SAMIZDAT hp://si.cinei.c
32 fevereiro 2012 ano V
ficina
Horacio Quiroga O mestre contista latino-americano
Participe da Revista SAMIZDAT 33 A Revista SAMIZDAT conta com a sua participação para manter o alto padrão das publicações. Aceitamos e estimulamos a participação de autores estreantes, pois o nosso objetivo é apresentar a maior diversidade possível de autores, gêneros e textos.
Por favor, aguarde o período de um mês após receber a resposta antes de enviar um outro texto. http://revistasamizdat.submishmash.com/ submit
Não aceitamos mais textos enviados por e-mail. 1 - Cada escritor poderá inscrever, nos 4 - Os textos selecionados serão publicarespectivos campos, somente 1 (um) texdos na edição 33 da Revista SAMIZDAT na to literário para publicação, de qualquer segunda quinzena de maio de 2012, no site gênero - conto, crônica, poesia, microconto http://samizdat.ocinaedit http://samizdat.ocinaeditora.com/ ora.com/ - ou um (1) texto texto teórico, teórico, como artigo de de teoria literária, literária, resenha de livros, ou entreou poderão aparecer no site, site, caso a edi vista, além de traduções de textos textos literários literários ção em .PDF já esteja fechada. em domínio público, sob licença Creative 5 - Os textos serão publicados sob liCommons ou com a expressa autorização cença Creative Commons Atribuição-Uso Atribuição-Uso do autor. A temática é livre. Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras O autor também deve enviar uma breve Derivadas e o autor não será remunerado. biograa na primeira página do arquivo. O envio de textos implica na aceitação por parte do autor destes termos. 2 - O limite máximo para cada texto literário literário é de mil (1000) palavras, ou 4 6 - Os organizadores da SAMIZDAT se páginas em A4, fonte fonte Times ou Arial 12, reservam o direito de não publicar a revisespaçamento 1,5. O envio dos textos não ta, caso o número de submissões não seja implica na aceitação automática, automática, a seleção o suciente para o fechamento da edição. dependerá da quantidade de textos envia7 - O não cumprimento dos itens acima dos, da qualidade literária e da disponibipoderá implicar na desqualicação da obra lidade de espaço na revista. A revisão dos enviada. textos é de responsabilidade de seus autores. O texto não precisa ser inédito. i nédito. Contamos com a sua participação! 3 - Os textos devem ser enviados até o dia 30 de abril de 2012 através do nosso gerenciador gerenciador de submissões (link (l ink abaixo) Atenciosamente, em um arquivo anexo, em formato .DOC, Henry Alfred Bugalho .DOCX ou .TXT. Insções p envi e bs
Editor
Participe da Revista SAMIZDAT 33 A Revista SAMIZDAT conta com a sua participação para manter o alto padrão das publicações. Aceitamos e estimulamos a participação de autores estreantes, pois o nosso objetivo é apresentar a maior diversidade possível de autores, gêneros e textos.
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Editor
4 anos anos de SAMIZ SAMIZDA DAT T Há projetos que concebemos, que não temos ideia aonde irão. Quantos romances, contos e outras obras não guardamos inacabadas, certos que um dia recuperaremos aquele ímpeto inicial e as concluiremos? E quantas não são as ideias brilhantes que, assim que fazemos o primeiro esforço para realizá-las, logo percebemos que será um empreendimento estéril?
perda do nosso antigo domínio na internet, muitos dos nossos antigos leitores também sumiram. Já não vejo mais a possibilidade de uma publicação mensal e, hoje, em retrospecto, penso que foi uma loucura tentarmos tentarmos tal proeza com a estrutura totalmente descentrada de então, pois cada um atuava como bem entendia entendia e a comunicação era bastante confusa.
Quatro anos atrás, eu e um pequeno grupo de escritores, reunidos numa ocina literária virtual, pensamos que talvez fosse interessante publicar os nossos textos numa revista. Batizamos este projeto de Revista SAMIZDAT SAMIZDAT, uma um a homenagem às publicações clandestinas na Rússia stalinista, repressiva e censora. Não tínhamos clareza de como tudo funcionaria, de quem quem faria o quê, nem se teríamos leitores. leitores. Não sabíamos se daria d aria certo ou não, nem aonde iríamos com isto. Mas funcionou. Desde então, muito mudou. Alguns destes autores se foram, inclusive nem escre vem mais. Depois de um hiato hiato de mais de um ano nas publicações, inclusive com a
Aprendemos Aprendemos com nossos erros e também com nossos acertos. Em seu quarto aniversário e 32º fascículo, a SAMIZDAT retorna retorna mais madura e mais prossional. Ainda somos um grupo de escritores escritores lutando lutando por um lugar ao sol, muitos de nós ainda publicando independentemente e correndo às margens deste brutal mercado que nos exclui e nos ignora, ignora, pois assim são as regras deste jogo. Criamos nas sombras, na esperança que o fogo destes talentos talentos possa brilhar e iluminar os nossos caminhos. Ação e esperança, estes são os combustíveis combustí veis que q ue movem a SAMIZDA SAM IZDAT T. Henry Alfred Bugalho
/ 9 7 1 8 1 6 9 8 5 2 / s t i a v d a / s o t o h p / m o c . r k c i . w w w / / : p t t h
SAMIZDAT 32 fevereiro de 2012
Edição, Capa e Diagramação:
Henry Alfred Bugalho Autores
