SILVA, Tomaz Tadeu da. (1994) "O adeus às metanarrativas educacionais". In: _________. (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, p.247-258 O adeus às metanarrativas educacionais
A teoria educacional e a pedagogia encontram-se sitiadas. Atacadas pelo pósmodernismo, pelo pós-estruturalismo, pelo feminismo, suas fundações balançam e suas praticantes se sentem desestabilizadas. As ameaças e contestações partem de vários lados e atingem vários dos elementos que fundam a educação. Não escapam a essa implosão nem sequer as bases daquilo que se convencionou chamar de Teoria Educacional Crítica, atingida em seu núcleo mesmo de teoria e prática vanguardista. Em outro local (Silva, 1993), tratei de alguns dos aspectos das contestações feitas à Pedagogia Crítica, sobretudo daqueles ligados ao movimento pós-modernista. Neste capítulo, estarei focalizando especialmente a interação entre a Teoria Educacional Crítica e o pós-estruturalismo (com ênfase nas contribuições de Foucault), com alguma atenção também a certos elementos do questionamento pós-modernista. Como se sabe, pós-estruturalismo e pós-modernismo são conceitos amplos e de definição pouco precisa. Eles tendem também a se confundir ligados que estão a um mesmo conjunto de contestações aos fundamentos do pensamento, da filosofia, das ciências sociais, das artes. É possível, entretanto, fazer algumas distinções, que podem ser úteis no contexto do presente trabalho. Em primeiro lugar, pode-se considerar pós-modernismo como um termo mais abrangente que pós-estruturalismo. Em seguida, é possível também distinguir o pós-estruturalismo como um conjunto de desenvolvimentos teóricos vinculados a uma determinada concepção do papel e da natureza da linguagem, uma concepção que modifica e estende aquela sustentada pelo pós-estruturalismo. É possível também distinguir o pósestruturalismo a partir dos autores que o identificam. Estão claramente identificados com o pensamento pós-estruturalista: Foucault, Derrida, Barthes. Em contraposição, a figura que claramente identifica o pós-modernismo, ao menos em filosofia e ciências sociais, é Lyotard. De qualquer forma, neste ensaio não estarei preocupado particularmente com essa distinção,[p.248] embora aquelas questões especificamente pós-estruturalistas sejam assim identificadas. Mas, sem entrar numa descrição prévia dos elementos do pensamento pósestruturalista, que será feita ao longo do trabalho, quais são seus impactos sobre a teoria e a pesquisa educacionais? Que elementos do edifício teórico educacional são abalados pelas
reconceptualizações do pós-estruturalismo e do pós-modernismo? Quais desses elementos permanecem intactos após o vendaval pós-estruturalista? O campo educacional é um campo privilegiado de confrontação para o pensamento pós-moderno e pós-estruturalista. Onde mais as metanarrativas são tão onipresentes e tão "necessárias"? Em qual outro local o sujeito e a consciência são tão centrais e tão centrados? Em que outro campo os aspectos regulativos e de governo (no sentido foucaultiano) são tão evidentes? Haverá uma outra área em que os princípios humanistas da autonomia do sujeito e os essencialismos correspondentes sejam tão caramente cultivados? Existirá um outro campo, além do da educação, em que binarismos como opressão/libertação, opressores/oprimidos, tão castigados por uma certa ala do pósestruturalismo, circulem tão livremente e o definam tão claramente? E onde mais a "Razão" preside tão soberana e constitui um fundamento tão importante? Também não haverá outro lugar em que o papel da intelectual (professora ou acadêmica) seja tão enfatizado, nem outro lugar em que a mudança (do educando, da escola, da sociedade) seja tão ardentemente buscada. Utopias, universalismos, grandiloqüências, narrativas mestras, vanguardismo: esse o terreno em que a educação e a teoria educacional se movimentam. Aqui o pósmodernismo e o pós-estruturalismo têm muito a questionar. A virada lingüística e a filosofia educacional da consciência
A chamada "virada lingüística" na teorização social e em outros campos começa por desalojar o sujeito do humanismo e sua consciência do centro do mundo social. A filosofia da consciência, firmemente assentada na suposição da existência de uma consciência humana que seria a fonte de todo significado e toda ação, é deslocada em favor de uma visão que coloca em seu lugar o papel das categorizações e divisões estabelecidas pela linguagem e pelo discurso, entendido como o conjunto dos dispositivos lingüísticos pelos quais a "realidade" é definida. A autonomia do sujeito e de sua consciência cede lugar a um mundo social constituído em anterioridade e precedentemente àquele sujeito, na linguagem e pela linguagem. Nesse movimento, a consciência e o sujeito não apenas saem do centro da cena social: são eles próprios descentrados. Além de não serem determinantes, autônomos e soberanos, consciência e sujeito tampouco são fixos e estáveis, carecendo de um centro permanente e [p.249] bem estabelecido. A própria natureza da linguagem é também redefinida. Não mais vista como veículo neutro e transparente de representação da "realidade", mas como parte integrante e central da sua própria definição e constituição, a
