Não-Ficção criativa | ECO/UFRJ | 2017.1 Aluna | Samyta Passos Nunes Costa | DRE 114032670
Sobre Montaigne e Rubem Braga Antes de qualquer coisa, preciso compartilhar minha dúvida flussiana: “Devo formular meus pensamentos em estilo acadêmico ou devo recorrer a um estilo vivo (isto é, meu)?”1. Antes de aproximações comparativas e análises sobre ensaio e crônica, Montaigne e Rubem Braga, “Sobre três relações” e “Os amantes”, uma decisão teve que ser tomada. E não pude resistir à tentação de agarrar com meus dedos no teclado a oportunidade de, pela primeira vez em sete períodos acadêmicos, poder assumir o risco, enunciado por Flusser, de assumir-me no assunto. Ainda que com receio de dar lugar à pretensão e me arrepender depois de não ter organizado as ideias no método acadêmico, me convenço da decisão acertada, usando o filósofo tcheco como justificativa para mim mesma: “O estilo do meu ensaio passará a espelhar, a articular, a formular este meu empenho de corpo e alma”2. E nunca consegui colocar o empenho de minha alma em um artigo acadêmico, por mais esforço que eu tenha feito. É que as regras, elas me parecem limitantes, e gosto da liberdade de um gênero inquieto como o ensaio. Porém, é assustador pensar “vou escrever um ensaio”. Uma crônica, então? Por me saber prolixa, duvidei do meu poder de síntese; e por me saber um tanto narcisista, fiquei com o ensaio. Afinal, “quem não tem vaidade, não escreve”, disse Paulo Pires em sala, certa vez. Por mera satisfação do meu desejo pessoal, escolhi, partir de “Os Amantes”, uma crônica do Rubem Braga que não raro é chamada por aí de conto, na internet. Sim, poderia ter sido um conto, mas tem algo do ensaio familiar e o fato de ter escrita por “um cronista puro”3 e publicada em jornal muda tudo. A confusão é entendível porque, nos dois primeiros parágrafos, Rubem cria uma situação de intriga literária, mas depois vai descrevendo a progressão do dia a dia daquele casal que está trancado no apartamento, deixando o resto do mundo do lado de fora, um resto de mundo que não para, continua chegando leite, jornal, telefone toca, batem à porta, etc. Mas para além da classificação 1
FLUSSER, 1998 Idem 3 CANDIDO, 1992 2
entre crônica e conto, o que me afeta em todas as vezes que leio a história (ou esse recorte da história dos amantes) e o que me fez bater o martelo da escolha é o lirismo. A ideia de um amor romântico que parece não existir mais hoje em dia. São duas pessoas se permitindo amar e vivenciar esse amor com voracidade e plenitude. E já que estou falando de mim para legitimar esse ponto de partida, peço licença para fazer uma “citação de artigo acadêmico”, pois preciso destacar um trecho da crônica que mais me comove: “Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivesse o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha”. A beleza e sensibilidade de “Os Amantes” só corrobora o fato de que a crônica “é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas”, como bem definiu Antonio Candido. Se o professor me perguntar: mas então por que você escolheu Montaigne? Eu digo: porque é Rubem. Afinal, é mais do que natural comparar um cronista puro com o maior ensaísta. E quando vou ler os ensaios de Messire Michel, procurando desesperadamente por um “sobre o amor”, caio na armadilha apontada por Flusser: “começo a perder o meu assunto por ter-me identificado com ele”. Não que eu esteja me comparando a ele, que minha pretensão não chega a tanto, claro, mas suas elucubrações e digressões me prenderam na narrativa de uma maneira definitiva. É impressionante como ele escreve sobre tudo, com uma visão de leigo, sem a empáfia do especialista. É isso que cria a identificação imediata no leito, acredito, porque à medida que leio vou ficando cada vez mais íntima dele, entendendo quem ele foi, como ele era. Como Erich Auerbach
