O principal eixo desta obra é a questão da ordem na política mundial, no qual está definida como uma situação efetiva ou possível, não como um objetivo a ser alcançado. Para ser mantida, ela depende de normas que podem ter ou não a condição de leis internacionais. Neste livro o autor denuncia uma falha nos estudos sobre a política mundial, por não serem reunidas sob foco comum as regras derivadas do direito internacional e as que pertencem à prática política. ----------------------As variantes “neo” do realismo e do liberalismo em Relações Internacionais caracterizam-se por abraçar a epistemologia positivista. Além de dominarem a formulação de explicações nesse campo do conhecimento, poucos são os movimentos de síntese entre elas. Nesse sentido, a Escola Inglesa de Relações Internacionais fornece uma interpretação não-positivista da realidade internacional, na qual se destacam o uso da história e a preocupação normativa com valores e normas, mas sem descurar do rigor analítico e das contribuições das tradições do Primeiro Grande Debate. O texto discute algumas das d as principais contribuições da Escola Inglesa a partir de uma análise de “A Sociedade Anárquica”. Além sintetizar os argumentos, busca-se identificar os diálogos dessa obra com o pensamento político ocidental e elencar a atualidade de suas lições. Augusto Wagner Menezes Teixeira Júnior é Mestre e Doutorando em Ciência Política pela UFPE. Professor Substituto do Curso de Relações Internacionais da UEPB. Bolsista CAPES. CAPES. Email:
[email protected].
[email protected]. Introdução As Relações Internacionais conhecem um amplo campo de problemas e temas. Nas últimas décadas, entre as várias problemáticas caras a disciplina, poucas têm recebido tanta atenção e despertado debates tão longevos como a questão da ordem na política doméstica e internacional. O problema em apreço não é novo. Desde Nicolau Maquiavel o tema da ordem e as condições necessárias para o seu estabelecimento e manutenção têm sido colocados sob escrutínio da análise filosófica e científica. Os ecos dessa problemática provavelmente foram sentidos por Thomas Hobbes, que inserido em um contexto político e social de desordem (desordem essa dada em dois níveis. No nível nacional com a desagregação das bases da autoridade política, no contexto externo pela constante ameaça e o medo de ações violentas de outros reinos contra a Grã-Bretanha), pensou uma alternativa política para instaurar a ordem. Passados cerca de quatro séculos após essas reflexões, emerge no contexto teórico das Relações Internacionais a obra “A Sociedade Anárquica”, de Hedley Bull. Trazida ao público originalmente em 1977, os anos que precederam a sua publicação foram marcados por processos de desafio e defesa do status quo no sistema de estados. Eventos como a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Bolchevique e o advento da Segunda Grande Guerra contribuíram para a constância do problema da ordem nas relações internacionais. Mais próximo ainda aos cenários analisados por Bull é a configuração do tabuleiro de poder que surge após o término do segundo conflito mundial. É imerso no contexto resultante desses processos históricos que Hedley Bull realiza a sua análise resultando na obra em questão. Bull nasceu em Sydney em 1932, vindo a se formar em Direito e Filosofia em 1952. Na década de 1950, mais precisamente no ano de 1953, obteve o bacharelado de filosofia em política, vindo posteriormente a ocupar o cargo de professor na London School of Economics (GRIFFITHS, 2004). Para compreender The Anarchical Society, se faz relevante observar que a obra de Bull faz parte da chamada Escola Inglesa em Relações Internacionais (de acordo com Williams Gonçalves (2002, p. xii), a Escola Inglesa é conhecida como a corrente da Sociedade Internacional, ou como escola realista inglesa. Vide o Prefácio da obra). Destaca-se nesse n esse período o contato que o autor teve com importantes expoentes das relações internacionais, em especial Martin Wight. O impacto da Escola Inglesa, em particular o pensamento de Wight são percebidos na obra o bra de Bull ao considerarmos o problema abordado e a sua sustentação teórica; por outro lado, ao