Alessa Bertazzo Anna Apolinário Cinthia Kriemler Daniel Moreira Douglas Batalha Edelson Nagues Edweine Loureiro Elias Antunes Fernanda Cristina de Paula Henry Alfred Bugalho João Paulo Hergesel Joaquim Bispo José Guilherme Vereza Juliano Ramos de Oliveira Leandro Luiz Luiza Oliveira Marcelo Soriano Mariana Valle Otávio Martins Rafael Zen Roberto Klotz Sara Meynard Silvana Michele Ramos Sonia Regina Rocha Rodrigues Tatiana Alves Thiago Jefferson dos Santos Galdino Valmir Luis Saldanha Volmar Camargo Junior Zulmar Lopes Textos de:
Horacio Quiroga Foto da capa:
http://www.ickr.com/photos/ biggreymare/5513025399/
http://samizdat.ocinaeditora. com
Eiil Acredito que esta edição será um divisor de águas para a SAMIZDAT. Desde o princípio, contamos principalmente com as contribuições de autores xos e de um ou outro colaborador externo para a criação da revista. No entanto, pela primeira vez, recebemos um número gigantesco de submissões de colaboradores espontâneos, com obras de grande qualidade. Então, percebi que um dos meus maiores medos havia se realizado: a SAMIZDAT, que em sua criação pretendia contornar o injusto processo de exclusão do mercado literário, enm se tornava ela mesma excludente. São tantos os talentos, tantas as obras criativas, e o espaço é tão pequeno, que se torna impossível publicá-las todas. Rejeitar um autor em início de carreira não é uma tarefa fácil, eu lhes asseguro. Pois este é o momento em que o escritor se encontra mais fragilizado, precisando de um estímulo, daquela palavra de incentivo que o empurrará para a frente. Por outro lado, a recusa também é um aprendizado e, para muitos, deveria ser uma motivação de outra natureza: “hoje foi um ‘não’, mas amanhã será um ‘sim’”. Anal, é esta expectativa do sim, da aceitação dos leitores, dos editores, dos críticos, da imprensa, dos outros autores, que nos move, que nos instiga a prosseguirmos na atividade literária. Escrevemos para nós mesmos, inevitavelmente, mas nossas obras pertencem também aos outros. Um ‘não’ hoje, mas amanhã um ‘sim’, meus amigos, e isto vale para todos nós. Henry Alfred Bugalho
Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons. Todas as imagens publicadas são de domínio público, royalty free ou sob licença Creative Commons. Os textos publicados são de domínio público, com consenso ou autorização prévia dos autores, sob licença Creative Com- mons, ou se enquadram na doutrina de “fair use” da Lei de Copyright dos EUA (§107-112). As ideias expressas são de inteira responsabilidade de seus autores. A aceitação da revisão proposta depende da vontade expressa dos colaboradores da revista.
Sumário Por quE SamIzdat?
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Henry Alfred Bugalho
rEComENdaÇÃo dE LEItura E Ne Filh
10
Edelson Nagues
Humor Beve disseçã sbe Plvã
14
Joaquim Bispo
CoNtoS o me e Cfé
16
Henry Alfred Bugalho
Cinç Pígi
20
Thiago Jefferson dos Santos Galdino
Filh Pái Se mãe
21
Marcelo Soriano
Ve e n
22
Cinthia Kriemler
relicái
25
Tatiana Alves
a es chv
27
José Guilherme Vereza
o Cven mlc
29
Otávio Martins
depçã
31
Silvana Michele Ramos
aivinh, eeive ffei
32
Roberto Klotz
avess () Sara Meynard
35
Cleiv
37
Edweine Loureiro
Pgói
38
Zulmar Lopes
d-se helicópe. t i.
40
Leandro Luiz
rgs tep
41
Juliano Ramos de Oliveira
minh vi, e pesel
42
Sonia Regina Rocha Rodrigues
m e gs ep
44
Fernanda Cristina de Paula
traduÇÃo a Glinh degl
46
Horacio Quiroga
decálg pefei cnis
51
Horacio Quiroga
tEorIa LItErÁrIa o e ningé lhe iá n cin lieái pe 1 (a Ciçã) 54 Henry Alfred Bugalho
Csill e men: is pes genins 58 Elias Antunes
o Gne Seã e ribl
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Alessa Bertazzo
CrÔNICa Ep descil
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João Paulo Hergesel
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Volmar Camargo Junior
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Anna Apolinário
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Daniel Moreira
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Luiza Oliveira
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Valmir Luis Saldanha
Nº 1
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Douglas Batalha
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Mariana Valle
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P e Si? “Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto” Vladimir Bukovsky
Henry Alfred Bugalho
Inclsã e Exclsã
[email protected] Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão. O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus princípios. Em regimes autoritários, esta exclusão é muito evidente, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no caminho dos dirigentes é afastado e ostracizado. As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabelecido. Por isto, é necessário suprimir, esconder, banir.
Foto: exemplo de um samizdat. Corte sia do Gulag Museum em Perm-36.
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A União Soviética não foi muito diferente de demais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas logo
se converte em uma ditadura como qualquer outra. É a microfísica do poder. Em reação, aqueles que se acreditavam como livrespensadores, que não queriam, ou não conseguiam, fazer parte da máquina administrativa - que estipulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão. Datilografando, mimeografando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incumbida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais signica em russo do que "autopublicado", em oposição às publicações ociais do regime soviético.
E p e Si?
revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.
