Aluna: Ana Carolina de Barros Silva
Algumas contradições políticas do processo pedagógico 1 No texto “Ideologia e Educação” Marilena Chaui explicita as contradições
ideológicas internas ao processo pedagógico. De início, observa que não pretende esgotar o tema, porém tece alguns apontamentos consideráveis sobre a “educação” como ideologia. Partindo de uma breve conceituação de ideologia, que passa pela consideração da dominação de classe dissimulada em um corpus de "representações e de normas" que definem os objetos e os modos nos quais devemos pensar, sentir e agir; da produção de uma universalidade imaginária que pretende apagar do imaginário as diferenças de classe; de uma lógica que não explica tudo e que oculta sua origem histórica enquanto concepção de mundo; e partindo do conceito de Claude Lefort na qual uma das principais operações da ideologia consistiria em passar de um discurso de para um discurso sobre . Isto é, quando um discurso se torna impossível ou danoso a um poder vigente, se produz outro discurso que explicaria as origens daquele objeto e quem poderia evocá-lo de modo legítimo. Exemplos são: quando não se pode falar da revolução, cria-se um discurso sobre a revolução - como devemos entendê-la, valorá-la, qual sua origem, etc. O caso analisado no presente texto seria o discurso da educação substituído pelo discurso sobre a educação, ou seja, é quando o discurso dos protagonistas do processo educacional (alunos e professores) é desvalorizado e por vezes obliterado por aquelas classes sociais as quais interessa a substituição do discurso da educação para um discurso sobre a educação. Este pretende atribuir diretrizes externas e afins aos seus interesses enquanto classe dominante. Neste contexto, Marilena Chaui expõe pontos de conflito entre o discurso da educação como libertadora e as práticas que são ideológicas e obliteram tal experiência. Começa pelo próprio sentido de conhecimento, diz: "O discurso sobre, em geral, oculta seu caráter ideológico chamando-se a si mesmo de Teoria" (p. 26). Ou seja, até que ponto o discurso das várias formas de ''saber'' não seriam uma dissimulação da dominação de 1
CHAUI, Marilena. “Ideologia e Educação” (1980). In:
Educação & Sociedade, II, 5. Campinas:
CEDES/UNICAMP. 1
classe? Neste sentido, diferencia a filósofa o conhecimento do pensamento. Enquanto o primeiro se refere a uma apropriação intelectual do campo da experiência e das ideias como dado, o segundo se refere à compreensão de uma experiência a partir de si mesma, ao invés de dizer o que é esta experiência como se o discurso legítimo só fosse proferido por que é competente para tanto, o pensamento abre espaço para que a experiência faça um discurso sobre e se compreenda a si mesma. Portanto, é explicitado nessa diferenciação entre conhecimento e pensamento o caráter político do primeiro de impor uma visão de mundo e um enunciador competente para uma dada experiência que é silenciada e que por meio do pensamento é evocada. Chaui, a partir da diferenciação entre conhecimento e pensamento, passa a indicar os pontos de contato entre o discurso educacional e a ideologia. Menciona o silenciamento dos atores do processo educacional por meio da definição de currículos e programas de ensino pela burocracia estatal (p. 27). É pela regra da competência (p. 26) que a divisão do trabalho é realçada, por exemplo, só professores doutores poderiam falar com propriedade de educação. Porém, nos questionamos: onde está o discurso dos alunos e professores sobre sua vivência cotidiana? Poderia uma pessoa graduada em pedagogia que fez um mestrado e doutorado na área sem, no entanto, nunca ter passado por uma sala de aula, falar com propriedade sobre técnicas pedagógicas e como deve ser o aprendizado em classe sem nunca ter conhecido tal relação a não ser em estágios efetuados para se formar na graduação? Por outro lado, em qual lugar há espaço para a fala do professor do ensino básico que, prestes a se aposentar, viveu com plenitude o processo educacional, aprendendo o discurso implícito da experiência de dar aula? É tocando em pontos como este que Chaui traz a questão "quem silencia o discurso da