lançar luz sobre os aspectos metodológicos vê-se a opção por uma epistemologia tradicionalista. No que tange à teoria e ao conjunto de problemas tratados pelo autor, reconhece-se que a opção de abordar a configuração interestatal sob os aspectos da moral, da justiça e de valores compartilhados, afirmando a existência de uma sociedade internacional, são características tributárias das teorias da sociedade internacional, onde a Escola Inglesa e Wight se enquadram (GRIFFITHS, 2004, p. 215). Na dimensão metodológica, o reconhecimento da história como um recurso indispensavel na explicação científica, buscando nesta fonte os processos formativos e a recorrência dos fenômenos explorados são aspectos que caracterizam Bull e a Escola Inglesa. A Escola Inglesa no Contexto do Pensamento Político Ocidental Atento a tradição do pensamento político ocidental, Hedley Bull faz referência a autores modernos (do século XX), mas também a pensadores do século XVI ao XIX. As teorizações desse amplo período precedem em muito a emergência da Escola Inglesa. Com o intuito de apresentar a ligação entre os debates travados por Bull com antigos pensadores consagrados na filosofia política, prosseguiremos a partir da relação tema/autor(es). O primeiro grande tema do livro é a ordem, tendo como problemática auxiliar a questão de sua conciliação com a justiça. Primeiramente, é de se notar que ao longo dessa seção do livro, o autor não faça referência a Nicolau Maquiavel. Embora o secretário florentino não tenha teorizado especificamente sobre a ordem internacional, em Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio Maquiavel dedica muitas páginas ao problema da instauração, manutenção e do declínio da ordem. Inclusive, o problema da ordenação é central para esse autor. Em contrapartida, Bull brinda o leitor ao trazer ao debate pensadores como Kant e Hobbes. O autor aborda os aspectos do pensamento kantiano quanto à unidade da humanidade, do indivíduo como unidade e ator básico nas relações políticas e sociais. Em especial, a concepção daquele pensador iluminista sobre a existência de objetivos elementares da “grande sociedade humana” influencia diretamente a reflexão de Bull. Ao lançar luz sob objetivos elementares, Bull parece receber influência de John Locke, embora não chegue a citá-lo. Ao considerar a vida, a verdade (boa fé) e a propriedade como objetivos primários compartilhados pelos Estados, Bull aproxima-se da noção de direito natural de Locke, onde a dimensão da liberdade está representada pela soberania. E ao discutir sobre a soberania é interessante que o autor remete-se ao teórico, que provavelmente cunhou o primeiro e principal conceito de soberania: Jean Bodin. Ao discutir sobre como as reivindicações concorrentes para governar entre os emergentes Estados territoriais europeus (contra as instituições do papado) poderiam ser resolvidas, Bodin inova no pensamento político ao sugerir a soberania como o elemento que distingue o príncipe das demais autoridades. Para esse pensador a soberania era indivisível. Observa-se que a noção de soberania esboçada por Bull é semelhante, senão a mesma da proferida por Bodin. Além desse ponto, Bull discute sobre como essa soberania se dá e é mantida no contexto do sistema de Estados. Ao fazê-lo, o autor evoca pensadores-chave na elaboração do conceito de sistema de Estados, inclusive ressaltando as suas diferenças. São estes, Pudendorf, Gentz e Rousseau. Ao longo do texto, Bull parece concordar mais com a posição de Gentz sobre o sistema de Estados. Porém, ao entrar na seara sobre essa forma particular de constelação internacional, o autor chama atenção para três tradições teóricas que disputam entre si. Os pontos de disputa são as suas visões acerca da natureza da política internacional e a conduta dos Estados. Essas escolas correspondem à corrente hobbesiana, kantiana e a grociana. Discutidas as diferenças entre essas tradições, Bull demonstra ter preferência pela linha grociana, onde sustenta a idéia da possibilidade de existir uma sociedade dotada de ordem mesmo no contexto de anarquia internacional. Aqui, a ênfase recai nos escritos de Grotius que enfatizam a idéia de valores e objetivos comuns compartilhados entre os Estados, o que favorecia um padrão de organização