A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, baseEnquanto que este é um ado no que se julga não ter trabalho difícil, por outro valor mercadológico. Inexlado, concede ao criador uma plicavelmente, estabeleceu-se liberdade e uma autonomia que contos, poemas, autores total: ele é dono de sua paladesconhecidos não podem vra, é o responsável pelo que ser comercializados, que não diz, o culpado por seus erros, vale a pena investir neles, é quem recebe os louros por pois os gastos seriam maioseus acertos. res do que o lucro. E, com a internet, os auA indústria deseja o protores possuem acesso direto duto pronto e com consumi- e imediato a seus leitores. A dores. Não basta qualidade, repercussão do que escreve não basta competência; se (quando há) surge em queshouver quem compre, mestão de minutos. mo o lixo possui prioridades A serem obrigados a na hora de ser absorvido pelo mercado. burlar a indústria cultural, os autores conquistaram algo E a autopublicação, como que jamais conseguiriam de em qualquer regime excluoutro modo, o contato quadente, torna-se a via para se pessoal com os leitores, produtores culturais atingio diálogo capaz de tornar a rem o público. obra melhor, a rede de contatos que, se não é tão inuenEste é um processo solite quanto a da grande mídia, tário e gradativo. O autor faz do leitor um colaborador, precisa conquistar leitor a um co-autor da obra que lê. leitor. Não há grandes apaNão há sucesso, não há granratos midiáticos - como TV,
des tiragens que substituam o prazer de ouvir o respaldo de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos. Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pósmodernistas, vanguardistas ou qualquer outra denição que vise rotular e denir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sosticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade. Enm, “Samizdat” porque a internet é um meio de autopublicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.
SAMIZDAT é uma revista eletrônica
mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Ocina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e prossionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.
http://samizdat.ocinaeditora.com
http://samizdat.ocinaeditora.com
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recençã e Lei
Em NomE do FILHo Edelson Nagues
g p j . 6 1 b e w / b e W / s a a r g o t o F / r b . m o c . a z z e t o a v o t s i r c . w w w / / : p t t h
(Resenha do livro O lho eterno – TEZZA, Cristovão. Rio de Janeiro: Record, 2007.)
“nossa culpa”. Essa constatação nos intimida, nos estremece. Se somos seres incompletos por natureza, em constante e interminável formação, como poderemos formar outros seres? O nascimento de um lho, principalmenE quando o nascimento de um lho, o te o primogênito, é sempre um momento primogênito, revela uma criança estranha, de muita emoção. Para os pais, avós, tios, diferente, “anormal”?! (“Um lho é a ideia primos... “o nascimento é uma felicidade de um lho; uma mulher é uma ideia de coletiva” (obra citada, 7ª edição, p. 25). É um importante marco na vida do casal. E à uma mulher. Às vezes as coisas coincidem com as ideias que fazemos delas; às vezes alegria desse acontecimento mescla-se um receio, um certo temor, ainda que não assu- não.” – idem, p. 14 – atualizamos pela nova ortograa.) mido, dissimulado. É que, de um momento para o outro, nos encontramos frente ao deAos 28 anos, projeto de escritor (“pensao de sermos responsáveis pela formação so que sou escritor, mas ainda não escrevi de um ser humano posto neste mundo por nada”), desempregado, sustentado pela espo-
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sa, a sua ideia de lho não coincidiu com a realidade do lho que lhe veio. E para quem já via o nascimento como “uma brutalidade natural, a expulsão obscena da criança, o desmantelamento físico da mãe até o último limite da resistência” (p. 24), esse desencontro da ideia com a coisa real, na madrugada do dia 3 de novembro de 1980, tornou-se uma verdadeira tragédia. E com um nome – ou, melhor, um estigma humilhante: “mongolismo”. Em tempos politicamente corretos, mongolismo transmutou-se em “Síndrome de Down”. Quem a descreveu pela primeira vez foi o médico inglês John Langdon Haydon Down (1828-1896), que lhe emprestou o nome. Ele destacou a semelhança facial dos portadores da síndrome com os mongóis, os naturais da Mongólia, na Ásia. Daí serem chamados de “mongoloides”. Resulta da trissomia do cromossomo 21, ou seja, em vez de dois cromossomos 21, algumas crianças nascem com três, e apresentam determinadas características físicas: língua muito grande, pescoço largo e achatado, baixa estatura, olhos pequenos e amendoados. Sofrem ainda de variados níveis de autismo e limitado desenvolvimento mental. “Para eles, o tempo não existe. A fala será, para sempre, um balbuciar de palavras avulsas, sentenças curtas truncadas [...]. O equilíbrio no andar será sempre incerto, e lento; se os pais se distraem, eles engordarão como tonéis, debaixo de uma fome não censurada pela sensação de saciedade, que neurologicamente demora a chegar. [...] Não veem à distância – o mundo é exasperadamente curto; só existe o que está ao alcance da mão. São caturros [sic] e teimosos – e controlam com diculdade os impulsos, que se repetem, circulares” (p. 34). Foi com uma dessas crianças que o pobre escritor se defrontou, na inalienável condi-