linguagem também deixa de ser vista como fixa, estável e centrada na presença de um "significado" que lhe seria externo e ao qual lhe corresponderia de forma unívoca e inequívoca. Em vez disso, a linguagem é encarada como um movimento em constante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca capturar de forma definitiva qualquer significado que a precederia e ao qual estaria inequivocamente amarrada. Filosofia da consciência e educação quase se confundem. É aqui, em toda a tradição do pensamento educacional, que a consciência e o sujeito auto-centrado recebem um papel privilegiado. Esse papel central é-lhes concedido pelas várias "pedagogias" que têm atravessado o pensamento educacional. Ele é destacado no humanismo tradicional, com sua suposição de uma essência humana a ser desenvolvida em todas as suas potencialidades. Ele é também parte essencial dos fundamentos das várias psicologias que têm dado sustentação às justificativas da educação institucionalizada – das psicologias humanistas (com seus apelos ao pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas) às psicologias desenvolvimentistas (com sua ênfase no desenvolvimento das capacidades infantis). As suposições sobre consciência e sujeito são comuns às pedagogias da repressão e às pedagogias libertadoras – a oposição binária que lhes opõem apenas revela a existência de uma essência a ser reprimida ou liberada, conforme o caso. Não escapam a essa tradição nem mesmo as chamadas pedagogias críticas – a própria noção de conscientização, tão cara a algumas de suas importantes correntes, está integralmente vinculada à suposição da existência de uma consciência unitária e auto-centrada, embora momentaneamente alienada e mistificada, apenas à espera de ser despertada, desreprimida, desalienada, liberada, desmistificada. A concepção pós-estruturalista, inspirada, nesse ponto, sobretudo em Foucault, ao colocar em dúvida a suposição dessa consciência e desse sujeito soberano, ao desenvolvimento (ou à repressão) do qual a educação estaria voltada, priva-lhe, evidentemente, da própria razão de sua existência e "missão". Que se coloca em seu lugar? Talvez não seja o caso de tentar colocar alguma coisa em seu lugar – operação que correria o risco de remontar precisamente aquilo que o pós-estruturalismo se pôs a desmontar –, mas de enfatizar precisamente o caráter transgressivo e subversivo de uma tal perspectiva. Uma perspectiva que reconhece o descentramento da consciência e do sujeito, a instabilidade e provisoriedade das múltiplas posições em que são colocados pelos múltiplos e cambiantes discursos em que são constituídos, começa por questionar e interrogar esses discursos, desestabilizando-os em sua inclinação a fixá-los numa posição única que, afinal, se mostrará ilusória. A posição pós-estruturalista, naquilo que se refere à chamada [p.250] "virada lingüística", subverte todas as nossas mais queridas noções sobre educação,
incluindo aquelas que tínhamos como mais críticas e transgressivas. Nisso reside sua força. Querer mais significará provavelmente voltar a operar precisamente no registro do qual se quer sair. Desconfiar de todos os saberes-poderes
A teoria educacional, em geral, baseia-se na noção de que o conhecimento e o saber constituem fonte de libertação, esclarecimento e autonomia. A teoria educacional crítica, em particular, acredita que os presentes arranjos educacionais, afetados por objetivos de interesse e poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados de ideologia, mas que é possível, através de uma crítica ideológica, penetrá-los e chegar a um conhecimento nãomistificado do mundo social. A posição pós-estruturalista vai contestar essas visões. Em primeiro lugar, ao reformular a oposição convencional entre ciência e ideologia, entre saber e ignorância/mistificação – que vincula o segundo elemento desses pares a uma distorção que pode ser traçada ao poder (ideologia) e o primeiro a uma posição distanciada e desinteressada em relação ao poder (verdade) – todo saber/conhecimento torna-se igualmente suspeito de vínculo com poder. Em segundo lugar, a própria noção de poder sofre um deslocamento, não podendo mais ser referida a uma fonte ou a um centro único, separando