das relações interestatais nos moldes de uma sociedade. Ao afirmar isso, Hedley Bull busca sustentar a sua reflexão em fatos históricos, recorrendo ao registro da existência de sociedades internacionais muito antes do século XX. Bull traz ao texto referências de autores como Francisco de Vitória, Grotius e Pudendorf, como pensadores que trataram de elementos comuns e societários dos povos europeus. Vitória, ao tratar sobre o problema do direito natural e a sua aplicação em povos não civilizados, Grotius ao problematizar sobre a aplicabilidade do direito, restrita aos povos que compartilhavam princípios e normas em comum. Ainda sobre esse assunto, Bull volta-se à idéia de sociedade internacional européia, onde em seqüência aos assuntos abordados pelos autores supracitados, Bull cita Bynkershoek, Wolf, Vattel, Burke e Gentz. É relevante destacar que a idéia de república ou comunidade cristã, que passa a ter o fundamento cristão transferido para a identidade européia com os autores acima, é essencial. O exemplo maior disso é Edmund Burke, quando este defende a intervenção britânica na França revolucionária sob o argumento da “lei da vizinhança”. Observava que as mudanças promovidas pelos revolucionários colocavam em perigo a comunidade das nações européia, desafiando a ordem, os costumes compartilhados pelas nações dessa parte do mundo. Ainda sobre esses autores. Bynkershoek parece ser aproveitado por Bull no que tange a defesa da boa fé, e da verdade, como elemento fundamental nas relações interestatais. No que se refere às instituições da sociedade internacional, Hedley Bull lança mão de uma vasta gama de pensadores clássicos. Ao introduzir o tema do equilíbrio de poder o autor utiliza o conceito de Vattel, que afirma que “nenhuma potência possui posição de preponderância absoluta e em condições de determinar a lei para as outras” (VATTEL apud BULL, 2002, p.117). Provavelmente, o primeiro texto no Ocidente sobre a balança de poder foi escrito pelo filósofo David Hume no livro On The Balance of Power. É interessante que Bull ao tratar desse tema faça referência a célebre discussão encabeçada por Edmund Burke sobre o equilíbrio de poder na Europa com a emergência da França revolucionária. Inclusive, o autor faz referência à questão da não-intervenção em Richard Cobden, autor liberal pouco visto em manuais de Relações Internacionais. Ao abordar o papel da diplomacia na manutenção da ordem (capítulo VII), Bull lança mão do célebre espião e embaixador de Luís XIV, François de Callières. A necessidade de uma diplomacia permanente e da formação de alianças preconizada por Callières é vista por Bull como um mecanismo de manutenção da ordem no sistema de estados. Finalmente, ao tratar sobre as alternativas para o sistema de Estados contemporâneos, evidencia-se novamente o recurso a pensadores caros à Ciência Política e às Relações Internacionais como Grotius, Kant, Marx e Mazzini. Este último inclusive, pouco citado na literatura internacionalista é abordado pelo escritor de “A Sociedade Anárquica”. Nessa seção do livro, o internacionalista observa que nas alternativas sugeridas para o sistema de Estados e para a sua reforma estão presentes os princípios solidarista grociano, a idéia da república universal de Kant e o ideário revolucionário de Karl Marx. Ao fazê-lo, Bull trabalha esses legados teóricos como corpus teórico central que embasa um arcabouço normativo e teórico na segunda metade do século XX. Feitas as primeiras mediações sobre as vinculações teóricas da Escola Inglesa com o pensamento político ocidental, cabe apresentar o problema primeiro da obra de Bull, os seus argumentos e conceitos basilares. Ordem, Valores e os Antecedentes Históricos da Sociedade Internacional De forma sintética, pode-se afirmar que o livro “A Sociedade Anárquica”, tem no problema da ordem internacional o seu tema central. Ao longo do desenvolvimento do pensamento político, da filosofia e da ciência política, observa-se que se tem associado a existência da ordem política
e social com a presença de uma autoridade política centralizada. A partir da era moderna, em especial após a Paz de Westphalia, essas unidades políticas correspondem aos Estados modernos, entendidos como “comunidades políticas independentes” (BULL, 2002, p. 13). Gozando do que Bull chamou de “soberania externa” e “soberania interna”, os Estados seriam os artífices da ordem na esfera doméstica, mas também externa. Contudo, como considerar o problema da ordem na esfera internacional? A indagação dirige-se ao fato, amplamente aceito, de que a cena internacional é marcada pela ausência de uma autoridade política centralizada, inexistindo um corpo político com a capacidade de exercer soberana sobre as demais unidades políticas. Em outras palavras, como pode vir a emergir a ordem internacional no contexto da anarquia? Inspirado em Wight, Bull apresenta ao leitor três correntes que fornecem subsídios para responder essa questão. Essas “tradições doutrinárias” são a hobbesiana (realista), a kantiana (universalista) e a grociana (internacionalista). Estas escolas incorporam descrições sobre a natureza da política internacional, e