ção de pai. Um lho que seria uma criança por toda a vida. “Uma criança eterna.” E como consolo ao desespero que se abateu sobre ele (“um sentimento de abismo”), agarrou-se à comprovação cientíca de que “as crianças com Síndrome de Down morrem cedo”. Cruel? Certamente. Mas, sobretudo, humano, demasiado humano – como diria Nietzsche, um dos seus lósofos favoritos. Se o relato de um pai que renega o próprio lho por si só já é chocante, mais estarrecedor se torna quando sabemos que não se trata de cção. Assim, o “lho eterno” tem um nome real, de registro: Felipe. E um nome não menos real tem o pai: Cristovão; e ambos ostentam o mesmo sobrenome: Tezza. Cristovão Tezza, hoje escritor consagrado, tido como um dos melhores de sua geração no Brasil, revela, quase três décadas depois, que é pai de um jovem portador de Síndrome de Down. Em um relato corajoso, sem subterfúgios nem autocomiseração (“a piedade, o alimento da pieguice, que é a forma grudenta, caramelizada, da mentira” – p. 152), disseca e, ao mesmo tempo, traz à luz seus mais ocultos sentimentos, desnudando publicamente sua relação com o lho especial. Um acerto de contas consigo mesmo e, de certa forma, com a literatura, em que pessoas portadoras dessa síndrome parece não terem espaço. E não apenas na literatura: “O cinema, em seus 80 anos, [...] jamais os colocou em cena. Nem vai colocá-los. [...] Não há mongoloides na história, relato nenhum – são seres ausentes” (p. 36). Mas principalmente na arte da escrita: “Em todo o Ulisses, James Joyce não fez Leopoldo Bloom esbarrar em nenhuma criança Down, ao longo daquelas 24 horas absolutas. Thomas Mann os ignora rotundamente. [...] Leia os diálogos de Platão, as narrativas medievais, Dom Quixote,
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avance para a Comédia humana de Balzac, chegue a Dostoiévski, nem este comenta, sempre atendo aos humilhados e ofendidos; os mongoloides não existem” (p. 36). Cabe então a esse escritor, a quem foi propiciado o convívio com um desses seres diferenciados, preencher tal lacuna. E ele o faz com sentimento, com entrega, com dor mesmo, sem jamais perder o domínio técnico da narrativa (pois se trata de um professor universitário, um doutor em literatura “apaixonado pela técnica”). Não há pieguice nem ressentimentos. Há revolta, sim, presente na crueza com que se refere ao seu primogênito: “criança horrí vel”, “pequeno leproso”, “pequeno monstro”, “lho lesado”, “lho pela metade”, “um nãolho”, entre outras expressões igualmente reprováveis, considerando-se a sua condição de pai. E essa exposição de repulsa paterna provoca o leitor, tenta chocá-lo de forma proposital, para que este – assim como o escritor se permitiu – seja confrontado com sua hipocrisia, esse câncer social, que faz com que reprovemos nos outros tais atitudes enquanto adotamos inconscientemente postura semelhante (como os pais que, há pouco tempo, em um shopping em São Paulo, impediram que uma criança com Síndrome de Down continuasse brincando na piscina de bolinhas de uma brinquedoteca, pois estaria incomodando seus lhos “sãos”). E a revolta do escritor vai, aos poucos, cedendo lugar à aceitação, deixando uir o amor oculto nas camadas da vergonha imposta pelo “teatro do verniz civilizador”. “O pai ainda não sabe, mas começa a ter uma
ideia de lho, a desenhar-lhe uma hipótese” (p. 68), “o que ele quer é que aquela criança trissômica conquiste o papel de lho” (p. 95), como observa o narrador (o romance é escrito em falsa terceira pessoa – pois, de fato, o é em primeira –, com ashbacks que vão compondo o tempo e o espaço em que os fatos ocorrem). Assim, depois de perambular com o lho, na companhia da então esposa (a quem dedica o livro), por consultórios dos mais variados especialistas, com resultados pouco animadores, aprende nalmente a aceitar e conviver com as limitações desse ser especial. Descobre, por exemplo, que “o mundo dos afetos é o talento dessa criança” (e uma das características mais marcantes de todas as pessoas portadoras de tal síndrome), e aprende que “a afetividade é um modo de compreensão”. Um outro talento de Felipe, a pintura (ainda que de forma rústica, tendo em vista sua diculdade para assimilar técnicas minimamente complexas), é percebido e incentivado com envolvimento, para não dizer paixão. E uma outra paixão – esta também da maioria dos brasileiros, como se sabe –, o futebol, acaba por unir pai e lho em uma relação que sempre souberam ser eterna. Ainda que apresente aspectos fugazes, o ato de assistirem juntos, devidamente uniformizados, a um jogo do time favorito – no estádio ou na frente da televisão, com a imprescindível pipoca – revela que a história de ambos não teve um m, mas está sendo escrita no eterno retorno do dia a dia. Assim como a história de todos nós, aliás.
EdELSoN NaGuES
(nome literário de Edelson Rodrigues Nascimento) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Estudou Direito e Filosoa, com pós-graduação em Língua Portuguesa. Tem vários trabalhos premiados e/ou selecionados para coletâneas de concursos nacionais, destacando-se: XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (Santa Maria/RS), XXI Concurso Nacional de Con- tos “José Cândido de Carvalho” (Campos dos Goytacazes/RJ), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (Manaus/AM), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES), VI Desao dos Escritores (Brasília/DF), XL Concurso Literário “Escriba” (Pi - racicaba/SP) e Concurso Nacional de Contos de Porto Seguro/BA, entre outros. É au- tor dos livros “Demasiado humano” (contos) e “Águas de clausura” (poemas), a serem publicados brevemente. 12
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O lugar onde
a boa Literatura é fabricada
/ o / s e z i s / 9 5 3 3 8 5 9 5 9 2 / 0 0 N @ 2 7 1 2 1 9 2 3 / s o t o h p / m o c . r k c i . w w w / / : p t t h
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www.cinei.c
H
Joaquim Bispo
Breve dissertaçã
sbre Palavrã Caros circunjacentes: A minha preleção de hoje versa o palavrão, em todas as suas aceções, o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspectos semânticos. O mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio. Nesta forma torpe, geralmente, explode boca fora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, nas acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço essencial do asfalto, faz colidir os interesses particulares.