nitidamente o mundo social em opressores e oprimidos, assim identificados antecipadamente e de uma vez por todas. A natureza opressiva ou libertadora de um discurso não pode ser determinada teoricamente, deve ser investigada historicamente, em cada caso específico (Sawicki, citada por Gore, 1994). Nesse deslocamento, muda o próprio foco de análise do poder: não mais simplesmente tentar identificar a fonte do poder, já que as relações de poder são onipresentes, mas principalmente como elas se exercem (Foucault, 1982). Mais uma vez, isso atinge o âmago da teorização educacional crítica. Em que outra coisa consiste o objetivo da pedagogia crítica senão em colocar a intelectual (professor, acadêmica) numa posição privilegiada para identificar fontes e origens de poder que levam a mistificar o conhecimento do mundo social e, com isso, a perpetuar situações de opressão? Não é a missão desse/a intelectual ajudar os/as estudantes a chegar a uma compreensão não-mistificada da vida social, uma compreensão supostamente isenta de interesses de poder? A perspectiva pós-estruturalista, baseada na noção de poder-saber de Foucault, vai nos desalojar a todos dessa posição privilegiada, a partir da qual se pode analisar e criticar o poder sem estar envolvido com ele.
Coloca-se sob suspeita tanto a relação da academia frente aos professores ("práticos"), quanto a desses últimos frente aos/às estudantes. Se não existe o exterior do poder, se não existe uma "verdade" que [p.251] seja o outro lado do poder, todas as relações são arriscadas. A conseqüência disso não é necessariamente uma posição niilista, cínica ou desesperada, mas talvez uma posição mais realista, apesar de todo o desconforto que possa ser causado pela operação de desalojamento de uma posição de poder que deve seu prestígio precisamente à luta contra o poder e à sua suposta isenção em relação a ele. O objetivo já não será mais buscar uma situação de não-poder, mas sim um estado permanente de luta contra as posições e relações de poder, incluindo, talvez principalmente, aquelas nas quais, como educadores/as, nós próprios/as estamos envolvidos. O pós-estruturalismo e o papel da intelectual
É precisamente o papel privilegiado da intelectual que vai ser um dos elementos mais contestados pelo pós-estruturalismo e pelo pós-modernismo. Colocada sempre numa posição afastada, distanciada, isenta, em relação ao mundo social e político, a intelectual, na melhor tradição iluminista, vai contribuir com um saber/conhecimento desinteressado para o avanço e progresso da vida social. Numa perspectiva que vincula sempre saber e poder, essa posição torna-se insustentável. O saber da intelectual não paira acima e fora das lutas e relações de poder: é parte integrante e essencial delas. As pedagogias críticas dependem centralmente de uma perspectiva vanguardista do papel da intelectual, seja em relação aos movimentos sociais em geral, seja em relação ao espaço mais restritamente pedagógico. As noções pós-estruturalistas de poder vão conferir à intelectual um papel bem mais modesto, muito menos universal e muito mais local, que se expressa na noção de "intelectual específica" de Foucault. Nessa perspectiva, a intelectual assume um papel muito mais simétrico em relação às outras participantes das lutas sociais nas quais está envolvida, no sentido de que seu saber, sua visão e seu discurso devem tanto aos interesses de poder quanto os de qualquer outra participante. Essa visão tem conseqüências tanto para as teorias educacionais críticas quanto para os professores. Para as primeiras, fica difícil, a partir daí, manter uma posição de superioridade em relação aos segundos, uma superioridade que se deve à suposição da existência de uma posição incontaminada pelo poder. Suas pedagogias críticas só o serão na medida em que aplicarem a si próprias os instrumentos de crítica que aplicam aos outros. Para os segundos, é sua própria relação com as estudantes que deve ser mantida constantemente em xeque, tendo em vista seu possível envolvimento em processos de
regulação e controle. A intelectual, nessa perspectiva, não se reconhece tanto pelo grau de [p.252] sua crítica em relação às posições de poder dos outros quanto pelo grau de sua auto-
reflexividade. Pedagogia crítica e regulação/controle/governo