conseqüentemente, sobre a conduta dos Estados. Para a primeira, a natureza da política internacional seria caracterizada pela tendência ao conflito, “… lembrando um jogo totalmente distributivo, de soma zero” (BULL, 2002, p.33), onde a guerra seria a sua expressão máxima. Logo, para essa corrente, a forma como a ordem é mantida na esfera doméstica não seria aplicável no meio internacional. Principalmente pela inexistência de um “Leviatã”. Adotando uma postura oposta, a tradição kantiana, considerava a existência de vínculos sociais transnacionais compartilhados entre os seres humanos. De acordo com o texto de Bull, o problema nesse caso é que essa escola põe em segundo plano o papel dos Estados na instauração e manutenção da ordem, preconizando “… a derruba do sistema de estados e sua substituição por uma sociedade cosmopolita” (2002, p. 34). Por último, “a chamada tradição grociana ou internacionalista coloca-se entre a realista e a universalista, e descreve a política internacional em termos de uma sociedade de Estados ou sociedade internacional” (2002, p.34). Nesse sentido, ao trazer à reflexão a dimensão da sociedade, tendo como unidade principal os Estados (“membros imediatos da sociedade internacional”), a perspectiva grociana contribui para conciliar a possibilidade da ordem no ambiente de anarquia internacional. Porém, ao se alinhar ao pensamento grociano, como Bull consegue resolver o problema teórico da emergência e funcionamento da ordem na ausência de uma autoridade política central? O autor parte de um debate teórico precedente e de hipóteses informadas pela teoria. A partir disso, afirma que, o presente estudo [A Sociedade Anárquica] tem como ponto de partida a proposição de que, ao contrário, a ordem é parte do registro histórico das relações internacionais; e particularmente que os estados modernos formaram, e continuam a formar, não só um sistema de estados mas também uma sociedade internacional” (2002, p. 31-32). Para resolver a indagação anterior, Bull recorreu ao fato histórico de que a sociedade internacional tem sido uma recorrência nas relações internacionais (vale salientar que quando Bull fala em relações internacionais está se referindo a relações entre Estados). Ao voltar-se para os séculos XV, XVI e XVII, observou que o nascimento dos então Estados modernos europeus fora acompanhado pela dimensão supranacional da respublica christiana, a sociedade internacional cristã. Como reforço a sua tese sobre a recorrência histórica da existência de uma sociedade internacional, o acadêmico aborda a sociedade internacional européia dos séculos XVIII e XIX. É importante notar que o aspecto mais relevante destacado por Bull sobre essas antigas sociedades internacionais é a existência de valores compartilhados. A República Cristã acima citada exemplifica esse argumento, pois, refere-se aos valores, aceitos pelos então Estados europeus, derivados do cristianismo e sistematizados em doutrina jurídica pelas formulações universalistas do direito natural.
Segundo a tese de que mesmo marcados pela anarquia internacional, o sistema de estados se configura sob a égide de uma sociedade internacional. Esta, tem como amálgamas centrais os valores e objetivos elementares compartilhados. Partindo desse raciocínio, a ordem é apresentada como a condição que vai possibilitar a defesa e a garantia desses objetivos elementares. Assim o era na sociedade internacional européia do início da modernidade, onde valores em comum e instituições internacionais longevas funcionaram como mecanismos para a manutenção da ordem do sistema. Feita a contextualização histórica do argumento central do autor, se faz necessária uma abordagem mais detida sobre as principais idéias abordadas na obra em questão. Para tal, seguem-se alguns comentários sobre a dimensão conceitual e teórica. Uma Breve Síntese de “A Sociedade Anárquica” A partir da leitura da obra em apreço é possível observar que os seus capítulos são divididos em três tipos de questões. Do capítulo I ao IV destaca-se o problema da ordem e a sua manutenção. No capítulo IV dá-se atenção especial a questão da primazia da ordem sobre a justiça e das possibilidades de serem não excludentes. Ao longo dos capítulos V, VI, VII, VIII e IX, Hedley Bull apresenta ao leitor o que considera as instituições efetivas da sociedade internacional (BULL, 2002, p. 4). E finalmente, do capítulo X ao XIII, o autor apresenta uma série de indagações sobre o futuro do sistema de Estados e consequentemente, da ordem internacional. Nessas seções, é importante