, Margaret. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
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escravista do que uma solução para o setor. Contudo, até mesmo neste simples dispositivo havia empresários que não o aprovavam. Conforme Couty, alguns charqueadores achavam que os prêmios pagos eram uma despesa adicional e que na pressa de realizarem suas tarefas os escravos preparavam um produto final com qualidade inferior. Mas Couty diz que esta era a opinião de um “conhecido” charqueador. Acredito que talvez fosse um velho empresário pelotense e, neste sentido, os charqueadores mais novos, como o Sr. Costa, deviam ter que encarar o choque de gerações que marcou os anos 1870 e 1880 tendo que convencer os velhos escravistas de que uma mudança era necessária. Mesmo não tendo sido sua única causa, o fim da escravidão marcou um declínio irrecuperável para a indústria charqueadora pelotense. Portanto, não se pode dizer que não havia saída para o complexo charqueador escravista pelotense. No que diz respeito à mão de obra pode-se inclusive supor que os escravos estavam internalizando a relação direta entre produtividade e retribuição monetária. Neste sentido, é possível que eles estivessem se adaptando mais facilmente ao novo mundo capitalista que seria instalado nas charqueadas e frigoríficos no século XX do que os próprios charqueadores. Portanto, parafraseando Marcelo Matheus, “pode-se dizer que Fernando H. Cardoso acertou errando”.95 Como afirmou Cardoso, no final dos anos 1870, os 96
charqueadores pareciam não ter se libertado totalmente da sua visão de mundo senhorial. 97 Contudo, o problema não foi a utilização dos cativos em si, como defendeu o autor. Atualmente já está mais do que aceito que o trabalho escravo era economicamente rentável não somente em Pelotas como também nos cafezais do sudeste, nas minas de São João, nas fazendas de algodão dos Estados Unidos e em diversas outras sociedades, por exemplo. 98 O problema talvez tenha sido a descrença por parte dos charqueadores de que os libertos poderiam ser agentes da mencionada transição, a desvalorização das condições de vida dos trabalhadores livres assalariados, a incapacidade de associação para patrocinar a entrada de trabalhadores colonos e o pensamento a curto prazo com relação aos seus investimentos econômicos no período.
95
MATHEUS, Marcelo S. Op. cit. CARDOSO, Fernando H. Op. cit. 97 A postura de Cardoso deveu-se muito ao fato de ele ter aceito as ideias de Couty acriticamente sem pensar que o viajante francês esteve em Pelotas no início da década de 1880. Nesta época, a escravidão realmente já estava em crise em todo o território nacional, o que certamente influiu no seu relato e na comparação com os saladeros platinos. 98 GRAHAM, Richard. Escravidão e desenvolvimento econômico: Brasil e Sul dos Estados Unidos no século XIX. In: Estudos Econômicos, n. 13, Jan./Abr., 1983, p. 223-257. 96
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6.2 APRENDENDO A SER SENHOR: A ADMINISTRAÇÃO DOS ESCRAVOS NA PRIMEIRA GERAÇÃO DE CHARQUEADORES Para compreender melhor a forma como os charqueadores administravam a sua escravaria seria necessário ultrapassar este espaço intermediado pelo capataz, assim como os testemunhos dos processos crimes, nos quais as atitudes do charqueador aparecem somente através de depoimentos de terceiros ou dos “filtros” característicos das fontes policiais.99 Nas próximas páginas busco examinar alguns vestígios deste mosaico de formas de administração
escrava a partir dos próprios escritos de alguns charqueadores ou ex-charqueadores, além do cruzamento com outras fontes documentais. Começo pelo charqueador Antônio José Gonçalves Chaves. Natural da comarca de Chaves, em Portugal, estima-se que ele tenha nascido por volta de 1790 e chegado ao Brasil, em 1805, vindo a estabelecer-se no porto de Rio Grande, onde trabalhou inicialmente como caixeiro. Desembarcando num momento favorável para os negócios do charque e dos couros com o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, Chaves aparentou-se por meio do matrimônio e do compadrio com uma das principais famílias da terra, vindo a tornar-se um dos comerciantes-charqueadores mais respeitados da região. O enriquecimento levou-o à política. Em 1828, ele ocupou uma cadeira no conselho administrativo da Província, em 1832, foi 100 eleito vereador em Pelotas e, em 1835, tornou-se deputado provincial. Chaves era tido pelos seus contemporâneos como um sujeito bastante inventivo. O seu projeto mais ambicioso foi a construção do primeiro navio a vapor da região sul, chamado “Liberal”. A embarcação navegou por águas do atlântico no início da década de 1830. Suas peças foram trazidas dos Estados Unidos, país para qual se exportava couros secos e se importava trigo. Os couros salgados eram enviados principalmente para a Inglaterra e a França, onde constituíam matéria-prima fundamental para as indústrias daquele país. Este comércio foi tão rotineiro que, no caso de Chaves, as relações mercantis acabaram sendo extrapoladas para a vida familiar, pois uma das suas filhas casou-se com um comerciante inglês chamado Robert Barker e outro filho foi enviado para estudar Medicina, em Paris. Portanto, estas trocas mercantis também favoreciam a circulação de idéias, vindas tanto da Europa, quanto dos Estados Unidos e dos portos vizinhos do Prata. Quando Saint99
CHALHOUB, Sidney. Op. cit. Dados biográficos sobre Chaves podem ser obtidos em FRANCO, Sérgio da Costa. Livro e seu autor. In: CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 15-18. 100
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Hilaire esteve hospedado na casa de Chaves, notou tudo isto: “O Sr. Chaves é um homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma, “um dos homens mais esclarecidos da região”. 101 Todo este conhecimento de Chaves, assim como suas opiniões sobre política e economia, foi transposto para o papel entre os anos de 1817 e 1822, sendo impresso num único volume. Seu livro estava dividido em cinco memórias, sendo a terceira dedicada exclusivamente à escravidão. Nesta, Chaves buscou defender a extinção do comércio de escravos para o Brasil sob a luz das novas ideias da economia política. Para ele a escravidão era um mal tanto para a economia do Brasil, quanto para o desenvolvimento político do Estado.102 Naquela época, a condenação da escravidão e do tráfico no Brasil também foram defendidas por outros letrados luso-brasileiros e portugueses, como João Severiano Maciel da Costa (1821) e José Bonifácio de Andrada e Silva (1823). Mas ao contrário de Bonifácio e outros anti-escravistas, Chaves era proprietário de muitos escravos o que torna curiosa a sua posição. Talvez seja por isso que a solução proposta por ele foi uma transição lenta. Para não provocar uma crise econômica, Chaves defendeu que o tráfico fosse extinto em 18 meses, mas que só fossem considerados libertos, os filhos dos cativos nascidos a partir de então, quando completassem 25 anos. Chaves argumentou que a abolição total só seria possível quando a “nossa força física” exceder a “raça preta”.Uma de suas preocupações era que o Brasil 103 virasse outro São Domingos, algo manifesto por outras elites senhoriais da época.
A visão de mundo de Chaves e o tipo de negócios que ele possuía certamente influenciavam na forma como ele administrava a sua escravaria. Chaves faleceu em Montevidéu, no ano de 1837, para onde migrou com sua família e escravos após a eclosão da Guerra dos Farrapos, em 1835. Tendo aderido o lado rebelde, Chaves preferiu retirar-se do país para tentar seguir com seus negócios, desta vez no país vizinho. Estabelecido em Montevidéu, Chaves alugou 30 de seus escravos para um saladeirista uruguaio chamada Francisco Nieto. Terminado o contrato, os escravos não quiseram mais retornar para a fábrica de Chaves, preferindo servir ao senhor uruguaio. Pressionado pelos escravos, em outubro de 1837, Nieto comunicou ao alcaide ordinário de Montevidéu:
101
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul.Brasília: Senado Federal, 2002, p. 103. CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 53-77. CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 72-73). Para uma análise sobre a retórica do perigo do haitianismo entre as elites brasileiras da época ver MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Revolta Escrava e política da escravidão: Brasil e Cuba, 1791-1825. Revista de Índias, v. LXXI, n. 251, 2011m p. 20-52. 102 103
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Havendo contratado em meu Saladeiro, pelo tempo de cinco meses, trinta escravos do Sr. Chaves, estes infelizes adquiriram por mim um certo carinho, talvez consequência dos bons tratos que lhes dispensei e, ao devolvê-los a seu Amo ao final deste tempo, alguns deles me suplicaram que os comprasse; porém, crendo que eles não pudessem ser vendidos, me neguei às suas reiteradas e comoventes solicitações. Sem mais, Sr. Alcaide, se passou desde então; no entanto, não há uma única semana na qual alguns deles não venham à minha casa, movidos pelo mesmo intento; acrescente-se a isto, todavia, as crueldades de que eram vítimas em seus sofrimentos, não somente pelos castigos que devem infligir-lhes, como também pelo incessante trabalho; e contrariando a disposição de nossas leis, não têm eles um momento próprio, nem mesmo o Domingo – diziam alguns, acrescentando que à noite, os encerravam à chave, o que se há provado pelas circunstâncias de suas fugas; e, para dar a última mão a este quadro, asseguraram que seu Senhor os obriga a se converterem em verdugos de seus próprios irmãos, seus companheiros de desgraça, açoitando-se reciprocamente quando lhes cabia o castigo, até o enterro; pois que, nos últimos dias, deram quatrocentos açoites em um companheiro, deixando-o por morto.104
Nieto informava ainda que pediu às autoridades que encontrassem um meio legal de 105 obrigar Chaves a alforriar os escravos. Neste ínterim, Chaves veio a falecer num naufrágio.
O processo não teve desfecho e não se sabe do destino dos escravos, sendo possível que muitos permaneceram com os herdeiros de Chaves. Também não há como saber se Nieto estava exagerando nas denúncias. No entanto, a partir de outros indícios que tratarei a seguir, creio que Chaves era para eles um mau senhor, ao contrário de Nieto. A partir de um acontecimento ocorrido em 1821, na charqueada que Chaves possuía em Pelotas, é possível crer que não havia invenção em nada do que Nieto relatou. Em outubro de 1821, o escravo Chico campista, que trabalhava na charqueada de Chaves, foi condenado à prisão por ter assassinado com uma facada o capataz do estabelecimento. As justificativas do réu, confirmadas pelas testemunhas, eram de que o capataz lhe havia xingado, pois o charque estendido por ele estava tocando as pontas no chão. Chico argumentou que o varal era muito baixo e não tinha como evitar isto. O capataz lhe bateu com o chicote e Chico revidou com uma faca. O réu também mencionou os excessos do capataz e que ele teve que estender as mantas de charque sozinho, quando o certo seria trabalhar em dupla com outro escravo. Mas a principal queixa do réu foi de que tudo isto aconteceu num dia de domingo, ou seja, no dia de descanso, nas palavras do escravo, ou no
104
MONQUELAT, A. F. Charqueadores, Saladeristas y Esclavistas.Pelotas: UFPel, 2010, p. 32-33. MONQUELAT, A. F. Op. cit., p. 32-33. Não foi a única vez que um charqueador pelotense, emigrado m Montevidéu, deu problemas às autoridades uruguaias por conta de seus excessos no tratamento dos cativos. Em 1837, José P. de Sá Peixoto espancou um escravo de sua charqueada até a morte, fazendo com que cerca de 9 de seus cativos fossem denunciá-lo para a polícia local. (MONQUELAT, A. F. Op. cit., 38-39). 105
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dia “de guarda em honra de Deus pela Igreja e pela Lei” de acordo com o dvogado a de defesa.106 A partir deste caso é possível verificar algumas reclamações que lembram muito as dos escravos de Chaves no Uruguai. O excesso de trabalho imposto aos escravos, a execução de tarefas aos domingos, os castigos exagerados, a proibição das saídas noturnas, ou seja, uma rígida disciplina combinada com uma exploração da mão de obra acima do suportável pelos cativos. Isto fica evidente no juízo que os mesmos fizeram ao escolherem Nieto como um bom senhor, dentro dos critérios que os próprios escravos possuíam. A forma como Chaves governava sua escravaria extrapolou a senzala, tornando-se pública. De acordo com SaintHilaire, “ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem tremer diante dos seus patrões”.107 Se Saint-Hilaire exagerou em suas colocações, outras fontes permitem supor que este exagero não foi desmedido. Nas Memórias redigidas por Chaves, ele mesmo expõe a sua visão sobre os escravos, fornecendo pistas sobre a gestão escravista que ele realizava. Sobre a possibilidade de casamento e constituição de família entre os cativos, Chaves foi claro: “O senhor não quer que o escravo case porque o incomoda com isso e acontece também não ter fundos para comprar-lhe mulher, ao mesmo tempo que é inconciliável casá-lo fora de casa”. O casamento, para Chaves, seria uma forma de atingir a “procriação tardia”, mas a mesma não era economicamente vantajosa. Em sua opinião, os grandes fazendeiros conseguiam escravos robustos por preço baixo e, portanto, não investiam da procriação, pois não “vale (segundo a frase de muitos) a pena de cuidar de crianças”. Taxativo, Chaves conclui: “É certamente claríssimo que a procriação desta classe [escrava] é em si mesma inoperável” e “se chegam a consentir alguns casais, não prestam às ditas crianças os necessários socorros, pelo que morrem à míngua”.108 Sobre o tratamento das crianças, cabe aqui citar algo que chamou a atenção de Saint Hilaire quanto esteve na casa de Chaves: Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a prestar pequenos 106
Processo-crime, n. 174, m. 07, Ano 1824, Tribunal do Júri, Porto Alegre, APERS. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 119. CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 61). A ampla produção sobre a família escrava no Brasil demonstra que Chaves estava completamente equivocado no que diz respeito aos demais senhores de grandes plantéis. Ver, por exemplo, FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. “ Marcelino, filho de Inocência Crioula, neto de Joana Cabinda”: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872).Estudos Econômicos 17 (2), mai/ago, 1987; FLORENTINO, Manolo; GOÉS, José R. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de Janeiro (c.1790 – c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil. Sudeste, século XIX.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 107 108
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serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão. 109
Sobre isto, Chaves esclareceu: “Um menino é desde seus primeiros dias acostumado a horrorosos castigos feitos aos escravos (com que se encaminha à ferocidade) e palavras pouco edificantes das suas famílias para com seus domésticos”. 110 Portanto, as opiniões que Chaves possuía sobre os escravos convergiam com as afirmações de Saint Hilaire e as declarações do saladeirista Nieto. Ainda sobre o tratamento dos cativos, Chaves afirmou com ênfase não apenas a sua posição, mas, na opinião dele, a dos luso- brasileiros em geral: “nós tratamos mal os escravos”, pois eles são nossos “inimigos internos” ou “inimigos domésticos”. Para Chaves, a excessiva presença destes na população brasileira, algo que segundo ele chegava a ¾ do total, era uma grave ameaça. Chaves complementou seu raciocínio dizendo “que enquanto não melhorarmos em proporção de forças físicas, não podem nossas leis outorgarlhes as beneficências que sua desgraçada condição tão imperiosamente reclama”. Só quando a classe livre ultrapassar a classe escrava em número de habitantes “que as leis podem conceder todos os bens até concluir a sua emancipação”. Para comprovar suas ideias, ele cita o caso da Bahia que “na imprudência de consentir entre si tão extraordinário número de escravos” vem constituindo-se num grande foco de revoltas. Daí a necessidade de cessar com o tráfico, pois só assim, dizia Chaves, “escaparemos ao iminente risco da desastrosa e tremenda catástrofe dos franceses na Ilha de São Domingos”.111 O que fica mais claro nos escritos de Chaves é que ele constituía-se em mais um entre os muitos membros das elites escravistas no Brasil oitocentista atraídos pelas teses da economia política. Adaptando as mesmas às peculiaridades brasileiras, ele buscou aplicá-las em seus estabelecimentos combinando-as com uma rigorosa disciplina. Mas a tarefa era difícil. Na opinião de Chaves, o emprego de uma racionalidade econômica por meio do uso do trabalho escravo não era possível. Citando uma frase deAdam Smith, ele afirmava: “o escravo – diz um economista – consome o mais que pode e trabalha o menos que pode”. Por sua “indigência corporal e espiritual”, o escravo “jamais pode ter faculdades para dirigir bem o trabalho de que é encarregado”. Seguindo esta lógica, creio que Chaves também devesse considerar que os cativos não poderiam ter roças próprias, pois seriam incapazes de gerir as mesmas de forma autônoma. Ainda sobre esta questão, Chaves afirmou: “Nada pode cooperar 109 110 111
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 119-120. CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 66. CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 62-63; 66; 71.
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mais eficazmente para os trabalhos produtivos de uma nação do que a subdivisão do mesmo trabalho” e, portanto, o Brasil estava em condições desvantajosas, pois não poderia haver subdivisão do trabalho no uso de mão de obra escrava. Por tudo isso, afirmava Chaves: “mais vale um casal de gente livre do que mil negros cativos”.112 Em suas Memórias, o recurso narrativo de Chaves tendia, em muitos parágrafos, a converter as suas opiniões individuais para as opiniões de todos os luso-brasileiros, onde o “nós” torna-se o sujeito escritor da obra. Mesmo que suas opiniões fossem compartilhadas por outros senhores escravistas, algumas delas não eram. Muitos senhores deviam compartilhar do perigo do haitianismo, mas nem por isso desejavam a extinção total do tráfico e da escravidão. Outros, como José Bonifácio, eram anti-escravistas ferrenhos, mas não achavam que a melhor solução fosse direcionar o governo dos escravos com uma rigorosa disciplina, castigos excessivos e alta vigilância. Como notou Roberto Guedes, Bonifácio projetava, com a extinção do tráfico, que os escravos servissem aos seus senhores “com fidelidade e amor” e “de inimigos se tornariam amigos e clientes”. Para Bonifácio, “a situação mais deliciosa” seria ver um senhor viver sem medo entre seus escravos, como se pertencesse a uma mesma família.113 Analisando os escritos de Bonifácio, Guedes percebeu que para o autor “o casamento entre escravos e suas economias próprias– suas terrinhas, suas caças e suas pescas – eram de fundamental importância e transformariam escravos em amigos e clientes, evitando um São Domingo abaixo da linha do Equador”.114 Para evitar o perigoso São Domingo, Chaves e Bonifácio concordavam na extinção do tráfico. No entanto, o primeiro não desejava uma vivência em harmonia entre senhores e escravos, não via com bons olhos a família escrava e não permitia grandes espaços de autonomia ao cativeiro. Entre tratar bem dos cativos para aproveitar melhor sua força de trabalho ou explorá-los economicamente sem conter os exageros, Chaves aproximou-se mais do segundo comportamento, impondo ritmos de trabalho excessivos aos seus escravos, sob rigorosa disciplina e castigos em demasia. João Francisco Vieira Braga parece ter buscado seguir um outro modelo de administração dos cativos. Nascido em Piratini no ano de 1793. Filho de um rico comerciante, 112
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Op. cit., p. 60-61; 69. SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Representando à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. In: Obra política de José Bonifácio. Brasília: Senado Federal, 1973, p. 94-97. 114 GUEDES, Roberto. Autonomia escrava e (des) governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. In: FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX.Rio de Jan eiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 247. 113
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Vieira Braga cresceu entre estancieiros e desde cedo acostumou-se com o ambiente belicoso da fronteira. Na vida adulta dedicou-se ao comércio no porto de Rio Grande e também possuiu uma charqueada, tendo, nas décadas de 1810 e 1820, fechado vários contratos com o Estado, vendendo provisões para os exércitos estacionados na região, de onde alavancou a sua riqueza. Neste ínterim, Vieira Braga comprou a Estância da Música, em Piratini, quase fronteira com o Uruguai. No início da década de 1830, ele já não possuía mais a sua charqueada, mas, além dos seus negócios, gastava boa parte do seu tempo administrando as propriedades de sua mãe. Como permanecia residindo em Rio Grande, cerca de 150 km distante da propriedade que comprara, Vieira Braga remetia instruções ao seu capataz de como deveria administrar o estabelecimento. São estas instruções, escritas em 1832, que 115 utilizarei para analisar a forma como este senhor governava a sua escravaria.
Vieira Braga empregava seus escravos em praticamente todos os serviços da propriedade, tanto na pecuária e na agricultura, quanto no conserto e na construção de benfeitorias. Os escravos também eram emprestados ao afilhado e ao cunhado, além de serem encaminhados aos postos da estância para auxiliarem na guarda e no plantio de alimentos para sua subsistência. De acordo com Guilhermino César, para alimentar o posteiro 116 , sua família e o escravo também haveria quatro vacas. Neste sentido, Vieira Braga era bastante diligente. Uma das medidas mais importantes para ele era fazer plantar bastante milho, feijão, abóbora, hortaliça e algum trigo, “para que haja tudo de fartura, a fim de poupar -se as muitas carneações”.117 E sobre a alimentação dos cativos, ele ordenava: “a comida para os escravos deverá ser feita por um deles, para que cada um [não] se veja na necessidade de ir fazer, do que resultaria perda de serviço, e andarem mal comidos”. Para complementar a dieta e estimular os escravos a produzirem, ele permitia que os mesmos possuíssem roças próprias e criassem animais: “Os escravos podem plantar e criar galinhas tendo milho para as sustentar”.118
115 Instruções para o Sr. João Fernandes da Silva, capataz da Estância da Música, escritas por João Francisco Vieira Braga, 20.07.1832. In: CÉSAR, Guilhermino. O Conde de Piratini e a Estância da Música: Administração de um latifúndio rio-grandense em 1832.Porto Alegre/ Caxias do Sul: EST/IEL, 1978. Os dados biográficos sobre Vieira Braga foram reunidos na mesma publicação. 116 Os postos eram localizados nos limites da estância e estavam providos de casas de moradia, mangueiras e outras benfeitorias, onde o proprietário colocava um “posteiro” para lhe reparar o gado e as benfeitorias (CÉSAR, Guilhermino. Op. cit., p. 39). 117 Os escravos também eram empregados no plantio de outros ramos. Uma das ordens de Vieira Braga dizia: “Plantar-se também muitos pessegueiros, alamos, vimes e salsos, para que venha a haver lenha com fartura, e aumentar-se o arvoredo de Espinhos na quinta” ( Instruções ao capataz..., p. 40). 118 Instruções ao capataz..., p. 42-43.
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Observa-se, portanto, um cuidado com a alimentação dos escravos e o incentivo para que plantassem. O mesmo comportamento era tomado com relação às vestimentas dos cativos. Em uma das ordens, Vieira Braga escreveu: “A roupa que se der aos escravos será lançada em assento para saber-se, e deverá um deles lavar a roupa de todos para que andem limpos, assim como as chergas dos arreios serão lavadas todas as vezes que se possa para que não venham a maltratar os cavalos”. Em outra ordenação, o senhor detalhou melhor como deveriam ser distribuídas outras vestimentas, demonstrando uma diferenciação para com as crianças e roupas especiais para alguns escravos: “Dará uma muda de roupade algodão a cada um dos escravos que lá estão, advertindo que as três mudas dos mais pequenos que vão para os moleques Claudino, Evaristo e Moisés, e vão também 4 ponches para serem dados aos negros Domingos Pernambuco, José Bolieiro, Manoel Aguiar e Matheus campeiro, sendo o deste forrado de baeta”.119 Observa-se, portanto, que entre os escravos que receberam ponches está um boleeiro, que devia ter mais contato pessoal com Vieira Braga, e que Matheus recebia um ponche reforçado de baeta, certamente para protegê-lo mais do frio e da chuva. De todos os campeiros ele foi o único que recebeu tal distinção. Analisando o mesmo documento, Guilhermino César se perguntou: “Não seria uma prova de apreço dada ao melhor tropeiro da estância?”. Creio que sim. Outra preocupação de Vieira Braga dizia respeito à saúde física e espiritual dos cativos. Sobre o primeiro, ele recomendou ao capataz “prestar todo o bom tratamento aos escravos e muito especialmente nas ocasiões em que estejam doentes”. Para isto, disse que o seu afilhado iria entregá-lo um papel de como se fazer alguns remédios. Com relação ao segundo, Vieira Braga mandou que ele fizesse “os negros rezarem o terço todas as noites e ensinar a doutrina aos que a não souberem”. Por fim, ele concedia certas “regalias” aos cativos, mas sempre pensando em economizar as rendas da estância: “Dar mensalmente aos escravos três palmos de fumo em quanto o houver no rolo que deixei, pois não se deve comprar pelo alto preço que se vende. Em dias de muito frio e chuva também se lhes dará um ponche de água quente com aguardente e açúcar”.120 As Instruções constituem-se num documento com características diferentes, por exemplo, dos conhecidos Manuais escravistas. Sua intenção não era “educar” os senhores a realizarem uma boa gestão administrativa do plantel. Nesse sentido, as Instruções revelam mais uma preocupação da prática cotidiana do que com uma teoria do governo dos escravos, 119 120
Instruções ao capataz..., p. 46. Instruções ao capataz..., p. 43-46.
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por exemplo.121 A análise de outros três documentos envolvendo a escravaria de Vieira Braga pode ajudar a compreender melhor a forma como ele governava os seus cativos. O primeiro caso data de 1855, quando o seu escravo de nome José foi levado ao Tribunal do Júri após ser acusado de matar o seu companheiro de cativeiro, João Raimundo. No interrogatório feito pelo Juiz, José esclareceu algumas questões sobre o acontecido: Juiz: Como te chamas? Réu: José de quem? J: Escravo R: De João Francisco Vieira Braga J: Que idade tens? R: Não estou certo (parecia ter mais de setenta anos) J: Qual teu estado e profissão? R: Solteiro e carpinteiro J: Donde nascestes? R: Na Ilha de San Thomé J: Quem foi que matou o teu parceiro João Raimundo? R: Não foi ninguém. Ele tinha uma casa alugada em que costumava trabalhar. Eu estava com ele, pois era meu companheiro no mesmo cativeiro a cinqüenta e um anos e era meu amigo. Estava muito bêbado e para evitar que ele fosse castigado peguei-lhe pelo braço para o levar para casa. Não podendo ter-se em pé caiu para trás e eu não podendo com ele deixei-o. No dia seguinte o fui encontrar já morto. Nunca puxei faca contra ninguém, nem fugi. Tenho vivido cinqüenta e um anos com o mesmo senhor, de certo não seria eu que mataria o meu companheiro e amigo (...).122
José foi absolvido. Além de outro escravo testemunha no processo, a vítima e o réu também eram carpinteiros. Destaco o fato de João Raimundo possuir certa autonomia para alugar uma casa, onde devia morar e guardar suas ferramentas. É provável que a longa amizade dos cativos carpinteiros favorecesse o empréstimo de utensílios necessários ao ofício e o uso comum de ferramentas, além do trabalho em parceria. Mas apesar de João Raimundo parecer ter o hábito de sair à noite, esta liberdade tinha limites, pois José demonstrou preocupação com o fato do amigo ser castigado caso o pegassem embriagado. Mesmo assim, nas respostas de José ao longo do processo não fica evidente nenhum tipo de rancor com relação ao seu senhor. Os dois documentos analisados agora dizem respeito à presença de famílias escravas e do incentivo dado por Vieira Braga a estas uniões entre seus cativos. No inventário de sua mãe, e no qual ele era o testamenteiro e inventariante, fica nítida a gestão que ele exercia
121
Para uma análise destes manuais ver MARQUESE, Rafael de B. Feitores do corpo, missionários da mente: Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas (1660-1860). São Paulo: Cia. das Letras, 2004. 122 Processo-crime, N. 459, Ano 1855, Fundo 005, Tribunal do Júri, Pelotas – APERS.
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sobre os negócios da família. 123 Na avaliação do patrimônio, ocorrido em 1847, foram arrolados 136 escravos – o terceiro maior plantel inventariado em Pelotas entre 1800 e 1850. O que deve ser destacado de início é o grande equilíbrio entre homens e mulheres se comparado aos plantéis dos grandes escravistas estudados no capítulo anterior. Os 19 inventários (14 de charqueadores e 5 de estancieiros) que detinham plantéis com 50 cativos ou mais somavam 1.612 escravos, sendo 1.234 homens. Estes números evidenciam uma razão de sexo de 327 homens para cada 100 mulheres. Este índice elevado de Pelotas deve-se ao caráter fabril das charqueadas, onde os proprietários adquiriam cativos quase que exclusivamente para os trabalhos nos galpões de charquear, como já foi dito. Ao se analisar somente os plantéis dos 14 charqueadores do grupo mencionado, a razão de sexo aumenta de 327 para 403.124 O plantel administrado por Vieira Braga, onde figuravam 70 homens e 66 mulheres, possuía uma razão de sexo de 106, revelando um grande equilíbrio comparável a algumas
plantations escravistas após o fim do tráfico atlântico. O inventário felizmente apresenta uma minúcia na descrição da filiação de todos os cativos. Analisando o rol é possível perceber que 64 dos 136 escravos eram filhos de cativas do mesmo plantel, ou seja, 47% dos mesmos. Trata-se de um alto índice de reprodução natural no interior da própria escravaria que, ao longo do tempo, possibilitou Vieira Braga dobrar o seu plantel somente com “as crias da casa”. A relação apresenta 28 mães diferentes. Florinda Rosa foi a que deu mais filhos cativos ao senhor, somando 7 rebentos. Rosa Catarina teve 6, Rosa Antônia e Simpliciana tiveram 5 filhos cada uma, Ana, Rosa, Eva e Rosa Camundá tiveram 3 filhos cada, Eleutéria, Felizarda, Justina, Lucrecia e Mandú tiveram 2 filhos cada, e outras 14 cativas tiveram somente 1 filho. Conforme Manolo Florentino, os inventários não são as melhores fontes para localizar as famílias escravas125 , mas cruzando o número de homens adultos com as mulheres adultas verifica-se um nítido equilíbrio entre os sexos. Entre os homens, tem-se 36 adultos com 18 anos ou mais (sendo 23 africanos) e com uma média de idade de 41,5 anos. Entre as mulheres, verifica-se 34 adultas com 16 anos ou mais (sendo 14 africanas) e uma média de idade de 33,9 anos. Com 15 anos ou menos, verificou-se 35 escravos (média de 7,4 anos), sendo que 123
Inventário de Maria Angélica Barbosa, n. 286, m. 20, Ano 1847, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria – APERS. Trabalhando com as dezenas de cartas trocadas entre Vieira Braga e seus familiares, Karl Monsma considerou o mesmo (MONSMA, Karl. Repensando a escolha racional e a teoria da agência: fazendeiros de gado e capatazes no século XIX. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 43, 2000, p. 83-113). 124 Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS). 125 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 55.
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somente 2 meninos de 12 anos não eram filhos de escravas do plantel. A partir destes números, acredito que existiam muitos casais nas senzalas administradas por Vieira Braga e que, além da vontade dos cativos em formarem estas famílias, também devia haver um incentivo e empenho por parte do senhor para tal fim, podendo o mesmo comprar algumas escravas visando o equilíbrio de sexo na senzala.126 Um dos incentivos à formação de famílias e à reprodução natural no interior do plantel podia ser a concessão da liberdade às cativas que oferecessem mais rebentos ao seu senhor. Neste sentido, examinando as cartas de alforria passadas por Vieira Braga foi possível perceber que a escrava Florinda Rosa foi liberta após pagar 600$000 ao seu senhor, sendo que 250$000 foram pagos pela mãe da cativa, a preta forra Rosa Camundá (ex-escrava da família Vieira Braga) e o restante pelos irmãos de Vieira Braga. 127 Destaco esta carta, pois Florinda Rosa foi a campeã em fornecer rebentos para a família, tendo tido 7 filhos como já mencionei. Mas a preta forra Rosa Camundá não pararia por aí. Cerca de seis anos depois pagou 1:100$000 a Vieira Braga pela liberdade de seu filho Manoel José. O senhor aceitou a oferta, “com a condição, porém, de viver sempre em companhia de sua mãe, para fazer -lhe todo o serviço que ela precise, tratando-a com toda a caridade que requer a sua avançada idade, e se 128
assim o não fizer ficará de nenhum efeito esta carta”. Rosa havia dado 3 filhos ao plantel do senhor e, por intermédio da mencionada Florinda, outros 7 netos. Florinda foi a única escrava libertada em cartório por Vieira Braga no período, o que reforça a ideia de recompensa pelos escravos dados ao seu senhor. Além do mais, é possível que Rosa Camundá e Florinda, assim como o campeiro Matheus, fossem especiais aos olhos da família Vieira Braga, o que lhe fez aceitar a oferta da preta forra. Com relação a esta hierarquia no interior da senzala, ainda é possível fazer outra referência a partir do inventário. Dos 136 escravos elencados, somente um cativo foi libertado no testamento passado pela falecida mãe de Vieira Braga. Era a escrava Clara, de cor parda e de 35 anos. Das 66 mulheres, Clara foi uma das duas únicas cativas descritas como de “serviço doméstico”. Portanto, Clara havia recebido a liberdade de suaenhora s provavelmente por serviços prestados ao longo de sua vida e por estar presente em sua casa, muito próxima, cuidando-a. O mais interessante é que a outra escrava de “serviço doméstico” era a filha de 126
Para uma análise da família escrava em Pelotas e, em particular, deste mesmo plantel ver PINTO, Natália Garcia. A benção compadre: experiências de parentesco, escravidão e liberdade em Pelotas (1830-1850). Dissertação de Mestrado. Unisinos, 2012. 127 Livro de Registros Diversos, 2º Tabelionato, Pelotas, 1852, Livro 4, p. 12v. 128 Livro de Registros Diversos, 2º Tabelionato, Pelotas, 1852, Livro 5, p. 32v.
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Clara, aliás, a única filha da cativa, chamada Arminda, parda, de 17 anos. Penso que isto demonstre que o serviço doméstico realizado por Clara sustentava-se numa relação de plena confiança da senhora para com a cativa, confiança e lealdade que estava sendo passada para a filha da cativa por meio de sua própria mãe. Com tudo o que foi descrito sobre a forma como Vieira Braga governava seus cativos e os de sua mãe é possível verificar uma administração bastante diversa da analisada no caso de Chaves. Enquanto este charqueador não oferecia um bom tratamento aos seus escravos adultos e crianças, exagerava nos castigos, cerceava sua autonomia, inviabilizando a formação de famílias, Vieira Braga permitia aos seus escravos possuírem roças próprias e criarem animais, dedicava grande importância à alimentação, às vestimentas e ao cuidado da saúde dos escravos. Além disso, ele também concedeu alguma autonomia aos carpinteiros, encorajou a formação de famílias e estimulou a hierarquia entre os cativos, premiando-os com distinções no uso de roupas, com cartas de alforrias e com ocupações distintas, como a de escrava doméstica. Uma outra notável medida foi encaminhar os cativos na prática da religião católica, buscando consolidar a harmonia na senzala. Além de estar cumprindo as suas obrigações para com a legislação eclesiástica.129 Um outro bom exemplo envolve o charqueador José da Costa Santos. Nascido no Rio de Janeiro, ele estabeleceu-se com sua charqueada em Pelotas, na Fazenda São Lourenço, localizada mais ao norte do município. Numa carta escrita por ele ao amigo Vieira Braga (o mesmo proprietário analisado acima), Santos relatou um episódio ocorrido em sua charqueada. O seu capataz, crendo que um dos escravos havia roubado três bexigas de graxa do estabelecimento, o espancou tão violentamente que o mesmo veio a morrer dias depois. Indignado, Costa Santos escreveu: “foi forte crueldade dar em um escravo velho por valor de 3 bexigas de graxa que não eram suas e sim minhas e depois não mandar tratar deste infeliz que tanto trabalhou para esta casa (…) e tendo morrido 12 escravos nesta casa não tenho sentido como este pelo triste modo com que fez este maldito dar fim a seus dias”. 130 A partir
129
Conforme as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, “os pais, mestres, amos e senhores” tinham o dever de “ensinar ou fazer ensinar a doutrina cristã aos filhos, discípulos, criados e escravos”. Ver: VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.Brasília: Senado Federal, 2007, Livro 1, Título 2 (II), pp. 2-3. Agradeço a Marcelo Matheus pela sugestão desta nota. Com relação a este aspecto ver também GENOVESE, Eugene. Op. cit.; HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado em História, UFRJ, 2006. 130 José da Costa Santos a João F. Vieira Braga, 05.08.1822, BRG, Lata 25 apud MONSMA, Karl. Escravidão nas estâncias do Rio Grande do Sul: estratégias de dominação e de resistência. In: Anais do V Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 4.
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da leitura do seu testamento, escrito 5 anos depois, fica evidente que o charqueador estava sendo sincero: Determino que se digam duas capelas de missas pela alma de meu Pai, duas capelas pelas de meus irmãos e irmãs, duas capelas pelas do Purgatório, uma capela pelas dos meus escravos falecidos, uma capela pelas de todos os cativos, uma por tenção de minha mãe e uma por tenção de meus escravos vivos (…) Deixo libertos desde o dia do meu falecimento os meus escravos Domingos Velho, João Romão, Joaquim das Ovelhas, Francisco Monjolo e suaomulher, casado com a preta aJoana, Antônio Velho, marinheiro. Desde dia emAntônio que ficar desempenhada minhae fazenda do que atualmente deve, ficarão forros os escravos seguintes: o pardo Isidoro Santana, Anastácio e sua mulher, Maria Caffe, Antônio Campeiro, o pardo Agostinho: além destes ficarão forros mais dez escravos dos mais velhos da fazenda.131
Portanto, no juízo dos escravos, Costa Santos devia ser um senhor muito melhor do que Chaves. A preocupação dele com a vida religiosa dos cativos, algo que Vieira Braga também compartilhava, merece ser destacada. No capítulo 3, mencionei que o mesmo Costa Santos requisitou às autoridades religiosas do Rio o direito de possuir um oratório privado em sua propriedade. O desejo do charqueador era de que pudessem ouvir as missas, além de sua esposa e suas filhas, “os seus parentes, consanguíneos ou afins, familiares e criados, que juntamente com eles habitarem nas mesmas casas, como também seus hóspedes nobres, com declaração que os ditos parentes, familiares e hóspedes nobres, somente estando presentes à celebração do Santo Sacrifício da Missa os mencionados impetrantes”.132 Certamente, o oratório serviria para casar seus escravos e batizar os seus filhos. Estudando os plantéis de escravos em Pelotas, entre 1830 e 1850, Natália Pinto verificou a importância dos sacramentos católicos na vida dos escravos e senhores. Dentre as contribuições de sua pesquisa, menciono o papel do batismo e do compadrio entre os cativos dos charqueadores, cuja autora analisou de forma mais aprofundada. Selecionando o plantel de dois grandes charqueadores do período, os comendadores João Simões Lopes e Boaventura Rodrigues Barcellos, Pinto percebeu como alguns escravos constituíam-se em padrinhos e madrinhas de 133
prestígio, concentrando um grande número de afilhados. O crioulo José, por exemplo, batizou 12 africanos adultos e uma criança crioula, filha legítima de um casal de africanos. Conforme Pinto, ele era o escravo mais antigo da senzala de Simões Lopes. “Quiçá ele fosse elemento importante no processo de socialização dos 131
Inventário de José da Costa Santos, n. 113, m. 9, Pelotas, 1º cartório de órfãos e ausentes, 1827 (APERS). Requerimento de oratório privado de José da Costa Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394. Cúria do Rio de Janeiro. 133 PINTO, Natália. Op. cit. 132
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escravos adultos recém-chegados na propriedade, ensinando-lhes os ditames e as normas do rotineiro trabalho nas charqueadas”. Além disso, ele deveria ser um “importante conector entre o mundo dos escravos e o mundo senhorial, podendo apaziguar os possíveis conflitos e tensões existentes dentro da comunidade escrava”, negociando “por direitos ou costumes que, possivelmente trouxessem mais ‘sossego’ ao mundo senzalesco”.134 Segundo a autora, “os escravos também procuravam estreitar laços de compadrio com pessoas livres, e algumas dessas eram familiares de seus proprietários”. No caso de Boaventura Barcellos, dois de seus escravos foram batizados por um casal de filhos seus. Neste sentido: A decisão de tornar-se um compadre ou comadre de um familiar do senhor, livre, escravo ou forro, poderia ser barganhada em um campo de sucesso ou de fracassos. Tudo dependia da margem negociada entre as forças envolvidas nesse jogo. Ou melhor, ressaltamos que não deveria ser apenas uma escolha dos escravos o apadrinhamento com o senhor. Deveria ser uma distinção feita pelo senhor e, ao mesmo tempo, um indicativo do reconhecimento que o senhor tinha da importância daqueles cativos no pleno funcionamento da senzala. 135
De acordo com Pinto, “os escravos ao escolherem um círculo de relações se hierarquizavam”, pois “os laços que ligavam alguns escravos, excluíam outros, marcando ainda mais uma hierarquia entre eles”.Portanto, os escravos que concentravam um grande número de afilhados entre os cativos africanos “poderiam ter sido um elo no processo de socialização na comunidade escrava via o ritual do batismo” ao mesmo tempo em que os cativos que tornavam-se compadres de homens livres, forros e parentes próximos do senhor podiam servir como mediadores de conflitos entre a casa senhorial e a senzala.136 Observando as práticas de Simões Lopes e Boaventura Barcellos com relação ao batismo de seus escravos, observa-se um outro mecanismo que, embora não se resumisse a isto, contribuía com o processo de administração dos seus cativos. Se houvesse a possibilidade de vislumbrar a forma como outros charqueadores governavam a sua numerosa escravaria nas charqueadas certamente apareceriam outras características a serem destacadas, mas por mais que eu tenha pesquisado não foi possível identificar mais vestígios. O fato é que elas variavam de senhor para senhor. Contudo, em praticamente todas elas é provável que se 134
Neste sentido, Pinto também analisou o papel da preta mina Delfina, madrinha-rainha no interior do plantel do charqueador Boaventura Barcellos. “Pensando, principalmente no caso do apadrinhamento feito pela africana Delfina, com seus parceiros étnicos, talvez indique que ela fosse uma conexão ou uma ponte de ligação, capaz de unir em torno de si os africanos recém-chegados, organizando as relações e a convivência social dentro da senzala, talvez reproduzindo padrões culturais em comum com o novo grupo de parceiros inseridos na comunidade escrava, e evitando dissabores e rusgas no mundo da se nzala do comendador Boaventura” (PINTO, 2012, p. 127-128). 135 PINTO, Natália. Op. cit., p. 131-134. 136 PINTO, Natália. Op. cit., p. 131-134.
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encontrasse certa dose de paternalismo combinada com uma rigorosa disciplina, sendo que a dose de um ou de outro era construída na relação dos charqueadores com os escravos. Conforme Carlos Engemann “tanto a comunidade modelava o senhor, quanto o senhor definia 137 a comunidade, ainda que o fizessem em graus e intensidades diferentes”.
Estudando as teorias de gestão escravista entre os séculos XVII e XIX, Rafael Marquese dedicou um espaço importante ao Manual do agricultor brasileiro, cuja primeira edição, escrita por Carlos Taunay, datava de 1839. 138 Neste sentido, é possível verificar nos escritos de Taunay elementos característicos tanto da forma como Chaves administrava a sua escravaria, quanto da forma como Costa Santos e Vieira Braga o faziam, e que deviam ser comuns a outros senhores de grandes plantéis espalhados pelo Brasil. As semelhanças com Chaves se iniciam na não aceitação do que RafaelMarquese chamou de “tese do bem positivo”, ou seja, a ideia de que a instituição escravista era essencialmente benéfica para os africanos. Para Taunay, o cativeiro representava uma “violação do direito natural”. Mas mesmo assim, ele defendia a escravidão, devido a sua importância econômica para o Império. Embora Chaves não defendesse a escravidão de forma tão nítida, ambos eram contrários a uma abolição abrupta, pois a mesma poderia acarretar num novo São Domingos. Outro ponto de contato entre ambos era a consideração da inferioridade racial do negro. Este era como139um adolescente branco, incapaz de atingir uma maturidade necessária para seu auto-governo. Concordando com Adam Smith, como Chaves já o fizera, Taunay considerava que os negros eram inimigos de toda ocupação regular e trabalho. Para que os objetivos do senhor fossem alcançados era necessário sujeitar os escravos a uma rigorosa disciplina e mostrar-lhes o castigo inevitável. “Coação e medo, portanto, conformavam o eixo da administração dos escravos no entender de Taunay, pois só assim seria possível forcejar os cativos a cumprirem as determinações laborais do senhor”. Daí Taunay defender uma “vigilância de todos os momentos”, uma “disciplina semelhante à militar” e “feitores que não o percam de vista um só minuto”. O meio de se obter a coação e se interiorizar o medo seria a aplicação dos castigos à vista de toda a escravatura, com a finalidade de ensinar e intimidar os demais negros. Mas fazendo uma ressalva que se distanciava de Chaves, ele defendia que o excesso
137
ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 149. MARQUESE, Rafael. Op. cit. MARQUESE, Rafael. Paternalismo e governo dos escravos nas sociedades escravistas oitocentistas: Brasil, Cuba e Estados Unidos. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2003, p. 123-124. 138 139
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de castigo e sua repetição embrutecia o cativo ao invés de corrigi-lo. Portanto, o senhor 140 deveria ser justo e os castigos deveriam ser moderados e variados de acordo com a culpa.
Conforme Marquese, Taunay reconhecia que o nível de tensão na propriedade se elevaria a patamares alarmantes caso o senhor fundamentasse seu governo somente na coação e no medo. Como o cativo era visto como umhomem-criança, daí a necessidade de conjugar a disciplina com o paternalismo e a orientação católica. E é neste ponto que Taunay começa a se afastar de Chaves e se aproximar de Vieira Braga. Segundo Taunay, um dos principais fatores para evitar a tensão nas senzalas era “inculcar nos negros a doutrina do catolicismo romano”. Esta era a melhor forma para conservar a obediência ao senhor, boa ordem e subordinação. O objetivo da direção religiosa e moral dos escravos era deixá-los parecidos com as propriedades inacianas do século XVIII. 141 Demonstrei anteriormente que Vieira Braga também insistia em incutir o catolicismo entre os escravos, ao contrário de Chaves, que não guardava nem os domingos aos cativos. Outra recomendação de Taunay era premiar escravos de boa conduta e os diligentes em suas tarefas. O deslocamento dos mesmos para a função de feitores inferiores seria uma das medidas possíveis. A promoção seria evidenciada por insígnias de pequena monta, tais como vestimentas ou bonés mais brilhantes. Taunay também era partidário dos métodos de administração escravista empregados pelos jesuítas. Daí a importância que ele dava às famílias escravas. A proteção às grávidas, o cuidado com as crianças, a não obrigatoriedade do casamento religioso foram alguns destes traços.142 Ora, Vieira Braga também investiu em distinções no interior da escravaria, alimentando a hierarquia entre os cativos, e deu importância notável às famílias escravas. Em suma, Taunay delineou um conjunto de regras básicas que cuidavam da alimentação, das vestimentas, da habitação, do trabalho diário, dos castigos, da direção religiosa e moral e das relações entre negros e negras. Ele também advogou a elevação da quantidade e qualidade de vestimentas e alimentos fornecidos aos cativos e a melhoria do estado sanitário da moradia escrava. Para Taunay, saber dosar o paternalismo com a disciplina era a chave da gestão escravista. A obrigação do catolicismo dominical seria compensada com a liberdade para a realização dos seus folguedos africanos após o jantar. Nesta ocasião, o senhor deveria atribuir a cachaça entre os cativos, pois a comunicação dos escravos com as tavernas de beira de 140 141 142
MARQUESE, Rafael. Op. cit., 2003, p. 124-125. Idem, p. 125. Idem, p. 125-126.
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estrada deveria ser rigorosamente proibida, sob pena de severos castigos. Como demonstrei anteriormente, Vieira Braga também distribuía fumo e ponche com aguardente aos seus escravos e os cativos que andassem embriagados à noite também deveriam ser punidos. Outro ponto de convergência entre o Manual de Taunay e a administração de Vieira Braga diz respeito à concessão de alforrias para as escravas que contribuíssem com o aumento do plantel de seu senhor. Taunay aconselhava que as cativas que dessem ao senhor 6 filhos ou mais deveriam ser libertadas tanto por terem fornecido um grande número de rebentos ao seu senhor, como para servirem de exemplo às outras companheiras de cativeiro. Além disso, a presença do castigo aos escravos fica evidente no processo que envolveu os cativos carpinteiros, pois havia a possibilidade de José ser castigado por estar embriagado. Além do mais, dos 136 escravos arrolados no inventário de sua mãe, pelo menos 7 estavam fugidos, sendo que dois escaparam para o Uruguai e outros 2 para Pernambuco. Portanto, o cuidado que ele demonstrou ter com seus escravos tinha como fim o seu melhor aproveitamento no trabalho. Neste sentido, ele demonstrou ser muito diligente com as finanças da estância e não poupar esforços para defender sua propriedade. Nas instruções ao seu capataz, ele ordenou não permitir em hipótese alguma que alguém se arranchasse nos campos dele ou tentasse medir suas terras sem seu consentimento. Com relações aos animais, se alguém lhe roubasse algum gado era para chamar o filho do Sr. Garcez para “fazer -se tudo o mais que for necessário contra o ladrão”. 143 Portanto, os escritos de Taunay convergiam bastante com as práticas de Vieira Braga, mesmo porque ele também imprimia certa disciplina aos seus cativos, como as entrelinhas das fontes que examinei indicam. Neste sentido, o “Manual do Agricultor”, redigido no final da década de 1830,reproduzia práticas de administração escrava mais antigas e que deviam ser compartilhadas por grandes senhores em diferentes partes do Brasil (inclusive os cafeicultores que Taunay conheceu). E acredito que foi a partir da observação destas práticas, muitas delas certamente costumeiras e realizadas desde o período colonial, que Taunay, agregando novas ideias características do século XIX, escreveu o seu manual. Para finalizar o capítulo, gostaria de colocar uma outra questão. Havia uma forma mais correta de se administrar uma grande escravaria? Seguindo padrões distintos de administração dos escravos, tanto Vieira Braga, quanto Chaves e Costa Santos atingiram o topo da elite econômica em Pelotas, revelando que era possível se obter sucesso tratando seus
143
Instruções ao capataz..., p. 42-43.
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escravos de formas distintas.144 No entanto, como explicar tamanha diferença entre os dois modelos de administração dos escravos? Para além das individualidades dos seus senhores, creio ser possível buscar elementos de outra ordem. O primeiro a ser apontado era a localidade das propriedades de Chaves, Costa Santos e Vieira Braga. Enquanto a estância deste estava localizada há muitos quilômetros do litoral, afastada de outras escravarias, e a charqueada de Costa Santos também ficava numa grande estância no norte do município de Pelotas, a charqueada de Chaves estava cravada no núcleo fabril do município, cercada por outras fábricas que concentravam centenas de escravos. 145 Uma outra questão talvez mais importante era a atividade econômica em que os escravos estavam empregados. A historiografia rio-grandense é enfática em afirmar que o trabalho nas charqueadas era mais duro do que nas estâncias de criação. Mesmo que se possa relativizar tal afirmação, creio que o tipo de atividade ajudasse a condicionar a forma do governo dos escravos, mas não acredito numa determinação dada a priori. Talvez alguns escravos fossem mais bem tratados na charqueada de José da Costa Santos do que na estância de algum grande criador, por exemplo. Portanto, outros fatores também influíam sobre este fenômeno. De acordo com Saint-Hilaire: “Já tenho declarado que nesta capitania os negros são tratados com brandura e que os brancos com eles se familiarizam mais do que noutros lugares. Isto é verdadeiro para os escravos das estâncias, que são poucos, mas não o é para os das charqueadas que, sendo em grande número e cheios de vícios trazidos da capital, devem ser tratados com mais rigor”. 146 Talvez Saint-Hilaire se referisse aos africanos ou aos escravos ladinos chegados de outras províncias, sobretudo da “capital” (Rio de Janeiro). 147 Conforme Libby, as Companhias mineradoras inglesas também não gostavam de comprar os escravos vindos do Rio, preferindo os de Minas Gerais.148 Na avaliação de Saint Hilaire, o tamanho do plantel e a origem dos escravos influíam na forma que os mesmos eram tratados, algo que tendo a concordar. Como demonstraram algumas pesquisas, na paisagem agrária do Brasil, os grandes plantéis acima de 50 escravos, 149
compunham a minoria das propriedades. Além do mais, o Brasil era muito mais que uma 144
Todos eles pertenciam à elite da elite na primeira geração de charqueadores analisada no capítulo 3. E isto ajuda a compreender o temor de alguns senhores desta lcalidade com relação a uma revolta escrava no início dos anos 1830 (ver capítulo 3). 146 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 114. 147 E de fato, pela alta razão de sexo e o elevado índice de africanidade, as charqueadas deveriam estar mais conectadas ao tráfico atlântico do que as estâncias da fronteira. 148 LIBBY, Douglas. Op. cit. 149 FRAGOSO, João Luis. O Império escravista e a República dos plantadores: a economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda (org.).História Geral 145
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plantation, reunindo tipos de produções agropecuárias bastante diversificadas. 150 Creio que tudo isto influía nos tipos de políticas de dominação senhorial. Somam-se a isto os escravos urbanos que, como demonstrou Roberto Guedes, gozavam de outro tipo de autonomia e estavam sujeitos a outras formas de disciplina e controle. Para Guedes, nas cidades, as roças próprias e os casamentos “eram realidades intangíveis para a gr ande maioria dos escravos, o 151 que inviabilizava qualquer política de domínio fundada sobre estas bases”. Portanto, as
formas de administração da escravaria de Vieira Braga e Chaves eram somente duas entre as possíveis. Concordando com Saint Hilaire, mas trazendo outras considerações, o viajante Nicolau Dreys afirmou: “nas estâncias, pouco tem que fazer o negro, exceto na ocasião rara dos rodeios; nas charqueadas, o trabalho é mais exigente, sem ser nem pesado nem excessivo; é uma ocupação regular distribuída segundo as forças do negro”.152 Dreys viveu entre charqueadores e estancieiros, de 1817 a 1827, e teceu considerações sobre as charqueadas que fazem lembrar tanto as práticas de Chaves quanto as de Vieira Braga. Os relatos de Dreys foram muito utilizados para o estudo da escravidão no Rio Grande do Sul, mas geralmente se escolhe as mesmas passagens do texto do viajante. A frase mais conhecida de Dreys, citada em quase todos os trabalhos sobre escravidão em Pelotas, foi a seguinte: “Uma charqueada bem administrada é um estabelecimento penitenciário”. Mesmo que algumas pesquisas demonstrem que Dreys estava exagerando, sua afirmação reflete as tentativas de se impor uma forte disciplina aos cativos, restringindo a sua mobilidade para além do espaço da charqueada. Contudo, outras passagens da obra de Dreys são muito pouco comentadas (algumas nem mesmo reproduzidas): “Na estação da matança, isto é, de novembro até maio, o trabalho das charqueadas principia ordinariamente à meia noite, mas acaba ao meio dia, e tão pouco cansados ficam os negros, que não é raridade vê-los consagrar a seus batuques as horas de repouso que decorrem desde o fim do dia até o instante da noite em que a voz do capataz se faz ouvir”. “Os negros trabalhadores dos estabelecimentos industriais do Rio Grande recebem abundância de mantimentos; estão bem vestidos conforme a exigência da estação, bem tratados nas suas doenças; e é isso justamente o que quer o negro; em compensação, o senhor não lhe pede senão um serviço usual e bom comportamento; e quando se desviam destas obrigações, vem o castigo, que é também uma das
do Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1990; MARCONDES, Renato Leite. Desigualdades regionais brasileiras: comércio marítimo e posse de cativos na década de 1870. Tese de livre-docência. Ribeirão Preto, USP, 2005. 150 FRAGOSO, João. Op. cit., 1990. 151 GUEDES, Roberto. Op. cit. 152 DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 167.
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precisões do negro; porém, quando a pena é merecida e aplicada judiciosamente, é raro que o criminoso se revolte contra ela”. “O vago desejo de liberdade, de uma liberdade nominal, pois que, saindo do cativeiro dos brancos, caem no cativeiro mais duro das misérias e dos vícios, atormenta o negro em todas as situações: escravo sem repugnância na sua terra, ele quer ser livre em todas as mais partes do mundo. Os negros do Rio Grande do Sul, seja qual for sua aparente resignação, justificada aliás pela suavidade de sua condição, não estão isentos do contágio: várias tentativas fizeram eles, em tempos diferentes, para imprimir a toda população negra um movimento insurrecional; mas todos os projetos falharam, e não podiam deixar de falhar, à vista da imensa potência 153 de repressão que está na circunstância de desenvolver a população branca do país”.
Primeiramente, trata-se de um relato de um viajante e, assim como o de tantos outros, estava permeado pelo olhar estrangeiro. Contudo, seria incorreto por parte do historiador escolher algumas citações de seu texto em detrimento de outras. Os relatos de Dreys fornecem um quadro bastante complexo do escravismo em Pelotas. Sua opinião de que o senhor pedia do escravo somente um serviço usual é tão exagerada e equivocada quanto considerar que a charqueada assemelhava-se a uma penitenciária (no sentido de que os cativos jamais podiam deixar o estabelecimento). Dreys não nega que os escravos tentassem se organizar para uma tentativa insurrecional e que tal projeto foi levado a cabo, mesmo que com insucesso, mais de 154
uma vez. Dreys também deixa claro que os castigos eram aplicados aos considerados infratores e que a vigilância era forte. No entanto, ele traz um outro elemento que diz respeito ao cálculo realizado pelos cativos sobre que tipo de estratégias e qual liberdade poderiam lhe interessar naquele contexto. O que seria pior, o cativeiro do homem branco ou o “cativeiro da miséria”? E aqui acrescento outro fator que devia pesar nos projetos dos escravos. O que seria pior, o cativeiro de Vieira Braga ou o cativeiro de Chaves? O cativeiro de Costa Santos, o de Francisco Nieto ou o cativeiro de Chaves? Neste sentido, o viajante também deixa claro que um bom tratamento dos escravos podia caminhar lado a lado com uma rigorosa disciplina. Portanto, se Dreys pode ser lido de formas diversas, se o seu texto é contraditório, e se suas passagens podiam servir tanto para abolicionistas quanto para escravistas da época justificarem seus argumentos, é porque, no mínimo, os charqueadores que Dreys conheceu e conviveu durante mais de 10 anos apresentavam uma heterogeneidade de comportamentos e 153
DREYS, Nicolau. Op. cit., p. 167-169. Serve como exemplo os conflitos criados por conta do Quilombo de Manuel Padeiro na Serra dos Tapes, em Pelotas, em 1835 (AL-ALAM, Caiuá. Op. cit.). Conforme Al-Alam e Moreira, em 1848, Pelotas também foi alvo de uma tentativa insurrecional de escravos minas que não chegou a ser concretizada (MOREIRA, Paulo; AL-ALAM, Caiuá. “Já que a desgraça assim queria” um feiticeiro foi sacrificado: curandeirismo, etnicidade e hierarquias sociais (Pelotas– RS, 1879). Afro-Ásia, 47 (2013), p. 119-159). Para uma contribuição recente, ver MOREIRA, Paulo; AL-ALAM, Caiuá; PINTO, Natália. Os calhambolas do General Manoel Padeiro: práticas quilombolas na Serra dos Tapes (RS, Pelotas, 1835) . São Leopoldo: Oikos, 2013. 154
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modos de administrarem os seus cativos difíceis de serem encaixados num modelo hermético. No mais, é importante considerar que os estudos sobre as relações entre senhores e escravos na sociedade brasileira ainda merecem mais análises, tratando-se de um problema de pesquisa aberto a muitas investidas.
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7. OS MERCADOS DO GADO, A EXPANSÃO AGRÁRIA NA FRONTEIRA E A GUERRA COMO RECURSO ECONÔMICO
Na paz, prepara-te para a guerra. Na guerra, prepara-te para a paz
Sun Tzu
Toda a charqueada necessitava de muitas tropas de novilhos para tocar seus negócios, mas nem todo o charqueador era um grande criador de gado. Com raras exceções, por maior que fosse o rebanho de um charqueador, ele não era capaz de suprir nem 5% do número total de reses abatidas em seu estabelecimento durante uma safra. Conforme Farinatti, a taxa de reprodução anual do rebanho de um estancieiro da região da campanha devia chegar a 20%. Mas como somente os machos eram vendidos para o abate nas charqueadas, cerca de 10% do total das reses eram negociadas anualmente.1 O charqueador de Pelotas com o maior número de cabeças de gado entre os seus bens possuía mais de 34 mil reses. Portanto, ele poderia abater anualmente em sua charqueada cerca de 3.400 reses de seu próprio rebanho. Como um 2, ele podia compor de grande charqueador abatia algo entre 20 e 25 mil novilhos numa safra 13 a 17% da matéria-prima animal a partir do custeio de suas próprias estâncias no Uruguai.
Mas tal situação foi única. Tendo em vista que o segundo charqueador com o maior rebanho inventariado detinha 13 mil reses e a grande maioria dos mesmos ou não possuía animais de criar ou era dono de pequenos rebanhos, como demonstrarei a seguir, pode-se concluir que mais de 95% do gado abatido nas charqueadas era comprado de estancieiros e tropeiros de outras regiões. 3 Portanto, não se pode falar em auto-abastecimento de animais para nenhum destes empresários. Todos os charqueadores dependiam totalmente dos mercados de gado. No entanto, havia um problema. Os rebanhos da província não eram suficientes para manter os altos níveis de abate das charqueadas pelotenses. Na década de 1860, eles alcançaram uma média de quase 400 mil reses por ano. Como notou Alvarino Marques, “Pelotas estava abatendo mais gado que o produzido em toda a região sul do Rio Grande”. Portanto, como a indústria charqueadora pelotense se matinha? “A diferença era coberta pela introdução – para não dizer contrabando– de gado uruguaio, em número aproximado de 100 1
FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 148. 2 Correio Mercantil. Edição de 20.07.1875 (Biblioteca Pública de Pelotas). 3 Tratarei do tamanho dos rebanhos dos charqueadores a seguir. 284
mil reses por ano”.4 Não existem dados precisos sobre este comércio e muito menos sobre o contrabando, mas, em 1864, o Presidente da Província declarou que o Rio Grande do Sul absorveu mais de 130 mil reses do país vizinho.5 Portanto, tendo em vista estes números, fica evidente que o gado uruguaio foi indispensável na manutenção dos altos índices de abate das charqueadas pelotenses (Gráfico 7.1). É provável que sem as tropas vindas de Cerro Largo e Tacuarembó a economia charqueadora teria se estagnado.
Gráfico 7.1 – Número de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890)
500.000 450.000 400.000 350.000 300.000 250.000 200.000 150.000 100.000 50.000 0
Fonte: PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria pastoril do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: Livraria Continental, s/d.
A análise do gráfico também possibilita perceber que apesar da leve diminuição (sempre oscilante) dos ritmos de abate na década de 1870, é somente nos anos 1880 que a indústria charqueadora viu-se numa profunda crise. Este problema será tratado ao longo deste capítulo e do posterior. No momento interessa compreender melhor as relações dos ritmos de abate com o mercado de gados. De acordo com o mapa numérico das estâncias da Província e animais que possuem, contabilizados em 1858, o Rio Grande do Sul tinha cerca de 3,5
milhões de cabeças de gado vacum distribuídas em 15 municípios. No entanto, este número era bem maior, visto que nestes locais alguns distritos não tiveram seus rebanhos recenseados e outros 11 municípios nem sequer remeteram as suas estatísticas para a Presidência da Província. Entre estes últimos, havia importantes regiões de criação de gado como 4 5
MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque.Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 92. Relatório Presidente da Província do Rio Grande do Sul, E spiridião Eloy de Barros, de 1864, p. 60. 285
Uruguaiana, Caçapava, São Gabriel e Cruz Alta, por exemplo. 6 Portanto, não seria exagerado considerar que havia mais de 5 milhões de reses pastando nos campos da província. Apesar da taxa de reprodução dos rebanhos ser considerada de 20% pela maioria dos especialistas, o número de animais que criam por ano realizado pelos recenseadores foi calculado em 15%, o que resulta em 7,5% machos. Portanto, numa população bovina de 5 milhões de reses, algo entre 375 e 500 mil novilhos estariam disponíveis para serem negociados anualmente, dependendo da taxa de reprodução que se aceite. Mas antes que se conclua qualquer questão a respeito destes dados, outros três importantes fatores devem ser considerados. Primeiramente, conforme Alvarino Marques, foi somente a partir da década de 1870 que os rebanhos da região norte do Rio Grande do Sul começaram a ser remetidos para Pelotas. Antes disso, apenas os municípios ao sul do rio Ibicuí, na região da campanha, e da região central da província, estavam inseridos no espaço econômico pecuarista que abastecia as charqueadas pelotenses. Em segundo lugar, Pelotas não era a única região charqueadora do sul da província. Os municípios de Jaguarão e Rio Grande também recebiam grandes levas de gado. Em 1854 e 1855, por exemplo, as 9 charqueadas existentes em Jaguarão abateram respectivamente 35.163 e 41.697 reses e as 7 7
fábricas em Rio Grande abateram 15.100 e 14.000, nos mesmos anos. Terceiro, nem todo o gado criado no Rio Grande do Sul era remetido para as charqueadas. No ano de 1874, por exemplo, a população pelotense teve 11.538 reses destinadas para o seu próprio consumo. Na década de 1880, Pelotas e Rio Grande juntas consumiram anualmente cerca de 30 mil reses.8 Ora, os habitantes livres de ambas as cidades perfaziam cerca de 10% da população provincial (realizando o mesmo cálculo com os escravos, o índice era quase o mesmo). Se a taxa de consumo de carne bovina entre os habitantes dos demais municípios da província acompanhava os mesmos ritmos destas duas localidades, seria possível considerar que, na década de 1870, cerca de 200 mil reses foram abatidas anualmente para o abastecimento da população provincial. Isto daria um consumo per capita de carne bovina em torno de 90 a 100 kg por ano (calculando-se que uma rês 9
poderia render 180 a 210 kg de carne com osso). Trata-se de uma estimativa bastante
6 7
Mapa numérico das estâncias… Fundo Estatística, maço 02, AHRS.
MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 123; Ofício de 24.03.1856. Autoridades Municipais de Rio Grande, maço 215-A. AHRS. A transcrição dos dados de Rio Grande foram gentilmente cedidos por Vinícius Oliveira. 8 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 100. 9 COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque.Pelotas: Seiva, 2000 [1882], p. 119. Barran e Nahum dizem que em Montevideu, na segunda metade do oitocentos, cada bovino podia render 161 kg de carne, osso e gorduras 286
plausível. Em 1861, o Uruguai inteiro, cuja população aproximava-se da do Rio Grande do Sul, consumiu 293 mil reses.10 Buenos Aires, por exemplo, apresentou um índice de consumo per capita de 100 a 120 kg, na mesma década. Com uma população 10 vezes maior que
Pelotas, a capital argentina, em 1867, recebeu 468.909 ovinos e 578.000 vacuns para alimentação de seus moradores.11 Portanto, mesmo que o Rio Grande do Sul consumisse menos de 200 mil reses anuais para o abastecimento das cidades, tais números não podiam ser desconsiderados pelos administradores e charqueadores, pois era um gado perdido na safra pelotense.12 Neste sentido, a dependência das charqueadas de Pelotas para com o gado criado no Uruguai era um fator estrutural na economia regional, dependendo da entrada de tropas que somavam mais de 100 mil reses por safra.13 O leitor pode não ter muita dimensão do que significava este grande contingente de bovinos negociados anualmente nas charqueadas. Apenas para uma comparação, em 1854 a província de São Paulo inteira possuía 532 fazendas de criação com 35 mil cabeças de gado.14 No Paraná, por sua vez, havia quase 65 mil reses, em 1825.15 Isto demonstra que os saques, contrabandos e arreadas, cada vez mais comuns na fronteira, não envolviam interesses econômicos de pouca monta. As dezenas de milhares de bovinos roubados e contrabandeados traziam vultosos prejuízos aos proprietários, ajudando a compreender a gravidade dos conflitos que se sucederam na fronteira e porque os estancieiros incomodavam tanto o Império. Alguns deles, como José Luís Martins, declararam ter sofrido
(BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 162). 10 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 124. 11 Entre 1867 e 1876, Buenos Aires e os arredores receberam mais de 3 milhões de reses para alimentação. BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, p. 347-357. 12 Em Buenos Aires, por exemplo, os primeiros saladeiristas enfrentaram muitos problemas com as autoridades administrativas e a população portenha, pois desviavam grande parte do gado destinado à alimentação dos habitantes, provocando a carestia no abastecimento (GIBERTI, Horacio. Historia Económica de la ganadería
argentina. Buenos Aires: Solar, 1981). Buenos Aires, nos anos 1820, abatia quase 75 mil reses anualmente para abastecer somente o seu espaço urbano. O consumo de carne vacum percapita na cidade, no fim do século XVIII, era de 193 kg por ano (GARAVAGLIA, Juan Carlos. De la carne al cuero: los mercados para los productos pecuarios (Buenos Aires y su campaña, 1700-1825). Anuario del IEHS. Tandil, n. 9, 1994, p. 61-95). 13 Barran e Nahum afirmam que o Brasil recebia 250 mil reses por ano, durante a década de 1860, mas não é possível saber se estes animais foram todos remetidos para o Rio Grande do Sul (BARRAN; NAHUM, 1967, p. 124). 14 LUNA, Francisco; KLEIN, Herbet. Escravidão africana na produção de alimentos. São Paulo no século XIX. In: Estudos Econômicos, v. 40, n. 2, 2010, p. 297, p. 315. 15 GUTIERREZ, Horácio. Fazendas de gado no Paraná escravista, Revista Topói, 2004, p. 110. Comparando tais números com os do Rio Grande do Sul, o autor considerou que “a produção e o número de fazendas paranaenses tornava-se uma ninharia”. 287
um saque de 40 mil reses de seus campos, ou seja, perderam rebanhos equivalentes aos totais de uma província brasileira.16 Devido à abundância de rebanhos gordos e estâncias com boas pastagens, os charqueadores de Pelotas possuíam um interesse direto no espaço agrário da região da campanha e do norte do Uruguai. Neste sentido, é necessário investigar a importância destas propriedades (tanto brasileiras quanto uruguaias) na constituição do patrimônio material dos charqueadores de Pelotas e que consequências políticas e econômicas este interesse desencadeou. A preocupação destes empresários escravistas pode ser simplificada em três pontos: a) manter o contínuo fluxo de tropas de gado do território uruguaio para as charqueadas pelotenses; b) defender o que entendiam como seu direito de propriedade no território uruguaio (o que incluía terras, escravos e rebanhos); c) garantir a sua proeminência diante das crescentes exportações dos saladeiros de Montevidéu, de Entre Rios e de Buenos Aires para os mercados atlânticos. A livre concorrência esteve longe de servir como suporte exclusivo nesta disputa, sendo a guerra, a diplomacia e a ação parlamentar os mecanismos de caráter fundamental para garantir o desenvolvimento econômico do complexo charqueadorescravista pelotense. Neste sentido, política, guerra, mercado de gados e terras e comércio de charque estavam tão intimamente ligados que é difícil definir onde um influenciava o outro, como demonstro nas páginas a seguir.
7.1 NA TRILHA DOS LATIFÚNDIOS: A EXPANSÃO AGRÁRIA RUMO À REGIÃO DA FRONTEIRA COM O URUGUAI
O avanço rio-grandese em direção às propriedades uruguaias remontava ao início do século, quando o projeto expansionista luso-brasileiro foi posto em prática a partir de intervenções militares no referido território. Estas investidas, associadas ao conflituoso processo de separação da Banda Oriental com a Coroa Espanhola, entre outros fatores, acabaram por favorecer a anexação da região ao Império do Brasil, sob a denominação de província da Cisplatina.17 A partir deste período e até o meado do século, o norte daquela 16
Ofício de 1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros. B1-027 (AHRS). Para uma análise dos projetos que se sucederam ao processo de independência no Uruguai e também na sua relação com o Império luso-brasileiro ver FREGA, Ana; ISLAS, Ariadna (Coord.). Nuevas miradas en torno al artiguismo. Montevidéu: Dpto. de Publicaciones de la FHCE, 2001; OSÓRIO, Helen. A revolução artiguista e o Rio Grande do Sul: alguns entrelaçamentos. In: Cadernos do CHDD. Brasília, Ano 6, 2007, p. 3-32; 17
288
região passou a ser gradualmente povoado por grandes levas de famílias luso-brasileiras que se estabeleciam com estâncias de criação de gado. Tal fenômeno favoreceu o desenvolvimento do complexo charqueador em Pelotas. Estima-se que, somente durante a ocupação da Cisplatina, mais de 2 milhões de reses foram levadas do Uruguai para o Rio Grande do Sul. 18 Desnecessário dizer que o mesmo processo trouxe inúmeros prejuízos para a indústria saladeril oriental. Durante o período da ocupação brasileira na Cisplatina, centenas de estancieiros migraram para o território vizinho, tornando-se proprietários na região fronteiriça. No entanto, de acordo com Eliane Zabiella, o avanço brasileiro sobre as terras uruguaias durante a Guerra Grande (1838-1851)19 foi maior que em qualquer outra época. Ao longo do mencionado conflito, o preço das propriedades declinou, custando 0,60 centésimos de peso por hectare, o que animou os compradores. Somadas às buscas de gado na época da Cisplatina, este avanço do capital rio-grandense sobre as terras orientais arruinou a antiga classe latifundiária uruguaia ao quase destruir a pecuária e a sua indústria saladeril. Em 1850, os brasileiros possuíam 428 estâncias no norte do Uruguai, do qual eram conhecidas as dimensões e o número de cabeças de gado para 191 delas. Estas terras ocupavam uma superfície de 693 léguas quadradas com 914.000 cabeças de gado vacum. Zabiella estima, a partir de alguns cálculos e considerações, a possibilidade de que cerca de 2 milhões de reses tenham existido 20 ao mesmo tempo em todas aquelas 428 estâncias pertencentes aos rio-grandenses.
A expansão agrária e a migração de rio-grandenses para aqueles campos impressionavam pela sua velocidade e pelo contingente de pessoas. Em 1845, na Câmara dos deputados, o representante da Bahia, o Sr. Silva Ferraz, declarou: Vejo senhores, que teneis uma idéia muito equivocada do poder e dos recursos do Império. Vós creeis que ali na linha ou divisa material do Jaguarão vão encontrar um povo completamente distinto do que se chama Império do Brasil, mas é preciso que saibais que felizmente não é assim. Ao passar ao outro lado do Jaguarão, senhores, o
MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Editora Hucitec, 2009. 18 MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 55. Acompanhando os dados compilados por Marques é possível ver o impacto desta entrada de animais na paisagem agrária rio-grandense. Se em 1787, a capitania contava com 651.619 reses em seus campos de criação, e em 1811 ela possuía cerca de 1.298 milhões, em 1822, por exemplo, este índice havia mais que triplicado, chegando a 5 milhões. 19 A Guerra Grande (1838-1851) foi um conflito iniciado no Uruguai entre os partidários de Manuel Oribe e Fructuoso Rivera e que, depois da queda do primeiro, tomou proporções transnacionais, envolvendo caudilhos das províncias argentinas e autoridades políticas e militares platinas e brasileiras, encerrando-se com a intervenção do Império brasileiro na região, em 1851. 20 ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de Extradição e de Limites.Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2002, p. 23-25. 289
traje, o idioma, os costumes, as moedas, os pesos, as medidas, tudo, até a outra banda do rio Negro, tudo, tudo, senhores, até a terra, é brasileira.21
Examinando diversos documentos nos arquivos uruguaios, Zabiella verificou que, de fato, os brasileiros ocupavam cargos tanto na Justiça quanto na administração local, como Simão de Brum da Silveira, que foi Tenente Alcaide em Olimar (1836). Esta presença era tão marcante que, na segunda metade do XIX, as autoridades uruguaias ordenaram que os documentos oficiais produzidos no interior do país fossem escritos somente em língua espanhola e não mais em português. Nas listas de habitantes, a participação de brasileiros, com seus agregados e escravos, também era notável e, na época das eleições, havia candidatos tanto orientais quanto rio-grandenses disputando os votos da população.22 Portanto, não havia nenhum exagero no discurso do deputado baiano. Em 1860, os brasileiros representavam 11% da população total do Uruguai23 e ocupavam cerca de 30% do território deste país. Neste sentido, pode-se dizer que, em meados do século, aquela região era praticamente um apêndice econômico e social dos estancieiros rio-grandenses.24 Mas se o avanço luso-brasileiro sobre as estâncias uruguaias e da região da campanha sul-rio-grandense havia se iniciado durante o colonial tardio, os charqueadores pelotenses começaram a investir seus capitais nestas regiões de forma mais incisiva somente após este período. O Gráfico 7.2 representa as transações de compra e venda registradas nas escrituras públicas nos tabelionatos de Pelotas (entre 1832 e 1890) e as propriedades rurais avaliadas nos inventários post-mortem dos charqueadores (entre 1820 e 1900). 25 De acordo com o gráfico, o auge dos investimentos nas duas regiões mencionadas ocorreu entre as décadas de 1850 e 1870. Somando as referências de propriedade no Uruguai e na campanha riograndense encontradas nos inventáriospost-mortem e nas escrituras públicas temos que cerca de 82,5% das mesmas concentram-se nestas três décadas. É provável que as estâncias
21
ZABIELLA, Eliane. Op. cit. p. 25. ZABIELLA, Eliane. Op. cit., p. 25 -27. 23 CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983, p. 55. 24 SOUZA, Susana B. e PRADO, Fabrício. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX. In: GRIJÓ, Luiz A.; KUHN, Fábio; GUAZZELLI, César A. B.; NEUMANN, Eduardo. Capítulos de história do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: EDUFRGS, 2004. 25 Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) e Inventários post-mortem de Pelotas (APERS). 22
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inventariadas na década de 1850 tenham sido compradas anteriormente, como indica o aumento das escrituras nos anos 1840.26 Gráfico 7.2 - Presença de propriedades rurais pertencentes a charqueadores de Pelotas nos inventários e nos livros de notas (1820-1900) 30 25 20 15 10 5
0 1820
1830
1840
1850
Escrituras
1860
1870
1880
1890
Inventários
Fonte: Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) e Inventários post-mortem de Pelotas (APERS).
