UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL RESUMO DAMATTA, Roberto. Digressão: A Fábula das Três Raças, ou o Problema do Racismo à Brasileira. In: Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco. 1987. Roberto DaMatta, pretende demonstrar como a perspectiva sociológica encontra resistências no cenário social brasileiro, segundo o seu ponto de vista a perspectiva sociológica tem sido sistematicamente relegada a um plano secundário, dado que são as doutrinas Deterministas que sempre lhe tomam a frente. Ele relata que o nosso sistema hierarquizado está plenamente de acordo com os determinismos que acabam por apresentar o todo como algo concreto, fornecendo um lugar para cada coisa e colocando, complementarmente, cada coisa em seu lugar. A partir deste determinismo DaMatta apresenta o “racismo à brasileira” como prova da dificuldade de pensar socialmente o Brasil. Há um conjunto de perguntas sobre as “raças formadoras do Brasil”, com todas aquelas indagações já conhecidas desde o
tempo da escola primária, mas que misteriosamente persistem no nosso cenário ideológico, perguntas que dizem respeito a uma confirmação cientifica da “pr eguiça eguiça
do
índio”, “melancolia do negro”, e a estupidez do branco lusitano.
Tais seriam ainda hoje os fatores responsáveis, nesta visão tão errônea quanto popular, pelo nosso atraso econômico social por nossa indigência cultural e da nossa necessidade de autoritarismo político, fator corretivo básico neste universo que, entregue a si mesmo, só poderia degenerar-se. A fábula das três raças junta as duas pontas da nossa cultura: o popular e o elaborado. Os três elementos: o branco, o negro e o indígena, claro que foram importantes na nossa história, mas há uma diferença entre a presença empírica dos elementos e seu uso como recurso ideológico na construção da identidade social brasileira. Contrariamente ao sistema de classificação das raças americano, o brasileiro admite um triângulo no qual são visíveis as hierarquias sociais. O Brasil foi desde o início da colonização um território onde as ideologias vigentes em Portugal vigoravam e
elas eram bastante rígidas. O que ocorreu, foi um perfeito transplante de ideologias de classificação social, técnicas jurídicas e administrativas que tornaram a estrutura social da colônia exatamente semelhante à Metrópole. A sociedade desta época da colonização é um todo social altamente hierarquizado, com muitas camadas ou “estados” sociais diferenciados e complementares. Uma sociedade em que ninguém é igual perante a lei, uma sociedade em que embora mercantilista e comercial, não imperava a mentalidade burguesa, uma sociedade já familiarizada com formas de segregação social, (contra mouros e judeus). Assim, fica claro que a lei não igualava os cidadãos e, ao contrário, cada um tinha o seu lugar definido. A tese de que o português estava aberto a uma interação étnica igualitária é negada por DaMatta, pois como ele afirma: “O português não chegou ao Brasil desprovido dos seus valores e ideologias, e a colonização portuguesa não se constituiu numa empresa sem alvo ou método. ” É impossível, demarcar exatamente as origens das doutrinas raciais brasileira, mas como vimos é possível notar e apontar seu caráter profundamente hierarquizado que se mantinha desde o seu “descobrimento”. O marco de uma reorientação no sistema vigente de hierarquias no Brasil foi o movimento da Independência, ela fez com que o poder tivesse forças na Corte do Rio de Janeiro, deixando de lado com que as ordens e os favores viessem da coroa Portuguesa. Mas o papel da Independência foi básico, pois foi um movimento de cima para baixo que tinha a classe dominante do poder em seu centro, porém ela mostrou às elites nacionais e locais a necessidade de criar suas próprias ideologias e mecanismos para as diferenças internas do país. Se antes a elite podia colocar todo o peso dos erros e das injustiças sobre o Rei e a Coroa Portuguesa, em Lisboa, após a Independência esse peso tinha que ser carregado aqui mesmo no país pela camada superior das hierarquias sociais. E onde foi essa elite buscar tal ideologia? Essa tal ideologia foi à fábula das três raças, que