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Então, nos píncaros da exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios, sem se subordinar a uma triagem nas circunvoluções da racionalidade, são considerações sobre as caraterísticas ou os hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro da sua família. São expressões belicosas cuja signicação pretende provocar algum constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por exemplo: – Rastilho curto! – que, como calculam, também achincalha o tamanho do autocontrolo dele. No entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável, o vitu-
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pério, não precisa coincidir, morfologicamente, com um vocábulo de semântica obscena. Para tanto, a entoação deve colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a forma irretorquível como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu antagonista em estupor, como touro lidado: – Ó meu caro amigo: Vodafone! A forma mais vulgarizada, todavia, é a de aconselhar o contendor a encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para determinado local, diferentes dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se adequam melhor às caraterísticas do enxovalhado. As notícias da política internacional são um manancial de expressões com sonoridades e construções ortográcas que sugerem conotações soezes e insultuosas. Aquando da guerra na ex-Jugoslávia, ouvi uma feirante verberar outra, nos seguintes termos: – Vá prà Bósnia, sua Herzegovina! Se fosse agora, talvez dissesse: – Vá Kandahar o Jalalabad do Kabul com Afeganistão – que me parece de uma gravidade inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa. Outro signicado de “palavrão”, este com alto grau de adequação, é “palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando era mancebo, pensava que o maior pala vrão da língua portuguesa era “inconstitucionalissimamente”, com 27 letras. Hoje, constato que o palavrão que me enchia de orgulho era apenas um pala vrinho, como pénis de menino. O do pai chama-se Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, tem 43 letras e é uma
substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico, tem 46 letras e signica “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela aspiração de cinzas vulcânicas”. O mundo destes palavrões é atroz. Embaraça qualquer estudante de medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador da doença Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual – crueldade das crueldades – é a “doença psicológica que se caracteriza pelo medo irracional de pronunciar palavras grandes ou complicadas”. Imaginem o pânico do doente de ser inquirido sobre a denominação da sua própria enfermidade! Estes vocábulos escaganifobéticos parecem-me denunciar o pérdo subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela mera acoplagem, numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta técnica, também me posso qualicar como Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só não faço uso por abominar redundâncias. A terceira aceção de “palavrão” é “expressão pomposa e empolada”. Não me ocorre, por ora, qualquer exemplo ilustrativo. Locuções grandiloquentes ou de sentido ininteligível estão afastadas do meu discurso, o qual, como foi patente, é sempre despretensioso e matizado apenas por vocábulos lhanos e percetíveis por todos. Tenho dito!
Ji Bisp Português, reformado, ex-técnico de televisão, xadrezista e pintor amador, licencia- do tardio em História da Arte. Alimenta um blogue antiamericano desde o assalto ao Iraque e experimenta a escrita de cção desde 2007. Produziu em quantidade e ga - nhou destreza nas ocinas virtuais de Henry Bugalho e de Marco Antunes. Enquanto não consegue publicação, entretém-se a enviar textos para concursos literários em que obteve uma meia dúzia de prémios vários. Contacto:
[email protected]
http://samizdat.ocinaeditora.com
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Cns
O Moedor de Café Henry Alfred Bugalho
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Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão. Isto vem de longa data; lembro-me de quando eu era criança e, na casa de amigos, na hora do lanchinho da tarde, as mães deles preparavam a mesa e nos serviam, e da minha cara quando elas enchiam meu copo com café. — Não toma? E eu negava com a cabeça. Então, elas rapidamente trocavam meu copo por um outro, enchiam-no com leite e novamente aquela expressão de repulsa na minha cara.
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— Também não toma? — Só com Nescau — eu respondia, o que as forçava a procurar no fundo de algum armário, resmungando, por aquele pote de Nescau ou Toddy já vencido de tão velho. Este fato também me trazia embaraços durante o tempo que morei na Europa. Toda vez que eu recusava uma xícara de café colombiano — dizem que é excelente — ou um cappuccino, imediatamente fulminavam-me com os olhos, como se eu houvesse proferido alguma heresia e o papa Bento XVI estivesse prestes a me excomungar por isto.