Os investimentos em imóveis rurais tinham uma região-alvo certa (Figura 7.1). Cerca de 2/3 das 106 referências encontradas e indicadas no Gráfico 1 (31 em inventários e 75 em escrituras públicas) concentraram-se em quatro regiões localizadas exatamente na fronteira divisória entre os dois países: em Tacuarembó (27), Cerro Largo (15), Bagé (14) e Jaguarão (14). No Uruguai, além dos Departamentos de Tacuarembó e Cerro Largo, também encontrei referências em Salto (4), Paysandu (2), Montevidéu (2), Durazno (1) e outras duas com a localização imprecisa. Percebe-se aqui que exatamente 50% das referências em inventários post-mortem e escrituras públicas somadas tratavam-se de investimentos em propriedades
rurais no Uruguai. Ou seja, as terras do país vizinho concentraram os interesses diretos dos charqueadores pelotenses que realizaram altos investimentos de capital nos mesmos. Os charqueadores pelotenses sempre estiveram atentos a este processo de expansão agrária rumo à fronteira sudoeste. Devido aos bons pastos e a relativa proximidade com Pelotas (se comparadas a outras regiões) as estâncias dos municípios e departamentos acima mencionados eram bastante cobiçadas. Em 1863, por exemplo, o coronel Tomás José de Campos, charqueador pelotense, comprou de José Rodrigues Candiota 13 e ½ sortes de campo em Cerro Largo pagando o valor de 54:000$ de réis. A maior compra de uma estância 26
Também é possível que outras compras tenham sido registradas nos cartórios dos respectivos municípios ou até no país vizinho, mas não tive fôlego para realizar esta busca. No entanto, o cruzamento com os inventários post-mortem ajudaram a sanar, em parte, este problema. 291
no Uruguai foi feita por Antônio José de Oliveira Leitão, que foi sócio dos irmãos Barcellos em uma charqueada entre os anos 1850 e 1860. Em 1859, Leitão comprou um campo em Tacuarembó e pagou o valor de 135:000$ de réis pela propriedade rural. Contudo, os maiores valores investidos em estâncias se deram em propriedades do lado brasileiro da fronteira. Em 1868, por exemplo, Possidônio Mâncio Cunha comprou a Estância Paraíso, localizada em Jaguarão, pagando 190:134$160 a Jacintho Antônio Lopes. E em 1866, José Antônio Moreira, um dos charqueadores mais ricos de seu tempo, realizou a maior transação em terras aqui 27 analisada comprando a Estância do Ponche Verde, em Bagé, pelo valor de 256:000$ de réis. Figura 7.1 – Mapa das regiões-alvo dos investimentos realizados pelos charqueadores em estâncias e campos de criação fora de Pelotas (1810-1900)
Fonte: Inventários post-mortem de Pelotas, 1832-1900 (APERS). Escrituras públicas de compra venda, 1º, 2º, e o 3º Tabelionatos de Pelotas, 1832-1890 (APERS). Os círculos representam 27
Livros de notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890) – APERS. Como notou Stephen Bell, algumas desta transações faziam parte de cobranças de dívidas de grandes fazendeiros para com os charqueadores, o que não significa que não se constituíssem em altas inversões de capital. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998. 292
referências de estâncias e campos tanto nos inventários quanto nas escrituras públicas. Os círculos pequenos correspondem a 1 referência e os círculos grandes representam 10 referências.
Portanto, em meados do oitocentos, a campanha oriental havia se tornado um imenso campo de engorda de gado para as charqueadas do Rio Grande do Sul e a criação extensiva das reses fazia com que os estancieiros rio-grandenses se expandissem cada vez mais para o interior do território uruguaio. A partir da década de 1840, e tendo o seu auge nos anos 1850 e 1860, os charqueadores seguiram esta mesma tendência de inversões de capital. Contudo, se a quantidade de gado contida nas estâncias de um charqueador não cobria nem 5% do necessário para os trabalhos de uma safra, porque estes empresários investiam grandes montantes de capital em uma estância na fronteira sujeita a todo tipo de saques e ataques? Porque optavam em tornarem-se grandes criadores de gado, vindo a arcar com gastos com peões, capatazes e escravos em seus campos se o retorno em termos de novilhos por safra era ínfimo? O estudo dos mercados de gado e seus mecanismos internos ajuda a entender a racionalidade deste empreendimento.
7.2 PELAS MALHAS DO PARENTESCO: O MERCADO DO GADO PARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS
Pode-se imaginar que a comercialização de animais vacuns durante a época das safras das charqueadas tornava a região da campanha sul-rio-grandense um espaço de intenso tráfego de tropas de gado. Os novilhos abatidos nas charqueadas pelotenses provinham não apenas das estâncias rio-grandenses, como também das uruguaias, e podiam possuir três distintas srcens: as tropas de desconhecidos que chegavam até Pelotas por intermédio de agentes e negociantes que as vendiam aos charqueadores; as tropas de criadores mais conhecidos que já possuíam negócios pré-acordados com os charqueadores (que lhes adiantava dinheiro) e as tropas levadas até o mercado/feira de gados de Pelotas (a tablada), onde eram compradas pelos próprios charqueadores sem a presença de tantos intermediários. Uma vez que a tablada parece ter se constituído em importante espaço de compra e venda de gados somente nos anos 1870, analisarei ela por último. Antes disso, comumente os charqueadores adiantavam dinheiro aos seus agentes que partiam para o interior da província ou cruzavam a fronteira para comprar tropas de gado dos grandes estancieiros, trazendo as mesmas para as charqueadas durante a época das safras. Mas o contrário também ocorria. 293
Grandes estancieiros podiam ter parentes e agentes envolvidos com a formação de tropas para remete-las à Pelotas, tornando este mercado repleto de intermediários. Um processo judicial, datado de dezembro de 1874, traz ricos detalhes sobre estas transações. Nesta ocasião, os charqueadores Gonçalves & Lúcio, por intermédio de um agente, Francisco S. da R. Formiga, compraram uma tropa de novilhos do capitão Pedro Luís Osório, estancieiro em Bagé. Tendo fechado o negócio, o capitão ordenou que seu capataz, José Rodrigues de Almeida, acompanhasse o agente até a sua invernada no Candiotinha “a fim de entregar àquele Formiga as reses gordas da propriedade do autor e que ele apartasse e quisesse comprar, a preço de trinta e dois mil réis cada novilho”. Formiga escolheu 115 reses e o capataz levou-os até Pelotas. Segundo o estancieiro, “não querendo sofrer o risco de perda do dinheiro conduzido pelo capataz”, disse aos charqueadores que “aceitava uma ordem contra estes por toda a importância da compra do gado para ser paga na cidade de Pelotas e que neste sentido escreveu particularmente” aos mesmos. Recebendo a ordem, os charqueadores negaram -se a pagar, atitude que fez o capitão Osório entrar na Justiça contra ambos.28 Mas a história era muito mais complexa. A partir da leitura das muitas cartas anexadas ao processo verifica-se que Formiga não era “mandatário” dos charqueadores. Como tropeiro, ele comprava gados para revender nas charqueadas oferecendo-os a mais de um charqueador. Tendo fechado um negócio com alguns criadores, ele escreveu para Gonçalves & Lúcio oferecendo as tropas. Os charqueadores não quiseram. Formiga voltou a insistir, “dizendo que não queria passar por conversador perante os fazendeiros, pois já tinha os gados tratados e contava conduzi-los” para as charqueadas. Gonçalves & Lúcio aceitaram, mas exigiram que as tropas deveriam ser “de gado bem gordo”, “por preço nunca mais de 32$000 cada um novilho” e que se viessem em tais condições “lhe pagariam a comissão que é de praxe”. Os charqueadores complementaram: “como é também de praxe fornecer adiantamento de quantias por conta das tropas”, mas “receando remetê-las pela diligência, autorizaram a Formiga a sacar contra eles (…) por intermédio de Manoel Soares da Silva de Bagé, ao qual também pediu que auxiliasse Formiga nos saques, a fim de que a tropa saísse maior, e que esses saques seriam religiosamente pagos”. Mas o tropeiro não teria cumprido o trato, trazendo novilhos magros para a charqueada. Formiga ainda pediu aos charqueadores que cobrissem as despesas do seucapataz e dos seus peões (que ele chamava de “minha gente”) e
28
Ação ordinária de Pedro Osório contra Gonçalves & Lúcio. N. 1177, m. 42, 1º cartório do cível, Pelotas, 1875 (APERS). 294
numa carta escrita por ele aos mesmos charqueadores disse que se a sua comissão não fosse 29 de 4$000 por cabeça de gado, ele poderia levar a tropa para outro charqueador.
Não foi raro localizar contendas judiciais semelhantes a esta. Em janeiro de 1854, por exemplo, João Vinhas cobrou a senhora Adriana de Carvalho o valor de 1:634$463 referente ao dinheiro que lhe entregou para ser pago em gados. 30 Em junho de 1857, o mesmo Vinhas, juntamente com o charqueador José Antônio Moreira, acionou a Justiça para cobrar o valor de 16:000$ referente aos adiantamentos que deram a Joaquim Manoel Teixeira para que lhes comprassem tropas de gado no Uruguai, o que o réu não fez. 31 Charqueadores e comerciantes seguidamente associavam-se para comprar tropas ou abater reses em estabelecimentos de terceiros. Estas parcerias não eram registradas em cartório e apenas são possíveis de se perceber nas entrelinhas de processos judiciais e recibos anexos em inventários. Tais parcerias e sociedades tinham prazos curtos, sendo dissolvidas em uma ou duas safras, podendo ser restabelecidas em outras. O motivo das mesmas era reunir o capital necessário num empreendimento momentâneo, além de diminuir os prejuízos num negócio mal sucedido com tropeiros e estancieiros. É provável que muitas das dívidas ativas encontradas em inventários post-mortem de charqueadores também fosse fruto de negócios envolvendo gado com agentes
e criadores, mas não é possível saber com precisão, visto que a srcem das dívidas dificilmente eram discriminadas. O que se pode perceber na leitura destes e de outros processos judiciais é que os negócios envolvendo compra e venda de tropas eram cheios de riscos, como os próprios charqueadores Gonçalves & Lúcio afirmaram. Primeiramente, porque em última instância, estes empresários dependiam da boa fé dos negociantes e da competência dos agentes. Portanto, estes deveriam ser homens de sua confiança e de boa reputação no mercado. 29
Ação ordinária de Pedro Osório contra Gonçalves & Lúcio. N. 1177, m. 42, 1º cartório do cível, Pelotas, 1875 (APERS). O caso ocorrido neste processo converge com o que Alvarino Marques escreveu a respeito das tropas de gado remetidas para Pelotas. Conforme o autor, no topo da hierarquia deste comércio estava o tropeiro-patrão, que era o dono da tropa e assumia, por sua própria conta e risco, todas as fases do negócio. Também chamado de tropeiro comprador, ele devia “ter profundos conhecimentos de todas as tarefas de um tropeiro desde as do peão até as do capataz”. Ninguém chegava a tropeiro patrão sem antes ter aprendido as lides da estância. Depois deste vinha o capataz das tropas, responsável por contratar os peões, que deviam ser homens de sua confiança, e conduzir as tropas de forma hábil e segura até as charqueadas: “levar uma tropa de gado xucro, através de campos abertos, cruzando pelo meio de gado estranho, varando picadas e arroios cheios, durante um mês inteiro, chegando ao destino sem perdas e extravios de animais, com o estado da tropa em condições de não fazer feio frente” as outras era responsabilidade do capataz. Por ultimo, os peões eram os que executavam as ordens do capataz auxiliando a condução das tropas. Eles recebiam, em média, 150$000 por viagem. Conforme Marques, era possível realizar até três viagens durante uma safra (MARQUES, 1987, p. 199-202). 30 Ação Ordinária de João Vinhas contra Adriana de Carvalho, n. 1011, m. 36, 1º cartório do cível, Pelotas, 1854 (APERS). 31 Ação Ordinária de João Vinhas e José A. Moreira contra Joaquim M. Teixeira, n. 1028, m. 36A, 1º cartório do cível, Pelotas, 1857 (APERS). 295
Segundo, a qualidade do gado trazido nem sempre era garantida e às vezes não era por culpa do agente, pois, embora a lógica de mercado sugerisse que os melhores rebanhos ficassem com quem pagasse mais, na prática, os criadores que recebiam adiantamentos tinham compromissos com os charqueadores credores ou seus agentes e, como demonstrarei a seguir, outros vínculos de dependência acabavam afetando as transações. E terceiro, os negociantes e criadores podiam trocar de parceiros comerciais ano a ano, tornando o processo de abastecimento de gado ainda mais instável. Numa ação judicial estudada por Farinatti foi possível verificar que o estancieiro Manoel José de Carvalho remetia seus gados tanto para Montevidéu, quanto para Pelotas e Triunfo, ou seja, ele diversificava as suas transações e devia direcioná-las ao sabor dos valores pagos em cada praça ou das vantagens garantidas por cada charqueador. No caso de Carvalho, o charqueador pelotense Manoel Batista Teixeira lhe adiantava quantias em dinheiro, condicionando o criador de gado a comprometer-se com ele na safra seguinte.32 A solução para contornar estes problemas seria diminuir os riscos e tornar todo o processo o mais seguro possível. Uma safra que se iniciasse com problemas no abastecimento de gado dificilmente gerava bons lucros. Na cabeça dos charqueadores a melhor forma de resolver este problema era colocar os seus próprios parentes para tomarem conta destes negócios. Durante a safra, o charqueador permanecia muito tempo ocupado no trabalho da charqueada, no fretamento de seus iates e na cidade fechando negócios, para realizar longas viagens até a região da campanha com o fim de escolher os melhores animais. Neste sentido, é muito comum encontrar irmãos, sogros, filhos ou genros de charqueadores estabelecidos com estâncias na fronteira, as vezes administrando as próprias terras do charqueador, as vezes com seus próprios estabelecimentos pecuários.33 Em dezembro de 1845, o capitão João Jacintho de Mendonça, charqueador em Pelotas, escreveu uma longa carta ao compadre que administrava a sua estância no Uruguai. É necessário ler os seus principais trechos, pois eles sintetizam todo o processo mencionado: O portador desta é o capataz de campo da charqueada Don Meceno, que segue a essa com João Benguela e João para ser capataz da tropa que Vossa Mercê deverá fazer na Estância apartando tourada velha, novilhos e vacas para que seja de mil reses para 32
FARINATTI, Luís A. Op. cit. Tal fenômeno também ocorreu em outros espaços geo-econômicos do Brasil, como, por exemplo, a presença de lavradores de cana ao redor dos engenhos de propriedades de seus parentes. Ver, por exemplo, FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial. Topói, v. 11, n. 21, 2010, p. 74106. 33
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cima. Eu quero de pronto aliviar o campo, e não é possível que tive só gado meu deixando o alheio, por isso deveria Vossa Mercê entender-se com os vizinhos para que venha todo o gado que houver deles a quem pagarei e aparte todas as marcas que houverem nos rodeios conhecidos e desconhecidos fazendo uma relação de todas de que deve deixar nota no Livro da Estância para eu depois justar contas com os donos, e dos vizinhos que não tiverem encontro [dará] o dinheiro pelas pessoas a quem eles encarregarem (…). Vossa Mercê justará pelo preço que os mais compram e quando aí mesmo queiram o dinheiro, aqui o mandará buscar, e se o quiserem no Rio Grande ou em Pelotas, também lá o mandarei dar (…). Mande-me a conta do gado que aí houver de Agapito para eu poder lhe pagar o dinheiro do gado que veio nesta tropa lho mandei por José Antônio a Agapito e outros de quem ele foi Procurador, e até de Joaquim das Pedras que tem de medir o arrendamento do campo.
Mantendo o compadre e outros parentes no coração das grandes estâncias da fronteira, o capitão Mendonça substituía a “perigosa” cadeia de intermediários por uma pessoa mais próxima e de sua inteira confiança, encarregando-o de tratar com os vizinhos em seu nome, podendo sacar contra ele nas praças de Pelotas e Rio Grande. Portanto, o dinheiro e as redes de relações sociais que se constituíam a partir da permanência de seus parentes naquela propriedade eram o seu diferencial perante outros charqueadores que não realizavam o mesmo investimento. Pouco adiantava ao charqueador ter o capital para investir nas tropas se não possuísse boas relações sociais com grandes estancieiros. Na realidade, se não tivesse o segundo, talvez não adquirisse tanta riqueza. O compadre, administrando suas gentes e escravos mencionados na carta, era o encarregado não apenas de comprar os melhores rebanhos entre os vizinhos, mas de conseguir a mão de obra necessária durante a safra inteira: A gente que leva o Meceno e a que aí houver podem em quatro ou cinco dias domar porção de potros ainda que inteiros para os rodeios e fazer depois o serviço da marcação que deve continuar logo que saia a tropa com a gente da Estância e a mais que Vossa Mercê juntar e for precisa, assim como os posteiros e todos os vizinhos que queiram vender seus novilhos e vacas de seus campos.
Rigoroso em suas contas, o charqueador alertava o compadre para que tivesse o mesmo cuidado: O seu gado, do Mendonça, e finado José Thomas deverão daí sair registrados e contados assim como todo o mais gado que vier. José Antônio diz que tinha contado a tropa no dia da chegada que era de setecentos e oitenta e quatro, destas faltam três reses não sei se ele se enganou ou se elas fugiram do pastoreio. Não deixe Vossa Mercê de contar aí a tropa que o mesmo farei eu aqui. (…) Sobre marcação, Vossa Mercê fará o que lhe parecer justo assim como a de meus filhos, pois se eu me pretendesse regular pelas marcações que faria de cinco mil e trezentas reses, mais de trinta mil reses deveria eu ter na Estância. 297
Interessante observar que em seus campos pastavam não apenas os animais do charqueador, como os do seu compadre, dos seus filhos e outros parentes, incluindo até o de seu finado sogro, capitão José Tomaz, que também era charqueador. 34 Num último trecho da missiva, o capitão Mendonça diz que já estava preparando outro capataz para seguir para a estância nos próximos dias, evidenciando um processo que devia se repetir várias vezes ao longo de cada safra: Eu por estes dez dias pretendo mandar outro capataz para fazer outra tropa na Estância e nos vizinhos e muito lhe recomendo a brevidade desta tropa que vai conduzir o Meceno para aprontar o carregamento para o iate do Viralolo que em breve espero com a Florinda e talvez suas filhas a acompanhem terá Vossa Mercê o prazer de as ver aqui (…) Junto tem carta de suas filhas que estão boas (…) De seu compadre e amigo João Jacintho de Mendonça.35
A leitura da carta indica que as filhas do administrador estavam na charqueada com a dona Florinda, esposa do charqueador. Provavelmente, ela era madrinha das meninas. O entrelaçamento das relações familiares com as econômicas era evidente. O compadre criava seus animais nos próprios campos do charqueador, oferecendo em troca seus trabalhos e sua lealdade. A partir dos trechos fica nítido que Mendonça conseguia montar muitas tropas de gado gordo não apenas pelo capital que possuía, mas também porque estava muito bem representado e estabelecido no Uruguai. Sua estância servia como base para arregimentar trabalhadores, estabelecer alianças e conceder favores para a população local. Tratava-se de um uso político da terra, para além do uso econômico. Mas o charqueador sabia que devia pagar um preço baixo, mas justo, pelo gado dos seus vizinhos, tanto que recomendou ao compadre que verificasse o quanto estava se pagando na localidade. E com relação a isto, ele foi sincero com o seu próprio compadre:“Não sou de parecer que Vossa Mercê venda o seu gado sem desfrutá-lo bem, porque tudo tem seu preço, mas se houver de insistir de o vender a outro eu ficarei com ele porque não quero barulho no campo”. Se o próprio compadre vendesse o seu gado para outro charqueador, o que os vizinhos pensariam? Poderiam tomá-lo como exemplo. Por depender dos serviços do compadre, o charqueador cobriria qualquer oferta ao gado do mesmo. Mas somente a ele, pois o charqueador precisava da sua confiança, numa relação pessoal reiterada ano a ano. E esta era a forma como este mercado se 34
Sobre esta utilização familiar das pastagens e estâncias na região da campanha ver FARINATTI, Luís A. Op. cit. 35 Carta de João Jacintho de Mendonça a João Teodoro Ferreira de Souza. Livro de Registros Ordinários n. 4, Tabelionato de Pelotas (APERS). 298
comportava em sua base, ou seja, na formação das tropas. Relações de dependência confundiam-se com relações de mercado, num espaço de trocas bastante pessoalizado. A leitura do inventário post-mortem do capitão João Jacintho de Mendonça também ajuda a elucidar estas relações familiares. Proprietário de duas charqueadas e pai de 11 filhos, sendo 7 mulheres, João possuía 3 genros que investiram nos negócios com charqueadas: Manoel Francisco Moreira, Ismael Ferreira e Heleodoro de Azevedo e Souza Filho. A análise de suas dívidas ativas e passivas demonstram significativas transações econômicas no interior da parentela. Ao arrendar a charqueada do falecido sogro, o genro Manuel, por exemplo, desembolsou a metade do valor pago “por igual arrendamento” realizado por outro indivíduo sem ligações com a família, revelando um nítido favorecimento ao genro. O filho Francisco era proprietário da invernada dos Molhes, onde parte do gado do pai se encontrava na engorda. O uso conjunto de escravos alugados e o empréstimo de dinheiro de uns aos outros também pareceu ser corrente. O genro Dr. Ovídio Trigo Loureiro conservava consigo as notas 36 de uma dívida de um comerciante uruguaio para com o seu sogro.
Outro exemplo de como as relações de parentesco estruturavam a atuação dos charqueadores nos mercados do gado na fronteira pode ser dado pela carta que o Comendador Heleodoro de Azevedo e Souza, do Cerro Largo, no Uruguai, remeteu ao charqueador Boaventura Rodrigues Barcellos, em 1855. Na mesma, ele relata os negócios que fez nos últimos meses, comprando-lhe gado no Uruguai e em Bagé, daonde remeteu tropas para o charqueador. Encerrando a carta, Heleodoro escreve: “Recomendo-me saudoso à comadre Silvana, meu afilhado e sobrinhos e a Vossa Mercê em particular por quem jamais deixarei de firmar-me por seu compadre amigo”.37 Quando se observa o processo de abastecimento de gado em outras empresas charqueadoras, casos semelhantes se evidenciam. O Visconde da Graça, por exemplo, tinha no seu filho Catão Lopes, estancieiro em Uruguaiana, um importante ajudante e fornecedor de gado. Catão era incumbido pelo pai de comprar tropas de gado e remetê-las para a charqueada. “A tarefa era eivada de dificuldades, motivo pelo qual se tornara privilégio de 36
Inventário de João Jacintho de Mendonça. Processo n. 41, maço n.1, Ano 1862, 2º Cartório do Cível de Pelotas (APERS). Este entrelaçamento entre parentesco e negócios, comum às sociedades agrárias e préindustriais, possuía raízes socioculturais antigas entre as elites da região. Ver, por exemplo, HAMEISTER, Martha D. Para dar calor à nova povoação: Estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. PPGHIS/UFRJ, 2006; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009. 37 Carte de Heleodoro de A. Souza para Boaventura R. Barcello. Fazenda do Palheiro, 06.01.1855. Registros Diversos de Pelotas, Livro n. 5, Pelotas (APERS). 299
grandes conhecedores”. Erros de cálculos podiam causar avultados prejuízos, pois, como não se usava balança, “o preço do boi, tendo por base o peso presumível, era calculado a olho” .38 A família do charqueador José Rodrigues Barcellos também apresentou transações comerciais como estas. Carla Menegat demonstrou que esta família possuía parentes estancieiros no Uruguai, de onde enviavam gado para as suas charqueadas mantendo a produção e o comércio de maneira conjunta.39 Poupo o leitor de outros exemplos, mas charqueadores como Felisberto Inácio da Cunha, Anibal Antunes Maciel, José Antônio Moreira e Jacinto Antônio Lopes, entre outros, também apresentavam este mesmo modelo de atuação no mercado de gado. Eram proprietários de fazendas na fronteira onde estabeleciam-se como grandes compradores de tropas por intermédio de filhos, irmão, compadres ou genros. Se os charqueadores buscavam colocar seus parentes e agentes de confiança em setores estratégicos da economia pecuário-charqueadora, as famílias de grandes criadores da campanha pareciam fazer o mesmo. Estudando os Assis Brasil, de São Gabriel, Tassiana Saccol percebeu que entre os irmãos fazendeiros, Antônio montava tropas para vender nas charqueadas de Pelotas. 40 Em Alegrete, um dos irmãos Ribeiro de Almeida também parecia estabelecer negócios neste mesmo sentido. O major Antônio Mâncio Ribeiro chegou a migrar para Pelotas onde estabeleceu-se como comerciante e fazendeiro e veio a casar dois filhos com os herdeiros do charqueador Joaquim Guilherme da Costa.41 Conforme Farinatti, os ricos estancieiros da fronteira também atuavam no comério de tropas e no prestamismo e realizavam tais empreendimentos em parceria com outros membros da família. 42 Portanto, é possível perceber que alguns grandes estancieiros arrematavam os novilhos dos pequenos produtores, formavam uma tropa e vendiam ao agente do charqueador ou para um determinado tropeiro, vindo a lucrar como criador e como negociante, visto que deveriam colocar uma taxa sobre o valor dos gados comprados de terceiros. Neste sentido, este mercado acabava se concentrando nas mãos de poucos grupos de agentes, atravessadores, criadores e negociantes, pois montar uma tropa e enviá-la para Pelotas exigia custos que somente poucos podiam financiar. Conforme Alvarino Marques, o deslocamento para as charqueadas envolvia 38
REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional.Caxias/Poa: UCS/ Martins Livreiro, 1981, p. 19. MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPGHistória UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009. 40 SACCOL, Tassiana Parcianello. Um propagandista da República: Política, letras e família na trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2013, p. 63. 41 FARINATTI, Luís A. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul.Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-RS, 2010. 42 FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 59-68. 39
300
um grande número de trabalhadores e mobilizava uma série de recursos necessários para a longa viagem, pois cada tropa trazia de 10 a 12 homens, para a sua condução e cuidado, e cada homem trazia, para sua montaria e reserva, de 5 a 8 cavalos. Além disso, o estancieiro tinha que garantir comida e hospedagem aos mesmos. É possível que os charqueadores também pagassem parte destes custos, conforme os tratos estabelecidos. Neste processo de formação das tropas, além dos agregados e pequenos criadores, até mesmo os escravos campeiros podiam colocar suas poucas reses no mercado. Pesquisando a escravidão na pecuária da campanha rio-grandense, Marcelo Matheus localizou um recibo de venda de uma tropa de gados no inventário post-mortem de um estancieiro.43 O documento lista 10 criadores que colocaram seus animais para formar a tropa. Entre os mesmos estavam os escravos Domingos e Manoel Mulato, com 8 e 5 animais respectivamente, a “afilhada” do senhor, que colocou 3 novilhos, e outros parentes. Cada um deles possuía a sua própria marca de gado registrada no documento.44 Além de comporem a maior parte dos proprietários da região da campanha45, a participação de agregados, médios e pequenos criadores era fundamental na formação das tropas de gado. Pesquisando o mesmo mercado de gado em Buenos Aires durante o colonial tardio, Juan C. Garavaglia notou que a maior parte dos rebanhos que chegavam nos 3 grandes currais da capital pertenciam aos menores criadores que vendiam suas tropas aos introductores, estes sim, os que remetiam-nas para os curraleros.46 Tanto charqueadores como saladeiristas dependiam de todo e qualquer gado (de
boa qualidade, obviamente), fosse de grandes invernadores, fosse de criadores pobres. Conforme Montoya, por exemplo, entre os credores arrolados no inventário post-mortem do saladeirista Francisco de Medina, estava “el pueblo de índios de Yapeyú” que cobravam 47 10.074 pesos referentes a 12.895 cabeças de gado que venderam ao empresário.
Portanto, num mercado extremamente inseguro, repleto de oportunistas e criadores arruinados, os charqueadores precisavam diminuir os riscos para manter os ganhos no final da safra. Aqueles mais bem estabelecidos na região da campanha, com bons sócios e agentes 43
O comprador das tropas era o capitão Antônio de Castro Antiqueira, filho do charqueador Domingos de Castro Antiqueira, o visconde de Jaguari. Este havia falecido em 1852, quando já não fabricava mais charque, arrendando a sua fábrica. É provável que Antônio tenha ajudado o pai na aquisição de tropas e continuava neste ramo de negócios nutrindo-se da rede mercantil e creditício legada pelo Visconde. 44 MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravidão, hierarquia social e alforria no extremo sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2012. A possibilidade de escravos campeiros criarem seus pequenos rebanhos e juntar seu pecúlio com a venda dos mesmos já foi atestada por outros autores. 45 GARCIA, Graciela. O Domínio da Terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2005; FARINATTI (2010). 46 GARAVAGLIA, Juan C. Op. cit., p. 81-85. 47 MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 26-27. 301
qualificados possuíam melhores condições de comprar tropas de gado gordo para suas fábricas do que os demais. Os menos preparados ou com menores recursos acabavam ficando com novilhos magros, tendo que os abater na falta de outros. Tratava-se de um processo interessante onde o capital econômico era convertido em capital relacional, visto que o bom gerenciamento de uma grande estância favorecia a ampliação da clientela na fronteira, para ser reconvertido em lucros, uma vez que a mesma clientela diminuía os riscos no processo de abastecimento de gado e aumentava as chances de compra das melhores tropas da campanha. Neste sentido, fica evidente que o charqueador não utilizava a sua estância no autoabastecimento de gado, pois, raríssimas vezes, os seus novilhos compunham mais de 5% do que ele abatia numa safra, como já mencionei. Mesmo contando com as crias de parentes e agregados que se utilizavam de suas terras, a maior parte do gado que ele abatia na charqueada era de outros criadores, muitos deles seus vizinhos ou proprietários nos mesmos distritos onde suas terras estavam distribuídas. No caso aqui estudado, a estância parecia funcionar como uma base estratégica do charqueador e de seus agentes fornecedores de gado. Mas a estância representava mais do que isso. Ser estancieiro no Rio Grande do Sul, possuir campos que fugiam de vista, muitos escravos a cavalo e animais em milhares, era sinal de prestígio social, visto a inserção dos grandes proprietários em outros espaços de poder e notabilidade. Além disso, os grandes estancieiros geralmente eram grandes senhores de escravos (para os padrões da região)48 e, por conta do seu poder nas localidades, eles simplesmente influíam de forma determinante no processo eleitoral de seus distritos rurais. No Rio Grande do Sul, o poder político e o poder militar andavam juntos. Mas se nem todo o grande estancieiro era um militar, praticamente todos possuíam parentes militares ou oficiais da Guarda Nacional. Isto lhes conferia outro grande poder: o de influir no recrutamento e na vida das pessoas pobres, controlar o contrabando e a passagem de gado na fronteira.49 Aqueles mais bem posicionados conheciam muitas pessoas, batizavam filhos de oficiais, arrumavam cavalos e soldados para as guerras e distribuíam favores diversos. Portanto, ser proprietário de uma grande estância potencializava os mesmos a concentrarem os 50 mencionados recursos materiais e imateriais nas mãos de sua família.
Neste sentido, é possível verificar um outro fator de diferenciação social, política e econômica entre os próprios charqueadores. Nem todos tinham condições de comprar uma 48
FARINATTI, Luís A. Op. cit. Este último tendeu a perder importância a partir dos anos 1850 (FARINATTI, Luís A. Op. cit.). A melhor pesquisa a cerca do papel do estancieiro naquela sociedade é o de FARINATTI, Luís A. Op. cit.. Para o seu papel na política local e regional ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. cit. 49 50
302
estância numa região distante (menos ainda no país vizinho), arcando com todos os gastos e prejuízos que as mesmas podiam apresentar. Portanto, manter-se no topo da elite charqueadora constituía-se num procedimento bastante dispendioso. Analisando os inventários post-mortem de todos os charqueadores para qual esta fonte foi localizada é possível verificar que somente uma pequena parcela teve condições de investir em tais bens. De 78 inventários post-mortem de charqueadores pelotenses abertos entre 1810 e 1900, somente 11 possuíam estâncias no Uruguai e 16 na região da campanha rio-grandense (sendo que 1 inventariado apresentava estâncias em ambas). Tratava-se de um grupo privilegiado de 26 charqueadores (33%) que estavam ou entre os mais ricos do grupo ou entre os de fortuna intermediária.51
Tabela 7.1 – Hierarquia de fortunas, rebanhos vacuns, títulos de nobreza e altos cargos políticos a partir da análise dos inventários de 51 charqueadores – (1845-1900)/ em libras esterlinas e percentuais (%) Faixas de fortunas
Inventários Estâncias no Estâncias na Rebanhos Título de Alta Uruguai campanha do superiores a nobreza política RS 2.000 reses Mais de 100 mil 4 (7,8) 50,0 100,0 100,0 100,0 100,0 De 50 a 100 mil
8 (15,7)
50,0
75,00
62,5
62,5
37,5
De 20 a 50 mil
13 (25,6)
23,1
7,7
7,7
15,4
23,1
De 10 a 20 mil
9 (17,6)
0
0
0
0
0
Menos de 10 mil
17 (33,3)
0
11,7
0
0
0
Fonte: CARVALHO, Mário T. de. Nobiliário Sul-rio-grandense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937; Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Livros de Notas do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas (APERS); VARGAS, Jonas M. Op. cit.
No outro extremo, os charqueadores menos ricos ou de fortuna mais modesta possuíam somente a sua charqueada em Pelotas e, em alguns casos, alguns terrenos, datas de matos ou chácaras no município. Portanto, nem todos eram grandes criadores de gado. Dos 78 inventários de charqueadores, somente 13 (16,6%) possuíam rebanhos superiores a 2.000 cabeças de gado, o que, conforme Farinatti, os qualificariam entre os grandes estancieiros na fronteira.52 Dos 12 charqueadores inventariados com fortunas acima de 50 mil libras, 9 eram proprietários de grandes rebanhos. Joaquim J. de Assumpção possuía 3.000 reses de criar, Felisberto I. da Cunha 4.330, José R. Barcellos tinha mais de 4.600, João S. Lopes mais de 51 52
Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS). Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Farinatti, Luís A. Op. cit. 303
7.000, João S. Lopes Filho mais de 8.500, José I. da Cunha era dono de 11.400 reses, Joaquim da S. Tavares tinha mais de 8.700 e José A. Moreira possuía 13.000 reses em seus campos. Mas o maior criador do grupo foi o coronel Anibal Antunes Maciel, que tinha mais de 34.000 cabeças de gado pastando em suas estâncias no Uruguai, como já mencionei. De acordo com Farinatti, que estudou Alegrete entre 1825 e 1865 (uma das regiões que concentrava os maiores criadores de gado do Rio Grande do Sul), os proprietários de rebanhos superiores a 5.000 reses compunham o topo da hierarquia social local.53 Neste sentido, estes charqueadores possuíam um número de reses que poderia competir tranquilamente com os principais estancieiros da fronteira. Desnecessário dizer que os mais ricos entre estes charqueadores também eram grandes escravistas e, juntamente com suas famílias, concentravam importante poder político e prestígio social não somente em Pelotas, como fora do município. De acordo com a Tabela 7.1 pode-se verificar que as famílias de charqueadores mais ricas também concentravam, por meio de seus parentes próximos, uma altanotabilidade social (medido, neste caso, somente com o título de nobreza) e um alto poder político (ministros de Estado, senadores e deputados gerais). E boa parte destas famílias eram proprietárias de grandes estâncias na região da campanha ou no Uruguai, além de possuírem grandes rebanhos. A tendência à concentração de riqueza fundiária, distinções sociais e poder político no interior do grupo é evidente. As duas últimas faixas de fortuna (50,9% dos charqueadores inventariados) praticamente não tiveram acesso ao recursos concentrados pelos de cima.54 Portanto, a inversão de capitais em grandes fazendas de criação de gado era um investimento cuja racionalidade não se pautava exclusivamente por interesses econômicos, embora este se constituísse no principal fator. Tendo em vista a natureza dos mercados de gado na fronteira, a posse de estâncias garantia um melhor acesso aos rebanhos dos vizinhos, ao mesmo tempo que fornecia um grande poder e prestígio social às famílias latifundiárias. E do quê interessava ter poder e prestígio social para um rico empresário escravista no meado do oitocentos? Se os charqueadores forem tratados como típicos homo economicus agindo no interior do mercado sempre em busca de maximizar seus ganhos perde-se parte importante da forma como os mesmos acumularam tamanha riqueza, pois sua capacidade em tornar-se elite e manter-se no topo desta hierarquia social também estava assentada na sua capacidade em 53 54
FARINATTI, Luís A. Op. cit. O perfil do patrimônio dos 12 mais ricos será tratado num outro capítulo. 304
mobilizar homens, impor seus projetos aos demais e ter a sua importância enquanto elite regional reconhecida pelo governo central, como demonstro a seguir.
7.3 ENTRE DEPUTADOS E GENERAIS OU DE COMO A GUERRA TAMBÉM SE CONSTITUIU EM UM RECURSO ECONÔMICO PARA OS CHARQUEADORES DE PELOTAS
A política expansionista levada a cabo pelo Brasil na fronteira sul sempre teve a resistência de grande parcela da população uruguaia. O resultado inevitável desta relação, herdada desde os tempos de D. João VI, traduziu-se em inúmeros conflitos entre proprietários rio-grandenses e uruguaios, além das autoridades militares e policiais de ambos os lados da fronteira. Tais contendas tiveram um grande impulso com a independência da República Oriental do Uruguai (em 1828), conquistada através de uma guerra contra o Brasil. 55 As reclamações dos rio-grandenses traduziam-se nas queixas contra a desapropriação de suas terras e da captura do seu gado. Durante a guerra civil uruguaia (1838-1851), o confisco destes mesmos bens para servirem ao exército oriental acentuou-se em proporções maiores. Um dos grandes motivos destes sequestros de bens foi a tentativa de recuperação econômica, liderada pelo presidente uruguaio Manoel Oribe, líder do Partido Blanco. Importante lembrar que o Uruguai havia abolido a escravidão em 12 de dezembro de 1842 e que, em 1846, uma outra lei ratificou a medida anti-escravista. Nesta época, os riograndenses que haviam migrado para Montevidéu durante a Guerra dos Farrapos e se estabelecido naquela cidade com seus saladeros ensaiaram o seu retorno para o Rio Grande do Sul, protegendo seu patrimônio e, principalmente, os seus escravos da nova lei. Chaves Filho e João Vinhas, por exemplo, foram atacados pela imprensa uruguaia, pois haviam tido alguns de seus escravos sorteados para serem vendidos ao Exército oriental, mas, antes que tal negócio se concretizasse, embarcaram os mesmos para Pelotas juntamente com todos os seus outros cativos. Atitude idêntica foi tomada pelo charqueador Cipriano Rodrigues Barcellos 55
Existem muitas pesquisas sobre as relações entre o Brasil e a região do Prata na primeira metade do século. Ver, por exemplo, ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPGHistória UFF, 2012; DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; BANDEIRA. L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e aformação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Brasília: UnB, 1998; ZABIELLA, Eliane. Op. cit.; SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit.; MIRANDA, Márcia E. Op. cit. 305
que, na noite anterior à assinatura do decreto abolicionista, embarcou seus 53 escravos para 56 Pelotas, provocando a ira de alguns jornalistas orientais.
Em abril de 1848, com o objetivo de fortalecer economicamente os saladeros uruguaios, assim como a pecuária a eles associada, Oribe proibiu a passagem de tropas de gado para o Rio Grande do Sul e encarregou as milícias fronteiriças de enquadrar como contrabandistas os transgressores.57 A decisão política de Oribe provocou uma diminuição das exportações de charque no Rio Grande do Sul, trazendo grande prejuízo aos estancieiros e charqueadores pelotenses. A quantidade de charque exportado na safra de 1848 só foi recuperada cerca de 20 anos depois.58 Por conta da queda das exportações e dos contínuos prejuízos econômicos, charqueadores, comerciantes e estancieiros rio-grandenses começaram a pressionar o Governo Imperial por medidas que garantissem a segurança das suas propriedades no Uruguai. Tais pedidos muitas vezes não eram atendidos ou ficavam na promessa de uma resolução diplomática, pois, algumas vezes, membros do governo alegavam que os conflitos diziam respeito às facções caudilhescas e, portanto, deviam ser resolvidos pelos mesmos na esfera do privado.59 Em 1849, Oribe deu um novo golpe nas ambições dos charqueadores brasileiros, ordenando que os escravos que trabalhassem nos seus saladeros em São Servando (no lado uruguaio da fronteira) fossem retirados da região caso contrário seriam considerados libertos. A determinação provocou o retorno de “quatrocentos escravos” para Pelotas e Jaguarão.60 Num documento desta época (talvez de 1850 ou 1851) foram listadas 10 saladeros (pertencentes a brasileiros) localizadas no lado uruguaio, próximas à fronteira, nas imediações de São Servando, Taquary, Arvedonda, Cebolatti e Olimar. Numa delas abatia-se anualmente de 12 a 15 mil reses, ou seja, seu número era significativo e suficiente para desviar muitas tropas de gado dos saladeros de Montevidéu.61 Portanto, com esta medida Oribe buscava beneficiar os saladeros da capital, retirando praticamente à força os charqueadores brasileiros estabelecidos naquela região.
56
MONQUELAT, A. F. Senhores da carne: charqueadores, saladeristas y esclavistas. Pelotas: Ed. Universitária/UFPel, 2010, p. 119-123; 151. 57 SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit. 58 Como analiso de forma mais aprofundada no capítulo posterior. 59 Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1.027 (AHRS). 60 Rio de Janeiro, 5 de maio de 1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1.027 (AHRS). 61 Documento que lista os charqueadores na fronteira com o Uruguai, s/d. (Coleção de manuscritos, Coleção Rio Grande do Sul, BN-RJ). 306
Enquanto os saques e agressões atingiam os proprietários brasileiros de menor notabilidade o clima de insatisfação mantinha-se controlado. Contudo, quando importantes famílias da elite rio-grandense foram atacadas, como os Silveira Martins, os Ferreira Bicca, os Rodrigues Ribas e os Araújo Ribeiro, as retaliações tomaram proporções irreversíveis. 62 A demora dos dirigentes da Corte em resolver estas contendas acabou estimulando os estancieiros a resolverem sozinhos aquelas questões. As mencionadas famílias começaram a apoiar as ações armadas na fronteira, onde estancieiros lideravam um bando de capangas saqueando os campos uruguaios. Estas ações ficaram conhecidas como califórnias e o seu principal líder foi o estancieiro rio-grandense Francisco José de Abreu, o Barão de Jacuí. Ele tomou a iniciativa após os saques promovidos contra as propriedades da família de sua mulher, os Araújo Ribeiro. As califórnias aterrorizaram o lado uruguaio da fronteira entre os anos de 1849 e 1851, transformando Jacuí no grande inimigo dos estancieiros orientais. 63 Numa de suas investidas, o Barão trouxe para o Rio Grande do Sul algumas tropas de gado que somavam mais de 6.000 reses – o suficiente para suprir 25% do gado abatido numa grande charqueada pelotense ao longo de uma safra.64 Diante desses acontecimentos, o aumento das pressões políticas e a ameaça de uma guerra privada de bandos armados rio-grandenses contra os caudilhos orientais agravou ainda mais as divergências entre os governos do Brasil e do Uruguai. A mobilização de deputados e senadores rio-grandenses revigorou-se e os mesmos passaram a requisitar não apenas uma maior proteção por parte do Império, seja militarmente, seja por meio de acordos diplomáticos com os orientais, como também uma guerra, como último recurso. Em 1851, deputados riograndenses como Pedro Rodrigues Fernandes Chaves e Joaquim José Afonso Alves, exerceram forte pressão para que uma guerra fosse realizada na fronteira. 65 Tratavam-se de políticos extremamente bem relacionados com as cúpulas de poder regional e central. Afonso Alves era o principal advogado de Pelotas. Além de ser aparentado com charqueadores, comerciantes e estancieiros, era importante membro da elite local, tendo sido vereador, juiz municipal, diretor do Asilo de órfãos e da Loja maçônica União e Concórdia. Reconhecido como um dos grandes representantes de Pelotas na Assembléia Legislativa e na Câmara dos deputados, no Rio de Janeiro, Alves era continuamente aclamado pelo JornalO Brado do Sul, 62
Rio de Janeiro, 7 de julho, 21 de julho, 14 de agosto de 1850. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1-027 (AHRS). 63 PALERMO, Eduardo. Vecindad, frontera y esclavitud en el norte uruguayo y sur de Brasil. In: Memorias del Simposio La Ruta del Esclavo en el Río de la Plata: su historia y sus consecuencias. Montevideu, 2003, p.91-114; SOUZA, Susana B.; PRADO, Fabrício. Op. cit. 64 Rio de Janeiro, 03.09.1849 e 03.10.1849. Avisos do Ministério de Estrangeiros - B.1-027 (AHRS). 65 BANDEIRA, L. A. Muniz. Op. cit., p. 69. 307
de propriedade do charqueador Domingos José de Almeida, pelo seu interesse na defesa dos negócios da região.66 Pedro Chaves pertencia a uma família de comerciantes e fazendeiros do Rio Grande do Sul. Havia estudado Direito em Coimbra, vindo a formar-se em São Paulo. Seguiu carreira na magistratura e, posteriormente, tornou-se Presidente da Província da Paraíba e desembargador na Relação de Pernambuco. Também teve carreira diplomática na Argentina e nos Estados Unidos. Mas Chaves também era conhecido pelo seu temperamento explosivo. Conservador ferrenho, perseguiu os Farrapos em 1835, tornando-se odiado pelos liberais. Em 1851, sentindo-se atingido pelas agressões dos uruguaios aos brasileiros, Chaves não mobilizou-se somente na Câmara dos deputados, onde exigia a guerra contra os “castelhanos”, mas também, a partir de intermediários no Rio de Janeiro, mandou vir um carregamento de rifles para o sul do Brasil, que foram transportados para a fronteira por meio de carretas. Deputado geral durante vários anos, candidatou-se ao Senado em 1853. Incluído na lista tríplice como um dos mais votados, conta-se que o Imperador não iria escolhê-lo para o cargo, preferindo o Barão de Porto Alegre. Entretanto, “notícias alarmantes de última hora, vindas do Sul, e ameaçadoras de movimento armado, no caso de ser preterido pela Coroa o popularíssimo chefe, determinaram a reconsideração do caso, e fizeram recair a escolha imperial sobre o nome de Pedro Chaves”. 67 A sua participação na compra de armas não me faz duvidar de tal fato. Por conta da sua feroz defesa do Império do Brasil e da propriedade de seus súditos, o “nobre” senador recebeu o título de Barão de Quaraí, em 1855. A honraria também deve ter sido favorecida pela rede de relações na qual Chaves estava inserido na Corte, na qual estavam Nabuco de Araújo e o Marquês de Abrantes, por exemplo. 68 Conforme Maria Fernanda Martins, frequentavam seguidamente o Salão de Abrantes, o Marquês de Olinda, Silva Paranhos, Tamandaré, Cotegipe, Zacharias, Ferraz, Sapucaí, Saraiva, Boa Vista, José de
O Brado do Sul (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Ver, por exemplo, as edições dos dias 20 e 31 de dezembro de 1859. 67 NOGUEIRA, Almeida. A Academia de São Paulo: tradições e reminiscências. São Paulo: Saraiva, 1977, 2.a ed., volume 1, p. 141-142. 68 “Algum tempo, era em sua casa e na do marquês de Abrantes, que mais se reunia a sociedade mundana, amiga de festas, do Rio de Janeiro. A liberdade era menor na suntuosa residência do marquês pelo tom formalista e europeu do anfitrião e pela maior freqüência da roda diplomática; mas a companhia era a mesma, e a convivência de Abrantes e de Nabuco foi diária, durante muitos anos. Formavam o centro dessa agradável sociedade, comum às duas casas, além dos chamados leões do Norte, Monte Alegre, Pedro Chaves (Quaraim), Dantas, Pinto Lima, Sinimbu, e outros amigos íntimos de Nabuco , como Madureira, Pedro Muniz, José Caetano de Andrade Pinto, o dr. Araújo, atual barão do Catete, com quem casará depois a marquesa de Abrantes ”. (NABUCO, Joaquim. Um estadista no Império.Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, v. II. p. 1108). 66
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Alencar, Torres Homem, Caxias e Mauá, entre muitos outros. 69 Deve ser destas reuniões que Pedro Chaves conheceu o Barão de Nova Friburgo, um dos cafeicultores mais ricos do Rio, vindo a casar sua filha com o filho do mesmo. A inserção de Pedro Chaves nocírculo dos grandes da Corte era acompanhada pelo seu irmão, o Dr. Antônio Rodrigues Fernandes Braga
– Desembargador na Relação do Rio e senador do Império. Por meio do matrimônio de seu filho, Braga uniu-se à família de Militão Máximo de Souza, o Visconde de Andaraí, rico banqueiro carioca, sócio do Barão de Mauá e de outros capitalistas da Corte.70 Braga e Chaves eram primos do Conde de Piratini, que, por sua vez, era cunhado de João Rodrigues Ribas. Este grupo era bastante articulado com outros políticos que vinham pressionando o governo por conta das desordens no Uruguai. José de Araújo Ribeiro, Diplomata brasileiro na França, e filho de um charqueador do vale do Jacuí, no Rio Grande, 71 também aliou-se aos mencionados políticos, pois sua família havia sido atacada no Uruguai.
Ribeiro era primo do mencionado Comendador João Ribas e, estando em Paris, ajudava a cuidar dos dois filhos deste, que estudavam na capital francesa. O tutor dos meninos era o Dr. Sebastião Ribeiro, filho do Marechal Bento Manoel Ribeiro que, graças ao apoio dado ao Império na Guerra dos Farrapos, conseguiu um emprego na Legação Brasileira. Sebastião era amigo de Pedro Chaves, de quem havia sido colega na Faculdade de Direito de São Paulo, e residia com Pio Ângelo da Silva, que estudava Medicina em Paris. Pio era irmão de Honório da Silva, dono de uma charqueada e uma estância no Uruguai. Nas cartas que Sebastião e Araújo Ribeiro enviavam para o Comendador Ribas, desenha-se uma rede de relações que envolvia o próprio Desembargador Braga, mencionado acima, além de grandes comerciantes. Numa delas, Sebastião mostra sua preocupação com a questão platina e o desejo de que os países do Prata continuassem em guerra: Estou sabendo com prazer que os Plenipotenciários inglês e francês no Rio da Prata não conseguiram pacificar aquelas Repúblicas: bem haja esse malogro, porque a paz daqueles países, nas atuais disposições de Rosas para com o Brasil, seria a guerra 69
MARTINS, Maria(1842-1889). Fernanda. ARio velha arte deArquivo governar: um estudo Conselho de Estado de Janeiro: Nacional, 2007. sobre política e elites a partir do 70 GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997. 71 Filho de charqueadores e proprietário no vale do Jacuí, Araújo Ribeiro formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1823, e logo que regressou ao Brasil deu início a uma carreira diplomática notável, tendo pertencido às legações brasileiras na Itália, França, Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. Depois de sua demissão da presidência da província, em 1837, voltou a exercer funções diplomáticas e em 1849, logo que retornou de Paris, foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul. Residiu boa parte de sua vida na Corte, onde gozava de enorme reputação e vivia cercado de intelectuais e políticos. Araújo Ribeiro também era sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e ao longo da vida ainda foi agraciado com o título de Visconde de Rio Grande. 309
para nós, e demasiadamente temos nós sofrido para que não nos aquebrante e inquiete a perspectiva de uma nova guerra. 72
Mas diante dos crescentes distúrbios na fronteira a guerra tornou-se inevitável. A insistência parlamentar e diplomática e a articulação das redes de relações políticas surtiu efeito. Desejando acabar com os conflitos na fronteira e deter o ímpeto expansionista do argentino Juan Manuel de Rosas, aliado dos blancos e com interesses sobre o território paraguaio, o governo imperial atendeu as reclamações dos rio-grandenses e decidiu intervir militarmente na região. De acordo com Francisco Doratioto, o fortalecimento de Rosas era visto pelo Brasil como uma ameaça à independência do Paraguai e do Uruguai e a existência de ambos os estados era uma garantia de que os rios platinos não seriam nacionalizados por Buenos Aires, ameaçando a livre navegação. Conforme o autor, era comum o Brasil acabar apoiando aquelas facções mais propensas a adotar uma política que defendesse a livre navegação dos rios e do comércio exterior. Daí provinha a aliança brasileira com os colorados no Uruguai, adversários de Oribe, e com o entrerriano Justo José de Urquiza, caudilho entrerriano que oferecia sérios entraves ao projeto Rosista. No início da década de 1850, os interesses do Império acabaram convergindo com o dos estancieiros rio-grandenses, pois ambos queriam destituir os blancos do poder. 73 Caxias foi convocado para comandar o Exército brasileiro e colocou na liderança das suas divisões os oficiais Bento Manoel Ribeiro, David Canabarro e Manuel Marques e Souza. Os três eram grandes proprietários de gado, de terras e de escravos na fronteira. Além disso, Marques e Souza era casado com uma neta do Visconde de Jaguari, um dos charqueadores mais ricos de Pelotas. Eles constituíam-se em genuínos representantes da elite regional no período. Sua capacidade de articulação política, mobilização de pessoas e a liderança pessoal que exerciam na província os colocavam entre os mais aptos a mediar as relações do Rio Grande com o governo central. Inteligente, Caxias sabia que precisa negociar com os mesmos e deve ter escrito a vários proprietários como eles para que o ajudassem na formação das tropas militares que invadiriam o Uruguai. Um dos seus destinatários foi o charqueador Domingos José de Almeida. Orgulhoso da tarefa que havia recebido, Domingos escreveu a outros amigos para que fizessem o mesmo:
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Carta de Sebastião R. de Almeida para Comendador João Ribas. Paris, 02.09.1847 (Correspondência do Comando Superior da Guarda Nacional de Rio Grande. Maço 36, AHRS). 73 DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 310
Compatriota e amigo, S. Exª o Sr. Conde de Caxias, Presidente da Província e Comandante em chefe do Exército, me incumbiu da honrosa comissão de convidar aos meus antigos companheiro de trabalhos para coadjuva-lo no afanoso empenho em que se acha de vingar os ultrajes que nossos compatriotas estabelecidos no Estado Oriental têm recebido das autoridades dele, de reclamar pronta indenização dos bens que lhes hão extorquido e de prefixar definitivamente os limites do Império com o referido Estado; e considerando eu a V. Mcê, possuindo ainda o patriotismo que desenvolveu e tanto se distinguiu quando oficial do Exército da extinta República Rio-grandense, o conjuro para sem perda de tempo, com a gente que puder reunir, apresentar-se àquele digno general, nosso sincero amigo (…).74
Ao final desta carta, o charqueador anexou uma lista intitulada: “Relação das pessoas que convidei para engrossarem as fileiras do Exército, a entrar em operações no Estado Oriental”. No total eram 64 indivíduos e, conforme o charqueador, havia gente de todo o tipo. O mais interessante é que ao lado de cada nome há informações a respeito da conduta e das “qualidades” dos convocados. Alguns tinham problemas com bebida, enquanto outros eram descritos como valentes e aptos para reunir cavalos. O major Jeremias foi avaliado como “terrível” e o capitão Januário Borges, homem de ordens de Antônio de Souza Netto (exgeneral republicano), “exercendo influência no distrito de sua residência, empregado no Exército chamará outros a ele”. Entre os mesmos estavam os filhos de Bento Gonçalves da Silva, o chefe farrapo de 1835, e alguns familiares de charqueadores de Pelotas, como Boaventura Teixeira Barcellos e os irmãos Soares da Silva. O último da lista era o próprio filho do charqueador, o Sargento Luís Felipe de Almeida, que Domingos pediu para ser colocado sob a proteção do próprioCaxias, “tratando-o como pupilo seu”, “daonde talvez volte um Coronel”.75 Juntamente com os indivíduos citados anteriormente, os oficiais que Caxias colocou para liderar o Exército e os seus principais apoiadores eram representativos da classe dos proprietários mais ricos da província. Superando as desavenças político-partidárias, eles tiveram um papel importante na pressão exercida sobre o Império do Brasil para a intervenção militar em Montevideu, no ano de 1851. Importante lembrar que vários deles eram exfarroupilhas, o que converge com o que Wilma Perez Costa já apontara, ou seja, a
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Carta de Domingos J. de Almeida a José Mariano de Mattos. In. Anais do AHRS, v. 3. CV-664. Carta de Domingos J. de Almeida a José Mariano de Mattos. In. Anais do AHRS, v. 3. CV 664 – CV 663. Domingos escreveu a Mariano de Mattos dizendo que tendo Caxias à frente do Exército “ninguém fica em casa”. Carta de 17.06.1851. In: Anais do AHRS, v. 3. CV 662. 75
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incapacidade do governo central em impor o seu projeto imperial sobre o Prata sem recorrer aos estancieiros do sul do Brasil, muitos deles ex-rebeldes.76 Com a vitória brasileira na Guerra contra Rosas e Oribe (1851-1852), charqueadores e estancieiros foram amplamente beneficiados. Os tratados impostos pelo Império aos derrotados possibilitaram aos rio-grandenses continuarem explorando economicamente as estâncias uruguaias, levando consigo os seus escravos campeiros que, devido à abolição no país vizinho, entravam como peões contratados.77 Os tratados apresentavam várias cláusulas, sendo que a proibição do confisco de terras, a tarifa de 25% sobre o charque uruguaio (tasajo) importado pelos portos brasileiros e a livre passagem do gado uruguaio para o território riograndense foram as mais comemoradas pelos estancieiros rio-grandenses e charqueadores pelotenses. 78 Com este favorecimento político à indústria charqueadora rio-grandense, a retomada da economia pelotense foi notável, ao contrário dos concorrentes orientais. Dos 37 saladeros que existiam no Uruguai em 1842, somente 3 ou 4 continuaram funcionando normalmente no início dos anos 1850. Além disso, a falta de bovinos, decorrente da longa guerra civil oriental, era um dos principais fatores da crise uruguaia. As mais de 6 milhões de cabeças de gado existentes no país em 1843 caíram para pouco menos de 1.900.000, dos quais 1/3 permanecia em estado selvagem.79 Depois dos tratados, as vendas de charque uruguaio despencaram de 618.926 arrobas para 126.062 arrobas, em 1854-55. 80 Ou seja, neste curto período as charqueadas pelotenses enfrentaram uma baixa concorrência. A escassez do charque no mercado brasileiro fez os preços do produto aumentarem bastante, favorecendo os pelotenses. 81 No entanto, nem a vitória na Guerra e nem a assinatura dos Tratados de 1851 foram suficientes para dar fim aos conflitos na fronteira. Com o término da campanha militar, juntamente com o confisco de gado, a violência armada e o bandoleirismo que dominava ambas as campanhas, outros problemas passaram a receber destaque nas centenas de 76
COSTA, Wilma Perez. A Espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: HUCITEC, 1996. 77 DORATIOTO, Francisco. Op. cit.; PALERMO, Eduardo. Secuestros y trafico de esclavos en la frontera uruguaya: estúdio de casos posteriores a 1850. Revista Tema Livre, n. 13, 2007; BORUCKI, A., CHAGAS, K., STALLA, N. Esclavitud y trabajo: Un estudio sobre los afrodescendientes en la frontera uruguaya, 18351855. Montevideo, Ed. Pulmón, 2004. 78 ZABIELLA, Eliane. Op. cit. 79 BANDEIRA, L. Muniz. Op. cit., p. 74-75. 80 ZABIELLA, Eliane. Op. cit., , p. 54. 81 Os dados de exportação e os preços serão tratados no capítulo posterior. 312
correspondências trocadas entre as autoridades administrativas e diplomáticas de ambos os países. O recrutamento forçado nos dois lados da fronteira, a fuga de cativos para o Estado Oriental (onde eram considerados livres) e o sequestro de negros livres para serem escravizados no Brasil, entre outros, cada vez mais recheavam as páginas dos jornais, relatórios oficiais e cartas trocadas entre as autoridades. 82 Portanto, a mencionada conjuntura não representou um período de paz na fronteira. Em fevereiro de 1854, por exemplo, o charqueador Manoel Francisco Moreira entregou 500 onças de ouro a um agente comissionado para que lhe comprasse gado no Uruguai. Tendo feito a compra de 260 novilhos, o mencionado empregado foi atacado quando retornava para o Rio Grande do Sul, sendo “preso e conservado em estacas” pelo General Fructuoso Rivera. O charqueador reclamou um prejuízo de 15:000$ de réis nos seus negócios.83 Outros casos de saques a comerciantes de gado foram denunciados na mesma época. Mas em abril de 1856, o charqueador pelotense Honório Luís da Silva foi atacado por outro motivo. As autoridades uruguaias denunciavam-no de estar praticando contrabando na fronteira. Verdade ou não, o fato é que além de sua lancha, Honório também teve as suas mercadorias e seus “domésticos” apreendidos – provavelmente seus escravos. Estes estavam 84
acompanhados dos “remeiros” do charqueador. A questão envolvendo os escravos fugidos para os países platinos esteve entre as principais reclamações de ambos os lados da fronteira.85 E os charqueadores não estiveram indiferentes a este problema. Entre os proprietários que tiveram escravos fugidos para as regiões do Prata, numa listagem elaborada em 1850, localizei 8 charqueadores, que somavam 31 cativos. Não se tratava de um número tão grande, visto o enorme contingente de escravos concentrados nas fábricas pelotenses. Mas era o suficiente para alertar os demais empresários, visto que entre estes charqueadores estavam homens ricos e influentes como Joaquim José de Assumpção, João Simões Lopes e o Visconde de Jaguari.86 Além disso, como foi visto, muitos charqueadores possuíam estâncias no Uruguai e, é provável que, a exemplo do
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Ver, por exemplo, a correspondência do Governo do Rio Grande do Sul com a Secretaria do Ministério dos Negócios Estrangeiros entre 1852 e 1863 (Arquivo Histórico do Itamarati) e os códices B.1.027 até o B.1.032, do fundo Avisos do Ministério de Estrangeiros (AHRS). 83 Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1854. Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-028). AHRS. 84 Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1854. Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-028). AHRS. 85 Ver, por exemplo, os Avisos do Ministério de Estrangeiros (B.1-027 ao B.1-032 (AHRS)). 86 Relação e descrição dos Escravos (por proprietários) fugidos para Entre Rios, Corrientes, Estado Oriental, República do Paraguai e outras províncias brasileiras. Estatística. Documentação Avulsa. Maço 1. AHRGS. 313
charqueador João Jacintho de Mendonça, também utilizassem escravos (como peões contratados) para o trabalho em seus campos.87 Se por um lado os uruguaios eram atacados por capturar e recrutar os peões negros contratados dos estancieiros rio-grandenses na região (na realidade, seus escravos), os brasileiros também eram acusados de escravizar negros livres no Uruguai, vindo a remetê-los para o Brasil.88 Em junho de 1862, por exemplo, o negro Moisés conseguiu a liberdade após sua mãe denunciar às autoridades policiais de Pelotas que ele era nascido livre e havia sido raptado no Estado Oriental, sendo vendido como escravo no Rio Grande do Sul. O responsável pela captura de Moisés no Estado Oriental foi o charqueador Wenceslau José Gomes. Conforme o delegado, o comprador, Honório Luís da Silva, teria suspeitado da “srcem viciosa de semelhante escravidão” e colaborou c om a polícia devolvendo Moisés às autoridades.89 Honório também era charqueador em Pelotas. Se as perseguições e violências continuavam afetando as propriedades de riograndenses na fronteira, em 1857 o governo uruguaio conseguiu desfechar um grande golpe na concorrência pelotense. Defendendo a recuperação de sua indústria, o Uruguai exerceu forte pressão diplomática para que alguns pontos do Tratado fossem reformados. Em setembro de 1857 um tratado de modificação liberava de impostos o charque e demais produtos platinos entrados no Brasil por via marítima.90 Com esta medida, as exportações do charque rio-grandense despencaram na safra de 1858. E se não bastasse, naqueles mesmos anos, a província exportou mais gado para o Estado Oriental do que recebeu. A redução do número de tropas vindas do Uruguai, do charque exportado e do seu preço no mercado eram os termômetros da economia pelotense e ela vinha mal em todos estes aspectos. 91 Uma das explicações para tal fenômeno econômico foi a retomada das exportações uruguaias e 87
BORUCKI, Alex; STALLA, Natalia; CHAGAS, Karla. Op. cit. Nos últimos anos, muitas pesquisas vem se dedicando a investigar as relações escravistas na região da fronteira rio-grandense e uruguaia, assim como as fugas, a reescravização e os contratos de peonagem. Ver, por exemplo, BORUCKI, Alex; STALLA, Natalia; CHAGAS, Karla. Op. cit.; PALERMO, Eduardo. Op. cit.; GRINBERG, Keila. Escravidão e relações diplomáticas Brasil e Uruguai, século XIX. In: Anais do 4º 88
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Curitiba, 2009, p. 1-9; LIMA, Rafael Peter de. “A nefanda pirataria de carne humana”: escravizações ilegais e relações políticas na fronteira do Brasil
meridional (1851-1868). Porto Alegre: PPG-História UFGRS, Dissertação de Mestrado, 2010; CARATTI, Jonattas. O solo da liberdade: as trajetórias de preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira riograndense em tempos de processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: UNISINOS, Dissertação de Mestrado, 2010; ARAÚJO, Thiago L. de. A escravidão entre a guerra e a abolição: o impacto das fugas e os pedidos de extradição de escravos nas fronteiras platinas (década de 1840). Anais do VI Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil meridional , 2013. 89 “Autuação do ofício do Vice Consul da República Oriental para indagações a respeito do preto Moisés”. Processo n. 608, m. 14, Tribunal do Júri, Rio Grande, Caixa 314 (APERS). 90 ZABIELLA, Eliane. Op. cit., p. 60 -61. 91 Os mercados importadores e as flutuações do preço do pr oduto serão tratados no capítulo posterior. 314
92 argentinas que fizeram os preços do produto baixarem novamente. A grande quantidade de
charque produzido no período provocou uma crise de super-produção no setor. 93 Os charqueadores começaram a exigir o aumento dos impostos sobre o charque platino para evitar a concorrência considerada desleal. Segundo o parecer da Seção de Estrangeiros do Conselho de Estado, o governo imperial até poderia lançar mão de taxas“proibitivas” sobre o charque oriental, mas: A seção (…) entende que seria esse um remédio, se bem que favorável aos produtores da província do Rio Grande do Sul, contudo, prejudicial ao resto da população, atenta à carestia sempre crescente dos gêneros alimentícios. O charque é alimento geral, preferido pelas muitas excelentes qualidades que tem, por toda a nossa população menos abastada, muito principalmente nos lugares onde não se corta carne verde. Constitui a alimentação diária e quase exclusiva de famílias inteiras e da escravatura das nossas fazendas, pelo que pode ser considerado como matéria-prima para a nossa única produção, que é a da lavoura, e que já luta contra tantas dificuldades! (…) Não é justo que os [produtores] das províncias do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e outras paguem mais caro o charque com que mantêm os braços que empregam, para que, livres da concorrência, colham maiores benefícios os do Rio Grande do Sul.94
O recado estava dado. De fato, o charque era consumido por grande parte da população pobre das grandes cidades costeiras e, tendo em vista a carestia de alimentos que afetou a população urbana do Rio nos anos 1850 (até o Imperador criticou os monopolistas cariocas pelo excessivo preço do charque na Corte), era necessário abrir o mercado aos concorrentes platinos.95 Contudo, por trás desta preocupação também estava claro que os grandes proprietários de escravos queriam reduzir os custos de suas plantations, criando uma verdadeira polêmica ao redor do assunto, uma vez que até os conselheiros de Estado, agora envolvidos, deixavam isto bem claro. Esta postura do governo central, que 10 anos antes já havia encarado uma guerra por conta dos conflitos envolvendo proprietários rio-grandenses no Uruguai, desagradou muito aos pecuaristas da província sulina. Sem dúvida, o charqueador mais exaltado deste período foi Domingos José de Almeida. Ele já havia participado de forma marcante da Revolta dos Farrapos (1835-1845), tornando-se ministro da Fazenda da República Rio-grandense, e depois ajudou Caxias a arregimentar soldados para a intervenção brasileira no Uruguai, em 1851. 92
Tratarei destes dados no capítulo seguinte. Jornal O Constitucional, 07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro); BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit.. p. 118-130). 94 O Conselho de Estado e a política externa do Império: Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (1858-1862). Rio de Janeiro: CHDD, 2005, p. 281-282. 95 GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (1850-1880).Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992. 93
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Desta vez, Domingos criou o jornal “O Brado do Sul” (em 1859), onde frequentemente atacava a política do Governo Imperial para com a economia rio-grandense. No editorial do dia 29 de março daquele ano, ele fazia um apelo aos deputados gerais rio-grandenses para defender a causa da província na Corte e afirmava que a indústria do charque havia se animado nas épocas de guerra no Prata, “dando grandes lucros aos charqueadores e influindo beneficamente sobre todo o giro do nosso comércio”. Em seguida: “Hoje, porém, tendo o governo provavelmente tomado a decisão de aniquilar de uma vez o Rio Grande, sufocando a par do seu comércio, morto pelo contrabando, também a sua indústria”. Para Domingos, ao não taxar o charque platino, percebia-se “quão pouco o governo conosco se importa e conta”. E ao final do longo editorial ele ameaçava: “ Sem medidas tais é inevitável a completa ruína de nossa indústria e sucumbindo na mesma ocasião o nosso comércio ao contrabando, o que restará à pobre província do Rio Grande do Sul? A miséria e a fome (já o dissemos) são a revolta”.96 Além do periódico, a leitura da correspondência do charqueador revela que ele mantinha contato com muitos oficiais militares e da Guarda Nacional, como Manoel Luís Osório e David Canabarro, além de estancieiros com reconhecido prestígio na fronteira como Antônio de Souza Netto. Em carta de outubro de 1862, o charqueador reclamou para este: “General, o aspecto moral, financeiro e político de nosso país par te em pedaços o coração de quem o ama”.97 Os destinatários de Domingos eram muitos, mas os deputados Félix da Cunha, Barão de Mauá, Affonso Alves e Manoel Lourenço merecem destaque por se tratarem de intermediários políticos do charqueador tanto em Porto Alegre quanto na Corte. Eram deputados que ele ajudou a eleger pedindo votos a fazendeiros e comerciantes, como revela uma carta que escreveu ao General Canabarro.98 Contudo, o comportamento exaltado de Domingos era a exceção e não a regra entre os charqueadores. Estes, sem dúvida anivamavam-se com as guerras nos países vizinhos, pois as mesmas prejudicavam a indústria concorrente. Muitos deles haviam apoiado as campanhas de 1825-1828 e 1851-52, mas, no geral, não nutriam tamanha revolta contra o Império. Isto devia deixar Domingos bastante desapontado, ao ponto de reclamar para um amigodos “oligarcas de Pelotas”.99
96
Jornal O Brado do Sul, Pelotas, 29.03.1859 (BN-RJ). Carta de Domingos J. de Almeida para Antônio de S. Netto. Anais do HRS, v. 3, CV-788. Além disso, os próprios filhos de Domingos lidavam diretamente com estes chefes, como por exemplo, nas cartas em que menciona os encontros do jovem Epaminondas com Osório e de Junius Brutus com o próprio General Neto, em Montevideu. 98 Carta de Domingos J. de Almeida para David Canabarro, Pelotas, 06.09.1862. Anais do HRS, v. 3, CV-731. 99 Num capítulo posterior tratarei da divisão política que reinava entre os charqueadores. 97
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Entre 1861 e 1862, o revigoramento econômico uruguaio teve outro importante impulso, quando Bernardo Berro, chefe político blanco, declarou o fim do prazo legal do Tratado de comércio que permitia o trânsito de gado uruguaio para o Rio Grande do Sul e, além disso, instituiu uma lei que proibia contratos com peões negros por mais de 6 anos. Por tais motivos, os primeiros anos da década de 1860 trouxeram uma nova crise para as charqueadas pelotenses, seguida de uma grande quebra entre os charqueadores – que será analisado posteriormente. Entre 1861 e 1864, a onda de perseguições aos brasileiros residentes no norte do Uruguai acentuou-se bastante. Em 1863, o próprio irmão do General Netto teve sua estância no Uruguai atacada. Em 1864, o ex-farroupilha David Canabarro, que era homem de confiança do Império, já começava a desobedecer as ordens vindas da Corte, protegendo os bandos armados de Venâncio Flores em suas terras na fronteira. 100 O clima de descontentamento e a falta de habilidade de alguns diplomatas e estadistas em lidar com estas questões condicionou um novo rearranjo das alianças políticas na fronteira. Como resposta às medidas do governo de Berro contra os rio-grandenses residentes no Uruguai, o líder colorado Venâncio Flores reuniu facilmente o apoio dos estancieiros riograndenses e tomou uso dos mesmos para defender os interesses de sua facção política no Uruguai. Tratava-se de uma aliança com interesses mútuos e ao Império era interessante enfraquecer os blancos. Um conflito militar era questão de tempo, mas era preciso insuflar os ânimos dos dirigentes políticos do País.101 Na Corte, Felipe Nery, deputado pelo Rio Grande do Sul e autodeclarado representante do General Netto, disparou diversos discursos incitando a invasão ao território uruguaio.102 Na mesma época, outros dois deputados gerais riograndenses, Gaspar Silveira Martins e Félix da Cunha, juntaram-se ao brigadeiro Manoel Luís Osório e, na Corte, foram reclamar do mesmo. Na cúpula do poder imperial, eles tinham como aliados os deputados José Bonifácio e Francisco Brusque (rio-grandense, ex-ministro da Guerra e também pertencente a uma família de charqueadores), e os deputados Francisco Otaviano e Martinho Campos, como o próprio Felix da Cunha declarou em uma missiva de julho de 1864 ao General David Canabarro.103 Este, na sua estância na fronteira, acompanhava tudo numa intensa circulação de cartas que tinha nos charqueadores Domingos Almeida e Manoel Lourenço do Nascimento (este também deputado provincial) alguns de seus informantes. Portanto, este grupo de políticos e proprietários exerceu constante pressão 100
Avisos do Ministério de Estrangeiros, AHRS, B.1.0.32. DORATIOTO, Francisco. Op. cit. CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo político no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 159. 103 Carta de Félix da Cunha para Canabarro. Rio de Janeiro, 26.07.1864. AHRS, CV-3438. 101 102
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política nos bastidores da Corte ao longo dos meses que antecederam à intervenção militar do Exército Brasileiro no Uruguai em 1864. Conforme César Guazzelli, decidido a acabar com as tropelias dos blancos de uma vez por todas, o General Netto (que já contava com centenas de homens armados na fronteira prontos para atender as suas ordens), foi até o Rio de Janeiro fazendo-se porta-voz dos “direitos de 40 mil brasileiros” residentes na Banda Oriental e numaaudiência com líderes políticos da Corte, os colocou num verdadeiro impasse. Se o Exército não invadisse Montevidéu, os próprios rio-grandenses o fariam por sua conta, ameaçou o General. Motivado por outras questões de ordem política e diplomática, o Império decidiu atender às reclamações dos proprietários rio-grandenses evitando uma nova guerra civil no sul do País.104 Em abril de 1864, os diplomatas brasileiros exigiram que Atanásio Aguirre, o novo presidente Blanco, punisse as autoridades responsáveis por perseguir os rio-grandenses, caso contrário o Brasil seria obrigado a interferir militarmente. O Paraguai, defendendo a aliança feita com os blancos, protestou contra a ameaça brasileira. Executando o que havia prometido, em setembro, as tropas imperiais cruzaram a fronteira com o Uruguai. Dois meses depois, Solano Lopez respondeu mandando aprisionar o vapor brasileiro Marquês de Olinda, vindo a invadir o Mato Grosso em dezembro. As guerras envolvendo os países platinos sempre foram benéficas à indústria pelotense, pois traziam prejuízo aos saladeros. Durante à Guerra da Cisplatina (1825-1828), por exemplo, os charqueadores pelotenses, juntamente com comerciantes e estancieiros riograndenses, emprestaram vultosas quantias ao Estado, com o fim de financiar a Guerra. 105 Em 1851, como demonstrei, eles também apoiaram a intervenção militar em Montevidéu com capitais e homens. Em 1864, seu posicionamento não foi diferente. Mas a campanha militar tomou proporções que ninguém esperava. Os rio-grandenses não queriam nada além da deposição do governo blanco, a segurança de suas propriedades e indenizações aos mesmos. Como a vitória brasileira na Guerra contra Oribe e Rosas, em 1852, havia trazido benefícios imediatos aos proprietários de terra e charqueadores rio-grandenses, criou-se uma expectativa de que uma nova intervenção militar iria cessar com os conflitos na fronteira e revigorar a
104
GUAZZELLI, Cesar Augusto B. A Guerra do Paraguai e suas implicações na história e na sociedade da Bacia do Prata. In: Anais do I Encontro de História Brasil-Paraguai. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2002, p.299-351. Para uma visão mais voltada às relações políticas entre os Estados platinos e aos aspectos econômicos ver DORATIOTO, Francisco. Op. cit; BETHELL, Leslie. O Imperialismo britânico e a Guerra do Paraguai. Estudos Avançados, n. 9, v. 24, 1995, p. 269-285. 105 MIRANDA, Márcia E. Op. cit., p. 301-304. 318
economia rio-grandense.106 Um panfleto intitulado “Revista da Praça Comercial de Pelotas, 31 de outubro de 1864”, que localizei entre os papéis de um negociante estabelecido em São Gabriel, na campanha rio-grandense, queixava-se da falta de gado em Pelotas, mas previa dias melhores: GADOS – Não tivemos entradas, porém consta que no futuro mês de Novembro entrarão muitas tropas. Complicada à situação política do Estado Oriental com a passagem do Exército Brasileiro, é de supor que ali não possam trabalhar as 107
charqueadas, a que dará muita animação a este ramo de nossa indústria.
