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Sam ba, suor e poder - Revi sta de H i stór i a
Samba, suor e poder Wellington Kirmeliene discute os sambas da ditadura. Veja também vídeos de desfiles. Wellington Kirmeliene
10/7/2008 Imagens cedidas pelo site www.sambariocarnaval.com
Sirenes, gritos e alardes. O ano é 1969 e nem mesmo o grande compositor Silas de Oliveira pôde fugir da censura empregada pela ditadura. Convidado a se explicar ao sensor – um agente a serviço do regime militar (1964‐ 1985), presente em edições de jornal, estúdios de TV, correios e até nas Escolas de Samba com a missão de vigiar e informar as ações internas destas instituições ‐, o poeta maior do carnaval carioca teve que deixar claro o posicionamento do samba de enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba (G.R.E.S.) Império Serrano para aquele ano. A grande inquietação dos militares rondava em torno dos versos que pregavam: “É a revolução / em sua legítima razão”. Após deixar claro que se tratava de uma referência ao movimento republicano que marcou o ponto final da monarquia tupiniquim, Silas de Oliveira foi aconselhado a alterar este trecho da letra. Para a história do carnaval, esta obra ímpar de beleza melódica e poética desfilou afirmando que “É a evolução / em sua legítima razão”. Esta pequena passagem do mundo do samba releva uma questão importante dentro da história brasileira: houve um momento em que as vozes se calaram perante a opressão e a repressão. Tais ações e reação também se manifestaram dentro do “planeta carnaval”. Ao longo dos penosos anos de regime militar, as escolas de samba do Rio de Janeiro, Janeir o, por vezes, se calaram ante a realidade árida e, em alguns casos não tão raros, se mostraram coniventes com o Estado dos generais. No entanto, conforme o Brasil foi se transmutando nos 21 anos de ditadura, outras relações, outras leituras nos sambas de enredo emergiram e desfilaram pela passarela do tempo. No primeiro carnaval carioca de temática livre (1966), o que se percebeu como tendência nas letras de samba de enredo foi uma retomada de fatos do Brasil colonial e a exaltação do país como um eterno celeiro de heróis imortais pelos nobres feitos realizados em vida. No primeiro caso, a celebração de nossa história enquanto colônia possuía justificativas muito claras. Como afirma Monique Augras (1998), tratava‐se de um momento visto como sem males e mazelas. Junto a isto, era tido como o marco inicial de nossa história, o ponto de partida que culminava no regime militar. Desta forma, nada mais politicamente correto do que usar este passado colonial para exaltar as potencialidades de um país em desenvolvimento. O motivo para que o Brasil fosse a grande nação emergente no futuro (reproduzindo a essência do discurso do Estado dos generais) estava em nossa origem como mera colônia portuguesa. Ao se exaltar o país como celeiro de heróis imortais, eternizados por seus feitos, se inflava não só o plano ufanista dos militares como ressaltava um dos potenciais desta terra: apesar das dificuldades, era possível gerar pessoas aptas a “arriscar o peito à própria morte”. Indivíduos http://w ww .r evi stadehi stor i a.com .br /secao/ar ti gos/sam ba- suor - e- poder - 1
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que lutaram em prol da soberania brasileira. Claro, tudo isto culminaria no apogeu do progresso representado no governo militar. Eis a síntese do que os generais queriam ver e ouvir. A imposição nacionalista deveria também desaguar no carnaval e nas letras de samba de enredo. Desta forma, a exaltação, em última instância, não era aos grandes nomes, mas ao próprio Brasil. Era a ovação do todo (a nação) pelo seus tidos heróis. No final dos anos 60, a democracia no país dos generais foi violentada pela intolerância, austeridade e ignorância. No final de 1968 era assinado, pelas mãos de Costa e Silva (1967‐ 1969), o ato institucional nº5 (AI‐5). Como todo ato institucional daquela época, tratava‐se de um decreto presidencial de caráter excepcional que representava um amparo para tudo que não tinha sustentação em nenhuma lei até então vigente. Neste caso, o respaldo era dado à censura total e