O envolvimento da educação e da pedagogia em mecanismos de poder e controle não é nenhuma novidade para a teoria educacional crítica. Essa preocupação é mesmo uma característica central da teorização educacional crítica. O que distingue a posição pósestruturalista, nisso baseada novamente em Foucault, é a ênfase no caráter necessário e produtivo do poder. Enquanto para a teorização crítica de inspiração marxista, por exemplo, o poder distorce, reprime, mistifica, para a perspectiva pós-estruturalista, o poder constitui, produz, cria identidades e subjetividades. As identidades e subjetividades assim produzidas não representam nenhuma distorção, nenhum desvio em relação a alguma essência humana que, se deixada livre ou "bem" encaminhada, seguiria o seu "verdadeiro" curso. A regulação e o governo dos sujeitos e das populações são mecanismos necessários para "canalizar" suas capacidades para objetivos produtivos, no sentido de utilidade para o poder. Mas essa regulação e governo não estão necessariamente centralizados em qualquer instituição específica, como o Estado, por exemplo. O que caracteriza a sociedade contemporânea é precisamente o caráter difuso desses mecanismos de regulação e controle, dispersos que estão em uma ampla série de instituições e dispositivos da vida cotidiana. A educação é certamente um desses dispositivos, central na tarefa de normalização, disciplinarização, regulação e governo das pessoas e das populações. É verdade que tudo soa familiar às pessoas formadas na tradição educacional crítica. Entretanto, a diferença está em que nenhum dispositivo, nem mesmo os críticos, tal como as pedagogias críticas, estão absolvidos de envolvimento em relações de poder, regulação e governo. Para usar a terminologia de Foucault, também elas constituem "tecnologias do eu", profundamente implicadas na produção de determinados tipos de personalidade. A operação convencional de desmontagem na teorização crítica de inspiração marxista consiste em examinar os dispositivos e práticas tradicionais como ligados ao interesse e ao poder. Supostamente, uma vez eliminados esses obstáculos, teríamos uma situação de "libertação", isto é, de não-poder. Na perspectiva pós-estruturalista de inspiração foucaultiana, apenas teria se instaurado um outro regime de regulação e controle, não necessariamente mais benéfico. Evidentemente não seriam apenas as pedagogias críticas que seriam vítimas da ilusão de transcender o caráter necessariamente regulativo e [p.253] de controle da
educação e da pedagogia. A pedagogia construtivista é um outro exemplo, extremamente atual, dessa ilusão. Uma outra implicação dessa perspectiva para a educação é não separar regulação e saber. Embora análises como a de Althusser já tivessem chamado a atenção para o caráter ideológico até mesmo de disciplinas educacionais consideradas "neutras", havia aí sempre a suposição de uma separação entre conhecimento (científico) e ideologia que permitia que o conhecimento "verdadeiro" pudesse emergir uma vez desenredado de seu cipoal ideológico. Na perspectiva que aqui estamos analisando, as disciplinas (matérias) escolares, estando situadas em dispositivos de governo e controle como a educação, contém necessariamente aspectos regulativos dos quais não podem ser separadas – se pudessem já não estaríamos falando de educação. Educação/pedagogia e regulação estão sempre juntas. Os binarismos que habitam a educação e sua desconstrução
Algumas pensadoras educacionais começam a extrair as conseqüências do projeto de desconstrução de Derrida para a educação. Interessa-me aqui destacar apenas duas dessas implicações. Uma das tarefas a que se propôs Derrida foi a de desconstruir oposições binárias caras à tradição do pensamento filosófico ocidental: teoria/prática, sujeito/objeto, natureza/cultura... Derrida tenta demonstrar que nessas oposições um termo não representa a superação do outro, como se pode pretender a partir da posição que argumenta em seu favor. Embora nessas oposições um termo sempre apareça como positivo, reprimindo o outro, na verdade elas supõem uma essência que lhes está subjacente. Ocorre não apenas que essa essência não apenas não existe, como a identidade que é definida pela oposição não é fixa, mas flutuante, cambiante. O campo da educação e da teoria educacional dificilmente pode ser compreendido fora
desses
binarismos:
libertação/opressão,
repressão/liberação,
teoria/prática,
racional/irracional... Uma perspectiva pós-estruturalista inspirada na desconstrução buscaria desmontar essas oposições naquilo que um de seus elementos apresenta de pretensão de superação do outro. Assim, por exemplo, para tomar um exemplo tão central à própria história do pensamento educacional ocidental, se consideramos o par "reprimir/liberar" em conjunto, como uma dessas oposições que remetem a uma essência subjacente, veremos que "liberar", por exemplo, não representa o "outro" de "reprimir" mas apenas um outro lado de uma identidade: a da essência humana que deve ser reprimida ou liberada, conforme for o caso e a época. A oscilação histórica entre reprimir e liberar é uma oscilação que volta ao mesmo ponto (Lerena, 1983).