E, de fato, os profetas acertaram. O desencadear da Guerra propiciou o maior boom da história das charqueadas pelotenses. A safra de 1867/68 abateu quase 500 mil reses e atingiu o grande pico das exportações de charque. É bem verdade que esta safra também foi favorecida pela epidemia de cólera no rio da Prata e pela Revolução Florista (1863-1865) no Uruguai (guerra civil na qual os colorados, apoiados pelos rio-grandenses, tiraram os blancos do poder), que devastou os campos do país vizinho, prejudicando a sua economia.108 Alguns comerciantes e charqueadores emprestaram significativas quantias ao Império para financiar a campanha militar, libertaram alguns de seus escravos para servirem ao Exército e ajudaram a mobilizar soldados em Pelotas. São exemplos deste protagonismo, os proprietários João da Silva Tavares, Felisberto Inácio da Cunha, João Simões Lopes Filho e José Antônio Moreira. Todos eles receberam títulos de nobreza, como gratificação pelos seus serviços prestados à Coroa brasileira. 109 Além disso, muitos charqueadores devem ter lucrado economicamente, pois as tropas militares também eram abastecidas com charque.110 Mas a campanha no Paraguai também ofereceu ganhos não apenas aos charqueadores como também a comerciantes, banqueiros e criadores de gado. O Barão de Mauá, que sempre lucrou com o imperialismo brasileiro no Uruguai, possuía uma agência bancária em meio ao acampamento
106
A aliança entre Flores e os estancieiros rio-grandenses estendeu-se ao Governo Imperial e à República
Argentina, sob a liderança de Bartolomé Mitre. Concomitantemente, Berro buscou criar um novo equilíbrio de forças no Prata, estabelecendo um eixo Montevidéu-Assunção e uma possível associação com as províncias dissidentes da Argentina, principalmente Entre Rios e Corrientes. Era de conhecimento de todos que o entrerriano Urquiza mantinha estreitas relações com Solano Lopez. Apostando nestas possíveis alianças, Berro enviou um emissário para negociar o apoio do Paraguai no caso de um enfrentamento militar. Apesar do acordo não ter sido oficialmente firmado, o presidente paraguaio demonstrou-se interessado na aproximação com o partido Blanco e uma possível utilização de Montevidéu como porto comercial. 107 Arquivo particular de Porfírio Metello, Museu João Nunes (São Gabriel). 108 BARRAN, José P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. 109 CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937. Ver Barão de Butuí, Barão de Correntes, Visconde da Graça e Visconde de Serro Alegre. 110 FIGUEIRA, Divalde G. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai.São Paulo: Humanitas/USP, 2001. 319
aliado. Além disso, o seu parente José Cardoso de Salles arrematou vários contratos de abastecimento de víveres para o Exército. 111 O fim da Guerra trouxe uma enxurrada de títulos de nobreza aos rio-grandenses. As principais famílias de charqueadores estabeleceram alianças parentais com oficiais militares e milicianos que lutaram na Guerra, isto quando já não os tinham entre os seus próprios parentes próximos, como os Silva Tavares e os Antunes Maciel. O visconde da Graça e o barão de Corrientes foram ainda mais longe e eles próprios tornaram-se Coronéis, ocupando o Comando Superior da Guarda Nacional de Pelotas nas décadas de 1870 e 1880. Tratava-se de algo bastante interessante considerando-se que os charquedores formavam uma pequena elite cujo ethos primava pela civilidade e os bons costumes da vida urbana, onde patrocinavam as artes e compatilhavam de uma cultura europeizada, como tratarei adiante. Paradoxalmente, era uma elite grata aos generais que lhe proporcionaram vultosos lucros durante a Guerra. Guerra que mobilizou um enorme contingente de soldados, ceifou milhares de vidas e trouxe uma dívida ao Império, da qual ele nunca se recuperou. A gratidão para com os generais era material e simbólica. Logo que o conflito acabou, o charqueador Moreira emprestou dinheiro para que o General Osório reabilitasse os negócios de sua estância e, pelo que se verifica em 112
seu inventário, ele nunca deve ter pago. Não surpreende que entre os móveis da casa do visconde da Graça estava um busto do Duque de Caxias, e que outro charqueador, o Sr. Joaquim Rodrigues da Silva, possuía um retrato à óleo do General Venâncio Flores como decoração em sua sala.113 Contudo, alguns dos charqueadores mais ricos de Pelotas não precisaram recorrer aos mencionados “souvenirs” para terem em sua própria casa a presença daqueles “heróis”. José Antônio Moreira e Joaquim José de Assumpção (Barões de Butuí e do Jarau) casaram suas filhas com os filhos do General Osório (depois da Guerra, o Marquês do Herval) tornando as reuniões de família um verdadeiro encontro de nobres. A família Osório ainda “arrematou” outra herdeira de charqueadores para um de seus filhos, quando o casou com uma Antunes Maciel, família que também aparentou-se aos Moreira, por meio dos casamentos. Tendo em vista que Jarau era cunhado do Visconde da Graça, temos aqui os 4 charqueadores mais ricos
111
FIGUEIRA, Divalde. Op. cit.; VARGAS, Jonas Moreira. O Rio Grande do sul e a Guerra do Paraguai. In: GRIJÓ, Luiz Alberto; NEUMANN, Eduardo (Org.). O continente em armas: uma história da guerra no sul do Brasil. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 123-152. 112 Inventário do Barão de Butuí. Pelotas. Cartório de órfãos e provedoria, 1877, APERS. 113 Inventário Visconde da Graça, n. 1.254, m. 69, 1893, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS); Inventário do Visconde da Graça; Jornal do Comércio de Pelotas, 02.07.1881 (BPP). 320
de Pelotas praticando uma apreciável endogamia sob à bênção não apenas do sacerdócio local, como também dos generais, dos contrabandistas de gado e do próprio Imperador...
7.4 VESTÍGIOS DE UMA CRISE ANUNCIADA: A TABLADA PELOTENSE Para fechar este capítulo retorno ao mercado de gados, mas, desta vez, analisando a tablada – a feira de gados que acontecia durante toda a safra dentro do próprio município de Pelotas, num raio de 2 Km das charqueadas.114 As melhores descrições sobre atablada foram
feitas por Louis Couty (1880), Herbert Smith (1882) e o Coronel Zeferino da Costa (cujas memórias foram escritas no início do século XX). Tais escritos oferecem uma descrição sobre a dinâmica do comércio do gado da tablada – que, nas palavras de Smith, era um descampado extenso e quase liso, onde de dezembro a maio se vendiam as tropas de gado que chegavam a Pelotas.115 É provável que a tablada não tenha funcionado sempre da mesma forma e que, após a Guerra do Paraguai, a sua importância tenha aumentado para os charqueadores. Couty mencionou que houve uma época em que os charqueadores confiavam mais no sistema de tropeiros e agentes (aquele que analisei no início deste capítulo), mas que, no início dos anos 116 1880, a tablada já havia se tornado o principal mercado de gados para os charqueadores.
O coronel Zeferino Costa pertencia a uma família de corretores de gado em Pelotas e viveu durante anos nas proximidades da tablada. Rememorando as últimas décadas do século XIX, ele escreveu: “Era a tablada a feira mais interessante que já vi. Ali reuniam -se, diariamente, todos os charqueadores. Ali, desfilava a pecuária inteira do Rio Grande”. A feira iniciava-se às 7 horas e encerrava-se às 12 horas, quando os animais eram recolhidos ao pastoreio por peões conhecidos da própria localidade. Durante as negociações, “dez, vinte, trinta tropas ali se aglomeravam, em reduzido espaço. Cada uma delas era rodeada e vigiada pela peonada que a conduzia da estância para evitar o ‘entrevero’”. Conforme o Coronel, havia tropeiros de toda a parte: “Que diversidade de gente. Uns, vinham das Missões, de São
114
COUTY, Louis. Op. cit., p. 135. SMITH, Herbert. Do Rio de Janeiro à Cuiabá. São Paulo: Melhoramento, 1922. As memórias do Coronel Zeferino foram reproduzidas por PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria pastoril do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: Livraria Continental, s/d, p. 110-120. Ainda não foi possível verificar quando a tablada foi inaugurada na cidade. De acordo com Berenice Corsetti, ela foi instituída na década de 1880 (CORSETTI, Berenice. Op. cit., p. 180), mas conforme Ester Gutierrez, ela já existia desde a década de 1820 (GUTIERREZ, Ester. Op. cit., p. 59). De fato, localizei referências à tablada muito antes de 1880, mas é provável que ela deva ter sofrido modificações no seu funcionamento ao longo do período e que sua importância enquanto mercado de gado tenha aumentado nos anos 1870. 116 COUTY, Louis. Op. cit., p. 136. 115
321
Luiz, São Borja, de Cima da Serra, do Alto Uruguai, com 35 e mais dias de viagem; outros, do Estado Oriental; muitosde Cachoeira e Rio Pardo; e não poucos da fronteira”.117 As memórias do Coronel devem fazer referência ao final da década de 1870 e início dos anos 1880, pois ele menciona os escravos que os charqueadores levavam até o leilão e a presença de rebanhos vindos do norte da Província. Ora, Alvarino Marques diz que os rebanhos desta região só integraram-se ao mercado pelotense a partir dos anos 1870 e 1880.118 É possível que a compra do gado da região norte da província buscasse sanar a diminuição dos rebanhos vindos do Uruguai. Conforme Barran e Nahum, a Guerra Civil no Uruguai entre 1870 e 1872 foi ainda mais prejudicial à economia do país do que a Revolução Florista (18631865), sendo que, desta vez, exterminou boa parte dos rebanhos orientais.119 Soma-se a isto o fato de que o Rio Grande do Sul já não contava mais com os antigos tratados de comércio totalmente favoráveis a extração do gado uruguaio. Neste sentido, é provável que uma saída para os charqueadores foi tentar comprar os rebanhos do norte da província para compensar a diminuição do gado vindo do Uruguai. Sobre o funcionamento da tablada o Coronel também deixou registrado: “No dia da entrada de tropas na tablada, os tropeiros gaúchos envergavam os seus melhores trajes e encilhavam os seus mais lindos ‘pingos’. Era o desfile da competição dos melhores e mais gordos gados, dos mais belos e invejados corcéis de cola atada e tosados a cagotilho”.120 Era a tentativa de valorizar os seus rebanhos em comparação aos dos concorrentes. Sobre o ambiente da feira de gado, Smith escreveu: “Rudes gaúchos, vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas ou bombachas e ponchos riscados, galopam em todas as direções, 121 conservando os animais nos lugares e impedindo que se misturem as tropas”.
Expostos os animais, iniciavam-se as negociações. Intermediando as transações entre os estancieiros e os charqueadores estavam os comissários de gado. Estes iniciavam a sua atividade diária oferecendo os novilhos e recolhendo as ofertas. Antigos e conhecidos comissários de gado possuíam seus escritórios cheios de negociantes e tropeiros, “onde o chimarrão, os comentários, as peripécias da longa viagem, os chistes– corriam a roda”.122 Um 117
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 111. MARQUES, Alvarino. Op. cit. 119 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. 120 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120. 121 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. p. 112. 122 O fato é que a compra do gado era um fator fundamental para o início das safras e qualquer problema que alterasse a rotina dos criadores, como as guerras, as epidemias e as secas podiam afetar a produção dos estabelecimentos. A partir dos anúncios dos jornais é possível verificar a presença de comissários oferecendo seus serviços aos charqueadores. Em dezembro de 1890, o Diário Popular publicava o seguinte anúncio: 118
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dos mais antigos comissários de gado foi um francês, conhecido como Senhor Debise, que anunciava e vendia as suas tropas em leilão sempre gritando: ‘ Can-can, petite et grand tout ensemble, quem dá mais?’ Conforme o Coronel Zeferino, o francês era srcinal, pois como
não conhecia o peso, a qualidade, o valor dos gados que vendia, punha-os em leilão à maior oferta. No entanto, o modo de negociar dos outros vendedores diferia, pois era menos “público”. Eles “abriam o preço para cada tropa e recebiam, em reserva, as ofertas, entregando-a àquele que melhor pagava”.123 É interessante esta afirmação do Coronel Zeferino, pois negociando em segredo, era possível que outros fatores influíssem na transação, tornando este mercado menos impessoal do que poderia parecer, e possivelmente eivado de relações sociais diversas. Conforme Smith, os charqueadores supervisionavam todas as negociações. Moviam-se “rapidamente aqui e ali em belos cavalos, examinando as vá rias tropas, calculando-lhes o valor com rapidez e precisão admiráveis, fechando os negócios às pressas com estancieiros e peões”. Esta “tarefa era eivada de dificuldades, motivo pelo qual se tornara privilégio de grandes conhecedores”. Erros de cálculos podiam causar avultados prejuízos, pois, como não 124 se usava balança, “o preço do boi, tendo por base o peso presumível, era calculado a olho”.
Charqueadores ricos rivalizavam entre si oferecendo cada um o preço que mais agradasse aos vendedores. Sobre isto Smith afirmou: “O mercado é sempre ativo, porque a concorrência é muito forte entre os vinte ou trinta charqueadores; em geral as boiadas inteiras estão vendidas pouco tempo depois de chegadas” e “imediatamente levam-nas para uma das charqueadas junto ao rio”.125 Com relação ao comportamento dos charqueadores durante as negociações, o Coronel Zeferino complementou: Os charqueadores, nos seus luxuosos carros, puxados por belíssimas e custosas parelhas, vinham chegando à feira, ostentando a riqueza de suas equipagens. Chegados ao local, montavam nos seus cavalos trazidos à reata pelos seus escravos, e apressavam-se em recorrer as tropas à venda, inspecionando-as, avaliando, calculando o seu rendimento e perquirindo aos condutores: ‘Quantos dias de marcha? Quantas disparadas? Vinham rondadas? Quantas encerras?’ E assim balançavam vendas.126 o que elas poderiam produzir. Terminada a inspeção, começavam as “Tablada: Joaquim Monteiro & Companhia – Encarregam-se da venda da tropa, na tablada, por comissão módica. Escritório à rua General Netto, n. 39”. O mesmo anúncio foi feito por outros dois indivíduos, J. J. da Silva Braga e Boaventura S. Barcellos (Jornal Diário Popular, 14 de dezembro de 1890. Anexo ao Inventário de Cipriano José Gomes. N. 158, m. 5, 2º Cartório do Cível, 1890, Pelotas (APERS)). 123 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120. 124 REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional.Caxias/Poa: UCS/ Martins Livreiro, 1981, p. 19. 125 SMITH, Herbert. Op. cit., p. 72. 126 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120. 323
Quando se fechava um negócio entre o charqueador e os vendedores ouvia-se a frase: “É minha a tropa, mande entregar na charqueada”. Vendiam-se os gados a prazos que variavam de 45 a 90 dias. “No dia seguinte ao da entrega, o charqueador mandava levar ao corretor o documento comprobatório da transação”, que era um vale assinado pelo mesmo, com data e selos reconhecidos. Conforme o Coronel Zeferino, este documento “era disputado pelos bancos e capitalistas para ser descontado aos juros de 3 e 4%”. Os vales poderiam ser sacados em Pelotas (no Banco da Província ou no“Banco Inglês”), ou com os senhores Faustino Trápaga, Antônio H. Nogueira, Barão Alves da Conceição, Martin Bidart, José Maria Moreira (filho de charqueador) e os charqueadores e capitalistas Barão do Jarau e Barão do Arroio Grande. A cada ano, entre novembro/dezembro e maio/junho, época da safra, as negociações na tablada eram retomadas e a cidade via-se novamente povoada por um enorme número de pessoas. De acordo com Smith os animais comprados na tablada representavam um valor total de cerca de 22 mil contos de réis que iam para o bolso dos estancieiros a cada ano. Estes homens estabeleciam-se alguns dias na cidade “a comprar fornecimento para o ano seguinte, antes de voltarem para suas remotas habitações”. Os tropeiros e peões de diversas procedências e com o pagamento em mãos aglomeravam-se nas lojas e tavernas. Smith verificou que parte do dinheiro pago pelos charqueadores aos estancieiros nas transações envolvendo as reses, acabava retornando ao próprio comércio pelotense. E concluiu: “Há muitos grandes armazéns na campanha que dependem dos de Pelotas, mas todos, direta ou 127 indiretamente, assentam na indústria pastoril e nas charqueadas”.
De acordo com o Coronel Zeferino, as casas comerciais da cidade atraíam muita gente na época da safra. “Pelotas enchia-se diariamente de uma população exótica que cada dia se renovava e espalhava pelos hotéis São Pedro, Americano, Bonfiglio. As caravanas tinham hospedagem (pernoite) gratuita nas lojas de fazendas, onde sustiam [sic] das suas necessidades (...)”. Na cidade, ferreiros e ourives lucravam bastante. “As ‘comitivas’ ascendiam a 300 homens diariamente e espalhavam a mãos cheias o dinheiro ganho nas tropeadas”. O salário era de 5$000 diários para os peões e 8$000 para os capatazes. Uns dos artigos mais procurados eram as facas recamadas de ouro e de prata, os rebenques, estribos, esporas prateados e um sem-número de artefatos “que a vaidade dos gaúchos se comprazia em 127
SMITH, Herbert. Op. cit., p. 73. 324
ostentar” e que serviriam como distinção social ao retornarem para seus locais de srcem. “À noite o encontro era no ‘Curral das Éguas’, espécie de ‘Cabaret’, existente no Hotel São Pedro”.128 O princípio básico da tablada era distinto do procedimento de compra de gados descrito anteriormente. A instituição da tablada parecia buscar imprimir uma lógica mais impessoal/pública às transações, pois havia espaço para a livre barganha e até os leilões. Ela beneficiava a grande maioria dos charqueadores que não possuíam condições materiais de manter uma grande estância na região da campanha ou no Uruguai e, com isto, fechar melhores negócios com os tropeiros daquelas bandas. Mas, em contrapartida, ela os colocava na obrigação de competir com os grandes charqueadores pela compra dos gados na tablada. Mas esta mudança no comércio do gado representava um fenômeno econômico e social ainda maior. Ela simbolizava o poder do charqueador sobre o estancieiro da região da campanha. Isto chamou muito a atenção de Couty, pois nem no Uruguai e nem na Argentina ele presenciou algo assim.129 Ao invés de depender de uma cadeia de intermediários negociando com o seu próprio dinheiro em lugar incerto, na tablada o charqueador tinha o próprio mercado dentro de sua cidade. Ele podia ver o gado, tocá-lo, barganhar com os tropeiros, ou seja, realizar a compra diretamente com o vendedor. A tablada simplesmente tirava das mãos do estancieiro da fronteira o poder de fechar pessoalmente os negócios e transferia o mesmo para o charqueador. Além disso, de acordo com as narrativas deixadas por Couty, Smith e o Coronel Zeferino, é possível perceber que a tablada não funcionava somente como local de negócios. Ela também possibilitava o encontro de famílias e amigos, os acordos políticos, as alianças matrimoniais e era praticamente um palco para a ostentação do status social dos mais ricos. Como ensinou Edoardo Grendi, em sociedades agrárias e pré-industriais, os mercados tinham uma função que ultrapassava o sentido econômico.130 Paradoxalmente, o auge da tablada coincidiu com o início da decadência das charqueadas escravistas. Se os empresários trouxeram a feira de gado para o seu “quintal”, os mesmos vinham perdendo gradualmente a mão de obra de suas fábricas. Se os mais ricos podiam controlar mais ou menos o mercado do gado, tanto na fronteira como na tablada, pouco podiam fazer com relação aos mercados atlânticos. É por estas margens que iremos navegar agora…
128 129 130
PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 114. COUTY, Louis. Op. cit., p. 135-137. GRENDI, Edoardo. Polanyi: Dall’a ntropologi a allá microanalisi storica. Milano: Etas Libri, 1978. 325
8. AS CHARQUEADAS, OS MERCADOS ATLÂNTICOS E OS SEUS INTERMEDIÁRIOS Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria. Temos, portanto, de procurar seus responsáveis, seus donos.
Karl Marx (O Capital, Livro I, Capítulo II)
Como afirmou Marx, as mercadorias não iam com seus próprios pés ao mercado. Para que um pedaço de charque chegasse até o prato de um escravo num engenho de açúcar em Cuba ou no Recôncavo Baiano e para que uma peça de couro cruzasse o Atlântico até encontrar as mãos de um operário nas fábricas britânicas uma cadeia de intermediários precisava ser acionada. Um charqueador podia saber da situação favorável ou desfavorável dos diferentes mercados marítimos tanto pelo contato com os diversos comerciantes e corretores estabelecidos no porto, quanto pelas sessões mercantis dos jornais rio-grandinos e pelotenses. Mais do que eu poderia imaginar, diariamente estes periódicos alertavam sobre as conjunturas econômicas externas, as cotações do câmbio, informes sobre preços, os valores dos fretes, a quantidade e a qualidade dos produtos existentes nos armazéns das principais cidades envolvidas no comércio dos produtos pecuários, além de notícias políticas de diversos países.1 O presente capítulo trata das rotas mercantis em que o charque, os couros e o sal estiveram envolvidos após o término da Revolta dos Farrapos (1835-1845) e dos agentes que se envolviam neste comércio de longo curso. Qual o caminho dos couros e carnes desde os trapiches das charqueadas até os diferentes portos do Atlântico? Quais as fontes de abastecimento de sal? Como o charque rio-grandense competia com o tasajo platino? Que agentes estavam inseridos neste circuíto mercantil e qual a natureza deste mercado se comparado ao do gado? São estas perguntas que pretendo responder ao longo do capítulo.
1
Ver, por exemplo, os exemplares do Jornal do Comércio de Pelotas no ano de 1875, nos seguintes dias: as quantidades de charque e seus preços no porto de Salvador (6 de janeiro), transações em câmbio realizadas sobre Londres e negócios com papéis bancários e mercado do tasajo no Rio da Prata (9 de janeiro), notícias sobre o fim da safra em Montevidéu (7 de julho), carregamentos e estoques de couros nos portos de Liverpool e Londres (14 de setembro), entre muitos outros (Jornal do Comércio de Pelotas, Biblioteca Pública Pelotense). 326
8.1 EM BOCAS DESGRACIADAS: CHARQUEADORES, SALADEIRISTAS E OS CIRCUÍTOS MERCANTIS ATLÂNTICOS DAS CARNES É comum vincular a economia das charqueadas rio-grandenses ao abastecimento do mercado interno, sobretudo, das plantations escravistas. Contudo, os couros secos e salgados tinham um destino diverso, conectando o complexo fabril pelotense ao mercado internacional. Em ambos os circuitos mercantis, o Rio Grande do Sul dividiu o espaço econômico de trocas com os produtos fabricados na região do Prata. Tal relação foi muito competitiva no que diz respeito ao charque, mas apresentou pouca concorrência no comércio dos couros, uma vez que este constituía-se em um mercado mais amplo, cobrindo a oferta dos três complexos fabris. Neste contexto, jogando com as flutuações mercantis e de preços de ambos os produtos, muitos charqueadores puderam resistir aos reveses conjunturais que afetavam as trocas de ambas as mercadorias. O sal, por sua vez, era comprado tanto no mercado brasileiro como no mercado internacional. Começarei a análise pelo comércio do charque, incluindo os indicadores mercantis referentes aos couros e ao sal na medida em que a trama se desenvolve. Conforme tratado no capítulo primeiro, desde que o Rio Grande do Sul começou a exportar charque para o nordeste brasileiro, na década de 1790, até pelo menos os anos 1840, aquela região foi a maior compradora do produto, com a região sudeste, por intermédio do Rio de Janeiro, consumindo quase sempre menos da metade.2 Com quantias menores, Havana e Lisboa também compareceram entre os portos receptores de charque, sendo que o mercado da primeira costumava abrir-se quando o Prata se encontrava em guerra. 3 A Revolta dos Farrapos desmantelou a indústria pelotense que voltou a produzir charque em alta escala somente na década de 1840. No gráfico 8.1 é possível verificar as flutuações das exportações de charque entre 1837 e 1889. Os indicadores buscam corrigir um problema envolvendo o volume negociado entre 1846 e 1855, pois os dados comumente utilizados pela historiografia subestimam a quantidade de charque exportada pelo porto de Rio Grande neste período. 4 2
Salvo o ano de 1828, como foi demonstrado no capítulo 1 (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Fundo
Fazenda, m. 482). É possível que em outros anos o mesmo tenha ocorrido, mas em linhas gerais, como já
analisei, as exportações para o nordeste foram predominantes em quase todas as épocas. 3 LEITMAN, Spencer. Raízes sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos.Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 98. 4 Para tal período, costuma-se utilizar as estatísticas compiladas pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul, publicados em 1922. Substituí as estatísticas de 1922 pelos índices anexos dos Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande entre 1848 e 1858, com dados mais detalhados e assinados pelos encarregados das próprias repartições fazendárias. Desconfio de um sub-registro dos dados compilados em 1922 por alguns motivos. Primeiro, a partir deles, o Rio Grande do Sul teria exportado 10.515 toneladas de charque em 1850 e 12.386 toneladas em 1851. Mas conforme os dados do Jornal do Comércio da Corte, trabalhados por Afonso 327
Observe-se que no início dos anos 1840 os índices apresentam um alto crescimento, mas, ao contrário da linha pontilhada, eles não despencam a partir de 1845, continuando altos, mesmo que num nítido decréscimo, a partir de 1848. Esta queda de 40% das exportações entre 1848 e 1852 é mais plausível do que o aumento indicado pelas linhas pontilhadas, pois foi exatamente por conta dos prejuízos naqueles anos que charqueadores e estancieiros se mobilizaram pela intervenção do Exército brasileiro em Montevideu.
Gráfico 8.1 – Charque exportado pelo Rio Grande do Sul entre 1837 e 1890 (em arrobas)
3.500.000 3.000.000 2.500.000 2.000.000 1.500.000 1.000.000 500.000 0 3 4 8 1
Arrobas exportadas
Dados Relatórios
Dados de 1922
Fonte: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246247; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1846-1860).
Graça Filho, o Rio recebeu, nestes mesmos anos, 13.462 e 15.604 toneladas vindas do Rio Grande do Sul, ou seja, muito mais do que o total exportado pela província sulina, algo impossível de ocorrer. Portanto, o Rio Grande do Sul teria exportado um volume muito maior do que o indicado nas estatísticas de 1922. Os dados do Relatório para este ano são, respectivamente, de 1.840.554 e 1.906.717 arrobas, ou seja, mais de 27 mil e 28 mil toneladas. Neste sentido, eles são muito mais plausíveis, uma vez que a maior parte do charque não ia para o Rio, mas sim, para o nordeste. A pesquisa de Josiane Silveira comprova esta tendência para o ano de 1854, por exemplo. Segundo a autora, Pernambuco teria recebido, neste ano, 141 carregamentos de charque remetidos pelo Rio Grande contra 35 do Rio de Janeiro. Portanto, os indicadores compilados em 1922 parecem subestimar muito as exportações entre 1846 e 1855. Tendo em vista este problema, decidi substituí-las pelos dados contidos nos anexos dos Relatórios Presidenciais somente nestes anos, que são justamente aqueles de divergem do apontado nas estatísticas compiladas em 1922. Além do mais, os indicadores dos Relatórios são mais completos, revelando o destino das arrobas de charque, algo que os dados de 1922 não contemplam (Os dados mencionados estão em: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247; SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX. Monografia de conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006, p. 47; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Os convênios da carestia: crises, organização e investimentos do comércio de subsistência da Corte (18501880). Dissertação de Mestrado em História, PPGHIS-UFRJ, 1992, p. 238; os Relatórios dos Presidente da Província estão disponíveis no site http://www.crl.edu/brazil/provincial. Último acesso em 29.05.2013) 328
No entanto, o volume de charque rio-grandense exportado no período que antecedeu a Guerra de 1851-52 foi menor do que o indicado no gráfico. Em 1849, num manifesto remetido pelos vereadores de Pelotas à Assembleia Geral do Império fica bastante claro que parte significativa daqueles montantes constituía-se em charque uruguaio que era remetido até o porto rio-grandino pela fronteira de Jaguarão. Conforme os mesmos:
ParaOriental mais agravar posição ruinosa, a autoridade os negócios do Estado proibiuessa a exportação de seus gados paraque esta,dirige consentindo que nele, à margem direita do Jaguarão, se estabelecessem charqueadas sob pretexto de facilitar aos brasileiros um mercado para as vendas de seus gados; e prevendo que esta medida acarretaria em represália a subida de direitos, como gênero estrangeiro, permitiu que o espólio do gado ali morto beneficiado fosse deste lado para figurar em nossas alfândegas como gêneros de manipulação nacional e iludir o nosso fisco. Escárnio atroz nem a menos foi percebido; imensas charqueadas como por encanto ali se montaram, parte das nossas deixaram de trabalhar e mais de dois mil peões, que se empregavam na extração de gados daquela para esta parte, ficaram sem meios de subsistência. Para destruir este mal sinistro alcance pensa a Câmara que deveis propor uma Lei que obrigue ao pagamento de 25% os gêneros provenientes do boi manipulado à direita do Jaguarão, como no sal para ali exportado pelo Brasil. Este artigo porém, como matéria-prima para as charqueadas desta Província, deve nela ser introduzido sem ônus algum, e diminuir-se o direito que pagam a carne, graxa e sebo que dela se exportar diretamente para portos estrangeiros. Além da destruição de nossas charqueadas com o estabelecimento daquelas no ponto que se indicou, outro mal ainda maior enxerga a Câmara no avultado número brasileiros que tempor de ali procurar trabalho, e estabelecer-se e mais de tarde introduzirem toda a extensão darelacionar-se linha divisória, vindas de Montevideu, as mercancias que ora recebemos do Rio, Bahia e Pernambuco por ficarem mais baratas em razão do menor direito que exibem na Alfândega daquela praça. Pelo exposto vereis, Srs. Deputados, que a questão de estabelecimentos tais na margem direita do Jaguarão não ataca somente conveniências comerciais desta e de outras províncias do Brasil, mas sim mui seriamente a política e integridade do Império5
O lado uruguaio da fronteira, como os próprios vereadores mencionaram, havia sido dominado por charqueadores brasileiros, uruguaios e europeus que se estabeleceram próximos das vias fluviais que desembocavam na Lagoa Mirim, na margem direita do Jaguarão, a poucos quilômetros de Pelotas e Rio Grande (ver Figura 8.1). Portanto, uma quantia significativa daquele charque exportado não era fabricada em Pelotas. Conforme Barran e Nahum, na safra anterior à assinatura dos tratados de 1851, foram remetidas 618.926 arrobas pela fronteira fluvial (a terça parte do que foi exportado pela província naquele mesmo ano). 6 Tais carregamentos chegavam ao porto rio-grandino sendo exportados como charque 5
Ofício de 24.10.1849, CV 659, Anais do AHRS, v. 3, 1978. A Câmara era presidida pelo Dr. Joaquim José Afonso Alves, o mesmo deputado geral que se destacou nas sessões da Assembléia Geral em 1851, solicitando a intervenção militar em Montevideu. Também eram vereadores os charqueadores Domingos José de Almeida, Manoel Lourenço do Nascimento e José Inácio da Cunha. 6 BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 50. 329
brasileiro, deixando assim de pagar a tarifa de 25% sobre o tasajo importado nos portos do Brasil. A partir de um documento datado provavelmente de 1850 ou 1851, foi possível ter uma ideia de quantos saladeros ocupavam aquelas margens fluviais e que incomodavam tanto os charqueadores pelotenses. Nele são listados 16 saladeros no lado oriental da mencionada fronteira. A firma anglo-francesa Paulet & Willliams, por exemplo, abatia 16 a 20 mil reses anualmente, a do espanhol Francisco Traeba, 12 a 16 mil e a de Silva & Co de 12 a 15 mil, sem contar as outras. O número de reses que elas consumiam era muito significativo para desviar as tropas de gado que podiam ser levadas até as charqueadas pelotenses, por exemplo.7 Neste sentido, o surgimento destes saladeros na fronteira uruguaia aprofundou ainda mais a situação estabelecida desde 1846, quando Manoel Oribe havia proibido o envio de tropas de gado do Uruguai para o Rio Grande do Sul. O resultado disto tudo se reflete na visível queda do Gráfico 8.1 e, como já foi dito, provocou grande insatisfação entre os proprietários rio-grandenses. A reclamação dos charqueadores ganhou apoio do Presidente da Província que buscou mediar a negociação com a Corte. Em julho de 1850, Pimenta Bueno escreveu ao Ministro da Fazenda esclarecendo a situação: “Em minha opinião a questão seria simples se esta Província estivesse povoada de gados, mas ela está exausta e em quando assim continuar não poderá de modo algum competir com o Estado Oriental”. O presidente temia que a cobrança de altas taxas sobre o charque remetido pela fronteira fosse incentivar os saladeros a se instalarem na região uruguaia do Buceo levando para mais longe ainda os gados 8 e os negócios que vinham beneficiando economicamente o lado brasileiro do Jaguarão.
7
Documento que lista os charqueadores na fronteira com o Uruguai, s/d. (Coleção de manuscritos, Coleção Rio Grande do Sul, BN-RJ). Além disso, segundo Rosal e Schmit, entre 1846 e 1848, Buenos Aires remeteu couros e lãs para o porto de Rio Grande. O motivo foi o fechamento de seu porto por tropas anglo-francesas. O mesmo já havia ocorrido em 1830, quando os ingleses também bloquearam o porto buenairense. É possível que junto destas mercadorias os argentinos tenham remetido parte do seu charque para evitar o fisco. As mercadorias eram levadas em embarcações menores, com bandeira nacional, até Montevidéu, por exemplo, e de lá exportadas para outras regiões. Portanto, os bloqueios foram mais eficazem em impedir as importações de embarcações estrangeiras, mas não controlavam exportações realizadas da forma descrita acima (ROSAL, Miguel A.;
SCHMIT, Roberto. Del reformismo colonial borbónico al librecomercio: las exportaciones pecuarias del Río de la Plata (1768-1854). Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana. 3ª serie, n. 20, 2º sem. 1999, p. 95-96). 8 “V. Exa verá nos mapas juntos o grande movimento de iates que navegam entre o Jaguarão e o porto de Rio Grande, e consequentemente o avultado frete, comissões e direitos que os proprietários brasileiros e os cofres públicos recolhem. Se estabelecem-se impostos pesados sobre os produtos do gado provenientes do Estado Oriental fora de temer o inconveniente de mudarem-se as charqueadas para o Buceo e outros pontos e privaremse os iates, negociantes e cofres públicos de semelhantes vantagens, sem por isso se diminuísse a concorrência estrangeira por que o Rio Grande não tem gados” (Carta do Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul ao Ministro da Fazenda, Porto Alegre, 26.07.1850 – Coleção Rio G. do Sul – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 330
Figura 8.1 – Litoral sul e fronteira fluvial entre Brasil e Uruguai
Fonte: BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998, p. 66.
Interessante notar como o presidente Pimenta Bueno buscava mediar os interesses regionais com os do Império. Ele encerrava a missiva propondo uma “módica taxa” de 6% sobre os produtos entrados na fronteira com o Jaguarão (couros e charque) para não desagradar nenhum dos lados. Assim, os charqueadores de Pelotas seriam atendidos parcialmente, os saladeros não seriam forçados a abandonar a fronteira do Jaguarão e a arrecadação da Fazenda aumentaria. Além do mais, conforme Pimenta Bueno, este charque uruguaio carregado pelo Jaguarão até o porto de Rio Grande interessava ao Império, pois barateava o preço do produto nas províncias consumidoras. 9 Para tal avaliação, o Presidente certamente devia contar com o auxílio de líderes políticos regionais (sempre orbitando o 9
Carta do Presidente da Provincia do Rio Grande do Sul ao Ministro da Fazenda, Porto Alegre, 26.07.1850 – Coleção Rio G. do Sul– Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 331
Palácio provincial em busca de favores), já que Pimenta Bueno era de fora da Província e provavelmente jamais tenha colocado os pés naquela “perigosa” fronteira com o Jaguarão. Como demonstrei no capítulo anterior, estas tentativas de resolver a situação pela diplomacia fracassaram e a intervenção militar em Montevideu veio a resolver momentaneamente as reclamações dos rio-grandenses, pois possibilitou, por meio dos tratados assinados após o término do conflito, o livre acesso dos charqueadores pelotenses aos rebanhos criados no Uruguai. Além disso, uma das cláusulas mais polêmicas do Tratado foi o exclusivo direito à navegação na lagoa Mirim e no rio Jaguarão reservado aos brasileiros. Os uruguaios não poderiam nem se quer possuir uma canoa ou qualquer outro tipo de 10 embarcação em suas margens, ainda que fosse para transportar enfermos. Como os tratados
não colocaram impostos sobre o tasajo que entrava pela fronteira do Jaguarão até o porto de Rio Grande, esta foi uma saída encontrada pelos rio-grandenses para poder policiar a fronteira. Era uma demonstração de força e influência política dos charqueadores e do imperialismo brasileiro na região. Tal medida parece ter enfraquecido os mencionados saladeros da fronteira, pois, as suas remessas detasajo para o porto rio-grandino caíram bastante entre 1851 e 1855.11 Por conta do grande número de rebanhos dizimados durante a Guerra Grande e dos tratados assinados com o Brasil, os saladeros de Montevideu também foram imediatamente afetados. Como foi visto no capítulo anterior, dos 37 saladeros que existiam no Uruguai em 1842, somente 3 ou 4 continuaram funcionando normalmente no início dos anos 1850.12 Sem a concorrência uruguaia, os preços do produto aumentaram e este foi um dos grandes benefícios trazidos pela guerra. Conforme o gráfico 8.2, pode-se observar que os preços foram favoráveis até a safra de 1858, quando a arroba atingiu uma média de 4$609 réis no porto de Rio Grande. Este período também foi marcado por vultosos carregamentos de charque para o Rio de Janeiro, superando a concorrência do tasajo no mercado do sudeste. Conforme Afonso Graça Filho, nos anos 1850, o Rio Grande do Sul constituiu-se na principal província 10
ZABIELLA, Eliane. A presença brasileira no Uruguai e os Tratados de 1851 de Comércio e Navegação, de Extradição e de Limites.Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2002, p. 40. 11 Conforme as reclamações de Andrés Lamas, representante diplomático da República Oriental na Corte, os riograndenses estabeleciam uma série de empecilhos na fronteira, exigindo o transbordo de todo o tasajo para embarcações brasileiras e dificultando a sua passagem. As 618.926 arrobas remetidas na safra de 1850/51 caíram para 126.062 na de 1854/55. BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 50. 12 Conforme a mesma fonte (sem data) citada anteriormente, a maioria das charqueadas daquele período estavam desativadas. Por conta disto, a safra rio-grandense de 1852-1853 apresentou um aumento nas exportações para logo declinar. Contudo, este declínio deve ser relativizado, pois agora já não se tinha mais o charque uruguaio entrando pela Lagoa Mirim como nas quantidades anteriores, o que indica que os totais exportados após 1851 correspondiam mais ao que o Rio Grande do Sul realmente produzia por ano. 332
fornecedora de alimentos para a população carioca. Entre os gêneros rio-grandenses mais consumidos destacavam-se o milho, a farinha, o feijão e o charque. Em contrapartida, sem o tasajo uruguaio nos armazéns da Corte e com os preços do produto em alta, a população
pobre do Rio foi prejudicada pela crise de carestia de alimentos que afetou a cidade em 1854.13 Para que os charqueadores pelotenses ganhassem o lucro desejado, todos os demais tinham que sair perdendo. Mas a euforia em Pelotas durou pouco. No início dos anos 1850, a economia argentina encontrava-se em melhor situação que a uruguaia, pois as guerras não lhes foram tão nocivas. Conforme Rosal e Schmit, a década de 1850 apresentou altos índices de exportação de tasajo em Buenos Aires. Somados os 5 anos entre 1850 e 1854, a cidade exportou mais de 100 mil toneladas, chegando perto das mais de 125 mil toneladas exportadas pelo Rio Grande do Sul no mesmo período (embora, como já foi dito, parte deste charque era uruguaio). 14 Na segunda metade da década de 1850, os orientais conseguiram recuperar a sua indústria, atingindo altos índices de abate. A revisão dos tratados comerciais entre Brasil e Uruguai, realizada em 1857, foi uma das grandes estimuladoras desta retomada. Nesta ocasião, o charque uruguaio deixou de pagar as altas taxas de importação no Brasil e voltou a ser comprado em grande escala pelos comerciantes cariocas. Além da insistente diplomacia oriental, a medida também foi favorecida pelas crises de abastecimento que a cidade do Rio de Janeiro vinha passando desde o ano de 1854.15 Portanto, com a recuperação da indústria saladeril platina e a pacificação dos seus territórios, ficou difícil para os pelotenses concorrerem com a expansão daquele setor. A brusca queda das exportações de charque rio-grandense na safra de 1857-58 e o declínio dos preços do produto após aquele mesmo ano foram vistas como sintomas de uma nova crise. Apenas para lembrar o leitor, datam do final da década de 1850 as manifestações de descontentamento e revolta do charqueador Domingos José de Almeida através do jornal que ele havia fundado.
13
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 58-60. ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., p. 86. 15 GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit. Por conta disto, a taxa de importação já havia sido diminuída em 1854-55 de 25% para 11%. A medida também favorecia o charque argentino e em particular Justo Jose de Urquiza, antigo aliado do Império na Guerra de 1851/52, cujo próprio saladero em Entre Rios vinha abatendo cerca de 40 mil reses anualmente, enriquecendo o caudilho (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 49; 91-93). Na mesma época, a Bahia foi palco de uma semelhante crise por conta do excessivo preço da carne (entre outros alimentos) que havia dobrado entre 1854 e 1858. (REIS, João José; AGUIAR, Márcia G. D. de. “Carne sem osso e farinha sem caroço”: o motim de 1858 contra a carestia na Bahia. Revista de História, São Paulo, n. 135, 2º sem., 1996, p. 133-160). 14
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Gráfico 8.2 - Preço da arroba de charque exportado em réis ($)
6.000 5.000 4.000 3.000 2.000 1.000 0
Fonte: Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1846-1860).
No final dos anos 1850, além de Buenos Aires e Montevideu, a província de Entre Rios também juntou-se ao grupo das grandes produtoras de carnes do sul da América. 16 Contudo, quanto maior o número dos concorrentes e do produto fabricado, no interior de um sistema econômico cuja demanda era pouco elástica, mais baixos ficavam os preços do charque no mercado atlântico. Nesta nova conjuntura, o Atlântico Sul se viu tomado por levas e mais levas de charque que excediam em muito a demanda dos mercados consumidores.17 A tabela 8.1 demonstra este aumento. Não demorou muito e os produtores platinos diagnosticaram o problema como uma crise de superprodução. 18 Tal fenômeno fez despencar os preços do produto, como pode se notar no gráfico 8.2. Por conta disto, em 1861, o governo brasileiro reabilitou as taxas de importação sobre o tasajo, mas o estrago já estava feito. A década foi marcada por intensos debates e tentativas tecnico-científicas para elaborar melhores formas de aproveitamento da carne bovina, da sua conservação e a busca de mercados alternativos ao Brasil e Cuba.19 O Uruguai pacificado contava com mais de 8 milhões de reses nos seus campos. Era tanto gado que os saladeros e os consumidores não 16
Para uma localização da mesma, ver o Mapa 1 na introdução desta tese. BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 118-130. 18 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 118-130. Jornal O Constitucional. Rio de Janeiro, 07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 19 BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, 2003. Interessante notar que a amplitude do comércio internacional ao longo século XIX vai tornando o mercado das carnes cada vez mais mundial ao contrário dos séculos anteriores. 17
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davam conta. Numa reunião de setembro de 1862, o Clube Nacional do Uruguai, formado por estancieiros, saladeiristas e comerciantes, manifestou-se com relação a esta questão buscando traçar estratégias de ação coletiva. Para os seus líderes, a crise tinha “uma única srcem” que era a do tasajo possuir somente dois “mercados consumidores”. Argumentando que o seu produto possuía qualidade reconhecida tanto no Brasil como em Cuba, os mesmos apostavam que era necessário mirar a Europa, onde o Reino Unido seria o principal mercado, porque, “há alguns invernos, a Inglaterra e suas dependências asiáticas têm começado a sentir um terrível carestia e falta de gêneros alimentícios”.20 Tabela 8.1 - Gado bovino abatido nas charqueadas e saladeros da América do Sul (1857-1862)
Uruguai Buenos Aires Entre Rios (ARG) Rio G. do Sul Totais
1857-58
1858-59
1859-60
1860-61
1861-62
168.100 324.800 53.500 190.000 736.400
243.300 531.300 144.300 280.000 1.198.900
272.000 360.000 265.000 360.000 1.257.000
293.000 290.000 237.000 360.000 1.180.000
505.000 279.000 204.000 362.000 1.350.000
Fonte: PINTOS, Anibal Barrios.Historia de la ganedería en el Uruguay (1574-1971).Montevidéu: Biblioteca Nacional, 1973, p. 193.
Dos países europeus, a Inglaterra constituía-se num dos maiores consumidores de carne bovina, sendo abastecida, durante séculos, por rebanhos vindos de todas as partes do continente.21 Nesta época, o consumo anual per capita de carne bovina na Inglaterra era de 50 kg.22 Tratava-se de uma cifra inferior a dos habitantes do sul da América (em Buenos Aires era de 100 Kg a 120 Kg, por exemplo), mas em termos europeus era suficiente para despertar o interesse de grandes exportadores como Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, que, a partir de Londres, podiam estender sua oferta aos países vizinhos da Europa Ocidental. 23 Contudo, este não era o único motivo pelo qual a Inglaterra havia se tornado uma alternativa 20
Os autores referiam-se à Índia, que no meado do século teve milhões de vidas ceifadas pela grande fome que
assolou Bengala. Eles sabiam que a reexportação inglesa do tasajo para a Ásia seria difícil, pois “obstão a isso de um modo quiçá invencível as crenças r eligiosas daqueles povos”. Mas, de acordo com eles, como a Inglaterra deveria prover com seus alimentos aqueles mercados em face daquela “calamidade” abrir -se-ia um espaço de consumo na Ilha britânica. Por conta disto, era preciso ensaiar alguns envios de suas carnes para os portos britânicos (Jornal O Constitucional. Rio de Janeiro, 07.09.1862 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 21 Em 1869, por exemplo, a Holanda exportou 289 mil carneiros e 62 mil gados bovinos para a Inglaterra, seguido da Alemanha, com 265 mil e 83 mil dos mesmos gados, e a Bélgica, com 140 mil e 13 mil (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 372). Para uma análise mais completa ver PERREN, Richard. The meat trade in Birtain (1840-1914). London: Routledge & Kegan Paul, 1978. 22 BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 357. 23 PERREN, Richard. Taste, Trade and Technology: the development of the International Meat Industry since 1840. Aldershot: Ashgate, 2006. 335
aos produtores do cone sul americano. A presença de comerciantes ingleses nos três portos marítimos da região, devido ao circuíto mercantil dos couros salgados e gorduras com a indústria britânica, constituía-se num estímulo adicional. Além do mais, nesta mesma época, os próprios ingleses incentivavam os charqueadores e os saladeros a aprimorar as técnicas de 24 fabricação e a qualidade das carnes para ampliar o seu mercado.
Por conta disto, na década de 1860, várias tentativas de remessas de carnes foram realizadas por charqueadores e saladeiristas, mas as mesmas foram um fracasso. A fabricação das carnes em barris, que ressuscitava o fantasma irlandês dos tempos coloniais, também foi retomada, mas não se obteve sucesso. A frustração para com os mercados do Atlântico norte foi acentuada por três importantes fatores. Primeiramente, as barreiras protecionistas de alguns países tornaram-se um grande empecilho. Os Estados Unidos, que importavam o charque pelotense em pequenas quantias e o tasajo em proporções maiores, elevou as taxas de importação do produto em 1867, decretando o declínio das vendas nos seus portos.25 Além disso, outros países europeus, como Portugal, utilizavam uma política protecionista bastante rígida com relação a sua indústria alimentícia. 26 Em segundo lugar, os portos britânicos haviam se tornado palco de um grupo de comerciantes norte-americanos que abastecia o proletariado27 inglês com uma carne de porco salgada e bastante gordurosa (o toucinho brasileiro). Estes negociantes influíram de forma negativa para a entrada do tasajo no mercado inglês.28 Mas o terceiro fator foi o mais importante de todos. Os britânicos recusavam-se a consumir o tasajo ou o charque, pois duvidavam da qualidade dos mesmos e identificavam-no como comida de escravos. Escrevendo da representação britânica em Buenos Aires em 1866, Francis C. Ford, embora reconhecesse o valor nutritivo do tasajo, dizia-se decepcionado com a sua aparência. Segundo Bell, numa observação carregada do racismo característico da época, ele declarou: “Deve ser admitido que a carcaça humana prosperará neste alimento, 24
BELL, Stephen. Innovacón, desarollo y medio local. Dimenciones sociales y espaciales de la innovación.
Scripta Nova. Barcelona. N. 69 (84), 2000. BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347-348. Em 1828, por exemplo, o Rio Grande do Sul exportou quase 10 mil arrobas de charque para Boston, nos Estados Unidos, e em 1850 foram remetidas mais de 2 mil arrobas para o mesmo país (Mapa estatístico comercial, Fundo Fazenda, m. 482 e 489, AHRS; Relatório do Presidente da Província de 26.09.1855). Como os norte-americanos eram praticamente autossuficientes no abastecimento de carne é provável que as compras de charque e tasajo, que segundo Barsky e Djenderedjian tinham como consumidores os escravos de suas plantations, aproveitavam-se dos espaços dos porões dos mesmos navios que retornavam de Rio Grande, Montevideu e Buenos Aires onde buscavam couros e gorduras. 26 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. 27 BELL, Stephen. Op. cit., 2000. 28 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. Revista 25
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como podem testemunhar as figuras robustas dos machos e as formas arredondadas da porção feminina da população coloured do Brasil”. Para o autor, este comentário demonstra que o problema de abrir os mercados europeus para o charque não tinha relação somente com à aparência do alimento, mas também, “pela sua associação com a escravidão”. Outro súdito britânico, o Sr. Richard Seymour, “chegou a conclusão, na década de 1860, que as pessoas pretas que trabalham nas plantações eram o único grupo capaz de comer o charque”.29 Por conta de tudo isto, em 1864, a Inglaterra tomou a decisão mais radical dos mercados consumidores analisados, proibindo a importação de tasajo, pois duvidava da qualidade dos mesmos.30 Os muitos anos de consumo de carnes de boa qualidade aumentaram a exigência do gosto dos ingleses não apenas das classes mais abastadas da sociedade, como também, do seu proletariado urbano. Conforme Barran e Nahum, os operários ingleses e os mineradores espanhóis se recusavam a consumir o produto, evidenciando uma aversão dos trabalhadores livres a algo que pudesse associá-los à escravidão.31 Em Cuba, nos anos 1840, a divisão do consumo era evidente. Os contratos de fornecimento para os trabalhadores ferroviários estipulavam que se desse carne fresca ao brancos e charque aos negros. 32 No Brasil, o charque era alimento básico na dieta dos escravos e das classes mais pobres, mas não encontrei nada próximo de uma aversão ao consumo do produto por parte das camadas mais ricas. O mais curioso disto tudo é que a alimentação do operariado europeu era bastante pobre e em termos de quantidades calóricas e dieta equilibrada era inferior a de qualquer escravo nas Américas, sendo, inclusive, motivo de ironias de charqueadores e saladeiristas.33 E sem deixar de ironizar, era melhorser elite na “periferia” do que não o ser nos grandes “centros”. A aversão do operariado inglês possuía fortes fatores culturais absorvidos das elites britânicas, pois as declarações das autoridades inglesas, algumas de caráter até mesmo racista, deixavam claro a divisão social do consumo de carnes pela qual o mundo Atlântico estava 29 30
BELL, Stephen. Op. cit., 2000. BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347-348.
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. FRAGINALS, Manuel Moreno. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. II, 1989, p. 78-79. Sobre esta divisão social e racial do consumo de carne em Cuba ver também (TORRE, Celia P. La alimentación en Cuba en el siglo XVIII. Revista de Humanidades: ITESM, Monterrey, n. 19, 2005, 101-116). 33 BARRAN, Jose P.; NAHUM. Benjamin. Op. cit., p. 112-113. Conforme Stephen Bell, os políticos riograndenses debateram bastante sobre a possibilidade das charqueadas lucrarem com os habitantes pobres das grandes cidades da Europa. Havia muita especulação sobre as péssimas condições de vida dos trabalhadores das suas fábricas. “Um dos deputados mais otimistas descreveu uma grande fábrica de velas e sabão em Pelotas que fervia patas de gado para [extrair] seus óleos. Esta fábrica enlatou o resíduo ‘cujo odor nem o olfato do nobre deputado, nem o meu poderiam tolerar ’. Duas colheres desta geléia, com uma bolacha em uma tigela fizeram o almoço de um trabalhador inglês”. De acordo com Bell, “tal era a fome na primeira nação industrial que até mesmo este produto era usado comocomida” (BELL,Stephen. Op. cit., 2000). 31 32
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sendo dividido.34 Neste sentido, como o mercado europeu fechava as suas portas ao charque sul-americano e os Estados Unidos, além de autossuficientes no abastecimento de carnes ainda eram um forte concorrente no Atlântico Norte, saladeiristas e charqueadores foram impelidos a disputarem um maior espaço nos seus próprios mercados tradicionais: Brasil e Cuba. Tendo em vista que o charque platino era mais saboroso, tinha melhor aparência e conseguia ser vendido mais barato em muitos mercados, e como os comerciantes de Buenos Aires e Montevideu estavam inseridos em redes mercantis hispânicas e anglo-francesas mais abrangentes, este produto foi eliminando lentamente o charque pelotense dos mercados concorrenciais. Conforme Stephen Bell, ao longo da década de 1850, os produtores platinos “empurraram” os rio-grandenses para fora do mercado cubano.35 E nesta ocasião nem foi preciso apelar para a melhor qualidade de suas carnes, uma vez que os empresários platinos enviavam para Cuba uma qualidade de charque muito ruim, chamada havanera. 36 O comércio das carnes em Havana era controlado por monopolistas cubanos 37 e tendo em vista a tradicional ligação entre a região do Prata e a ilha caribenha, era difícil para os brasileiros imporem-se naquele mercado. Mas o pesadelo dos pelotenses estava apenas começando. Conforme os dados compilados por Afonso Graça Filho, uma década depois o mesmo fenômeno descrito acima aconteceu no Rio de Janeiro.38 De acordo com o Gráfico 8.3 percebe-se que, a partir dos anos 1860, a praça carioca deixou de ser a principal compradora do charque rio-grandense e muito embora permanecesse consumindo grande quantidade do produto, a representatividade nos totais exportados pelo Rio Grande caiu bastante. A historiografia gaúcha costuma vincular a produção do charque aos cafezais do sudeste. Contudo, durante toda a década de 1860, o Rio comprou de 35% a 25% das exportações totais do produto, vindo a somar de 20% a 10% nas décadas posteriores – índices muito baixos se comparados ao meado do século. Portanto, é interessante perceber que o apogeu da produção e do comércio do charque aconteceu 34
Por conta disto, os produtores argentinos empenharam-se cada vez mais para alcançar a exigência do paladar britânico, atingindo este nível somente no final do século XIX, como tratarei adiante. BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998, p. 78. 36 CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983, p. 175-176, p. 201. 37 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. 38 “O movimento ascensional das exportações gaúchas de 1850 a 1868, só foi conturbado pela seca, praga de carrapatos e o rigoroso inverno de 1857, bem como pela crise comercial de 1864. No ano de 1869, a produção se restringe à metade, mantendo-se em torno desse patamar com ligeiras alternâncias até 1880. Na cidade do Rio de Janeiro, os carregamentos vindos do sul reduziram-se progressivamente de 1859 a 1880, proporcionalmente ao aumento das chegadas da carne-seca rio-platense. A queda na produção e o contrabando limitaram-na à insignificante porcentagem de 5,6% e 6%, nos anos de 1878 e 1880” (GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 6465). 35
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exatamente na década de 1860 e teve como mercado impulsionador o nordeste agrário e não os cafezais do sudeste. A análise da queda das vendas do charque pelotense para a praça do Rio não deve levar a conclusões precipitadas a respeito de uma suposta mudança na dieta alimentar das camadas mais pobres da cidade do Rio de Janeiro e dos escravos dasplantations do sudeste.39 De acordo com Graça Filho, o charque continuou sendo comprado em enorme quantidade e compunha 49,4% do valor dos comestíveis importados pelo Rio de Janeiro em 1863-64 e 64% em 1869-70.40 Entretanto, seus maiores carregamentos não provinham mais do Rio Grande, mas sim da região do Prata. O Gráfico 8.3 demonstra que nos anos 1860, os comerciantes cariocas passaram a investir mais notasajo vindo de Montevidéu e Buenos Aires para onde enviavam remessas de açúcar, café e outros produtos. Portanto, a década de 1860 foi fatal para os produtores pelotenses, pois eles foram alijados do seu mercado consumidor mais próximo. Mesmo que a região sudeste não superasse a região nordeste no consumo de charque, o Rio de Janeiro sempre foi o principal parceiro comercial do Rio Grande. A perda deste mercado para os rivais argentinos e uruguaios não deve ter representado apenas um impacto econômico para os pelotenses, mas também um impacto simbólico, pois a Corte era muito mais do que um centro comprador de charque. O Gráfico 8.3 demonstra que por volta dos anos 1870 esta situação já havia se tornado irreversível. Somente uma nova grande guerra 41 que afetasse a economia platina poderia alterar aquele quadro, mas ela nunca veio.
A partir do mesmo Gráfico 8.3 começo a analisar a conjuntura do mercado das carnes no último quartel do século XIX. É possível perceber que grande parte do charque exportado pelo Rio Grande do Sul neste período foi remetido para outros mercados que não o Rio. Ora, estes mercados eram a Bahia e Pernambuco que agora tornavam-se mais fundamentais ainda para a economia charqueadora pelotense. Compilando dados estatísticos do período, Renato Marcondes verificou que, entre os anos de 1869 e 1872, cerca de 80% do charque comercializado pelo Rio Grande do Sul desembarcava nos portos de Recife e Salvador,
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Conforme Carlos Valencia, entre 1840 e 1860, a dupla charque/farinha de mandioca perfazia 60% dos gastos das famílias pobres do Rio, em sua dieta alimentar (VALENCIA, Carlos Eduardo. Costos de los alimentos y renta de los trabajadores libres en Río de Janeiro (Brasil) y Richmond (Virginia, EUA) en la primera mitad del siglo XIX. In: Anales Simposio da CLADHE.México: Facultad de Economía, UNAM, 2011, p. 13). 40
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 45. No capítulo anterior argumentei que a intervenção militar no Uruguai, em 1864, e todas as suas implicações trouxeram grandes benefícios aos charqueadores de Pelotas. Contudo, também colaborou para isso a epidemia de cólera morbus (1867/68) que exigiu o fechamento de parte dos saladeros argentinos (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 345). 41
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enquanto o Rio compunha somente cerca de 10% dos valores exportados.42 Na safra de 187475, 83,7% do charque exportado teve como destino Bahia (44,5%) e Pernambuco (39,2%).43 Este processo de deslocamento dos mercados também pode ser compreendido por outros fatores de ordem não econômica. AGuerra dos 10 anos em Cuba (1868-1878) fez diminuir as importações de tasajo em Havana de 17 mil toneladas para 11 mil, prejudicando muito os saladeiristas. 44 Com os obstáculos oferecidos por aquele mercado, os comerciantes platinos foram obrigados a desviar as suas remessas para o Rio, onde se pagava bem pelo produto. E aqui cabe uma outra interpretação para tornar todo o fenômeno descrito anteriormente ainda mais complexo. Entre os anos 1860 e 1880, o charque rio-grandense sempre apresentou um preço inferior ao tasajo no mercado carioca. É possível que os pelotenses e comerciantes de Rio Grande não tenham sido apenas empurrados para fora do mercado carioca contra a sua vontade, mas sim, que tivessem decidido buscar preços melhores para o charque no mercado nordestino. Dados de 1870 mostram que, em Salvador, seu preço era levemente superior ao dotasajo – situação que deve ter se acentuado após a epidemia de febre amarela no rio da Prata (1871-72) que obrigou a praça de Salvador a proibir a importação do tasajo.45 Para os rio-grandenses tratava-se de uma manobra arriscada (e que já havia sido realizada com sucesso nos anos 1790, como descrevi no primeiro capítulo), pois deslocava grande parte do comércio do charque para praticamente um único mercado consumidor. Neste contexto, os fretes para Pernambuco podiam chegar a custar quase o dobro do valor cobrado pelas cargas remetidas até o Rio. Como demonstrarei no capítulo seguinte,
42
Nesta época, os rio-grandenses foram os maiores compradores de aguardente e açúcar vindos do nordeste. Os preços pagos pelo açúcar, aguardente e algodão no Rio Grande eram os mais altos do Brasil. Em contrapartida, a província onde se pagava mais caro pelo charque era São Paulo: 301 réis/kg contra 274 réis/kg na média nacional. Os preços médios nacionais do açúcar, da aguardente e do algodão em réis eram 321/kg, 226/litro, 699/kg. No Rio Grande, se pagava respectivamente 642/kg, 300/litro, 1.314/kg. Nota-se que com exceção da aguardente, os outros dois produtos se pagava quase o dobro, o que devia ser rentável para os comerciantes do nordeste (MARCONDES, Renato. Op. cit.). 43 Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Além disso, Salvador, por exemplo, abastecia Aracajú e Maceió, além do litoral baiano (Ilhéus e Caravelas) e dos sertões, onde o produto era levado pelos tropeiros e caixeiros viajantes (CHAVES, Cleide. De um porto ao outro: a Bahia e o Prata (1850-1889). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2001, p. 62-66). 44 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 254. 45 O Rio Grande do Sul teve mais sorte no mercado nordestino. Como já foi dito, em 1867/68, por conta da epidemia do cólera, e em 1871, pela febre amarela, os saladeros tiveram que ser fechados temporariamente e depois proibidos de funcionarem nas imediações da cidade. Além disso, os vizinhos em Buenos Aires reclamavam muito da insalubridade. Arcando com grandes gastos, muitos se deslocaram para outras regiões da Argentina. O Estado colaborou os isentando de impostos e indenizando alguns (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 345). Salvador proibiu a entrada de tasajo durante estes anos. A Bahia vendia para o Prata açúcar, aguardente de cana, tabaco, sal, cacau e farinha. O gráfico mostra que valores exportados de açúcar da Bahia para o Prata despencam no fim da década de 1870 e início de 1880, indicando que o comércio de charque também poderia estar em queda (CHAVES, Cleide. Op. cit., p. 57-64). 340
esta nova fase favoreceu o enriquecimento de muitos charqueadores pelotenses, mas também trouxe a ruína de outros tantos.46 Gráfico 8.3 – Charque platino e rio-grandense comprados pelo Rio de Janeiro e os totais exportados pelo Rio Grande do Sul (1850-1886) – (em toneladas) 50.000.000 45.000.000 40.000.000 35.000.000 30.000.000 25.000.000 20.000.000 15.000.000 10.000.000 5.000.000 0
Total de toneladas de charque exportadas pelo RS Charque rio-grandense comprado pelo RJ Charque platino comprado pelo RJ
Fonte: Anuário Estatístico do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro (1876-1892) – BN-RJ; GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 238; Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (18481862); Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.
Além disso, pelo Gráfico 8.3 também é possível perceber que, a partir dos finais dos anos 1860, as exportações de charque uruguaio e argentino exclusivas para o Rio (sem contar as remessas que os mesmos faziam para o nordeste brasileiro e para Cuba, por exemplo) já eram capazes de superar os totais exportados pelo Rio Grande do Sul, demonstrando a força da indústria saladeril platina e confirmando as queixas de Andrés Lamas de que os pelotenses sozinhos não tinham condições de abastecer o mercado brasileiro. É bem verdade que se tratavam de três complexos fabris (agora Entre Rios juntava-se ao grupo platino) competindo contra apenas um (além disso, argentinos e uruguaios disputavam o mercado brasileiro entre si, unindo-se, às vezes, para exigir a diminuição das tarifas alfandegárias brasileiras). Mas no último quartel do oitocentos, por exemplo, a Argentina sozinha já fabricava maistasajo que o Rio Grande do Sul. Analisando os indicadores compilados por Barsky e Djenderedjian 46
Chaves diz que após 1888, o comércio de charque platino perdeu mercado para as carnes do sertão que chegavam mais baratas por conta do desenvolvimento das estradas de ferro e rodagem no interior baiano. Estas carnes vinham de Feira de Santana, Jacobina e alto São Francisco (CHAVES, Cleide. Op. cit., p. 88-90). 341
percebe-se que nos anos 1850 as exportações de tasajo pelo porto de Buenos Aires atingiram uma média anual de 20 mil toneladas. Na década de 1860, quando as remessas oscilaram muito, atingiu-se uma média aproximada de 25 mil toneladas. Nos anos 1870, ela foi de 35 mil toneladas, nos anos 1880, onde também encontrara altos e baixos, o tasajo obteve uma média anual próxima das 30 mil toneladas, e nos anos 1890, quando pela primeira vez ultrapassou 50 mil toneladas, a média manteve-se acima das 40 mil toneladas, o dobro do que Rio Grande exportava.47 Como já foi dito, entre 1867 e 1878, Cuba recebeu algo entre 11 e 17 mil toneladas de tasajo.48 A falta de pesquisas tratando do comércio de charque para o nordeste brasileiro
inviabiliza o conhecimento do total de tasajo importado pela região. Mas conforme Cleide Chaves as quantias de carne platina descarregadas em Salvador eram bastante significativas, uma vez que o charque pelotense não era capaz de suprir a demanda total da Bahia que revendia as carnes para Alagoas e Sergipe. 49 Tendo em vista que Montevidéu exportou anualmente, em média, algo entre 30 e 40 mil ao longo dos anos 1870 e 1880 50 (média superior ao Rio Grande do Sul nos anos 1860), pode-se considerar que o volume global de charque e tasajo negociado nos principais portos consumidores do Atlântico (entre os anos 1860 e 1880) deve ter se mantido na casa das 80 e 85 mil toneladas, ultrapassando as 100 mil em alguns anos.51 Sem dúvida era muito charque, mas ele estava longe de suprir a demanda mundial por carnes, uma vez que o produto não era bem aceito pelos consumidores da maioria das cidades europeias. Aceitando as opiniões inglesas como se fossem quase uma doutrina, articulistas argentinos passaram a condenar a fabricação do tasajo pela forma como era preparado e a sua 47
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 340-341. Nos anos 1850 (com média anual de 22 mil toneladas) e 1860 (com 30 mil) o Rio Grande do Sul manteve-se na frente dos argentinos. Mas nos anos 1870 (com 26 mil) e 1880 (com 21 mil) foi ultrapassado. Nestas últimas décadas, os argentinos exibiam um vigor econômico impressionante, pois, como demonstrarei adiante, já exportavam outros tipos de carnes para o exterior, enquanto Pelotas dependia cada vez mais do charque remetido exclusivamente para o nordeste brasileiro. Sobre o dinamismo da economia argentina na passagem do século XIX para o XX, assim como os investimentos no país,Porto ver LENZ, Heloisa.2004. Crescimento econômico e crise na Argentina de 1870 a 1 930: aingleses Belle Époque. Alegre:Maria UFRGS/FEE, 48 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 254. 49 50
CHAVES, Cleide. Op. cit.
BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p. 641. Na realidade, as remessas oscilaram muito com extremos entre 20 e 50 mil toneladas. Como só possuo séries completas de exportações para o Rio Grande do Sul, não foi possível organizar um gráfico comparativo entre os três portos. 51 Na realidade, o volume negociado foi muito maior, pois não se está computando a carne seca e salgada produzida por Estados Unidos, Venezuela e México, por exemplo. Na década de 1880, os Estado Unidos haviam capturado o mercado cubano dos platinos, obrigando-os a deslocar mais ainda as suas vendas para o Brasil, o que também ajuda a explicar a decadência final das charqueadas escravistas em Pelotas (MILLOT, Bertino M. Historia Económica del Uruguay(1860 – 1910). Montevideo, Tomo II, 1996, p. 152-153). 342
qualidade final. Já na década de 1850, Martin de Moussy dizia que o tasajo só havia prosperado graças “a classe desgraçada” que o consumia e que problemas de capital, mão de obra e da qualidade do gado eram os grandes empecilhos para o crescimento da indústria argentina. Em 1867, sob influência da recente abolição da escravidão nos Estados Unidos, um articulista escreveu: “la tendencia de época y para lo que com sobrada justicia se trabaja en el mundo civilizado, es abolir la esclavatura; esse día no lejano, el tasajo no valdrá nada pues faltaran bocas desgraciadas a quien imponerlo como alimento”.52 Por conta disto, o processo de abolição da escravidão em toda a América passou a ser visto por muitos saladeiristas como algo ameaçador. Sendo o tasajo dependente dos mercados escravistas, em que situação ficariam aqueles que os fabricavam diante de um mundo onde a liberdade individual vinha tomando força? Como poderiam empresários de visão tão empreendedora e ciosos de tais posições depender da escravização de homens para manter os seus negócios? Conforme Barsky e Djenderedjian, os saladeiristas temiam esta vinculação do tasajo com a escravidão, pois os libertos, em melhores condições de vida, poderiam rejeitar o produto. Hoje sabe-se que isto não aconteceu. O charque continuou a ser fabricado em larga escala e até aumentou a sua produção ao longo das primeiras décadas do século XX. E isto porque a vinculação do produto com a escravidão havia se tornado o efeito aparente de um problema muito mais profundo. Como notaram Barran e Nahum, a divisão social do consumo alimentar na segunda metade do oitocentos não era de ordem jurídica, mas sim, de ordem social. Homens cativos e homens livres pobres em geral (brancos ou negros) compartilhavam de uma infra-alimentação tão grande que a abolição do escravismo não representou ruptura nenhuma no que diz respeito a este aspecto. O charque, enquanto fonte importante de protéinas, ajudava a combater aquele problema. Isto não significa dizer que a indústria saladeril e charqueadora não dependia do consumo dos escravos. O primeiro capítulo desta tese foi todo dedicado a comprovar esta dependência e de como o tráfico atlântico foi fundamental no processo de montagem dos complexos fabris no cone sul americano. Mas se a escravidão africana criou as condições de arranque para o surgimento destas fábricas, o processo de abolição nos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil não foi capaz de eliminar o consumo do produto. O hábito de alimentar-se com carne-seca, charque ou tasajo foi absorvido por distintas culturas em várias regiões. Conforme o historiador cubano Manuel
52
Anais de la Sociedad Rural Argentina (1866-1867) apud BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 347. 343
Fraginals “o charque com batata-doce tornou-se o ‘prato nacional’” em seu país.53 Para Barran e Nahum foi a expansão dos frigorícos e a democratização das geladeiras, um processo lento e que estendeu-se por todo o século XX, que eliminou o charque da mesa das populações menos abastadas.54 Contudo, o pesadelo de que a abolição geral da escravidão negra pudesse provocar o fim da indústria saladeril argentina serviu para estimular novas saídas e investimentos de capital no setor. Era preciso aproveitar a grande abundância de gado vacum em seus campos. Entre 1862 e 1866, por exemplo, se abateu 8,3 milhões de bovinos, mas os saladeros e o consumo interno absorveram somente 40% de toda carne, ou seja, era tanto animal vacum disponível que se voltou a abatê-los somente para extrair os couros, desfazendo-se das carnes. Era necessário encontrar uma saída econômica para a superprodução de carne, uma vez que ela estava baixando o preço dos rebanhos e arruinando os estancieiros argentinos e uruguaios. Portanto, passou-se a duvidar do tasajo como o tipo de alimento a ser exportado . Em 1868 e 1872, autoridades administrativas ofereceram prêmios para quem descobrisse um novo sistema de conservação das carnes. Nos anos 1860, o sistema de extrato de carne, transformado por meio de um processo químico e vendido em enlatados, foi tentado tanto no 55
Rio Grande quanto no Prata. Sempre atentos aos mercados atlânticos e às inovações tecnológicas do período, alguns empresários, como o Barão de Mauá, também buscaram participar deste processo.56 Contudo, foi somente a partir dos anos 1870 que verdadeiras soluções foram alcançadas, com destaque para os produtores platinos. Nesta época, as remessas de gado em pé se tornaram um negócio viável e os avanços científicos possibilitaram a introdução de raças bovinas que forneciam mais carne.57 Na Argentina, em 1885, o gado crioulo não atingia 60 kg de tasajo por animal, enquanto em 1899, as novas raças já possibilitavam extrair quase 53
FRAGINALS, Manuel. Op. cit., p. 78. Por meio de citações na Literatura cubana, Andrew Sluyter verificou que o tasajo ainda persiste como um elemento fundamental daquela cultura, bem como um traço de sua memória social (SLUYTER, Andrew. The Hispanic Atlantic’s Tasajo Trail. Latin American Research Review, v. 45, n. 1, 54
2010, p.103). BARRAN, Jose P.; NAHUN, Benjamin. Op. cit. Os deputados rio-grandenses debateram tais questões intensamente na Assembléia Provincial. Ver, por exemplo, as sessões de 02.10.1862, 04.11.1862 e 21.04.1863, na qual se discutiram o oferecimento de prêmios para quem descobrisse novos métodos de conservação, os problemas dos mercados consumidores e a tentativa em retomar a fabricação das carnes em barris (PICCOLO, Helga. Coletânea de Discursos parlamentares da Assembléia Legislativa Provincial. Porto Alegre: ALRS, v. 1, 1998). 56 Segundo Caldeira, Mauá publicou anúncios em jornais europeus prometendo prêmios em dinheiro a quem inventasse um método de conservação para evitar a deterioração das carnes (CALDEIRA, Jorge. Mauá: Empresário do Império.São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 18). 57 Em 1869, a Argentina isentou de impostos a exportação de gado em pé, o que durou até 1888, tamanha era a abundância de rebanhos (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit. p. 342). 55
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100 kg do produto por rês abatida. Além do mais, as novas raças cresciam mais rápido que as crioulas. Contudo, o principal destino deste gado não era os saladeros, mas sim o mercado europeu e o abastecimento de Buenos Aires. 58 Apesar das primeiras experiências com navios capazes de carregar carnes congeladas terem sido realizadas nos anos 1870, foi somente nas décadas posteriores que a remessas atingiram quantidades significativas, sendo, primeiramente, as carnes de ovelha (década de 1880) e depois as carnes bovinas (década de 1890).59 Com o aumento do número de habitantes e a melhor condição de vida dos trabalhadores britânicos, a grande demanda por carne garantia a entrada de mais investidores no ramo.60 Contudo, nos anos 1880, a entrada dos Estados Unidos naquela mercado diminuiu as chances dos demais concorrentes. O norte-americanos, que haviam instalado um complexo sistema de transportes de carnes refrigeradas por meio dos vagões de trens no interior do seu país, implantaram tal método nos navios, conquistando de vez o exigente paladar britânico. A carne refrigerada era mais apetitosa que a carne congelada. Dos anos 1890 até a década de 1910, eles dominaram estes negócios relegando aos fabricantes platinos o papel de 61 fornecedores das carnes de segunda linha, destinadas às classes mais pobres. Foi durante
esta época que Chicago tornou-se o grande centro de abatedouros da América do Norte, matando quase 2 milhões de reses anualmente e atraindo trabalhadores de todos os lugares. Entre 1850 e 1900 sua população saltou de 5 mil habitantes para 1,7 milhões. 62 Na virada do século, três das suas grandes companhias controlavam o comércio de carne refrigerada para a 58
BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 344-364. Os saladeros preferiam o gado crioulo, pois seu couro era mais bem quisto no mercado e sua carne, menos gordurosa, era melhor para fazer o tasajo (BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., 1967). Muitos estancieiros não viam com bons olhos a mistura de raças. As raças mais especializadas como produtoras de carnes eram Shorthorn, Hereford e Aberdeen Angus. Ao contrário do que havia ocorrido com os investimentos em novas raças de ovelhas (na qual os britânicos tiveram papel fundamental), o melhoramento dos bovinos foi patrocinado pelos próprios argentinos. Neste aspecto, o sucesso atingido com as ovelhas lhes serviu como exemplo. 59 Em 1899, o valor das exportações de gado em pé ainda era 3,2 vezes maior do que a de carne congelada. Mas este transporte estava se tornando muito caro. Um bovino transportado por 25 a 30 dias perdia cerca de 150 kg na travessia. Além disso, era muito custoso transportá-los vivos. Cada animal enviado em pé para a Europa representava uma carga de 2 toneladas, somando o seu peso com o que ele deveria comer em um mês. Cerca de 1/3 do rebanho morria na viagem. Apesar de tudo, o negócio era muito rentável, pois enquanto um animal custava uma onça de ouro para ser carregado, ele era vendido por 6 ou 8 onças de ouro na Europa (BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 374-75). 60 Sobre as melhorias nas condições de vida dos tr abalhadores ver HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (18481875). São Paulo: Paz e Terra, 2000. Conforme Perren, o consumo de carne per capita na Inglaterra aumentou em 50% entre as décadas de 1840 e 1890 (PERREN, Richard. Op. cit., 1978, p. 3). 61 Um dos motivos pelo qual os norte-americanos dominaram o mercado de carnes refrigeradas foi a maior proximidade com a Europa, pois, pela tecnologia da época, ainda não era possível levar as cargas refrigeradas do Rio da Prata até a Inglaterra. Somente o congelamento proporcionava tais viagens. Foi preciso esperar mais 20 anos para que as técnicas de refrigeração fossem aproveitadas pelos produtores platinos. 62 ZUCCONI, Guido. A cidade do século XIX.São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 17. 345
Europa: a Armour & Co., a Swift & Co. e a Morris & Co. 63 Contra estes barões da carne não havia a mínima possibilidade de competir…
8.2 PELAS “MARGENS” DO CAPITALISMO: OS MERCADOS ATLÂNTICOS DOS COUROS E DO SAL Apesar das considerações a respeito dos mercados do charque e dotasajo, é necessário fazer uma importante ressalva. Se para o Rio Grande do Sul o charque foi responsável por algo entre 30% e 40% das suas exportações entre os anos de 1860 e 1870, nos países do Rio da Prata ele não ultrapassou nem os 10% dos valores negociados para o exterior. Na primeira metade do século XIX, por exemplo, os couros vacuns sempre lideraram as exportações no porto de Buenos Aires. Em 1822, 1842 e 1851, eles perfizeram 64,9%, 63,7% e 61,2% dos valores negociados, sendo os seguintes lugares ocupados, respectivamente, pelo tasajo (9,6%), pelas lãs (11%) e pelo sebo (11,8%). De acordo com Rosal e Schmit, somando os portos de Buenos Aires e Montevidéu, o Rio da Prata exportou 800 mil couros nas vésperas da Revolução de 1810, atingiu mais de 1 milhão nas décadas de 1820 e 1830, para ultrapassar os 2 milhões no meado do século, ou seja, cerca de 3 vezes mais que o Rio Grande do Sul exportou neste último período.64 Outra mercadoria que colocava os platinos em vantagem era a lã. Na segunda metade do século, este produto alcançou os couros em importância e, mesmo que o volume de tasajo negociado tenha aumentado, o seu percentual entre os valores exportados pelo porto de Buenos Aires diminuiu mais ainda, mantendo uma média entre 3% e 6% – realidade muito distinta do Rio Grande do Sul.65 Portanto, as exportações dos couros (e das lãs, no caso dos países platinos) foram fundamentais para o desenvolvimento de ambos os espaços econômicos. No processo de industrialização na qual Inglaterra, França, Estados Unidos e algumas nações europeias tiveram papel proeminente ao longo do oitocentos, a demanda por peles de animais em geral PERREN, Richard. The north american beef and cattle trade with Great Britain (1870-1914). The Economic History Review, New series, v. 24, n. 3, 1971, p. 435-441. 64 ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., 1999, p. 78-91. Como foi visto no primeiro capítulo, os couros foram responsáveis por conectar o Rio Grande do Sul, por meio do porto do Rio de Janeiro, ao comércio internacional. Os dados de exportação do produto são escassos, mas pode-se dizer que nos anos 1810, o Rio Grande produzia a metade do Rio da Prata. 65 ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., p. 89-91; BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 344. Na segunda metade do século a indústria platina manteve altos índices de exportações, acrescendo as vultosas remessas de lã no mercado internacional, algo que o Rio Grande do Sul não conseguiu realizar com sucesso semelhante (SABATO, Hilda. Capitalismo y ganadería en Buenos Aires: la fiebre del lanar (18501890), Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1989). As charqueadas pelotenses não abatiam ovinos e a lã nunca chegou a 4% dos valores exportados na segunda metade do século XIX. 63
346
foi uma constante e o cone sul americano integrou-se ao mercado internacional como fornecedor destes produtos. Esta estrutura econômica foi um fator fundamental para a compreensão das capacidades e das limitações das economias platinas e pelotense no período. A pecuária argentina e uruguaia era muito mais dinâmica e ligava-se a distintos mercados se comparada à rio-grandense que, além de depender de um único mercado consumidor de charque nos anos 1870, possuía um rol inferior de produtos negociáveis.