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comentou, “as pessoas gostam de ler o que lhe dá vontade de escrever”. Mas ele parece não gostar muito de escrever especificamente sobre o amor romântico. Em minha busca, fiquei entre a solidão e a amizade, dois ensaios que pareciam mais se aproximar do assunto da crônica do Rubem, - a solidão fazendo um contraponto -, mas acabei encontrando “Sobre três relações”, em que ele fala de seus três passatempos favoritos: a conversa com amigos, a companhia de mulheres bonitas e honestas, se possível inteligentes, e a leitura dos livros5. Contudo, em um trecho do texto de Erich há a brecha de que eu precisava: Por ser mais viva, nervosa, robusta, viril, essa volúpia é mais seriamente voluptuosa. E devíamos lhe dar o nome de prazer, mais favorável, mais suave e natural, e não o de vigor, a partir do qual o denominamos. Aquela outra volúpia, 4
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AUERBACH,2010 Idem
mais baixa, se merecesse esse belo nome, não seria o resultado de um privilégio, mas de uma concorrência. Acho-a menos isenta de inconvenientes e dificuldades do que a virtude. Além de ter um gosto mais momentâneo, fluido e frágil, tem suas vigílias, seus jejuns e seus trabalhos, e o suor e o sangue […] e ao mesmo tempo uma saciedade tão pesada que equivale à penitência […].
Essa volúpia de Montagine está presente em “Os amantes”, mas numa cena de amor romântico, explicitada imageticamente em ação, quando Rubem, por meio do personagem/narrador, descreve o ato sexual do casal: Nosso corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemplava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
Por outro lado, além dos 4 séculos que os separam, a experiência dos dois autores em seus respectivos gêneros também os diferencia. Descobri que, enquanto Rubem produziu mais de 15 mil crônicas em seus 62 anos de jornalismo6, Montaigne escreveu cerca de mil páginas em 20 anos7. É bem verdade que o francês viveu 59 anos apenas, enquanto o brasileiro morreu aos 77, mas não foram só os anos a mais. Rubem tinha na crônica seu meio de vida, escrevia para pagar as contas, e como a crônica é uma filha do jornal e da era da máquina8, a produção semanal de textos era grande e obrigatória. Tinha prazo e periodicidades certos, o que é uma realidade bem diferente, para não dizer oposta, à de Messire Michel, que revê o que escreve, acrescenta, risca e corrige9 seus ensaios, que foram publicados pela primeira vez em 1580, e cinco novas edições com acréscimo do terceiro livro, além da edição póstuma com correções e anotações. Quer dizer, Messire Michel não tinha patrão, era de família rica, podia se dedicar (Graças a Deus!) ao exercício da escrita em sua enorme biblioteca, com tranquilidade, uma vez que o pão nosso de cada dia estava mais do que garantido. Graças a Deus, cabe dizer, não só por ter sido Michel um católico declarado, como também porque essa dedicação aos ensaios possibilitou o surgimento do ensaio como gênero e do público que o consome, o que até então não havia. 6
FRAZÃO, Dilva.Rubem Braga Cronista e jornalista brasileiro. Disponível em: https://www.ebiografia.com/rubem_braga/ Acessado em 25/06/2017 7 AUERBACH, 2010 8 9
CANDIDO, 1992 UERBACH, 2010 A
Sem Montaigne, talvez não existisse a crônica de Rubem, que inclusive foi influenciado pelo ensaísta10. Vinícius de Moraes lembra em seu texto “exercício da crônica”11 que o essay era “de onde viria a sair a crônica moderna”. E no afã de atender à análise demandada, percebo que a empreitada do ensaio não está sendo efetivamente executada. O pior é constatar que fico no meio do caminho, alcanço uma forma híbrida de ensaio e artigo acadêmico. E então recorro ao batido recurso de escrever sobre o que estou escrevendo, mas com pavor me lembro de uma aula em que o professor disse “todo cronista um dia escreve sobre a dificuldade ou falta de assunto para a crônica, o que geralmente resulta em uma crônica ruim”. Mas quem já andou três quartos do caminho em uma direção é melhor seguir nela até o fim, seja lá onde o caminho vai dar. Que Flusser me ajude, já