permitiu conciliar uma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade. Segundo Thomas Skidmore (1976) o marco histórico das doutrinas raciais brasileiras é o período que antecede a Proclamação da República e a Abolição da Escravatura, período este no qual há um abalo das hierarquias sociais. De um lado a Abolição progressiva e aberta sustentando a igualdade e as transformações das hierarquias e do outro a Republica de caráter fechado e reacionário destinado a manter o poder dos donos de terras, fidalgos e nobres. O fato de a Abolição ser uma ameaça a construção econômica e social do país, quebrando com a ideologia católica, o formalismo jurídico e o sistema de hierarquia vindos de Portugal
fazia necessário uma nova ideologia para justificar as condições de relações sociais e assim essa nova ideologia foi dada com o racismo. Mas é preciso mostrar como essa ideologia surgiu de modo complexo tendo duas linhas de entendimento e de propagação. Uma dessas linhas é caracterizada pelo projeto reacionário de manter o
status quo,
em que o escravo foi liberto juridicamente, porém
socialmente ele ainda dependia dos donos de terra e da classe que detinha poderes, para sobreviver (se alimentar, ter moradia, etc.); o outro é bem diferente: trata-se de como a fábula das três raças contribuiu para integrar idealmente o Brasil, permitiu pensar e individualizar a nossa cultura fazendo desta forma uma reafirmação das doutrinas sociais. Vemos como essa nova ideologia vem justificar de alguma forma a permanência dos status sociais, permitindo que a sociedade aceite e ache normal uma sociedade altamente dividida na qual sempre existira o dominado e o dominante. As fontes eruditas do racismo brasileiro beberam das doutrinas que nasceram na Europa no sec. XVIII, como uma doutrina na qual os nobres formavam uma parcela alienígena forte, destinada pelo nascimento e a origem do poder. Mas o racismo só veio ter força e aparecer de forma acabada no sec. XIX como um instrumento do imperialismo e como justificativa natural para a supremacia dos povos da Europa Ocidental para com o resto do mundo. Um dos teóricos mais influentes no Brasil foi Gobineau, para ele o futuro do Brasil era altamente duvidoso, já que a sociedade brasileira era formada por uniões totalmente condenadas entre negros, brancos e índios, era uma enorme população mestiça. Apesar da diversidade teórica racista, os teóricos partiram de pressupostos simples, são eles: o de que cada raça ocupa um certo lugar na história da humanidade, em que o confronto das diferenças entre as sociedades e nações expressavam as posições biológicas diferenciadas. Luis Agassiz, um teórico racista em uma visita ao Brasil escreve em seu livro que “qualquer um que duvide dos males que essa mistura de raças pode trazer, fosse ao Brasil”. Pois essa fusão ou mistura de raças ia apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando o produto final indefinido e deficiente de energia física e mental. E fazendo um paralelo com Gobineau vemos que não é muito diferente; o outro ponto é o determinismo, isso significa que as diferenças biológicas são vistas como tipo acabados e que cada tipo está determinado em seu comportamento e mentalidade por traços biológicos. Gobineau desenvolveu bem esse ponto e elaborou um esquema das raças humanas, em que ele põe em chegue as questões da diversidade de cada raça e a
superioridade da raça branca e ele ainda vai mais além ao explicar essa visão determinista: “Estes poderes e os instintos ou aspirações que surgem deles nunca
mudam enquanto a raça permanece pura. Eles progridem e se desenvolvem, mas nunca alteram sua natureza.” Assim segundo ele estaríamos diante de um código natural e de
realidades que não se podem mudar pelo ato puro e simples da vontade, pelo contrario o destino da raça seria atualizada numa mera questão de combinações. “Se as propensões animais são fortes e não controladas a raça estaria condenada a ter uma vida deficiente e desorganizada ou se as propensões animais são fortes e o intelecto é vigoroso como corre com a raça branca o resultado é uma grande expansão do sentido moral, com uma complexa e variada política.”