Gráfico 8.4 – Unidades de couro e arrobas de charque exportadas pelo Rio Grande do Sul (1845-1889)
3.500.000 3.000.000 2.500.000 2.000.000 1.500.000 1.000.000 500.000 0
Couros (em unidades)
Charque (em arrobas)
Fonte: Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1848-1862); Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.
Neste sentido, os couros cumpriam um papel fundamental na economia rio-grandense, pois o seu mercado parecia apresentar uma demanda mais elástica. No entanto, como tratavase de um artigo voltado principalmente para o exterior, o mesmo estava mais vulnerável às crises que porventura afetassem as indústrias das regiões consumidoras. A partir do Gráfico 8.4 é possível acompanhar os seus ritmos de exportação comparados aos do charque. As curvas demonstram que em momentos de queda das exportações do charque os couros podiam garantir um maior ganho na economia provincial.66 Pode-se observar que de 1849 até 1858, as exportações despencaram, apesar do pequeno salto de 1855. Trata-se de um período em que os preços do couro também estiveram em baixa (Gráfico 8.5), assim como os do charque. Foi 66
As curvas dos totais de couros exportados não são totalmente equivalentes às do charque porque nem todo o couro era proveniente de animais abatidos nas charqueadas. O gado destinado ao consumo local também tinha seu couro vendido para fora da província, por exemplo. 347
uma época de grande dificuldade para os charqueadores pelotenses e que também deve ter afetado os criadores de gado. Contrariando a década de 1850, a posterior foi de nítida retomada das exportações do produto, apresentando um estacionar na década de 1870 e uma explosão das vendas na década de 1880. Como os mercados consumidores de charque e couros não eram os mesmos, o charqueador podia compensar as perdas de um ramo acessando o outro.
Gráfico 8.5 – Preços de couro no porto de Rio Grande (1845-1890) (mil réis/unidade)
10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 7 6 8 1
Fonte: Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande do Sul (1848-1862); Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922.
Com relação aos destinos das exportações dos couros, não existem dados muitos completos nem no Rio Grande do Sul, e, de acordo com Rosal e Schmit, nem para as remessas platinas. Conforme os autores argentinos, os maiores compradores foram, em ordem de importância, Inglaterra, Estados Unidos, com França e Espanha disputando o terceiro lugar. O maior vínculo mercantil com o Reino Unido, predominante em quase todo o período, também se devia pelo fato dos britânicos serem os grandes parceiros comerciais de Buenos Aires. Contudo, esta posição foi ameaçada somente no meado do oitocentos, quando os Estados Unidos atingiram um grande nível de industrialização e a lã começou a se tornar o grande produto na pauta das exportações argentinas. No período entre 1849 e 1854, os
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Estados Unidos ultrapassaram a Inglaterra pela primeira vez. Na década de 1850, os 67 americanos foram os maiores compradores de lã, seguidos de Inglaterra e França.
No Rio Grande do Sul, os destinos das exportações de couro foram praticamente os mesmos. Utilizando as pesquisas de Daniel Torres e Josiane Silveira, foi possível verificar estes indicadores nas décadas de 1840 e 1850.68 Conforme os dados coletados por Torres, para o ano de 1847, os couros secos e salgados tinham como principais mercados os Estados Unidos, a Inglaterra, as cidades hanseáticas, a França e Portugal, além de outros com menor importância. Estes produtos, assim como as canelas e os chifres, eram processados nas indústrias estrangeiras, com destaque para as têxteis. Mas examinando mais detalhadamente estes dados observam-se duas rotas distintas dependendo do couro que se negociava. A Inglaterra importava 77% dos couros salgados, mas somente 3% dos couros secos, ocupando a quinta posição neste produto. Já os norte-americanos eram o quarto maior importador de couro salgado, reunindo 3% das importações, mas eram os líderes no comércio de couros secos, com 58%.69 Esta diferença, apesar de não ter sido analisada por Rosal e Schmit, também se verificava nas exportações platinas. Conforme Nahum e Barran, os ingleses preferiam os couros salgados, algo que envolvia as preferências das respectivas indústrias 70
compradoras, o tipo de uso do couro e do produto que se fabricava. Analisando os totais de carregamentos e seus destinos para o ano de 1854, é possível matizar melhor estes circuitos. Dos 209 carregamentos contendo couros secos, 28% foram remetidos para portos brasileiros, com destaque para Pernambuco que teve como porto destino 86% dos totais nacionais. Entre os portos internacionais, mantém-se a tendência de 1847, ou seja, os Estados Unidos eram os maiores receptores do couro seco, compondo 89 carregamentos ou 60% das exportações para o estrangeiro. Neste circuito, mereceram destaque New York (com 43 carregamentos), seguida de longe por Salem, Baltimore, Filadélfia, New Orleans, Richmond e Boston. Analisando o comércio dos couros salgados percebe-se que a mesma tendência de 1847 também permanece em 1854, ou seja, a liderança inglesa. Dos 130 carregamentos de couros salgados somente 1 foi para um porto brasileiro, ao 67
ROSAL, Miguel; SCHMIT, Roberto. Op. cit., 1999, p. 89-95. TORRES, Daniel de Quadro. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, 2004; 68
SILVEIRA, Josiane Alves da. Rio Grande: portas abertas para as importações de sal no século XIX. Monografia de conclusão do curso de História da FURG. Rio Grande, 2006. 69
TORRES, Daniel. Op. cit., p. 50-52. Com relação aos chifres, para a fabricação de objetos e de pentes diversos, inclusive dos usados nos teares, a Inglaterra importava 645.703 unidades, ou 58% do total, secundada pelos Estados Unidos com 19%. 70 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit. 349
contrário dos couros secos. Os portos ingleses receberam 60% dos carregamentos totais, com destaque para Cork e Falmouth que concentraram 92% dos destinos ingleses, seguido por Liverpool, Plymouth e Quenstown.71 Os fabricantes que se utilizavam do couro, assim como as suas indústrias, possuíam caraterísticas bastante variadas, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Além dos comerciantes importadores e dos atravessadores, havia uma série de outros produtores que beneficiavam o couro de forma mais ou menos artesanal e sem uma mecanização plena. Eles se distribuíam pelos seus respectivos países em pequenas oficinas de curtumes e fábricas especializadas em determinados tipos de produtos. Na Inglaterra, por exemplo, os fabricantes de Yorkshire eram especializados em elaborar um couro pesado que servia para as correias das máquinas das grandes fábricas. Estes proprietários devolviam para o mercado uma série de produtos como sapatos, bolsas, luvas, selas, além de outros, de diferentes tipos e tamanhos. Na Inglaterra, os principais polos destas fábricas e oficinas eram as cidades de Leeds, Liverpool e Londres. Conforme Church, no meado do oitocentos, o deslocamento de muitos fabricantes londrinos e de outras cidades para os arredores de Liverpool (atraídos pelos benefícios daquele porto) favoreceu um maior crescimento deste ramo de atividades, aumentando a demanda por peles. Nesta época os couros sul-americanos foram amplamente importados, sendo que, entre 1870-74 e 1890-94, o volume das entradas nos portos ingleses aumentou quase 5 vezes.72 Tal incremento de atividades fez surgirem notáveis cidades industriais como Walsall – a 8 km de Birmingham – especializada na produção de selas.73 Assim como na Inglaterra, os circuitos mercantis dos couros nos Estados Unidos eram controlados por poderosos grupos de negociantes estabelecidos nos portos norte-americanos que revendiam os mesmos aos curtidores e fabricantes espalhados pelo país. Entretanto, os principais polos fabris encontravam-se no litoral atlântico. As cidades de Massachusetts, por exemplo, reuniam a maior parte das fábricas de sapatos do país, juntamente com New York, New Jersey, Lynn, entre outras.74 Conforme Ellsworth, os sapatos e botas consumiam ¾ do
71
A lista dos demais portos, apesar de receber poucos carregamentos, é ampla e contém: Malta, Marselha, Porto, Bremem, Cádiz, Filadélfia, Gotemburgo, Málaga, Bergen, Hamburgo, Constantinopla, entre outros. Estes indicadores são confirmados pelas tabelas e dados contidos nos Relatórios dos Presidentes de Província na década de 1850. 72 CHURCH, R. A. The British Leather Industry and Foreign Competition (1870-1914). The Economic History Review, New Series, v. 24, n. 4, 1971, p. 543-570. 73 GLASSON, Michael. Walsall Leather Industry: the world’s saddlers.Oxford: Marston Book, 2013. 74 MULLIGAN JR., William. Mechanization and work in the american shoe industry: Lynn, Massachusetts, 1852-1883. The Journal of Economic History, v. 41, n. 1, Mar. 1981, p. 59-63. 350
couro norte-americano.75 Nos anos 1860, a indústria calçadista chegava a outras cidades do interior como Rochester, Cincinnati, Detroit, Chicago, St. Louis e Milwaukee, por exemplo. 76 Com o crescimento populacional e a expansão das estradas de ferro, os sapatos e demais produtos de couro fabricados pelas cidades da costa leste foram acompanhando a nova demanda e abastecendo os consumidores do meio-oeste. Tal fenômeno provocou a lenta substituição dos pequenos fabricantes, artesãos e sapateiros do interior do país e as pequenas oficinas de curtumes do litoral por indústrias cada vez maiores, cujo maquinário, tecnologia e número de trabalhadores eram maiores.77 Portanto, a elasticidade do mercado consumidor dos couros tinha relação direta com o grande aumento populacional e a crescente urbanização das grandes cidades norte-americanas, francesas e inglesas e tornou-se um dos grandes trunfos das charqueadas e saladeros platinos para resistir às crises que afetavam o consumo do charque. Mas os couros exportados pelo Rio da Prata para a Europa também possuíam uma importante parceira capaz de abrir muitos mercados no Velho Mundo. Como já foi dito, a lã também foi um grande trunfo das economias platinas no período. Apesar da criação de ovelhas nos campos da região ser antiga, foi somente com a importação de carneiros merinos (processo conhecido como a merinização) que iniciou-se a expansão da produção lanígera. Além disso, a alta dos preços da lã atraiu muitos investidores estrangeiros. A lã argentina e uruguaia preenchia perfeitamente a demanda por fios na fase de aceleração industrial no Atlântico norte e, aos poucos, passou a disputar o mercado inglês com as peles negociadas no interior da Europa. Neste contexto, a Guerra da Criméia (1853-1856) e a Guerra Civil Americana (1861-1865) constituíram-se em importantes impulsionadores da expansão lanígera no Prata. A primeira provocou a escassez de peles, pois Rússia e Turquia, envolvidas no conflito, eram as maiores produtoras mundiais de lãs. A segunda diminuiu as remessas de algodão para os portos britânicos, estimulando o uso das lãs nas fábricas. A febre del lanar, como ficou conhecida, trouxe muitos investimentos de capitais para a região platina, estimulou a vinda de estrangeiros, mostrou que a mistura de raças era benéfica para o desenvolvimento da pecuária e incorporou a fabricação do charque de carne ovina, trazendo
75
ELLSWORTH, Lucius F. Craft to national industry in the nineteenth century: a case study of the transformation of the New York State tanning industry. The Journal of Economic History, v. 32, n. 1, Mar. 1972, p. 399-402. 76 ROOVER JR., E. M. The location of the shoe industry in the United States. The Quarterly Journal of Economics, v. 47, n. 2 (Feb. 1933), p. 254-276. 77 MULLIGAN JR., William. Op. cit.; ELLSWORTH, Lucius. Op. cit. 351
grandes lucros aos saladeros.78 Por conta disto a criação de ovinos, que na década de 1830 era realizada em pequenas propriedades e com uso do trabalho familiar, passou a despertar o interesse de grandes estancieiros. Ela foi um dos motivadores do avanço sobre as terras indígenas no Pampa (1867-1890) que incorporou 40 milhões de hectares de campos para a criação de gado bovino e ovino. Como resultado disto, o rebanho de ovelhas quadruplicou entre 1856 e 1876, chegando a 60 milhões de animais. Em 1895, o seu estoque já atingia quase 75 milhões.79 Antes de concluir esta parte, é necessário fazer algumas considerações breves sobre o comércio de sal. Não foi possível localizar séries de preços e quantidades de sal importadas pelo Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX. Mas ao analisar os carregamentos desta mercadoria para a província, Silveira ajudou a preencher parte destas lacunas para a primeira metade do século. Observando os indicadores pesquisados pela autora, verifica-se que os meses de janeiro e fevereiro eram os que recebiam os maiores números de carregamentos de sal, ou seja, exatamente na época da safra nas charqueadas. No período mencionado, o sal era o artigo mais importado pela província, superando de longe o açúcar e a farinha, por exemplo. Em contrapartida, os meses de agosto e setembro eram os de menor entrada do produto no Rio Grande do Sul. De acordo com Silveira, o sal também era 80 o único artigo em que eram remetidas embarcações carregadas exclusivamente com o produto. Os dados publicados nos periódicos da época não apresentam o volume de sal importado, mas somente a procedência e o número de carregamentos. Analisando os índices de 1850 e 1854 percebe-se que 49,8% dos carregamentos provinham de portos estrangeiros. Tratava-se de uma realidade diversa da apontada por Gonçalves Chaves para os anos entre 1816 e 1822, quando o volume de sal nacional superava o sal estrangeiro. 81 Acredito que uma explicação para esta mudança deve-se ao fato de que os comerciantes ingleses haviam desbancado os brasileiros no comércio dos couros nesta mesma época. Um exame das principais firmas mercantis envolvidas no comércio dos couros e do sal (que realizo a seguir) revela que muitos dos negociantes que retornavam para a Europa com os couros salgados eram os mesmos que traziam grandes carregamentos de sal dos fornecedores estrangeiros. 78
SABATO, Hilda. Op. cit. Para os dados referentes ao grande salto das exportações de lã ver REBER, Vera. British Mercantile Houses in Buenos Aires (1810-1880). Cambridge, Massachusetts and London: Harvard University Press, 1979, p. 26. 79 BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Op. cit., p. 304-321; 355. 80 SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 26-32. A autora analisou o Jornal O Rio-grandense dia a dia nos anos de 1850 e 1854. 81 CHAVES, Antônio José G onçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do B rasil. Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978. 352
Entre os portos estrangeiros que forneciam sal para o Rio Grande, Lisboa obteve destaque perfazendo entre 32 e 34% dos carregamentos estrangeiros, seguida de perto por Cádiz, com 28% a 30%. O porto nacional que mais remeteu carregamentos de sal foi o Rio de Janeiro, oscilando entre 55% e 65% dos totais nacionais enviados em 1850 e 1854, seguido por Bahia e Pernambuco que juntas somaram de 25% a 28%. No geral, o Rio de Janeiro foi o porto que mais remeteu embarcações com sal para o Rio Grande do Sul, somando de 31,5% dos totais no período. Entretanto, como afirmou Silveira, é provável que os comerciantes da praça carioca estivessem reexportando sal proveniente de outras regiões.82 O sal produzido no nordeste, cujas salinas constituíam importante atividade econômica, também era reexportado por Pernambuco e Bahia. É necessário referendar que as embarcações vindas do Rio não eram exclusivas de sal, pois o Rio Grande do Sul recebia muitas outras mercadorias deste porto. Conforme Silveira, os carregamentos exclusivos de sal nunca provinham do Rio e da Bahia, podendo ser de Assú (Rio Grande do Norte), Pernambuco, Cabo Frio, Setúbal, Porto, Lisboa, Cádiz, Buenos Aires, Patagônia e Cabo Verde. A presença de portos franceses, como Marselha, e norte-americanos, como Salém, foi mínima. 83 Embora o sal nacional também fosse remetido para Rio Grande, o sal preferido pelos charqueadores sempre foi o estrangeiro, sobretudo o de Cádiz. Os charqueadores “consideravam-no o único válido para a fabricação de charque e desprezavam o produto nacional” que começou a ganhar uma fatia no mercado “à medida que se desenvolveram as salinas do Rio Grande do Norte e, depois, as de Cabo Frio”.84
8.3 NO RASTRO DOS BROKERS: O FUNCIONAMENTO DO MERCADO EM PELOTAS E OS CHARQUEADORES NO ALTO COMÉRCIO MARÍTIMO Como se fosse algo estrutural no interior das redes mercantis que vinculavam aquelas sociedades atlânticas, em cada porto um grupo de comerciantes destacava-se controlando a maioria dos carregamentos de charque e de couros. Em 1858 e 1864, por exemplo, os 3 maiores importadores de charque no Rio de Janeiro concentraram, aproximadamente, 30,86% e 30,53% do total dos carregamentos de carne seca. Nos últimos decênios do século XIX, em 1885, 1887 e 1900, as 3 primeiras casas mercantis controlaram 53,78%, 47,63% e 54,40% das mesmas. Contabilizando as 10 primeiras firmas, Graça Filho detectou que em 1858 elas 82 83 84
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 35. Idem, p. 34-37. MARQUES, Alvarino. Op. cit., p. 84. 353
reuniam 66,5% e em 1885, 83,5%, chegando a 99,7% das transações em 1900. 85 O mesmo autor acrescentou que a acumulação srcinada no comércio de abastecimento pelas 10 firmas foi o ponto de partida de algumas das maiores riquezas do Rio de Janeiro. A projeção social destes comerciantes pode ser verificada “pelos títulos nobiliárquicos, pelos cargos de direção e presidência de bancos e companhias, pelo número de navios e ações que possuíam”. O papel da família no gerenciamento dos negócios também foi marcante. Juan Frias, Militão Máximo de Souza e Miguel d’Avellar, que estavam entre os 11 primeiros importadores de charque de 86 1864, viram seus descendentes continuarem seus negócios até o fim do Império. A mesma concentração deste comércio de abastecimento nas mãos de poucos homens pode ser verificada na Bahia, onde se destacaram Antônio Pedroso de Albuquerque, Antônio Ferreira Pontes e Joaquim Pereira Marinho. Na segunda metade do século, Marinho foi o maior importador de charque de Salvador. 87 Em 1887, seus bens foram avaliados em 392.680 libras esterlinas (uma fortuna que o colocava entre os homens mais ricos do Brasil). Seus negócios com o charque eram tão expressivos que, entre os baianos, ele era conhecido como o “carne-seca”. Em seu inventário, Cristiana Ximenes localizou 227 imóveis apenas em Salvador, a maioria oriunda da execução de hipotecas.88 Segundo Graça Filho, a forma como os comerciantes atacadistas de charque agiam neste circuito era odiosa aos olhos dos próprios contemporâneos. Sua sede de lucro fazia com que os mesmos elevassem ainda mais o seu 89 valor no mercado ao deixá-lo estocado por meses em seus depósitos. Ao calcular o preço do
boi no período, Sebastião Soares escreveu que o charque atingia um valor “espantoso” na
85
Os mesmos importadores de carne seca tratavam da cabotagem dos outros artigos sulistas, como a farinha de mandioca, o feijão, o milho, entre outros. Em 1869, 1874 e 1885, as três primeiras importadoras cuidaram, respectivamente, de 62,59%, 73,30%, 75,87% da oferta de farinha de trigo, por exemplo (GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 91). 86 GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 161-162. 87 Na primeira metade do século, Joaquim Marinho acumulou o tráfico de escravos com o comércio de charque “utilizando esta mercadoria na implementação das transações comerciais com a costa africana”. Entre 1830 e 1850, ele também traficou escravos para Montevidéu. Cleide Chaves encontrou muitas embarcações de Marinho sendo dirigidas para a América do Sul, entre 1850 e 1875. Elas carregavam cachaça, açúcar, tabaco e sal para o Rio da Prata (CHAVES, Cleide. Op. cit., 2001, 68-73). 88 XIMENES, Cristiana. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na Bahia (1828-1887). Dissertação de Mestrado em História. UFBA, 1999, p. 95-96. Além destes trabalhos, não existem outros que analisem os comerciantes que atuavam neste ramo de negócios, sobretudo, para Pernambuco. O Almanak Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola da Província de Pernambuco (1881) lista 48 negociantes de carne-seca estabelecidos em Recife, além de vários outros armazéns, o que serve como importante ponto de partida para futuras pesquisas. 89 GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 67. Graça Filho mostrou que os negociantes da praça carioca lucravam muito com o comércio do produto. Em 1859, por exemplo, o valor de exportação do charque em Rio Grande era de 105 réis/Kg, mas no Rio ele era revendido no atacado por 276 réis/Kg, esboçando um lucro de 162% sobre o preço na compra. 354
praça carioca. A alta dos preços dos alimentos e a reação popular contra os mesmos foi tão marcante que até o Imperador buscou intervir através das Falas do Trono.90 No Rio Grande do Sul, Gabriel Berute verificou que 7 comerciantes (14,5%) 91 concentraram 35,9% dos carregamentos de charque entre 1834 e 1851. Entre os mesmos
estava o charqueador Antônio José de Oliveira Castro, uma das 12 maiores fortunas entre os empresários de Pelotas. Em 1854, 5 comerciantes (27,7%) reuniam 45% dos carregamentos de charque indicados por Josiane Silveira para aquele ano.92 O balanço da safra 1874/75, apresentou 157 embarcações carregando mais de 23 mil toneladas de charque. No total, foram arrolados 22 comerciantes “carregadores” distintos, além de um grupo incluído entre os “diversos”. Os 5 principais exportadores controlavam 50% das remessas (85% delas tinham 93 como destino o nordeste, sendo 46 carregamentos para a Bahia e 21 para Pernambuco).
Com relação aos comerciantes envolvidos no comércio dos couros se verifica algo semelhante. Em 1847, os maiores exportadores de couros salgados eram Carruthers Sousa & Cia. (88.602), Holland Davies & Cia. (81.863), Bradshaw Wenklyn & Cia. (64.074), Proudfoot Muir & Moffat (44.498) e Hugentobler & Douley (32.178). Em 1854, alguns nomes se repetiam e, ao invés das quantidades de couros exportadas, os periódicos indicavam o número de carregamentos. Entre os primeiro encontravam-se Hugentobler & Cia (36), Marcos Pradel & Cia (27), Lind & Cia (23), Proudfoot Muir & Moffat (8) e Claussen & Bertran (6). Comparando as transações envolvendo couros secos e salgados é possível verificar que havia uma especialização na negociação de cada produto, pois somente um destes cinco maiores exportadores de couros salgados também estava entre os maiores negociantes de couros secos. Em 1847, por exemplo, os maiores exportadores desta última mercadoria eram Hugentobler & Douley (177.800), Claussen & Cia. (103.804), E. H. Folmar (31.446), Marcos Pradel (17.671) e Thomaz Messiter (14.908). Em 1854, os maiores carregamentos de couros secos estavam nas mãos de Hugentobler & Cia (54), Bento & Irmãos (23), Claussen & Bertran (20), Lind & Cia (9), Marcos Pradel & Cia (8). Portanto, verifica-se que alguns deles conseguiram permanecer por94mais anos entre os maiores exportadores, além de concentrar grande quantidade de remessas. 90
GRAÇA FILHO, Afonso. Op. cit., p. 69. BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPG-História da UFRGS, 2011, p. 84. 92 SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 53. 93 Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 94 SILVEIRA, Josiane. Op. cit.; TORRES, Daniel. Op. cit., p. 40-41. Conforme Daniel Torres, estes comerciantes residiam na cidade de Rio Grande e deviam ter sócios na Europa e nos Estados Unidos. Entre os 91
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A partir destes dados se observa que, ao contrário do comércio do charque, as exportações de couros no meado do século eram dominadas por firmas estrangeiras estabelecidas em Rio Grande. Contudo, conforme Helen Osório e Gabriel Berute esta não era uma realidade encontrada antes da década de 1840, por exemplo. Segundo Berute, foi a partir dos anos 1850, que os comerciantes estrangeiros, principalmente os ingleses, firmaram-se de 95 vez como os principais agentes mercantis envolvidos na exportação dos couros. Portanto,
antes desta “invasão” britânica, a exportação dos couros era intermediada por luso-brasileiros estabelecidos em Rio Grande e no Rio de Janeiro. As estatísticas para o ano de 1847, expostas acima, sugerem que na década de 1840 os ingleses já se encontravam na condução deste comércio e que o meado do século deve ter sido decisivo na sua fixação como monopolistas. Conforme Renato Marcondes foi exatamente nesta época que se iniciou uma transformação nas relações mercantis da província, pois o comércio do Rio Grande com as praças estrangeiras passou a ser realizado cada vez mais sem a intermediação do Rio de Janeiro. 96 Observe-se que esta virada ocorria justamente na época em que o tráfico atlântico era extinto, o que certamente vinha a enfraquecer parte dos comerciantes de grosso trato cariocas. Portanto, no meado do século, os ingleses retiraram os brasileiros do mercado dos couros da mesma forma como os rio-grandenses foram “empurrados” para fora dos mercados de charque pelos platinos. Tal fenômeno deve ter possibilitado um grande lucro para as muitas casas exportadoras estrangeiras instaladas na cidade portuária de Rio Grande, assim como daqueles comerciantes que conseguiram inserir-se nestes negócios atlânticos. Mas a “invasão” britânica tinha motivos de força maior.97 A expansão inglesa sobre os mercados dos couros convergiu com o maior crescimento da economia britânica visto até então. Nunca as exportações inglesas aumentaram tão rapidamente quanto nos primeiros sete estrangeiros importadores de sal também é possível verificar exportadores de couros, revelando que as embarcações que traziam o sal do outro lado do Atlântico retornavam com couros para as indústrias europeias. Como demonstro a seguir, a especialização dos comerciantes nos negócios com couros secos e salgados era consequência dos mercados consumidores e das rotas mercantis na qual os mesmos estavam inseridos. 95 BERUTE, Gabriel. Op. cit., 2011. 96 MARCONDES, Renato Leite. O mercado brasileiro do século XIX: uma visão por meio do comércio de cabotagem. In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de História Econômica (ABPHE). Campinas: CDROM,
2009, p.153-154. 97 De acordo com os estudos de Carlos Gabriel Guimarães, a presença dos britânicos no comércio brasileiro remontava ao início do século, desde a Abertura dos portos, em 1808. Portanto, o fenômeno aqui descrito era muito mais complexo e se ancorava numa consolidada tradição de relações mercantis entre ingleses e brasileiros muito bem tratada pelo autor. Para uma análise destas relações políticas, sociais e econômicas que os mesmos estabeleceram com as elites mercantis e políticas na Corte ver GUIMARÃES, Carlos Gabriel. A presença inglesa nas finanças e no comércio no Brasil Imperial. São Paulo: Alameda, 2012; GUIMARÃES, Carlos. G. O Comitê de 1808 e a defesa na Corte dos interesses ingleses no Brasil. In: José Murilo de Carvalho; Lucia Maria Bastos Pereira das Neves. (Org.). Repensando o B rasil dos Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 511-530. 356
anos da década de 1850. Para onde se olhava, a “grande expansão” era notável. Da descoberta do ouro na Califórnia, em 1848, até a metade da década de 1850, a disponibilidade mundial do metal aumentou de seis a sete vezes, fazendo multiplicar os meios de pagamento e encorajar a expansão do crédito. As indústrias se proliferavam por toda a Europa e “os lucros aparentemente à espera de produtores, comerciantes e, acima de tudo investidores apresentavam-se quase que irresistíveis”. Esta expansão sofreu um recuo em 1857, para 98 retornar na década de 1860 com toda a força, até a grande depressão de 1873.
O comércio internacional também atingiu altos índices no período. As exportações e importações brasileiras tiveram seus valores triplicados entre 1845 e 1865. 99 As exportações britânicas para a América do Sul, por exemplo, saltaram de 6 milhões de libras, em 1848, para 25 milhões, em 1872.100 Nessas transações, o Brasil foi o maior parceiro comercial dos ingleses e o capital britânico fluiu aceleradamente para a economia brasileira. 101 As embarcações que chegavam com têxteis e mercadorias diversas retornavam abarrotadas de café, açúcar e couros, entre outros produtos. Apesar da grande expansão da indústria têxtil inglesa ter acontecido nas primeiras décadas do oitocentos, ela continuou a crescer nesta época e expandiu-se para outros países.102 Com todo este crescimento, a Bolsa de valores do Rio viu-se em completa euforia e foi alvo de muitas especulações gerando grandes fortunas e grandes bancarrotas.103 Basta dizer que esta foi a era do Barão de Mauá, o que dispensa maiores explicações. Aliás, Mauá também esteve diretamente associado à “invasão” britânica no porto de Rio Grande, por meio da Carruthers, Souza & Cia, maior exportadora de couros salgados, em 1847. Esta firma também aparece entre as exportadoras de sal e de couros secos, revelando certa diversidade de investimentos. O empresário brasileiro também foi pecuarista no 104 Uruguai, onde acumulou mais de 160 mil hectares, 16 mil reses e 100 mil ovelhas. Além
disso, instalou uma filial de seu banco em Pelotas e Rio Grande e apareceu comprando seis
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 55-77. GOULARTI FILHO, Alcides. Abertura da navegação de cabotagem brasileira no século XIX. Ensaios FEE, v. 32, n. 2, nov. 2011, p, p. 414. 100 HOBSBAWM, Eric. Op. cit., 2000, p. 82. 101 PLATT, D. C. M. Latin America and British Trade (1806-1914). London: T. & A. C. Ltd., 1972, p. 316321; GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1973). 102 Para um interessante quadro geral deste período tanto na indústria europeia quanto na sua relação com as Américas ver CANABRAVA, Alice. O algodão em São Paulo (1861-1875). São Paulo: T. A. Queiroz, 1984. 103 LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994, p. 54-55. 104 MARQUES, Alvarino da F.A Economia do Charque.Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992, p. 58-59. 98 99
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escravos de um pelotense, em 1855, indício de que estivesse atuando, por meio de seus sócios, no tráfico inter-provincial.105 Como é sabido, Mauá era rio-grandense e tais atividades revelam que ele jamais perdeu seus vínculos com a região, onde possuía os seus agentes. Além disso, entre 1853 e 1873, ele foi deputado geral pela mesma província, representando-a na Corte e, na mesma época, casou seu filho com a filha de José Luís Cardoso de Sales, o Barão de Irapuá, que em algumas notas biográficas consta como tendo sido estancieiro no Rio Grande do Sul.106 Analisando as listagens elaboradas por Silveira e Torres foi possível observar que Mauá também participava do comércio de sal. 107 A firma Carruthers Souza & Cia, cujo um dos sócios era Mauá, apresentou 3 carregamentos em 1850. Neste ano e no de 1854 verificouse as seguintes firmas (com seus respectivos carregamentos): Lind & Cia (29), Hugentobler & Cia (28), Eufrásio Lopes de Araújo (27), Proudfoot Muir & Moffat (15) e Paiva & Vianna (14). Analisando detalhadamente os carregamentos de Paiva & Vianna, Silveira verificou que os mesmos estavam mais associados ao comércio de cabotagem, recebendo sal da Bahia, Pernambuco e Rio, sendo que seus navios também traziam açúcar, aguardente, cal e outros gêneros. Somente Pernambuco enviou cargas exclusivas de sal para o Rio Grande. Entretanto, analisando somente os carregamentos da firma inglesa Hugentobler & Cia, foi possível verificar que somente dois vinham de portos do Brasil: Paranaguá e Pernambuco. Mais da metade dos carregamentos provinham de Cádiz e Cabo Verde e eram na sua maioria exclusivas do produto.108 Portanto, é possível perceber que havia uma divisão dos mercados atlânticos, ficando o transatlântico nas mãos dos comerciantes estrangeiros (principalmente os ingleses e norteamericanos) e o de cabotagem com os luso-brasileiros (sendo boa parte formada por riograndenses). Alguns dos importadores de sal nacional também estavam entre os maiores exportadores de charque, como Lobo & Barbosa, J. M. da Costa Sol, Porfírio Ferreira Nunes & Cia., Cascão & Irmãos, Cruz Guimarães & Cia. e José Ribeiro de Farias Guimarães. O comércio de cabotagem era a especialidade destes negociantes e ele era controlado por brasileiros. Alguns deles se arriscavam nas exportações de couro para os mercados do Atlântico norte, mas pareciam não obter muito sucesso. Comparando as firmas exportadoras 105
Inventário de José Antunes da Porciúncula. 1º Cartório de órfãos e ausentes, Pelotas, 1855 (APERS). Para uma análise mais completa sobre a atuação de Mauá na política e na economia brasileira ver GUIMARÃES, Carlos G. Op. cit., 2012. 107 No capítulo posterior, demonstro que sua presença na economia charqueadora foi ainda mais marcante. 108 SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 40. 106
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de couros secos com as exportadoras de charque, por exemplo, Silveira percebe que 10 nomes se repetiam, mas os negociantes de charque ocupavam posições inferiores entre os exportadores de couro.109 Uma análise rápida dos negociantes envolvidos nas diferentes rotas comerciais demonstrou que a atuação nestes mercados estava concentrada nas mãos de determinados grupos de agentes. Alguns, como o Visconde de Mauá, Militão Máximo de Souza, Joaquim Pereira Marinho e John Proudfoot110 , atuando em diversos ramos de negócios, tinham o seu nome conhecido em praticamente todos os portos. 111 Outros, que tinham como única função carregar os produtos do trapiche da charqueada até o porto de Rio Grande, permanecem no anonimato. No mundo mais rural que orbitava as charqueadas, e onde estes muitos trabalhadores negociavam com os mencionados estabelecimentos, reinavam relações de troca permeadas por relações pessoais, seja do charqueador com tropeiros e criadores, no que diz respeito ao mercado do gado, seja do mesmo com os patrões de iate, marinheiros e carregadores, no trato fluvial dos produtos de sua fábrica. No comércio atlântico, por sua vez, os principais agentes eram as grandes firmas e companhias mercantis, sob a gerência de negociantes brasileiros e estrangeiros que movimentavam significativas quantias de capital e mercadorias. Eram 112 os negociantes de grosso trato do qual Braudel dedicou muitas páginas em o Jogo das Trocas. Portanto, tratavam-se de espaços econômicos um tanto distintos. No primeiro, o poder de influência do charqueador podia se fazer sentir pelos demais agentes. Ele podia forçar os 109
SILVEIRA, Josiane. Op. cit., p. 55. John Proudfoot era natural de Glasgow, na Escócia, e partiu para Buenos Aires em 1835, onde atuou alguns anos no comércio. Anos depois, migrou para o Rio Grande, vindo a estabelecer-se com sua firma mercantil. “Agricultor, comerciante e industrialista era o proprietário do mais elegante vapo r que circulava nos rios e na lagoa dos Patos – o Guaíba – construído em Clyde. Além de outros barcos de menor calado para os rios de menor vazão”. Ele foi um dos fundadores da Praça do Comércio de Rio Grande, em 1844. Sem filhos, deixou sua fortuna para um sobrinho, após falecer em Lisboa, em 1875 (MACEDO, Francisco Riopardense. Os ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 34; 58; 61). Segundo David Platt, John Proudfoot fez fortuna em Montevidéu não apenas no comércio, como também emprestando dinheiro a altos juros (PLATT, D. 110
C. M. 111
Latin America and British Trade (1806-1914). London: T. & A. C. Ltd., 1972, p. 48). As relações pessoais nos portos eram de extrema importância no interior deste sistema mercantil. Marinho chegou a instalar-se em Montevidéu. Uma Lei que isentou o charque uruguaio, em 1858, e durou até 1861, impulsionou mais ainda os negócios de Marinho com Montevidéu. Marinho foi Vice-Cônsul da Argentina na Bahia, entre 1851 e 1865, e utilizou-se do cargo para obter favores econômicos, adquirir informações importantes no Consulado, ampliando ainda mais suas redes sociais. Após 1865, Marinho deixou como herdeiro no Consulado o seu filho Joaquim Elizio Pereira Marinho. Este também acumulou o Consulado da Venezuela, em 1869, seguindo os negócios do pai (XIMENES, Cristiane. Op. cit.). 112 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Os Jogos das Trocas. São Paulo: Martins Fontes, 1996. No Brasil, um corpo mercantil com atuação semelhante pode ser analisado em FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 359
preços do gado para baixo e repassar seus prejuízos aos criadores, podia comprar uma estância e agir diretamente no mercado por meio de seus parentes, agentes e agregados, em suma, ele tinha maior conhecimento e controle sobre as etapas do comércio. Este era o seu mundo e ali ele podia diminuir as inseguranças presentes ao longo de todo o processo. Mas saindo dali, as operações mercantis teimavam em escapar à sua influência. No porto de Rio Grande ele tinha que lidar com corretores, mercadores de diferentes línguas, falando em taxas de câmbio e sistemas de pesos e medidas distintos. Ele se relacionava com homens que dominavam o idioma mercantil atlântico e que circulavam por um espaço de trocas internacional no qual a força do charqueador e dos saladeiristas era muito pequena, mas que, não funcionava sem as suas carnes e os seus couros. Em suma, o Atlântico não era a fronteira com o Uruguai e o charqueador não podia estabelecer-se em todos os portos como fazia com os seus parentes nas suas estâncias. Um episódio acontecido em Pelotas, no ano de 1848, evidencia a importância de se compreender esta relação entre os charqueadores de Pelotas e as rotas mercantis atlânticas, tanto no comércio de cabotagem, quanto no comércio exterior. Neste ano, comerciantes estrangeiros requisitaram que os couros fossem pesados no porto de Rio Grande ou em São José do Norte e não em Pelotas, nas charqueadas. Caso contrário, os mesmos ameaçavam não comprá-los. Na imprensa local foi publicado o seguinte manifesto: Aos vendedores de couros – Os abaixo assinados negociantes desta praça, principais compradores de couros salgados em Pelotas, tem combinado entre si, que d’ora em diante não comprarão mais couros salgados, se não com a condição de serem postos, ou no Norte ou no Sul, para aí serem reconhecidos, pesados e recebidos nos seus respectivos armazéns ou a bordo dos navios. Rio Grande, 1º de janeiro de 1848. – Holland Davies & Cia – Carruthers Souza e Cia. – Lind & Cia. – Hugles Irmãos & Cia. – Cesar Brue. Por Hugentobler & Douley, J. G. Vallentim. – Marcos Pradel & Cia. – Law Irmãos & Cia. – W. F. Wigg. – Proudfort Muir & Moffat.113
É interessante perceber que muitos comerciantes que assinaram o manifesto também estavam entre os principais exportadores de couros e importadores de sal enunciados anteriormente. Merecem destaque as firmas Proudfoot Muir & Cia, Hugentobler & Cia e Carruthers Souza & Cia. Apesar da força destes comerciantes atlânticos, dias depois de terem publicado seu manifesto, os charqueadores de Pelotas ofereceram uma resposta aos mesmos, deixando claro que os “vendedores de couro” eram eles e seus sócios:
113
O Rio-grandense, n. 264, 04.01.1848, p. 3 apud TORRES, Daniel. Op. cit., p. 31. 360
Aos compradores de couros salgados: Constando os charqueadores abaixo
assinados, que os compradores de couros salgados, quase todos residentes na cidade de Rio Grande, tem combinado não comprar couros desta cidade, senão com a expressa condição de serem pesados naquela cidade; e sendo esta nimiamente injusta, porque vai contra um uso de há muito tempo estabelecido, e que tem sua srcem na prática constante e geralmente adotada de serem as mercadorias vendidas à porta dos que possuem, e gravemente lesiva dos interesses dos abaixo assinados, porque os sujeita ao risco e despesas da viagem até aquela cidade e os põem na necessidade de não poderem por si fiscalizar o peso dos couros, e resolver quaisquer dúvidas que possam aparecer na ocasião do recebimento; tem tão bem os abaixo assinados unanimemente resolvido não vender um só couro, em quanto os referidos compradores não desistirem desta sua injusta pretensão, à qual nenhum direito tem, por que, tendo eles necessidade de ter aqui agentes encarregados das compras, o que é sem contradição o mais importante no negócio, à essas pessoas podem confiar o peso e a verificação da qualidade do gênero, ficando assim guardada perfeita reciprocidade entre os compradores e vendedores. É porque em comércio a prática serve de regra invariável, os abaixo assinados lembram aos compradores que eles aqui recebem em suas charqueadas, sem nenhuma oposição e sujeitando-se aos riscos da viagem, o sal, que aliás é gênero de muita quebra, e quase todo comprado à eles compradores de couros pela medida feita à bordo dos navios ou nos armazéns da cidade de Rio Grande.114
Antes de tudo, tratava-se de uma audácia que meros fabricantes escravistas quisessem impor suas práticas mercantis aos britânicos. A resposta dada pelos charqueadores revela, em suas entrelinhas, aspectos da relação mercantil entre os mesmos e os comerciantes do porto. Primeiro, fica claro que não há nenhuma regulamentação legal sobre onde os couros deveriam ser examinados e pesados. Os charqueadores defendiam uma prática tradicional, “há muito tempo estabelecida”, de que os couros deviam ser pesados e examinados em Pelotas, provavelmente nas suas próprias charqueadas, para depois serem encaminhados ao porto. Desconheço o que levou os comerciantes estrangeiros a reclamarem de tal procedimento. É provável que alguns charqueadores estivessem vendendo aos agentes dos negociantes estrangeiros os seus piores couros ao preço dos melhores, o que desagradava os ingleses no momento em que os mesmos eram embarcados ou chegavam na Europa. Os britânicos pareciam querer imprimir um método mais “racional”na aquisição dos produtos – talvez fruto de uma prática realizada em seus locais de srcem. O fato é que parecia haver uma certa tensão entre ambos os grupos, oriunda da diversidade de práticas mercantis e culturais tanto locais quanto internacionais. Neste sentido, a região portuária assemelhava-se a uma região de fronteira, no sentido de que possibilitava o contato de diferentes culturas atlânticas. Penso que na própria resposta dos charqueadores um dos “mecanismos” fundamentais das transações mercantis fica evidente. Eram os “agentes encarregados das compras” que residiam em Pelotas ou em Rio Grande que funcionavam como facilitadores nos negócios 114
O Rio-grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4, apud TORRES, Daniel. Op. cit., p. 32). Grifos meus. 361
entre ambas as partes. Para os charqueadores estes homens eram “os mais importantes do negócio”. Estes agentesdeviam possuir a confiança de ambas as partes e diminuir a distância cultural e de interesses que havia entre os mesmos. Investigando os cafezais no sudeste, Márcia Kuniochi analisou a figura do comissário, agente que realizava esta mediação naquele universo. Para a autora, “as relações entre comissários e fazendeiros estendiam -se além dos interesses monetários, pois estavam embasadas em convivência anterior de amizade, parentesco e compadrio”. Portanto, elas também estavam sedimentadas em relações de confiança pessoal, necessária “para justificar o papel exercido pelo intermediário: ele punha em contato dois universos – o mundo tradicional – vivido pelo fazendeiro de café – com a lógica mercantil, objetiva e racional – dos grandes negociantes que integravam redes internacionais de comércio”.115 Portanto, para que este comércio “funcionasse”, os charqueadores e os comerciantes estrangeiros tinham que recorrer a agentes intermediários. Num dos livros do Corretor Geral do porto de Rio Grande foi possível verificar um contrato firmado pelo comerciante John Proudfoot que revela como se davam estes negócios:
Por ordem[vendedor], de John Proudfoot & Ciadesta [comprador], negociante praça,de comprou H. Fraeb negociante praça, 6.500 courosdesta salgados novilhoa pesados de charqueada de Pelotas da matança do mês de fevereiro próximo passado e do presente mês de março. Da matança do mês de fevereiro entregarão-se aqueles couros que sobrarem das compras que o vendedor tem efetuado nas diferentes charqueadas de Pelotas. O restante para completar a quantidade acima mencionada de 6.500 couros entregarão-se das primeiras matanças das charqueadas de Pelotas com que o vendedor tem contratos para o presente mês. Os couros serão recebidos pelo reconhecedor do vendedor logo que estiverem prontos para serem embarcados nas charqueadas, mas a fatura se fará segundo o peso determinado na entrega em São José do Norte com o aumento de 3%. O trabalho de pesar os couros terá lugar ou no trapiche dos compradores ou a bordo dos iates de Pelotas, barcada por barcada, em São José do Norte, assistindo ao peso um empregado do vendedor e outros dos compradores. Será admitido só couro que tem o peso de 58 libras pra cima. O preço dos couros da matança de fevereiro é 178 réis por cada 459 gramas (…) O frete das charqueadas, imposto municipal e direitos da barra de Pelotas são por conta dos compradores. O vendedor entregará também aos compradores os chifres de novilho correspondentes ao número dos couros ao preço das charqueadas com as despesas de costume. O pagamento se fará da maneira seguinte. Vinte contos de réis nestes 2 ou 3 dias. Vinte contos de réis em 8 dias depois. Vinte contos de réis em 14 dias. Quinze contos de réis em 21 dias depois do primeiro pagamento, o restante logo que se tiver completado a entrega dos couros. O vendedor e os compradores obrigam-se de guardar segredo absoluto a respeito deste contrato.116
115
KUNIOCHI, Marcia Naomi. A intermediação mercantil e bancária na fronteira meridional do Brasil. In: História e Economia. São Paulo, v. 1, n. 1, 2005, p. 67-86. 116 Contrato de 04.03.1878, Códice JC-53, Fundo Junta Comercial, AHRS. 362
Observa-se que H. Fraeb era o negociante encarregado de comprar o couro nas charqueadas e para isto possuía os seus próprios agentes. No porto, Proudfoot também possuía os seus agentes para acompanhar a pesagem e o carregamento dos couros. Portanto, os charqueadores, ao menos neste contrato, não se envolviam com a pesagem e nem precisavam carregar os couros até o porto marítimo. Os fretes e impostos eram pagos pelo próprio comprador britânico. Portanto, na queda de braços ocorrida em 1848, os ingleses parecem ter vencido ao impor que os couros fossem pesados na Alfândega de São José do Norte (próxima ao porto de Rio Grande) e não nas charqueadas, mas ao mesmo tempo os charqueadores também saíram ganhando, pois os britânicos se comprometiam a pagar os fretes e impostos – o que abatia consideravelmente os custos do empresário escravista. As parcelas acertadas entre os contratados indicam que era um negócio que envolvia um grande montante de capital para os padrões regionais, ultrapassando os 75 contos de réis pagos em menos de um mês e por apenas 6.500 couros (o Rio Grande exportava mais de 1 milhão de couros na época). Provavelmente H. Fraeb adiantava a real quantia ao charqueador revendendo os 6.500 couros a J. Proudfoot com a sua taxa de lucro e comissões. A operação também envolvia a troca de libras esterlinas por mil réis na casa comercial do Corretor Geral. O contrato descrito acima também evidencia que o sigilo era uma exigência dos ingleses. Tais negócios feitos em segredo deviam despertar a curiosidade dos muitos comerciantes. Mas é provável que alguns agentes conhecedores destes negócios, ao conversarem nas tabernas ou nos próprios trapiches, acabassem falando demais, tornando público alguns contratos. Em dezembro de 1876, o Correio Mercantil publicava uma descoberta, devendo colocar os concorrentes em espreita: Negócio de couros – Sabemos que uma casa exportadora de Rio Grande, por intermédio de seus agentes nesta cidade, contratou com os Srs. Gonçalves & Moreira a compra de 6.000 couros salgados, de novilho, a entregar até 15 de janeiro. Por esta transação, em condições reservadas, se vê que começa o movimento no mercado de exportação sob auspícios favoráveis para os futuros negócios. 117
Como em qualquer circuito mercantil, as transações entre os agentes envolvidos também apresentavam conflitos de interesses. Para a sorte dos historiadores, quando as regras contratuais eram quebradas e uma das partes buscava resolver a contenda no Judiciário, os motivos de tais conflitos acabavam tornando-se documentos cartoriais que, hoje, auxiliam na compreensão daquelas relações de troca. Um exemplo disso pode ser dado no processo que a 117
Correio Mercantil, 6 de dezembro de 1876. Anexo ao inventário de Severiana Herculana Barcellos, N. 829, m. 29, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875 (grifos meus). 363
firma John Proudfoot & Cia moveu contra Joaquim Guilherme da Costa – seu agente comercial. Costa, que também era charqueador, devia 5:744$090 referentes a transações envolvendo sal, couros e chifres que realizou em nome dos britânicos com charqueadores pelotenses. Buscando reverter a situação, o réu argumentou que os estrangeiros é que lhe deviam por comissões não pagas. Numa carta remetida por Proudfoot para o seu gerente, Sr. Crawford, percebe-se que Costa recebia 2% de comissão pelos couros comprados. 118 Numa outra missiva, Proudfoot deixou claro o seu desapontamento para com o comportamento do agente pelotense: Amigos e Srs. Recebi seu favor do 1º de julho em que me diz que o Sr. Joaquim Guilherme da Costa lhes tem apresentado uma conta de comissões de cobranças e vendas de sal, desde a extinta firma (…). Fico inteirado igualmente do que há passado entre o Sr. Joaquim Guilherme e vossas mercês em uma entrevista pessoal, e que resultou em ele pedir que me nomeasse árbitro para decidir se a conta era justa ou não. Não é muito agradável ser nomeado juiz em sua mesma causa, porém como ele deseja saber minha opinião, direi sem entrar em discussões e razões que não tem direito de fazer tais cargas, e que a conta não é justa. Sinto que as relações que temos tido por tanto tempo com o Sr. Joaquim Guilherme tenham um fim desagradável.119
Conforme Proudfoot, Costa estava cobrando uma comissão indevida e sem recibos válidos. Não satisfeito, o comerciante escocês escreveu à outra grande firma exportadora de couros, a Claussen & Bertran, perguntando se Costa lhes cobrava as comissões que exigia no tempo em que serviu de agente para os mesmos (1854-1855). Os comerciantes responderam que não. Costa perdeu a causa em primeira e em segunda instância. Não é possível saber qual das partes estava com a razão, mas o fato é que Costa vinha ganhando muito dinheiro sendo comissário dos exportadores estrangeiros. Em 1856, por exemplo, junto com outros dois sócios, ele comprou 3 barcas a vapor, pagando 48:000$, e criou a Companhia União de Vapores, em Pelotas.120 Um ano depois do processo judicial em que enfrentou Proudfoot, Costa comprou outra charqueada por 26:900$000. 121 Ao falecer, Costa possuía 77 escravos e deixou um monte-mor com mais de 287 contos de réis.122
118
Numa fatura anexa ao processo fica claro que ele passava nas charqueadas, comprava os couros e encarregava diferentes iates (seus ou de terceiros) de levá-los até o porto de Rio Grande. 119 Carta de John Proudfoot para Sr. Crawford. Glasgow, 08.08.1859. Anexa ao processo de Apelação n. 90, m. 8-B, cartório cível e crime, Pelotas, 1860 (APERS). Tradução da carta realizada pelos oficiais tradutores. 120 Escritura de 20.08.1856, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro 8 (APERS). 121 Escritura de 23.10.1860, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro 9 (APERS). 122 Inventário de Joaquim Guilherme da Costa, n. 599, m. 38, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1865 (APERS). 364
Nos autos de falência de Pedro I. Fernandes, agente do comerciante inglês Sinclair Robinson & Cia., transações do mesmo tipo ficam evidentes. Numa carta escrita pelo falido à Viúva Claussen & Cia, firma arrendatária de uma charqueada em Pelotas, dizia o agente: “Chegando ontem de fora, vim encontrar suas cartas de 21 e 25 do corrente que ora respondo. Acabando de carregar o navio de Sinclair Robinson & Cia (…) que por estes dias ficará concluído, então lhes farei aviso respeito ao seu carregamento, de que fazem já o aviso provisório. Entretanto, estou mandando recolher cinzas que estão espalhadas em diversas charqueadas”.
Conforme Ester Gutierrez, as cinzas, ou os restos calcinados dos ossos, resultavam em adubo, e eram vendidos para a Europa.123 Fernandes carregou o navio com 250 toneladas do produto e pelo que expôs na carta, vários charqueadores fabricavam cinzas para o mercado internacional. Numa outra missiva, um mês depois, Fernandes dizia que não havia recebido dinheiro e que estava enfrentando problemas nos seus negócios. Num telegrama para a Viúva Claussen & Cia dizia: “Não fretem navio por ora até que eu lhes faça aviso. Tem havido contrariedades independente da minha vontade”. Nas falidas contas de sua casa comercial, cujo título se iniciava como “Balanço de 1873”,Fernandes possuía vários credores, entre os 124 quais alguns ricos charqueadores, além de comerciantes brasileiros e estrangeiros. A crise
internacional de 1873 parecia ter feito mais uma vítima nos trópicos. Diante dos muitos reveses dos mercados atlânticos, da ação feroz dos monopolistas e do poder dos comerciantes estrangeiros, além de outros fatores, chegou a hora de perguntar: como os charqueadores de Pelotas agiam no interior deste sistema mercantil atlântico tão complexo? O que se podia fazer para diminuir a insegurança presente em tais circuitos de troca? Como foi visto no capítulo 3 desta tese, a forma como os charqueadores intervinham neste comércio marítimo ajudou a definir a sua posição na hierarquia econômica regional durante o colonial tardio. Passado meio século, esta mesma lógica se manteve. Portanto, os charqueadores que também atuavam no comércio marítimo, ou seja, aqueles que, para além da relação comercial que mantinham no porto de Rio Grande, acabavam encurtando a distância geográfica e temporal entre o mundo rural da charqueada e o mundo atlântico, continuavam no topo da hierarquia econômica regional.
123
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.Pelotas: UFPel, 2001, p. 190. 124 Liquidações, processo n. 2.584, m. 75, 1875, 1º volume, 2º cartório cível e crime, Pelotas (APERS). 365
Realizando esta conexão entre os distintos espaços econômicos, estes comerciantescharqueadores, juntamente com seus agentes e os agentes dos comerciantes ingleses, apresentavam-se como mediadores de umas das partes daquele sistema. Visitando a obra de Karl Polanyi e estudando os mercados em sociedades agrárias e pré-industriais, Edoardo Grendi ofereceu a ferramenta teórica do broker para analisar o funcionamento e a integração dos mesmos. Em história econômica, este era um conceito emprestado da Antropologia e que buscava compreender a forma como os mercados internacionais se relacionavam com os mercados locais. Neste sentido, o broker seria “um mediador entre a comunidade e a sociedade mais ampla”. Por isso, Grendi também os chama de “elite-broker”, isto é, no interior de um dado espaço econômico agrário eles seriam “uma elite de negociantes locais” 125 que funcionariam como “intermediários com a sociedade mais ampla”. Estes mediadores
dominavam os comportamentos e especificidades mercantis de ambos os espaços econômicos, conheciam pessoas diversas e os mercados atlânticos conectavam-se com os mercados locais a partir da sua atuação. Era como se os mesmos dominassem os distintos idiomas mercantis em ambos os espaços socioeconômicos de interação comercial, nutrindo, desta relação, ganhos econômicos notáveis, ajudando também a conectar ambas as sociedades com relação aos seus diferentes aspectos socioculturais. Neste sentido, o mecanismo empregado pelos charqueadores era o mesmo utilizado no mercado de gados: atuar diretamente no mercado atlântico ou por intermédio dos seus parentes e agentes mais próximos. E se no mercado de gados os mais ricos (que também estavam estabelecidos com grandes estâncias na fronteira) atingiam certa proeminência e acumulavam um capital relacional que era reconvertido em lucros, no comércio marítimo, o protocolo era o mesmo. Dos 12 charqueadores mais ricos de Pelotas (aqueles mesmos que analisei no capítulo anterior e que possuíam uma fortuna acima de 50 mil libras esterlinas), 9 apresentaram embarcações nos seus inventários, que somadas, chegaram a um total de 31. Contudo, somente 3 destes charqueadores possuíam navios de grande tonelagem (Barão de Butuí, Anibal Maciel e Antônio José de Oliveira Castro) quando faleceram, sendo que os outros eram proprietários de iates – barcos menores que serviam para levar as mercadorias até o porto de Rio Grande. No entanto, como os inventários retratam a composição das fortunas dos mesmos na fase idosa de suas vidas, o cruzamento com outras fontes documentais, como as escrituras públicas e os registros de matrículas e embarcações da Junta Comercial do Rio 125
GRENDI, Edoardo. Microanálise e História Social. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de; ALMEIDA, Carla (Org.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009, p. 27-30. 366
Grande, revela que a maioria destes charqueadores havia participado do comércio marítimo em outros tempos, abandonando-o depois de uma certa idade. Na década de 1860, o Visconde da Graça, o Dr. Chaves Filho e Felisberto Cunha, por exemplo, apareceram registrando um patacho, um brigue e uma barca americana na mencionada Junta. O campeão de registros foi 126 Moreira, com pelo menos quatro embarcações de grande porte registradas. Além dos
registros de embarcação, por meio da análise de outras fontes sabe-se que José Rodrigues Barcellos e João Simões Lopes foram comerciantes de grosso trato matriculados na Real Junta do Comércio da Corte, atuando no mercado atlântico, e que Antônio José da Silva Maia também havia atuado no comércio marítimo remetendo seus navios com charque para a Bahia e Pernambuco.127 Outra forte evidência da íntima relação destes charqueadores mais ricos com o comércio de longo curso pode ser atestada na lista dos presidentes da Associação Comercial de Pelotas. Criada em 1873, ela foi continuamente dirigida por charqueadores.128 Este foi o caso de Possidônio Mâncio Cunha, João Maria Chaves, Lúcio Lopes dos Santos, Paulino Costa Leite, Joaquim Rodrigues da Silva, Joaquim da Silva Tavares e Joaquim José de Assunção. É importante destacar que destes 7 presidentes, 2 estão entre os 12 charqueadores mais ricos e 3 deles eram sócios de outros charqueadores do mesmo grupo (sendo que 2 também eram irmãos dos mesmos). Esta concentração fica mais evidente quando se constata que muitos dos 12 inventariados tinham estreitos vínculos familiares entre si. Os Chaves e os Barcellos eram aparentados, Simões Lopes era pai do Visconde da Graça e sogro do Barão de Jarau, Tavares e Maciel eram primos, o Barão de Corrientes era filho de José Inácio da Cunha e Butuí era genro do Comendador Castro (ver Diagrama 8.1). Estes dados por si só revelam que a direção da Associação, que reunia os industriais e comerciantes atacadistas da cidade, estava nas mãos de poucas famílias que também ocupavam o topo da elite charqueadora.
126 Registro de matrículas de comerciantes e embarcações da Junta Comercial do Rio Grande. Fundo Junta Comercial, Códices 17 a 27, AHRS. Talvez uma das explicações para tal volume de navios registrados por
Moreira seja o fato de o seu sogro, o também charqueador Comendador Castro, possuir um estaleiro onde construía as embarcações. 127 Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170 (volumes 1, 2 e 3); Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 128 Correspondência da Associação Comercial de Pelotas. Fundo Junta Comercial, maço 3, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. 367
Diagrama 8.1– Vínculos de parentesco entre os 12 charqueadores mais ricos de Pelotas (1850-1900) 129
Isabel D. da
João S.
Joaquim J.
Maria A.
Baronesa
Barão de
Fontoura
Lopes
Assumpção
Fontoura
de S. Tecla
Santa Tecla
Antônio J.
Francisca
Oliveira
Alexandrina
Castro
Leocádia Tavares Visconde
Viscondessa
Baronesa
Barão de
Antônio R.
da Graça
da Graça
de Jarau
Jarau
Assumpção
Baronesa
Barão de
de Butuí
Butuí
Augusto Assunção Anibal A. Leocádia
Maciel
Melo
Leopoldo
Cândida
Francisca
A. Maciel
Moreira
Moreira
Irmãos
Zeferina
José I. da
G. Cunha
Cunha
Teresa
Felisberto
Barão de
Cunha
Braga
Correntes
Eliseu A.
Leopoldina
Maciel
Rosa
José R.
Boaventura
Silvana
Barcellos
R. Barcellos
Azevedo
José M. Chaves
Antônio J. G. Chaves Filho Irmãos
Arminda
Alfredo
S. Lopes
Braga
Primos
129
Casamento
Pais e filhos
Antônio J.
Maria L.
João M.
Silva Maia
Barcellos
Chaves
Compadres
12 Charqueadores mais ricos
Por falta de espaço o diagrama não elenca todos os filhos dos casais ilustrados, mas somente aqueles que proporcionaram uma conexão com as demais famílias do grupo. 368
Dos 22 exportadores de charque que enviaram carregamentos para Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro na safra de 1874/75, 9 eram charqueadores. Antônio José da Silva Maia e José Antônio Moreira são os que remeteram mais embarcações com charque (respectivamente, 14 e 6 navios). Ambos estão entre os 12 charqueadores mais ricos. João Simões Lopes, que remeteu somente uma embarcação para Pernambuco, também era um dos mais ricos. Dos demais, não foram localizados inventários ou os mesmos não tiveram sua avaliação concluída. Contudo, é provável que também fossem empresários de notável fortuna.130 Ao remeterem seus navios para o nordeste, os mesmos retornavam com mercadorias que deviam auferir significativos lucros. Em janeiro de 1875, por exemplo, a barca Pombinha, do Barão de Butuí, retornou da Bahia com 133 barricas de açúcar, 700 barricas de cal e 177 volumes de piaçabas. 131 Entre estes charqueadores mais ricos havia empresários com uma prática comercial e um conhecimento mercantil bastante amplo, aprendido em outros portos marítimos enquanto jovens e sob a supervisão distante dos seus pais, charqueadores como eles. O barão de Corrientes, por exemplo, havia sido negociante na Corte, o visconde da Graça em Salvador e o Dr. Gonçalves Chaves, em Montevidéu. Além do mais, os charqueadores também podiam ter filhos e genros atuando no comércio, o que potencializava suas conexões com o mercado atlântico. O charqueador João Vinhas, por exemplo, possuía um genro negociante em Salvador e outro no Rio de Janeiro. Além disso, seu filho estava estabelecido em Rio Grande como comerciante. Numa carta escrita por ele ao seu pai é possível perceber a importância de tais conexões: “Meu Pai e Senhor. Recebi suas estimadas cartas de 8 e10 do presente e respondo, como chegou o Iate Ventura fiz ver ao Senhor Frias que era o mesmo que levava o sal que lhe tinha comprado e que logo que descarregou viria receber o sal como tenciono e o Iate Princesa que eu havia fretado para levar o sal de Cadiz, visto sua carta segue já ao norte receber 800 alqueires de sal de Cabo Verde comprado ao Senhor Claussen a preço de $640 que é da mesma casa de Felipe Sausby que Vossa Mercê diz-me ter-lhe a $650, a pressa de despachar o 130
Junius Brutus de Almeida, por exemplo, que era genro do mencionado Simões Lopes, nos anos 1880 investiu
400 contos de réis reformando sua charqueada, importando máquinas e contratando técnicos italianos e 40 operários especializados de Montevidéu para fab ricar charque a partir do “sistema platino” ( CORSETTI, Berenice. Op. cit., p. 175-176). Honório Luís da Silva, por sua vez, possuía uma estância no Uruguai com mais de 10 mil reses, mas seu inventário não teve prosseguimento (Inventário de Honório L. da Silva, n. 111, m. 6, 2º cartório de órfãos e ausentes, Pelotas, 1880 (APERS). 131 Jornal do Comércio de Pelotas (05.01.1875) – BPP. Na mesma época, o charqueador Anibal Antunes Maciel (também entre os mais ricos do grupo) também atuava no comércio marítimo. Conforme o seu advogado, no processo de inventário do casal, os mesmos possuíam “navios (…) os quais por comportarem alto calado não
podem entrar na Barra do arroio São Gonçalo e chegar a esta cidade, [mas somente em] Rio Grande, onde costumam estar ditos navios a receber cargas para conduzí-las às províncias do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco” (Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS)). 369
Iate não dá lugar a ser-lhe ma is extenso o que o farei pela primeira ocasião (…) As cartas que Vossa Mercê remeteu para F. Silva Flores e Paiva & Viana foram entregues. De seu filho obrigado e criado Boaventura da Silva Vinhas”.132
Portanto, mantendo parentes bem posicionados em distintos locais deste amplo sistema econômico, os charqueadores poderiam obter informações seguras sobre os preços do sal e quais comerciantes pagavam melhor por suas mercadorias, por exemplo. Exemplos semelhantes envolvendo estes tipos de parentesco não faltam e podem ser dados na trajetória dos comerciantes Antônio Teixeira de Magalhães (genro de José Rodrigues Barcellos), Joaquim Rasgado (genro de José Inácio da Cunha), Manoel de Freitas Ramos (genro do Visconde da Graça) e o Barão de Arroio Grande (genro do coronel Anibal Maciel). 133 Todos estes mencionados sogros estavam entre os 12 mais ricos inventariados, o que ajuda a explicar sua trajetória de sucesso econômico. É certo que estas alianças matrimoniais eram resultado de negócios que ligavam sogros e genros muito antes dos casamentos e que se fortaleciam mais ainda após o estabelecimento do parentesco. Folhando o Correio Mercantil de Pelotas, de dezembro de 1876, encontrei um convite à sociedade pelotense para o casamento da filha do charqueador e “abastado capitalista” Felisberto José Gonçalves Braga com
Eufrásio Lopes 134
de Araújo Filho – herdeiro do “Guarda-roupa da Casa Imperial” Eufrásio Lopes de Araújo. Araújo era o segundo maior importador de sal da década de 1850 e também figurava entre os maiores exportadores de charque no porto de Rio Grande. E Braga era primo do barão de Corrientes, um dos 12 charqueadores mais ricos de Pelotas. Portanto, assim como na primeira geração de charqueadores, na segunda metade do oitocentos as famílias mais bem sucedidas neste ramo de negócios também atuavam no comércio marítimo de longo curso. E falar em “famílias” é mais adequado do que considerá -
los atuando individualmente, pois, segundo Braudel, “temos de imaginar esses grupos de mercadores com seus parentes, amigos, criados, seus correspondentes, contabilistas, escriturários”, ou seja, eles dificilmente agiam sozinhos. Os charqueadores envolvidos no 132
Carta de Boaventura Vinhas para João Vinhas. Rio Grande, março de 1848. Anexo à Ação Ordinária de Claussen & Cia contra João Guerino Vinhas, n. 998, m. 35A, 1º cartório do civel, Pelotas, 1851 (APERS). 133 A atração de genros comerciantes para o interior da família foi algo muito comum entre os charqueadores. Às vezes esta atuação mercantil se expandia para outros portos. Manoel Soares da Silva, por exemplo, também casou sua filha com o mencionado Antônio José da Silva Maia, quando ele era ainda comerciante. Manoel ainda possuía genros comerciantes em Rio Grande, centro mercantil e porto marítimo da região, e outro em Salvador. O mesmo Maia, enquanto charqueador, possuía um filho estabelecido com casa de comércio em Recife. O charqueador Jacintho Lopes também possuía genros comerciantes, sendo que um possuía seus negócios em Rio Grande e outros dois no Rio de Janeiro. 134 Correio Mercantil, 6 de dezembro de 1876. Anexo ao inventário de Severiana Herculana Barcellos, N. 829, m. 29, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875. 370
comércio marítimo também estavam entre os mais ricos de Pelotas. Portanto, os mesmos empresários com fortunas superiores a 50 mil libras que possuíam grandes estâncias na fronteira, também eram grandes negociantes. Sua posição no topo da hierarquia econômica decorria de uma atuação eficaz nos mercados do gado, do charque e do sal. Portanto, a elite econômica da província nas últimas décadas da monarquia continuava sendo formada por comerciantes-charqueadores, exatamente como Helen Osório identificou para o período colonial tardio135 , o que denotava uma significativa permanência das estruturais econômicas da província. Concluindo, pode-se dizer que atuando pessoalmente no porto de Rio Grande ou por meio de seus filhos, irmãos ou genros, o charqueador podia ter uma relação diferenciada com os mercadores atlânticos e ser favorecido por conta disto. Ele podia fechar melhores contratos de fretamento, reservar os melhores carregamentos de sal para a sua charqueada e ter informações preciosas que nem os jornais conseguiam noticiar. E agindo diretamente neste comércio, como um pequeno grupo conseguiu, ele lucrava enquanto produtor de couros/charque e comerciante de longo curso, uma vez que seus navios retornavam abarrotados de açúcar, aguardente e outras mercadorias. Isto diferenciava os charqueadores mais ricos dos menos ricos. No entanto, em que patamar estava essa tão propalada riqueza? Após viajar por Pelotas, Wolfhang Harnisch deixou o seguinte relato sobre esta elite local: “ A riqueza que traziam era fantástica (...) Esses milionários pelotenses bem poderiam ter vivido no Rio ou em Nice e ainda em Paris; poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo e na dissipação de Monte Carlo”.136 Mas seria verdade?
135 136
OSÓRIO, Helen. Op. cit. HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul.Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85. 371
9. OS BARÕES DO CHARQUE : PERFIL E NÍVEIS DE RIQUEZA, MOBILIDADE
SOCIAL
INTRA-ELITE
E
TRANSMISSÃO
DE
PATRIMÔNIO Que pena que a primogenitura destrua a seleção natural
Charles Darwin
Joaquim José de Assumpção foi o empresário do charque mais rico de Pelotas no século XIX. Filho de um charqueador e comerciante homônimo, Assumpção também fez fortuna atuando como capitalista e banqueiro, tendo sido presidente da Companhia de Gás e da Companhia de Seguros Pelotense. Influente no alto comércio da cidade, também foi o primeiro presidente da Associação Comercial de Pelotas, em 1873. Quando a sua esposa faleceu, em 1895, o patrimônio do casal foi avaliado em 6.152:393$500 réis. Grande parte dele (74%) estava composta por apólices da dívida pública do Brasil, investidas no Rio de Janeiro, metade rendendo 4% e a outra 5% ao ano.1 Segundo Fernando Osório, Assumpção (então Barão de Jarau) teria acumulado a maior fortuna do Rio Grande do Sul no século XIX. 2 Apesar dos sucessos financeiros alcançados por este empresário, o seu patamar de riqueza não foi atingido pela grande maioria dos proprietários de charqueada em Pelotas. Nas páginas seguintes desenvolvo melhor o fenômeno da concentração das fortunas e o perfil do patrimônio dos mais ricos para buscar compreender quais os fatores favoreceram o enriquecimento de alguns em detrimento da ruína econômica de outros.
9.1 ALGUNS MUITO RICOS, OUTROS NEM TANTO: HIERARQUIAS DE RIQUEZA E INVESTIMENTOS ECONÔMICOS ENTRE OS CHARQUEADORES DE PELOTAS Os inventários post-mortem constituem-se em uma fonte documental privilegiada para o estudo do patrimônio acumulado pelas elites econômicas. Num universo de mais de 120 charqueadores que identifiquei em diferentes fontes documentais ao longo do século XIX, localizei 75 inventários (alguns avaliando por mais de uma vez o patrimônio do mesmo charqueador por ocasião da morte das suas cônjuges) cujos proprietários ainda possuíam o estabelecimento de charqueada entre os seus bens, já que alguns charqueadores eram somente 1
Inventário da Baronesa do Jarau, n. 187, m. 6, 1895 , 2º cartório do cível, Pelotas (APERS).
2
OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas.Pelotas: Armazém Literário, vol. 2, 1997, p. 97-100. 372
arrendatários, outros já não se dedicavam mais aos negócios do charque e uns não tiveram seus bens avaliados completamente. Para facilitar a comparação das fortunas inventariadas ao longo do século XIX, converti todos os valores avaliados dos mil réis para as libras esterlinas, pois, como é sabido, a moeda inglesa apresentava-se mais estável e tal método reduz as grandes oscilações do real ao longo do tempo.3
Tabela 9.1 - Análise das fortunas dos charqueadores (em libras esterlinas) por períodos N.º Inventários
Soma dos montantes
Média por inventário
Mediana
Maior fortuna
1810-1825
06
99.782
16.630
12.236
40.256
Razão da maior para a menor fortuna 11
1826-1835
08
42.192
5.574
5.001
12.297
11
1836-1855
19
448.581
23.609
15.629
66.124
16
1856-1870
16
442.026
27.626
19.398
99.023
16
1871-1885
15
688.761
45.917
20.944
189.563
59
1886-1900
07
510.752
72.964
29.937
254.811
89
Total
71
2.232.094
31.887
15.285
254.811
229
Fonte: Inventáriospost-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS)
Analisando a Tabela 9.1, percebe-se que nos dois primeiros períodos (1810-1835) as fortunas acumuladas pela primeira geração de charqueadores de Pelotas não foram tão altas se comparadas às inventariadas após 1855.4 Muitos fatores influíram para tal fenômeno. Primeiramente é necessário considerar que os preços dos escravos, das fazendas de criação e das próprias fábricas não apresentavam os valores que vieram a possuir após a década de 1850, pois aquela era uma conjuntura de fronteira agrária aberta, de mão de obra acessível via tráfico atlântico e de pouca sofisticação nos utensílios e benfeitorias das charqueadas. 5 As primeiras fábricas, construídas na passagem do século XVIII pra o XIX eram bens de pouca
3
Para a conversão dos valores em mil réis para libras esterlinas utilizei as Médias anuais das taxas de câmbio do Ipeadata, no item séries históricas, disponível em http://www.ipeadata.gov.br/. (acesso em 30 agosto de 2012). 4 É necessário considerar que entre 1836 e 1845, tem-se somente três inventários post-mortem, visto que os serviços judiciais na cidade praticamente paralisaram durante a Guerra dos Farrapos, além da população ter se dispersado bastante. 5 O preço dos escravos e das terras também tiveram seu valor aumentado, justamente após o ano de 1850, com a Lei de extinção do tráfico atlântico e a Lei de Terras como verifiquei nos capítulos anteriores. 373
valia, equivalentes ao preço de 4 escravos. 6 Elas reuniam instalações rudimentares e estavam 7 longe de compor as partes mais valorizadas do patrimônio inventariado.
Além disso, os charqueadores da primeira geração enfrentaram muitas dificuldades por terem sido os “desbravadores” neste ramo de negócios. Na passagem do século XVIII
para o XIX e por mais algumas décadas, tanto o acesso ao crédito como os capitais disponíveis para o financiamento da montagem do complexo charqueador eram demasiado escassos. Portanto, como já foi enfatizado no capítulo 3, as charqueadas dependiam do capital mercantil das transações de outras mercadorias com o Rio de Janeiro para serem montadas e mantidas. Esta geração também penou ao buscar saídas econômicas e novos mercados para os produtos das charqueadas em conjunturas desfavoráveis. Assim foi na década de 1790, quando eles levaram o charque até os portos do nordeste, e em 1809, quando encontraram em Havana um importante espaço consumidor do produto. Neste período inicial, como demonstrou Corsetti, o mesmo problema foi encontrado com relação à importação do sal e aos monopólios impostos por Lisboa sobre o mesmo.8 Sendo comerciantes que decidiram investir nestes negócios, os mesmos tiveram que comprar grande parte do seu plantel de escravos recorrendo ao tráfico atlântico, enquanto muitos dos ricos charqueadores das gerações posteriores tiveram a vantagem de contar com plantéis herdados do pai ou do sogro (já treinados no trabalho), assim como os conhecimentos práticos do ramo, desenvolvidos e transmitidos pelos que os antecederam, como tratarei adiante. Portanto, como não havia um modelo fabril anterior, a primeira geração teve que “aprender” a administrar sua escravaria, cujo índice de africanos (de diversas procedências)
era bastante alto e, em alguns casos, ultrapassava os 80% do plantel inventariado, muito superior à segunda metade do século. Ainda com relação à mão de obra, os charqueadores do primeiro período possuíam um número de escravos inferior às gerações posteriores. Enquanto 6
OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007, p. 310. Além disso, os negócios do ramo, no colonial tardio, ainda eram considerados por muitos como investimentos de risco. No período de 1810 a 1835, por exemplo, deixei de contabilizar 3 inventários, por apresentarem um passivo superior ao ativo, ou seja, eram de proprietários que tiveram vários problemas com os seus negócios e cujo patrimônio não era suficiente para saldar as suas dívidas. Caso semelhante só voltou a ocorrer num inventário de 1890, quando o complexo-charqueador escravista já havia definhado. 7 Nos anos 1780, as oficinas de carne seca no Aracati, segundo um vereador da vila, eram “umas casas ou edifícios insignificantes em forma de telheiros formados de paus e telha vã que em pouco tempo se podem mudar e contruir denovo com os mesmos paus e telha”. ROLIM, Leonardo. “Tempo das carnes” no Siará Grande: dinâmica social, produção e comércio de carnes secas na Vila de Santa Cruz do Aracati (c. 1690 – c. 1802). Dissertação de Mestrado, UFPB, 2012, p. 144. 8 CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX.Niterói: ICHF/UFF, Dissertação de Mestrado, 1983, p. 108-115. 374
a sua média de cativos por proprietário foi de 51,6, nos dois períodos posteriores ela atingiu os índices de 66,4 e 68,5 escravos, respectivamente. Tais números podem indicar que a capacidade de abate e produção na maioria das primeiras fábricas era mais limitada do que as 9 suas sucessoras no ramo, refletindo-se nos seus patrimônios.