irrestrita além de praticamente legalizar as perseguições, torturas e, como consequência dos atos, os desaparecimentos e as mortes. Em 1969 todos os componentes do “planeta carnaval” pareciam seguir a cartilha ufanista do regime militar. A grande voz dissonante foi realmente o samba de enredo de Silas de Oliveira em co‐autoria com Manoel Ferreira e Mano Décio (foto). No entanto, nem a obra deles fugiu da força opressora dos generais que aconselharam a alteração nos versos. A censura era realmente total e irrestrita. Durante os anos 70, no reflexo de acontecimentos como a assinatura do AI‐5 e o auge do ufanismo do governo Médici (1969‐1974), com slogans como “este é um país que vai pra frente”, “Brasil, ame‐o ou deixe‐o” em contra posição às perseguições, torturas e mortes que ocorriam nos porões desta pátria tão hostil, dois tipos de discurso surgiram mais comumente dentro dos sambas de enredo do Rio de Janeiro. Um deles, seguido fielmente por algumas agremiações, cristalizava o tom nacionalista exagerado daqueles anos. O representante maior desta vertente discursiva foi o G.R.E.S. Beija‐Flor de Nilópolis, que nos carnavais de 1974 e 1975 encarnou e propagou o ideal militar de que este era o país de um presente grandioso com futuro promissor (Brasil, ano 2000 ‐1974) que só seria alcançado através da segurança ditando o ritmo do progresso ( O Grande Decênio – 1975) (foto). Vale ressaltar que este tipo de fala não foi presente unicamente na Escola da Baixada Fluminense. Agremiações tradicionais como Imperatriz Leopoldinense e Estação Primeira de Mangueira também adotaram este caminho nacionalista. No caso da Imperatriz Leopoldinense, um dos lemas do governo Médici chegou a ser adaptado e incorporado ao corpo de um samba de enredo. Falando sobre a criação do Brasil e do brasileiro, através do personagem Martim Cererê de Cassiano Ricardo, a verde e branco de Ramos profetizava no refrão: “Gigante pra frente a evoluir / Milhões de gigantes a construir”. A idéia do progresso para a construção da nação do futuro estava sintetizada em versos e melodia. No caso do G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, o seu ufanismo percorreu corredeiras, palmilhou florestas, se banhou em cascatas e voou junto aos pássaros. Exaltando uma das potencialidades do Brasil, que era a de possuir uma natureza invejável, a Escola Verde e Rosa, em 1970, trouxe o samba que sintetiza aquilo que Augras chamou de “ufanismo naturalista”. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/samba-suor-e-poder-1
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Com o enredo batizado de Cântico à Natureza, a agremiação reviveu através de versos e melodia a idéia que repousa na carta de Pero Vaz de Caminha, “em se plantando tudo dá”. Este potencial de produzir tudo, ou quase tudo, era o que fazia do Brasil um país diferente e uma nação com futuro próspero. Afirmava em versos, “Oh, lugar! / Oh, lugar! / Tudo que se planta dá / Terra igual essa não há”. O que se percebe é uma exaltação do país dos generais através de uma ovação à natureza, ao clima que havia aqui. Afinal, como concluia este samba da Mangueira, “Isso é Brasil! / Isso é Brasil!! / Isso é Brasil!!!”. Uma segunda vertente discursiva dos sambas de enredo, que resplandeceu nos anos 70, foi a do escapismo. Criada pelos enredos delirantes de João Jorge Trinta, o Joãozinho Trinta, tinha como marca a apresentação de temas que implodiam com a realidade, beirando a loucura. Este carnavalesco maranhense venceu dois carnavais pelo G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro ao carnavalizar temas como O rei da França na Ilha da Assombração e As minas do Rei Salomão . O primeiro enredo falava dos delírios do jovem rei francês em relação ao Maranhão. Na realidade, o enredo pretendia exaltar o estado natal do carnavalesco e as lendas maranhenses que ele viveu tão perto e tão cedo. A grande discussão ficou para 1975 quando muitos criticaram a ligação entre o enredo sobre as minas do rei Salomão e o Brasil (foto). Na época ainda vigorava o chamado “Motivo Nacional”, criado em 1947 pelo General Dutra e que, com força de lei, falava da obrigação que os enredos carnavalescos tinham em possuir