que escolhi o risco. Retomando o foco em “Sobre três relações” em paralelo a “Os Amantes”, vejo que é preciso esmiuçar o ensaio e até recortá-lo para fazer uma comparação razoável. É que Montaigne trata de três assuntos especificamente, e destes, a segunda relação é a que me interessa, pelo menos motivo que me interessei pela crônica. E se ressalto isso, devo admitir que é porque estou apaixonada e, confesso, tão apaixonada que cheguei a traçar comparações bem ridículas entre Michel e o objeto de minha paixão, achando-os parecidos. A idealização do outro, quando se está envolvido nesse sentimento febril, é uma coisa impressionante, não é mesmo? Mas enfim, o caso é que depois de elucubrar sobre suas atuais relações de amizade, muito em tom de lamento pela ausência de seu querido e melhor amigo La Boétie (a essa altura já falecido), Montaigne passa para sua relação com as mulheres. E concordo mais uma vez com Erich, aquele do prefácio, quando ele resume que o autor “insiste no fato de que a relação sexual é mais que uma necessidade física e que, portanto, não deve ser mera fome a ser satisfeita fisicamente sem o envolvimento de faculdades mais elevadas”. Prova disso é o seguinte trecho do ensaio que não posso deixar de citar aqui, por ser talvez a melhor parte de tudo que li de Michel até então. Mas essa coisa que os amantes procuram não é só humana, nem mesmo bestial: os animais não a querem tão pesada e tão terrestre. Vemos que a imaginação e o desejo aquecem e solicitam os animais, antes mesmo do corpo; vemos em um e outro sexos que eles escolhem e selecionam na multidão suas afeições e que mantêm entre si relações de longa benquerença. Mesmo esses aos quais a velhice recusa a força corporal ainda fremem, relincham e estremecem de amor. 10
BRAGA, Rubem. Bilhete a um candidato & outras crônicas sobre a política brasileira.org. Bernardo Buarque de Hollanda. 2016 11
MORAES, 1992
Vemo-los antes do ato, cheios de esperança e ardor, e quando o corpo jogou seu jogo ainda se deleitam com a doçura da lembrança; e vemos os que se inflam de orgulho ao partir, e que produzem cantos de festa e triunfo, cansados e saciados. Aquele que só precisa descarregar o corpo de uma necessidade natural não tem por que incomodar o outro com preparativos tão delicados. Isso não é carne para uma fome grande e pesada (...) Mas no assunto do amor, assunto que se refere principalmente à visão e ao tato, faz-se alguma coisa sem as graças do espírito, e nada sem as graças corporais.
Entretanto, Michel passa logo à sua paixão pelos livros e deixa bem clara sua preferência: “Essas duas relações são fortuitas e dependentes de outros (...) A dos livros, que é a terceira, é bem mais segura e mais nossa”, e dada a importância da sua obra e o legado que deixou, não dificilmente seria diferente. Falando em preferência, eu poderia dizer aqui a minha, entre os dois, já que a comparação está sendo feita. Mas entre Montaigne, com seu auto-retrato por escrito em que se desnuda completamente para o leitor, e Rubem Braga, que tem "essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia", segundo definição dele próprio para a crônica brasileira, eu fico com a balança cunhada no reverso do brasão de Michel, Abstenho-me. Porque são eles, e porque sou eu.
Referências Bibliográficas AUERBACH, Eric. O Escriton Montaigne. In Os Ensaios - Uma Seleção. São Paulo: Penguin-Companhia, 2010. BRAGA, Rubem. Bilhete um candidato & outras crônicas sobre a política brasileira / org. Bernardo Buarque de Hollanda. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora. 2016. CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. FLUSSER, Vilém. Ensaios. In: Ficções filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998. MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios - Uma Seleção. São Paulo: Penguin-Companhia, 2010. MORAES, Vinícius de. O Exercício da Crônica. In: Para uma menina com uma flor. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.