A Tabela 9.1 demonstra que além da ampliação das capacidades de acumular riquezas ter aumentado na segunda metade do século, os mais ricos nas últimas décadas do oitocentos eram mais afortunados se comparados aos menos ricos de sua mesma época, ou seja, a riqueza tornou-se maior e mais concentrada. Se entre 1810 e 1835, os mais ricos tinham um patrimônio 11 vezes superior ao dos menos ricos, entre 1871-1885, este índice foi de 59 vezes e no último período ele atingiu 89 vezes. São índices de concentração extremamente altos, uma vez que trato aqui somente de membros da elite econômica, ou seja, não comparo a riqueza dos charqueadores com a dos mais despossuídos da sociedade pelotense, o que levaria esta diferença a valores astronômicos. A ampliação das fortunas inventariadas que caracterizaram os últimos três períodos analisados foi favorecida por causas que conjugam fatores externos e internos e dos quais já tratei nos capítulos 7 e 8. Nos anos 1850, os charqueadores foram beneficiados com a entrada de gado gordo e barato vindo da região da campanha e do Uruguai, por conta dos tratados assinados em 1851, e puderam contar com o aumento dos preços dos seus produtos na mesma época. No mercado externo, os couros eram cada vez mais demandados pela indústria europeia e norte-americana e seus preços também apresentaram índices positivos no mesmo período. Além do mais, a expansão agrária para a fronteira empregada pelos charqueadores era um reflexo desta acumulação que propiciava maiores inversões de capital em grandes estâncias, que retornavam em novilhos com melhores preços. Neste sentido, é possível considerar que as transformações de ordem mais global na economia interna e externa, estavam refletindo-se na capacidade de ampliação das fortunas dos próprios charqueadores. A animação na economia europeia no período teve sua correspondente no Brasil. As décadas de 1850 e 1860 também foram marcadas por grandes investimentos de capitais 9
Foi dessa grande ampliação do comércio do charque, dos couros e demais produtos da pecuária que as vultosas fortunas dos charqueadores da segunda metade do oitocentos começaram a ser acumuladas. Um último indicador pode ser dado a cerca das importações de sal. Entre 1816 e 1822, por exemplo, foi importada uma média anual de 103.073 alqueires do produto, enquanto que, somente no 1º trimestre de 1854, importou-se 196.671 alqueires do mesmo. O sal era produto fundamental para a fabricação do charque e o salgamento dos couros e tais índices revelam que a produção e o comércio envolvendo as charqueadas haviam entrado em níveis muito altos se comparado com as primeiras décadas do oitocentos (BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e agentes mercantis (1808-1850). Tese de Doutorado. PPGHistória da UFRGS, 2011, p. 67). 375
nacionais e estrangeiros em setores estratégicos da economia brasileira. Os altos valores antes investidos no tráfico atlântico de escravos (estes compunham, na segunda metade da década de 1840, 1/3 do total das importações brasileiras), após a Lei Eusébio de Queiroz, foram deslocados para outras atividades produtivas.10 Isto significava dizer que um montante considerável de capitais passou a ser aplicado em investimentos financeiros, sociedades comerciais e industriais, companhias de seguro e navegação, estradas de ferro, projetos de colonização, expansão agrícola e obras públicas, gerando muitas opções de investimentos aos donos do dinheiro.11 A produção de alimentos voltada para o mercado interno também ampliou-se e refletiu-se no comércio de cabotagem, que saltou de 255.866 toneladas transportadas, em 1846, para 1.912.313 toneladas, em 1869. 12 Com todo este crescimento, a Bolsa de valores do Rio viu-se em completa euforia e foi alvo de muitas especulações gerando grandes fortunas e grandes bancarrotas.13 Conforme o estudado no capítulo anterior, o período entre o final da Guerra dos Farrapos (1835-1845) e a Guerra do Paraguai (1864-1870) foi de reajuste dos mercados atlânticos do qual o charque e os couros faziam parte. Antes disso, os comerciantes do Rio controlavam o tráfico de escravos, o comércio dos couros com o mercado internacional e 14
lucravam bastante nas transações com os charqueadores. Contudo, com a Lei Eusébio de Queiroz e a “invasão” britânica nos mercados do couro, os comerciantes cariocas perderam um pouco do seu espaço de influência na economia charqueadora, vindo o charque a ser cada vez mais deslocado para os mercados do nordeste. Esta realocação dos mercados trouxe grandes lucros para os charqueadores que conseguiram inserir-se no comércio atlântico –
10
SCHULZ, John. A crise financeira da Abolição.São Paulo: EDUSP, 1996, p. 36. Algumas boas análises desta conjuntura podem ser vistas em LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Jan eiro: UFRJ, 1994; GAMBI, Thiago Rosado. O Banco da Ordem: política e finanças no Império brasileiro (1853-1866). Tese de Doutorado em História, USP, 2010; FRAGOSO, João L. R. O império escravista e a República dos plantadores: Economia brasileira no século XIX, mais do que uma plantation escravista-exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda (Org). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990; PAULA, João Antônio de. O 11
processo econômico. In: CARVALHO, José Murilo de (Org.). História do Brasil Nação: a construção
nacional (1830-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, v. 2, 2012, p. 179-224. 12 GOULARTI FILHO, Alcides. Abertura da navegação de cabotagem brasileira no século XIX. Ensaios FEE, v. 32, n. 2, nov. 2011, p. 415. 13 LEVY, Maria B. Op. cit., p. 54-55. Para uma análise dos investimentos em ações num âmbito nacional ver FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880.
In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 143-164. 14 FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 376
notadamente um pequeno grupo – mas foi prejudicial aos demais, como demonstro mais adiante. Portanto, os ganhos e a acumulação de riqueza não estava disponível para todos os charqueadores. Os anos 1850 e 1860 foram economicamente favoráveis para que somente um grupo de empresários ampliasse os seus negócios, acumulando grandes montantes de capital, escravos e bens imóveis. A Tabela 9.2 apresenta 12 fortunas superiores a 50 mil libras esterlinas ocupando o alto da hierarquia econômica do grupo. Elas totalizavam 21,7% dos inventários, mas concentravam 63,5% de toda a riqueza. No topo, os 4 mais ricos (que tiveram um patrimônio superior a 100 mil libras) concentravam mais de 40% da riqueza do grupo. Pode-se argumentar que o período de comparação (1810-1900) é demasiado amplo, além de reunir os charqueadores da primeira geração (que estavam em desvantagem no que diz respeito às possibilidades de acumulação de riqueza) com os dos períodos finais (notadamente em melhores condições de amealhar fortuna). Mas eliminando os inventários abertos antes de 1850 e refazendo os cálculos percebi que o nível de concentração mantém-se igualmente alto, pois os 11charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras passam agora a concentrar 72% da riqueza no período. Tabela 9.2 - Faixas de fortuna em libras esterlinas (1810-1900)* Faixas de fortuna
Inventários
Fortunas
A Superior a 100 mil
4
7,2
760.856
40,7
B De 50 a 100 mil
8
14,5
425.493
22,8
C De 25 a 50 mil D De 10 a 25 mil
9
16,4
317.714
17,0
13
23,6
238.138
12,7
E De 5 a 10 mil
13
23,6
96.288
5,2
F Até 5 mil
8
14,7
29.944
1,6
Fonte: Inventários post-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS). *A Tabela totaliza 55 inventários porque, no caso dos patrimônios de charqueadores cujos bens foram avaliados duas ou mais vezes em épocas distintas (a primeira ou segunda vez, quando da morte de sua esposa), foram excluídos os de menor monte-mor.
Como o objetivo maior desta tese é analisar as famílias da elite local que se projetaram para um patamar diferencial no sentido político e socioeconômico, tornando-se elite regional, e que, por este motivo, vieram a influir nos rumos do Império escravista, destaco na Tabela 9.3 as 12 maiores fortunas inventariadas. Como já foi dito, o mais rico destes empresários foi Joaquim José de Assumpção, o Barão de Jarau. Dos charqueadores inventariados ele é o único que não possuía mais a charqueada, tendo escapado da crise geral que afetou o setor nos anos 377
1880, invertendo seus capitais em outras áreas. Banqueiro conhecido em toda a província, em 1895, 74% de seus bens eram compostos em apólices da dívida pública. Portanto, chegando à velhice numa época de crises (como, por exemplo, o Encilhamento (1890-1891) e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893-1895)), o Barão preferiu investimentos mais seguros. 15 Tabela 9.3 – Composição do patrimônio dos charqueadores com fortunas acima de 50 mil libras (%)
Charqueadores Joaquim J. de Assumpção (Barão de Jarau) Aníbal Antunes Maciel (Coronel) José Antônio Moreira (Barão de Butuí) João Simões Lopes Filho (Visconde da Graça) José Inácio da Cunha Antônio J. de Oliveira Castro (Comendador) José Rodrigues Barcellos (Comendador) Antônio José da Silva Maia João Simões Lopes (Comendador) Joaquim da Silva Tavares
Montemor (libras) 254.811
Monte-mor (mil réis)
Ano
A
6.152:393$500
1895
9,8
189.563
1.893:256$602
1871
173.162
1.829:905$407
1877
143.320
2.894:415$540
78.035
749:137$798
66.124 65.409 63.482
B
C
D
E
F
G
H
-
-
1,8
1,4
84,6
-
159
9,0
10,8
7,5
21,8
-
5,5
158
2,7
41,0
14,0
9,5
6,5
2,9
-
-
23,2
1,2
5,2
34,0
0,2
116
21,3
2,9
7,6
11,4
0,1
2,5
175
13,3
35,8
7,5
0,6
-
7,5
82
6,9
19,7
-
5,7
-
-
37,0
74
-
29,3
9,8
0,1
11,7
0,4
Nº
%
2,4
-
51,8
1,1
15,7
5,8
1893
24,7
9,7
1865
49,5
1,6
634:797$351
1848
15,0
17,0
546:030$572
1850
53,2
14,6
736:155$500
1884
11,3
58.444
472:976$160
1853
15,3
4,1
81
14,1
11,2
27,0
14,5
2,4
1,6
56.808
1.435:164$080
1900
58,7
8,9
-
-
-
6,5
23,7
1,7
-
(Barão Tecla) AntôniodeJ.S.Gonçalves 52.132 500:467$360 1872 14,9 Chaves Filho (Doutor) Felisberto Inácio da Cunha 51.183 500:163$173 1877 43,0 (Barão de Correntes) Fonte: Inventáriospost-mortem. Cartórios de Pelotas (APERS)
12,6
27
4,5
0,1
33,5
*
23,2
*
9,2
75
16,6
10,2
-
12,7
2,6
1,7
A – Imóveis rurais; B – Imóveis urbanos; C – Escravos; D – Dívidas ativas; E – Dinheiro; F – Gado vacum; G – Ações e apólices; H – Embarcações; * Possuía estes bens em sua firma, mas ficaram com o seu sócio.
Tal postura se assemelhava a de alguns grandes cafeicultores estudados por João Fragoso e Ana Lugão Rios. A partir dos anos 1860, o Comendador Manoel Vallim, o Barão de Nova Friburgo e o Barão de Itapeninga, entre alguns outros, deixaram de comprar escravos e terras, passando a inverter os vultosos lucros de seus cafezais em apólices da dívida pública. Conforme os autores, tratava-se de uma saída precavida contra o esperado fim da escravidão, mas que rendia bem menos que os negócios com o café. As opções de investimentos não eram amplas, pois “o mercado de ações no país era muito precário”. Em 1860, a chamada “Lei dos Entraves” restringiu as possibilidades de associação de capitais no Brasil, até que, em 1882,
uma nova lei favoreceu tais empreendimentos. Neste período intermediário, restringiu-se “a 15
Para os charqueadores Felisberto Inácio da Cunha, Anibal Antunes Maciel, Antônio José de Oliveira Castro e Joaquim José de Assumpção foram consultados os inventários dos bens dos seus respectivos casais, na ocasião do falecimento de suas esposas que foram, na ordem, Silvana Belchior da Cunha, Felisbina Antunes da Silva, Francisca Aleandrina de Castro e Cândida Clara de Assumpção. 378
possibilidade de companhias e de ampliação do mercado acionário”. E para ajudar, após a crise de 1857, “houve uma restrição ainda maior do sistema bancário” como “parte da política
anti-inflacionária”.16 Neste sentido, um perfil de investimentos semelhantes aos dos fazendeiros-capitalistas mencionados pode ser verificado nas inversões do Barão de Jarau, muito embora ele tenha se envolvido no alto comércio, no prestamismo e aplicação de capitais em companhias (10% do seu patrimônio), antes de optar pelas mencionadas apólices. Mas um perfil de investimentos diverso foi o do seu cunhado, o charqueador João Simões Lopes Filho. Atuando no alto comércio e na banca local, ele emprestou grandes quantias ao Estado, reabilitou a Companhia Hidráulica Pelotense com um investimento de 300 contos de réis, colocou outros 750 contos na Companhia de Iluminação Pública de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, além de ter sido um dos líderes na iniciativa da abertura da barra e canalização do rio São Gonçalo, da Companhia de bondes e da estrada de ferro Rio Grande a Bagé, entre outros empreendimentos regionais. Por tudo isso foi agraciado com o título de visconde da Graça.17 A diferença com relação ao seu cunhado foi que ele tinha somente 2% de seus bens em apólices e 32% em ações de Companhias, revelando que o visconde interessava-se por investimentos que, por conta dos riscos, buscavam maiores lucros 18
no mercado. Neste sentido, não há exagero em considerar que Graça, pelo tipo de inversões realizadas, foi um empresário escravista que, abandonando lentamente os negócios com o charque, inverteu seus capitais em outros setores, colaborando com a disseminação de práticas mais capitalistas no sul do Brasil. Analisando o balanço das safras das charqueadas nos anos 1870, é possível perceber que tanto Graça quanto Jarau já não se dedicavam tanto à produção de charque, como os demais charqueadores do grupo, pois eles estavam entre os que menos abatiam reses em seus estabelecimentos.19 Embora outros ricos charqueadores tenham aplicado alguma quantia em ações (Castro e Barcellos foram os únicos que não o fizeram) seus investimentos não se comparavam aos de Graça. A partir da Tabela 9.3 também é possível verificar que o perfil da riqueza dos inventariados não era homogêneo, pois uns investiam mais em alguns bens do que outros. É sabido que a maior parte dos charqueadores residia na cidade ou tinha ali residências em que 16
FRAGOSO, João e RIOS, Ana Lugão. Um empresário no oitocentos. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 199-202; 208-210. Ver também LEVY, Maria B. Op. cit.; Ver, também, FRAGOSO, João. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 17 OSÓRIO, Fernando. Op. cit., p. 97-100. 18 Inventário Visconde da Graça, n. 1.254, m. 69, 1893, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 19 Jornal do Comércio de Pelotas (12.07.1877) e Correio Mercantil de Pelotas (03.07.1879) (Biblioteca Pública Pelotense). 379
passavam algumas temporadas. No caso dos mais ricos, todos os 12 inventariados possuíam imóveis urbanos e pelo menos 7 deles eram proprietários de sobrados na cidade. A maioria detinha menos de 15% do patrimônio investidos nestes bens. No grupo temos casos como os de Simões Lopes e José da Cunha que possuíam somente duas casas até o de Maia que era proprietário de 49 imóveis na cidade. Quando faleceu, este charqueador já havia se retirado dos negócios e arrendava o seu estabelecimento. O alto número de imóveis urbanos e o arrendamento da charqueada indica que, no fim da vida, Maia buscou viver como um rentista, o que não significa que ele estivesse alheio aos negócios, uma vez que seus filhos e genros seguiram abatendo reses em sua fábrica.20 Apesar de todos possuírem imóveis rurais (estâncias, chácaras, terrenos e charqueada) um grupo detinha um peso muito maior aplicado nestes bens. Maciel, Felisberto, Tavares, Barcellos e Cunha não possuíam menos de 43% de seu patrimônio investido neles. Dos 12 inventariados, 3 possuíam estâncias no Uruguai e somente Castro e Chaves não tinham campos de criação em municípios fora de Pelotas. Portanto, como já foi tratado no capítulo 7, os charqueadores mais ricos também eram grandes criadores de gado (com rebanhos acima de 2 mil reses de criar) e buscavam os melhores campos em municípios vizinhos e na região da campanha, algo que os charqueadores de fortunas médias e pequenas conseguiam muito pouco. Anteriormente, enfatizei o fator político e social das estâncias neste universo econômico. Contudo, é necessário insistir novamente que isto não significa que tais investimentos em imóveis rurais não fossem pautados pela lógica do retorno financeiro. Uma coisa não excluía a outra.21 Neste sentido, o charqueador Felisberto Inácio da Cunha serve como exemplo. Quando jovem, foi caixeiro na loja de fazendas de um tio estabelecido na Corte. Regressando para Pelotas, montou sua charqueada em sociedade com um primo e assumiu a gerência da fazenda que o avô possuía no Uruguai, tendo ele próprio se tornado proprietário de estâncias no Rio Grande do Sul. 22 Mesmo com parte de sua fortuna composta 20
Inventário de Antônio J. da S. Maia, n. 995, m. 25, 1884, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS).
Como tratarei adiante, o retorno econômico de investimento em estâncias de criação nessa época era significativo. O Barão de Mauá, por exemplo, era proprietário de mais de 100 mil cabeças de gado em diversas fazendas, sendo a maior delas a Estância Mercedes, com 160 mil hectares (CALDEIRA, Jorge. Mauá: Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 25). Difícil crer que Mauá não tivesse objetivos de obter grandes lucros quando investiu em tais bens. Assim como ele, José Cardoso Salles, capitalista e ex-comerciante atacadista em Porto Alegre, possuía uma estância em São Gabriel com mais de 35 mil reses de criar (FIGUEIRA, Divalde Garcia. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas/USP, 2001, p. 195). Contudo, nenhum deles era charqueador ou estancieiro e nem residia no meio rural. Neste sentido, o retorno político e social dos investimentos agrários era pequeno, embora seus administradores devam ter se nutrido do mesmo. 22 CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937, p. 68. 21
380
de bens agrários, em 1865, Cunha foi qualificado na lista de votantes de Pelotas como “capitalista”, o que indica a natureza de suas aplicações e os fins de ditas inversões de capital
nos campos da fronteira. Contudo, no caso dos charqueadores, tais investimentos, além de visarem a obtenção de ganhos de ordem econômica, também representavam uma estratégia de atuação social e política local e regional, e tinham grande importância nos sistemas de transmissão de herança, como aprofundarei adiante. Com relação à mão de obra escrava é possível verificar que todos aqueles que tiveram seus bens inventariados antes da Abolição da escravidão (1888) possuíam cativos, como não poderia ser diferente. Também é possível perceber que o tamanho da riqueza era proporcional ao tamanho do plantel. Excluindo a escravaria de Gonçalves Chaves, que teve somente parte dos cativos arrolados, pois o restante ficou com seus sócios, a média deste grupo era de 115 escravos, ou seja, quase o dobro da média geral de todos os charqueadores da época. Apesar disso, em somente um dos casos o percentual dos escravos foi superior a 20% da fortuna inventariada.23 Somado ao valor do estabelecimento da charqueada, eles compuseram mais de 25% dos bens do charqueador em somente dois casos. Entre os charqueadores menos afortunados, o percentual dos escravos e da charqueada no perfil do patrimônio tendia a ser maior, revelando que eles tinham menos investimentos em outros ramos de atividades, o que 24 os tornava mais vulneráveis em conjunturas econômicas adversas. É importante ressaltar que não ser um grande pecuarista e não atuar no comércio do charque não inviabilizava as atividades econômicas de um charqueador. No entanto, aqueles que se restringiam somente às atividades de charquear tinham seus ganhos diminuídos, pois os tornava mais dependentes dos grandes comerciantes marítimos e dos vendedores de tropas. Quando se observa o montante composto por armazéns, embarcações, ações, dinheiro e dívidas ativas é possível perceber que boa parte do grupo possuía um perfil mais mercantil do que um perfil rural, no que diz respeito aos seus investimentos. Em 5 dos 12 inventários, os três últimos bens somaram de 33% a 55% dos investimentos. No capítulo anterior, 23
No inventário de Antônio José da Silva Maia constavam apenas os serviços dos 55 escravos que ele havia libertado sob cláusula de contrato de trabalho. Coloquei 74 cativos na Tabela porque este era o número de escravos que ele possuía em 1869, quando arrendou sua charqueada para um comerciante (Escritura de 16.09.1869, Livro de Notas n. 12, 1º Tabelionato de Pelotas, APERS). Em ambos os casos não foi possível saber o preço dos escravos. 24 Este percentual tende a aumentar conforme vai se descendo para as fortunas intermédias e pequenas. Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos, Custódio Gonçalves Belchior e Inácio Rodrigues Barcellos, por exemplo, tinham respectivamente 74%, 54% e 84% do seu patrimônio investidos na charqueada e nos escravos (Inventário de Cipriano J. R. Barcellos, n. 2, m. 1, 1870, 2º cartório de órfãos e ausentes, Pelotas; Inventário de Silvana Claudina Belchior, n. 727, m. 44, 1870, 1º. Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas; Inventário de Inácio Rodrigues Barcellos, n. 554, m. 36, 1863, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS)). 381
demonstrei como este grupo dos mais ricos também esteve intimamente ligado ao comércio marítimo de longo curso, reunindo charqueadores que presidiram a Associação Comercial pelotense, e que possuíam grandes embarcações, atuando também na consignação mercantil e realizando muitos carregamentos de charque no porto de Rio Grande. Portanto, apesar dos patrimônios analisados não apresentarem uma homogeneidade no que diz respeito a sua composição, há algo que os colocava em situação de semelhança. Eles não se especializaram num único ramo deste sistema econômico e buscaram diversificar o máximo possível os seus investimentos. Neste sentido, o seu enriquecimento também foi resultado da alta capacidade em diversificar os seus negócios e evitar a especialização ou na produção, ou no comércio ou na criação. Apesar de alguns terem se esforçado para conseguir um maior sucesso no abastecimento de gado, outros dedicaram-se mais ao comércio marítimo, enquanto outros na atuação como banqueiros ou investidores capitalistas. Tal capacidade de investimentos foi muito pequena entre os charqueadores de fortunas menores e intermediárias, pois, como foi mostrado nos capítulos anteriores, somente uma minoria conseguiu atuar no comércio de longo curso e possuir grandes estâncias de criação fora de Pelotas. Esta diversificação era, ao mesmo tempo, um privilégio dos mais ricos e a causa de suas riquezas. De acordo com Braudel, analisando a hierarquia do mundo dos negócios entre os séculos XV e XIX, era somente na base e no seu intermédio que os participantes do mundo dos negócios se especializavam em um ramo, pois na medida em que a economia de mercado encontrava o seu progresso, ela afetava toda a sociedade mercantil, intensificando a divisão social do trabalho. Esta “fragmentação das funções” se manifestava primeiro nos estratos inferiores: “os ofícios, os lojistas, os mascates, se especializavam”. Mas o mesmo não ocorria no alto da pirâmide, visto que, “até o século XIX, o negociante de altos voos jamais se limitou, por assim dizer, a uma única atividade”. Era “negociante, sem dúvida, mas nunca num único ramo”, e também era, “segundo as ocasiões, armador, segurador, prestamista,
financista, banqueiro ou até empresário industrial ou agrícola”.25 Assim sendo, em que patamar de riqueza estavam as fortunas dos mais ricos? Apenas para lembrar o leitor, Wolfhang Harnisch, visitando Pelotas já no século XX, disse que a riqueza da elite da cidade, entre os quais estavam os charqueadores, era “fantástica” e que “esses milionários pelotenses bem poderiam ter vivido no Rio ou em Nice e ainda em Paris;
poderiam ter concorrido com os fidalgos russos no luxo e na dissipação de Monte Carlo”. 26 25 26
BRAUDEL, Fernand. A Dinâmica do Capitalismo.Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 40. HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85. 382
Ora, perante as fortunas dos grandes magnatas franceses, ingleses e norte-americanos, a maioria dos charqueadores podia ser considerada como um mero mascate. Na primeira metade do século, por exemplo, o banqueiro inglês Nathan Rotschild já possuía um patrimônio avaliado em 5 milhões de libras esterlinas.27 Décadas mais tarde, com a grande expansão do capitalismo, os milionários banqueiros londrinos eram ainda mais numerosos. Entre os mesmos, Youssef Cassis encontrou 125 fortunas superiores a 300 mil libras (entre 1890 e 1914), sendo que 30 delas superavam o milhão de libras.28 Ampliando o foco de análise para outros ricaços ingleses além dos banqueiros, William Rubinstein listou dezenas de milionários para o século XIX e início do XX, como os Duques de Devonshire e Sutherland com 1,86 e 1,37 milhão de libras respectivamente, e o Barão de Stern e Richard Thornton com 3,54 e 2,8 milhões, entre outros. 29 A burguesia francesa também possuía os seus milionários. Em Paris, no início do século XX, Adeline Daumard encontrou 9 fortunas entre 10 e 50 milhões de francos, 1 com 89 milhões de francos (mais de 3 milhões de libras) e duas na ordem de 250 milhões de francos, patrimônios que, segundo a autora, equivaliam aos de Alphonse e Gustave de Rotschild.30 Em 1877, o homem mais rico dos Estados Unidos, o empresário Cornelius Vanderbilt, possuía uma fortuna de mais de 100 milhões de dólares (19,6 milhões de libras).31 Seria ingenuidade pensar que os charqueadores não se interessavam em conhecer os níveis de riqueza dos milionários estrangeiros. Num jornal de Pelotas, em 1877, podia se ler na primeira página: As quatro maiores fortunas
Sabe o leitor a que cifras fabulosas montam as quatro maiores fortunas do mundo inteiro? Sua graça o Duque de Westminster, cujo rendimento anual é de 800.000 libras esterlinas, pode gastar 21:000$ por dia e 14$580 por minuto sem bulir no capital. O Senador americano Jones de Nevada possui um rendimento de 1 milhão de libras esterlinas, isto é, 25 milhões de francos por ano e 50 francos por minuto, o que seguramente vale bem mais que os 25 centésimos do judeu errante. 27
PEDREIRA, Jorge M. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822): diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social.Tese de Doutorado. Universidade Nova de Lisboa, FCSH, 1995, p. 303. 28 CASSIS, Youssef. City Bankers (1890-1914). London: Cambridge University Press, 1994, p. 198. 29 RUBINSTEIN, William. Wealth, Elites and the Class Structure of Modern Britain. Past & Present, n. 76, Aug. 1977, p. 99-126. 30 DAUMARD, Adeline. Hierarquia e Riqueza na sociedade burguesa. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 228; DAUMARD, Adeline. Les fortunes françaises au XIX siècle. Enquête sur la répartition et la composition des capitaux privés à Paris, Lyon, Lille, Bourdeaux et Toulouse d’après l’enregistreme nt des declarations de succession. Paris, Mouton, 1973 apud (LIMA, Nuno M. Henry Burnay no contexto das fortunas da Lisboa oitocentista. Análise Social, v. XLVI (192), 2009, p. 576). 31 HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital (1848-1875).São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 206. Para a conversão em libras utilizei MOURA FILHO, Heitor P. Taxas Cambiais do Mil-Réis. Exchange rates of the mil-reis (1795-1913). MPRA Paper N. 5210. Disponível em , 2006. 383
O Chefe da família Rotschild, com seu rendimento de 2 milhões de libras esterlinas, pode atirar 60 vezes por hora 5 bons luizes pela janela a fora, - asneira que ele não é capaz de fazer, seja dito a puridade. Finalmente, no topo desta escada de ouro maciço, estadeia-se o Sr. J. W. Mackay, com um rendimento de 2.750.000 libras esterlinas, o que [rasgado] gastar 175.000 francos por hora e 125 francos por minuto (5 libras). Este tal Sr. Mackay ainda há 30 não passava de um vagabundo, que não valia um vintém, e há 16 anos faliu. Hoje então pode dizer do Duque de Westminster o que o Barão James de Rotschild dizia um dia do banqueiro Fould. Como lhe contassem que o ex-Ministro da Fazenda deixara por sua morte uma fortuna calculada em mais de 60 milhões: - Ora, replicou simplesmente o ilustre Barão, eu pensar ele ser mais rica! .32
Portanto, os próprios charqueadores sabiam que comparar-se aos magnatas europeus seria mais um de seus devaneios. O exagero de Harnisch deve ter sido motivado pelos esforços dos charqueadores em demonstrar o excessivo luxo, o apreço pela cultura, as letras e os hábitos europeizados de sua elite, como enfatizarei no capítulo seguinte. Neste sentido, com exceção de Mauá e alguns outros poucos industriais e banqueiros do qual pouco se sabe (e que merecem ser mais bem pesquisados), as demais elites econômicas brasileiras também possuíam fortunas muito inferiores às dos magnatas europeus e norte-americanos. Portanto, no século XIX, a riqueza dos charqueadores estava mais próxima das elites proprietárias brasileiras e é com eles que esta comparação se torna mais adequada. Conforme Stephen Bell, um rico charqueador tinha capital suficiente para comprar uma fazenda de café, por exemplo.33 Apesar de terem existido propriedades de valores bem menores, escolhi uma das fazendas de café do Barão de Entre Rios como parâmetro. A Fazenda Penedo, localizada em Paraíba do Sul, valia 260 contos de réis, nos anos 1860.34 Tratava-se de um valor bastante alto, mas acessível para os charqueadores mais ricos e até mesmo para alguns de fortuna intermédia. O mesmo valia para um grande engenho de açúcar em Pernambuco. Conforme 35 Peter Eisenberg, os maiores engenhos no final do oitocentos chegavam a custar 200 contos.
Portanto, em uma escala de comparação com as elites econômicas brasileiras, os patamares se alteram. O panorama geral, me parece, apresentava grandes fortunas no topo, distribuídas pelo Brasil, secundadas por médios patrimônios. Um primeiro exemplo pode ser dado no município cafeeiro de Lorena – no vale do Paraíba paulista. Estudando a localidade, Renato Marcondes encontrou como o maior patrimônio a fortuna de Joaquim J. Moreira Lima 32
Correio Mercantil de Pelotas, 07.07.1880 (Biblioteca Pública Pelotense). BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: a brazilian ranching sistem, 1850-1928. Stanford: Stanford University Press, 1998, p. 73. 34 FRAGOSO, João L. R. Sistemas agrários em Paraíba do Sul: um estudo de relações não-capitalistas de produção (1850-1920). Rio de Janeiro: Departamento de História, UFRJ, Dissertação de mestrado, 1983, p. 98. 35 EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 33
384
36 (400 mil libras), mas o segundo mais rico possuía pouco mais de 60 mil libras. Na Bahia,
Katia Mattoso verificou que mais de 85% dos inventariados possuíam bens avaliados com menos de 50:000$.37 Contudo, no topo havia a grande fortuna de Joaquim P. Marinho, o comerciante de charque tratado no capítulo anterior, que deixou 4.245:193$277 em 1887, ou seja, mais de 390 mil libras.38 Entre os comerciantes importadores de charque pesquisados por Afonso Graça Filho, o mais rico era o Visconde de São Salvador de Matosinhos, com fortuna .39 de 217.143 libras, enquanto a segunda riqueza era de Jose Miguel Frias, com 66.224 libras
No setor cafeeiro estas concentrações também eram comuns. Em Juiz de Fora, as 6 maiores fortunas superiores a 1.000:000$ concentravam mais de 20% da soma dos patrimônios de 486 inventários pesquisados entre 1889 e 1914. Neste contexto, a maior fortuna foi do industrial Bernardo Mascarenhas, avaliada em 128.383 libras esterlinas, em 1889. A fazendeira de café Carolina Assis de Campos, com 118 mil libras em 1913, foi a segunda fortuna.40 Entre os cafeicultores do sudeste também se destacaram as fortunas do Barão de Nova Friburgo, com 774.425 libras, em 1872, e a do Comendador Manoel de Aguiar Valim com 271.667 libras, em 1878. Selecionando as 10 maiores fortunas de São Paulo no último quartel do século, tem-se a liderança do Marquês de Três Rios, fazendeiro de café em Campinas e Rio Claro, banqueiro e industrial, com uma fortuna de 896 mil libras, em 1893, seguido pelo Barão de Itapetininga, com 715.780 libras, em 1877. Os demais possuíam menos de 300 mil libras, com destaque para Fidelis Nepomuceno Prates e Antônio A. Monteiro de Barros – ambos com pouco mais de 250 mil libras. Conforme Zélia C. de Mello, a maioria destas fortunas tinha srcens familiares ligadas à lavoura açucareira e cafeeira, mas ao final do 41 oitocentos eram extremamente diversificadas em ações de companhias, indústrias e bancos.
36
MARCONDES, Renato Leite. A Arte de acumular na gestação da economia cafeeira: formas de enriquecimento no vale do Paraíba paulista durante o século XIX. Tese de Doutorado em Economia. USP, 1998, p. 130. 37 MATTOSO, Kátia de Queirós. Bahia: Século XIX (Uma Província no Império).Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 613. 38
XIMENES, Cristiana. Joaquim Pereira Marinho: perfil de um contrabandista de escravos na
p. 96. Dissertação deconvênios Mestradodaemcare História. Salvador: UFBA,e 1999, Bahia (1828-1887). GRAÇA FILHO, Afonso de A. Os stia: crises, organização i nvestimentos do comércio 39
de subsistência da Corte (1850-1880).Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, Dissertação de Mestrado, 1992, p. 258; 272. 40 Conforme Rita Almico, a maior riqueza de sua amostra foi a do capitalista João José Vieira, com fortuna avaliada em 2.543:044$974, em 1896. No entanto, a década de 1890 foi marcada por um período de alta inflação. Convertendo as maiores fortunas elencadas pela autora para a moeda inglesa, verifica-se que a de Vieira diminui para 96.026 libras – bem inferior a de Mascarenhas. Pesquisando 486 inventários entre 1889 e 1914, em Juiz de Fora, Rita Almico encontrou 6 fortunas superiores a 1.000:000$. (ALMICO, Rita. Fortunas em movimento: um estudo sobre as transformações ocorridas na riqueza pessoal em Juiz de Fora 1870/1914. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 2001, p. 104). 41 MELLO, Zélia C. Metamorfose da Riqueza, São Paulo, 1845-1895. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 131-147; 164. 385
Portanto, nos grandes centros de desenvolvimento econômico, notadamente aqueles que atraíam mais inversões de capital e que concentravam mais indústrias e instituições bancárias, a quantidade de homens ricos tendia a aumentar – ficando a Corte imperial, certamente, no topo.42 É neste espaço de investimentos que os patrimônios de grandes industriais e banqueiros, por exemplo, confundiam a riqueza pessoal com o patrimônio de suas empresas, sociedades e companhias em que eram acionistas majoritários. O melhor exemplo disso era o visconde de Mauá, cujos investimentos competiam com os magnatas europeus. Sua fortuna pessoal foi estimada em 10 mil contos de réis, em 1865, ou seja, mais de 1 milhão de libras esterlinas, mas talvez seus vários investimentos movimentassem um capital muito maior. Os ativos totais da Mauá & Cia. nesta mesma época, por exemplo, eram 43 de 115 mil contos de réis (cerca de 12 milhões de libras ou 60 milhões de dólares).
Se pudesse ser estabelecida uma hierarquia entre estas fortunas, Mauá ocuparia o topo. Num patamar abaixo estariam ricaços como os Barões de Nova Friburgo, de Itapetininga, o Marquês de Três Rios, o Conde de Ipanema, além de outros proprietários, banqueiros e comerciantes com fortunas superiores a 500 mil libras. Abaixo deles seriam colocados empresários com fortunas acima de 100 mil libras, ou seja, o Comendador Vallim, Joaquim Marinho, o Visconde de São J. de Matosinhos, Moreira Lima, Bernardo Mascarenhas, industriais, fazendeiros, comerciantes e banqueiros de algumas capitais de província, alguns senhores de engenho baianos e pernambucanos e cafeicultores da Zona da Mata mineira e do oeste paulista, além dos charqueadores mais ricos de Pelotas, como o Barão de Jarau, o Barão de Butuí, o Visconde da Graça e o coronel Anibal Antunes Maciel. Observe-se que se tratavam de setores ligados às altas finanças, às companhias e indústrias, ao comércio marítimo e à agricultura de exportação. É provável que fora destes espaços de investimento dificilmente se poderia alcançar as 100 mil libras esterlinas em patrimônios (com a possível exceção dos grandes latifúndios). Em São João del Rei, por exemplo, onde predominava a pecuária conjugada com o comércio de abastecimento da Corte e vilas mais próximas, Afonso Graça Filho não encontrou fortunas superiores a 60 mil 42
Neste sentido, também devo incluir aqui a fortuna de um dos grandes financistas do período, o Conde de Ipanema, que, conforme Fragoso e Martins, teve seus bens avaliados no ano de 1880 em mais 610 mil libras. Para uma análise deste círculo das altas finanças no Império ver FRAGOSO, João.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 43 CALDEIRA, Jorge. Mauá: Empresário do Império.São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 428, 439. É possível que os cálculos do autor contenham certos exageros, o que não elimina o fato de Mauá ser o homem mas rico do Brasil no período. Para uma análise mais aprofundada da atuação bancária de Mauá ver GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor e Cia (1854-1866). São Paulo: USP. Tese de Doutorado, 1997. 386
libras.44 O mesmo vale para Alegrete, município da região da campanha sul-rio-grandense, cuja pecuária bovina era o centro da economia. 45 Contudo, seja em Alegrete ou em São João del Rei, seja em Pelotas ou em São Paulo, passando por Juiz de Fora, Bahia e Rio, os ocupantes do topo da hierarquia econômica pareciam sempre diversificar os seus negócios. E no meio rural, ainda acontecia um outro fenômeno bastante importante. Os fazendeiros mais ricos (senhores de engenho, criadores de gado, cafeicultores) também atuavam como atravessadores (como se fossem brokers entre o mercado local e o exterior) comprando a produção dos produtores menores (por meio de seus agentes) e revendendo-as a comerciantes mais bem estabelecidos. Por conta disto, também podiam ser chamados de fazendeiroscapitalistas.46 Fornecendo crédito e extraindo o excedente dos pequenos produtores, eles ampliavam sua riqueza, num modelo de atuação local muito semelhante com o que os charqueadores mais ricos faziam com relação aos menos ricos, o que estabelecia o capital mercantil sempre acima dos distintos setores econômicos – no gerenciando do capital produtivo. Não existem muitas pesquisas sistemáticas dedicadas à análise comparativa das fortunas em termos regionais. 47 Embora este não seja o objetivo desta tese, busquei somente realizar algumas considerações para situar a riqueza dos charqueadores num contexto mais abrangente.48 Na realidade, a grande maioria dos cafeicultores, comerciantes, senhores de
44
GRAÇA FILHO, Afonso de A. A Princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Anna Blume, 2002. 45 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010, p. 60. 46 FARIA, Sheila de Castro. Fortuna e família em Bananal no século XIX. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 70-71; FRAGOSO, João; RIOS, Ana Lugão. Op. cit., p. 207-209; EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 90-93; FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 61-66. 47 Na historiografia brasileira não há uma tradição historiográfica de comparação de fortunas como na Europa. Para questões de método e teoria ver, por exemplo, RUBINSTEIN, William. Op. cit.; DAUMARD, Adeline. Op. cit., 1973, 1985; PEDREIRA, Jorge. Op. cit.; CASSIS, Youssef. Op. cit.; entre outros. No Brasil, importantes contribuições foram realizadas por FRAGOSO, João. Op. cit.; OSÓRIO, Helen. Op. cit.; ALMICO, Rita. Op. cit.; MARCONDES, Renato. Op. cit; MATTOSO, Kátia. Op. cit.; MELLO, Zélia C. de. Op. cit. 48 Creio que as comparações dos valores inventariados e do perfil dos patrimônios são o ponto de partida para os historiadores que quiserem se dedicar a comparar as riquezas das elites regionais brasileiras. Mas estas devem ser entendidas como uns entre os muitos fatores que condicionam a análise, pois o nível e o perfil de riqueza acumulado em vida indicam as possibilidades de investimentos de uma determinada elite no contexto e no sistema econômico na qual ela estava inserida. Mercados locais pareciam favorecer acumulações e investimentos mais limitados, enquanto mercados atlânticos e perfis mais urbanos possibilitavam um leque de inversões mais diversificadas, além de que, em situações de crise, os indivíduos podiam inverter seus capitais e ações mais rapidamente para outro setor. Um potentado local, dono de muitas fazendas, podia ter um patrimônio com um valor de mercado maior que o de um comerciante bem estabelecido numa cidade portuária, mas dependia deste para viabilizar sua empresa em termos de capitais e transporte. Fortunas agrárias e fortunas mercantis podiam ser acumuladas por processos totalmente distintos. Além disso, se as propriedades agrárias e os escravos sofressem uma incrível valorização ou desvalorização num curto período de tempo, o monte-mor de um fazendeiro 387
engenho, fazendeiros, criadores de gado e charqueadores, por exemplo, não era formada por homens com riqueza superior as 25 mil libras esterlinas. Neste sentido, em cada região ou localidade sempre havia potentados e negociantes com grandes fortunas (cada um com o seu equivalente local) e matizar a imbricação destas elites econômicas com outros espaços de atuação como a política e a burocracia, e sua intersecção com espaços destatus social, como as letras e a nobreza titulada, ainda permanece uma tarefa a ser realizada. Uma das formas de estudar os níveis e acumulação de riqueza é compreender os rendimentos das atividades econômicas das elites. A seguir, busco estimar os ganhos de uma empresa charqueadora escravista.
9.2 NOVILHOS QUE VIRAM DINHEIRO: OS RENDIMENTOS DA EMPRESA CHARQUEADORA ESCRAVISTA
Não foi possível localizar a contabilidade completa de uma charqueada escravista. De acordo com Farinatti, “poucos são os livroscontábeis propriamente ditos com que se pode contar para o estudo das “empresas” rurais daqueles períodos”. As explicações do autor para tal ausência são de que “a maioria daquelas fazendas, sítios, chácaras, estâncias não mantinha
mesmo uma escrituração contábil regular, além disso, muitos dos registros que existiram não se conservaram”.49 Se para os estancieiros a prática regular de escriturar as suas contas talvez
não fosse comum, entre os charqueadores, que exerciam uma atividade muito mais mercantil que aqueles, existem evidências de que, no meado do século XIX, esta prática devia ser executada na maioria das charqueadas. Nos processos judiciais de cobrança de dívidas é muito comum os juízes mandarem analisar os livros das firmas envolvidas nos autos. Em 1866, por exemplo, na Liquidação da empresa Viúva Vianna & Filhos, os oficiais de justiça recolheram do escritório da charqueada 3 livros borradores, dois livros correntes, 1 diário e nove maços de diversos papéis, sendo um deles de contas de salários e outros com cartas entre 50 1854 e 1865. No escritório também havia 3 escrivaninhas e 30 livros de literatura.
aumentaria ou diminuiria mesmo que seu patrimônio estivesse se mantido intacto durante o período. Neste sentido, espero ter contribuído com os pesquisadores dispostos a se aventurarem neste campo de investigação. 49 FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 100. 50 Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). Entretanto, por uma falta de sorte de minha parte, nem neste processo e nem nos outros as contas da charqueada foram descritas de forma completa. Os examinadores dos livros apenas avaliavam a veracidade das escriturações, se havia irregularidades e se as mesmas eram feitas “na lógica mercantil”, como afirmou um 388
Na ausência de tais documentos, como os encontrados por Stuart Schwartz para os engenhos de açúcar no Recôncavo baiano51, a reconstituição exata das despesas e lucros de uma charqueada tornam-se muito difíceis de serem afirmadas com precisão. Para realizar uma breve estimativa deve-se perguntar, primeiramente, quais os investimentos iniciais deveriam ser feitos por um indivíduo caso quisesse dedicar-se a este ramo de negócios. Até agora foi possível verificar que poucos charqueadores detinham grandes estâncias na fronteira e embarcações de comércio marítimo. Tais inversões ofereciam ao charqueador melhores condições de acesso a setores chaves da economia, mas seria equivocado considerar que os mesmos fossem imprescindíveis para o exercício das atividades de charquear. Portanto, um iniciante para começar no ramo dos negócios devia possuir, antes de tudo, a sua charqueada e os seus escravos e são estes investimentos que deve-se atentar. Realizarei somente algumas considerações para as décadas de 1850 e 1860, que é onde tenho mais informações, fazendo as ressalvas necessárias ao longo da exposição. Pela heterogeneidade das benfeitorias que podiam compor uma unidade produtiva e a qualidade e tamanho dos estabelecimentos, o valor da charqueada é o mais problemático para se estabelecer os custos iniciais. Entre os anos de 1850 e 1860, é possível encontrar charqueadas valendo menos de 20:000$, enquanto a de José Inácio da Cunha valia 110:000$. Isto dificulta estabelecer um percentual médio dos escravos e da charqueada no patrimônio 52 total de um charqueador, como Stephen Bell buscou realizar. Além disso, não havia um
consenso no que pertencia e o que não pertencia à charqueada. Foi comum nos inventários anteriores aos anos 1860, os oficiais avaliarem benfeitoria por benfeitoria, ficando difícil definir o que era imprescindível para o funcionamento da fábrica. É somente a partir das décadas de 1850 e 1860 que começam a ficar mais comuns os avaliadores substituirem o grande número de benfeitorias descritas por somente algumas oficial. O mesmo serve para os inventários, onde eram anexados recibos e fragmentos de contas de uma safra, mas nunca uma conta completa. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835) . São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97-98. 52 BELL, Stephen. Op. cit., p. 72-73. Examinando poucos inventários, Bell considerou que os escravos perfaziam 70% dos investimentos da charqueada. Por azar, o inventário escolhido pelo autor, o do Comendador João Simões Lopes, foi um dos quais a charqueada apresentou um dos menores valores na época – apenas 15:000$. Analisando apenas os inventários dos anos 1860, e somando o valor da charqueada ao dos escravos, foi possível verificar 4 patrimônios onde os escravos apresentaram um percentual inferior ao valor da charqueada. Foram os casos de João Jacintho de Mendonça (45,8%), Inácio Rodrigues Barcellos (34%), Silvana Claudina Belchior (43,2%) e Cipriano J. R. Barcellos (36,6%). Tais cálculos são muito complexos, pois dependem tanto das condições da charqueada quanto dos escravos, além da época em que os mesmos foram avaliados. Mesmo assim, por motivos que explicitarei adiante, tendo a concordar com Bell, pois na maioria das vezes os escravos eram bens mais valiosos do que a charqueada, ainda mais após a extinção do tráfico atlântico. 51
389
delas, ficando subentendido que o terreno, as senzalas, as barracas de couros, as casas dos empregados, o moinho do sal, o trapiche, entre outros, estavam reunidos numa única unidade denominada “estabelecimento de charqueada”. No inventário de Joaquim Guilherme da Costa, por exemplo, a fábrica foi descrita como: “Um estabelecimento de charqueada
completo com casa de sobrado e diversas outras casas térreas, galpões e todas as demais benfeitorias edificado num terreno situado na margem do Arroio Pelotas ”.53 Portanto, não se elencava mais o grande rol de benfeitorias e utensílios. Contudo, observe-se que a moradia do charqueador é incluída conjuntamente no espaço que se entendia pertencer a charqueada. Isto dificulta a análise, porque um sobrado ao lado da fábrica era mais um investimento em conforto e um símbolo de status do que algo indispensável para um investidor que quisesse dar início aos negócios com o charque. Portanto, decidi investigar as escrituras públicas de compra e venda de imóveis para verificar o quanto um indivíduo estava disposto a pagar para tornar-se um charqueador no meado do século. Não foram localizadas tantas escrituras. Na realidade, no meado do oitocentos, poucos compraram uma charqueada completa e com todos os seus escravos prontos para trabalhar. Nos anos 1860, somente Cândido Antônio Barcellos o fez. Ele pagou 166:400$ por um estabelecimento de charqueada com todos os seus pertences, 2 potreiros, 1 iate e 56 escravos. Os escravos (49 homens e 7 mulheres) foram avaliados em 78:400$. 54 Por uma grande coincidência o número de 56 escravos foi exatamente a média de cativos nos inventários dos charqueadores entre 1850 e 1870. O valor pago por ele pela charqueada foi próximo dos 70:000$. Era um preço um pouco acima dos 55:000$ – valor médio das charqueadas avaliadas nos inventários da década de 1860. Portanto, esta inversão de capital de Cândido Barcellos pode nos servir como ponto de partida na tentativa de estabelecer os rendimentos médios de uma charqueada. De acordo com o visconde de São Leopoldo, um charqueador recuperava o seus investimentos iniciais em 6 ou 8 safras. 55 Isto significa que os rendimentos da charqueada de Cândido Barcellos teriam que estar numa ordem aproximada de 20:000$ a 25:000$ anuais. Analisando dezenas de processos judiciais e inventários encontrei, para a mesma época, somente dois depoimentos a respeito dos lucros da charqueada durante uma safra. A charqueada da Viúva Vianna & Filhos, com 41 escravos, rendeu pouco mais de 49:000$ em 53 54 55
Inventário de Joaquim G. da Costa, n. 599, m. 38, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1865 (APERS). Escritura de compra e venda de 01.12.1862, 1º Tabelionato de Pelotas, Livro de Notas n. 9 (APERS). BELL, Stephen. Op. cit., 1998, p. 73. 390
1864, quando ela buscou dinheiro para pagar seus credores. 56 Em 1862, José Duarte Souza, genro do charqueador João Vinhas, disse que a charqueada do seu sogro (que nesta época possuía 46 escravos) rendia anualmente cerca de 50:000$.57 Portanto, para a mesma época, seguindo os relatos dos próprios contemporâneos, os lucros poderiam chegar ao dobro. A partir dos fragmentos garimpados em diversas fontes vou tentar oferecer uma estimativa destes rendimentos. Contudo, insisto com o leitor que, na ausência de livros contábeis, minha abordagem não buscou em momento algum uma exatidão. Neste sentido, por falta de documentação, a análise que se segue é passível de erros. Portanto, trata-se de uma experiência analítica com fins a estimular outros pesquisadores a colaborarem com este tema que entendo ser de grande importância para a história econômica do Brasil, qual seja, a compreensão dos rendimentos de uma empresa escravista no oitocentos. Os preços do gado oscilaram bastante durante o período e tenderam a aumentar a partir dos anos 1870.58 Mas para as décadas de 1850 e 1860, os novilhos vendidos para as charqueadas deviam valer entre 12$ e 18$. Farinatti, por exemplo, verificou que em 1851 e 1852 um grande estancieiro de Alegrete vendeu seus novilhos por valores entre 14$ a 17$. Na mesma época, o charqueador João Simões Lopes teve os novilhos de sua estância avaliados em 16$. Em 1862, os novilhos que João Jacintho de Mendonça possuía em sua Estância no Uruguai foram avaliados em 12$. Portanto, parece que as crias no Uruguai eram mais baratas e comprá-las podia render maiores lucros ao charqueador. Mas numa escritura pública de 1868 encontrei novilhos uruguaios sendo vendidos em Pelotas por 18$. 59 Portanto, para o cálculo que se segue optei por uma média de 16$ pelo preço de um novilho abatido numa charqueada pelotense no meado dos anos 1860. Com relação ao sal, em 1882, Louis Couty mencionou que a quantidade do produto utilizado para salgar cada bovino abatido nas charqueadas oscilava entre 8 kg e 10 kg. 60 Ester Gutierrez, por sua vez, considerou que eram utilizados de 10 kg a 12 kg de sal no mesmo 56
Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS).
Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). Tratam-se de valores bastante altos e que no caso do segundo depoente, que tinha interesse direto no inventário, poderia estar super-estimado. 58 Como indicam as cotações correntes nos periódicos de Pelotas. Ver, por exemplo, Jornal do Comércio de Pelotas em 01.07.1877 (Biblioteca Pública de Pelotas). Em Alegrete, os preços do gado amentaram 31% da década de 1870 para a de 1880 (GARCIA, Graciela. Terra, trabalho e propriedade: a Estrutura agrária da campanha rio-grandense nas décadas finais do período imperial (1870-1890). Tese de Doutorado em História: UFF, 2010, p. 77). 59 FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 142. Inventário de João Simões Lopes, m. 366, m. 26, 1853, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas; Inventário de João J. Mendonça, n. 41, m. 1, 1862, 2º cart. do cível, Pelotas (APERS); Escritura de 11.05.1868, Livro de notas n. 11, 1º Tebelionato, Pelotas (APERS). 60 COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque.Pelotas: Seiva, 2000 [1882]. 57
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processo.61 Novamente optei pela média de 10 kg. Tendo em vista que o preço do alqueire de sal (13,8 kg) oscilou sempre em torno de 1$000, é possível estimar que cada rês consumia aproximadamente $725 em sal.62 A respeito dos gastos com mão de obra assalariada utilizei o mesmo processo de Liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos. Nele foram localizados alguns trabalhadores livres cobrando seus salários referentes à safra que se encerrava. A partir dos mesmos, é possível calcular os respectivos vencimentos anuais para o capataz (1:536$), o patrão do iate (480$), o graxeiro (384$), o camarada do iate (320$), o peão da casa (340$) e o rondador (337$). Somados eles custavam, por ano, 3:397$ ao charqueador. Arredondei para 63 4:000$, vistos os possíveis prêmios dados aos escravos carneadores.
Os gastos de manutenção com os escravos também são difíceis de calcular. Basicamente, eles envolviam roupas, cuidados médicos, mas, principalmente, a alimentação. É provável que os escravos das charqueadas consumissem mais carne bovina que o de outras unidades produtivas e a preços menores que o de outros mercados, sendo boa parte do dinheiro destinado à compra de outros produtos. Em janeiro de 1865, por exemplo, o administrador da charqueada dos Vianna comprou 15 sacos de farinha e 1 saco de feijão para alimentar um plantel de aproximadamente 40 escravos e gastou 66$, o que em um ano somariam 792$. Num plantel de 56 escravos, isto equivaleria a 1:108$800. O cálculo do consumo de carne em outra charqueada pode ajudar nesta questão. Entre setembro e dezembro de 1847, o charqueador José de Sá Peixoto gastou 47$180 com carnes para seus escravos (comprando o produto quase todos os dias), além de 3 varas de fumo (1$200) e 2 botijas de aguardente ($600) para os mesmos, somando 48$980. Num ano, estes gastos somariam 195$920. Mas Sá Peixoto tinha apenas 21 escravos.64 O proporcional em gastos num plantel de 56 escravos seria 522$453 por ano apenas em carne, fumo e aguardente. Somados aos gastos com farinha e feijão apontados no outro processo tem-se 1:631$253 por ano.65 A alimentação certamente era completada com as plantações das chácaras do proprietário, além da produção de alguns escravos.
61
GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001, p. 189. 62 Inventário de Thereza Silva Santos de Oliveira. N. 310, m. 21, 1849, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria - APERS; Inventário de Aníbal Antunes Maciel. N. 815, m. 48, 1875, Pelotas, 1º Cartório de órfãos e provedoria - APERS. Nestes e em outros documentos, tanto na década de 1840 quanto na de 1870, por exemplo, 1 alqueire de sal valia 1$000. 63 Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º c. do cível, Pelotas, 1865 (APERS). 64 Inventário de José P. Sá Peixoto, n. 276, m. 19, 1847, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 65 Devia ser difícil precisar comprar carne exclusivamente para os escravos, pois as partes dos próprios novilhos que chegavam para as charqueadas podiam servir para alimentá-los, sem causar grandes prejuízos ao 392
Com relação aos cuidados médicos, os Vianna possuíam um convênio com o Dr. João Campello, no qual pagavam 384$ anuais por atendimentos “a sua família e escravos do seu estabelecimento de charqueada”. O plano não dev ia cobrir cirurgias, pois, entre 1863 e 1864,
o médico cobrou um adicional de 320$ para amputar as duas pernas de um escravo, 200$ pela operação na bexiga de outro cativo e 50$ pela costura abdominal de um escravo ferido. No total, o charqueador gastou 1:338$000 em 1863-1864, o que resulta numa média de 669$ por ano.66 Como o convênio incluía os cuidados médicos dos escravos considerei o valor integral como os custos médicos na senzala. Somando os gastos médicos com a alimentação tem-se 2:300$253 por ano. Os gastos com as roupas são os mais difíceis de estimar, mas também deviam ser os mais baratos, visto o baixo preço dos tecidos e a presença de escravas costureiras nos plantéis. 67 Estudando os relatórios oficiais de uma companhia mineradora de São João del Rei, Douglas Libby encontrou uma média entre 58$ e 59$ de gastos gerais com cada escravo nos anos 1860.68 Para fins de estimativa, por falta de indicações mais seguras e para fechar um cálculo que resulte numa média aproximada à localizada por Libby, eu acresceria 700$ de gastos com roupas e despesas eventuais para um plantel médio entre 50 e 55 escravos. Somados aos cálculos anteriores, isto totaliza um custo anual aproximado de 3:000$ com os escravos, resultando numa média entre 55$ e 60$ de gastos com cada escravo por ano, ou seja, quantia muito aproximada da encontrada por Libby. Também calculei em mais de 4:000$ os gastos com barricas e pipas vazias para colocar o sebo e a graxa, equivalentes ao produto de uma charqueada que abatesse 20 mil novilhos.69 Com relação aos impostos, também foi possível fazer estimativas verossímeis.
charqueador. Em 1882, por exemplo, Louis Couty disse que as costelas dos bovinos eram destinados à alimentação dos escravos. Mas quando fosse necessário comprar o produto, o mesmo não devia custar tão caro. Em abril de 1865, quando a charqueada dos Vianna não estava mais abatendo, o administrador dos escravos comprou 150 costelas de gado durante um mês, pagando somente 6$ (custo que em um ano seria de 72$). (Liquidação da Viúva Vianna & Filhos). Um engenho cubano com 260 escravos consumia 2,5 reses por semana (FRAGINALS, Manuel M. O Engenho. São Paulo: Unesp/Hucitec, v. II, 1989, p. 79). Portanto, uma charqueada com 52 escravos (20% do plantel indicado em Cuba) consumiria ½ novilho por semana, o que daria 24 bovinos por ano. Ao preço de 16$ o novilho, isto custaria 384$000. Portanto, quando os senhores precisavam comprar carne no mercado local, o preço das mesmas custavam muito pouco diante do volume de capital movimentado em uma safra na charqueada, como trato a seguir. 66 Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS). 67 Mesmo os relatórios da companhia mineradora inglesa estudada por Libby não revelam os gastos com roupas. Mas visto a fábrica possuir um departamento de costura, o autor considerou que as vestimentas dos cativos deviam estar incluídas nos gastos com mantimentos gerais (LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 98). 68 LIBBY, Douglas. Op. cit., p. 98. 69 Este cálculo foi realizado da seguinte forma. Em 1876, 1 pipa com capacidade para 462 Kg de graxa e 1 barrica para 100 kg de sebo coado podiam ser compradas no mercado por 7$000 e $800 réis, respectivamente. Tendo em vista que uma rês rendia, em média, 10 kg de graxa e 7 kg de sebo, uma safra que abatesse 20 mil novilhos exigiria a compra de 432 pipas e 1.400 barricas, resultando em gastos de 4:144$. Os números foram 393
Como o preço do sal já trazia consigo os seus encargos e, como foi visto no capítulo anterior, os impostos municipais dos couros e seus fretes eram pagos pelos estrangeiros, não incluo tais valores. Contudo, os charqueadores deviam pagar os impostos por profissões, por gado abatido no município e os direitos de exportação do charque. O primeiro era de 265$ por empresário, o segundo, no caso aqui proposto de uma safra com 20 mil novilhos abatidos, custava 425$ ao charqueador e o terceiro calculei em cerca 6:658$. 70 É certo que existiam outros gastos adicionais, como reformar uma benfeitoria, por exemplo. Mas não os incluo pelo simples fato de que também não estou incluindo os lucros do charqueador com os aluguéis de escravos nas entre-safras e até nas safras, por exemplo. Entre fevereiro e março de 1865, os Vianna receberam 560$ referentes ao aluguel de seus escravos para dois charqueadores.71 A quantidade de cativos não é especificada. Mas como, nos anos 1860, os serviços de um cativo das charqueadas valiam 30$ mensais, é provável que tivessem sido alugados 9 ou 10 escravos por 2 meses.72 Por fim, entre os ganhos do charqueador acrescento 5:665$ pelos fretes de um iate durante uma safra. Incluí este valor porque Cândido Barcellos, quando adquiriu a sua charqueada, comprou-a com um iate. 73 O ganho médio do charqueador com os produtos da charqueada pode ser estimado a partir da conta entre Antônio José da Silva Maia e João Batista Balbé, em 1866. Segundo Maia, que remetia gado para ser abatido na charqueada de Balbé, o rendimento de um novilho (que ele não especifica nem o peso e nem o valor) naquele ano era de 2$ por arroba de charque (sendo que uma rês dava, em média, 4,5 arrobas do retirados das contas do Inventário de Ismael Soares de Leivas, n. 972, m. 55, 1º cart. órfãos e provedoria, 1882, Pelotas (APERS) e de COUTY, Louis. Op. cit., p. 125-127. 70 Calculei os valores dos direitos de exportação no ano de 1863 a partir de uma regra de três simples. Se naquele ano foram abatidas 326.272 reses nas charqueadas e os impostos de exportação somaram 108:615$240, o charque equivalente a 20 mil novilhos abatidos pagaria os direitos de 6:658$ (para os direitos pagos e o gado abatido nas charqueadas ver Revista do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, n. 8, dez. 1922, p. 246-247; PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos: aspectos gerais da indústria pastoril do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Continental, s/d.). Não fica claro se quem pagava os direitos de exportação era o charqueador ou o comerciante que revendia suas mercadorias no porto. De qualquer forma incluí na conta do charqueador, pois os maiores valores, como os fretes marítimos, pareciam ser pagos pelo comerciante 71
carregador, como enfatizo a seguir. Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS). Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 73 Como todo médio ou grande charqueador possuía o seu iate, ele não precisava pagar os fretes até o porto de Rio Grande. Contudo, tinha que arcar com os salários do patrão do iate, seu camarada e a manutenção do mesmo. A segunda opção era mais rentável do que pagar fretes, pois a maior parte dos charqueadores tinha um iate. Um bom iate podia ser comprado nos anos 1860 por 2:000$. Os salários de um patrão de iate com seu camarada custavam 800$ anuais. De acordo com Duarte de Souza, os fretes dos dois iates da charqueada de Vinhas rendiam mais de 6:400$ por ano (ver nota anterior). Portanto, percebe-se que em uma safra o valor pago pelo iate era amortizado e ainda rendia lucros. Um fragmento das contas dos fretes do iate da charqueada dos Vianna demonstra que somente em janeiro de 1865, ele rendeu 944$060 (Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS). 72
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produto ou quase 70 kg), 5$ por arroba de sebo, 4$ por arroba de graxa, 4$ a unidade do couro e 6$ o cento de chifres. 74 Conforme foi visto no capítulo anterior, várias charqueadas produziam cinzas para o mercado, então resolvi incluí-las nos cálculos de rendimentos, a partir das estimativas de Louis Couty.75 Maia, além de charqueador era comerciante e fretava embarcações no porto de Rio Grande. Nos anos 1870, uma embarcação mandada para a Bahia 76 ou Pernambuco cobrava $350 a $400 por arroba de charque carregado. Em 1874-1875, um
navio carregava em média 146,5 toneladas de charque, o que resultaria num frete de mais de 3:900$ até Pernambuco.77 Contudo, a partir da análise dos contratos de fretamento, creio que era o comerciante do porto que pagava os fretes ao proprietário do navio e não os charqueadores. É provável que ele calculasse seus lucros sobre o frete pago, mas não foi possível encontrar tais documentos e, neste aspecto, torna-se necessário novas pesquisas.78 Tendo sido feitas as devidas considerações, é possível verificar, a partir da Tabela 9.4, que a charqueada poderia apresentar um rendimento de 9,4% numa safra dos anos 1860. Lembro que não incluí as entradas referentes aos aluguéis dos escravos. No entanto, posso ter subestimado alguns gastos, o que compensaria a não inclusão daqueles dados. Mas, como já disse, trata-se de uma estimativa cujo grau de erros e acertos só pode ser testado com livros contábeis srcinais. Assim como em outras empresas da época, estes rendimentos eram maiores em algumas safras e menores em outras, variando de acordo com os preços dos produtos.79 Tudo isto podia fazer os valores saltarem de 9,4% para quase 15% ou cairem para 3% ou menos, podendo resultar em sérios prejuízos ao empresário. E estas oscilações foram muito comuns, pois os preços variavam numa mesma safra e na mesma semana. Portanto, um 74
Processo de Liquidação de João B. Balbé, n. 2.570, m. 74, 1866, 2º cart. cível e crime, Pelotas (APERS). Conforme Couty, a tonelada de cinzas valia aproximadamente 100 francos (33$333) (COUTY, 2001, p. 123). 76 Contrato de fretamento n. 1240, 12.03.1878 (JC-53, Fundo Junta Comercial, AHRS). 77 Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 06.12.1875 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). 78 Contratos de fretamento da Corretoria Geral de Rio Grande (Ver, por exemplo, JC-53 e JC-55, Fundo Junta Comercial, AHRS). Isto fica evidente nas centenas de contratos de fretamento dos anos 1860 e 1870. Eram poucos os charqueadores que apareciam pagando fretes aos comerciantes e proprietários de navios. Somente os charqueadores ricos atuavam neste ramo. Acredito que eles compravam o charque dos médios e pequenos, que 75
deixavam de arcar com os fretes marítimos, mas como o comerciante devia colocar sua taxa de lucro sobre o produto, forçando os preços do charque para baixo, devia dar no mesmo. Além disso, os comerciantes lucravam com o retorno dos seus navios que traziam açúcar, aguardente e sal na viagem de volta. Como foi visto no capítulo anterior, eram os comerciantes ingleses que pagavam os fretes dos couros. 79 Caso o novilho apresentasse um preço médio de 17$, por exemplo, os custos aumentariam em 20:000$, reduzindo os rendimentos para menos de 15 contos. Se o novilho custasse 18$ em média, o charqueador teria altos prejuízos na safra, mas se comprasse os novilhos uruguaios dos campos do Capitão Mendonça, avaliados em 12$, o rendimento seria altíssimo (80:000$ a mais). O preço pago pelos produtos também faziam os rendimentos oscilarem. Caso o charque aumentasse o preço da arroba de 2$ para 2$200, os ganhos aumentavam 18:000$ no cálculo final. E se os couros acompanhassem o aumento do charque e saltassem de 4$000 para 4$500, os mesmos ultrapassavam os 50 contos no final da safra (ou seja, valores próximos do que os Vinhas e os Vianna declararam em 1862 e 1864, como foi dito acima). 395
charqueador que havia lucrado muito numa safra não caía em desgraça caso sofresse um prejuízo na safra seguinte (desde que ele não fosse tão grande). Mas no geral, o charqueador com déficits excessivos sucumbia diante das oscilações. Como ensinou Witold Kula, estudando os rendimentos dos senhorios feudais polonenses, em qualquer sociedade a conta da empresa precisava estar equilibrada.80
Tabela 9.4 – Estimativa média20 demil rendimentos de umade charqueada em uma safra com abate de novilhos (década 1860)81 Custos em uma safra
Produto estimado em uma safra
Gado Sal Salários Barricas e pipas Manutenção escravos Impostos
320:000$ 14:490$ 4:000$ 4:144$ 3:000$ 7:348$
Charque Couros Sebo Graxa Chifres Cinzas Frete (Iate)
180:000$ 80:000$ 60:000$ 50:000$ 2:400$ 8:300$ 5:665$
Custos totais
352:982$
Produto total
386:365$
Rendimentos na safra
33:383$
O rendimento de 9,4% é apenas uma estimativa de um charqueador que possuía como unidade produtiva somente a sua charqueada. Este foi o caso da maioria dos charqueadores pelotenses. Caso o mesmo possuísse uma olaria, podia aumentar os ganhos, visto o barro ter um preço simplório, isto quando era comprado.82 Ao fabricar os tijolos, construir casas para revendê-las ou alugá-las ou alugar os próprios escravos para a construção civil, eles podiam potencializar sua economia sem muitos gastos. Comprar terrenos baratos, erigir casas sobre os mesmos e depois vendê-las podia auferir significativos lucros. Analisando a atuação econômica da família Rodrigues Barcellos, Carla Menegat pode observar que o charqueador 80
KULA, Witold. Da Tipologia dos Sistemas Econômicos. In: FOURASTIÉ, J. (Org.). Economia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1979, p. 75-140. As fontes utilizadas para a composição da tabela estão descritas minuciosamente nas páginas anteriores. É possível que as olarias dos charqueadores abastecessem de tijolos boa parte da região, intensificando a sua produção durante a entressafra das charqueadas. Tratava-se de um negócio muito lucrativo, pois como a população crescia desenfreadamente, o número de casas a serem construídas acompanhava tais necessidades. Além disso, a vizinha Rio Grande também crescia a índices impressionantes. Em 1835, por exemplo, a superfície desta cidade era de 36 hectares, em 1860, atingiu 75 hectares, mas em 1878 chegou a 458 hectares – um salto muito grande para pouco tempo. Tendo em vista que, em 1868, Rio Grande possuía apenas 5 olarias (enquanto Pelotas detinha 28) é provável que parte dos charqueadores suprissem uma parte considerável da construção civil da localidade. Nenhum outro município da Província possuía mais fábricas de tijolos do que Pelotas (ALVES, Francisco das Neves. A Cidade de Rio Grande. Rio Grande: FURG, 1997, p. 48; Mapa demonstrativo das Fábricas e Produtos de alguns municípios desta província e de suas riquezas naturais. In: Quadro Estatístico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 1868. Códice E-1 (AHRS)). 81 82
396
José era um “verdadeiro especulador imobiliário”. Ele e sua esposa negociaram 40 imóveis
entre 1832 e 1871. Quando faleceu, sua olaria havia sido repassada ao filho José Maria. Apenas para lembrar o leitor, José Rodrigues Barcellos também estava entre os 12 mais ricos de Pelotas.83 No geral, os historiadores não costumam distinguir os rendimentos dos pequenos, médios e grandes produtores. Certamente que os ganhos apontados na Tabela 9.4 podiam ser maiores no caso dos charqueadores mais ricos, com estâncias no Uruguai e na campanha e com embarcações de longo curso. Eles podiam lucrar carregando o charque dos concorrentes nos seus navios e retornando suas embarcações com açúcar, aguardente e sal. Os investimentos em grandes estâncias retornariam em novilhos com um preço mais barato, além dos mesmos poderem arrendar os seus campos. Além disso, eles podiam contar com outros ganhos, alugando suas casas e escravos e emprestando dinheiro na cidade. É impossível saber que rendimentos os grande charqueadores obtinham nisso tudo, mas creio que, nas boas safras, devessem ser maiores que os 9,4% indicados, os deixando mais bem preparados para os períodos de safras ruins. No Rio da Prata, um grande saladero com uma variada gama de investimentos podia render o dobro. Analisando as contas da enorme fábrica de Justo J. de Urquiza, em Entre Rios, verificou-se que, numa fase de auge, os seus lucros atingiram os 20% na década de 1850.84 Contudo, de acordo com Barran e Nahum, um saladero uruguaio numa época crítica 85 (1862) podia render até 8% de lucros sobre as despesas na mesma safra. O fato é que sem os
livros contábeis de uma média e de uma grande charqueada em Pelotas fica difícil fazer uma afirmação precisa. Prefiro arriscar que os ganhos ficavam entre 7% e 9% – algo bastante plausível se comparado a outras empresas da época. Tais rendimentos eram levemente superiores a outros investimentos na pecuária. Conforme Juan C. Garavaglia, as estâncias de criação de gado em Buenos Aires obtinham um lucro médio de 1% a 8% no início do anos 1850.86 Taxa semelhante foi encontrada por Luís A. Farinatti na mesma época. Estudando a 83
MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Porto Alegre: PPGHistória UFRGS, Dissertação de Mestrado, 2009. 84 BARSKY, Osvaldo; DJENDEREDJIAN, Julio. Historia del capitalismo agrario pampeano. La expansión ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, p. 339. 85 BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 128-129. 86 GARAVAGLIA, Juan C. Patrones de inversión y ‘elite económica dominante’: los empresarios rurales en la pampa bonaerense a mediados del siglo XIX. In: GELMAN, Jorge; GARAVAGLIA, J. C.; ZEBERIO, Blanca. Expansión Capitalista y transformaciones regionales: Relaciones sociales y empresas agrarias en la Argentina del siglo XIX. Buenos Aires: La Colmena, 1999, p. 130-131. 397
criação de gado em Alegrete, o autor percebeu que os grandes estancieiros podiam obter ganhos entre 3% e 7% por safra. 87 Observe-se que se tratam de comparações entre empresas 88 escravistas e não escravistas e que ambas não apresentavam diferenças significativas.