A crítica das oposições binárias relaciona-se com a crítica dos significados transcendentais. Para Derrida, a filosofia ocidental tem-se [p.254] caracterizado precisamente pela busca daquele significado último de todas as coisas, um significado que as fixaria de uma vez por todas, que permitiria sua compreensão final, um significado que serviria de referência para todos os outros, e que estaria na sua origem. Essa corrida em busca do significado transcendental é mais do que evidente no campo educacional. Certo tipo de questão, bastante corrente nesse campo, define bem essa busca: Que é verdadeiramente
a educação? Que conceito e teoria nos permitiria explicar, de uma vez por
todas, esse ou aquele processo educacional? Em que, exatamente, consistiria a pedagogia progressista última e definitiva? A sucessão de teorias e concepções que se sucedem com certa rapidez na educação é uma demonstração dessa incessante e interminável busca. Embora talvez seja necessário pensarmos os significados como transcendentais, um certo reconhecimento da ilusão que constitui sua busca desenfreada pode constituir um saudável elemento na constituição de uma teoria e uma prática mais modestas e realistas. O abandono dos significados transcendentais – como o das metanarrativas – não deve deixar saudades. Epistemologia social, epistemes e educação
A tradição racionalista no pensamento social e educacional tende a pensar o conhecimento e a epistemologia como um processo lógico e ligado a esquemas mentais de raciocínio. Essa é uma das conseqüências de se conceber a linguagem como um meio transparente e neutro de representação da "realidade". Uma das implicações da "virada lingüística" é conceber o nosso conhecimento e compreensão do mundo social como necessariamente vinculado à própria forma como nomeamos esse mundo. Esse processo de nomeação não é o mero reflexo de uma realidade que existe lá fora; esse processo produz, constitui, forma a realidade. As categorias que usamos para definir e dividir o mundo social constituem verdadeiros sistemas que nos permitem ou impedem de pensar, ver e dizer certas coisas. Esses sistemas constituem, na terminologia de Foucault, "epistemes", ou ainda, para utilizar a sugestão de Popkewitz (1991), "epistemologias sociais". As epistemologias sociais ordenam, formulam, moldam o mundo para nós, um mundo que não tem sentido fora delas. Isso tem muitas e variadas implicações para o campo educacional e sua análise. Quero destacar aqui apenas uma delas, justamente uma das mais importantes. Como outros campos sociais, também o da educação é "governado" pelas categorias que nos permitem nomeá-lo. Em geral, tendemos a ver essas categorias e nomes como resultado de um processo racional e lógico de significação da realidade, envolvendo atores também racionais
e razoáveis. Tendemos, por outro lado, a esquecer o quanto essas categorias, conceitos, nomes, taxonomias capacitam ou restringem aquilo que podemos pensar, sentir, dizer, fazer. Como atores sociais, vivemos dentro de verdadeiras epistemologias [p.255] sociais e educacionais que constituem para nós o campo do possível, nos permitindo pensar, dizer e fazer certas coisas e não outras. Essa perspectiva poderia ser aplicada a muitas outras epistemes e epistemologias sociais no campo da educação, mas me restringirei a apresentar aqui o exemplo das categorias e redefinições atualmente postas a circular pelo chamado neoliberalismo. Estamos atualmente presenciando um processo amplo de redefinição global das esferas social, política e pessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de significação e representação são utilizados para criar e recriar um clima favorável à visão social e política neoliberal. O que está em jogo não é apenas uma reestruturação neoliberal das esferas econômica, social e política, mas uma reelaboração e redefinição das próprias formas de representação e significação social. O projeto neoconservador e neoliberal envolve, centralmente, a criação de um espaço em que se torne impossível pensar o econômico, o político e o social fora das categorias que justificam o arranjo social capitalista. Nesse espaço hegemônico, visões alternativas e contrapostas à liberal/capitalista são reprimidas a ponto de desaparecer da imaginação e do pensamento até mesmo daqueles grupos mais vitimizados pelo presente sistema. Em seu conjunto, esse processo faz com que noções tais como igualdade e justiça social recuem no espaço