ter em mente que Bull realiza uma defesa do sistema interestatal (vide os primeiros dois parágrafos da Conclusão, p. 357). Um importante desdobramento do aporte metodológico adotado pelo autor (ligado diretamente ao uso da história em suas análises) está na forma como encara a ordem internacional ao longo da sucessão histórica. Esse ponto de vista é bem expresso quando afirma que “… a ordem é uma característica que pode ou não existir na política internacional, conforme o momento ou lugar; ou que pode existir em grau maior ou menor” (BULL, 2002, p. 1). Nesse ponto é interessante associar a compreensão da ordem de Bull com a do secretário Fiorentino, Nicolau Maquiavel. Enquanto que para o primeiro a ordem e a desordem são situações historicamente determinadas na esfera internacional, para o segundo a história se processa em ciclos de ordem e desordem. Guardadas as diferenças teóricas e históricas, ambos encaram o papel dos atores políticos na luta pela instauração e manutenção da ordem. Entretanto, a abordagem conceitual que Bull emprega à ordem em “A Sociedade Anárquica” difere da noção de Maquiavel. Isso pelo fato de que a ordem que interessa ao autor é a ordem internacional e as condições particulares em que essa se dá. Para Bull, a ordem internacional se refere “a um padrão de atividade que sustenta os objetivos elementares ou primários da sociedade de Estados, ou internacional” (2002, p.13). Ao conceituar a ordem em termos de padrões, incorrendo na idéia de regularidade e manutenção, torna-se necessário compreender qual o mecanismo causal que liga os Estados no contexto de anarquia a uma sociedade internacional. Analisando a definição de ordem internacional acima, se apreende a importância dos “objetivos elementares ou primários” para a sociedade internacional. Considera-se que a relação entre os Estados e a sociedade internacional tem na existência de certos objetivos gerais (valores básicos) o seu elo causal. Bull argumenta que o direito a vida, a verdade (boa fé) e a propriedade são valores/objetivos básicos compartilhados por todos os estados, e assim sendo, demandam um estado de coisas que garanta a realização desses objetivos. Daí a necessidade da ordem e de instituições que as favoreçam. Mas em o que difere o conceito de sistema internacional do de sociedade internacional? Se ambos aceitam o pressuposto de que os Estados são os principais atores do sistema, mantém relações regulares entre si e, inclusive, podem participar de instituições comuns compartilhando assim algumas regras de conduta, então em quais fatores reside a diferença conceitual?
É exatamente na existência ou não do conjunto de objetivos elementares compartilhados que se dá a diferença entre ambos os conceitos. Segundo Bull, quando os Estados participam de instituições (o que Bull entende como instituições internacionais difere de forma substancial das visões que tendem a considerar instituições internacionais apenas aqueles corpos políticos formais, dotados de forma e conteúdo formal, às vezes, de pouca longevidade), compartilham um conjunto de regras e estão conscientes de certos interesses comuns e valores, pode-se falar em uma sociedade internacional (esse ponto é bem desenvolvido na página 19) (BULL, 2002). Ao inexistir a consciência de objetivos e valores compartilhados, quando esses não fazem parte do cálculo racional nas relações interestatais e os Estados apenas participam de instituições comuns e compartilham regras, nesse caso temos um sistema internacional. Em suma, é o caráter de valores e objetivos compartilhados conscientemente e a ação conjunta para a sua promoção, incorrendo na busca pela ordem, que configura a sociedade internacional. Mas como ela é mantida? Para Bull a ordem é mantida por três fatores ou condições: quando existe um senso de interesses comuns de acordo com os objetivos elementares; por regras que prescrevem a forma de conduta que os sustentam e por instituições que tornam essas regras efetivas (BULL, 2002) Os objetivos comuns são acomodados pelos Estados num espaço para o consenso. Estes permitem um arcabouço normativo que contribui na construção de um telos comum. Este é visto como uma situação desejada nas relações interestatais onde os objetivos comuns pudessem ser realizados e garantidos. Em vista desses objetivos e do telos por ele gerado, ocorre uma demanda por regras que regulem a esfera de atuação dos Estados de forma que aumente os custos de uma possível pertubação da ordem. É importante se ater ao conceito de regras dado por Bull, pois