relação com o país. Afirmava certo trecho do samba de enredo que, “E da Fenícia veio o rei Iran / Em galeras alcança as terras das amazonas”. A história registra que muitos foram os aventureiros que encontraram tribos de mulheres guerreiras (as amazonas) no norte do Brasil. Eis aí a origem do nome do Rio Amazonas. Pois bem, contra a acusação de que o carnaval feito por Joãozinho Trinta não respeitava tal artigo, o próprio carnavalesco se defendeu ao citar a tese de que os fenícios estiveram no Brasil e este povo era o grande personagem no enredo salguerense. Discussões a parte, a Escola rubro‐ branca se tornou bi‐campeã em 1975, uma vez que havia conquistado o título no ano anterior. Não cabe aqui julgar se este tipo de discurso tanto da agremiação quanto do samba de enredo era algo que demonstrava o grau de alienação dos envolvidos ou se era o desejo de fugir realmente de uma realidade dura e desencorajadora. O que vale é questionar até que ponto este tipo de fala não nasceu, também, por se tratar de um período em que a alienação era até que forçada pelo Estado ao censurar certas informações, como acontecia na imprensa escrita que colocava receitas culinárias no lugar de trechos censurados nas notícias. Quando o “Milagre” (Milagre Econômico, criado por Delfim Neto) se tornou um desastre marcado por recessão, inflação e stagnação geral, os economicistas de plantão não tardaram em batizar os anos 80 de década perdida. No entanto, para o Carnaval e o samba de enredo este rótulo não servia. A indústria audio visual passaria a levar o Desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro para outros países, fosse através de imagens de TV, fosse através dos LPs. Para os aficcionados deste estilo musical, era chegada a década de apogeu em poesia e melodia. Para a política, era época do governo do último general, João Baptista Figueiredo (1979‐1985), aquele que disse preferir o cheiro de cavalo ao do povo. Seu mandato teve como principal feito a assinatura da Anistia, no final de 1979. Era o perdão aos crimes políticos ou cometidos em nome da política. Se o AI‐5 colocava em prática a censura total e irrestrita, a Lei da Anistia dava o perdão total e irrestrito, inclusive àqueles que perseguiram, censuraram, torturaram e assassinaram milhares de pessoas nos porões do Brasil. Enfim, neste clima de reabertura o http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/samba-suor-e-poder-1
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discurso do samba de enredo também se alterou. Aparentemente a mordaça já se afrouxava. Desta forma, os primeiros sambas dos anos 80 foram marcados por críticas sutis que, na rolança dos tempos, se tornariam mais ácidas. Duas obras inauguraram esse tom crítico envolto em poesia: o samba de enredo do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel (Sonho de um sonho) e do G.R.E.S. Unidos da Tijuca (Macobeba). No caso da primeira letra, há uma crítica clara à censura e o desejo de que a Ditadura realmente terminasse. “Sonhei que estava sonhando um sonho sonhado / Um sonho de um sonho magnetizado / As mentes abertas / Sem bicos calados”. A poesia de Martinho da Vila e parceiros conseguia trabalhar o desejo de liberdade de expressão e crítica à mordaça cultural de forma muito suave, mas eficaz. Havia espaço também para que se falasse das torturas, que deveriam acabar com a reabertura. Ao falar de uma “prisão sem tortura”, o samba colocava em xeque até que ponto a bandeira da Anistia e o processo de finalização da Ditadura se tornariam realidade ou não passariam de um devaneio. No mesmo ano, a novata no Grupo Especial do Rio de Janeiro, a Unidos da Tijuca trouxe para a pista um enredo inspirado na obra de M. Cavalcanti Proença, O manifesto holandês ou A peleja do caboclo Mitavaí contra o monstro Macobeba. Batizado simplesmente de Macobeba, o samba de enredo da Escola tijucana criticava a abertura dada às influências estrangeiras não só na economia como também na vida cultural do país. A principal nação influente em nossos passos era os Estados Unidos. Logo em seu princípio, a obra de Azeitona e parceiros afimava que “É tão sublime exaltar / Neste dia de folia /E cantar a odisséia