de discussão pública e cedam lugar às noções redefinidas de produtividade, eficiência, "qualidade", colocadas como condição de acesso a uma suposta "modernidade" (outro termo, aliás, submetido a um processo de redefinição). É preciso perguntar: quais questões e noções são reprimidas, suprimidas ou ignoradas quando um discurso desse tipo se torna hegemônico? Que visões alternativas de sociedade deixam de circular no imaginário pessoal e social? A redefinição da educação em termos de mercado insere-se nessa epistemologia social. A educação deixa de ser definida como um espaço público de discussão, como uma instituição pertencente à esfera política, e passa a ser redefinida como um bem de consumo, no qual estudantes e pais figuram como consumidores individuais e isolados em busca de seus supostos direitos de consumidores. Nesse processo, tendem a ser suprimidas categorias e conceitos com os quais tendíamos a encarar a educação institucionalizada – justiça, igualdade –, deslocados em favor de outras categorias e conceitos – mercado, consumidor, qualidade total. Como resultado, temos uma nova "realidade" linguisticamente definida, que, ao reprimir e tornar impossível qualquer forma alternativa de pensar e dizer, nos aprisiona na única forma que parece possível.
A educação na Idade da Razão
É difícil pensar a educação fora do contexto do predomínio da Razão, tal como definida e elaborada pelo Iluminismo. A história da educação [p.256] de massas e a do pensamento ilustrado quase se confundem. A educação institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala e se difunde, os currículos educacionais são baseados na concepção de Razão, o cultivo da Razão é um dos principais objetivos educacionais. Em muitos sentidos, educação significa produção da racionalidade. Para tomar um exemplo mais atual, pode-se dizer que o objetivo central das chamadas psicologias desenvolvimentistas é produzir a criança racional (Walkerdine). Por isso, numa era em que o predomínio da Razão iluminista é colocado em questão a partir de variadas perspectivas pós-estruturalismo, pós-modernismo, feminismo, pacifismo, ambientalismo – é difícil deixar de repensá-la também no âmbito da educação. As perspectivas pós-modernista e pós-estruturalista, em conjunto, colocam em questão esse predomínio de uma Razão, universal e abstratamente definida. Nessa visão, a noção predominante de Razão é encarada como produto de uma construção histórica que deve suas características às condições da época em que foi desenvolvida e não a uma essência humana abstrata e universalizante. Essa Razão é eurocêntrica, masculina, branca, burguesa, setecentista e, portanto, particular, local, histórica, e não pode ser generalizada. Em termos mais educacionais, o desenvolvimento da criança pensante e racional, como um objetivo abstrato, deixa de levar em conta exatamente o caráter relacional, contextual e histórico do pensamento. Ao ter como objetivo a produção desse "pensador" descontextualizado, a educação e, sobretudo, as psicologias desenvolvimentistas, tendem precisamente a universalizar e a abstrair a noção de razão, ocultando com isso seu caráter particular e histórico. Esse raciocínio, assim concebido e desenvolvido, separado da consideração de seu objeto, tende a despolitizar o processo de pensamento, na exata medida em que o concebe fora e acima de seu contexto político e histórico. As metanarrativas: como viver sem elas
Possivelmente nenhum questionamento pós-modernista tenha atingido mais seriamente a educação que o desfechado contra as metanarrativas. O campo educacional é um campo minado de metanarrativas. Impossível andar nele sem esbarrar em uma. Usamos metanarrativas para construir teorias filosóficas da educação; utilizamos metanarrativas para
analisar sociológica e politicamente a educação; nossos currículos educacionais deixariam de existir sem as metanarrativas – metanarrativas históricas, sociais, filosóficas, religiosas, científicas. O golpe contra as metanarrativas é, portanto, um golpe contra o edifício teórico educacional, seja aquele tradicionalmente construído, seja o da teorização crítica. Parece que o abandono das metanarrativas é irreversível. As metanarrativas, em sua ambição universalizante, parecem ter falhado em [p.257] fornecer explicações para os multifacetados e complexos processos sociais e políticos do mundo e da sociedade. A dependência em relação às metanarrativas políticas tem revelado uma tendência