— Não gosto, porra, simples assim! — Brasileiro que não gosta de café não existe — retrucavam. “Eu existo, logo brasileiro que não gosta de café também”, lógica elementar. No entanto, paradoxalmente, um dos meus grandes prazeres quando eu contava uns dez anos era, nas férias, ao irmos para a casa de minha vó no interior, moer café. Talvez você nunca tenha visto um antigo moedor de café na vida, eu mesmo não o teria se não fosse por causa destas viagens, mas o princípio é simples: é um aparelho de ferro, xo numa mesa, com uma entrada no topo semelhante a um funil, uma manivela que aciona uma roda para triturar o café torrado, e uma abertura no fundo, de onde se recolhe o pó. Então, toda vez que minha vó perguntava: — Quem quer moer o café? Eu logo erguia a mão, apanhava o bocado de grãos torrados e corria para um galpão atrás da casa, onde cava o moedor. Meus primos e primas se deliciavam com este período de folga, porque durante a minha breve visita eles se viam livres desta atividade que era obrigação diária. E era neste mesmo depósito que ca vam armazenadas sacas e mais sacas de café, cuja existência nunca compreendi. Não sabia se eram para ser revendidas, ou apenas para consumo próprio, mesmo que fosse impossível para uma única família beber tanto café na vida. Sozinho naquele depósito sujo, úmido, escuro, cheio de teias de aranha e, pelo que meus primos me diziam, de onde era muito fácil sair apinhado de piolhos, eu girava a manivela, imerso no cheiro de café torrado que subia do moedor. Este divertimento perdurou até uns treze anos, mas depois disto, eu só continuei perfazendo-o porque não
conseguia contrariar minha avó que, ao abrir um sorrisão que quase arremessa va sua dentadura pra fora, perguntava, tando-me: — Quem quer moer o café? E já antecipando minha resposta, ela me estendia o saco de café e, constrangido, eu me via forçado a ir para o galpão moê-lo, não sem antes ouvir os risinhos dos primos e os cochichos: — Se ferrou! Mas este depósito representaria mais para mim do que um mero prazer tornado martírio. Era aniversário de quatorze anos dum dos primos e toda a vizinhança foi con vidada para a casa da minha vó. Não era exatamente uma superprodução de festa; minha vó sempre foi muito humilde — apesar de eu ter ouvido que ela tinha umas quinhentas cabeças de gado pastando numa de suas fazendas —, por isto ela fazia questão de que tudo fosse muito simples. As minhas tias assumiam o papel de quituteiras, enrolando brigadeiros, bei jinhos e fritando um punhado de coxinhas. Minha mãe, que não tinha talento algum para a cozinha, organizava a piazada para os preparativos — encher bexigas, arrumar as mesas no quintal —, enxotava os menorzinhos que lavam uns docinhos, ou mandava as primas para o banho. Meu primo, que já emanava ares de adulto — um ralo bigode e, segundo ele, um razoável chumaço de pentelhos —, achava toda aquela balbúrdia ridícula. — Pô, mãe, eu não sou mais criança! Pra que bexiga? Uma das provas de que ele não se sentia mais criança podia ser encontrada nas convidadas; logo avistamos uma revoada de meninas chegando pela rua, vindo em direção à casa de minha vó. A presença de garotas, ainda mais garotas de nossa idade, atiçou toda a molecada.
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— É hoje que vou me dar bem! — cada um dizia para si, mesmo que muitos não tivessem coragem de se aproximar delas. Por outro lado, eu ainda me sentia o mais inexperiente de todos ali, apesar de ser um pouco mais velho do que eles. Quase todos os meus primos já haviam perdido a virgindade, alguns com menininhas do sítio, outros com putas mesmo, encorajados por seus pais. Apenas os mais novos, menores de doze anos, e eu é que ainda estávamos na la para sermos descabaçados. O aniversariante veio até mim e me disse: — Está vendo aquela ali? Diz que viu você na missa ontem. Vai lá, rapaz, que ela é facinha. — Sério? — Sim. Todo mundo já traçou a Ranha. É só chegar que ela dá. E esta última frase foi fatal para mim. Minhas pernas começaram a tremer e eu quei tão aterrorizado de que aquela noite poderia ser a minha vez, que eu passei a vagar pelos cantos da festa, só me expondo para ir catar uns salgadinhos. Foi numa destas oportunidades que Ranha me abordou. — Oi? — ela molhou os lábios e mexeu no cabelo. Não me lembro o que respondi, mas gaguejei e ela riu. — Você é tão bonitinho — ela disse. Quando percebi, já nos atracávamos atrás duma árvore no quintal. Eu não era o rapaz mais experiente do mundo, mas já havia pegado nuns peitinhos antes. No entanto, logo estes meus poucos truques se esgotaram. Eu estava muito excitado, mas não tinha muita certeza de até onde poderia ir. Novamente, a iniciativa foi de Ranha: — Vamos pr’um lugar mais calmo? E, num reexo, pensei no depósito:
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lugar mais calmo não havia. Foi naquele canto escuro, úmido, teias de aranhas — quiçá, piolhos! —, atrás das sacas de café, que meu suor se misturou com o de Ranha, que pela primeira vez me senti dentro duma mulher. Há momentos que mudam a vida duma pessoa: de alguns deles não nos lembramos, nem temos como: a data de nosso nascimento, nossas primeiras palavras ditas, a primeira vez que nos espantamos diante do nascer do sol, e talvez o dia de nossa morte, pois não sabemos se há algo para além ou se é meramente o m; mas há também aqueles inesquecíveis: o primeiro dia na escola, aquele Natal no qual descobrimos que Papai Noel não existe, o dia em que passamos no vestibular, a aquisição do primeiro carro, o nascimento dos lhos, a morte de nossos pais... Eu e Ranha, corpos nus entrelaçados, é uma destas lembranças. Eu me apaixonei por ela, adoeci de amor. Voltei para minha cidade e tudo me trazia a memória daquela noite. Ao chegar em casa, depois da aula, eu me jogava na cama, punha um CD de Johnny Rivers, e sonhava acordado, angustiado, aborrecido, oprimido pela saudade. À noite, antes de dormir, o desejo me consumia. As horas se arrastavam. Tinha de acordar cedo e o relógio na cabeceira indicava três horas da manhã. Batia uma punheta assistindo aqueles lmes eróticos da madrugada e, por mais aquele dia, eu vivia sem Ranha. O passar dos meses foi uma eternidade. Só retornaria à casa de minha avó para as férias do m de ano. De julho a dezembro, um, dois, três, quatro meses. Mas o tempo simplesmente havia parado e, no meu peito, uma paixão como eu nunca sentira antes. Minha mãe comprou as passagens de ônibus e pude respirar aliviado, falta vam apenas mais alguns dias. Chegamos à minha vó de manhã