de um valente brasileiro / Contra o monstro do estrangeiro / Que com todo o seu dinheiro / Quer calar a nossa voz”. Sem rodeios, o samba de enredo tijucano batia de frente com a política edificada pelos militares, ao longo da ditadura, de promover o desenvolvimento nacional com o uso de capital estrangeiro, o que só aumentava nossa dependência não só econômica, política como cultural. Sobrava ainda espaço para atacar a exploração realizada sobre nossa nação com conivência dos generais. “Tira daqui leva pra lá / O que hoje dá pra rir / Amanhã dá pra chorar”, e realmente o que parecia belo nos anos do “Milagre Econômico” desembocava em uma realidade devastadora e alarmante. Se antes era possível rir de alegria pela falsa ilusão de avanço brasileiro com o “Milagre”, agora era momento de chorar com o desastre ocasionado pelo plano de Delfim Neto. Mas tudo acaba em Carnaval neste Brasil de vários brasis. Os anos 80, além de marcar a ascensão do último general na presidência da República, trazia também uma luta por eleições diretas para presidente. Eis que surgia o movimento conhecido como “Diretas Já!” (1984). De uma movimentação sócio‐política, tudo se transformou numa grande festa que se alastrava pelo país. Este tom festivo também ressoou sobre o Planeta Carnaval. O discurso dos sambas de enredo cariocas herdara do princípio da década o teor crítico. No entanto, misturava a isto o poder do riso, a comicidade típica desse clima alegre e efervescente em busca do voto popular para presidente. A principal Escola, porta voz desta nova modalidade discursiva do samba, era a irreverente Caprichosos de Pilares. Vinda do subúrbio do Rio de Janeiro, a agremiação que tinha por símbolo cobras fumando realmente colocava as peçonhentas para fumar quando usava o tom debochado para falar dos assuntos da época. Nos anos de 1984, 1985, 1986 e 1987, os sambas de enredo “caprichosamente” tomaram como temas, as trapalhadas políticas, econômicas e o sorriso contra a seriedade da Ditadura; o passado nostálgico envolto em saudade; a influência norte americana opressora sobre o Brasil e a eleição de deputados para a Assembléia Constituinte, respectivamente. Um exemplo da voracidade que possuía os versos cômicos e críticos da Caprichosos está na obra de 1984 que brincando com o duplo sentido das palavras afirmava, “Tantas loucuras / Dos ministros, os Trapalhões / Brasil, Brazil, Brazuca / É Alice no país das ilusões”. Se falava do grupo de humoristas “os trapalhões”, famoso na época, ou chamava os ministros de trapalhões? http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/samba-suor-e-poder-1
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Retomando os versos do samba de enredo de 1980 da Unidos da Tijuca, se se podia rir num dia, no outro se podia chorar. Como que numa profecia, tal afirmação se concretizara. A Emenda Dante de Oliveira, que iria restaurar o direto de voto direto para as eleições presidenciais, fora derrotada. Para piorar a situação, em 1985, o candidato que era depositário de toda a esperança popular, talvez por ser o primeiro civil na presidência após 20 anos de ditadura, ainda que eleito indiretamente, falecia de forma estranha. Tancredo Neves, aquele que não foi, mas poderia ter sido, não chegou a assumir o governo. Um ar de insegurança pairou nos céus do Brasil. O que se veria a seguir seria a recontrução de um país alicerçado em uma democracia não muito bem definida. O clima de incertezas perdurava e isto também seria refletido no discurso dos sambas de enredo que perderiam muito do teor cômico e se aproximariam dos moldes atuais. A verdade é que ainda se perguntava, evocando os versos da União da Ilha do Governador de 1978, “Como será o amanhã? / Responda quem puder / O que irá me acontecer? / O meu destino será como Deus quiser”. Wellington Kirmeliene, historiador, autor da monografia “ Pra não dizer que não falei de Carnaval – o discurso dos sambas de enredo do Rio de Janeiro de 1966 a 1990 ”, é professor da rede particular de ensino de São Paulo e compositor de samba de enredo.
Saiba mais:
Carnaval na ditadura ‐ No You Tube, vídeos de desfiles dos anos 80
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