a produzir regimes totalitários e ditatoriais. O apego a certas metanarrativas tem servido apenas de justificação para que certos grupos conservem outros sob opressão. Em educação não é diferente. Temos presenciado com freqüência a busca cíclica da "Grande Pedagogia" que, finalmente, vai dar resposta a todas as nossas grandes questões educacionais e sociais. Em seu afã universalizante, essas pedagogias têm chegado a formular conjuntos de princípios pelos quais se testaria a adesão a seu credo. Analiticamente, também se observa uma tendência a adotar esquemas explicativos universalizantes para os processos educacionais. Em termos de teoria, as metanarrativas educacionais têm servido freqüentemente apenas para que certos grupos imponham suas visões particulares, disfarçadas como universais, às de outros grupos. As metanarrativas com freqüência impedem a discussão pública e aberta ao suprimirem antecipadamente perspectivas que se lhes opõem. Por outro lado, em termos mais curriculares, as metanarrativas têm servido apenas para justificar a exclusão do currículo de outras narrativas que não se encaixam nos pressupostos e dogmas da narrativa mestra que está no comando. Por tudo isso o adeus às metanarrativas não constitui necessariamente uma despedida dolorosa. Ela significa apenas que nossas teorizações precisam ser mais refinadas, mais atentas aos detalhes locais e específicos, enquanto que o conhecimento corporificado no currículo precisa estar mais atento às vozes e às narrativas de grupos até então excluídos de participar de sua produção e criação. As metanarrativas: é possível viver sem elas. E talvez melhor. E agora?
Num campo atravessado por preocupações práticas e políticas não há como evitar a pergunta: dados esses questionamentos, que fazer daqui pra frente? Uma possível resposta é que esses questionamentos apenas estendem e ampliam o projeto educacional crítico de
desestabilização dos poderes, certezas e dogmas estabelecidos. Que isso constitui em si uma prática, uma prática de crítica que tem objetivos e resultados políticos. É verdade que desta vez o próprio projeto crítico torna-se objeto da operação de crítica e questionamento e nisso está precisamente uma de suas novidades. Mas a auto-reflexividade não significa niilismo ou cinismo, nem falta de compromisso e responsabilidade. Há talvez um aumento de responsabilidade, na medida em que nossas posições deixam de ter um ponto fixo e estável e ficam constantemente submetidas à crítica e à dúvida. Isso tampouco implica um abandono [p.258] da política. Se existe abandono é apenas de uma política baseada em certezas, dogmas e narrativas mestras. Os questionamentos colocados pelo pós-modernismo e pelo pós-estruturalismo também implicam uma posição de mais modéstia por parte da intelectual e do professor. O próprio alcance da teoria torna-se mais modesto e limitado. Não mais obrigada a dar conta de tudo, não mais obrigada a prescrever uma série de receitas para todas as situações, a intelectual educacional pode talvez agora assumir sua tarefa política de participante coletiva no processo social: vulnerável, limitada, parcial, às vezes correta, às vezes errada, como todo mundo. A intelectual do modernismo e do estruturalismo está em crise. Talvez surja em seu lugar uma intelectual mais de acordo com o tempo em que vivemos. Mas a partir daqui vou ficar tentado a prescrever. Melhor terminar antes disso. Pós-estruturalmente. Referências
FOUCAULT, M. Afterword. In: H. L Dreyfus & P. Rabinow. Michael Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Chicago, The University of Chicago Press, 1982. GORE, J. Foucault e Educação: Fascinantes Desafios. In: T. T. da Silva (Org.). O Sujeito da Educação: Estudos Foucaultianos. Rio, Vozes, 1994. LERENA, C. Reprimir y Liberar. Crítica sociológica de la educación y de la cultura contemporâneas. Madri, Akal, 1983. POPKEWITZ, T. S. A political sociology of educational reform. Power/knowledge in teaching, teacher education, and research. Nova York, Teachers College Press, 1991. SILVA, T.T da. Teoria Educacional Crítica em Tempos Pós-Modernos. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. WALKERDINE, V. Reasoning in apostmodem age. Londres, Department of Media and Communication, Goldsmiths' ColIege. Mimeo.
Este ensaio foi apresentado em Painel no VII ENDIPE, 5 a 9 de junho de 1994, Goiânia.
Tomaz Tadeu da Silva é Professor do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.