bem cedo. Todos acordaram para nos receber, como era de praxe. Vovó preparou um café para a gente, leite com Nescau pra mim, é óbvio! Meus primos também despertaram, olhos cheios de remelas e marcas de travesseiro no rosto. Puxei um deles pelo braço até o quarto e perguntei: — E Ranha, como ela está? — Bem... acho. — Eu preciso ver aquela menina de novo. — Sai desta, rapaz, ela já deu pra você. Cata outra. Mas eu não queria outra. Meu primo me tranquilizou: comemoraríamos o aniversário duma das primas e Ranha também viria. O repeteco prometia ser bom. A festa foi organizada, a mesma baderna de antes, criançada correndo pela casa, bexigas inadas e o cheiro de fritura. Os convidados chegaram. Todavia, tudo estava diferente. Ranha sequer olhava para mim. Eu forçava um encontro, aproximava-me, mas era como se eu houvesse me tornado o homem-invisível. — Deixa disso, — me disseram — ela é só uma piranhazinha. Então, eu não a vi mais. Perguntei aos primos e primas, mas ninguém sabia onde ela estava. Fui até atrás da mesma árvore em que estivemos, e nada. Decidi arriscar, por m, o depósito. Ouvi alguns ruídos vindos de dentro, gemidos abafados.
Estendi o braço e gentilmente entreabri a porta. Pela fresta, pude ver Ranha sentada sobre o balcão do moedor de café, vestido erguido até a cintura, calcinha arriada até os tornozelos, e no meio de suas pernas, um homem com a bunda exposta. Dei um passo adiante e terminei de abrir a porta. O ranger fez com que ambos olhassem em minha direção. O olhar do homem pousou sobre mim, num misto de espanto, raiva e excitação. — Tio? — perguntei, e antes que eu pudesse ter qualquer reação, ele abandonou Ranha com as pernas arreganhadas e veio com a benga balançando até mim. Segurou-me com força pelo braço, fechou a porta e me jogou contra a parede. — Você não vai contar nada pra sua tia, moleque, senão eu te mato. Te mato! Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão. Nunca gostei. Quando criança chegava a passar vergonha por causa disto na casa de amigos. Mas não era nojo, só não gostava. Mas hoje, toda vez que passo na frente dum boteco e vejo aquele líquido preto escorrendo do bule, fumegando, e o cheiro me alcança, não posso evitar de pensar em mim, em Ranha, em sacas de café, no pau meio mole de meu tio e num moedor de café. Não consigo. Não dá.
Heny alfe Bglh Formado em Filosoa pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Litera- tura e História. Autor de “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), de outros quatro romances e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fun- dador da Ocina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de- Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
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Thiago Jefferson dos Santos Galdino
CRIANÇA PRODÍGIO Sempre foi a criança mais inteligente da turma. Alimentava-se sozinha enquanto as demais comiam giz; aprendeu a ler antes que as outras pudessem soletrar; amarrava os próprios cadarços quando o restante não sabia andar de sandálias sem elástico no calcanhar. Já usava brincos e maquiagem enquanto as outras garotas furavam as orelhas e descobriam as revistas de moda; abandonou as bonecas quando as demais costuravam vestidinhos de princesas; beijava garotos antes que o restante deixasse de brincar de piqueesconde. Estudava enquanto as outras adoles-
centes iam para as festas; cursava uma faculdade quando as demais estavam no Ensino Médio; preferia trabalhar a perder tempo em namoro. Encontrou a tão sonhada estabilidade nanceira; dividia uma mansão com a sua própria sombra; contava as tristezas e alegrias para as atentas paredes; tinha pavor de qualquer coisa que pudesse atrapalhar o seu emprego; possuía tocofobia... Deixou de viver intensamente. ... e “abortou” a criança... que havia dentro de si!
thig Jeffesn s Sns Glin Nascido em Mossoró/RN em 1993. Aprendiz Técnico em Segurança do Trabalho e Escritor. Autor do livro “Suspeitas de um Mistério” pela Editora Multifoco; participou também da 14ª Edição do projeto “Um poema em cada árvore”, do Instituto Psia.
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Filh Pái Se mãe Marcelo Soriano
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Ela era torneada. Mulata. Escrava Quando amanhece, uma criança pós-moderna. De dia, lhinho no colo. perambula com as fraldas sujas por um De noite, bolsinha a tiracolo. Era linloft qualquer bem decorado da Rambla. da. Morena da grife brasileña. Chiclete – Mamã... Mamã... Teta... provocativo. Madeixas de molejo sexy. Na hora de reassumir a maternidaOlhar de lua. Sorriso de avenida. Beijo de nacionalista, a prostituta desapareceu. de beco sem saída. Nudez de mini-saia Nunca mais voltou. Ela não conseguira levantada (sem calcinha) na orla escura vencer a dor aberta do buraco fundo, frio da Barceloneta. e estreito, que deitou sangue no passeio – O ponto é meu, traveco da porra! público daquela última noite, antes do – ¡No más! Muere perra! retorno ao Brasil. Seria aquela, realmente, a sua última noite de sacrilégio, mas o Um grito tremido depois do estalo destino é um comboio cego... E atropela doído de um triste tapa na cara. quem dá mole pela frente. Silêncio na madrugada... mcel Sin Nascido em 11 de agosto de 1967, em Santa Maria – Rio Grande do Sul – Brasil. Engenheiro Mecânico graduado pela Universidade Federal de Santa Maria (2004) e pósgraduado em Engenharia de Produção e Manufatura pela Universidade de Passo Fundo (2010). Autor do Livro “CANTOPOEMAS: SOBRE MENINOS E PÁSSAROS”, juntamente com a escritora moçambicana Isabel Gil (Alcance Editores. Maputo-MZ, 2011). Cronista das Revistas Tempo e Literatas (Maputo-MZ, 2011).