educação?" (p. 27) e nos responde que é a regra da competência conjuntamente ao mito da racionalização (este pressupõe que todos os objetos e atividades são administráveis, a saber, organizáveis e planejáveis - p. 28), que silenciam o discurso da educação, nocivo à manutenção do status quo. Do mesmo modo, é na desqualificação daqueles que podem evocar de modo legítimo o discurso da educação ou na desqualificação e redução da própria experiência educacional que se reproduz a ideologia. Como é o caso da confecção de currículos e programas com base no que se tem por maturidade e, por conseguinte, pressupondo uma imaturidade que deve ser dirigida há uma criação da necessidade de comando e hierarquia. 2
Podemos citar como exemplo os alunos e professores da educação básica dirigidos pela universidade e diretrizes governamentais. Outro ponto explicitado por Chaui é a pressuposição de uma comunidade escolar, a qual só faz dissimular a sociedade - a existência de conflitos e tensões sociais - e a impossibilidade da existência de uma comunidade efetiva. A ideologia também se expressaria na pressuposição do aluno como protagonista de um processo no qual é oprimido. É o que acontece no caso da autoavaliação que interioriza mais sutilmente a dominação sobre o aluno, porque este, sem uma autoridade externa visível, aplica em si mesmo os mecanismos de avaliação, simulando uma autonomia impossível no espaço escolar. Chaui indica ainda que há redução do processo educacional e de seu próprio significado a recursos audiovisuais e materiais, como se, para ser frutífero, precisasse de múltiplas tecnologias e não fosse necessário um conhecimento amplo e crítico do educador, por exemplo. A ideologia também se expressaria na dinâmica de grupo, expõe a filósofa, como se pudesse suprir de qualquer modo o crescente individualismo pelo trabalho coletivo e nele mesmo não seria reproduzida a lógica da divisão do trabalho presente em toda sociedade. Dentre esses diversos apontamentos, Chaui pensa na relação de poder intrínseca ao processo educacional escolar: a relação aluno-professor. Questiona até que ponto a educação vista como formadora e libertadora não é ela mesma fruto do humanismo oriundo da ideologia burguesa? Indica a filósofa: "Mas como poderia esse professor ter a pretensão de formar para a "liberdade" conhecendo o papel corrosivo e repressivo da cultura como superego e o significado de uma sociedade que se reproduz pela reposição da repressão (do corpo e do espírito) através da exploração econômica? Não estaria, esse professor, tocando justamente nos limites e nas ilusões do humanismo?" (p. 35). Para a filósofa uma possível solução para que não se reproduzisse a ideologia, não sempre, mas quando possível, seria o reconhecimento desta contradição do processo educacional. A ideologia não estaria fora, mas interiorizado nos próprios agentes, teria se tornado desejo da hierarquia, de se tomar o lugar do professor como autoridade e detentor do saber - tanto pelos alunos como pelo próprio professor. O que Chaui propõe é buscar esse professor como um não lugar, como forma de educação não ideológica. Porém, este não lugar também pressupõe assumir a contingência do processo: da observação de quais agentes trariam naquela ocasião um aprendizado mais rico a todos ou como cada um pode protagonizar uma parte deste 3
processo sem, no entanto, cristalizá-lo como poder definitivo. A filósofa também indica que o professor é um mediador entre o aluno e o pensamento e cultura em geral, sempre explicitando que é o diálogo entre o aluno e o pensar e não entre esse e o professor. Desta forma, nos convida a filósofa a pensar as estruturas de poder da prática pedagógica como não completamente exteriores à escola. Mas que se apresentam como interiorizadas em nós mesmos, em nossas aspirações e desejos. Assim, convida os professores a buscarem uma quebra da lógica ideológica na própria sala de aula, dando voz aos alunos e mediando cada vez mais o processo educacional, o professor como não lugar, como apagado, para que a experiência seja libertária e não apenas reprodução de ideologias.
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