Na agricultura os rendimentos podiam ser maiores, mas também oscilavam bastante. Conforme Fragoso e Florentino, o retorno líquido de uma plantation podia chegar a um máximo de 12% ao ano, girando em média entre 5% e 10%. 89 No Recôncavo baiano, Schwartz estimou em 6,4% a taxa de retorno sobre o capital de um engenho, no final do século XVIII, sendo que, nas Antilhas inglesas, algo entre 5% era considerado razoável e 10% excelente.90 Contudo, as conjunturas de alta podiam oferecer lucros ainda maiores. Conforme Dauril Alden, o cultivo do algodão no Maranhão colonial podia oferecer rendimentos de até 50% nos momentos de alta dos preços.91 Para as décadas de 1870 e 1880, um observador declarou que os rendimentos médios de 9 grandes fazendas de café no sudeste chegavam a 17%.92 Em Pernambuco, Eisenberg verificou que os engenhos tradicionais dos anos 1870 não atingiam 9% em lucros.93 É provável que em Pelotas algumas conjunturas fossem mais favoráveis, atraindo investidores de peso. Em 1869, em pleno auge das exportações de charque, encontrei um negociante firmando um contrato de arrendamento de uma charqueada em que pagaria 30:000$ anuais. Tratava-se de um estabelecimento completo, com todas as benfeitorias, 74 escravos e 2 iates e o contrato era válido por 8 anos. 94 Ora, se o arrendamento estava custando este preço, é provável que os rendimentos da charqueada no período certamente eram superiores aos 30 contos, como estimei na Tabela 9.4. Caso contrário, não valeria a pena arrendá-la. O mais interessante é que este foi o maior valor pago por um arrendamento de charqueada que encontrei, por conta do proprietário alugar os escravos junto com o estabelecimento. Nos arrendamentos onde os escravos não faziam parte do contrato, as 87 88
FARINATTI, Luís A. Op. cit., p. 142-145. No que diz respeito à criação de gados isto parece evidente. Mas com relação aos saladeros e as charqueadas o
correto seria comparar os lucros de Urquiza com os de um grande charqueador pelotense com muitas inversões de capital, o que não foi possível estimar. Na comparação com os saladeros uruguaios não há muita diferença entre os valores, mas este é um problema de pesquisa que ainda está em aberto e merece novos estudos. 89 FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (c. 1750 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 230-231. 90 SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., p. 202-205. 91 ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: In: BETHELL, Leslie (Org.).História da América Latina. São Paulo: EDUSP, v. 3, 1999, p. 568. 92 MARCONDES, Renato. Op. cit., p. 150. 93 EISENBERG, Peter. Op. cit., p. 67; 92. 94 Escritura de 16.09.1869, Livro de Notas n. 12, 1º Tabelionato de Pelotas (APERS). 398
quantias pagas anualmente ficavam entre 4:000$ e 5:000$. Portanto, no contrato de 1869, o trabalho dos escravos valia cerca de 85% do usufruto da charqueada enquanto o estebelecimento ficava em torno de 15%. Este cálculo redime a estimativa de Bell mencionada anteriormente, que, como eu já disse, concordo plenamente. Auferindo um ganho de 33:383$ na safra hipotética da Tabela 9.4, é possível considerar que, caso fosse o capital investido por Cândido Barcellos, o charqueador recuperia 20,1% do mesmo em uma safra. Seguindo os ritmos de abate apontados, o investidor amortizaria o capital invertido na fábrica e nos escravos em 5 safras. Mas como 20 mil reses abatidas anualmente era um número acima da média, é provável que ele recupera-se o capital inicial em 6 ou 7 safras, ou seja, praticamente a mesma taxa estimada pelo visconde de São Leopoldo, em 1842. Entretanto, neste cálculo, se os rendimentos anuais obtidos devem estar próximos do que de fato um charqueador podia obter, os custos iniciais podem estar muito superestimados. No geral, os charqueadores construíam a sua própria charqueada e, quando as compravam, pagavam valores menores do que o pago por Cândido Barcellos no mercado. Como os valores dos galpões não eram muito altos, o capital investido nas benfeitorias era rapidamente recuperado. Neste sentido, os verdadeiros gastos iniciais eram realizados na compra de escravos, cada vez mais caros na segunda metade do século. Portanto, se o charqueador tivesse a sorte de ter herdado um estabelecimento completo e uma escravaria treinada, que tipo de ganhos isto implicaria? É o que pretendo analisar a seguir. 9.3 “O MAIOR LEGADO QUE LHES DEIXO”: A TRANSMISSÃO DEPATRIMÔNIO
ENTRE OS CHARQUEADORES A fortuna acumulada por um charqueador também dependia de outros fatores que não somente os seus próprios investimentos individuais e o gerenciamento de seu patrimônio. Sendo a charqueada uma empresa de caráter familiar e que envolvia parentes em outras áreas de atuação conjugadas ao estabelecimento, como a pecuária e o comércio, é necessário entender alguns outros fatores no interior da família que favoreciam a economia interna da unidade produtiva. Os negócios dos filhos e genros, por exemplo, podiam trazer maiores lucros e estabilidade para as finanças da empresa charqueadora, assim como a forma na qual o proprietário administrava o seu patrimônio e encaminhava os seus herdeiros na fase adulta também era fator importante no sucesso da geração seguinte. Neste sentido, a política 399
sucessória era algo complexo e que envolvia arranjos matrimoniais, antecipações de herança, investimentos em educação, empréstimos com juros inferiores aos de mercado, entre outros fatores. Contudo, estas questões, por si só, mereceriam um estudo específico, algo que esta tese não pretendeu realizar.95 Neste capítulo pretendo avaliar qual o peso do papel da família na formação e no sucesso destes empresários escravistas, como os mesmos legavam a charqueada ao filho “escolhido” como herdeiro e em que situação ficavam os filhos “preteridos” no processo de
sucessão. Para realizar esta análise reuni todas as propriedades de charqueada em Pelotas ao longo do século XIX e rastreei os seus proprietários ao longo do tempo. Para tal empreitada pesquisei em diversas fontes. O ponto de partida foi uma listagem elaborada em 1925 por João Simões Lopes Neto – neto e sobrinho de ricos charqueadores. No seu trabalho, o autor descreveu a distribuição geográfica das charqueadas que existiram em Pelotas na época, somando 43 estabelecimentos.96 Estas fábricas não funcionaram ao mesmo tempo, pois algumas foram montadas e outras desativadas em épocas diferentes. Para cada uma das 43 charqueadas elencadas, Lopes Neto buscou destacar o primeiro proprietário e para quem a mesma foi sendo transmitida sem esclarecer muito bem se a mesma foi vendida, entregue por endividamento ou legada por herança, e em que data ocorreu a transferência . O ponto forte da “relação” é exatamente mapear e situar as propriedades ao longo das margens do arroio Pelotas e do rio São Gonçalo, 95
Os estudos sobre a reprodução social agrária, as políticas sucessórias e a transmissão de patrimônio possuem uma larga tradição nas ciências humanas. Para análises pioneiras ver THOMPSON, E. P.; GOODY, Jack; THIRSK, J. Family and Inheritance: Rural Society in Western Europe (1200-1800). New York/Londres: Past and Present Publications/Cambridge University Press, 1978.; LADURIE, Emmanuel Le Roy. Système de la coutume: structures familiales et coutume d’héritage en France au XVI siècle. Annales ESC, 27 (4-5), p. 825846; BOURDIEU, Pierre. A terra e as estratégias matrimoniais. In: BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 244-265. Para uma profunda revisão historiográfica sobre o tema ver PEDROZA, Manoela. Estratégias de reprodução social de famílias senhoriais cariocas e minhotas (1750-1850). Análise Social, v. XLV, 194, 2010, p. 141-163. Para estudos no universo luso-brasileiro entre os séculos XVI e XIX ver MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Csa da Moeda, 1998; DURÃES, Margarida. Estratégias de sobrevivência econômica nas famílias camponesas minhotas: os padrões hereditários (séc. XVIII-XIX). In:
Anais do XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú (MG), 2004, p. 124; BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre senhores de engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997; COSTA, Dora Isabel Paiva da. Formação de famílias proprietárias e redistribuição de riqueza em áreas de fronteira: Campinas, São Paulo, 1795-1850. In: História Econômica & História de Empresas. Vol. VII, n. 2, jul-dez, 2004, p. 7-35; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; PEDROZA, Manoela. Engenhocas da Moral: um estudo sobre uma dinâmica agrária tradicional. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp, 2008. 96 Esta fonte foi publicada na Revista do 1º Centenário de Pelotas intitulada “Notícia sobre a fundação das charqueadas” e está reproduzida em MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102. 400
uma vez que a listagem dos proprietários apresenta algumas lacunas que busquei preencher com outras fontes documentais, como os inventários post-mortem, as genealogias de famílias de charqueadores, as listas de qualificação de votantes e da Guarda Nacional e as escrituras públicas de compra e venda.97 Dos 43 estabelecimentos arrolados por Lopes Neto, tive que eliminar 3, pois em dois deles o autor não deixou claro quem eram seus proprietários e no outro a charqueada foi demolida ainda na década de 1830. No entanto, acrescentei outros dois estabelecimentos que Lopes Neto não arrolou, pois eles estavam localizados fora do círculo principal das charqueadas, próximas às margens fluviais do São Gonçalo e do Pelotas. Destas 42 charqueadas, reuni informações mais seguras para 32 delas, ou seja, 76% dos estabelecimentos. As demais parecem não ter encontrado sucessores entre os filhos ou foram destruídas ou seus proprietários não deixaram muitos vestígios na documentação. Ao contrário dos estancieiros que podiam ter seu patrimônio fundiário fracionado entre os filhos, os herdeiros de um charqueador não tinham como dividir a fábrica de charque em partes, pois o fracionamento da escravaria e das instalações da empresa tornava a continuação dos negócios inviável. Portanto, as charqueadas eram bens “indivisíveis” (como
um engenho de açúcar, por exemplo) e exigiam um planejamento especial por parte dos proprietários para que a empresa não se fragmentasse em gerações posteriores.98 Neste sentido, a política sucessória deveria envolver um longo processo de “transmissão” e “aprendizagem” dentro da própria família enquanto o pai ainda estava vivo. Tal processo
consistia em investir o papel de sucessor da charqueada a um dos filhos homens. Em poucos casos este espaço foi preenchido por um genro do charqueador. Naturalmente, alguns charqueadores venderam a sua propriedade durante a vida. Nos casos em que não encontraram pessoas na família que o sucedessem, as viúvas e/ou os herdeiros foram obrigados a arrendarem ou negociarem o estabelecimento. 97
Como, por exemplo, a Lista de qualificação de votantes de Pelotas (Fundo Eleições, maço 2, AHRS) e a Lista
de qualificação da Guarda Nacional (Fundo Conselho de Qualificação da Guarda Nacional, maço 77, AHRS). Um manifesto assinado em 1848 pelos charqueadores pelotenses reclamando da pesagem do couro apresenta três indivíduos que não aparecem na listagem de Simões Lopes Neto. O manifesto foi publicado no Jornal O RioGrandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4. e foi reproduzido por TORRES, Daniel de Quadro. Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, 2004, p. 32. Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense – transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)). 98 Ao contrário dos charqueadores, os senhores de engenho já mereceram muitos trabalhos a respeito da análise do processo de transmissão de herança. Ver, por exemplo, BACELLAR, Carlos. Op. cit.; COSTA, Dora Isabel Op. cit.; FARIA, Sheila de Castro. Op. cit; PEDROZA, Manoela. Op. cit., 2008. Todos estes estudos serviram de referencial teórico e metodológico para esta pesquisa. 401
Os 32 estabelecimentos selecionados pertenceram a diferentes proprietários ao longo do século XIX. Em 23 deles encontrei os charqueadores transmitindo a administração da propriedade a algum parente próximo, ou seja, em 72% destes estabelecimentos um charqueador encontrou, em algum momento, um sucessor na família para seguir nos negócios com o charque. Em 15 destes 23 estabelecimentos (quase 2/3) o sucessor foi um filho do charqueador.99 Ao mesmo tempo em que o índice de 72% revela um papel importante da família no gerenciamento dos negócios, ele também demonstra que cerca de 28% das propriedades pertenceram a charqueadores que não conseguiram dar prosseguimento à empresa na geração posterior, tendo que revendê-la, ou cujos herdeiros dedicaram-se a outros negócios. Tal fenômeno abria um espaço considerável para que indivíduos com o capital necessário (geralmente comerciantes ou ricos estancieiros) investissem na compra de um estabelecimento de charquear, adentrando ao pequeno círculo desta elite. Isto fica mais evidente quando se percebe que menos da metade dos charqueadores teve em seu filho um sucessor nos negócios. Tendo em vista os grandes lucros que a empresa oferecia na época, creio não ser possível considerar que este fenômeno tenha explicações de ordem econômica, ou seja, que os herdeiros estivessem procurando uma atividade mais rentável do que o charque. Creio que o abandono da família nos negócios com o charque era fruto das muitas crises pela qual passou o setor – tema que será retomado adiante. Para refinar esta análise decidi agrupar os empresários em 3 gerações distintas. Na primeira conjuntura “A” (anos 1820 e início da década de 1830) chegaram a existir ao mesmo tempo cerca de 35 charqueadas; na conjuntura “B” (década de 1850) havia 38 estabelecimentos; e no último período “C” (final dos anos 1870 e início dos 1880) também funcionaram 38 charqueadas.100 Portanto, motivado pela expansão econômica que caracterizou o meado do século, o número de estabelecimentos atingiu o seu auge nos anos 1850 e 1860, mantendo-se estável até o início da década de 1880, para depois decair. Ainda com relação às três conjunturas, é necessário considerar que a Guerra dos Farrapos (18351845) marca um importante divisor entre os períodos A e B, e as diferentes crises que afetaram as charqueadas nas décadas de 1860 a 1870 significaram um importante obstáculo para as famílias que atuaram neste negócio entre os períodos B e C.101
99
Em 4 destes estabelecimentos o “sucessor” nos negócios foi o genro, em 2 deles foram os netos, em 1 o cunhado e em outro o afilhado. 100 Como já foi dito, nem todas as charqueadas existentes nestas épocas fazem parte da análise. 101 Para uma análise dos charqueadores pertencentes a cada período ver Anexos da tese. 402
Analisando as 3 gerações e levando em conta os reveses econômicos mencionados é possível observar que a taxa de renovação das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas foi bastante considerável e que o número de novos investidores ocupou um percentual mais significativo ainda. Dos 29 charqueadores que estavam na ativa no período B, 12 também eram charqueadores no período A e 5 eram filhos de pais charqueadores no período A. Portanto, 17 (58%) charqueadores pertenciam a famílias proprietárias do primeiro período. Por outro lado, 42% deles encontraram espaço para tornar-se proprietários sem possuir vínculos familiares com os charqueadores locais. Alguns destes “novos” charqueadores do período B eram comerciantes ou estancieiros que decidiram investir nos negócios, sendo que parte deles acabavam casando-se com filhas dos charqueadores cujas famílias eram “estabelecidas”, vindo a se inserir no interior de uma rede parental mais ampla, que envolvia
crédito e acesso ao mundo da política local. Dos 29 charqueadores do período B, somente 4 ainda estavam na ativa no período C e outros 12 possuíam parentes próximos no mesmo.102 Portanto, de 1850 para 1880, 16 charqueadores (55%) tiveram seus bens nas mãos da mesma família. É um índice muito aproximado do apontado acima. Superando todos estes reveses e permanecendo do período A até o C, ou seja, por mais de 60 anos neste ramo de negócios, tem-se 13 famílias (proprietárias de 14 charqueadas), ou seja, 43,8% dos 32 estabelecimentos selecionados para esta análise. Algumas delas estão entre as 12 famílias mais ricas desta elite (aquelas que apresentaram fortunas inventariadas superiores a 50 mil libras), como os Gonçalves Chaves, os Silva Maia, os Moreira, os Assumpção, os Simões Lopes, os Rodrigues Barcellos e os Oliveira Castro. É possível considerar que a história destas 13 famílias se confundia com a história de seus estabelecimentos e que as mesmas concentraram em suas mãos uma parcela considerável das charqueadas analisadas, vedando o acesso das mesmas a outras famílias. Para fins analíticos, denominei estas famílias que conseguiram passar por guerras e grandes crises econômicas e permanecer nos negócios com o charque entre os anos 1820 e 1880 de famílias longevas.103 Tornar-se genro de um charqueador poderia ser uma das formas de ingressar na elite charqueadora. Contudo, entre as famílias longevas o genro conseguiu herdar o papel de 102
Entre os mesmos, 7 estavam nas mãos dos filhos, 2 dos genros, 1 dos netos, 1 do irmão e 1 do cunhado. Como um destes charqueadores possuía dois estabelecimentos e ambos ficaram com os netos, o número de charqueadores é 16, mas o número de charqueadas 17. 103 Obviamente que o “longeva” diz respeito à história das famílias proprietárias nas charqueadas em Pel otas, uma vez que, em outras realidades históricas, o período de 60 ou 70 anos não representava uma grande permanência no tempo. Ver, por exemplo, MONTEIRO, Nuno. Op. cit.; BECKETT, J. V. The Aristocracy in England 1660-1914. Londres, 1986; MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Cia das Letras, 2009. 403
charqueador somente em 2 delas, pois os filhos foram os sucessores preferenciais do interior das mesmas. Tendo em vista que das 32 charqueadas analisadas aqui apenas 15 apresentaram sucessão de pai para filho, pode-se dizer que as famílias longevas foram as mais representativas em praticar com sucesso uma política sucessória de pai para filho, pois reuniam 11 das 15 charqueadas (74,3%) em que tal tipo de transmissão foi realizada. Este padrão de transmissão da charqueada para um dos filhos não deve ser visto como uma obviedade nas relações familiares. Estudando os engenhos de Campos dos Goytacazes (Rio de Janeiro) no século XVIII, Sheila Faria verificou um sistema sucessório matrilinear, ou seja, o engenho era transmitido para um dos genros por intermédio de uma das filhas. No caso estudado por Faria, o genro português e comerciante foi o típico herdeiro e sucessor nos negócios da localidade.104 No entanto, estudando diferentes sistemas sucessórios e dando ênfase aos engenhos de açúcar do oeste paulista, Carlos Bacellar considerou que havia padrões diferenciados no processo sucessório dos mesmos. 105 Neste mesmo sentido, Dora Costa identificou um padrão diferente do localizado por Faria. Estudando o oeste paulista na passagem do século XVIII para o XIX, ela verificou que o padrão hegemônico era o patrilinear, embora houvesse espaço para os genros herdeiros.106 O padrão localizado nas charqueadas pelotenses era semelhante ao encontrado por Costa. Dos 14 charqueadores (15 charqueadas) que tiverem nos seus filhos o sucessor nos negócios com a charqueada, 12 tiveram nos primogênitos os herdeiros preferenciais. Para um deles o sucessor foi o segundo mais velho e para outro não consegui identificar se o filho herdeiro era o mais velho. Portanto, em mais de 90% dos casos onde houve a transmissão da administração da charqueada para o filho, o mesmo era o primogênito, sendo os secundogênitos não incluídos neste processo de transmissão informal. Ora, estamos diante de uma distinção notável nas políticas sucessórias realizadas por um grupo de famílias se comparada às demais. Se as famílias longevasconcentraram as sucessões da charqueada de pai para filho e se nestas sucessões predominaram as transmissões para os primogênitos, podemos concluir que a longa permanência destas famílias nos negócios com o charque estava diretamente relacionada ao tipo de política sucessória realizada. A transmissão da charqueada para um filho-sucessor parecia garantir uma transição mais estável e que assegurava às gerações seguintes uma maior permanência neste ramo de negócios. Mas pode-
104 105 106
FARIA, Sheila de C. Op. cit. BACELLAR, Carlos. Op. cit., p. 15. COSTA, Dora. Op. cit. 404
se ir mais adiante. Se grande parte das famílias longevas também estavam entre as famílias mais ricas da segunda metade do século, é possível verificar o quanto uma política sucessória envolvendo o primogênito podia condicionar a trajetória e a possibilidade de ganhos econômicos das gerações posteriores. Apesar de todas as mudanças socioculturais ocorridas na sociedade brasileira do oitocentos, firmando um maior individualismo entre os homens livres e a igualdade nos sistemas de herança107 , alguns charqueadores, notadamente aqueles que vieram a apresentar as maiores fortunas da segunda metade do oitocentos, pareciam favorecer os primogênitos varões, concentrando a propriedade mais importante da família nas mãos do filho“escolhido”. Tendo em vista os indicadores da Tabela 9.5, pode-se concluir que os níveis de riqueza eram diretamente proporcionais à estabilidade das famílias nos ramos dos negócios e no tipo de política sucessória realizada. Com isto é possível afirmar que a riqueza herdada e a primogenitura não garantiam um sucesso absoluto, mas ajudavam a ampliar as possibilidades de enriquecimento dos charqueadores que se encontrassem nesta posição na segunda metade do século XIX. Tabela 9.5 – Relação entre riqueza, posse de estâncias e longevidade da família nos negócios com o charque (1810-1900) Faixa de Fortuna (em libras)
Famílias Longevas
Estâncias fora de Pelotas
Mais de 100 mil De 50 a 100 mil De 20 a 50 mil De 10 a 20 mil Menos de 10 mil
75% 57% 42% 20% 4%
100% 75% 38% 14%
Fonte: Inventáriospost-mortem dos cartórios de Pelotas (APERS); Escrituras Públicas de compra e venda do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (APERS).
O charqueador mais rico de Pelotas pode contar com um triplo fator de favorecimento na sua trajetória. O Barão de Jarau era: a) filho de charqueador; b) genro de charqueador, com poucos cunhados; c) tinha poucos irmãos. O primeiro e o segundo fator dispensam comentários. Jarau foi beneficiado em duas partilhas de patrimônios consideráveis e na segunda delas, possuía somente 3 cunhados com quem dividir os bens de seu sogro. Além disso, o fato de possuir somente um irmão e uma irmã permitiu ao mesmo ficar com boa parte do patrimônio do pai – que além de charqueador, era comerciante marítimo. Não encontrei 107
NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do Dote. Mulheres, Famílias e Mudança Social no Brasil (16001900). São Paulo: Cia. das Letras, 2000, em especial o capítulo 3. 405
nenhum caso igual ao dele. Mas outros dois dos mais ricos charqueadores de Pelotas chegaram perto disso. O Visconde da Graça, por exemplo, era filho de charqueador e também tinha poucos irmãos (3), mas não teve a sorte de tornar-se genro de um rico charqueador como como Jarau. O Barão de Butuí, por sua vez, apesar de não ser filho de charqueadores, casouse com a única herdeira de Antônio José de Oliveira Castro – um dos 12 charqueadores mais ricos do grupo aqui estudado – herdando parte da fortuna do sogro na primeira partilha do casal, em 1848. Estes três casos (mas principalmente o do Barão do Jarau), lembram a forma como o Comendador Manoel Vallim começou a acumular a sua grande fortuna de cafeicultor em São Paulo. Herdando grandes patrimônios agrários do pai e do sogro, Vallim os administrou com competência, vindo a tornar-se uma das maiores fortunas do Brasil no oitocentos. Zélia C. de Mello também mencionou que as grandes fortunas de São Paulo no fim do oitocentos tinham srcens familiares vinculadas ao café e ao açúcar.
108
Sendo assim, o
peso da riqueza familiar na constituição das fortunas das mencionadas elites na segunda metade do oitocentos era notável. Portanto, a ironia de Charles Darwin a respeito da aristocracia inglesa, e que serviu de epígrafe neste capítulo, cabia perfeitamente ao universo pelotense aqui analisado. O primogênito de um charqueador já nascia com notáveis condições de superar os concorrentes nos negócios e tal fenômeno colocava os adversários em situação desfavorável. No seu testamento, uma das primeiras coisas que o charqueador Domingos de Castro Antiqueira, neto de índios e sem raízes familiares no grosso comércio, deixou escrito foi: “Declaro que todos os bens que possuo foram adqu iridos pelo meu trabalho”.109 Neste sentido, como demonstrou Adeline Daumard, riqueza adquirida e riqueza herdada pareciam tensionar-se num mundo onde o individualismo empresarial cada vez mais buscava se desprender das amarras institucionais e tradicionais que insistiam em detê-lo, muito embora a burguesia europeia também compartilhasse de notáveis emaranhados parentais e suas empresas contassem com um gerenciamento de caráter familiar. 110 Não possuo elementos documentais para defender esta hipótese, mas era como se as práticas de sucessão das famílias longevas fossem inspiradas nas políticas sucessórias características das casas nobres portuguesas do Antigo Regime, assegurando ao filho mais velho o nome do pai e a própria charqueada – um bem indivisível –, mas sem deixar de 108
FRAGOSO, João; RIOS, Ana Lugão. Op. cit.; MELLO, Zélia C. de. Op. cit. Inventário do Visconde de Jaguari, n. 348, m. 25, Pelotas, 1º cartório de órfãos e provedora, 1852 (APERS). DAUMARD, Adeline. Os burgueses e a burguesia na França. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Em especial o capítulo 3. 109 110
406
agregar os demais filhos ao patrimônio legado.111 Na srcem de algumas destas famílias longevas estavam charqueadores portugueses da primeira geração do colonial tardio, como
José Antônio Moreira, João Simões Lopes, Joaquim José de Assumpção, João Vinhas, Manoel Batista Teixeira e Antônio José Gonçalves Chaves. Nestes casos, os filhos que herdaram a administração da sua charqueada eram seus primogênitos e seus homônimos. Para tornar esta análise ainda mais interessante, é necessário afirmar que das 13 famílias longevas apontadas, 9 estavam ligadas entre si por meio de matrimônios estabelecidos entre filhos e filhas, denotando uma apreciável endogamia.112 A Tabela 9.5 também demonstra que a presença de grandes estâncias nos patrimônios era diretamente proporcional não apenas ao acúmulo de fortunas, como já foi dito no capítulo 7, como também à estabilidade da política sucessória. É provável que na maioria dos casos, para que o sucessor da charqueada reunisse os escravos e a fábrica sem o prejuízo dos demais irmãos e irmãs, o pai devia ter que possuir um patrimônio significativo para garantir uma sucessão mais estável. Sendo as estâncias e os animais uns dos bens de maior valor no montemor dos charqueadores, é possível perceber que a terra, além da nítida função econômica, e de
fonte de poder e status, também parecia funcionar como fator de estabilidade na condução da política sucessória. Aliada aos imóveis urbanos e ao dinheiro, as terras (e aqui incluo os pequenos campos e as chácaras dentro da própria Pelotas) garantiam uma sucessão mais tranquila para as gerações seguintes.113 Tendo em vista que as charqueadas funcionavam sob uma perspectiva de atuação familiar, pois irmãos e genros ocupados em unidades produtivas distintas tinham nela um fator de alocação de seus rebanhos e capitais, o pai garantia uma reprodução social das mesmas práticas envolvendo todos os herdeiros, muito embora o filhocharqueador pudesse auferir os melhores rendimentos, além de encarnar o nome e o prestigio do pai no mercado. Charqueadores que não possuíam tantos bens podiam passar por um processo de transmissão de patrimônio mais dificultoso. Um exemplo disso pode ser dado na charqueada de Inácio Rodrigues Barcellos. Com uma fortuna pequena para os padrões dos charqueadores, os seus herdeiros tiveram que contornar o sistema igualitário de herança no Brasil. Neste contexto, a família devia elaborar estratégias de sucessão dos bens que fossem aceitas entre
111
MONTEIRO, Nuno. Op. cit. Acerca deste tema inspirei-me no tratamento dado por MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Op. cit. Não quero com isto dizer que o charqueador comprasse a estância pensando neste dispositivo. Mas em alguns casos, estas propriedades facilitavam a igualdade na distribuição da herança. 112 113
407
114 seus membros e não prejudicassem em demasia uns com relação aos outros. Uma das
formas de realizar este projeto era o charqueador legar em sua terça testamentária uma parte dos bens para o filho-sócio, favorecendo-o na partilha. E foi exatamente o que Inácio Barcellos fez. Contudo, como a sua fortuna não era suficiente para encaminhar todos os herdeiros, Barcellos dividiu a sua terça aos três filhos mais velhos que acabaram se tornando sócios na charqueada até a década de 1880.115 Para além dos dados estatísticos, é possível verificar em outros documentos o encaminhamento da administração da charqueada de pais para filhos. João Vinhas, por exemplo, foi proprietário de dois estabelecimentos, sendo que um deles estava instalado no Uruguai.116 Na propriedade localizada em Pelotas, ele possuía sociedade com o filho primogênito. No seu testamento, Vinhas ainda esclarecia que o genro deveria ser gratificado por serviços prestados na sua outra charqueada localizada no Uruguai. Como o falecimento do pai, Vinhas Filho tornou-se proprietário da charqueada e, posteriormente, a mesma foi passada ao seu irmão caçula Pedro.117 Este mesmo tipo de iniciação do filho enquanto sócio e herdeiro preferencial pode ser verificado nos inventários de outros charqueadores como José 118 Inácio da Cunha, Tomás José de Campos e Boaventura Rodrigues Barcellos, por exemplo.
Nas listas de qualificação de votantes também é possível verificar isto. Em 1865, Heleodoro de Azevedo e Souza, 60 anos, e seu filho homônimo, 35 anos, foram classificados como “charqueadores”. Como possuíam somente um estabelecimento, pai e filho deviam
administrar conjuntamente a fábrica da família. Na mesma lista, caso idêntico foi o de José Inácio da Cunha e Possidônio Mâncio Cunha, pai e filho. 119 Em 1880, ano em que Antônio José da Silva Maia era proprietário de uma charqueada em Pelotas, seu filho Bernardino da Silva Maia foi qualificado como “administrador”. Na leitura dos inventários de membros da
família Maia, fica evidente que os filhos e genros auxiliavam no gerenciamento da
Para maiores detalhes sobre os sistemas de herança no Brasil Império e as estratégias sucessórias para contornar estas relações ver COSTA, Dora. Op. cit. 115 Inventário de Inácio Rodrigues Barcellos. N. 554, m. 36, 1863, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 116 A charqueada no país vizinho não está incluída na presente análise. Os casos em que o charqueador possuía estabelecimentos em ambos os lados da fronteira foram muito raros. 117 Inventário de João Guerino Vinhas. N. 383, maço 26, Cartório de órfãos e provedoria, ano 1854, Pelotas, APERS. p. 13v. Listagem de Simões Lopes Neto. 118 Inventários de José Ignácio da Cunha. N. 600, m. 38, 1865, 1º cartório de ófãos e provedoria, Pelotas (APERS), Tomás José de Campos. N. 1004, m. 47, 1º cartório de órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS) e Boaventura R. Barcellos. N. 409, m. 28, 1856, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 119 Lista de Qualificação de votantes de Pelotas, 1865, m. 2, Fundo Eleições (AHRS). 114
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empresa.120 No mesmo ano, Vicente Lopes dos Santos Filho aparece como “gerente” na lista de votante e no mesmo documento o seu pai era charqueador, revelando que esta família também apresentava este tipo de negócios.121 Neste sentido, os charqueadores que vislumbravam a continuidade dos seus negócios com seus herdeiros buscavam orientar os filhos para uma direção planejada. Em 1870, o charqueador Tomás Jose de Campos deixou claro em seu testamento que os filhos Virgínio e Tomás o auxiliavam no estabelecimento, mas que o primeiro era seu sócio e que a direção dos negócios devia ficar a cargo dele. A orientação paterna e a tentativa de manter a família unida nos negócios ficam claras em outro trecho do testamento, quando o pai pede para que “não haja entre meus herdeiros a menor questão judicial; de que não representem o papel de corvos a espicaçar a carniça a quem mais aproveita”. E complementava: “Quisera que me fizessem o
bem de sempre se auxiliarem como irmãos, e darem o bom exemplo de mutuamente se amarem, seja este o maior legado que lhes deixo”.122 Creio que na maioria dos casos o irmão-charqueador devia buscar uma maior harmonia com os familiares, pois a mesma podia lhe facilitar nos negócios. Quando este possuía um capital suficiente ou o apoio do restante da família (que lhe permitia as negociações com prazos e valores privilegiados) ele podia comprar as partes herdadas pelos irmãos na charqueada e os escravos tornando-se o único proprietário da mesma. Dora Costa utilizou o termo “irmão concentrador” para analisar estes casos. Foi o que fizeram João
Simões Lopes Filho e Antônio José Gonçalves Chaves, por exemplo. Este seguiu 123 administrando a charqueada do pai junto com outros de seus irmãos. Firmas formadas por
irmãos e cunhados não eram raras, mas a grande maioria dos inventários post-mortem que pesquisei revela que as charqueadas possuíam somente um proprietário, apesar de serem gerenciadas com a participação de familiares próximos. As vantagens de se ter um pai charqueador eram nítidas. Sendo realizada no interior da família, esta transmissão da charqueada não envolvia apenas os bens materiais, mas também os conhecimentos administrativos, o prestígio social, a rede de créditos, o governo da 120
Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense – transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)). 121 Inventário de Antônio José da Silva Maia. N. 995, m. 57, 1884, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). Lista de Qualificação de votantes de Pelotas (1880). 122 Inventário de Tomás José de Campos. N. 1004, m. 47, 1º cartório de órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS). 123 Livro de Transmissões e Notas. 2º Tabelionato, Pelotas, Livro 4, p. 73v. Inventários de Antônio José Gonçalves Chaves. N. 754, m. 45, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1872, Pelotas (APERS). 409
escravaria, entre outros fatores importantes no gerenciamento dos negócios. Sendo assim, esta ocupação envolvia um conjunto de “saberes”, ou seja, de conhecimentos específicos herdados
e que eram aprendidos desde a juventude, quando o filho já acompanhava o pai na administração dos bens. Tal aprendizado envolvia o conhecimento das redes mercantis, tanto para comprar gado e sal, quanto para conseguir mão de obra por um preço favorável. Portanto, o filho charqueador já iniciava os seus negócios imerso em um mundo de privilégios inacessíveis aos não-iniciados. Sob a supervisão do pai, ele compartilhava das redes de relações do mesmo, podendo garantir melhores acordos com arrendatários, capatazes e trabalhadores eventuais, além de herdar prestígio social e político – importantes nas negociações e na busca de crédito na praça, assim como favores de diferentes tipos. Portanto, creio não ser coincidência que 7 das 9 famílias de charqueadores mais ricas de Pelotas também estão entre as famílias que denominei longevas, ou seja, aquelas que conseguiram manter-se nos negócios desde a década de 1830 (e muitas delas antes disto) até os anos 1880.124 No entanto, a escolha do filho-charqueador devia ser uma tarefa eivada de dificuldades, pois exigia acordos e devia buscar não desagradar os outros filhos, como já mencionei. Algumas vezes os planos fracassavam. Em 1890, José Bento de Campos, em seu testamento, deixou claro o seu descontentamento, pois o filho homônimo que ele colocou como administrador da charqueada vinha retirando quantias superiores a que tinha direito, e o pai assumiu que isto desfavorecia os seus outros filhos. 125 Os casos conflituosos dificultavam a partilha dos bens e exigiam maiores gastos do irmão-charqueador, além de provocar brigas no interior da família, quebrando as relações econômicas e de favores estabelecidas no seu interior.126 Na falência da charqueada da família Vieira Vianna, o motivo da quebra, segundo 124
Entre os estancieiros estudos por Farinatti, ocorria algo semelhante: “Tanto no caso do desempenho da pecuária quanto no que tange à ocupação de cargos militares, o fato dos filhos homens seguirem os passos do pai era francamente facilitado pela existência de um patrimônio previamente construído pela atuação paterna. Tal patrimônio era composto por estâncias, gado, escravos, relações comerciais, crédito e informações, no caso da pecuária e negócios, e por cargos e relações sociais, no caso dos postos militares. (...) os filhos de grandes estancieiros tinham facilidade no início de suas trajetórias como pecuaristas, uma vez que muitos deles recebiam gado e escravos como adiantamento de herança, podiam criar seu primeiro rebanho nas terras de seus pais, sem necessitar pagar qualquer forma de arrendamento e contavam com o crédito que seus pais já haviam conquistado no mercado” (FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPG em História Social do IFCSUFRJ, 2007, p. 224). 125 Inventário de José Bento de Campos. N. 1165, m. 65, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 126 Ver, por exemplo, os inventários de João Guerino Vinhas. N. 383, maço 26, Cartório de órfãos e provedoria, ano 1854, Pelotas (APERS); Jacintho Antônio Lopes. N. 1028, m. 58, 1º cartório de órfãos e provedoria, 1885, Pelotas (APERS); Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS). 410
a viúva, deu-se pela má administração do filho Manoel.127 E em 1862, os herdeiros do charqueador João Vinhas entraram em conflito pelo usufruto da charqueada. Um dos motivos da contenda foi a acusação de que o filho administrador não soube estimar os reais valores do arrendamento da charqueada e dos fretes dos iates.128 O esforço financeiro do irmão-concentrador e a intromissão de genros e parentes diversos na administração do novo proprietário permite considerar que ser o herdeiro da charqueada não deve ser encarado simplesmente como um privilégio. Dependendo dos casos, ser investido como o sucessor paterno ou tornar-se o genro-proprietário também podia ser um ônus. O primogênito investido do papel empresarial poderia ter (e muitas vezes tinha) responsabilidades econômicas e familiares muito maiores do que a de um irmão burocrata ou advogado, por exemplo. Além da charqueada com sua numerosa escravaria, ele devia estar atento à economia da estância de criação de gado, as suas embarcações, seus armazéns, imóveis urbanos, chácaras e, em alguns casos, a olaria. Além do mais, a concentração dos recursos econômicos fazia com que o irmão-charqueador fosse o mais procurado pelos irmãos nas horas de dificuldade financeira, tendo que ocupar o papel antes pertencente ao pai. A corrente presença de parentes entre as dívidas ativas de um charqueador serve como exemplo disso. Para o bom andamento da empresa, é provável que o irmão-charqueador contasse com o apoio dos demais parentes, uma vez que a charqueada podia suprir a necessidade econômica dos irmãos e genros criadores de gado, comerciantes e estudantes, por exemplo. Estes eram . Herdar a ocupação de alguns dos possíveis espaços reservados aos filhos “preteridos” charqueador do pai, portanto, era uma das escolhas possíveis dentro do encaminhamento dos filhos na vida adulta. Escolha esta que não dependia exclusivamente do pai, mas que devia ser planejada e decidida em família. 129 Neste sentido, é necessário considerar a existência de uma 130 estratégia familiar não apenas no sentido econômico, mas também no social e no político.
Liquidação da Viúva Vianna & Filhos (APERS). Inventário de Mathilde da S. Vinhas, n. 567, m. 36, 1862, 1º cart. de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). Para uma análise mais detalhada ver VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul.Santa Maria: UFSM/Anpuh-RS, 2010. 130 Apesar do termo “estratégia” oferecer uma racionalidade demasiada aos agentes, como alertou Edoardo Grendi, sigo as premissas de Giovanni Levi que buscou despi-lo de significados tão rígidos, considerando-o e reafirmando-o como um comportamento que, apesar de racional, era limitado e seletivo. Esta racionalidade limitada obedecia, portanto, aos condicionantes estruturais e conjunturais na qual a família agia e interagia, contribuindo para romper ou reforçar os próprios traços desta estrutura social (GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história? In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanalise. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 253; LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). 127 128 129
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Filhos, irmãos, compadres, genros, atuando no comércio, na criação de gados, na advocacia ou na política podiam manter uma relação próxima com a economia da charqueada, tendo 131 nela e nas estâncias do charqueador, os seus centros gravitacionais.
Mas nem esta organização familiar e nem os altos rendimentos auferidos por uma empresa charqueadora foram suficientes para assegurar a reprodução social de todas as famílias. As crises que afetaram o setor, notadamente entre as décadas de 1850 e 1870, eliminaram muitos charqueadores deste ramo de negócios. Para finalizar este capítulo farei algumas considerações tanto sobre as famílias que denominei longevas quanto aquelas que não resistiram às mencionadas crises.
9.4 “ENGOLIDOS SEM PIEDADE”: OS CHARQUEADORES E A MOBILIDADE SOCIAL INTRA-ELITE Como mencionei no capítulo 3, quando o visitador D. José da Silva Coutinho esteve em Pelotas no ano de 1815, ele considerou que os homens mais ricos da pequena freguesia eram os charqueadores Domingos de Castro Antiqueira, Domingos Rodrigues, Antônio Francisco dos Anjos, José Tomas da Silva, Manuel Alves de Moraes, José Pinto Martins, Antônio José Gonçalves Chaves, Joaquim José da Cruz Secco, Cipriano R. Barcellos e demais irmãos.132 Se o mesmo clérigo regressasse a Pelotas na década de 1870 e procurasse pelos mais ricos charqueadores não encontraria mais nenhum membro destas famílias, com exceção do filho de Gonçalves Chaves. Selecionando os empresários inventariados com maior fortuna entre 1810 e 1835, não se verifica nenhum filho ou neto dos mesmos entre os charqueadores de maior riqueza nos anos 1860 a 1890. Isto não significa que os parentes ancestrais dos charqueadores mais ricos destas últimas décadas já não estivessem atuando neste ramo de negócios durante o colonial tardio. Alguns deles estavam lá. Contudo, eles não estavam entre os de maior fortuna. Portanto, ao longo de mais de meio século, houve uma troca de famílias no topo da elite charqueadora pelotense. Como ensinou Lawrence Stone, as elites não devem ser vistas como um grupo de pessoas cuja posição ocupada possuísse um caráter rígido. Elas não estavam “congeladas” em seus postos, uma vez que ocupavam um lugar social onde a
131 VARGAS, Jonas Moreira. Os charqueadores de Pelotas, suas estratégias familiares e a transmissão de patrimônio (1830-1890). In: Anais do XXVI Encontro Nacional de História.São Paulo: USP, 2011, p. 1-20.
132
MENEGAT, Carla. Op. cit., p. 64. 412
mobilidade era algo presente e que para se manter em tal espaço privilegiado era necessário empregar diversas estratégias que assegurassem a reprodução social de sua posição. 133 Famílias como os Rodrigues Barcellos, que entre as décadas de 1820 e 1840, possuíam um importante prestígio político regional e chegaram a possuir 7 charqueadas na região, ao final da monarquia detinham somente um estabelecimento e o mesmo estava entre os mais pobres da localidade.134 Em contrapartida, Antônio José da Silva Maia, que entre 1830 e 1840, era um mero comerciante local, acabou herdando a charqueada do sogro e construiu um dos mais 135 ricos patrimônios da década de 1870 e 1880, legando grande fortuna aos filhos. Além dele, outros charqueadores como José Inácio da Cunha e Anibal Antunes Maciel, por exemplo, não estavam envolvidos nestes negócios antes da década de 1840, comprando, posteriormente, as suas charqueadas. Tendo em vista que os negócios com o charque e os couros eram os mais lucrativos na província, não é plausível considerar que o desaparecimento de algumas famílias deste ramo dos negócios tenha ocorrido pelo fato de as mesmas encontrarem outra atividade mais rentável, como já argumentei. Também não estavam elas invertendo seus capitais para outra área de investimentos que oferecessem maior prestígio social, pois os charqueadores também concentravam grande poder político e status social no final da monarquia. Tratava-se mais de um processo de empobrecimento. Portanto, é necessário buscar os motivos que favoreceram a ascensão de um grupo de charqueadores ao topo da elite em detrimento dos outros. Como já foi dito, a conjuntura econômica das décadas de 1850 e 1860 não foi marcada apenas por um grande crescimento econômico, mas, também, por grandes reveses conjunturais. A crise de superprodução na década de 1860 fez baixar os preços do charque, sendo exigido dos empresários que quisessem manter os lucros, aumentar a produção e buscar outros mercados para diminuir os seus prejuízos. Mas isto não foi possível de ser realizado de forma plena. O fim do tráfico e o aumento do preço da mão de obra cativa vedou o aumento da produção para muitos. O fim dos tratados com o Uruguai (1851-1861) que franqueavam os rebanhos orientais a baixos preços também trouxe dificuldades no abastecimento de gado. O seu preço aumentou bastante nas décadas de 1870 e 1880, o que deve ter contribuído para diminuir bastante os rendimentos da charqueada. Além disso, ao invés de ampliar os mercados consumidores, os rio-grandenses perderam Cuba e o Rio de Janeiro para os platinos. 133
STONE, Lawrence. La Crisis de l a Aristocracia (1558-1641). Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 37-43. Inventário de Boaventura T. Barcellos. N. 157, m. 5, 1º cart. de órfãos e provedoria, 1890, Pelotas (APERS). Inventário de Manoel Soares da Silva, n. 318, m. 22, 1850, cart. de órfães e provedoria, Pelotas (APERS). Inventário de Antônio José da S. Maia. N. 995, m. 57, 1884, 1º cart. de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 134 135
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Somado a isso, a crise mundial de 1857 favoreceu a diminuição das exportações de couro, que só voltaram a ultrapassar a casa do milhão de unidades no final da Guerra Civil Americana (1861-1865). Portanto, a saída para estas crises não era simples, pois a manutenção dos lucros exigia, entre outros fatores, a busca de novos mercados e da incorporação de mais mão de obra cativa. Para o primeiro, a solução possível foi deslocar as exportações cada vez mais para o nordeste do país. Entretanto, os fretes para Recife, embora fossem 50% mais caros, podiam custar o dobro dos valores até o Rio de Janeiro o que diminuía os ganhos dos charqueadores, mas possibilitava lucros para aqueles que estavam inseridos no comércio marítimo carregando o charque dos demais produtores. Soma-se a isto o fato de que as plantations açucareiras de Pernambuco e da Bahia não passavam pela sua melhor fase e os escravos da região estavam sendo lentamente vendidos para os cafezais do sudeste do Brasil. 136 Para piorar, os charqueadores mais ricos ainda estavam drenando as escravarias dos falidos. Portanto, somente os charqueadores com maiores recursos puderam tirar melhor proveito dos momentos favoráveis que marcaram o período, podendo repassar o prejuízo das conjunturas difíceis para os menos ricos, além dos pecuaristas da região da campanha. A incapacidade de incorporar escravos jovens em seus plantéis, pagar os seus credores e ingressar de forma mais competitiva na fase de reajuste dos mercados atlânticos que marcou as décadas de 1850 e 1860 foi fatal para um grupo de charqueadores. Se para o analista interessado numa análise mais macroeconômica duas ou três safras negativas podem não representar muita coisa, para estes charqueadores arruinados elas foram determinantes. Na Corte, a crise que afetou o setor no início dos anos 1860 foi noticiada com certo alarde por um correspondente da província: Faliu o negociante desta praça Jacintho Antônio Lopes, com fazenda de criação de gados e charqueada nos Canudos: o seu ativo em rigor produzirá 800:000$ e o seu passivo sobe a 1.400:000$. Diz-se que antes de lhe abrirem a falência, vendera 60 escravos e um iate, e hipotecou as fazendas por 320:000$; se é assim, Em preparou um também bomcanudo para os os credores. Pelotas convocara credores o charqueador Heleodoro de Azevedo e Souza, apresentando um ativo de 600:000$ e um passivo de 516:000$ que vencia prêmio de 1%. Três ou quatro dos credores maiores decidiram o negócio, tomando conta da estância do Ponche Verde por 258:000$, e pela qual só oferecem 144:000$, e concedendo-lhe uma moratória de um a quatro anos sem prêmios. O maior credor é José Antônio Moreira com 130:000$. Bravo… bravíssimo (…).
136
EISENBERG, Peter. Op. cit.; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil - 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 414
O charqueador José Bento de Campos endoideceu em 29 de agosto em consequência dos prejuízos que sofreu; e procedendo-se o balanço de sua casa, achou-se um ativo de 90:000$ a realizar e um passivo de 160:000$!! Barcellos & Mascarenhas também convocaram os credores apresentando um ativo de 270:000$ e um passivo de 180:000$; a estes os credores tomaram conta dos bens para liquidarem, visto que não soube elevar fantasticamente o seu débito, como é moda. Domingos Soares Barbosa teve necessidade de balancear sua casa, pela impertinência de dois meninos, seus credores porém sairão-se logrados na tentativa e harmonizaram-se com o devedor. Basta de quebras (…) .137
O desespero tomou conta de parte dos empresários do charque que viram suas fortunas ruírem em poucos anos. Entre os principais credores estavam os charqueadores mais abastados, como o citado José Antônio Moreira (Barão de Butuí) e ricos comerciantes de diferentes praças. Como já mencionei, Moreira possuía diversas embarcações de grande porte. Nesta época, ele devia transportar o charque de muitos dos falidos. Além de lucrar com este negócio, nas épocas de baixa ele podia transferir os seus prejuízos para os mesmos, voltando a lhes emprestar dinheiro nas safras seguintes, dando início ao mesmo círculo que lhe possibilitava grande acumulação de capital. A análise das escrituras públicas revela que os charqueadores mais ricos realizaram diversos empréstimos a outros comerciantes, fazendeiros e charqueadores desde quantias pequenas, passando por médias e vultosas montas, como no caso que envolveu o Barão de Jarau, em julho de 1883. Juntamente com seu irmão e mais dois banqueiros locais, o Barão executou uma hipoteca contra o charqueador Pedro Lobo Vinhas, no valor de 331 contos de réis, o suficiente para eliminá-lo (como eliminou) do ramo dos negócios. Duas décadas antes da ruína de Vinhas, o Comendador Heleodoro de Azevedo e Souza, praticamente falido, escriturou uma hipoteca aos seus credores, no valor de 501:169$005. Os credores disseram que entrariam em acordo com o charqueador e sua família para não reduzi-los “a completa ruína” e diminuíram a dívida à quase a metade deste valor, para ser paga em 4 anos. As garantias foram a sua estância, em Bagé, sua charqueada com 124 escravos, iates e terrenos. Entre o rol de credores não surpreende a presença dos mencionados charqueadores Moreira e Jarau, sendo que Heleodoro devia ao primeiro mais de 100:000$ e ao segundo (junto com o seu irmão) mais de 67:000$. Além disso, outros conhecidos capitalistas também queriam a sua fatia do bolo, entre os quais estavam o Conde de Piratini e João Rodrigues Saraiva – sócio e correspondente do Barão de Mauá em 137
O Constitucional, Rio de Janeiro, 25.10.1862, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (grifos meus). 415
Pelotas.138 O Comendador Heleodoro, sem dúvida um dos mais ricos charqueadores entre os anos 1830 e 1850, nunca mais se reergueu de tamanha quebra. Por falar em Mauá, o seu banco, por meio dos seus procuradores, esteve presente na cobrança de dívidas e liquidação de outras charqueadas. Em novembro de 1862, juntamente com outros charqueadores, ele assinou escritura de dívida com hipoteca contra José Bento de Campos, em mais de 50 contos. 139 No mesmo mês de 1864, foi a vez dos charqueadores Manoel Francisco Moreira (genro e herdeiro da fábrica de João J. de Mendonça) e Vicente Lopes dos Santos assinarem escrituras de dívidas com hipoteca (102 contos e 70 contos de réis, respectivamente). Como garantia, eles ofereceram à Mauá & Cia as sua charqueadas com seus escravos (51 o primeiro e 31 o segundo). 140 Manoel Moreira nunca mais apareceu neste ramo de atividades e Lopes quitou sua dívida em 1869, mas parece ter seguido cambaleante nos negócios até os anos 1880. No mesmo ano, Mauá tomou para ele a dívida que o charqueador Domingos Barbosa possuía com Simão da Porciúncula no valor de 139:000$. 141 A maioria destes negócios era executada por João Rodrigues Saraiva, procurador de Mauá em Pelotas, e que numa ocasião também foi procurador de John Proudfoot, demonstrando a relação de Mauá com os ingleses.142 Foi comum nas cobranças executadas por Saraiva os charqueadores mais ricos de Pelotas aparecerem juntamente como credores, demonstrando que eles também foram os principais algozes dos empresários endividados. Em 1863, por exemplo, Pedro Nunes Batista viu-se endividado em cerca de 100 contos com João Simões Lopes Filho (que viria a ser o Visconde da Graça).143 Em 1868, quando João Rodrigues Barcellos foi arrendar sua charqueada, o escrivão anotou que a mesma encontrava-se a hipotecada a Joaquim José de Assumpção (futuro Barão de Jarau).144 Em 1862, Domingos Barbosa assinou hipoteca no valor de 394:696$ com diversos credores, entre os quais alguns charqueadores dos mais ricos.145 Um ano depois, a Barcellos e Mascarenhas teve seus bens no valor de 151:843$900 hipotecados com os mesmos.146
138
Escritura de 22.09.1862, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS). Escritura de 21.11.1862, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS). 140 Escritura de 10.03.1864, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS). 141 Escritura de 28.04.1864, Livro de Notas n. 9 do 2º Tabelionato de Pelotas (APERS). 142 Escritura de 28.11.1861, Livro de Notas n. 9 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS). 143 Escritura de 22.07.1863, Livro de Notas n. 9 do 2º Tabelionato de Pelotas (APERS). 144 Escritura de 18.11.1868, Livro de Notas n.11 do 1º Tabelionato de Pelotas (APERS). 145 Escritura de 26.12.1862, Livro de Notas n.8 do 2º Tabelionato de Pelotas (APERS). 146 Escritura de 24.12.1863, Livro de Notas n. 9 do 2º Tabelionato de Pelotas (APERS). 139
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Portanto, os Azevedo e Souza, os Jacintho de Mendonça e os Rodrigues Barcellos, que estavam entre as mais prestigiosas famílias charqueadoras da primeira metade do século, não resistiram aos novos ventos que sopraram naquelas paragens, vendo suas fortunas diminuírem profundamente. Assumindo o topo desta hierarquia intra-elite, charqueadores como os Barões de Jarau e Butuí, o Visconde da Graça, entre outros do grupo dos 12 mais ricos, lhes drenavam os recursos lentamente (além dos escravos, como demonstrei no capítulo 5). A execução de hipotecas somadas aos empréstimos não registrados em cartório (os declarados nos inventários post-mortem, por exemplo), favorecia o aumento do capital dos credores, assim como o da escravaria de suas charqueadas e do seu patrimônio fundiário. Contudo seria um equívoco enxergar estas novas famílias como desenraizadas no local. Butuí, Jarau e Graça pertenciam a terceira e quarta geração da prestigiosa família Silveira – tratada no capítulo 3 da tese. Os dois primeiros eram filhos de comerciantes portugueses que migraram para Pelotas casando-se um com uma neta e o outro com uma bisneta de uma das irmãs Silveira. O terceiro era ele próprio comerciante vindo do Porto, contraindo igualmente matrimônio com uma das mencionadas bisnetas. Muito embora pertencessem a uma família de notáveis comerciantes e fazendeiros que compunham a elite rio-grandense no último quarto do setecentos, de acordo com os relatos de contemporâneos e a documentação pesquisada, os pais de Jarau e Graça não estavam entre os principais charqueadores da localidade nas primeiras décadas do século XIX. Portanto, a presença dos seus herdeiros entre a principal elite charqueadora entre os anos 1860 e 1880 tratava-se de uma importante mobilidade social intra-elite – no que diz respeito a este grupo de empresários. Portanto, contraindo dívidas ou envolvendo-se em empreendimentos arriscados em épocas de euforia, um grupo de charqueadores perdeu parte de sua mão de obra, dinheiro, estâncias, além dos seus próprios estabelecimentos fabris, para capitalistas, banqueiros e charqueadores locais mais bem preparados para enfrentar o período de crises. Neste sentido, os períodos de instabilidade política e econômica eram propícios para testar o sucesso das estratégias das elites econômicas. Como ensinou Braudel, tratando dos comerciantes de longo curso no século XVIII: Um fator de sorte para o principiante é iniciar em bom tempo econômico. Mas isso não garante o sucesso. A conjuntura mercantil é instável. Quando vira para bom tempo, geralmente entram em campo pequenos empresários ingênuos. A maré, o vento são favoráveis: ei-los confiantes, um pouco fanfarrões. O mau tempo que vem a seguir os surpreende, engole-os sem piedade. Só os mais hábeis ou os mais 417
afortunados ou aqueles que tinham reservas no início escapam a tal massacre de inocentes. […] O grande mercador é aquele que, justamente, atravessa sem acidentes a má conjuntura. Se o consegue, é claro, porque tem trunfos na mão e sabe servir-se deles; ou, se tudo corre mal, é porque tem meios de se eclipsar, de se pôr a salvo como convém.147
Portanto, se o período foi favorável ao enriquecimento de alguns, ele também contribuiu para a falência de outros. A época que viu o enriquecimento do Barão de Mauá também viu a sua própria quebra (na década de 1870), demonstrando que ninguém estava imune aos riscos. Os períodos de recuperação e de alta das exportações que marcaram os anos 1850 a 1870, não eram suficientes para salvar aqueles que já haviam entrado em ruína econômica, pelos prejuízos de uma ou mais safras. Contudo, estes mesmos períodos de alta voltavam a encher os bolsos dos que já estavam muito ricos. Para finalizar este capítulo, gostaria de fazer mais uma consideração. É muito difícil identificar alguns traços da personalidade empresarial destes indivíduos e mais difícil ainda detectar a transmissão desta herança imaterial aos seus filhos. Mas tenho para mim, como hipótese, que boa parte dos mais ricos charqueadores do final do oitocentos tiveram no comportamento dos seus próprios pais charqueadores um modelo de atuação nos mundo dos negócios. O Visconde da Graça e o Barão do Jarau, por exemplo, que souberam ler a conjuntura desfavorável dos anos 1870 antes de todos e inverteram seus capitais para outras áreas, pareciam ter na própria casa dois mestres na iniciativa empresarial local. Seus pais também atuavam no comércio marítimo e o pai do primeiro, nos anos 1850, possuía ações no Banco do Brasil (numa época em que quase nenhum charqueador investia nisto). Além disso, o pai de Jarau, como foi afirmado no capítulo 5, não apenas foi o primeiro a apresentar 148 escravos aprendizes em seu plantel, como também um número muito grande dos mesmos.
O inventário do pai de Graça apresentou dois vestígios interessantes. Ele foi o charqueador que teve a criança escrava mais jovem com uma profissão definida (o menino Clemente, de 8 anos, campeiro) e um dos dois únicos empresários que teve mulheres escravas trabalhando no 149
interior das charqueadas. Ter crianças trabalhando nas fábricas de carnes, mas principalmente mulheres, constituía-se num traço de comportamento empresarial que parecia 150 colocar os seus proprietários em semelhança com os industriais capitalistas ingleses.
147
BRAUDEL, Fernand. Op. cit., p. 338 (grifos meus). Inventário de Maria A. da Fontoura, n. 514, m. 22, 1845, 1º cart. órfãos e provedoria, Rio Grande (APERS). Inventários de João Simões Lopes, n. 366, m.26, 1853, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS). 150 BARRAN, Jose P.; NAHUM, Benjamin. Op. cit., p 100-101. 148 149
418
Outros dois exemplos podem ser dados pelos irmãos Gonçalves Chaves e o proprietário Junius Brutus de Almeida (que infelizmente não teve seus bens inventariados no período, mas que com certeza devia estar entre os mais ricos).151 Já escrevi a respeito do pai dos primeiros, o charqueador Antônio José Gonçalves Chaves, citado por Saint Hilaire por ser um homem ilustrado e empreendedor em seu tempo. Juntamente com o pai de Domingos José de Almeida (o responsável pela primeira graxeira a vapor em Pelotas) eles realizaram diversos projetos, sendo que um deles constituiu-se na fabricação da primeira barca a vapor da província, construída com peças importadas do Estados Unidos, onde o filho de Chaves residia (como foi tratado no capítulo 2). Um dos filhos de Chaves também apresentou muitas ações no Banco do Brasil na década de 1850 e o outro, que também era doutor, estava entre os 12 mais ricos charqueadores da segunda metade do século. Além disso, Domingos foi o outro charqueador que colocou mulheres cativas no trabalho das fábricas. Penso que estes traços são muito mais do que coincidências. Parte destas famílias charqueadoras possuíam uma visão de mundo e um modo de se comportar social e economicamente distinto das demais famílias que não estavam entre as mais ricas. Até mesmo a sua política sucessória que investia no esforço de colocar o filho primogênito como um novo charqueador na geração seguinte era distinta e teve maior sucesso. Atuando no interior de mercados bastante instáveis, concentrando o conhecimento dos segredos do mundo dos negócios e favorecendo a transmissão das redes de relações de pais para filhos eles atingiram um sucesso inalcançável aos demais concorrentes. Neste sentido, estasprincipais famílias não podem ser comparadas com as demais. Elas apresentavam-se de maneira muito mais distinta do que a dos outros charqueadores, ultrapassando o simples espaço de atuação das elites locais, vindo a ocupar o topo da hierarquia social regional. No capítulo a seguir demonstrarei que esta concentração de recursos materiais e imateriais também envolvia outros espaços da vida social colocando estas poucas famílias entre as mais destacadas daelite regional e com condições de mediar de maneira notável as relações entre a província e a Corte, colocando-as numa posição de buscar influir direta e indiretamente (com outras elites regionais) nos rumos do Império.
151
Almeida também atuava no comércio marítimo. Como foi visto no capítulo 8, nos anos 1880 ele investiu cerca de 400 contos de réis na reforma de sua charqueada. 419
10.
“A ARISTOCRACIA DO SEBO ”:
PODER POLÍTICO, NOBREZA,
EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA NAS FAMÍLIAS DA ELITE CHARQUEADORA PELOTENSE Pelotas aparece aos olhos encantados do viajante como uma bela e próspera cidade. As suas ruas largas e bem alinhadas, as carruagens que as percorrem (fenômeno único na província), os seus edifícios, quase todos de mais de um andar, com sobretudo as suas elegantes fachadas, dão idéia de uma população opulenta. De fato, é Pelotas a cidade predileta do que chamarei a aristocracia rio-grandense, se é que se pode empregar a palavra aristocracia falando-se de um país do novo continente. Conde D’Eu (1866)
A reflexão do Conde D’Eu era certeira. Conhecedor da aristocracia europeia, ele sabia que o termo não era muito adequado ao Brasil do final da monarquia. No entanto, o estilo de vida das famílias pelotenses que ele conheceu, a sua riqueza se comparada ao restante da população da cidade, o poder político que aquela minoria exercia sobre a mesma e o status social de que gozavam, lembravam, em alguns aspectos, as famílias da elite do velho mundo. E aqui está um traço marcante entre as elites da época. Elas possuíam a capacidade de reconhecerem suas equivalentes em outras sociedades, compreenderem os signos de distinção e as hierarquias de poder que as cercavam.Neste sentido, o Conde D’Eu, um membro da família real imperial e genro do monarca, era capaz de reconhecer as aristocracias da terra de acordo com parâmetros europeus e brasileiros. E em Pelotas, quem era ela? Aaristocracia do sebo foi um apelido pejorativo colocado pelos comerciantes rio-grandinos que rivalizavam com os charqueadores em nivel regional e que entraram em conflito direto com os mesmos 1 nos anos 1870 por conta da instalação da Alfândega em Pelotas.
Contudo, não se tratava de uma apelido sem nenhum motivo e os rio-grandinos pareciam querer atingir um dos traços mais zelados pela elite charqueadora da época. A análise dos periódicos pelotenses e do relato de contemporâneos deixa claro que os charqueadores, juntamente com outras famílias de ricos proprietários e comerciantes, viam-se desta forma e a sociedade pelotense assim os tratava, utilizando-se do termo. Na cobertura de um baile em Pelotas nos anos 1850, por exemplo, podia-se ler num dos jornais locais: “250 1
MAGALHÃES, Mário Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: UFPel, 1993, p. 124; 162. Outro motivo era a disputa sobre qual deveria ser o ponto de partida para a estrada de ferro até Bagé. 420
senhoras, entre as quais, sobressaía avultado número das peregrinas belezas de Pelotas, aumentavam o brilho e a magnificência da casa” e “a aristocracia da terra era representada por muitos dos seus mais respeitáveis ornamentos, e era sem conta a porção de cavalheiros que atopetava todos os espaços do edifício”.2 Num outro grande baile, em 1885, os jornais diziam que o mesmo havia sidofrequentado “desde a alta nobreza até o simples burguês”.3 No início do século XX, o advogado Fernando Osório, genro de charqueadores, definiu a filha de um rico charqueador como “uma das mais notáveis figuras da sociedade aristocrática pelotense”.4 Os periódicos costumavam os tratar como a “primeira sociedade” e “as nossas famílias”.Tais distinções possuíam resultados práticos notáveis. As associações de bailes da cidade, por exemplo, dividiam-se em três: a aristocrática, a comercial e a plebéia, sendo que rígidos estatutos mantinham o caráter elitista da primeira.5 O leitor mais atento já deve desconfiar que as famílias mais ricas tratadas até aqui constituíam-se na elite que concentrava poder político, status social e riqueza. Além do mais, os títulos de nobreza e os casamentos entre seus filhos e filhas davam um toque a mais para este grupo de elite. Portanto, esta suposta “pretensão aristocrática” – termo que Sheila Faria utilizou para tratar do estilo de vida dos Barões do café no sudeste – dizia respeito a elas e 6
outros grupos da elite local. Estudar os espaços de lazer e as práticas socioculturais desta elite é muito mais do que realizar um simples inventário dos seus espaços de sociabilidade e 7 dos seus membros que mais se destacaram naquela conjuntura de prosperidade. A educação
superior, o estilo de vida luxuoso e a imitação de hábitos europeus, nas letras, nas artes e nas maneiras de sociabilizar conferiam grande prestígio social às famílias do topo da hierarquia. Tais investimentos possibilitavam melhores casamentos para os filhos e filhas, melhor acesso em outros espaços de poder e oferecia todas as condições para que os membros mais preparados da família se tornassem mediadores políticos, ou seja, a atuação coletiva reproduzia a própria desigualdade de recursos que as colocavam numa posição social 2
Diário do Rio Grande, 03.04.1851 apud MÜLLER, Dalila. “Feliz a população que tantas diversões e comodidades goza”: espaços de sociabilidade em Pelotas (1840 -1870). Tese de Doutorado em História, Unisinos, 2010, p. 66. 3 A Discussão, 03.02.1885 apud MAGALHÃES,Mário Osório. Op. cit., p. 143. 4 OSÓRIO, Fernando. A cidade de Pelotas.Pelotas: Armazém Literário, v. 2, 1997, p. 123. 5 MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 69; 72; MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143. 6 FARIA, Sheila de Castro. Barões do café . In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário de Brasil Império. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 78-79. Ver também SCHNOOR, Eduardo. Das casas de morada às casas de vivenda. In: CASTRO, Hebe; SCHNOOR, Eduardo (Org.). Resgate: uma janela para o oitocentos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 31-62. 7 Conforme Dalila Müller, “as elites pelotenses distinguiram-se do conjunto da população, não só pela sua riqueza e atividade econômica, mas pelo seu comportamento social, pelo seu modo de vida específico e reconhecível” (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p .21). 421
superior. Portanto, tratava-se de um comportamento social igualmente capaz de elevar algumas famílias à condição de elite regional, ultrapassando o espaço de atuação dos meros “caciquinhos locais”.
10.1 EDUCAÇÃO E ESTILO DE VIDA ENTRE AS FAMÍLIAS CHARQUEADORAS DE PELOTAS Em Abril de 1852, a polícia de Alegrete desbaratou uma quadrilha que realizava contrabando de mercadorias de Pelotas para toda a fronteira com o Uruguai. Uma das testemunhas do processo instaurado contra os comerciantes era o charqueador Manoel Lourenço do Nascimento. Conforme o seu depoimento, a última vez em que ele havia remetido mercadorias por meio de um dos réus, enviara um piano para o coronel José Antônio Martins – rico estancieiro com terras em Alegrete e no Estado Oriental. 8 Não devia ser a primeira vez que o charqueador-comerciante remetia pianos para os confins da província e nem devia ser ele o único a realizar tal negócio. Pelotas já havia se tornado a “cidade predileta” da aristocracia rio-grandense, como afirmou o Conde D’Eu, e agora distribuía, por meio de sua elite, os artigos de luxo que encantavam os fazendeiros do interior quando os mesmos iam até a cidade fechar negócios com os chaqueadores. Conforme Magalhães, a vida cultural pelotense apresentou um grande desenvolvimento entre as décadas de 1860 e 1880. A riqueza material atingida pelas elites pelotenses e a diversidade das atividades de lazer e culturais possuíam uma relação direta, uma vez que, nas entressafras das charqueadas, os seus proprietários gastavam seus ganhos na cidade, patrocinando as artes e tornando-a seu palco de ostentação. 9 De fato, como foi visto no capítulo anterior, este período coincidiu exatamente com a grande expansão das fortunas dos charqueadores, cujas famílias mais ricas tiveram um papel de destaque neste novo cenário. Suas vidas deslocaram-se cada vez mais para a cidade, confirmando o que Faria afirmou analisando principalmente o sudeste e o nordeste do Brasil. Para a autora “foi de meados do século XIX em diante que se operaram as mudanças mais significativas nos espaços urbanos e nas sociabilidades”. Com relação a estas transformações:
8
Processo-crime n. 2.729, m. 78, Autos de apreensão de contrabando, Cartório do Cível e Crime, Alegrete, 1852 (APERS). Agradeço a Marcelo Matheus pela indicação deste documento. 9 MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit. 422
A próspera Europa, moderna e industrial – inglesa primeiro, depois, francesa –, firmou-se como exemplo a ser seguido e manancial de novos produtos e hábitos. O acesso a certas mercadorias estrangeiras passou a denotar prestígio social. Mudaramse hábitos e costumes. A expansão urbana, no Império, foi significativa, principalmente no Rio de Janeiro, sede do governo, mas inúmeras outras cidades, principalmente as portuárias, ampliaram-se por conta do incremento do comércio externo. A remodelação das residências sofreu influência europeia (…). Reproduziram (…) algumas tendências, como a construção de sobrados ou palacetes nas zonas urbanas, e a adoção de uma nova sociabilidade, traduzida no ato de receber e de festejar.10
Neste sentido, tratava-se de um longo processo que marcou todo o oitocentos e que, no nordeste, Evaldo Cabral de Mello denominou-o como “o fim das casas-grandes”.11 A referência clara a Gilberto Freyre tem em vista o que este próprio autor buscou delinear em seu clássico Sobrados e Mucambos, qual seja, a da decadência do patriarcalismo rural frente ao processo de modernização e urbanidade que marcou a história brasileira ao longo do oitocentos mas que só veio a se concretizar no século XX e que tinha nos sobrados urbanos um de seus símbolos.12 Paralelo a este processo e acompanhando uma tendência que iria marcar a vida de algumas elites proprietárias brasileiras no século XIX, os charqueadores pelotenses cada vez mais deslocaram a sua vida do meio rural (nas charqueadas) para os seus 13
sobrados no centro da cidade. Neste contexto, as famílias mais ricas de Pelotas começaram a compartilhar de um estilo de vida que as distinguia bastante das demais classes sociais da urbe e que se assemelhava com a dos grandes fazendeiros de café e senhores de engenho, por exemplo. Estudando as formas de morar e os recheios da casa da elite cafeicultora do sudeste por meio da análise dos inventários post-mortem da família do comendador Manoel Valim, Eduardo Schnoor considerou que os novos hábitos e costumes que marcaram a segunda metade do século não buscavam necessariamente legitimar uma nova ordem escravista, mas sim, “um ideal aristocrático de modernidade”.14 A semelhança com o padrão de vida dos charqueadores pode ser notada analisando o mobiliário que os mesmos reuniam no interior
10
FARIA, Sheila de Castro. Sobrado. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário de Brasil Império. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 678. 11 MELLO, Evaldo Cabral de. O fim das Casas-grandes. In: ALENCASTRO, Luís Felipe de. História da Vida privada no Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, v. II, 1997. 12 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Record, 2000. 13 Conforme Magalhães, os charqueadores foram aos poucos deslocando residência para a cidade, “construindo sobrados de arquiteutra europeia” (MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 95-96). 14 SCHNOOR, Eduardo. Op. cit., p. 38-39. 423
dos seus sobrados.15 A análise do patrimônio inventariado dos charqueadores mais ricos revela a presença de móveis e certo luxo que denotam o mesmo estilo de vida encontrado por Schnoor entre os fazendeiros de café e que o autor considerou“aristocrático” e “moderno” para os padrões da época. Dentre as muitas peças do mobiliário do barão e da baronesa de Butuí, por exemplo, destacavam-se 1 mobília de mogno com 14 cadeiras de encosto, 4 de braços, 4 aparadores e 1 mesa redonda, 1 mobília de jacarandá com 18 cadeiras, 4 aparadores e 1 mesa redonda, 2 dúzias de cadeiras de jacarandá de palhinha, 1 aparelho de porcelana, além do piano, das cômodas, dos guarda-roupas, entre muitos outros móveis. O coronel Anibal Maciel e sua esposa possuíam 1 mobília francesa de mogno, 3 camas francesas, 1 mobília de jacarandá, 4 lavatórios em pedra mármore, 1 aparelho de porcelana azul com frizo dourado para jantar, 1 aparelho de porcelana para chá, entre outros. O barão de Corrientes também apresentou os mesmos móveis em mogno, tampos de mármore, piano, além de outros móveis.16 A observação dos demais inventários dão a impressão de que se tratava de um conjunto básico de móveis que compunham o espaço interno dos lares destas famílias da elite local, como móveis importados, objetos de prata e de ouro, jóias pessoais e os onipresentes pianos. O alto montante em que estes artigos foram avaliados nos inventários dos charqueadores revelam o tamanho dos gastos reservados ao luxo e requinte dos seus lares. Os valores do aparelho de prata para chá e café (1:436$) e dos 2 faqueiros de prata de 24 talheres (2:142$) do casal dos barões de Butuí eram as peças mais caras do seu mobiliário. Somando todos os objetos de ouro, prata e jóias que o casal possuía tinha-se mais de 4:660$. Era um valor que sozinho superava 46% do monte-mor dos 163 inventários post-mortem dos habitantes de Pelotas para os anos de 1875, 1880, 1885 e 1890. Com relação aos pianos, que já faziam parte da casa das famílias de elite na primeira metade do século, é importante considerar que os mesmos se disseminaram de uma forma notável pela população pelotense, sendo encontrado inclusive em patrimônios de famílias de fortuna mediana. Os anúncios de jornal dão uma ideia deste fenômeno. Era corrente as casas comerciais anunciarem a chegada de novas músicas em partituras, os anúncios de professores de piano oferecendo os seus serviços, além do conserto, afinação, aluguel e venda dos 15
O mesmo pode se dizer da elite paulistana estudada por ARAÚJO, Maria L. Viveiros. Os interiores domésticos após a expansão da economia exportadora paulista. Anais do Museu Paulista, n. 12, jan./dez. 2004, p. 129-160. 16 Inventário do Barão de Butuí, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS); Inventário de Felisbina da Silva Antunes. N. 68, m. 2, Pelotas, Cartório do Civel e Crime (APERS); Inventário de Silvana Belchior da Cunha, n. 870, m. 50, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1877 (APERS). 424
mesmos intrumentos. Em leilões, a presença dos pianos também não era rara. Em julho de 1877, por exemplo, o filho do charqueador Manuel Rodrigues Valladares anunciava a sua mudança em definitivo para a Corte, leiloando seu piano e estantes para livros. 17 Pela quantidade, os anúncios de novos títulos recebidos pelas livrarias rivalizavam juntamente com os relacionados aos pianos.18 Apesar dos inventários post-mortem muitas vezes não arrolarem a biblioteca dos seus proprietários, eles podiam indicar as estantes para livros, mas no geral não o faziam.19 Se o gosto pela leitura talvez não ocupasse grande parte da vida da maioria dos charqueadores, certamente o era pelos seus filhos, esposas e genros doutores que frequentavam seus casarões. Conforme Magalhães, se os charqueadores possuíam uma série de atividades relativas aos seus negócios e que os mantinham ocupados, seus filhos “puderam se dedicar largamente aos estudos, às letras, às ciências e às artes (…) e, dentro das letras, à recitação de discursos e à metrificação de versos, compostos, sobretudo e respectivamente, para exaltar as virtudes da cultura clássica e cortejar damas um tanto reservadas e muito requintadas”.20 Não possuo dados referentes aos formados em Medicina e Engenharia, mas na província, Pelotas despontava como um dos grandes focos de famílias que enviavam seus 21
filhos para estudar Direito em São Paulo, ficando atrás somente de Porto Alegre. Dos 22 pelotenses formados entre 1832 e 1889, 18 eram filhos ou netos de charqueadores. Sem contar os bacharéis formados em Recife e os médicos formados na Corte e em Salvador, também houve pelo menos um advogado formado em Montevidéu e outros diplomados que estudaram em Paris. Por intermédio de filhos educados fora da província, as elites pelotenses, com destaque para os charqueadores, inseriam-se no interior de importantes redes de relações sociais e políticas. A vida acadêmica era prescedida dos estudos com os melhores professores particulares da cidade. Enquanto alguns filhos eram direcionados para a profissão das leis ou da medicina,
Jornal do Comércio de Pelotas (1, 10, 11 e 12 de janeiro de 1875; 1 e 26 de julho de 1877; 5 de setembro de 1879 (Biblioteca Pública Pelotense). Havia famílias de charqueadores que possuíam dois pianos, como os Vianna e os Antunes Maciel (Processo de Liquidação da Viúva Vianna & Filhos, n. 2.568, m. 74, 2º cartório do cível, Pelotas, 1865 (APERS). 18 Jornal do Comércio de Pelotas, 26 de julho de 1877 (BPP). 19 SACCOL, Tassiana Parcianello. Um propagandista da República: Política, letras e família na trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (década de 1880). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2013. Entre os charqueadores, como se verá a seguir, o rol de livros foi mais comum nas primeiras décadas do século. 20 MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 122. 21 Elencando 113 bacharéis de direito rio-grandenses formados em direito na Faculdade de São Paulo, constatei que 26 eram de Porto Alegre e 22 de Pelotas (VARGAS, Jonas M. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul.Santa Maria: UFSM/Anpuh-RS, 2010). 17
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outros acompanhavam o pai na administração das charqueadas. A diversão dos rapazes consistia nos banhos de rio no Santa Bárbara, nas aulas de ginástica, esgrima e dança no colégio, nas regatas no São Gonçalo, nos exercícios de equitação no Jockey Club, além de atividades teatrais com outros rapazes e moças no interior dos sobrados. As meninas, por sua vez, “quando saíam, era geralmente em direção aos saraus familiares, ao teatro e às igrejas ”. Em casa, dedicavam-se aos “trabalhos de agulha, bordado e culinária, com os jogos de víspora, com aulas de pintura e música”, além da “leitura de algum romance amoroso”. 22 A vida das esposas dos charqueadores não devia ser muito diferente. Além de cuidar dos filhos, governar a casa e ocupar-se com alguns assuntos relativos à comunidade local, seus 23 divertimentos envolviam a leitura e os lazeres ao lado da família.
O espaço doméstico e familiar dos charqueadores era periodicamente compartilhado com outras famílias da elite local ou de ilustres visitantes vindos de fora da cidade. As festas, saraus e bailes oferecidos em sua própria casa constituiu-se num dos principais momentos de sociabilidade destas elites. Como demonstrou Magalhães, algumas vezes estes eventos eram comentados na imprensa local. Em fevereiro de 1875, por exemplo, o charqueador Junius Brutus de Almeida abriu sua casa aos amigos para um baile de carnaval “que imensamente animado e concorrido prolongou-se até a madrugada” com a presença de clubes carnavalescos e bandas de música. Para estas ocasiões, uma casa comercial francesa anunciava a chegada de “500 cabeleiras à Luís XV recebidas de Paris no último vapor”. Em junho do mesmo ano, foi a vez do charqueador Pedro Lobo Vinhas oferecer um grande baile em sua casa como “complemento à festa de São Pedro da Beneficiência Portuguesa”. Geralmente os jornalistas buscavam agradar os charqueadores elogiando a sua família e a boa recepção dos mesmos. Sobre uma festa na casa do comendador Antônio Mâncio Ribeiro, sogro do charqueador Domingos Guilherme da Costa, podia-se ler o seguinte: “sendo saudado com uma serenata na Praça por três bandas de música e mais de mil pessoas, retribuiu a gentileza convidando alguns dos participantes para a sua casa”. Ali podia-se ver “uma esplêndida mesa, onde a riqueza” e “o luxo deslumbravam” e na sala principal, reuniam -se algumas das “senhoras de nossa primeira sociedade”.24
22
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 148. Um dos recibos anexos ao processo de liquidação da firma Viúva Vianna & Filhos demonstra que a dona Rosaura, uma das proprietárias da charqueada, havia comprado Os Miseráveis de Vitor Hugo. Além disso, no escritório de sua charqueada havia uma estante com livros diversos. 24 Correio mercantil 8 de junho de 1875 apud MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 143-144. 23
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Além das rotineiras visitas de amigos e parentes, as festividades constituíam-se em momentos nos quais os charqueadores e a sua família podiam demonstrar as suas melhores qualidades não apenas artísticas e intelectuais, como as de bons anfitriões, algo que lhes conferia grande prestígio nas rodas da primeira sociedade, como gostavam de se definir. Uma boa recepção exigia um grande número de criados e serviçais domésticos, o que ajuda a compreender certos anúncios nos jornais relativos à contratação de cozinheiros estrangeiros aptos a trabalharem em casas de famílias, por exemplo.25 Os mesmos deviam somar-se aos copeiros e demais escravos da casa do senhor, arrolados em seus inventários. 26 Conforme Schnoor, este era um traço do estilo de vida aristocrático que vinha se apresentando no mundo senhorial oitocentista e também indicavam o status social das famílias pro prietárias.27 Mas as festas e bailes não se reservavam aos encontros particulares nas casas dos seus proprietários. De acordo com Dalila Müller, entre os anos 1850 e 1860, Pelotas possuía muitas sociedades recreativas e culturais, sendo 8 delas de dança. Estas sociedades eram classificadas pela própria imprensa como “aristocráticas”, “comerciais” e “plebéias”, sendo a primeira, obviamente, reservada às famílias da elite local. As sociedades possuíam estatutos redigidos pelos seus diretores e os bailes tinham seu protocolo previamente planejado, com rigorosa 28 etiqueta, horários do chá, do café e das danças, tempo dos intervalos, entre outros aspectos. Estas ocasiões eram propícias para o experimento de novidades culinárias, como o sorvete, chegado de Paris nos anos 1860, mas que só se difundiria pelo Brasil na década de 1890. As famílias frequentadoras acompanhavam a cobertura dos bailes nos jornais, onde se podia ler comentários sobre os vestidos das mulheres, a decoração, o serviço de copa e os homenageados.29 Neste sentido, elas seguiam o modelo das sociedades de baile da Corte que se disseminaram pelo Brasil no meado do século XIX, o que devia agradar os visitantes ilustres.30 Em fevereiro de 1885, por exemplo, o prédio da Câmara Municipal foi local de um dos bailes mais importantes que a cidade havia presenciado, com a presença da Princesa Isabel e do Conde d’Eu, que haviam permanecido em Pelotas por 3 semanas. Na ocasião, Jornal do Comércio de Pelotas, 12 de dezembro de 1877 e 1 de julho de 1879 (BPP). Como foi visto no capítulo 5, 27 dos 142 escravos do Barão de Butuí residiam na cidade, alguns junto ao sobrado do senhor ou em outras casas do mesmo, sendo que, entre os mesmos, havia 2 copeiros, 2 cozinheiros, 1 boleeiro, 3 costureiras, 2 engomadeiras, 1 lavadeiro e 2 serventes. 27 SCHNOOR, Eduardo. Op. cit. 28 MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 66; 69-73; 99. Além dos rígidos estatutos, o “público indesejado” podia ser vetado pela diretoria, que exigia pessoas de boa conduta pública. Conforme Müller, aqueles que não podiam entrar nos bailes ficavam nas janelas espiando e alguns manifestavam-se com obscenidades. A Sociedade Harmonia Pelotense colocou cortinas nas janelas para evitar a aglomeração de pessoas ao redor do salão. Nos teatros, hotéis, praças e ruas, a circulação dos “não iguais” era mais livre (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 92-94). 29 MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 100-102. 30 PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado.São Paulo: Livraria Martins, 1959. 25 26
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enquanto o charqueador Heleodoro de A. E Souza Filho dançou uma quadrilha com a Princesa, a filha do charqueador Anibal Antunes Maciel foi o par do Conde. 31 Em outras festividades, os charqueadores podiam interagir com autoridades estrangeiras como no baile 32 de julho de 1877, quando os oficiais da canhoneira inglesa Beacon foram homenageados.