evidencia o sentido amplo e sofisticado de sua reflexão. Segundo o autor, “regras são princípios gerais imperativos que autorizam ou obrigam determinadas classes de pessoas ou de grupos a se comportarem de um modo prescrito” (BULL, 2002, p.66). Essa especificidade das regras no contexto da reflexão desse autor tem amplo respaldo na história. É possível sustentar essa afirmação tendo em vista que essas regras emergiram no contexto dos assuntos internacionais tanto pela via do direito natural, como do direito positivo. Ademais, essas regras podem assumir a forma tanto do direito internacional positivado quanto de regras tácitas. Porém, como fazer que as regras sejam cumpridas no contexto de anarquia, onde cada Estado é o seu próprio juiz? A necessidade de fazer valer as regras exige a existência de instituições que tornem as regras efetivas. Nesse caso, quais seriam as instituições que o autor considera como cumprindo um papel funcional a ordem? O autor afirma que na sociedade internacional as instituições mais importantes são os próprios Estados (em especial, ver a página 85). Isso se dá, em primeira medida, pelo fato que os principais atores na esfera internacional são também instituições dotadas de prerrogativas como a soberania, interna e externa. Todavia, ainda se faz necessário recorrer à definição de instituição empregue por Bull, quando afirma que “por instituição não queremos referir-nos necessariamente a uma organização ou mecanismo administrativo, mas a um conjunto de hábitos e práticas orientados para atingir objetivos comuns [grifo nosso]” (BULL, 2002, p.88). Continuando a sua definição, chama a atenção de que as instituições não emergem dos Estados participes da sociedade internacional, mas sim do contexto de interação interdependente entre esses atores, das suas práticas e da colaboração recíproca ao longo do tempo. Na citação de Bull na qual define instituições, grifamos a palavra necessariamente para enfatizar que o autor atribui uma definição ampla do que são instituições. Estas podem variar de organizações e mecanismos administrativos até um conjunto de hábitos e práticas. Cabe salientar que uma definição deste tipo no final da década de 1970 apresenta uma perspectiva inovadora sobre as instituições. Na Ciência Política, uma das principais diferenciações do antigo para o neo-institucionalismo (principalmente a vertente do neo-institucionalismo histórico) está em na forma como define instituições, “como os procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da
economia política” (HALL & TAYLOR, 2003, p.196). Como o conceito de Bull, esse tipo de conceituação permite uma maior percepção de instituições na realidade, embora torne o conceito mais flexível e menos preciso. Dito isso, quais são as instituições centrais para a manutenção da ordem em “A Sociedade Anárquica”? Segundo o autor, as “instituições da sociedade internacional” são: o equilíbrio de poder, o direito internacional, os mecanismos diplomáticos, o sistema administrativo das grandes potências e a guerra (BULL, 2002). Findados os capítulos onde Bull descreve e analisa como as instituições da sociedade internacional buscam manter a ordem, a seção final do livro aceita o desafio de debater as possíveis alternativas ao sistema de Estados. Com isso encara as questões de sua possível obsolescência e reforma. Existe um detalhe na exposição do autor que permite uma melhor compreensão de sua posição face aos debates em questão. Vale salientar que Bull é um defensor do sistema de Estados, como alternativa histórica mais viável para a manutenção da ordem internacional. Ao trabalhar as visões prospectivas acerca do fim do sistema de Estados, Bull argumenta que as alternativas em questão esbarram em dois problemas. O primeiro refere-se que estas escapam à experiência histórica, não havendo registro de sua experimentação na organização de nenhuma constelação internacional. O segundo problema refere-se aos limites de transformação possível do sistema de Estados já consolidado para alternativas que desviam frontalmente dos rumos atuais da sociedade internacional. Sobre a possível obsolescência do sistema de Estados, argumenta que embora este não cumpra outros possíveis valores que informam a organização da sociedade internacional, em especial a justiça, a sociedade de estados permite ao menos a existência de uma ordem mínima. Ademais, Bull considera que não existem evidências fortes que apontem que o sistema de Estados está obsoleto. Entretanto observa que o espaço para o consenso na sociedade