É neste modelo na qual era a história racial que
determinava se as civilizações iam se desenvolver ou não. Nos EUA a escravidão foi um fenômeno social regional, altamente localizado e no Brasil, foi uma forma dominante de exploração do trabalho. Diferente dos EUA, no Brasil havia uma ligação entre os grupos, as relações entre senhores e escravos eram de intimidade, confiança e consideração, pois diante de uma sociedade altamente hierarquizada, o senhor feudal não se sentia ameaçado ou culpado “por está submetendo um outro homem em situação de trabalho escravo” ( DAMATTA,1987)
O autor diz que o ponto critico do nosso sistema é a desigualdade profunda. Onde "ninguém e igual entre si ou perante a lei" (DAMATTA, 1987). Nem os Senhores que eram diferenciados pelo nome, sangue, títulos, dinheiro, propriedade etc. Por isso num sistema como esse hierarquizante, não necessita de segregação, por que a hierarquização assegura a superioridade do branco como grupo dominante. “Em sociedades assim
constituídas, situações de discriminação (ou de segregação) só tendem a ocorrer quando o elemento não é conhecido socialmente; isto é, quando a pessoa em consideração não tem e não mantém relações sociais com pessoa alguma naquele meio.” ( DAMATTA, 1987) É claro que, nos sistemas hierarquizados, pessoas de cor sofrem discriminação com mais frequência, mas não se pode esquecer que pessoas pobres e até mesmo visitantes ilustres podem ser discriminados pela simples razão de não terem nenhuma associação firme com alguém da sociedade local. O maior crime entre nós, ou melhor: no seio de um sistema hierarquizado, não está em ter alguma característica que permita diferenciar e assim inferiorizar, mas em não ter relações sociais. (DAMATTA, 1987)
Ou seja, o fato do negro e o branco poder interagir livremente na casa-grande, senzala não implicava dizer que o nosso modo de colonização fosse mais aberto ou humanitário. Comparado com o americano onde negro era negro e branco era branco não se “misturava”, o que
acontecia aqui era que o branco e o negro tinha um lugar
certo dentro de uma hierarquização bem estabelecida. Enquanto os americanos condenavam a mistura de raças, aqui no Brasil crescia a cada dia o numero de mestiços e mulatos e nosso pais era visto como sem futuro porque essas sub-raças eram tidas como hibridas e fracas. O credo racista norte-americano situa as raças como sendo realidades individuais, isoladas e que correm de modo paralelo jamais devendo se encontrar. Já no Brasil elas estão frente a frente de modo completar como pontos de um triangula. No sistema americano a posição dos grupos diferenciados como mais próximos ou mais distantes de uma linha de leis igualitárias que teoricamente estão distantes de todos e a ideologia do “todos são iguais perante a lei” irá determinar o racismo na forma
dualista, direta, legal e principalmente como forma pervertida de superação do credo igualitário abrangente. Já o triangulo racial brasileiro mostra que a interação entre as partes do triangulo é que ira criar as leis e o todo nacional. Existe outra distinção quanto ao esquema de preconceito racial: o preconceito racial americano é de origem, ou seja, um vez que se tenha sangue negro (isso determinado culturalmente) não se pode mudar jamais de posição social, será tratado como um igual perante a lei mais sua diferença sanguínea permanecerá consigo para sempre. Já no nosso país a raça ou cor de pele, tipo de cabelo, etc. não é um elemento exclusivo para a classificação social, existem outros critérios como por exemplo o dinheiro ou o poder politico que permitem classificar um preto como mulato ou até mesmo como branco como se o poder econômico apagasse tal fato. Então com isso podemos dizer que o Brasil possui sistemas múltiplos de classificação social diferente dos Estados Unidos que a classificação é única, direta e dualista. O que o autor nos deixa bem claro é que este tipo de preconceito racial é inteiramente coerente com as ideologias de cada uma dessas sociedades estando correlacionadas historicamente. No nosso esquema, o branco está sempre no topo e unido, enquanto o negro e o índio estão sempre embaixo formando as pernas da nossa sociedade. Com a
miscigenação existente em nosso país, a partir do triangulo de raças puras podemos formas outros triângulos com mulatos, cafusos e mamelucos nas pontas. No meio social hierarquizado essas intermediações triangulares são parte de sua logica social, pois por meio dessa mediação podemos observar que o branco nunca sai de cima e o que resto tanto das raças puras quanto das misturas de raças sempre serão submissas e inferiores a branca. O autor ainda afirma que o que permite o nosso racismo é que situamos na biologia e na raça, relações que eram puramente políticas e econômicas. A conceito de raça é socialmente significativo, no Brasil raça é algo que se confunde com etnia e isso nos permite escapulir de problemas mais complicados, como o de ter que discutir o nosso racismo. Raça é uma questão de ideologias e valores, depende da forma que nós recortamos nossa realidade interna para nós mesmos e é neste movimento de recorte que escolhemos estudar apenas as raças em si mesmas sem nos preocuparmos com as relações entre as raças. Fazendo isto reafirmamos um esquema onde preferimos não ver a realidade do racismo em nosso país e enquanto essa falsa cegueira existir a fábula das três raças continuará a ser fato em nosso país.