Pelotas também possuía outras opções de lazer e a análise dos jornais demonstram que os charqueadores e os seus familiares estavam diretamente ligados ao gerenciamento de clubes, associações e companhias diversas. Os domingos no Jockey Club eram um ponto de encontro certo e as corridas eram “concorridíssimas”.33 Alguns de seus diretores e secretários eram charqueadores, como Joaquim Rodrigues da Silva, Joaquim José de Assumpção, Antônio de Azevedo Machado Filho e João Maria Chaves, por exemplo. 34 Além do Cassino, frequentado pelas elites locais, outra diversão inaugurada nos anos 1870 foi o “Rink” de patinação. Em agosto de 1879, os jornais já anunciavam a chegada de “mais patins americanos em grandes quantidades”.35 Conforme Müller, os banquetes nos hóteis e os encontros nos clubes para a prática de jogos lícitos também eram propagandeados nos jornais da cidade.36 Portanto, quando não estavam ocupados com seus muitos negócios, os charqueadores acompanhavam sua família ao teatro e aos bailes, frequentavam os clubes com os amigos, as corridas no Jockey e os leilões. Em casa não faltavam jornais para os mesmos ocuparem-se da conjuntura política e econômica e de curiosidades. 37 Alguns ainda tinham na 38 caça um hobby eventual e nas suas chácaras um retiro da vida da cidade e da charqueada.
Como os artistas não possuíam uma segurança mais profissional para exercerem as suas atividades, geralmente as elites pelotenses, entre as quais estavam muitos charqueadores, acolhiam seus projetos e realizações. 39 Neste sentido, ao mesmo tempo em que recebiam pintores, poetas, escultores, professores e músicos em suas casas e sob a sua proteção, os 31
MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 147. Jornal do Comércio de Pelotas, 1 de julho de 1877 (BPP). Jornal do Comércio de Pelotas, 1 de julho de 1879 (BPP). 34 Jornal do Comércio de Pelotas, 3, 5 e 12 de julho de 1877 ; 1 de julho de 1879 (BPP). 35 Jornal do Comércio de Pelotas, 14 de agosto de 1879 (BPP); MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 157. 32 33
MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 25-26. MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 249. Conforme o autor, a partir de 1860, “sete jornais devem ser destacados pela influência que tiveram e pela extensão de tempo em que circularam”: Diário de Pelotas (1868 1889), Jornal do Comércio (1870-1882), Correio Mercantil (1875-1915), Onze de Junho (1877-1889), O Cabrion (1879-1889), A Discussão (1881-1888), A Pátria (1886-1891). 38 O coronel Anibal Maciel possuía um piano na cidade e outro na sua chácara, indicando que esta última também devia ser um espaço importante de lazer. O mesmo coronel possuía entre seus bens uma arma de caça (Inventário de Anibal Antunes Maciel, n. 815, m. 48, 1º cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1875 (APERS). Na edição de 27 de julho de 1875 do Jornal do Comércio encontra-se um leilão de uma espingarda de caça com máquina para fazer cartuchos e na edição de 1 de julho de 1879 uma loja anunciava vender diferentes armas e pistolas modernas (BPP). 39 MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit. 36 37
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charqueadores ofereciam um espaço de convivência para que seus filhos e filhas se sentissem atraídos pelos mesmos caminhos da arte. Conforme Cândida Rocha, os concertistas eram recebidos nas casas dos ricos e muitas vezes ensinavam suas filhas a tocarem piano, harpa e a cantar.40 Não demorou muito e do seio destas mesmas famílias surgiram importantes artistas com renome regional e até internacional. Alice Ramos, que descendia das famílias Silveira Martins e Antunes Maciel, apresentou-se várias vezes no Teatro 7 de Abril e tinha em Chopin, Mozart e Schumann seus compositores favoritos. Maria Francisca da Costa Silva, neta do coronel Anibal Antunes Maciel, também teve destaque neste meio artístico. Acostumada ao protagonismo nos saraus e salões da pequena Pelotas, também apresentou-se na Corte, onde cantou para o Imperador acompanhada do maestro Carlos Gomes. Maria Francisca foi uma das senhoras da elite rio-grandense que esteve no último Baile da Ilha Fiscal, em 1889. Contudo, Zola Amaro foi a mais famosa de todas. Neta do Visconde da Graça, tornou-se uma grande cantora de ópera, tendo se apresentado nas principais cidades da América e da Europa ao lado de grandes tenores e sob a regência dos principais maestros da época.A inserção dos familiares dos charqueadores neste espaço artístico e cultural permaneceu forte nas primeiras décadas do século XX. Em 1918, por exemplo, estavam entre os líderes da fundação e presidência do 1º Conservatório de Música de Pelotas, os senhores Dr. Francisco Simões Lopes, Francisco Gomes da Costa, Alfredo da Silva Tavares e Francisco Moreira, revelando 41 que estes sobrenomes eram quase que onipresentes em todos os espaços sociais da cidade.
Outro lugar reservado à manifestação artística foi o Teatro 7 de Abril – um dos principais patrimônios da cidade no século XIX e projetado com forte investimento dos charqueadores da primeira geração. Inaugurado em dezembro de 1833, a construção do mesmo – obra arquitetônica do engenheiro Eduardo Von Kretschmar e inspirado nos teatros europeus –, foi inspecionada e custeada pelo charqueador José Vieira Vianna e certamente apoiada por outros.42 Conforme Magalhães, o teatro era frequentado principalmente por comerciantes e fazendeiros, com destaque para os charqueadores. Na lista geral do sócios de camarotes e cadeiras de 1833 a 1834 percebe-se que “a maioria dos 61 camarotes e das 233 40
ROCHA, Candida Madruga da. Um século de música erudita em Pelotas (alguns aspectos: 1827-1927). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1979. 41 ROCHA, Candida. Op. cit., p. 95; 99; 123-134. Na década de 1880, o Dr. Epaminondas de Almeida, filho do charqueador Domingos José de Almeida, foi Presidente da Filarmônica Pelotense (Jornal de Comércio, 5 de julho de 1880 (BPP)). 42 LONER, Beatriz; GILL, Lorena; MAGALHÃES, Mário O. Dicionário de História de Pelotas. Pelotas: UFPel, 2010, p. 244. Apenas para lembrar, Vianna foi sócio de Domingos e de Chaves na Barca a Vapor chamada “Liberal”. Importante observar que além do navio, o nome do próprio teatro (a data da Abdicação de Pedro I) apresentava o posicionamento liberal deste trio de charqueadores. Neste aspecto, como se verá a seguir, eles se constituíam numa minoria na cidade. 429
cadeiras do teatro era locada por charqueadores, entre os quais havia um barão (futuro visconde), três comendadores, três futuros barões e outro futuro visconde”.43 Na segunda metade do século XIX, foi frequente a propaganda das companhias estrangeiras e nacionais a se apresentarem no mesmo. Em janeiro de 1875, podia-se encontrar anúncios da Ótica Eduardo Jeanneret vendendo óculos, pince-nez de ouro e binóculos para teatro. 44 A análise dos inventários post-mortem dos charqueadores revela que muitos possuíam ações do teatro entre seus bens. O Barão do Butuí possuía 8 camarotes e 26 cadeiras no Teatro. O Barão de Corrientes, por sua vez, era proprietário de 29 ações de camarote e 52 ações de cadeiras no mesmo. O usufruto deste espaço por parte de suas famílias parece ter sido grande e o charqueador Francisco Antunes Gomes da Costa (Barão de Arroio Grande e genro do coronel Anibal), talvez mais entusiasmado que os demais, também escreveu suas peças para serem encenadas no mesmo.45 Neste mesmo sentido, este grupo de charqueadores não demorou a contratar pintores europeus para retratarem a si mesmo e a seus familiares. 46 Conforme Magalhães, foi comum os membros da elite pelotense solicitarem os serviços destes artistas e alguns deles tiveram certo renome na localidade. Mariza Souza e Neiva Bohns analisaram como o prestigiado pintor Frederico Trebbi retratou os familiares dos charqueadores Barão de Butuí e Barão do Jarau, por exemplo. 47 Conforme Magalhães, as pinturas e retratos à óleo haviam virado moda e era conveniente que os cidadãos mais respeitáveis se fizessem retratar não apenas a si 48 mesmos como também a seus ancestrais e parentes próximos. Em janeiro de 1875, um
anúncio de jornal estimulava a prática: “O retrato é hoje uma necessidade por todos reconhecida. O filho não pode negar-se a fazer retratar os seus pais, porque nada pode trazer-
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MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 154. Na mesma época, Arsene Isabelle deixou registrado: “São Francisco de Paula é uma encantadora cidadezinha que não conta mais de uns dez anos de existência, e que, entretanto, já rivaliza com Porto Alegre pela atividade de seus habitantes, a importância de suas transações comerciais e o grande número de edifícios que se constroem diariamente (…). Há um teatro muito bonito, realmente elegante e cômodo. Existia apenas uma tipografia, no ano passado, mas circulam vários jornais políticos. A população já se elevava de sete a oito mil habitantes” (ISABELLE, Arsene. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul.Brasília: Senado, 2006, p. 259). 44 Jornal do Comércio, 3 de janeiro de 1875 (BPP). 45 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit.; Inventário do Barão de Butuí, n. 647, m. 41, 1867/1877, 1º cart. órfãos e provedoria, Pelotas (APERS); Inventário de Silvana Belchior da Cunha, n. 870, m. 50, 1º Cartório de órfãos e provedoria, Pelotas, 1877 (APERS). 46 Conforme Magalhães, os charqueadores possuíam agentes comerciais em diferentes locais e pediam para eles remeterem artigos de luxo pelos navios que descarregavam charque (MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 137). 47 SOUZA, Mariza; BOHNS, Neiva. Pinturas de retratos de Frederico Trebbi: um patrimônio cultural em risco. In: Seminário de História da Arte– Centro de Artes. Pelotas: UFPel, v. 1, n. 1, 2011. 48 MAGALHÃES, Mário Osório. Op. cit., p. 207 -209. 430
lhe a memória uma recordação mais agradável do que a imagem daqueles a quem deve amor e gratidão”.49 Neste sentido, não foi incomum encontrar quadros entre os bens inventariados dos charqueadores de maior fortuna. O coronel Anibal Maciel e sua esposa possuíam entre seus bens “vários quadros com retratos” e outros três “representando navios”. O Barão de Corrientes, além dos móveis de mogno e seu piano, possuía 11 quadros decorando o interior do seu sobrado na cidade. Acolhendo estes artistas, os charqueadores também proporcionavam um espaço de aprendizagem para suas filhas e netas. Nas exposições de arte locais era possível apreciar o talento das moças e as técnicas que as mesmas haviam aprendido com seus professores europeus. Entre as pintoras que expunham seus trabalhos é possível verificar que pertenciam às famílias dos principais charqueadores da cidade, dos seus parentes e de outros membros da elite local, como as alunas Maria Francisca da Costa, Ambrosina Campello, Belarmina Sá de Araújo, Leocádia Tavares, Maria Marques de Souza e Alice Cunha, por exemplo. 50 Além disso, alguns destes ricos charqueadores também contrataram arquitetos italianos para projetarem os seus casarões na cidade, como Felisberto Braga, Francisco e Leopoldo Antunes Maciel.51 No campo das letras, a presença das principais famílias charqueadoras não foi diferente. Pelotas possuía algumas livrarias, além de clubes de leitura e saraus que animavam a população e incentivavam a existência de um pequeno círculo de escritores e poetas. Isto também foi patrocinado pelos charqueadores. O Visconde da Graça, por exemplo, “doou o primeiro prédio para que se instalasse, em 1875, a Biblioteca Pública Pelotense”. Filhos e parentes de chaqueadores além de outras pessoas pertencentes a elite local seguidamente doavam livros a mesma.52 Fidel Echenique, um dos livreiros mais conhecidos da cidade, era genro do charqueador Barão de Corrientes. Estes empresários tendiam a abrir as portas de sua casa aos literatos e poetas locais, muitos deles amigos de seus filhos e filhas. Lobo da Costa, um dos principais poetas da cidade, frequentava o sobrado do abastado charqueador João 53
Mendes de Arruda, onde mantinha estreita amizade com seus filhos. Os dois grandes 49
Jornal do Comércio, 14 de janeiro de 1875 (BPP). MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 192; 209-213. 51 ANJOS, Marcos H. dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel do século XIX. Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 1996, p. 75-76. 52 Os jornais às vezes divulgavam os títulos dos livros doados, sendo que alguns eram escritos em língua inglesa. Em 1879, o presidente da Biblioteca era Saturnino Arruda, filho do charqueador João Mendes de Arruda. Em agosto de 1879, um gabinete de leitura da cidade anunciava que os livros dos sócios podiam ficar com os mesmos por 15 dias (Jornal do Comércio de Pelotas, 9 e 14 de agosto e 5 de setembro de 1879 (BPP)). 53 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p.132; 277. 50
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escritores pelotenses da época, Alberto Coelho da Cunha e João Simões Lopes Neto, formados neste pequeno círculo literário, eram, respectivamente, filho e neto de ricos charqueadores. Há pelo menos dois indícios de que uma parte dos charqueadores buscou investir na elevação educacional da sociedade pelotense, mesmo que de forma distinta. Nos anos 1840, João F. Vieira Braga remeteu ao Império uma proposta de abertura de um colégio interno para 300 alunos (meninos e meninas) com apoio local e sob o investimento de capitais, no qual ele calculava uma receita de 60:000$ anuais. Portanto, seria uma escola particular. Segundo Vieira Braga, “são de transcendente utilidade para muitos pais de família, que aspiram a dar a seus filhos uma educação ilustrada e completa (…) que importa boa parte da civilização que o país tanto necessita”. O projeto parece não ter vingado. 54 Uma proposta mais inclusiva foi liderada por Domingos José de Almeida em 1862, na qual ele escreveu para diversos deputados provinciais e solicitou o apoio de outros charqueadores (eram 11 cópias da requisição). Domingos propunha a abertura de uma escola para meninas no 2º distrito do municipio. Uma cláusula interessante do seu requerimento dizia: “a criação de uma cadeira de primeiras letras (…) obrigando-se os signatários a preencherem a aula com o número de meninas pobres na lei marcado para funcionar caso a ela não concorram as jovens que abundam na freguesia”, sobretudo “na serra dos Tapes próximas à pequena povoação de Boa 55 Vista onde convém instalar escolas de ambos os sexos para fomentarem o progresso dela”. É
provável que membros da elite local com comportamento semelhante ao de Domingos fossem muito mais exceção do que regra. Contudo, estas propostas de criação de escolas em Pelotas parecem ter dado algum fruto. Comparando o número de habitantes alfabetizados na província, Tassiana Saccol percebeu que Pelotas era o município que possuía o maior índice, ultrapassando os 33% entre a população livre (a média total da província era 24%).56 Neste sentido, a sua maior população urbana se comparada ao interior deve ter favorecido a inclusão de mais pessoas nas escolas.57 Conforme o projeto do mesmo Domingos, seria preferível que o professor e a professora da nova escola fossem casados, pois “mutuamente se distrairão da solidão e
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João Francisco Vieira Braga, Documentos Biográficos, Coleção Manuscritos (Biblioteca Nacional do RJ). Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para José Bento de Campos, 11.07.1862, CV-785, v. 3. SACCOL, Tassiana. Op. cit., p. 38 -39. 57 Em 1883, também foi instalada a Imperial Escola de Medicina Veterinária com forte incentivo da família Antunes Maciel – episófio que tratarei adiante. 55 56
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insipidez da localidade e se socorrem nas enfermidades e trabalhos da vida”.58 Segundo Magalhães, os professores sempre pediam “proteção” ao seus serviços e os espetáculos teatrais anunciavam-se quase sempre “em benefício” do ator ou do executante. 59 Portanto, ser um “protetor” das artes e da educação parecia reforçar a posição de elite das famílias charqueadoras mais ricas. Neste sentido, uma outra prática igualmente importante era a caridade e a filantropia. Estudando a Santa Casa de Pelotas, Cláudia Tomachewski percebeu a forte presença dos charqueadores na direção da instituição. Fundada no início do Segundo Reinado, ela assumiu diversas atividades de assistência, mantendo um hospital (1848), no qual eram recebidos os expostos (crianças abandonadas) e os enfermos. Conforme a autora, a Santa Casa também monopolizava os enterros e o transporte para o cemitério e mantinha capelas para rezar missas pelas almas dos irmãos e dos benfeitores. Como os irmãos e dirigentes pertenciam às elites da cidade, as mesmas podiam controlar de perto o cuidado aos mais pobres. 60 Para Magalhães, a caridade exercida por estes “ beneméritos” e “filântropos” constituíasse numa exigência “decorrente de sua formação moral e religiosa”.61 Entre os provedores da Santa Casa foi possível verificar tanto charqueadores (José Rodrigues Barcellos, Domingos de Castro Antiqueira, José Inácio da Cunha, Antônio José de Oliveira Castro e Possidônio Mâncio Cunha), quanto seus parentes próximos (Amaro J. Ávila da Silveira, Domingos Rodrigues Ribas e João Francisco Vieira Braga). A ocupação de tais cargos além de ampliar as suas redes de relações sociais na cidade, aumentava imensamente o seu prestígio social.62 Ainda é importante argumentar que este gosto pela novidade e pela cultura europeia também foi motivado pela migração de estrangeiros que marcou a segunda metade do oitocentos e que tratei de forma mais aprofundada no capítulo 4. Segundo Marcos dos Anjos, a alta presença de estrangeiros em todos os setores da população pelotense, na área educacional, nos meios artísticos e profissionais diversos, influenciou a transformação dos 63 valores vigentes e as próprias concepções de vida da elite local. Esta interação social ajudou
a favorecer a pretensa europeização dos costumes entre as elites pelotenses. Conforme César e Cerqueira, para alguns setores da elite local esta europeização nada mais era do que uma 58
Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para José Bento de Campos, 11.07.1862. CV-785, v. 3. MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 201-203. 60 TOMASCHEWSKI, Cláudia. Caridade e filantropia na distribuição da assistência: a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas – RS (1847-1922). Dissertação de Mestrado em História, PUCRS, 2007. 61 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 201-203. 62 TOMASCHEWSKI, Cláudia. Op. cit., p. 104 63 ANJOS, Marcos dos. Op. cit., p. 61. 59
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forma de superar o estereótipo rural, de rusticidade e escravismo que poderiam ser expostos diante do olhar estrangeiro. 64 De acordo com Magalhães, a civilidade e urbanidade também contribuiram para que a elite local de Pelotas respirasse um culto exagerado às letras. E a este mesmo culto “pode-se creditar uma das fortes manifestações do bairrismo pelotense”. 65 Eles se viam diferentes dos demais habitantes do interior da província criando uma tradição de superioridade de suas elites em comparação com a de outros municípios. Tal comportamento provocou reações adversas como a do viajante W. Haernisch que declarou o seguinte sobre Pelotas e sua elite: “a aristocracia que nela se fundou foi exclusivista. Ser pelotense vale para o mesmo pelotense como uma especialidade; sua terra, ou melhor, sua cidade, é o centro de todo o seu ser”.66 Diante deste exclusivismo, o mercado matrimomial visado pelas poucas famílias charqueadoras ricas tornava-se cada vez mais exigente. As alianças endogâmicas no interior da elite rio-grandense já não eram mais suficientes, pois as mesmas famílias passaram a buscar casamentos com elites de outras províncias e até mesmo genros do estrangeiro, denotando que Pelotas estava ficando pequena para as suas pretensões. Na primeira metade do oitocentos, o casamento do comerciante inglês Robert Barker com uma filha do charqueador Gonçalves Chaves já anunciava esta tendência. Entre os Simões Lopes, por exemplo, o comendador João S. Lopes casou o seu filho Ildefonso com a filha de Joaquim de Castro Souza Medronho, coronel no município cafeicultor de Bananal (SP). A filha de Ildefonso casou-se com o filho dos Viscondes da Penha. Na mesma família, um dos filhos do Visconde da Graça casou-se com a filha de Juan Saez de La Mazza, nobre capitalista espanhol pertencente à família do Conde de La Mazza. Os Antunes Maciel tiveram uma das mulheres da família casada com o comerciante inglês João Diogo Hartley e outra com o político cearense José Júlio Alburque Barros, o Barão de Sobral.67 Entre os Silva Tavares, o Dr. Francisco contraiu matrimônio com a filha de uma família paulista. A neta do Barão de Jarau, filha do Dr. Joaquim Assumpção, por sua vez, casou-se com a D. Haydée Bordagorri. O 64 CERQUEIRA, Fábio; CÉSAR, Temístocles. Os periódicos do final do século XIX e do início do século XX e o quotidiano de Pelotas. In: História em Revista, UFPel, n. 1, 1994. 65 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 263. 66 HARNISCH, Wolfhang. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1952, p. 85. 67 No século XX, os Antunes Maciel projetaram-se para o Rio de Janeiro, onde o filho do Dr. Francisco Antunes Maciel tornou-se presidente do Banco do Brasil e uma de suas filhas casou-se com o Senador Valdomiro Magalhães e a outra com o Deputado Federal Moreira Brandão (CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-rio-grandense. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1937, p. 43. Uma bela análise desta família no período republicano, quando parte dela já havia migrado para o Rio, pode ser visto em PAULA, Débora Clasen de. “Da mãe e amiga Amélia”: cartas de uma baronesa para sua filha (Rio de Janeiro - Pelotas, na virada do século XX). Dissertação de Mestrado em História, Unisinos, 2008.
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Barão de Correntes teve dois genros de famílias espanholas, o proprietário Ramon Trapaga e o capitão Guilherme Echenique, além de de uma filha que foi morar com o marido no Rio de Janeiro.68 Portanto, a diversificada engenharia de matrimônios foi somente mais um traço desta elite da elite. As festas, os saraus e os bailes nas casas dos charqueadores e nas associações e clubes aos quais os mesmos frequentavam constituíam-se no cenário perfeito para a ostentação não apenas das jóias, das carruagens, da criadagem e do seu vestuário, sempre na moda, como das boas maneiras, hábitos e cultura letrada dos membros de suas famílias, incluindo genros de outras partes do Brasil e até da Europa. A suposta prática do mecenato e a promoção do progresso e da educação não era compartilhada por todos, mas, principalmente, por algumas das mesmas famílias dos charqueadores mais ricos que venho analisando nesta tese, ou seja, os Simões Lopes, os Antunes Maciel, os Moreira, os Tavares, os Cunha, entre outros. Portanto, ocupando posições distintas nos espaços filantrópicos, educacionais, artísticos e, como se verá adiante, políticos, esta elite da elite reforçava a sua dominação social sobre os demais legitimando-se, por meio de uma relação extremamente complexa, como os mais aptos a governarem a sua sociedade e a representá-la em outros espaços de poder.
10.2 – GOVERNANDO A SOCIEDADE: OS CHARQUEADORES NA ELITE POLÍTICA LOCAL E REGIONAL Desde que a Câmara de Pelotas foi criada em 1832 e a Assembléia Legislativa Provincial teve as suas primeiras eleições em 1835, os charqueadores sempre estiveram presentes entre os mandatários. No que diz respeito à esferas de poder municipal, diversos estudos vêm demonstrando que outros cargos reservados aos potentados locais e seus clientes possuíam extrema importância na vida política local e eram alvo de intensas disputas entre as facções políticas paroquiais. Os juízes de paz, mesmo perdendo poderes após o chamado Regresso Conservador, continuaram influindo na formação das mesas eleitorais e seu cargo era bastante disputado nas eleições locais. Os delegados e subdelegados de polícia e os 68
CARVALHO, Mário T. Op. cit., p. 68; 79; 133. Possuir genros europeus podia favorecer um maior acesso às comunidades estrangeiras que residiam na cidade (ver Capítulo 4), possibilitando alianças e favores. Não se deve esquecer que o alto comércio pelotense e rio-grandino estava repleto de estrangeiros que tinham acesso a artigos de luxo, ao sal de melhor qualidade, aos mercados dos couros, além de preciosas informações do mundo dos negócios. Além disso, numa sociedade onde a cultura europeia era tida como superior e oferecia certo prestígio social aos que dela compartilhassem com distinção, transitar por estes círculos, receber homenagens em clubes e associações e ocupar lugares de honra entre os mesmos, seja em espetáculos teatrais de companhias estrangeiras, seja em festejos cívicos, podia render um status considerável naquela pequena cidade. 435
inspetores de quarteirão eram igualmente importantes pelos mesmos motivos, além de também serem utilizados para perseguir os adversários políticos.69 Um patamar acima na hierarquia de poder estavam os magistrados formados e os oficiais comandantes da Guarda Nacional. Como Pelotas tornou-se comarca somente em 1875, até esta data o juiz municipal era o chefe do Judiciário local (depois da mencionada data os juízes de direito passaram a concentrar os trabalhos judiciais). A Guarda Nacional, que vem merecendo muitos estudos, era um espaço de atuação bastante importante, pois, além de auxiliar no policiamento e na manutenção da ordem social, em épocas de guerra ela compunha parte significativa dos contingentes militares. 70 Contudo, tanto a Guarda como o Judiciário local acabavam se envolvendo nos conflitos locais, pois eram espaços de poder disputados pelas elites, uma vez que possuíam um importante potencial para perseguir os inimigos políticos. Além disso, o oficialato da Guarda era uma excelente maneira de se formar uma clientela e arregimentar aliados, pois o recrutamento forçado era utilizado como ameaça constante e pertencer à facção dos comandantes ou membros da junta de qualificação era uma forma de se diminuir estes riscos.71 Os charqueadores e seus familiares estavam presentes em todas estas esferas de poder local e conforme os cargos aumentavam de importância, as famílias que os concentravam também constituíam-se nas mais ricas e“distintas”. O comando da Guarda Nacional, por exemplo, esteve nas mãos de João da Silva Tavares (visconde de Serro Alegre), o Comendador João Rodrigues Ribas, o Visconde da Graça e o Barão de Corrientes. Também não seria exagero considerar que os seus filhos e genros bacharéis controlavam o juizado municipal e de órfãos. Os doutores Joaquim Augusto de Assumpção, Ildefonso Simões Lopes, Ovídio Trigo Loureiro, Amaro J. Ávila da Silveira, Joaquim J. Afonso Alves, entre outros (todos filhos, genros ou parentes de charqueadores ricos), ocuparam o cargo por muitos anos. 72 Quando da ausência de juízes togados, algo muito comum no meado do oitocentos , os 69
Ver, por exemplo, GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX.Rio de Janeiro:
UFRJ, 1997; AL-ALAM, Caiuá. Palácio das misérias: Populares, delegados e carcereiros em Pelotas (18691889). Tese de Doutorado em História, PUCRS, 2013; VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010. 70 RIBEIRO, José Iran. Quando o Serviço os Chamava: milicianos e guardas nacionais no Rio Grande do Sul (1825-1845). Santa Maria: Editora da UFSM, 2005; FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos belicosos: a Guarda Nacional da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul na defesa do Império do Brasil (1850-1873). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010; MÜGGE, Miquéias. Prontos a contribuir: guardas nacionais, hierarquias sociais e cidadania (Rio Grande do Sul - século XIX). São Leopoldo: Oikos, 2012. 71 Como já demonstrei em VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010. 72 SODRÉ, Elaine L. V. A disputa pelo monopólio de uma força (i)legítima: Estado e administração judiciária no Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833 -1871). Tese de Doutorado. PPG-História da PUC-RS, 2009; BIEBER, Judy. O sertão mineiro como espaço político (1831-1850). Revista Mosaico, v. 1, n. 1, jan./ jun., 2008, p. 74-86; NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência: I. 436
próprios charqueadores assumiam o cargo, como José Inácio da Cunha e José Antônio Moreira, por exemplo. 73 O Judiciário local era quase um negócio entre famílias e quando os réus, muitos deles escravos e homens livres pobres, eram levados ao Tribunal do Júri, lá estavam os charqueadores, seus parentes e outros membros da elite local para decidirem se os mesmos eram culpados ou inocentes.74 Tendo em conta que o juizado de paz e as delegacias de polícia eram ocupadas pelos mesmos indivíduos ou membros de suas fações políticas locais75 pode-se considerar que Pelotas, uma localidade litorânea e mais urbanizada, se constituía numa realidade não muito distinta de outras regiões do Brasil, demonstrando que o alcance da centralização implementada pela Reforma Judiciária de 1841 possuía sérios limites, como outras pesquisas já demonstraram.76 Na Câmara municipal, a presença destas famílias também foi notável. Dos 89 indivíduos que ocuparam o cargo de vereador em Pelotas entre os anos de 1832 e 1889 77, 29 (32,6%) eram charqueadores e 28 (31,4%) eram parentes próximos dos mesmos, ou seja, filhos, irmãos, cunhados e genros. Reunindo somente os 14 presidentes da Câmara (o mais próximo do que poderia ser identificado como um prefeito na época), 28,5% deles eram charqueadores e 42,8% eram seus parentes próximos. Portanto, cerca de 2/3 da edilidade pelotense recebia influência direta das famílias charqueadoras. Pode-se argumentar que a Câmara estava longe de se constituir no espaço de poder local que havia sido no período colonial. Contudo, o cargo era bastante disputado pelas elites locais e a Câmara era o palco de Império. Brasília: STF, 2000; VARGAS, Jonas M. Magistrados e militantes: os juizes de direito na Província do Rio Grande do Sul (1832-1889). Monografia de conclusão do curso de História, UFRGS, 2004. 73 Ver, por exemplo, Livro de notas n. 5, 2º tabelionato de Pelotas (APERS). 74 O exame das dezenas de processo-crime trabalhados no capítulo 6 me permitem fazer esta afirmação. 75 Para Pelotas ver, por exemplo, AL-ALAM, Caiuá. Op. cit., 2013. 76 SODRÉ, Elaine. Op. cit.; GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, 1808 -1871. México: Fondo de cultura economica, 1986. Com isto não quero dizer que não existiam embates entre as autoridades nomeadas pelo governo central e os potentados locais, como diversos documentos demonstram. Os conflitos resultavam hora na vitória de um lado, hora na de outro. No entanto, muitas vezes quando um juiz de direito imprimia uma derrota a um fazendeiro ele também podia estar aliado aos adversários deste. Não foi raro localizar o envolvimento dos juízes de direito com as facções locais, assim como os oficiais do Exército, os empregados da Alfândega, os promotores públicos, entre outros funcionários nomeados pelo governo central (Ver, por exemplo, SODRÉ, Elaine. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010; THOMPSON FLORES, Mariana F. da C. Contrabando e contrabandistas na fronteira oeste do Rio Grande do Sul (18511864). Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2007). As relações de poder no nível local apresentavam uma variedade de casos numa complexa relação de negociação e conflito que vem sendo muito bem estudada e problematizada por alguns historiadores. Ver, por exemplo, VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça: Minas Gerais – século 19. São Paulo: EDUSC, 2004; DANTAS, Mônica D. Para além do mandonismo: Estado, poder pessoal e homens livres pobres no Império do Brasil. In: SOUZA, Laura. M. e; FURTADO, Júnia F.; BICALHO, Maria. F. (Org.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda Editorial, 2009, p. 335-354. 77 A listagem pode ser encontrada em OSÓRIO, Fernando. Op. cit., v. 1. 437
grandes conflitos por contratos, recursos financeiros e influência política em assuntos importantes, tratados, inclusive, no parlamento provincial.78 Ultrapassando o espaço local de influência, muitos pelotenses ocuparam uma cadeira na Assembleia Legislativa. Analisando as listagens de deputados provinciais entre 1835 e 1889, foi possível verificar a presença de pelo menos 37 parlamentares que eram charqueadores ou parentes de charqueadores. O exercício de tal cargo os colocava em privilegiadas condições para captar recursos para Pelotas, desenvolvendo a região, mas, ao mesmo tempo, respondendo as demandas de suas clientelas e eleitores. Como alguns autores demonstraram, as assembléias provinciais eram o palco de acirrados debates e disputas por verbas e influência política.79 Na mesma esfera regional estavam os presidentes de província que, na maioria das vezes, se constituíam em indivíduos nomeados pelo governo central e sem raízes com os locais onde exerciam seus cargos. No Rio Grande do Sul, entre 1845 e 1889, dos 55 indivíduos que assumiram a presidência da província como titulares nomeados ou como vice-presidentes 22 (40%) eram rio-grandenses. Destes, 7 eram charqueadores ou seus parentes próximos. As famílias Jacintho de Mendonça, Silva Tavares, Antunes Maciel, Rodrigues Barcellos e Simões Lopes foram as que concentravam tais cargos. Além de administrarem a província, os presidentes possuíam um papel fundamental no período eleitoral, pois eram capazes de remover oficiais da Guarda Nacional e autoridadees policiais e administrativas locais, alterando as configurações faccionais de cada região vindo a favorecer o partido do governo. Mas tais medidas davam-se geralmente em sintonia com os seus correligionários em nível local, uma vez que, constituindo-se em elementos exógenos àquela sociedade, os presidentes precisavam barganhar com os membros das elites locais e regionais que pertenciam ao seu partido.80 Na alta política parlamentar (deputados gerais e senadores) o número de charqueadores e seus familiares também foi importante, principalmente entre os primeiros. As mesmas famílias citadas acima concentravam estes mandatos, além de Fernando Osório e Antônio Seve Navarro, genros de charqueadores. Entre os senadores, pode-se destacar Gaspar 78 Tratei disto em VARGAS, Jonas. As duas faces do coronel Valença: família, poder local e mediação política em Santa Maria (1850-1870). In: WEBER, Beatriz; RIBEIRO, José Iran (Org.). Nova História de Santa Maria: contribuições recentes. Santa Maria: Câmara Municipal de Santa Maria, 2010b, p. 287-320. Para um estudo sobre a Câmara de Pelotas ver NUNES, Dúnia. A Câmara municipal de Pelotas e seus vereadores: exercício do poder local e estratégias sociais (1832-1836). Dissertação de mestrado, UFRGS, 2013. 79 GOUVÊA, Maria de Fátima. O Império das Províncias: Rio de Janeiro (1822 -1889). Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2008; DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit. A listagem dos deputados rio-grandenses pode ser verificada em AITA, Carmen; AXT, Gunter. Parlamentares gaúchos nas Cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996). Porto Alegre: Assembléias Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1996. 80 Tratei amplamente deste tema em outra pesquisa (VARGAS, Jonas. Op. cit. 2010).
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Silveira Martins (afilhado do charqueador Heleodoro de Azevedo e Souza e cujos pais e um cunhado comerciante residiam em Pelotas) e o general Manoel Luís Osório (que, conforme foi visto no capítulo 7, casou seus filhos com familiares dos Barões do Jarau, Butuí e os Antunes Maciel). O auge da elite charqueadora em termos de poder político nacional ocorreu quando Francisco Antunes Maciel, ele próprio advogado e charqueador, tornou-se ministro do Império do Gabinete Liberal de 1883. Tratava-se de uma pasta extremamente poderosa e que fornecia ao seu portador, por exemplo, o direito de intervir na nomeação dos Executivos provinciais. Na época, Maciel não apenas nomeou o seu parente Barão de Sobral para a presidência do Rio Grande do Sul, como influiu para que sua família recebesse mais 3 títulos de nobreza. Logo que ocupou a pasta, o seu primo Francisco Antunes Gomes da Costa recebeu o título de Barão do Arroio Grande (1884), o seu irmão Leopoldo Antunes Maciel tornou-se o 2º Barão de São Luís (1884) e outro parente, Aníbal Antunes Maciel, foi titulado Barão de Três Serros (1884). No Antigo Regime europeu, uma das funções da nobreza era encarregar-se do governo da sociedade, traço que parece ter permanecido significativo em diversos países ao longo do século XIX.81 Mas a nobreza titulada brasileira, ao contrário da europeia, havia surgido em meio a uma sociedade cujo o arranjo intitucional possuía um forte caráter liberal. A nobreza tupiniquim não se ligava à pureza de sangue, à longevidade imemorial dos seus troncos familiares, ela não era hereditária e não conferia grandes privilégios legais aos seus portadores, por exemplo. Suas únicas semelhanças com a nobreza de Antigo Regime diziam respeito ao fato de que os títulos eram mercês reais oferecidas como retribuição aos serviços prestados à Coroa, denotando a defesa da monarquia por parte dos agraciados, e que a importância dos mesmo coincidia com a hierarquia política do Império, ou seja, os membros da alta nobreza e os da alta política se confundiam. 82 Como verifiquei em outro estudo, a
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A bibliografia sobre o tema é ampla. Para uma análise inicial ver LUKOWSKI, Jerzy. The european nobility in the Eighteenth Century. London: Palgrave Macmillan, 2003; LIEVEN, Dominic. The aristocracy in Europe, 1815-1914. London: Macmillan, 1992; SCOTT, Hamish. The European Nobilities in the seventeenth and eighteenth centuries. London: Palgrave Macmillan, 2007; MONTEIRO, Nuno G. O crespúsculo dos Grandes: a casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal (1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998; Les Noblesses européennes aux XIXe siècle. Actes du colloque organisé par l'Ecole française de Rome et le Centro per gli studi di politica estera e opinione pubblica de l'Université de Milan en collaboration avec la Casa de Velázquez (Madrid) [et al.]. Roma, 21-23 novembre 1985. Agradeço ao Prof. Nuno Monteiro pelas indicações. 82 Como demonstrou José Murilo de Carvalho, se o título de barão reservava-se principalmente às nobrezas provinciais, os Viscondes, Marqueses e Condes eram títulos que se confundiam com os membros da elite política imperial (CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial e Teatro de Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 258-259). Maria Fernanda Martins também verificou uma profunda imbricação entre os nobilitados e os membros do Conselho de Estado 439
ostentação de títulos de nobreza representava a confirmação de um estreito vínculo com os grandes espaços de poder político, além de servir como uma amostra das famílias mais ricas da província e daquelas que se identificavam e eram identificadas com o projeto político imperial. Além disso, os títulos lhes conferiam certo status social que as diferenciava das demais famílias do extremo sul do País. Pode-se dizer ainda que a Corte, ao congratulá-los, os reconheciam como membros das elites provinciais, possibilitando, através dos mesmos, uma melhor interlocução entre o governo central e as regiões onde concentravam sua base social e econômica, oferecendo-lhes, em conseqüência disto, um acesso mais facilitado ao mundo da alta política.83 No Rio Grande do Sul, provavelmente de forma mais acentuada do que nas outras províncias, a maioria dos títulos foi concedida como retribuição aos serviços militares dos seus súditos. A nobreza rio-grandense possuía um perfil fortemente ligado ao campo de batalha, envolvendo também estancieiros civis que haviam lutado em uma ou mais guerras. Cerca de 65% dos 58 rio-grandenses que receberam títulos de nobreza no Segundo Reinado eram ou oficiais da Guarda Nacional ou do Exército. Pelo menos 22 deles participaram da Revolução Farroupilha, sendo 19 do lado legalista.84 Mas no caso dos charqueadores, os títulos de nobreza recebidos pelos mesmos eram mais uma retribuição ao dispêndio de seu patrimônio do que qualquer outra coisa. Apesar de patrocinar financeiramente a guerra e insuflar os movimentos nos bastidores (ver capítulo 7) os charqueadores não foram grandes guerreiros. Portanto, como os títulos nobiliárquicos dos mesmos também constituíram-se em uma compensação pelo patrimônio gasto com o Império e a libertação de escravos em grande quantidades não surpreende que as famílias charqueadoras mais ricas concentraram tais honrarias, como pode ser percebido na Tabela 10.1. Na mencionada Tabela, ainda se percebe a estreita relação entre riqueza e investimento em educação superior e de ambas com a conquista de cargos na alta política (senadores, deputados gerais, ministros de Estado), denotando uma grande concentração de recursos materiais e imateriais nas mãos de poucas famílias do grupo. Estes dados podem causar a impressão de uma certa homogeneidade de interesses políticos entre os 12 inventariados mais ricos, que totalizavam 9 famílias. No entanto, tal visão pode ser perigosa. Se a população pelotense estava politicamente dividida entre conservadores e liberais (muito embora os (MARTINS, Maria Fernanda V. “A velha arte de governar”: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007). 83 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 84 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. Ver capítulo 3. 440
partidos fossem recheados de facções e nos anos 1850 e 1860 estas subdivisões tomaram um caráter bastante complexo com a entrada da Liga, da Contra-liga e, posteriormente, dos progressistas no cenário político regional) não é dificil supor que as disputas pelos cargos locais e pelo direito de intervir nos rumos da sociedade local e provincial dividia os charqueadores em diferentes facções. Muitas vezes os conflitos, sobretudo nas épocas de eleição, tomavam um caráter de extrema violência. Homens que frequentavam o Teatro Sete de Abril, pagavam os professores europeus mais caros para educar seus filhos e filhas, viviam em bailes e saraus ao som de Mozart, Chopin e Schumann, não tinham o maior constrangimento em ordenar, por meio de seus capangas, as perseguições mais agressivas aos seus inimigos políticos.85 Tabela 10.1 – Relação entre Riqueza, Nobiliarquia, Alta polític a e Educação entre as famílias charqueadoras de Pelotas (1845-1900) – em libras esterlinas86 Faixas de fortuna Acima de 100 mil
N. Inventários 4
De 50 a 100 mil
8
De 20 a 50 mil
13
De 10 a 20 mil
9
Menos de 10 mil
17
Títulos de Cargos na Nobreza Alta política 7 títulos 8 cargos 100 % dos invent. 100% dos invent. 7 títulos 5 cargos 71% dos invent. 49% dos inventa. 2 títulos 15% dos invent. 1 título 11% invent. -
5 cargos 38% dos invent. -
Diplomas de curso superior 11 diplomas 100% dos invent. 6 diplomas 71% dos invent. 7 diplomas 30% dos invent. 2 diplomas 22% invent. -
Fonte: Inventários post-mortem dos cartórios de Pelotas; FRANCO, Sérgio da Costa.Gaúchos na Academia de Direito de São Paulo no século XIX in: Revista Justiça & História. Porto Alegre: CEMJUG, 2001, pp. 107-129; CARVALHO, Mário Teixeira de.Nobiliário Sul-riograndense.Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010.
Uma seqüência de telegramas dos chefes políticos de Pelotas com o Presidente da Província, em 1878, revela toda a violência empregada nas épocas de eleições. Primeiramente, o médico e deputado João Campello alertava: “Conflito na Igreja. Dr. Barcellos e Dr. Mendonça mandaram capangas assassinar os nossos amigos da mesa. Dr. Arruda ferido levemente, muitos de nossos amigos feridos. A urna foi salva, está guardada em caixa forte. Peço providencias à Vª Excª contra os mandatários do tentado a de hoje”.87 No mesmo dia, o Dr. França Mascarenhas, genro do general Osório, informava: “Triunfo liberal, conservadores completamente derrotados na urna, provocaram conflito a mão armada. 85 86 87
VARGAS, Jonas. Op. Cit., 2010. Para a construção desta tabela foram considerados como familiares os pais, filhos, irmãos, genros e sogros. Telegrama de 06.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS. 441
Comandante do destacamento seriamente ferido, quatro praças feridos e uma morta e alguns cidadãos feridos. A ordem quase estabelecida”.88 A guerra continuava, a tensão tomava conta de todos e Campello telegrafava novamente: Os assassinos de ontem acoitaram-se em casa do Dr. Barcellos, onde há preparada resistência armada. A eleição continua regular. Temos 300 votos de vantagem. No 2º distrito fizemos 3/3. No 3º distrito ganhamos com 20 votos. Morreu um policial no conflito deEscapei ontem. de O 6Comandante Cordeiro ferido gravemente capangas de Barcellos. tiros e de uma punhalada. Havia ordem depelos me assassinarem. O Arruda recebeu uma bala no ventre, que felizmente não penetrou por ter encontrado uma moeda no bolso do colete. Há mais 6 liberais feridos levemente. Estou doente de tanto gritar.89
O tal Arruda citado na missiva era o advogado e deputado provincial Saturnino Epaminondas de Arruda – claramente um dos principais contendores. Estes telegramas demonstram que os grandes políticos da elite estavam diretamente envolvidos com os conflitos paroquiais, brigando corpo a corpo com capangas e policiais. O citado Dr. Barcelos era na realidade o médico Miguel Rodrigues Barcelos, também Barão de Itapitocaí. A riqueza de seu pai e de sua extensa família fez com que o mesmo fosse agraciado com as Comendas das Imperiais Ordens de Cristo e da Rosa e da Real Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa de Portugal. Além disso, ele também era Cavaleiro da Real Ordem da Águia 90 Vermelha da Alemanha e Cavaleiro da Real Ordem da Coroa da Itália. Mas todos estes
títulos eram esquecidos quando os cargos políticos estavam em jogo e o Doutor Miguel brigava sem o maior constrangimento entre os capangas e policiais.91 Tanto Barcellos, quanto Mendonça e Arruda eram filhos de charqueadores. A prática política, sobretudo no âmbito local e regional, tinha nas famílias as suas unidades de ação mais elementares e as mesmas sustentavam seu poder incorporando vasta clientela e um número grande de capangas.92 Um exemplo disso pode ser verificado por meio da família do mencionado deputado Arruda – importante liderança do Partido Liberal em Pelotas. Numa noite de sábado de abril de 1873, um grupo de escravos e homens livres, todos a cavalo, causou certo tumulto nas ruas de Pelotas. Tendo a polícia tentado reprimir os mesmos, um dos membros do grupo, um pardo paraguaio chamado Candido Simplício, gritou 88
Telegrama de 06.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS. Telegrama de 07.08.1878, Pelotas, Fundo Eleições, maço 2, AHRS. CARVALHO, Mario Teixeira de. Op. cit., p. 121. 91 Em setembro de 1859, no dia das eleições em Pelotas, o Dr. Miguel foi acusado de manter um votante na Santa Casa como se estivesse ainda doente. ( O Brado do Sul, Pelotas, 14.09.1859, Biblioteca Nacional do RJ). 92 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 89 90
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aos demais: “A la carga muchachos!”. Conforme testemunhas, eles gritavam “vivas à liberdade” – saudação comum aos liberais. Fugindo do enfrentamento com a polícia, alguns escravos foram acoitar-se nas terras do major João Mendes de Arruda e outros na de seu genro. O interrogatório revelou que todos eles, inclusive os paraguaios, eram trabalhadores da charqueada do próprio Major. Os escravos haviam encontrado Simplício e outros homens na frente da casa do conselheiro Francisco de Araújo Brusque, um dos chefes do Partido Liberal em Pelotas e que já havia sido Ministro da Guerra, em 1864. 93 Portanto, o grupo devia compor parte dos capangas da facção liberal pelotense, algo muito comum na vida política paroquial.94 O major Arruda era charqueador e residia em seu estabelecimento no Fragata, possuindo também um sobrado no centro da cidade, onde seu filho João Maria, oficial do Exército, morava. O advogado e deputado Saturnino de Arruda, mencionado acima, era o membro da família capaz de conectá-la com grandes centros políticos, como Porto Alegre e a própria Corte, pois mantinha intensa correspondência com Fernando Osório, filho do General Osório, quando ambos (pai e filho) eram respectivamente deputado e senador pelo Rio Grande do Sul, residindo no Rio. Ou seja, as facções conectavam indivíduos desde a paróquia até a Corte.95 Portanto, pode se verificar que os membros da família possuíam atividades políticas distintas.96 Na base, ou melhor, nas localidades (no nível municipal, distrital ou paroquial), a política era dirigida por grandes proprietários de terras e de escravos, ricos comerciantes e, no caso de Pelotas, os charqueadores, além de outros grupos com notável proeminência local, algumas vezes aparentados dos mesmos. Suas clientelas reuniam famílias e indivíduos que dividiam-se em facções que se digladiavam na luta por cargos e na eleição dos candidatos de seus chefes. A luta envolvia pequenos líderes locais e capangas e, no caso da família Arruda, até mesmo os seus escravos. Geralmente, estes grupos buscavam colocar indivíduos influentes em cargos-chave como os de delegado de polícia, juiz de paz e o oficialiato da Guarda Nacional. Eram eles que decidiam as eleições e “sujavam” as mãos para que as maiorias parlamentares, tanto nas Assembléias Provinciais quanto nas Gerais, fossem conquistadas
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Processo-crime n. 995, m. 25, 1874, Tribunal do Juri, Pelotas (APERS). VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. Tratei amplamente deste tema em outro trabalho (VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010). 96 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 94 95
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para os seus respectivos partidos. Em suma, este era um espaço de ação reservado principalmente às elites locais e suas clientelas.97 Se os conflitos no nível municipal eram protagonizados, sobretudo, pelas suas elites locais, no nível provincial/regional, alguns indivíduos cujas famílias possuíam grande poder local acabavam se sobressaindo mais do que outros. Por possuírem um diploma de curso superior e dominarem uma linguagem política mais sofisticada, alguns locomoviam-se com distinção entre o meio rural e as grandes cidades, funcionando comoconectores entre os dois mundos. Eram, na realidade, os brokers e aqui os chamo de mediadores políticos – tema que já tratei profundamente em outra pesquisa. 98 A convivência com membros de outras elites políticas e a vida no parlamento e na imprensa os tornavam mais conhecidos e capazes de negociarem interesses locais e regionais com os grandes centros de poder político e administrativo, ou seja, as capitais de província e, alguns poucos, a própria Corte. Portanto, ultrapassando o espaço regional e locomovendo-se com certa distinção no mundo da alta política surgia um grupo bastante pequeno de indivíduos, porém muito influente e poderoso em termos políticos. E digo indivíduos porque, neste espaço, eles já não podiam mais carregar consigo as suas famílias na função de mediação. Quanto mais complexa era a tarefa do broker mais individual ela se tornava, muito embora a sua rede de relações fosse utilizada como trunfo nas negociações que o mesmo realizava.99 Mas é preciso ter cuidado, pois por trás de cada estadista ou grande politico e lider regional escondiam-se interesses de diferentes ordens, nas quais eles não conseguiam se desprender. Somente os senadores e conselheiros de Estado, cujos cargos eram vitalícios, podiam gozar de uma maior autonomia com relação a esta pressão vinda dos paroquianos, mas ela jamais deixava de existir. Portanto, os seus familiares, amigos e “protetores” possuíam papel importante na sua trajetória e sua dívida para com os mesmos e outros membros das elites regionais era grande. Neste sentido, a razão de estado e a razão clientelística não se excluíam. A mão que governava e assinava decretos preocupando-se com questões de ordem nacional era a mesma que mandava nomear parentes e aliados políticos nos cargos pedidos pelos parentes e
97
Sobre clientelas ver GRAHAM, Richard. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 98 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 99 SILVERMAN, Sydel. Patronage and community-nation relationships in central Italy. In: SCHMIDT, S. W. (ed.). Friends, Followers and factions: a Reader in Political Clientelism. Berkeley: University of Califórnia, 1977, p. 293-304. 444
amigos.100 E se hoje esta prática possui um caráter antagônico aos interesses públicos, naqueles tempos, mesmo que nos discursos ou em elaborações filosóficas ela pudesse ser condenada, era por meio destes mecanismos que o Estado era capaz de atingir certos espaços e fazer-se impor em outros.101 Portanto, os mediadores políticos agiam por intermédio tanto dos espaços institucionais abertos aos mesmos (sendo que os mais comuns eram as Assembléias provinciais e a Assembléia Geral) quanto pelas vias informais de atuação. Numa sociedade agrária com meios de comunicação e transportes bastante precários, seu papel era fundamental na viabilização do sistema político do Brasil Império e na captação de recursos materiais para suas províncias. Negociando com as autoridade centrais e defendendo interesses de ordem regional e local eles também buscavam sustentar a posição de suas famílias e facções enquanto elite provincial. Neste processo, aqueles mediadores políticos de maior prestígio e com uma trajetória de maior sucesso nestas práticas, ascendiam ao Senado, a algum ministério e até mesmo ao Conselho de Estado. Tendo em vista o alto retorno em termos de recursos materiais e imateriais que a ocupação destes cargos podia trazer aos seus portadores, não surpreende que a disputa pelos mesmos fosse bastante acirrada. As clivagens existentes entre os mesmos grupos decorriam de posturas ideológicas distintas, das tradições familiares e das próprias redes de compromissos que caracterizavam o universo político oitocentista. Neste sentido, as famílias charqueadoras mais ricas estavam divididas não apenas entre conservadores e liberais, como também em facções dentro dos próprios partidos. Os Antunes Maciel, importantes chefes liberais, ficaram ao lado de Silveira Martins na cisão que marcou o partido no final dos anos 1870, sendo que, os Almeida e os Arruda acompanharam a família do General Osório. Importante notar que os Osório e os Antunes Maciel eram aparentados, o que não significava que não pudessem romper politicamente. Os Gonçalves Chaves e os Cunha também eram liberais. Entre os conservadores, o Barão do Jarau e o Visconde da Graça eram chefes locais do partido, mas
100
Ver, por exemplo, CARVALHO, José Murilo. Rui Barbosa e a Razão Clientelista. Dados, v. 43, n. 1, Rio de Janeiro, 2000. 101 URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial: a burocratização do estado patrimonial brasileiro do século XIX. São Paulo: Difel, 1978; GRAHAM, Richard. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 445
sofriam oposição dos Rodrigues Barcellos, por exemplo, que também eram conservadores, assim como os Mendonça e os Azevedo e Souza.102 Os partidos e suas facções internas disputavam a legitimidade das conquistas políticas alcançadas pelos seus mediadores. Na polêmica questão da mesa de Rendas de Pelotas, nos anos 1870, os liberais fizeram questão de propagandear o papel de Silveira Martins no projeto, além da conquista da tarifa especial e das estradas de ferro na província.103 Quando os comerciantes rio-grandinos conseguiram reverter a situação ao seu favor, extinguindo a alfândega pelotense, o Visconde da Graça, rival político de Martins, viu uma ocasião para 104 intervir na questão, no que foi aclamado pelos conservadores pelotenses. Um outro
exemplo da atuação política dos mediadores diz respeito à criação, em 1883, da Imperial Escola de Veterinária e Agricultura em Pelotas. Na ocasião, a localidade entrou para o seleto cenário de cidades com Escolas e Academias imperiais. Foi uma conquista do advogado e charqueador Francisco Antunes Maciel quando o mesmo assumiu o cargo de Ministro do Império naquele mesmo ano.105 Para conseguir manter a sua posição privilegiada, o mediador tinha que se legitimar a partir dos recursos e benefícios que conseguia captar para as suas regiões de srcem. E os eleitores pelotenses, dentre os quais haviam muitos charqueadores, estavam sempre atentos com relação a isto, pois muitos deles ajudavam a financiar as campanhas eleitorais 106 e 102
Sobre as cisões que marcaram o período ver PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no II Império (1868-1882). Porto Alegre: UFRGS, 1974; CARNEIRO, Newton G. A identidade inacabada: o regionalismo políticos no Rio Grande do Sul.Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. 103 Jornal do Comércio de Pelotas, 19.06.1981 (BPP). 104 Numa de suas viagens à Corte, o visconde da Graça demorou-se por 3 meses no Rio, onde foi recebido pelo Visconde de Rio Branco. Desta viagem, resultou um Diário que foi consultado pelo escritor Carlos Diniz. Conforme o mesmo, “ao chegar à casa em que se hospedava, João Simões Lopes [o visconde da Graça] encontra uma carta de Rio Branco, que veio a ser transcrita no Diário, nos seguintes termos: ‘A S. Excia. Sr. Barão da Graça cumprimenta o Visconde do Rio Branco, e comunica que estará esta tarde às suas ordens, em casa, às 6 e ½ horas, desejando vê-lo…’. Adiante, registra o manuscrito do viajante: ‘ À hora indicada, parti a carro e fui ter à porta de S. Excia... O encontro de todo (direi mesmo conferência) com aquele hábil homem de Estado foi-me tão agradável, quanto honroso e delicado o acolhimento que me fez ’. A conversa, relatada minuciosamente no Diário, girou sobre a estratégia das obras ferroviárias no sul do país e de fortificações nas zonas fronteiriças, para colocar o Brasil em posição de resistir vantajosamente à cavalaria dos argentinos, sua arma principal, ‘ se porventura o orgulho ofendido destes senhores, pelo papel secundário que representaram na última guerra, e naufrágio de sua diplomacia no Paraguai, quiser desforrar-se pelas armas ’. E adentrou na política, a incursionar sobre os destinos do Partido Conservador da província” (DINIZ, Carlos Sica. João Simões Lopes Neto: uma biografia. Porto Alegre: AGE, 2003, p. 31). 105 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 238-241. Anos depois, o governo central retirou parte dos investimentos prometidos e a Escola passou para a administração municipal, tendo sua primeira turma de formando em 1895. Como demonstrei em outra pesquisa, o mesmo ocorria quando Osório era aclamado pela imprensa e pelos eleitores pelas conquistas políticas que conseguia. 106 Em janeiro de 1861, o charqueador Domingos José de Almeida, liberal, escreveu ao charqueador Joaquim José de Assumpção, conservador, indagando: “Não querendo nutrir a mais leve suspeita contra a moralidade de alguém, (…) lhe rogo o obséquio de dizer -me se o ouro derramado com tanta profusão para as eleições últimas 446
gastavam seu tempo indicando as candidaturas para outros charqueadores e fazendeiros. Seu poder não deve ser desprezado, pois eles eram capazes de acabar com as carreiras de políticos jovens e até mesmo de homens experiente e poderosos. Em 1860, por exemplo, o jovem deputado Félix da Cunha elegeu-se com o apoio de Osório e outros estancieiros e charqueadores. Tendo assumido a cadeira na Câmara dos deputados, ele deixou de responder as muitas cartas dos mesmos proprietários que o elegeram. Descontentes, estes escreveram para Osório reclamando do representante e não voltaram mais a elegê-lo.107 Em 1873, nem mesmo o Visconde de Mauá resistiu a pressão política do eleitorado. Acostumado a receber o apoio dos charqueadores pelotenses108 , nesta época ele desagradou os líderes liberais riograndenses (por aproximar-se demais do Gabinete Rio Branco) e os charqueadores (por apoiar a Lei do Ventre Livre). Silveira Martins reuniu oposição ferrenha a Mauá e convocou o eleitorado da província para decidir-se entre ambos. O banqueiro foi derrotado e teve que abandonar o mandato.109 Na Corte, os estadistas mais bem preparados sabiam muito bem com quem podiam contar tanto em Pelotas quanto em outras localidade do Rio Grande do Sul, por meio de uma cadeia de intermediários e dos próprios mediadores rio-grandenses que orbitavam o parlamento geral. Em 1872, o próprio Visconde de Rio Branco, chefe do Gabinete conservador que permaneceu por 4 anos no poder, escreveu para o Visconde da Graça pedindo que o irmão deste charqueador, o Dr. Ildefonso, se candidata-se à Câmara. Rio 110 Branco também pediu para que Graça escrevesse a outros estancieiros solicitando o mesmo.
Isto demonstra o respaldo e o prestígio que Graça possuía na Corte e ajuda a entender a segurança com que o mesmo se movia naqueles espaços de poder. Um outro exemplo pode ser dado na missiva que Silveira Martinsenviou a Osório em 1865. “Aqui me acho em Pelotas (…) falta aqui V. Ex. para ditar a lei, mas na sua falta cada um vai fazendo o que pode. Fui ao Rio; falei com os nossos amigos, e a grande conveniência é mandar liberais à Câmara; eu
fora fornecido pelo Governo ou por quem” (Anais do AHRS, Carta de Domingos J. de Almeida para J. J. de Assumpção, 19.01.1861. CV-759). 107 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 108 Em setembro de 1860, por exemplo, Domingos escreveu para o estancieiro e oficial da Guarda Nacional David Canabarro pedindo votos par a Mauá: “Reiterando meu pedido para que V. S. com seus numerosos amigos se empenhem na reeleição do Barão de Mauá de Deputado à Assembléia Geral Legislativa pelo 3º círculo [além de] meu parente e amigo o Dr. Joaquim José Afonso Alves, que na criação do grande mercado e do excelente asilo para as órfãs desgraçadas desta cidade (…) há demonstrado ter compreendido as necessidades da Província (…)” (Anais do AHRS, Carta de Domingos Almeida para David Canabarro, 06.09.1860, v. 3, CV-731). 109 DORATIOTO, Francisco. General Osório. São Paulo: Cia das Letras, 2008. 110 Carta de João Simões Lopes. Pelotas, 23.06.1872. Arquivo do Barão de São Borja. Lata 450, pasta 9, carta 6 – IHGB. 447
111 conto quase infalível o meu triunfo, mas V. Ex. sabe que nesses negócios não há certeza”.
Este trecho evidencia que, preocupado com sua a carreira, o jovem Gaspar foi até a Corte buscar informar-se sobre a conjuntura política e as possibilidades de se eleger. Além disso, ele reconhecia que Osório era quem colocava ordem no Partido Liberal de Pelotas. As clivagens faccionais muitas vezes oscilavam e os inimigos de ontem podiam ser os melhores amigos de amanhã. O mais certo em se tratando da elite charqueadora pelotense é que os mesmos eram monarquistas convictos. Ao contrário de outras elites brasileiras que aderiram ao republicanismo, como os cafeicultores paulistas e muitas famílias de estancieiros do Rio Grande do Sul, por exemplo112 , a listagem dos membros do clube republicano de Pelotas, que até 1889 contava com 96 membros, possuía somente um charqueador. 113 Defendendo a escravidão e a monarquia, mantendo a ordem social local, ajudando a financiar as guerras na qual o Brasil participou e as eleições que garantiam as maiorias parlamentares dos gabinetes que apoiavam, eles podiam se considerar um sustentáculo do Império e da escravidão na fronteira sul.
10.3 O IMPÉRIO DOS MEDIADORES : UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DA CONSTRUÇÃO DO ESTADO IMPERIAL E DO FUNCIONAMENTO DO SISTEMA POLÍTICO MONÁRQUICO Depois de tudo o que foi visto ao longo dos capítulos encerro esta tese tecendo algumas considerações acerca da atuação da elite charqueadora e do papel das elites regionais no processo de formação do Estado Imperial. Apesar da notável disseminação da cultura europeia em Pelotas na segunda metade do século XIX, é necessário analisar as primeiras décadas do oitocentos, pois traços daquela difusão já eram visíveis naquela época e é possível considerar que a elite da elite charqueadora analisada anteriormente era herdeira dos atos e modelos de ação da primeira geração de charqueadores. Uma das muitas maneiras de se medir o grau de desenvolvimento social e cultural de uma localidade no Brasil oitocentista pode ser alcançada na análise dos relatos dos próprios estrangeiros que, vindos de países por onde a Revolução Industrial e a Francesa já havia 111 112 113
Carta de Silveira Martins a Manoel Osório, 09.09.1865. OSÓRIO, Fernando. Op. cit. 2000, v. 1, p. 137. SACCOL, Tassiana. Op. cit. OSÓRIO, Fernando. Op. cit., v. 1, p. 189-191. 448
afetado os costumes e padrões de vida das elites, ofereceram as suas impressões. Mesmo que repleto de preconceitos e vícios trazidos dos seus lugares de srcem, o seu olhar pode servir como um termômetro da “civilidade” que osmesmos procuravam na América, ou seja, em que espaços urbanos eles sentiam-se mais à vontade, fazendo-os lembrar do seu cotidiano na Europa. Para começar, pode-se dar um bom exemplo através do mercenário alemão Carl Seidler, que esteve em Pelotas no ano de 1827. Segundo Magalhães, Seidler se entusiasmara com o grande contingente de europeus que encontrou na localidade, considerando “que certamente por influência do seu dinheiro e de sua cultura” contribuíam para que houvesse ali “mais civilização e mais gosto pela vida social do que nas outras regiões”. Seidler gostou muito das mulheres espanholas, “que tocam piano, falam francês, dançam bem e permitem até 114 um galanteio de um cavalheiro, em determinadas circunstâncias”.
Como notou Magalhães, referências semelhantes foram comuns mesmo antes de Pelotas tornar-se vila. O bispo Coutinho, visitador da freguesia em 1815, observou na igreja “um grande concurso de homens e mulheres, vestidos com riqueza e luxo”.Um ano depois, o conde português Francisco d’Azeredo, após passar com seu batalhão por Pelotas, deixou registrado a “abundância” e os “bons costumes”, destacando que “a ociosidade é partilhada 115
por todos os brancos”. Saint-Hilaire, por sua vez, considerou que “não se vê em São Francisco de Paula uma palhoça sequer e tudo aqui anuncia abastança”. 116 Provavelmente, este estilo de vida era compartilhado por outras famílias de elite no Rio Grande do Sul. Em Pelotas, os comerciantes-charqueadores estudados nos capítulos 2 e 3 eram os que mais se destacavam nos relatos dos viajantes.117 Além da considerável fortuna para a época, sua conexão com o universo mercantil marítimo os colocavam a par das diversas inovações provenientes da Europa, assim como dos seus artigos de luxo. Conforme Magalhães, os charqueadores que possuíam agentes mercantis espalhados pelos portos marítimos para os quais os couros e o charque eram remetidos mandavam trazer artigos de luxo e novidades nas viagens de volta.118 Analisando os inventários post-mortem 114
MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 138-139. Após marchar pelo interior do Rio Grande do Sul durante dias, Seidler esboçou todo o seu contentamento ao avistar novamente Pelotas: “Em poucas horas alcancei o meu objetivo; a bela cidadezinha estava diante de mim, como um faisão dourado na bandeira de prata do rei. Diante da casa dum negociante inglês conhecido apeei e, poucos minutos depois, do balcão da casa avistei de coração contente o lugar onde outrora vivera dias felizes” (SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1976, p. 199). 115 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit. 116 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul.Brasília: Senado Federal, 2002, p. 130. 117 Saint-Hilaire, por exemplo, destacou Antônio Francisco dos Anjos, Antônio Soares de Paiva, Mateus da Cunha Teles e Antônio José Gonçalves Chaves (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit.). 118 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 137. 449
dos mesmos e pesquisando suas vidas isto fica bastante perceptível. Domingos de Castro Antiqueira, que era um típico comerciante-charqueador com conexões marítimas diversas, possuía, entre seus muitos bens, “uma sege nova de quatro cavalos vinda de Londres com seus pertences e arreios, freios, fivelas de prata, e mesmo com vários enfeites”.119 No interior do seu sobrado, o luxo dos móveis fica evidente na prataria que ele e sua esposa ostentavam e que devia ser utilizada na recepção de visitantes de prestígio. Um deles foi o Imperador D. Pedro II, que esteve em Pelotas no ano de 1846, hospedando-se em sua casa. Antiqueira já era conhecido da Família Real, pois havia recebido o título de Barão de Jaguari por ocasião de seu empenho financeiro na Guerra da Cisplatina (1825-1828). Depois desta visita, D. Pedro II o fez Visconde.120 Antiqueira, neto de índios, foi o primeiro charqueador-barão de Pelotas e, assim como a conduta de defensor ferrenho na monarquia, o seu estilo de vida deve ter servido de modelo para outros que tenham almejado atingir este mesmo status. Foi por conta de homens como Antiqueira que Nicolau Dreys deixou registrado sobre Pelotas: Eles quiseram que o lugar prosperasse, e o lugar prosperou; cada um deles tem ali sua casa urbana; e quando, nos domingos e dias santos, a população das charqueadas ajunta-se na cidade para assistir ao serviço divino (...) é difícil fazer-se ideia do ar de vida e de opulência que respira então a cidade de Pelotas. (...): a par do carro popular, tosca testemunha da antiga indústria local, anda de o ligeiro carrinho de construção europeia, como também entre os cavalos arreados prata, luxo especial dos homens do país, aparecem ginetes ricamente ajaezados com selins bordados por mãos inglesas e montados por senhoras que não cedem em elegância e boas maneiras às mais graciosas parisienses.121
Analisando os inventários de outros charqueadores da época é possível verificar um mobiliário que apresentava certo luxo e que confirma a impreensão dos viajantes. Além de objetos de ouro e de prata, jóias, pianos, relógios e móveis de jacarandá, um ponto a ser destacado era a valorização que alguns deles davam às letras, algo verificável por meio da presença de livros em alguns inventários. Um charqueador como João Nunes Batista (que possuía seu estabelecimento na Estância do Pavão, ou seja, muito longe da cidade) possuía, em 1827, além dos talheres de prata, aparelhos de chá, cama de jacarandá e quadros decorando a sala de sua casa, uma estante para livros na qual podia se ver 37 volumes escritos em francês e 2 de direito mercantil. A biblioteca do charqueador Ignácio José Bernardes era mais variada e nela podia se encontrar dezenas de exemplares, com destaque para os livros de 119
Inventário de Maria Joaquina de Castro, n. 74, m. 3, Rio Grande, 1º cartório do cível, 1840 (APERS). Ele também possuía uma outra sege para dois cavalos e um “carrinho de bom gosto”. 120 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 98. 121 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande do Sul.Porto Alegre: IEL, 1961. 450
Medicina,
os religiosos, dicionários e exemplares diversos em francês e também em
espanhol. Entre os mesmos havia uma “História do Império da Rússia” e um “Vida de Bonaparte”. O charqueador Joaquim José da Cruz Secco, que teve os bens de se u casal inventariados em 1828, também apresentou muita prataria, móveis importados, aparelhos de chá, um piano forte e 77 chícaras e 10 dúzias de pratos da Índia. Entre os seus livros havia 122 uma “História de Portugal”, uma “História Sagrada” e uma “Recriação Filosófica”.
Secco foi sogro de Antônio José Gonçalves Chaves e talvez nenhum charqueador tenha o excedido em conhecimento e cultura. Como já foi dito anteriormente, Saint Hilaire impressionou-se com o mesmo considerando-o “um homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem”, em suma, “um dos homens mais esclarecidos da região”.123 Leitor de Adam Smith, Chaves expôs todas as suas ideias sobre política e economia num livro que escreveu entre os anos 1817 e 1822.124 O principal sócio de chaves também era bastante instruído. O charqueador Domingos José de Almeida, quando ministro da República Rio-grandense, possuía um gabinete de leitura com mais de 800 livros.125 Numa das cartas escritas para a sua esposa na época da Guerra, Domingos pediu que ela lhe enviasse os livros “Economia Política”, “Contrato Social”, “Beccaria ou Tratado de 126
Delitos e Penas” e as obras de Telinho Elípio. O investimento na educação dos filhos também foi algo que os charqueadores da primeira geração, notadamente a elite dentro da elite, já praticava. Tanto Secco, quanto Chaves e Domingos enviaram seus filhos para estudar Direito em São Paulo. Contudo, é importante que se diga que tudo isto foi possível por apresentar uma conjuntura favorecida pelos acontecimentos do ano de 1808. A vinda da Família Real para o Brasil e a instalação da Corte dentro da própria América portuguesa tornou o Rio de Janeiro um centro especial de representação política e difusão cultural. 127 Principal parceiro comercial 122
Inventário de João Nunes Batista, n. 75, m. 1, 1823, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS); Inventário de Inácio José Bernardes, n. 217, m. 15, 1838, cartório de órfãos e provedoria, Pelotas (APERS) ; Inventário 123
de Teresa Angélica de Sá, n. 126, m. 10, cartório de órfãos e proveroria, Pelotas, 1828 (APERS). SAINT-HILAIRE O. Op. cit., p. 103. CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre, Cia. União de Seguros Gerais, 1978, p. 53-77. 125 MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 128. 126 Anais do AHRS, carta de 16.10.1835, CV-178, v. II, 1978. Sua liderança como propagandista da revolução via imprensa foi marcante (MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: família, política e negócios do casal Domingos José de Almeida e Bernardina Rodrigues Barcellos (Rio Grande de São Pedro, Século XIX). Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2009). 127 Ver, por exemplo, MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; ARAÚJO, Maria L. Vieiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do oitocentos. São Paulo: Hucitec, 2006. 124
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do Rio Grande do Sul, não é difícil perceber que sua influência política, econômica e cultural se fez presente entre as elites da província desde essa época. 128 No entanto, este não foi o único fenômeno que favoreceu o desenvolvimento sociocultural das cidades litorâneas da época. A abertura dos portos às nações estrangeiras, evento ocorrido naquele mesmo ano de 1808, proporcionou a entrada de muitos negociantes europeus e norte-americanos no espaço portuário e urbano das mesmas cidades. Por conta disto não somente as mercadorias, como as pessoas, as ideias, os novos gostos e as distintas visões de mundo foram lentamente influindo na vida dos colonos que habitavam tais espaços urbanos.129 No caso do Rio Grande do Sul, a interação sociocultural também se dava com Montevidéu, cuja presença de comerciantes estrangeiros diversos, com seus costumes e hábitos europeus, já eram bem fortes. Como observou Fabrício Prado, em 1810, a capital da Banda Oriental já possuía o seu teatro servindo de espaço de sociabilidade à elite local, composta de burocratas e comerciantes que realizavam negócios com Rio Grande e o Rio de Janeiro, por exemplo. 130 Como enfatizei no capítulo 2, as trocas comerciais e culturais entre ambos os espaços econômicos eram bastante significativas.131 Além disso, a circulação de comerciantes e burocratas possibilitavam tais trocas de uma forma que nenhuma localidade litorânea estava isolada das modas de sua época, sendo influenciada tanto pelo Rio de Janeiro e por Lisboa, como por outros países que agora mantinham contato mais direto com as mais diversas capitanias brasileiras. 132 Portanto, ao pensarmos numa colônia em movimento é possível considerar que a América portuguesa constituía-se num território na qual havia uma profunda interação entre comerciantes e burocratas com as elites coloniais nas suas próprias capitanias e de umas com 128
Ver, por exemplo, COMISSOLLI, Adriano. A serviço de Sua Majestade: administração, elite e poderes no extremo meridional brasileiro (1808 c. – 1831 c.). Tese de Doutorado em História, PPGHIS-UFRJ, 2011. 129 O comerciante inglês John Luccock, que esteve em Rio Grande em 1810, deixou anotado o impacto da abertura dos portos, pois os produtos ingleses já vinham substituindo os portugueses de forma notável, devido aos preços mais atrativos e o “gosto pela exibição” que vinha crescendo entre as pessoas “pois que as possibilidades que a riqueza concedia se escoavam por vários canais” (LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 122). MALERBA, Jurandir. Op. cit.; COUTO, Jorge. Rio de Janeiro: capital do Império português (1808-1821). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. 130 PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial i dentity in Bourbon Río de la Plata. Diss. (Ph.D.) - Emory University, 2009. 131 MIRANDA, Márcia E. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Editora Hucitec, 2009. Nos anos 1820, quando J. B. Debret pintou um casal de charqueadores, o artista deixou registrado: “Pode-se reconhecer na vestimenta do cavaleiro o manto espanhol adotado pelo rico habitante do Rio Grande, cujas terras confinam com o território de Montevidéu. Os estribos de madeira enfeitados de prata, bem como o resto do arreio do seu cavalo, são, ao contrário, de formas portuguesas importadas no Brasil” (DEBRET, Jean-Batiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: USP, v. 1, 1972, p. 332). 132 PRADO, Fabrício. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit. 452
as outras.133 Isto ajuda a relativizar uma ideia de que a Corte estabelecida no Rio de Janeiro em 1808 concentrava uma espécie de poder civilizador que foi lentamente sendo distribuído às demais regiões da América luso-brasileira que sofriam de um isolamento cultural intransponível. Considerando o piano como um símbolo deste modelo de civilização, Luís Felipe de Alencastro afirmou que, em meados do século XIX, o mesmo só havia entrado em poucos sobrados do Rio de Janeiro, de Recife e Salvador, sendo praticamente desconhecido nas outras partes do Império.134 Ora, pesquisas recentes demonstram que este instrumento musical já podia ser encontrado em muitas casas distantes destas três cidades e bem antes do meado do oitocentos. Pesquisando São Paulo, por exemplo, Maria Viveiros de Araújo localizou não apenas bibliotecas com muitos livros, como pianos entre os bens inventariados da elite paulista entre 1800 e 1850.135 No Rio Grande do Sul, Adriano Comissoli identificou os mesmos itens entre as elites administrativas e políticas da região nas primeiras décadas do oitocentos. O autor demonstrou como a presença dos pianos eram “indicativos dabusca por refinamento aliado a um entretenimento de alta sociedade”. Além disso, “a recorrência dos aparelhos de louça para chá indicam igualmente a disseminação de hábitos considerados refinados numa sociedade que se complexificava e cuja elite dialogava com os pares de outras praças”. Neste sentido, “os tempos em que a sociedade sul rio-grandense era classificada de ‘rústica e agreste’ haviam sido ultrapassados pela elite oitocentista”. 136 O simples fato dos primeiros pianos terem chegado à pequena Desterro – capital de Santa Catarina137 – já no início do século XIX, fazem supor que em outras cidades litorâneas mais ricas e com elites mais bem estabelecidas não apenas o acesso aos pianos como a outros artigos importados, assim como livros e novas ideias estivessem sendo acessadas por 133
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial (Sudeste, século XVIII). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; FRAGOSO, João. Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do Império português (séculos XVII e XIX). História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, 2002, p. 99-127; OSÓRIO, Helen. O império português no sul da fronteira: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: UFRGS, 2007; GIL, Tiago Luís. Coisas do caminho: tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009; VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. De Família, Charque e Inquisição se fez a trajetória dos Pinto Martins (1749-1824). In: Revista Anos 90. Porto Alegre, v. 16. N. 30, dez, 2009, p. 187-214. 134 ALENCASTRO, Luís Felipe de. História da vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, L. F. (ed.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, v. 2, 1997, p. 45. 135 ARAÚJO, Maria L. Viveiros. Op. cit., 2006. É importante que se diga que os inventários retratam o patrimônio dos indivídos em determinada época de sua vida e não são suficientes para dar conta da posse dos pianos, livros e demais artigos que uma pessoa tinha contato ao longo de toda a sua vida. 136 COMISSOLI, Adriano. A serviço de sua maestade: administração, elite e poderes no extremo meridional brasileiro (c.1808 - c.1831). Tese de Doutorado em História. PPGHIS-UFRJ, 2011, p. 227. 137 HOLLER, Marcos T.; SANTOLIN, Roberta F.O piano em Desterro no século XIX. In: D.A. Pesquisa. Florianópolis: UDESC, v. 3, 2009, p. 1-8. 453
intermédio de comerciantes, burocratas e estrangeiros de diferentes países que os conectavam com o mundo exterior. Nas suas memórias, o magistrado Albino Barbosa de Oliveira deixou escrito a respeito de sua permanência no Maranhão (onde serviu como juiz de direito na década de 1840), a existência de um teatro e dos bailes e soirées que frequentava na casa de muitas famílias de elite, onde conheceu as filhas da Dona Lourença Leal, sendo que uma delas 138 “tocava muito bem piano, o que era grande recurso para mim, ávido de distrações”.