internacional está diminuindo, o que poderia afetar seriamente a funcionalidade dessa forma de organizar as relações interestatais. Dada a persistência do sistema de Estados e dos desafios desse formato organizacional diante de desafios emergentes, como reformar o sistema de Estados de forma que sirva mais funcionalmente para a ordem? Sobre essa questão (capítulo XIII), Hedley Bull apresenta as mais relevantes propostas de reforma do sistema de Estados, são elas: o modelo Kessinger, o centralismo global, o regionalismo e a revolução. Pode-se destacar que entre as propostas, talvez a do regionalismo seja a que tem mais força ainda nos dias atuais, onde desde a década de 1990 existe um ressurgimento do regionalismo na política mundial (HURRELL, 1995), reverberando inclusive tanto nos arranjos de segurança como na distribuição do poder econômico internacional. A proposta de centralismo global chama atenção ao leitor contemporâneo pela maior atenção dada atualmente ao tema ambiental. O autor chama atenção para o problema de que “o sistema de Estados só poderá manter sua viabilidade se o elemento de sociedade internacional que contém for preservado e fortalecido” (BULL, 2002, p.353). Nesse sentido, atribui importância fundamental na questão da manutenção e ampliação do consenso sobre os interesses e valores comuns que sustentam as regras e as instituições coletivas. O problema maior, segundo Bull, é que o cenário apresentado nas relações internacionais aponta para a redução desse consenso. Considerações Finais Quais as principais conclusões de A Sociedade Anárquica? Primeiramente, é possível afirmar que a ordem é um requisito fundamental para que exista uma sociedade internacional. A ordem depende de interesses comuns, regras e instituições. Segundo, sobre as questões referentes ao questionamento da funcionalidade do sistema de Estados para com a ordem internacional, Bull afirma que não há sinais de que o sistema de Estados esteja em declínio ou que seja disfuncional em relação aos objetivos elementares. Contudo, o autor faz lembrar que “a
sociedade internacional é apenas um dos elementos constantes da política mundial” (2002, p. 357-358), compartilhando espaço com a guerra e com a comunidade humana. Por isso, se faz necessário uma perspectiva que leve em consideração essa realidade complexa. Em terceiro lugar, Bull compreende que embora a ordem tenha primazia em relação à justiça enquanto elemento que informa a organização internacional, afirma também que esta primazia se dá em todos os casos. Ao longo do livro, o autor sustenta que a necessidade de mudança justa, objetivo legítimo, demanda períodos de desordem temporária precedendo uma nova ordem. Finalmente, podemos observar que “A Sociedade Anárquica”, um clássico das Relações Internacionais, permanece atual. Em tempos de “polaridades indefinidas”, onde os espaços para o consenso parecem se esfacelarem à luz das crises e turbulências internacionais, Bull nos mostra a importância de pensar meio internacional como sociedade, na qual se compartilham valores, regras e expectativas comuns. Quiçá, essa sutiliza na avaliação das relações interpessoais e entre Estados ajude a mitigar os riscos de confrontação violenta nessa segunda década do século XXI. Referências bibliográficas BROWN, Chris; NARDIN, Terry; RENGGER, Nicholas. (2003), International Relations in Political Thought: texts from the ancient Greeks to the First World War. 2ª ed, Cambridge, Cambridge University Press. BULL, Hedley. (2002), A Sociedade Anárquica. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. GRIFFITHS, Martin. (2004), 50 Grandes Estrategistas das Relações Internacionais. Tradução Vânia de Castro. São Paulo: Contexto. GONÇALVES, Williams. (2002), Prefácio. In: A Sociedade Anárquica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. HALL, Peter, TAYLOR, Rosemary (2003), As Três Versões do Neo-Institucionalismo. Revista Lua Nova, n° 58, pp.193-223. HURRELL, Andrew. (1995), O Ressurgimento do Regionalismo na Política Mundial. Contexto Internacional, vol. 17, no 1, pp. 23-59. LOCKE, John. (2006), Segundo Tratado Sobre o Governo. Tradução de Alex Martins. 2ª Ed., São Paulo: Martin Claret. Tags: Escola Inglesa, Ordem, Pensamento Político, Sociedade Anárquica Este artigo foi publicado em 29/11/10 às 11:21 e está arquivado sob Artigos do mês, Livros, Teoria das Relações Internacionais. Você pode acompanhar todas as respostas a este artigo através da alimentação por RSS 2.0. Você pode deixar uma resposta, ou criar um trackback do seu próprio site.