Com relação aos pianos, teatros e bailes, os próprios viajantes deixaram relatos importantes. Em Porto Alegre, no início da década de 1820, Saint-Hilaire mencionou: “São freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas senhoras tocam, com maestria, o violão e o piano, instrumento este desconhecido no interior, por causa das dificuldades de seu transporte”. Mas se no interior das províncias os pianos podiam demorar para chegar, nas cidades litorâneos ele pareceu ser do usufruto de muitas famílias das elites. No sul do Brasil, a interação social com os hispano-americanos e estrangeiros devia estimular mais ainda o gosto por artigos de luxo, pianos e o contato com visões de mundo distintas. Em Buenos Aires, por exemplo, Arsene Isabelle deixou escrito no início dos anos 1830: “É preciso que a família seja muito pobre para não ter o seu piano. As buenairenses como as montevideanas têm a mesma inclinação das italianas pela música mas não se dão ao trabalho de estudar a música escrita (falando de um modo geral)”.139 Passando por Pelotas, nos anos 1820, Carl Seidler recomendou aos viajantes que “tocassem algum instrumento, sobretudo opiano, mesmo que pouco, pois que o piano se encontrava em todas as boas casas da freguesia de São Francisco de Paula”, antigo nome da cidade de Pelotas.140 Portanto, a Corte foi um importante espaço gravitacional de diversos projetos políticos e interações culturais, mas seria um equívoco pensar nela como monopólio de transmissão e formulação de tais projetos e de difusão cultural. Assim como Lisboa não havia concentrado toda a vida política e cultural dos súditos do Império português, a Corte do Rio de Janeiro não apresentou tal característica. Um problema deste tipo de interpretação é que ela desconsidera completamente as trocas regionais (Belém, São Luís, Recife, Salvador entre si, com Lisboa e as cidades do interior; Porto Alegre, Pelotas, Montevidéu, Buenos Aires, entre si e com suas 138
OLIVEIRA, Albino José B. Memórias de um magistrado do Império. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1943, p. 165-165. 139 ISABELLE, Arsene. Op. cit., p. 128-129. 140 NOGUEIRA, Isabel; SOUSA, Márcio. Saraus. In: LONER, Beatriz; GILL, Lorena; MAGALHÃES, Mário O. Op. cit., p. 230-231. Conforme Dalila Müller, o desenvolvimento dos espaços de sociabilidade em Pelotas tiveram influência da Corte, da França, da Inglaterra, de Buenos Aires e de Montevideu (MÜLLER, Dalila. Op. cit., p. 23-24). 454
respectivas hinterlands, por exemplo), mas, principalmente, as interações diretas dos seus habitantes com os estrangeiros que cada vez mais circulavam pelas cidades brasileiras, além da histórica relação política e administrativa das mesmas com Lisboa e Coimbra, por intermédio dos burocratas e bacharéis. Os filhos estudantes, como já foi dito, eram importantes intermediários neste sentido, assim como os genros comerciantes. Como demonstrou José Murilo de Carvalho, a influência de Coimbra foi notável entre as elites políticas luso-brasileiras tanto no período colonial quanto nas primeiras décadas do Império.141 Além de contribuir com a ilustração dos filhos das elites coloniais os bacharéis introduziam novos costumes, hábitos, vocabulário político e visões de mundo vindos da Europa. Um exemplo envolvendo a região de Pelotas na passagem do século XVIII para o XIX pode ser dado na análise da família do alferes Felix da Costa Furtado de Mendonça. Natural do Rio de Janeiro, o militar casou-se em 1773 com Ana Josefa Pereira (natural da Colônia do Sacramento) estabelecendo-se em Pelotas, onde tornou-se proprietário de uma grande estância. O casal teve três filhos homens e todos estudaram em Coimbra. Enquanto Hipólito José da Costa Pereira, o mais conhecido deles, seguiu carreira científica, diplomática e jornalística, Felício J. da Costa Pereira tornou-se padre (e primeiro vigário de Pelotas) e José Saturnino da Costa Pereira seguiu carreira militar, vindo a ser deputado brasileiro nas Cortes de Lisboa, ministro da Guerra no Regresso, em 1837, e senador do Império do Brasil (1828-1852). Portanto, enquanto os dois irmãos foram agentes diretos na alta política imperial, influindo na independência do Brasil e no processo de construção do Estado brasileiro, o outro atuou localmente, sedimentando o poder
local da família junto às grandes propriedades da mesma. Unindo-se à facção encabeçada pelo Capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos (charqueador analisado no capítulo 3), o Padre Felício teve papel importante na negociação com a Corte para que São Francisco de Paula fosse elevada à condição de freguesia, apoiando a construção da igreja nas terras do Capitão dos Anjos. Enquanto este era muito bem relacionado com os comerciantes de grosso trato do Rio de Janeiro, o Padre Felício tinha nas autoridades religiosas e políticas da Corte, dentre os quais o seu irmão José, os seus grandes trunfos.142 Portanto, estes exemplos podem ser multiplicados caso se estude o perfil regional dos estudantes brasileiros formados em Coimbra. Analisando uma listagem que reunia 1.242 alunos matriculados entre 1772 e 1872, Carvalho observou que 26,8% eram provenientes do 141
CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., 2003. Sobre esta família, ver GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. Pelotas: UFPel, 2001. 142
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Rio de Janeiro, 25,9% da Bahia, 13,6% de Minas Gerais, 11,5% de Pernambuco, 8,7% do Maranhão e 3,7% era o índice idêntico alcançado por Pará e São Paulo. 143 Neste sentido, é difícil pensar que famílias com elites muito bem constituídas e com conexões familiares em outros pontos do Império português também não compartilhassem de signos de cultura do mundo europeu por intermédio de alguns parentes próximos que circulavam por aqueles espaços, estabelecendo contatos comerciais e alianças matrimoniais com outras elites.144 Esta talvez tenha se constituído numa das heranças da cultura política do Império português e que 145 os estadistas da jovem nação independente trataram de reproduzir. A circulação de magistrados, burocratas e presidentes de província e a criação de somente duas academias de Direito (em São Paulo e Olinda/Recife) obrigavam os filhos das elites regionais, assim como o membros das elites políticas e administrativas do Império, a circularem por todo o território 146 nacional favorecendo um sentimento de pertencimento a uma unidade política maior.
Esta constatação é de grande importância para a compreensão tanto do processo de Independência quanto da construção do Estado Imperial, uma vez que, se o arranjo institucional apresentou grandes rupturas e o vocabulário político sofreu alterações significativas entre 1808 e 1841, por exemplo, boa parte das famílias e dos agentes envolvidos nos mesmos processos históricos continuaram influindo na vida política brasileira. Conforme Katia Mattoso, dos 28 baianos que exerceram o cargo vitalício de senador entre 1826 e 1889, 21 (75%) eram magistrados, sendo que 15 haviam estudado em Coimbra e “pertenciam ao pessoal administrativo e político do Antigo Regime”. Eles haviam “servido ao Estado português, sobretudo como magistrados e, em seguida, a Dom Pedro I, que os brasileiros sempre consideraram como um monarca português”. Após 1822, “a maior parte deles integrou o círculo dos altos funcionários que assumiram responsabilidades ministeriais no
143
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 73. Sobre esta mobilidade e diversidade de espaços nas quais os membros das famílias de elite regionais circulavam, ver, por exemplo, BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema 144
sucessório entre senhores de engenho do oeste paulista (1765-1855). Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997; ALMEIDA, Carla M. C. de. Uma nobreza da terra com projeto imperial: Maximiliano de Oliveira Leite e seus aparentados. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla; SAMPAIO, Antônio C. J. Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 121-193; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit. 145 CARVALHO, José Murilo. Op. cit.; Sobre a cultura política do Antigo Regime ver BICALHO, Maria Fernanda. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense, n. 2, nov. 2005, p. 21-34. 146 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Br asil colonial: a Suprema Corte da B ahia e seus juízes. São Paulo: Perspectiva, 1979; MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM Pedro; CUNHA, Mafalda (Org.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: ICS, 2005; CARVALHO, José Murilo. Op. cit. 456
novo Estado”.147 Estudando os conselheiros de Estado, Maria Fernanda Martins percebeu algo semelhante, ou seja, os homens que ocuparam tal cargo formavam uma elite política com profundas raízes nas famílias conquistadoras estabelecidas no poder desde os tempos coloniais.148 No Rio Grande do Sul, Adriano Comissoli percebeu que os representantes políticos da Província nos primeiros anos após a Independência eram os mesmos agentes administrativos do período joanino. Tal permanência, mesmo num contexto de transformações institucionais importantes e que estabeleceram um arranjo institucional de ordem liberal, favoreceu a identificação daquela elite com o governo do Rio de Janeiro e a oposição da maioria dos mesmos à Revolta de 1835. Conforme Comissoli, eles“deviam muito à velha relação com o centro e sabiam que dele dependia em larga escala seu reconhecimento como a camada superior da sociedade”.149 Da circulação de ideias e do papel marcante das elites coloniais e locais no interior dos impérios marítimos americanos e, posteriormente, dos novos estados independentes, derivava um cenário extremamente rico em projetos políticos (tanto regionais como nacionais e transnacionais) e que marcou o processo de independência das colônias americanas e as primeiras décadas que se sucederam aos mesmos acontecimentos.150 Além disso, a historiografia nacional e internacional tem aceito amplamente o papel das elites coloniais no governo dos seus povos e a existência denobrezas locais nos territórios americanos.151
147
MATTOSO, Kátia de Q. Bahia: Século XIX (Uma Província no Império).Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 281. Conforme José Murilo de Carvalho, os magistrados formados em Coimbra, enquanto membros da elite política imperial, constituíram-se em agentes que possibilitaram um processo de transição sem grandes rupturas para o período pós-independência (CARVALHO, José M. Op. cit.). 148 MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII e XIX. In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla & SAMPAIO, Antônio C. J. Op. cit., p. 403-435. Neste sentido, ver também FRAGOSO, João. “Elites econômicas” em finais do século XVIII: mercado e política no centro -sul da América Lusa. Notas de uma pesquisa. In: JANCSÓ, István (Org.). Independância: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 849-880. 149 COMISSOLI, Adriano. Op. cit., p. 361. Sobre as rupturas institucionais do período, assim como a relação das elites rio-grandenses com o governo central ver MIRANDA, Márcia E. Op. cit. 150 Esta tese não se propõe a examiná-as. Importantes contribuições sobre a temática podem ser vistas em JANCSÓ, István. Op. cit.; JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos
para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias . São Paulo: Ed. SENAC, 2000; DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: srcens no federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. 151 Para uma revisão historiográfica atual ver FRAGOSO, João. Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio. História (São Paulo), v. 31, n. 2, 2012, p. 106-145. Ver também MONTEIRO, Nuno G.; CARDIM, Pedro; CUNHA, Mafalda Soares. Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005; FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio C. J. (Org.). Monarquia pluricontinental e agovernança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII.Rio de Janeiro: Mauad X, 2012; GREENE, Jack. Negociated Authorities: essays in colonial political and constitutional history. Charlottesville: University Press of Virginia, 1994; RUSSELWOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro. Revista Brasileira de História , v. 18, n. 36, 457
No caso do sul do Brasil, os comerciantes e charqueadores tiveram papel proeminente neste processo.152 Desde o início do século XIX muitos deles atuaram em sintonia com o projeto joanino para com a região platina apoiando as guerras na fronteira e dispensando seus recursos para o financiamento das mesmas. As requisições de comendas honoríficas fornecem diversas informações a respeito disto. No início do século XIX, foi possível verificar que o sargento-mor de ordenanças Matheus da Cunha Telles fez o pedido de uma comenda, tendo sido informado sobre o mesmo que na Guerra de 1801, “sendo proprietário de embarcações franqueou gêneros para a esquadra subtil que defendia o porto. Na de 1810 a 1812, aumentou as suas ofertas e dádivas economizando a Real Fazenda somas avultadas”. Nas campanhas militares sequentes “abriu os seus cofres de tal maneira que estagnou o seu comércio, pois tem assistido e pago todas as letras sacadas sobre ele pelo General Lecor” para soldos e 153 cavalos, “constando ter despendido mais de cem contos de réis”. Num longo documento, o
capitão de cavalaria José Vieira da Cunha, também charqueador, foi referenciado como tento auxiliado com cavalos, homens e dinheiro nas guerras, conduzindo prisioneiros espanhóis, colocando suas “gentes e bois” da charqueada e das fazendas em diversos trabalhos e fardando os soldados.154 Portanto, não bastava apenas sustentar a presença da monarquia escravista na fronteira.155 Os charqueadores desejavam o reconhecimento da Corte conferido pela concessão das comendas e títulos honoríficos. Assim sendo, as guerras e o dinheiro empregado nas mesmas foram boas formas de multiplicar o recebimento destas honrarias. Conforme Saint-Hilaire, que deixou um relato a respeito dos rio-grandenses que atuavam no comércio marítimo nesta época e como os mesmos esforçavam-se para obter tais comendas, “fora do Rio de Janeiro, não vi, em parte alguma, um número tão grande de homens 156 condecorados; isso nada mais é do que uma das provas da riqueza do lugar”. Entretanto, o
apoio dos charqueadores às campanhas militares ainda marcaria boa parte do oitocentos. Nos 1998; STUMPF, Roberta G. Cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes: as solicitações de hábitos das ordens militares nas minas setecentistas . Brasília: Tese de doutorado, PPPGHIS - UNB, 2009; PRADO, Fabrício. 152
Op. cit. Para uma análise conjuntural deste período ver MIRANDA, Márcia E. Op. cit. Relação dos comerciantes e grandes proprietários residentes na Vila do Rio Grande que pretendem condecorações, s/d. Coleção Rio Grande do Sul, Manuscritos (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). No mesmo documento, o Sargento-mor José Rodrigues Barcellos, també charqueador, foi descrito como um “dos maiores proprietários da fronteira do Rio Grande” e de boa conduta quando no comando dos oficiais militares. 154 Requerimento de Alexandre Vieira da Cunha de 09.10.1808, C608-17, Documentos Biográficos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 155 Neste sentido, ver também ALADREN, Gabriel. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e Guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Tese de Doutorado. PPG-História UFF, 2012. 156 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. cit., p. 96. O viajante referia-se à comenda da Ordem de Cristo. 153
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anos 1820, as tropas de gado vindas do Estado Oriental, então província da Cisplatina, já haviam se tornado estruturalmente fundamentais para a manutenção dos ritmos de abate da indústria charqueadora pelotense. Daí que o desencadear da Guerra da Cisplatina (1825-1828) despertava o interesse direto dos charqueadores. Não causa surpresa que os mesmos forneceram altos montantes de dinheiro para financiar a campanha militar. Numa listagem elaborada por Márcia E. Miranda, pude verificar que, até 1827, os charqueadores pelotenses doaram em “subscrições voluntárias” quase 170 contos de réis (e isto sem contar os muitos outros proprietários e negociantes listados por freguesia). Os campeões em doações foram Domingos Antiqueira com 40 contos e os irmãos Barcellos, que juntos contribuíram com quase 50 contos.157 Conforme o mesmo documento, os valores doados pelos charqueadores eram muito maiores que os dos indivíduos de outras localidades da província. Com o fim de obter a Ordem Imperial do Cruzeiro, João Francisco Vieira Braga fez um extenso rol dos serviços prestados à Coroa e que demonstram o destino deste dinheiro. Dizia ele que doou 12:600$ para a sustenção da Independência e a Guerra contra Buenos Aires, 10:800$ para o estabelecimento da Colônia de Suíços, 189:415$547 no abastecimento de gêneros comestíveis ao Exército Imperial, “sem que daí158resultasse o menor interesse pecuniário e sim da Nação”, entre muitas outras coisas que fez. Um dos argumentos de Vieira Braga para ser agraciado com as comendas e títulos (que de fato recebeu, vindo a tornar-se Conde de Piratini) era a continuidade dos serviços prestados pelo seu pai (homônimo), que, segundo ele, havia sido comerciante de grosso trato em Rio Grande. Num dos atestados fornecidos pelo Oficial Manoel Marques de Souza acerca dos serviços deste podia se ler: Atesto que o Capitão da 2ª Companhia da Vila do Rio Grande João Francisco Vieira Braga tem sido um vassalo fiel a sua magestade e útil ao Estado, em todas as ocasiões de urgência se tem prestado de boa vontade, como aconteceu na guerra de 1801, aprontando e entregando por empréstimo 8 mil cruzados para o pagamento das tropas, oferecendo gratuitamente os seus iates para o serviço da fortificação e igualmente 30 cavalos para o da fronteira, 1 barril de pólvora, 1 bandeira para o reduto da vila e 100$ para o da fardamento tropassempre (…). Tem igualmente fazendo servido com distinção os cargos Repúblicadas(…) se distinguiu demonstrações e festividades públicas que bem mostravam a sua fidelidade, entre estas tem em primeiro lugar as que fez em atenção a feliz restauração de Pernambuco. Enfim, tem sido um cidadão útil, manejando um grosso comércio e ao mesmo tempo bem digno Pai de família assaz numerosa, mas não lhe tem faltado
157
MIRANDA, Márcia E. Op cit., p. 302-304. Requerimento de João Francisco Vieira Braga de16.01.1840, Documentos Biográficos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 158
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com a educação e princípios de Religião em que bem se distingue (…) Acampamento do Chuí, 20 de agosto de 1818.159
Grosso comércio, guerra contra os espanhóis, fidelidade ao monarca e ao catolicismo. O Capitão Vieira Braga, enquanto membro da elite local, internalizava e reproduzia os pilares que sustentavam a presença do Império marítimo português na América (juntamente com a escravidão africana), educando seus filhos nesta cartilha e auxiliando no governo dos povos. Além disso, ao fazer “demonstrações” e “festividades públicas” em Pelotas e Rio Grande, como a comemoração da restauração pernambucana em 1817, Vieira Braga contribuía para disseminar um sentimento de pertencimento a uma entidade política e territorial que ultrapassava a sua capitania, envolvendo outros súditos reais na América portuguesa e que, a partir de 1808, tinha na Corte do Rio de Janeiro a sua sede.160 A evocação de uma ideia de continuidade familiar e apoio fiel aos monarcas luso-brasileiros realizada pelo Vieira Braga Filho devia compor o ideário de famílias de elite que colocaram-se ao lado da Corte do Rio de Janeiro antes de 1822 e seguiam defendendo o novo Império construído na América. Neste ínterim, a grande derrota na Cisplatina gerou certa frustração entre os empresários escravistas e as insatisfações de ordem política e econômica que marcaram os anos 1830 estiveram entre os principais motivos da Revolta dos Farrapos, em 1835. 161 O movimento foi liderado principalmente pelos estancieiros e alguns poucos charqueadores. Mas isto não foi suficiente para colocar todos ao lado dos rebeldes. Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, a Guerra dos Farrapos esteve longe de se constituir num conflito na qual uma província inteira lutou contra o governo central. A maior parte dos comerciantes marítimos e dos charqueadores, assim como muitos estancieiros, colocaram-se na defesa da legalidade. O charqueador Domingos de Castro Antiqueira, o Barão de Jaguari, apoiou os 159
Idem. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Introdução In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org). Na trama das redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII ”. Rio de 160
Janeiro: 161
Civilização Brasileira, 2010, p. 13. As altas taxas sobre o sal importado no Rio Grande do Sul, a falta de uma política protecionista que tributasse as carnes platinas desembarcadas no Rio de Janeiro e nos portos do nordeste, as secas que assolaram a região da campanha na década de 1830, a cheia do São Gonçalo de 1834, entre outros aspectos, geraram perdas econômicas importantes aos estancieiros e charqueadores. Três meses antes da Revolta Farroupilha, um charqueador escreveu para outro colega queixando-se da “maldita safra” (Carta de Heleodoro Souza para Boaventura Barcellos. Livro Registros Diversos n. 5, Pelotas, APERS). Os descontentamentos de ordem política eram diversos. Importantes líderes militares como Bento Gonçalves da Silva e Bento Manoel Ribeiro estavam insatisfeitos por terem perdido seus postos de comando da fronteira. Os rio-grandenses também queixavam-se da pequena representação na Câmara dos Deputados (tinham 3 representates) e da oposição realizada pelo Presidente da Província da época (LEITMAN, Spencer. Raízes socioeconômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979). 460
legalistas fornecendo duas peças de artilharia munidas dos necessários pertences – armamento que possuía em sua estância. Enquanto isto, o seu parente Manoel Marques de Souza, futuro Conde de Porto Alegre, organizava as tropas. 162 Em março de 1836, os imperiais buscaram mais 2 artilharias das 9 que se encontravam localizadas numa das charqueadas dos irmãos Rodrigues Barcellos. 163 O estancieiro e charqueador João da Silva Tavares, descrito pelo próprio presidente da província como o “campeão da legalidade” defendeu ferozmente a monarquia junto com o seu primo e também charqueador Anibal Antunes Maciel. O charqueador Alexandre Vieira da Cunha, juntamente com seus parentes, recrutou aliados para combater os farrapos. Em Jaguarão, o charqueador João Antônio Lopes também forneceu ajuda. Em Rio Grande, os comerciantes José dos Santos Magano e Porfírio Ferreira Nunes despenderam muito dinheiro, forneceram armamentos e franquearam suas embarcações para reforçar a resistência legalista.164 Um daqueles que mais empenhou-se na defesa da monarquia foi novamente o excharqueador e então comerciante Vieira Braga Filho. Na longa exposição mencionada anteriormente, ele também declarou que no início da Guerra:
Influiu em si contra estava apara que de a Câmara Municipal da cidade de Pelotas se reunissequanto e declarasse sedição 20 de setembro de 1835 e no meio de todos os perigos e dificuldades distribuiu proclamações em sentidos de ordem e defesa do Trono Imperial, gravemente ameaçado pelos revolucionários, contra os quais reuniu gente armada, prontificou peças de artilharia e fez todos os esforços a seu alcance, até que, obrigado pelas circuntâncias, emigrou para esta Corte, desamparando todos os seus bens, que tem sido destruídos, avaliando os danos causados pelos rebeldes em mais de 80:000$ de réis.165
Os proprietários, charqueadores e comerciantes pelotenses e rio-grandinos do lado legalista eram tantos que o farroupilha Domingos José de Almeida acusou ser Pelotas uma “digna colônia de retrógrados”.166 A família de sua própria esposa, os Rodrigues Barcellos, ou mantiveram-se neutros ou do lado legalista, tendo alguns retirado-se para o Rio. Quando os farrapos tomaram Pelotas, muitos charqueadores também migraram para a Corte ou outras 162
MOREIRA, Ângelo. Pelotas na tarca do tempo.Pelotas: s/ed., v. III, p. 65; 69. MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 146. 164 MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 30; 37; 43, 66; José dos Santos Magano, Documentos Biográficos, Coleção Manuscritos (Biblioteca Nacional do RJ). 165 Requerimento de João Francisco Vieira Braga de16.01.1840, Documentos Biográficos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 166 MOREIRA, Ângelo. Op. cit., p. 15. Numa carta de 15.10.1835, Bento Gonçalves da Silva escreveu para o chefe político uruguaio Manoel Oribe comunicando que Pelotas era a cidade rio-grandense onde se concentrava “um punhado de facciosos capitaneados pelo sanguinário Silva Tavares” (Idem, p. 83-84). 163
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localidades, como Montevideu, mas a resistência legalista manteve-se espalhada pela província. A cidade portuária de Rio Grande, que concentrava os comerciantes de grosso trato rio-grandenses e foi o baluarte do conservadorismo regional, nunca foi tomada pelos rebeldes, obrigando-os a tomar o porto de Laguna, em Santa Catarina, para obter uma saída para o mar.167 Neste sentido, quando o Exército imperial, sob o comando de Caxias, contou com maior contingente no Rio Grande do Sul168 , ele veio juntar-se aos legalistas que já estavam resistindo aos farroupilhas durante anos. Portanto, se os legalistas não os tivessem apoiado e sustentado a monarquia, difilmente a guerra teria o desfecho apresentado no final, com os rebeldes visivelmente derrotados cedendo à paz.169 Nas demais províncias revoltosas do período, o papel das suas respectivas elites proprietárias foi fundamental para a contenção dos movimentos sediciosos de caráter mais popular. Na Bahia, no Pará, no Maranhão e em outras regiões, por exemplo, o Império pode contar com as mesmas na manutenção da ordem social e na repressão dos revoltos.170 Esta convergência de interesses entre o governo central e grande parte das elites regionais foi facilitada pela continuidade das mesmas famílias nos espaços de poder locais e provinciais numa relação de apoio à monarquia brasileira que vinha ocorrendo desde a época da Independência. Conforme João Paulo Pimenta e Andréa Slemian o processo de Independência no norte e nordeste do país encontrou importante resistência de alguns setores da sociedade e se não fossem as muitas guerras com o apoio de parte importante das respectivas elites regionais o projeto não teria se consolidado.171 Nas décadas posteriores, os 167 Os farrapos também utilizaram o porto de Montevideu (GUAZZELLI, César A. B. A República Riograndense e a praça de Montevideo (1836-1842). In: HEINZ, Flávio; HERRLEIN JR., Ronaldo. Histórias regionais do Conesul.Santa Cruz: Edunisc, 2003, p. 147-166). 168 Isto aconteceu somente na década de 1840, após a pacificação das outras revoltas regenciais (RIBEIRO, José Iran. “De tão longe para sustentar a honra nacional”: Estado e Nação nas trajetórias dos militares do Exército Imperial brasileiro na Guerra dos Farrapos.Tese de Doutorado. PPGHIS-UFRJ, 2009). 169 A vitória na Farroupilha contou com este tipo de ação e negociação, muito bem demonstrada por José Iran Ribeiro, que, aliás, percebeu como o governo central negociava de forma diferente conforme os interesses, a posição e a situação das elites regionais. Isto se dava exatamente pelo fato de que a vida política, os arranjos familiares, as hierarquias sociais regionais, os recursos materiais e imateriais concentrados, eram distintos em todas as províncias do Império. 170 Na Bahia, por exemplo, verdadeiras mílicias armadas e mantidas por grandes proprietários e senhores de engenhos do Recôncavo ajudaram a garantir não apenas a Independência (1822-1823) como a violenta repressão aos revoltosos da Sabinada (1837-1838) (SOUZA, Paulo Cesar. A Sabinada: a revolta separatista da Bahia (1837). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 61-63). 171 “Valendo-se de extrema violência, o projeto de independência e unidade do Império do Brasil superava o seu primeiro grande desafio. As guerras em torno de adesão, apesar de contarem com a decisiva participação do Rio de Janeiro na contratação de exércitos mercenários estrangeiros e na organização de forças locais, mostraram como aquele projeto conhecia, desde os últimos meses de 1822, significativo alargamento em sua área de influência e aceitação para além das províncias do Centro-Sul. Afinal, os conflitos todos se deram em razão de
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novos arranjos institucionais não se deram no sentido de afastar as mesmas elites regionais da influência política e do poder econômico que elas mantinham, mas ao contrário. Elas foram trazidas para dentro do sistema político monárquico primeiramente nos Conselhos Administrativos e, principalmente, nas Assembléias legislativas provinciais, um espaço de reforço do seu poder regional, criado com o Ato Adicional de 1834. Antes disso, uma parte delas, reunindo notadamente os indivíduos mais influentes, já havia sido eleita para participar das Cortes de Lisboa e das Assembléias Gerais dos primeiros anos do parlamento brasileiro.172 Ao que salve as diferenças regionais e a diversidade de projetos políticos, parte dos seus interesses convergiam com os do Império. A manutenção da monarquia, da escravidão, da unidade territorial e da ordem social local também fazia parte da agenda política da maioria que, por intermédio dos espaços de mediação política abertos após a Independência, vinha participando do governo da nação, exercendo um papel bastante importante no processo de consolidação do Estado Imperial. 173 Portanto, neste aspecto compartilho das ideias propostas por outros historiadores no sentido de que o Império do Brasil resultou mais de uma negociação do governo central (por meio de sua elite política) com as elites regionais, do que uma imposição de um projeto de um grupo minoritário contra as forças centrífugas provinciais.174 Nos últimos anos, uma série de pesquisas vem constribuindo neste mesmo sentido. Realizando recortes regionais distintos, utilizando-se de um leque diverso de fontes documentais, contando com um grande número de novos trabalhos que permitam conhecer melhor a complexidade da história brasileira e das especificidades provinciais no período, estes historiadores colaboraram para que se construa um novo quadro sociopolítico acerca falta e consenso nas demais províncias, decorrente de uma pluralidade de posições de grupos políticos, entre as quais aqueles favoráveis à independência se mostraram, mesmo no Norte-Nordeste, suficientemente consistentes para levar a uma guerra. Em outras palavras, para que o uso da força pudesse ter eficácia na Bahia, no Maranhão e no Pará, era necessário que a ideia do Império do Brasil tivesse considerável respaldo de grupos sociais”. (PIMENTA, João Paulo G.; SLEMIAN, Andréa. O “nascimento político” do Brasil: as srcens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 93-94). 172 Para uma análise deste processo ver DOLHNIKOFF. Miriam. Op. cit.; GOUVÊA, Maria de Fátima. Política provincial na formação da monarquia constitucional brasileira: Rio de Janeiro (1820-1850). Almanack Braziliense. São Paulo, n. 7, mai-2008, p. 119-137. 173 Conforme Dolhnikoff, “tanto a elite paulista como as das demais províncias demonstraram disposição para aderir ao Estado sediado no Rio de Janeiro, desde que encontrassem nele espaço satisfatório para a defesa de seus interesses” (DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit., p. 54). 174 DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; DANTAS, Mônica Duarte. Partidos, liberalismo e poder pessoal: a política no Império do Brasil. In: Almanack Braziliense. São Paulo, n. 10, Nov. 2009, p. 40-47. Numa linha semelhante ver MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit., 2005. Recentemente, ver MARTINS, Maria Fernanda. Das racionalidades da História: o Império do Brasil em perspectiva teórica. Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61. 463
deste tema.175 Apesar de alguns pontos aparentemente discordantes e do uso de matrizes teóricas distintas, estas pesquisas convergem em muitos aspectos. Primeiramente, a maioria dos trabalhos não se reserva mais à análise exclusiva dos discursos oficiais, dos anais parlamentares ou das biografias dos grande estadistas para compreender o mencionado processo histórico. Além destes documentos, estes historiadores debrussaram-se sobre conjuntos de correspondência, genealogias, inventários post-mortem, processos judiciais, periódicos e uma série de outras fontes manuscritas. Em suma, eles devassaram os arquivos buscando analisar a rica vida política do lado de fora do palácio real e do parlamento geral. Um outro ponto comum entre estas novas pesquisas é que já não é mais possível pensar nas elites regionais (reunindo nesta categoria principalmente os comerciantes, proprietários, bacharéis e políticos mais notáveis de cada província) como passivas diante do processo de consolidação do estado monárquico imperial ou como forças centrífugas prontas a obstacularizar o mesmo. Além disso, como já foi dito, os autores compartilham do princípio da negociação entre governo central e as elites regionais, da mediação política e da convergência de interesses entre os diversos proprietários de terra espalhados pelo Brasil, como fator importante na afirmação do Estado imperial brasileiro e na superação das suas divergências políticas internas. Numa avaliação dos estudos brasileiros sobre o oitocentos e o impacto das pesquisas de uma nova geração de historiadores, Carvalho teceu importante consideração que certamente é válida para estes novos estudos: A melhor distribuição geográfica dos cursos de pós-graduação levou à maior nacionalização da pesquisa histórica. A nacionalização permitiu não apenas a multiplicação de bons estudos regionais, como também a de estudos nacionais sob perspetcivas menos marcadas pelo centro político e econômico do país. A segunda característica tem a ver com o tempo. A geração que a antecedeu foi muito marcada pela luta ideológica, exacerbada durante os governos militares. Divergências de abordagens eram rapidamente transpostas para o campo político-ideológico, com prejuízo do diálogo acadêmico e talvez mesmo da qualidade dos trabalhos. A nova 175
MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit.; DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; GRAHAM, Richard. Op. cit; GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit.; COMISSOLI, Adriano. Op. cit.; VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; RIBEIRO, José Iran. Op. cit.; FARINATTI, Luís A. Op. cit.; SODRÉ, Elaine. Op. cit.; ANDRADE, Marcos F. de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; ARAÚJO, Dilton de Oliveira. O tutu da Bahia (Transição conservadora e formação da nação, 1838-1850) . Tese de Doutorado em História, UFBA, 2006; RESENDE, Edna M. Ecos do Liberalismo: ideários e vivências das elites regionais no processo de construção do Estado Imperial, Barbacena (1831-1840). Tese de Doutorado em História, UFMG, 2008; KLAFKE, Álvaro Antônio. O Império na Província: construção do Estado nacional nas páginas de O Pr opagador da I ndústri a Rio-gr andense (1833-1834). Dissertação de mestrado em História, UFRGS, 2006; MELLO, Evaldo C. de. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2004. Ver também as coletâneas de textos organizados por JANCSÓ, Istvan. Op. cit.; COSTA, Wilma P.; OLIVEIRA, Cecília H. de S. (Org.). De um império a outro: estudos sobre a formação do Brasil, séculos XVIII e XIX. São Paulo: FAPESP, 2007. 464
geração formou-se em ambiente menos tenso e menos polarizado, beneficiando-se de maior liberdade de debate, de melhores condições de escolha, tanto de temas como de abordagens, e de ambiente intelectual mais produtivo.176
Além disso, tomando uso de facilitadores tecnológicos não disponíveis às gerações de historiadores dos anos 1970 e 1980, atualmente é possivel acessar dissertações e teses acadêmicas dos mais distantes pós-graduações do Brasil e fontes documentais digitalizadas, o que vem favorecendo um conhecimento mais abrangente, dinâmico e complexo dos processos históricos aqui analisados, sem cair no que Carvalho denominou de “perspectivas marcadas pelo centro político e econômico do país”. No entanto, o caminho aberto por importantes trabalhos que seguiram esta mesma perspectiva nos anos 1970 e 1980, como os do próprio José Murilo de Carvalho e Ilmar R. de Mattos, ainda oferecem importantes referenciais e problemas de pesquisa que continuam atuais. A importância da expansão cafeeira e sua ligação com a política imperial, por exemplo, foi evidente. Um grupo de políticos fortemente aparentado com cafeicultores do Vale do Paraíba fluminense e traficantes de escravos realmente encontrava-se em situação privilegiada para exercer grande influência política. 177 No entanto, estas novas pesquisas oferecem um novo quadro interpretativo no qual é difícil pensar que este grupo estivesse em condições de impor um projeto formulado exclusivamente pela fração conservadora de sua classe. O mais provável, diante das muitas contribuições historiográficas dos últimos anos, é que a construção do Estado Imperial brasileiro foi fruto de um projeto negociado e que envolvia fatores socioeconômicos, culturais e políticos compartilhados por outras elites 176
CARVALHO, José Murilo. Apresentação. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila. O Brasil Imperial (1870-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. III, 2009, p. 9. 177 Neste sentido, refiro-me especialmente à clássica tese de MATTOS, Ilmar R. de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1990. Para considerações que divergem de alguns pontos centrais da pesquisa do autor, ver DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.; MARTINS, Maria Fernanda. Op. cit. 2012.; GRAHAM, Richard. Construindo uma nação no Brasil do século XIX. In: Revista Diálogos. Maringá: DHI/ UEM, v. 5, n. 1, 2001. Ver também as importantes ponderações realizadas por Jeffrey Needell sobre a inexistência de uma hegemonia saquarema e a inadequação do termo “tempo saquarema” para o período que vai 1837 até 1860 (NEEDELL, Jeffrey D. Formação dos partidos brasileiros: questões de ideologia, rótulos partidários, lideranças e prática política (1831 -1888). In: Almanack Braziliense. São Paulo, n. 10, Nov. 2009, p. 54-63). Concordando em parte com as questões de Needell, Tamis Parron argumentou que, excluindo o sul de Minas, o Vale do Paraíba, o norte de São Paulo e Campos dos Goitacazes, o controle dos saquaremas sobre os políticos de seu partido em outras regiões do Brasil foi “precário” durante todo o período (PARRON, Tâmis. Resenha de NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order: The Conservatives, the State and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871. California: Stanford University Press, 2006 . Almanack Brasiliense, n. 6, nov. 2007). Além do mais, a Conciliação, iniciada nos anos 1850, não poderia ser considerada como parte da hegemonia saquarema. Para uma análise convergente com esta última afirmação ver ESTEFANE, Bruno F. Conciliar o Império: Honório Hermeto Carneiro Leão, os partidos e a política de Conciliação no Brasil monárquico (1842-1856). Dissertação de mestrado em História. São Paulo: USP, 2010. É importante que se diga que as críticas direcionadas ao trabalho de Mattos não atingem necessariamente a maioria das pesquisas que se orientam a partir de sua tese, uma vez que, muitas vezes, elas tratam de temas específicos e até mesmo distintos. 465
regionais brasileiras.178 Penso que foi desta convergência de ideias que o resultado final, o Império do Brasil, tomou força e tornou-se viável. Estadistas habilidosos e inteligentes, os membros da elite política imperial sabiam muito bem com quem contar nas diferentes regiões, onde muitos deles haviam atuado como presidentes de província ou como magistrados, por exemplo. E na impossibilidade de as conhecerem pessoalmente, possuíam contatos diversos envolvendo desde indivíduos que conheciam do seu tempo de estudantes em Coimbra ou nas academias do Império, deputados gerais e senadores que conviviam com os mesmos na Corte, além dos seus parentes.179 Em suma, o governo central não possuía um “poder infraestrutural”180 capaz de realizar uma imposição de um projeto contra supostas forças centrífugas provinciais sem negociar com as elites regionais e contar com as mesmas para sufocar as revoltas locais, manter a ordem social e a unidade territorial. Espero ter demonstrado ao longo dos capítulos que os charqueadores pelotenses, enquanto parte da elite local, e asprincipais famílias que compunham o grupo, enquanto parte da elite regional, foram agentes ativos do mencionado processo histórico. Ao tomá-los como objeto de análise, a presente tese escolheu um grupo de elite específico. Mas a análise poderia ter caído sobre os estancieiros rio-grandenses, os senhores de engenhos nordestinos e do sudeste, os grandes proprietários de terra de outras regiões do Brasil ou os comerciantes de grosso trato das diferentes províncias e grandes cidades da época, por exemplo. É certo que os seus respectivos graus de influência e poder de negociação, a concentração de recursos materiais e imateriais, os índices de investimento na educação superior, o número de pessoas que eles conseguiam inserir sob a orientação dos seus projetos, entre outros aspectos, fossem distintos. Também é provável que em algumas regiões as elites tenham sofrido uma maior ruptura com relação às suas congêneres coloniais. Além disso, alguns grupos possuíam mais importância e um maior poder de influência no interior do sistema político monárquico do que
Muitos membros das famílias das elites regionais concordavam com os projetos políticos do governo central e os defendiam muito antes do Regresso Conservador, como os charqueadores pelotenses que lutaram ferozmente contra os farroupilhas em 1835, por exemplo. Com relação a isto, ver também KLAFKE, Álvaro. Op. cit. 179 É importante afirmar a importância do Parlamento na governabilidade do Estado Imperial. Quando se observa o tamanho das bancadas regionais verifica-se o quão fundamental era este tipo de negociação. Bahia, Pernambuco e Minas (que conheceu uma expansão cafeeira significativa somente na segunda metade do século XIX) somadas concentravam quase a metade das cadeiras do Senado e da Câmara, além de possuírem grande número de ministros de Estado. A Bahia sozinha, por exemplo, reuniu 25% dos ministros durante todo o período monárquico (MATTOSO, Kátia. Op. cit.). Nenhum projeto se concretizava sem o apoio dos políticos destas províncias. 180 MANN, Michael. O poder autônomo do Estado: suas srcens, mecanismos e resultados. In: HALL, John (Org.). Os Estados na História. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 163-204. 178
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outros, como já evidenciei em outra pesquisa.181 No entanto, isto não elimina o seu papel do interior do mesmo processo. Em cada localidade e cada região, grupos de indivíduos e famílias ocupavam o topo da hierarquia social e disputavam os canais de mediação política disponíveis encontrando-se dispostos a defender seus interesses e negociar com os diferentes espaços de poder.182 Neste sentido, creio que um dos grandes motivos pelo qual o Império do Brasil foi viabilizado referia-se ao fato de não afrontar questões caras aos grupos mais ricos e poderosos que compunham as elites regionais como a monarquia e a escravidão e, mesmo com as reformas centralizadoras que caracterizaram o Regresso e que tiveram alcance prático discutível, não ameaçou a permanência das mesmas famílias ricas no topo das hierarquias socioeconômicas regionais.183 Com isto não quero dizer que não ocorreram importantes rupturas de ordem institucional e que novos grupos e famílias de elite não se apresentaram no novo cenário. É necessário que novos estudos continuem iluminando estas questões, contribuindo com o conhecimento deste tema. Contudo, o processo de ruptura do Brasil enquanto colônia portuguesa para uma nação independente e a formação do Estado Imperial foi facilitado porque contou com uma importante dose de permanência das estruturas sociais 184
(que continuamente reproduziam uma hierarquia social excludente ), como também notaram Ilmar de Mattos e José Murilo de Carvalho. 185
181
VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. Numa comparação entre as elites políticas da Bahia, do Ceará e do Rio
Grande do Sul pude constatar que cada uma delas reunia singularidades socioeconômicas e político-culturais que influíram no recrutamento de suas respectivas elites políticas ao longo do período monárquico (VARGAS, Jonas M. “Um império de cruzes, togas e espadas” : notas comparativas sobre as elites políticas do Rio Grande do Sul, do Ceará e da Bahia no período monárquico. In: HEINZ, Flávio M. (Org.).Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e história. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 115-144). 182 VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010. 183 Além disse, como demonstrou Dolhnikoff, o Regresso não foi capaz de eliminar importantes instituições criadas durante o “Avanço Liberal”, como as Assembléias Legislativas Provinciais e a Guarda Nacional (DOLHNIKOFF, Miriam. Op. cit.). Sobre as Assembléias ver também GOUVÊA, Maria de Fátima. Op. cit. 184 FRAGOSO, João L. R.. Homensde grossa a ventura – Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 185 MATTOS, Ilmar R. Op. cit.; CARVALHO, José M. Op. cit., 2003. 467
CONCLUSÃO No início da década de 1820, existiam 22 charqueadas em Pelotas. Em 1854, este número havia chegado a 37 estabelecimentos e, em 1878, ele manteve-se praticamente o mesmo, atingindo 38 fábricas. O fato do número de charqueadas ter caído para 11 em 1900 e para apenas 5 em 1920 é bastante elucidativo da crise que afetou o setor nos anos 1880 e ajuda a evidenciar algumas questões que esta tese se propôs a analisar. Uma explicação para esta diminuição de estabelecimentos poderia argumentar que o charque já não vinha sendo mais um bom negócio, provocando a transferência de capitais para outros ramos de atividade. Mas não foi isto que Márcia Volkmer e Sandra Pesavento perceberam ao estudar as charqueadas rio-grandenses na Primeira República. Assim como no Uruguai, o charque continuou como um dos principais produtos na pauta das exportações do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XX, fazendo a riqueza de muitos investidores e grandes proprietários.1 No entanto, nesta época, Pelotas já havia perdido a primazia de grande centro charqueador da província. Neste sentido, a passagem do século XIX para o século XX teria visto uma transferência de investimentos nos negócios do ramo das carnes de Pelotas para outras regiões do Rio Grande do Sul, sobretudo, para a fronteira sudoeste/oeste. Em 1908, por exemplo, Pelotas reunia apenas 31% dos estabelecimentos do Estado. Em 1920, a situação era ainda mais adversa. Das 31 charqueadas existentes no Rio Grande do Sul, somente 5 (16%) estavam em Pelotas, que agora já não era mais o principal município charqueador, perdendo para Bagé, que tinha 6 fábricas (Mapa 11). Isto destoava totalmente dos anos 1870, quando Pelotas certamente era responsável por algo entre 80% e 90% do charque exportado pelo porto de Rio Grande. Além do mais, no século XX, a presença do capital estrangeiro alcançava um nível que nunca havia sido atingido no oitocentos. Das 31 fábricas arroladas em 1920, pelo menos 11 eram de propriedade de europeus, uruguaios ou norte-americanos. Além disso, assim como
1
VOLKMER, Márcia S. “Onde começa ou termina o território pátrio”: os estrategistas da fronteira – empresários uruguaios, política e a indústria do charque no extremo oeste do Rio Grande do Sul (Quaraí, 1893-1928). Dissertação de mestrado em História, Unisinos, 2007; PESAVENTO, Sandra. República Velha Gaúcha: frigoríficos, charqueadas, criadores. Porto Alegre: Movimento/IEL, 1980. Para o Uruguai ver SEOANE, Pedro. La industria de las carnes en el Uruguay.Montevideo: Tip. Industrial, Castelnuovo & Berchesi, 1926. 468
no Rio da Prata, na trilha destes novos investidores chegaram os primeiros frigoríficos na região, com destaque para as companhias Armour e Swift.2 Mapa 11 – Charqueadas em funcionamento no Rio Grande do Sul (1920)
Fonte: Adaptado pelo autor do srcinal em VOLKMER, Márcia. Op. cit, p. 50.
A substituição do antigo polo charqueador pelotense pela região da campanha, na fronteira sudoeste, indica que a nova elite charqueadora republicana já não era mais formada pelas mesmas elites pelotenses que lideraram os negócios com o charque no oitocentos. No mencionado processo de transição, não tem-se nem rastro daquelas famílias charqueadoras pelotenses que gozaram de uma distinção “aristocrática” e ocuparam o topo da hierarqui a
regional entre os anos 1860 e 1880.3 Nos anos 1910 e 1920, por exemplo, não se observa mais os Simões Lopes, os Assumpção, os Moreira, os Antunes Maciel, os Silva Tavares, os Gonçalves Chaves, os Rodrigues Barcellos, os Cunha entre os novos empresários do charque. Isto não significa que estas famílias deixaram de ser elite, mas sim, que elas migraram de investimentos num momento crítico e que foi responsável por derrubar grande parte dos 2
PESAVENTO, Sandra. Op. Cit. Em Pelotas havia uma charqueada de propriedade da firma Moreira & Filhos. Não foi possível saber se ela pertencia aos herdeiros de José Antônio Moreira, o barão de Butuí (PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 170). Em caso positivo, trataria-se de uma exceção. 3
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charqueadores pelotenses. Rastreando os herdeiros destas principais famílias, é possível perceber que alguns dos mesmos se ocuparam de outras atividades econômicas não menos rentáveis. Os filhos do charqueador Antônio José da Silva Maia, por exemplo, seguiram no comércio de atacado e os Silva Tavares na criação de gado. Francisco Antunes Gomes da Costa, o Barão de Arroio Grande (genro do coronel Anibal Antunes Maciel), abandonou os negócios com o charque e tornou-se um rico banqueiro em Pelotas. Juntamente com o coronel Alberto Rosa (também charqueador) e o Dr. Joaquim Augusto e Assumpção, filho do barão de Jarau, Costa foi um dos incorporadores do Banco Pelotense, criado em 1906, e que teve importante papel no desenvolvimento da economia regional durante a Primeira República. 4 Além deles, outros membros de famílias charqueadoras, como José Júlio Albuquerque Barros, Pedro Luís Osório e Lúcio Lopes dos Santos Sobrinho, também compuseram o corpo de diretores do Banco. O coronel Alfredo Gonçalves Moreira, filho do barão de Butuí, foi o primeiro presidente da União dos criadores do Rio Grande do Sul, em 1912. Na mesma década, ele pertenceu ao conselho fiscal da Companhia Frigorífica Rio-grandense que tinha como Diretores a Dickinson & Cia e Emílio Guilayn (diretor do Banco da Província entre 1911 e 1914, sócio-fundador da casa bancária “Emílio Guilayn”, de Bagé, e da firma de representação comercial “Buxton
& Guilayn”, que também era a administradora das usinas
elétricas de Pelotas, Bagé e Santa Maria). No conselho fiscal, ao lado de Moreira, também estava Antônio Augusto de Assumpção5, membro da família do barão do Jarau – charqueador mais rico de Pelotas, falecido em 1898. Possidônio M. Cunha Filho, herdeiro do charqueador homônimo e sobrinho do também charqueador Barão de Corrientes, foi advogado e capitalista em Porto Alegre. Cunha Filho também destacou-se como grande acionista da Companhia Carris, tendo integrado, entre as décadas de 1900 e 1910, as diretorias da Companhia Força e Luz Porto-Alegrense, da Companhia Telefônica Rio-grandense, da Companhia Predial e Agrícola, da Companhia de Seguros de Vida e Previdência do Sul, da Companhia Fiação e Tecidos de P. Alegre e do Banco Comercial Franco-Brasileiro. Quando se analisa a trajetória política de alguns deles, percebe-se que os mesmos continuaram influindo, por meio do Estado, no setor agrário, agora capitalista, aliado ao 4
LAGEMANN, Eugenio. O Banco Pelotense & o Sistema Financeiro Regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985, p. 85-93. 5 PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 123. 470
capital financeiro. Além do mais, estas mesmas famílias que ajudaram a sustentar a monarquia, ao longo do oitocentos, foram extremamente hábeis em aderir ao republicanismo logo após o 15 de novembro. E isto ajuda a explicar como alcançaram importantes cargos de companhias e funções estatais no governo republicano de Borges de Medeiros, por exemplo. Alfredo Moreira, Epaminondas de Almeida, Saturnino Arruda, entre outros, obtiveram sucesso na política estadual. Contudo, alguns alçaram voos mais altos, como o banqueiro Joaquim Augusto de Assumpção, mencionado acima, que tornou-se Senador da República. Na alta política também é possível destacar o Dr. Ildefonso Simões Lopes e o Dr. Francisco Antunes Maciel Júnior. O primeiro deles era filho do visconde da Graça e o segundo neto do barão de Butuí e filho do charqueador homônimo que também foi Ministro do Império, em 1883. Maciel Júnior e Simões Lopes tiveram papel importante na elite gaúcha que subiu ao poder político nacional acompanhando Getúlio Vargas em 1930. O primeiro foi Secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul logo após a Revolução e, depois, Ministro da Justiça, entre 1932 e 1934. Entre 1934 e 1937, foi diretor da Carteira de Redescontos do Banco do Brasil. Quando Vargas retornou ao poder em 1953, lá estava ele como Diretor do BNDE. O segundo foi deputado federal por três legislaturas, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio (1919-1922), presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (1926 a 1943), criador da Confederação Rural Brasileira (1928) e Diretor do Banco do Brasil (1930-1943). Portanto, para algumas das principais famílias charqueadoras do oitocentos é possível considerar que elas ultrapassaram de vez o espaço regional de atuação política e atingiram o seu auge na elite política nacional. Contudo, isto só veio a ocorrer numa época em que Pelotas já não era mais o núcleo charqueador do Rio Grande do Sul e suas famílias já haviam abandonado estes negócios. Nunca é demais lembrar que o visconde da Graça foi um dos pioneiros da mudança em termos do perfil de investimentos apresentado pela elite empresarial do período republicano. Nos anos 1870, quando ele começou a inverter os capitais da charqueada em ações de companhias (como foi visto no capítulo 9) parecia estar antecipando em nível regional (e agindo em sintonia com o que se fazia no centro do país) o que passou a ocorrer de maneira mais intensa somente no século XX. Esta inversão socioeconômica reproduzia uma metamorfose que já havia ocorrido no Rio de Janeiro entre os anos 1840 e 1870, quando descendentes de famílias de comerciantes de grosso trato e de grandes fazendeiros fluminenses foram, aos poucos, se tornando a elite financeira do país, sediada na Corte, 471
costurando íntimas alianças com a elite política imperial. 6 Portanto, tanto em termos políticos como em termos econômicos, alguns membros das principais famílias continuaram atuando com importante influência no nível regional e agora nacional. Apesar da riqueza das mencionadas trajetórias no século XX, esta tese não pretendeu estudar a metamorfose dos membros das famílias charqueadoras em empresários capitalistas naquele mesmo século. O objetivo principal foi analisar apenas as famílias da elite charqueadora-escravista que ocuparam o topo da hierarquia local e regional no oitocentos. Trata-se de uma geração de charqueadores escravistas que não foi capaz de reverter uma situação de crise econômica que varreu muitos empresários daquele ramo de negócios e que afetou o setor de forma mais drástica na década de 1880. Repito, esta derradeira crise no complexo charqueador escravista-pelotense não foi capaz de eliminar as principais famílias da sua posição de elite regional, mas ela foi fatal em deixar apenas na memória dos pelotenses uma época em que elite econômica regional e elite charqueadora se confundiam com algumas de suas famílias. Tal época constituiu-se num ciclo cujo auge durou somente algumas décadas – entre os anos 1850 e 1880. Portanto, assim como aquelas principais famílias charqueadoras
da primeira geração (no colonial tardio) que não conseguiram resistir à Guerra dos Farrapos e as crises dos anos 1850 e 1860, estasprincipais famílias charqueadoras nos anos 1870 e 1880, também tiveram que abandonar este ramo de negócios na virada do século e, até mesmo, antes dela. Isto abriu espaço para um terceiro grupo de empresários entrarem em cena e deslocarem seus capitais para fora de Pelotas. O mais interessante é que os investimentos destes novos empresários do charque no século XX já indicam algumas das limitações da geração escravista oitocentista. Como foi mencionado, entre os novos charqueadores a presença de estrangeiros é mais marcante. Numa fase mais desenvolvida do capitalismo no Brasil, eles começaram investindo nas charqueadas e nos frigoríficos da região, revelando um antigo problema do setor: a falta de instituições financeiras e de capitais disponíveis.7 O abate de 100 mil reses por safra alcançado pela charqueada São Carlos, localizada em Uruguaiana, indica o grande incremento de capitais e mão de obra assalariada nesta nova era, uma vez que as grandes charqueadas escravistas dos anos 1870 abatiam somente 20 mil reses em média. 6
FRAGOSO, João L. R.; MARTINS, Maria F. V. As elites nas últimas décadas da escravidão - as atividades econômicas dos grandes homens de negócios da Corte e suas relações com a elite política imperial, 1850-1880. In: FLORENTINO, Manolo; MACHADO, Cacilda (Org.). Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 143-164. 7 Nesta época, firmas uruguaias instalaram-se no Rio Grande, assim como inglesas e norte-americanas. Para um estudo de caso ver VOLKMER, Márcia. Op. cit. 472
Além disso, a aproximação destes novos estabelecimentos das vias férreas que levavam até o porto de Montevideu também indica que os antigos charqueadores escravistas foram incapazes de resolver de forma satisfatória o problema da barra do porto de Rio Grande e que a capital uruguaia foi uma saída satisfatória neste sentido. Outro problema claro é que não havia uma oferta de gado suficiente para garantir bons níveis de abate anual de quase 40 charqueadas nos finais dos anos 1870. E tal problema ficou mais dramático com o fim das guerras civis no Uruguai na mesma época, quando a sua indústria pode recuperar-se, passando a consumir cada vez mais gado em suas fábricas, o que restringia o abastecimento das charqueadas em Pelotas. A saída foi recorrer para os rebanhos do norte do Rio Grande do Sul. Mas a distância destes para Pelotas era muito grande e prejudicava o comércio de tropas. Isto ajuda a entender porque foram surgindo cada vez mais charqueadas geograficamente mais próximas destas áreas de criação, como São Borja, Itaqui, Caxias, Santa Maria, Passo Fundo e Júlio de Castilhos, por exemplo. Como observou Louis Couty, se Pelotas tivesse menos charqueadas (talvez a metade), os seus proprietários poderiam ter conseguido manter bons rendimentos em conjunturas adversas, podendo inclusive ter maior segurança para realizar uma transição mais segura para o trabalho 8
assalariado. A concorrência entre os próprios charqueadores parece ter se acentuado, tendo os mais ricos e bem preparados drenado os recursos dos menores. Outro motivo ainda mais nítido pelo qual este processo de substituição das famílias no grupo charqueador ocorreu foi que as principais famílias do ramo não conseguiram garantir de forma satisfatória uma transição do uso da mão de obra escrava para o trabalho assalariado. Além disso, estas principais famílias também não encontraram um mercado consumidor alternativo ao do nordeste brasileiro, sofrendo grandes prejuízos por conta deste exclusivismo, já que associavam-se a um espaço econômico que vinha enfrentando profundas crises por conta do mercado internacional do açúcar. Portanto, as principais famílias estudadas nos últimos capítulos foram a última elite charqueadora pelotense com grande importância regional, uma vez que, na Primeira República, os sucessores no ramo parecem não ter atingido a mesma notabilidade política e econômica se comparados aos seus correspondentes da época escravista. Não existem muitos estudos sobre as novas elites no período, mas o certo é que a elite econômica do Rio Grande do Sul, por volta dos anos 1920, já havia entrado em sua fase industrial-financeira, ou seja, era uma elite mais capitalista, colocando os
8
COUTY, Louis. A Erva mate e o Charque.Pelotas: Seiva, 2000 [1882]. 473
charqueadores para um segundo escalão na hierarquia socioeconômica regional, muito embora os seus negócios continuassem bastante diversificados. Invisível num olhar mais macro-analítico, a Pelotas oitocentista surge ao observador mais interessado como um laboratório de análise da sociedade mais ampla, cujo ritmo de transformações socioeconômicos se acelerava. Mesmo entrando em cena pelas margens do Atlântico, a análise da vida econômica, política, social e cultural daquela pequena localidade no extremo sul da América tem muito a nos dizer sobre a própria economia atlântica, os mercados internos e o surgimento de elites locais e regionais nestas mesmas áreas que estiveram sob o domínio europeu e, posteriormente, foram incorporadas por diferentes estados nacionais independentes. As principais famílias charqueadoras do período escravista foram capazes de criar um mundo próprio e fizeram da cidade de Pelotas o seu palco particular. Neste cenário, o acesso às artes, à educação superior e à liderança política coube a elas e algumas outras famílias da elite local. Pelotas, assim como diversas cidades atlânticas, foi lugar de uma série de fenômenos sociais gerais que afetaram o mundo ocidental na mesma época. Sua população sentiu os impactos de tais transformações e teve que adaptar-se ao aceleramento e fim do tráfico atlântico de escravos, aos diversos fluxos migratórios, ao processo de avanço de um Estado nacional recém constituído e que ainda aprendia a lidar com questões de ordem política e econômica, aos problemas de abastecimento e moradia de uma população crescente, às flutuações do mercado internacional, às novas correntes de ideias que vinham a alterar a visão de mundo de muitos homens, entre outros fenômenos característicos da época. Juntamente com outros proprietários rio-grandenses, os charqueadores tiveram que buscar saídas para estes e outros problemas que surgiam e neste sentido também foram agentes ativos na condução do processo histórico. É bem verdade que a elite pelotense também era formada por comerciantes atacadistas e outros proprietários. Mas quando se analisa quem controlava os principais cargos políticos, os títulos de nobreza e os diplomas de bacharéis, verifica-se que os charqueadores é que formavam o grupo mais proeminente. A concentração de poder, riqueza estatus social foi um fator que contribuiu para que estas famílias adquirissem uma “consciência de elite”. Tal fenômeno social conferia um sentimento de superioridade às mesmas, o que se refletia no seu estilo de vida, nos casamentos de seus filhos e na sua política sucessória. Além disso, estes homens de negócios também atuavam no prestamismo local, no comércio de grosso trato, na criação de animais, na fabricação do charque e dos couros, ou seja, estavam quase 474
onipresentes nestas atividades econômicas. Além disso, uma profunda endogamia combinada com uma engenharia matrimonial que estabelecia alianças com genros de outras províncias e até de outros países, demonstravam o seu prestígio social local e regional. Pelo estilo de vida que levavam, pela importância dada a educação dos filhos, pelos baronatos e a notabilidade política com que conduziam os negócios da urbe, eram tidos pelos seus próprios pares como a “aristocracia da terra”.
Ocupando o topo da hierarquia social regional, este pequeno grupo de famílias charqueadoras, quase que cristalizado naquela posição durante um dado momento histórico, foi capaz de concentrar, juntamente com outras famílias proprietárias, grande parte dos recursos materiais e imateriais mais significativos daquela sociedade e reger, quase que sem oposição alguma, a direção que a mesma devia tomar. Portanto, o seu grau de influência já não se reservava mais à Pelotas, estendendo-se à província e confluindo com os interesses de outras regiões do Brasil e da própria elite política nacional. Neste sentido, é possível considerar que elas colaboraram com a sustentação da monarquia liberal e escravista no sul do Império. Mas esta relação nunca foi totalmente harmoniosa e nem a sua elite era homogênea. Se ela não conseguiu impor uma política protecionista ao charque para conter a concorrência platina, foi capaz de insuflar o Império para envolver-se em três guerras, na qual ela ajudou a bancar financeiramente e que lhe deram uma sobrevida naquele ramo de negócios. Na parte inferior da pirâmide social, um grupo significativo de despossuídos, escravos e homens livres pobres compunha bem mais da metade da população e interagia diariamente com charqueadores e demais proprietários, embora os espaços de cada um e a distinção social entre ambas as classes sempre fora bastante clara. No mundo do trabalho, os escravos eram as mãos e os pés do charqueador. Seu apego aos mesmos foi algo tão forte que pode-se dizer que o último capítulo da história destas elites, enquanto charqueadoras, coincidiu com o fim da escravidão no Brasil. O trabalho escravo nas charqueadas foi marcado por uma complexa relação que alternava estabilidade e conflito e que tomou ares ainda mais complexos na segunda metade do século, quando os assalariados livres passaram a dividir o espaço de trabalho com os cativos, mesmo que em menor número. Nesta relação, escravos e senhores elaboravam estratégias diárias para defender seus interesses. Tendo que lidar com o fim do tráfico atlântico, a Lei do Ventre Livre, as frequentes alforrias, o aumento do preço dos escravos, o crescimento do número de conflitos entre trabalhadores e capatazes, os charqueadores pelotenses acabaram não resistindo aos novos tempos. O episódio envolvendo os insubordinados ex-escravos (libertos sob cláusula de contrato de trabalho) da charqueada 475
do barão de Santa Tecla revelava o quão difícil seria a nova era para os mesmos senhores que não conseguissem adaptar-se. Talvez este tenha sido o maior sinal de sua impotência em reverter um quadro socioeconômico lentamente constituído. Uma outra leitura deve atentar para o fato de que se estas principais famílias não conseguiram reverter a situação na qual as mesmas encontraram-se diante das crises que afetaram as charqueadas nos anos 1880, elas foram muito hábeis em garantir uma nova vida distante deste ramo de negócios. Não há uma metáfora mais clara em afirmar que elas pularam do barco antes do naufrágio. Alguns membros destas famílias literalmente
abandonaram Pelotas. No capítulo 4 demonstrei como a população pelotense foi ficando mais pobre ao longo do período monárquico, em contraste com uma riqueza ainda mais concentrada nas mãos dos grandes empresários. Neste sentido, a manutenção daquelas famílias no topo da pirâmide esteve sempre pautada por uma lógica de reprodução de uma hierarquia social excludente. Ao drenarem as escravarias dos charqueadores de menores posses, por exemplo, assim como o seu patrimônio por meio de vultosos empréstimos com hipotecas, estas famílias mais ricas também conseguiram resistir melhor às crises que afetaram o setor entre as décadas de 1850 e 1870, repassando seus prejuízo para outros setores da população. Talvez isto deixe um pouco mais claro que esta elite pareceu não possuir um projeto de sociedade num sentido mais abrangente, como as elites europeias da época. No caso de Pelotas, as charqueadas trouxeram riqueza material e cultural, mas para quem? Projetos de desenvolvimento agrícola e inclusão de outros setores sociais na economia para além dos latifúndios e empresas escravistas só seriam forjados e levados a cabo de forma mais incisiva no século XX. Neste sentido, é sintomático que a Primeira República foi um ponto de inflexão do que viria a se tornar a economia e a sociedade rio-grandense na segunda metade do século XX. O conhecido empobrecimento da metade sul do Estado – onde os latifúndios e as estâncias de criação concentravam os investimentos principais – contrastava com o desenvolvimento urbano, agrícola e empresarial da metade norte, região de colonização e imigração europeia mais recente e que contou com importantes subsídios do Estado Republicano. A concorrência platina sempre representou um fantasma para os charqueadores pelotenses. Com uma produção mais diversificada, os saladeiros argentinos e uruguaios sempre apresentaram uma organização econômica mais competitiva. Mais abertos aos capitais e investidores estrangeiros, incentivando a entrada de trabalhadores imigrantes nas suas 476
fábricas, organizando-se em associações com maior eficácia e praticamente controlando a política econômica de suas Repúblicas, eles foram capazes de tomar o mercado consumidor do sudeste brasileiro e garantir uma entrada mais firme no mercado mundial das carnes, sobretudo, na virada do século XIX. Um outro motivo desta superioridade foi atestado pelo próprio Couty. Pela qualidade do gado platino e pelas técnicas empregadas, o tasajo era mais saboroso e possuía uma aparência melhor que a do charque pelotense. Isto ajudava a garantir seu espaço no mercado, numa época em que o gosto e a exigência dos consumidores vinham ganhando bastante importância na Europa. Neste sentido, num nível mais global, os charqueadores também foram vítimas do próprio avanço da ciência e do desenvolvimento social que vinha marcando o período. As melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora europeia, um maior cuidado com a qualidade das carnes como forma de evitar doenças, as lutas dos operários dos setores das carnes por melhores salários e condições, o fim do trabalho escravo nas Américas, eram sinais que o mundo que os charqueadores ajudaram a criar estava começando a ruir. As principais famílias da aristocracia do sebo conseguiram escapar da crise oitocentista, mas, para isso, tiveram que abandonar as charqueadas – estabelecimentos fabris que, depois da Revolución del Frío, viram-se condenados à extinção. Como afirmaram Barran e Nahum, o processo de desaparecimento do tasajo e do charque da mesa das populações mais pobres foi se
acelerando de acordo com o desenvolvimento de um outro processo: a democratização das geladeiras.9 Mas esta já é uma outra história…
9
BARRAN, José Pedro; NAHUM, Benjamin. Historia Rural del Uruguay moderno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967. 477
Anexo 1 – Listagem geral dos charqueadores e arrendatários de Pelotas com as respectivas siglas utilizadas nos Gráficos 3.1 e 3.2 e os períodos de atuação nos negócios com o charque (A, B e C) utilizados no capítulo 9 Nome
Sigla
Albino da Silva Fagundes (B) Alexandre Vieira da Cunha Alfredo Augusto Braga (C) Alfredo Gonçalves Moreira (C) Anibal Antunes Maciel (B) Antônio Francisco dos Anjos Antonio José da Silva Maia (B, C) Antônio José de Azevedo Machado Antonio José de A. Machado Filho (B, C) Antônio José de Oliveira Castro Antônio José de Oliveira Leitão (B) Antônio José Gonçalves Chaves Antônio José Gonçalves Chaves Filho (B) Antônio Machado Vianna Antônio Pereira da Cruz
Domingos Guilherme da Costa (B, C) AVC Domingos José de Almeida Domingos Pinto França Mascarenhas (B) Domingos Rodrigues Domingos Soares Barbosa (B, C) AFA Eleutério Rodrigues Barcellos (B, C) Evaristo Ferreira Nunes (C) AJAM Felisberto Ignácio da Cunha (Barão de Correntes) (B, C) Felisberto José Gonçalves Braga (B, C) AJOC Francisco A. Antunes Maciel (C) Francisco Alves Ribas (C) AJGC Francisco A. G. da Costa (Barão de Arroio Grande) (C) Francisco de Paula Ferreira AMV Francisco Fagundes de Oliveira (C) APC Francisco Teixeira Guimarães
Nome
Antônio Soares Rafael dos Anjos Antônio de Paiva Ataliba Borges Ribeiro da Costa (C) Balthazar Gomes Vianna Bernardino Bráulio Almeida (B, C) Bernardino Rodrigues Barcellos Boaventura da Silva Barcellos (B) Boaventura Ignacio Barcellos (B) Boaventura Rodrigues Barcellos Boaventura Teixeira Barcellos (B, C) Cândido Antônio Barcellos (B) Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos (B) Custódio Gonçalves Belchior (B) Custódio José dos Santos Moreira Domingos de Castro Antiqueira (Visconde de Jaguari)
ARA ASP
Francisco Xavier dedaFaria Gabriel Gonçalves Silva (C) Heleodoro de Azevedo e Souza BGV Heleodorode Azevedo e Souza Filho (B, C) Honório Luis da Silva (B, C) BERB Ignácio José Bernardes Inácio José de Oliveira Guimarães Inácio Rodrigues Barcellos BORB Ismael da Silva Ferreira (B) Ismael Soares Leivas (C) Jacinto Antonio Lopes (B, C) Jerônimo de Freitas Ramos (B) Jerônimo José Coelho (B) CJM João Alves de Bittencourt DCA João Antônio Netto (B)
Sigla
DJA DR
FPF FTG FXF HAS IJB IJOG IRB
JAB
Nome
Sigla
João Batista de Figueiredo Mascarenhas João Cardoso da Silva João Duarte Machado João Francisco Gonçalves (C) João Francisco Vieira Braga João Guerino Vinhas João Jacintho de Mendonça João José Teixeira Guimarães João Maria Chaves (B, C) João Maria da Fontoura João Mendes de Arruda (B, C) João Nunes Batista João Simões Lopes João Simões Lopes Fº (Visconde da Graça) (B, C) João Theodosio Gonçalves (C) João Vinhas FilhoChaves (B) (B) Joaquim Antônio Joaquim da S. Tavares (Barão de S Tecla) (B, C) Joaquim Guilherme da Costa (B) Joaquim José da Cruz Secco Joaquim José de Assumpção Joaquim J. de Assumpção (Barão dE Jarau) (B, C) Joaquim Manoel Teixeira Joaquim Rasgado (Tenente-Coronel) (B, C) Joaquim Rodrigues da Silva (B, C) José Antônio da Silva Neves José Antônio Moreira (Barão de Butuí) José Antônio Moreira Filho (C) José Bento de Campos (B, C) José Bento de Campos Filho (C)
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JBFM JCS JDM JFVB JGV JJM JJTG JMF JNF JSL
JJCS JJA
JASN JAM
José da Costa Santos José da Rosa Neves José Ferreira de Araújo José Ferreira Gonçalves Ferrugem José Gonçalves da Silva Calheca José Gonçalves Lopes (B, C) José Ignacio Bernardes José Ignácio da Cunha (B) José Joaquim Gonçalves José Maria Moreira (C) José Pereira de Sá Peixoto José Pinto Martins José Rodrigues Barcellos José Rodrigues da Silva Candiota (B) José Tomaz da Silva José Vieira da Cunha José Vieira Vianna Junius Brutus Cassius de Almeida (B, C)
JCS JRN JFA JFGF JGSC JIB JJG JPSP JPM JRB JTS JVC JVV
Leopoldo Antunes Maciel (Dr.) (C) Lúcio Lopes dos Santos (B, C) Luís Pereira da Silva Luis Teixeira Barcellos (B, C) Luiz de Azevedo e Souza Manoel Alves de Moraes Manoel Alves Vianna (B) Manoel Batista Teixeira Manoel Batista Teixeira Filho (B) Manoel Bento da Fontoura Manoel Bernardino Soares (B) Manoel de Sá Araújo (B) Manoel Francisco Moreira (B) Manoel José de Oliveira Guimarães Manoel José Rodrigues Valladares Manoel Lourenço do Nascimento (B) Manoel Pedro de Toledo (B) Manoel Raphael Vieira da Cunha (B, C)
LPS LAS MAM MBT MBF
MJOG MJRV
Manoel Soares da Silva Manoel Soeiro Daltro (B) Manuel Nunes Batista (B) Miguel da Cunha Pereira Paulino Teixeira da Costa Leite (B, C) Pedro Lobo Vinhas (B, C) Pedro Nunes Batista (B, C) Porfirio Honorio da Silva (B) Possidonio Mancio da Cunha (B, C) Simão Soares da Silva Teodósio Pereira Jacome Thomaz José de Campos (B) Vicente Lopes dos Santos (B, C) Virginio José de Campos (C) Wenceslau José Gomes (B)
MSS MCP
SSS TPJ
A periodização é a seguinte: período A (1790-1830), B (década de 1850) e C (fim da década de 1870 e anos 1880). Todos os charqueadores com siglas pertencem ao período A, sendo que alguns mantiveram-se nos negócios até o período B. Os períodos B-C significam que o charqueador atuou entre as décadas de 1850 e início dos anos 1880.
Fontes: O ponto de partida para a elaboração desta listagem foi a relação de charqueadores pelotenses elaborada por João Simões Lopes Neto, em 1925, e publicada por MARQUES, Alvarino da Fontoura. Episódios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987, p. 99-102. Pelo fato dessa l istagem estar incompleta, cruzei a mesma com outras fontes documentais. Primeiramente, rastreei em todos os inventáriospost-mortem de Pelotas a presença de charqueadas entre os bens dos inventariados, assim como as
transações públicas envolvendo as mesmas nos Livros de Notas dos Tabelionatos de Pelotas (APERS). Também cruzei estes dados com a Lista de qualificação de votantes de Pelotas, 1865 (Fundo Eleições, maço 2, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul), a Lista de qualificação da Guarda Nacional, 1873 (FundoConselho de Qualificação da Guarda Nacional, maço 77, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) e a Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (Biblioteca Pública Pelotense– transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva (UFPel)). Outra fonte utilizada foi um Manifesto assinado em 1848 pelos charqueadores pelotenses para que os comerciantes rio-grandinos trouxessem os couros para serem pesados em Pelotas (JornalO Rio-Grandense, n. 266, 11.01.1848, p. 4 apud TORRES, Daniel de Quadro.Rio Grande – Pelotas: produção, comércio, redes mercantis e interesses econômicos em meados do século XIX. Monografia de conclusão do Curso de História. FURG, p. 32). A bibliografia sobre o tema também foi consultada para compor o grupo, como, por exemplo, os livros de Ester Gutierrez, Eduardo Arriada e Helen Osório. É muito provável que alguns nomes tenham me escapado, visto a amplitude das pessoas que se dedicaram a tais negócios e visto os poucos vestígios deixados pelos mesmos nas fontes. Contudo, os principais empresários do charque no período estão contemplados no trabalho.
479
FONTES PRIMÁRIAS Arquivo Histórico Ultramarino Documentos Avulsos: Rio Grande do Sul (Projeto Resgate).
Arquivo Nacional da Torre do Tombo Habilitação de Familiares, maço 157.
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul Inventários post-mortem, Pelotas, 1810-1900. Processos de Falência e Liquidação, 1º e 2º cartório do cível, Pelotas. Processos-crime, Tribunal do Júri, Pelotas, 1881. Livros de Notas do 1º, 2º e 3º Tabelionato de Pelotas (1832-1890). Ações ordinárias, 1º cartório do cível, Pelotas. Registros Diversos de Pelotas, Diversos livros, Pelotas. Procurações do 1º, 2º e 3º Tabelionatos de Pelotas e 3º e 4º Distrito de Pelotas. Apelações cíveis, Cartório cível e crime, Pelotas.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul CAMARGO, Antônio Eleuthério. Estatística provincial de 1868. Fundo Estatística. Fundo Polícia (maço 15) Fundo Eleições (maços 2 e 3) Fundo Autoridades municipais, Seção“Pelotas”. Fundo Autoridades Municipais, Seção “Rio Grande”, maço 215-A. Fundo Junta Comercial Códices JC-17 ao JC- 27, JC-53, JC-55. Avisos do Ministério de Estrangeiros. Códices B.1.027 até o B.1.032. Correspondência do Comando Superior da Guarda Nacional de Rio Grande. Maço 36. 480
Fundo Estatística. Documentação Avulsa. Maço 1 e 2. Fundo Fazenda, m. 482.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro Seção Manuscritos (Coleção Rio Grande do Sul e Documentos Biográficos) Seção Periódicos (Jornal O Globo (1875), O Brado do Sul (1859), O Constitucional (1862), Gazeta da Tarde (1881)).
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Códice 170 (volumes 1, 2 e 3). Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral Legislativa na 3ª. Sessão da 8ª. Legislatura pelo respectivo ministro e secretário de Estado Paulino José Soares de Souza – Anexo A (1850).
Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro Requerimento de oratório privado de José da Costa Santos. Série Breve Apostólico. Notação 394.
Biblioteca Pública Pelotense Lista de qualificação de votantes de Pelotas de 1880 (transcrição gentilmente cedida pelo Professor Adhemar Lourenço da Silva). Jornal do Comércio (1877-1881) e Correio Mercantil (1874-1878)
Museu João Nunes – São Gabriel Arquivo particular de Porfírio Metello (Correspondências)
Fontes primárias e secundárias consultadas em endereços eletrônicos
Censo geral de 1872. Disponível em: http//www.ibge.gov.br (Consultado em 20.03.2010). Relatório da Diretoria Geral de Estatística Ano de 1874 a 1878. Disponíveis no site: http://memoria.nemesis.org.br. (Consultados em 10.06.2011). Relatórios dos Presidentes da Província do Rio Grande entre 1848 e 1889. Disponíveis no site http://www.crl.edu/brazil/provincial. Último acesso em 29.05.2013. 481
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