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Vez em quando Cinthia Kriemler
Um cheiro de saudade cruza por mim. Um perfume, talvez um aroma de pele. Não dá mais tempo de impedir a memória, nem de punir a sentinela da razão que se atrasou por uns segundos. Já estou impregnada desse vento de passado que me força companhia. O cheiro de café torrado insiste em fazer cócegas no meu cérebro, me dizendo que não vai ser fácil me livrar da sua lembrança. Pois que seja. Não sou mais alguém em
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agonia. Depois de você, tornei-me matéria sólida, como as lajes e os granitos. Sem os rompantes, sem a histeria da partida. Nenhum sofrimento à superfície, nenhuma tristeza deslocada. Apenas o suciente para prosseguir humana. Não consigo xar seu rosto nos meus pensamentos. Foi assim também na primeira vez em que nos encontramos. As pessoas eram sempre pontos distorcidos em minhas fugas de álcool fácil e carnes
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esquecíveis. E você estava lá, numa daquelas noites que terminavam só depois da madrugada. Além do prazer, dois hábitos me acompanhavam elmente: eu nunca dormia fora da minha própria cama, nem chegava em casa sem uma boa xícara de café forte. Na verdade, eu sempre tive medo de acordar em camas estranhas. Como se olhar em volta e não reconhecer os objetos me impedisse de saber para onde ir embora. Eu pertencia a todas as camas, mas deitava meu sono em meu próprio colchão, repleto de mim. O café forte era um ritual de puricação. Nada que cortasse o efeito da bebida ou o sono, somente um amuleto de dignidade que me deixava voltar para casa sem contaminar de embriaguez o ar. Quando nos encontramos pela primeira vez, sua boca exalava café torrado. Por trás do balcão, uma mistura de amargos e doces utuava abaixo de uma placa esnobe, onde se lia: Chez Fernand. — Um café? — Forte, por favor. — Alguma coisa para comer? — Não. — Um croissant fresquinho? É a especialidade da família. Fiz que não com a cabeça, enquanto afastava a sensação de náusea que me vinha só de pensar em comida. Mas achei gentil a insistência. E tive certeza de que voltaria ali quando estivesse sóbria.
Voltei, duas semanas depois, numa madrugada de chuva. Nenhum álcool naquela noite, nenhuma cama de onde tivesse saltado. Fui para enxergar o rosto ao qual pertencia aquela boca de café torrado. Atrás do balcão, dois rapazes se ocupa vam dos expressos e dos chocolates. Ninguém que eu pudesse associar à voz modulada e cheirosa que tinha agradado aos meus instintos. Eu já me preparava para me levantar sem pedir nada, quando o mais alto dos dois se aproximou de mim: — Como vai? Que bom que você voltou! Um café? Era ele! A boca de café torrado, os dentes claros, benfeitos. Um menino! Quantos anos? Uns 24, no máximo 25. — Um chocolate com creme, por favor — respondi depressa, subitamente sem jeito para incluir um licor no pedido. — Chuva forte, hein? — perguntou com delicadeza, enquanto colocava a bebida. Não respondi. Homens mais jo vens não faziam parte dos meus vícios. Minha ânsia de afeto era aplacada por gente como eu, descartável, invisível, desraizada. E por álcool, para permitir que tudo fosse permitido. E por sexo, que me fazia atravessar a madrugada insone. Nada de amor, essa coisa estranha que se oferece em desencontro. Não, nada de homens jovens! Eles têm o péssimo vício de amar! — Eu sou Fernand. O da placa —
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revelou, vaidoso. — Como é o seu nome? — Aimée. — Aimée! Amada... Signica amada, em francês, você sabia? Minha família é de origem francesa. Que coincidência! É um nome lindo. Pedi a Deus que me tirasse de lá, porque meus pés não ofereciam essa opção! O rapaz estava ertando comigo, se exibindo para mim! E, mesmo assim, o que ele dizia entrava em meus ouvidos como uma escala anada. Esperei realmente por um pequeno empurrão, uma lucidez acanhada. Mas tudo falhou. A divindade, os pés, a vontade. Eu mesma derrubei as cercas, deslembrada de que as cercas existem para guardar ou impedir. Fiz como o predador que fareja carne tenra: desprezei as armadilhas, até ser colhida pela dor das estacas. Fernand e eu fomos felizes por duas chuvas. Ele se fez caber por inteiro em meus espaços vazios. Afastou minhas urgências, ofereceume outras, me emprestou o riso, o colo, os olhos brilhantes. E eu me completei dele. Ganhei abraços de tirar o fôlego, brinquei sem pressa sobre a cama desfeita, escrevi pala vras bobas, sem sentido, em bilhetes
e vidros embaçados de chuveiro. Fiz passeios de mãos dadas, desconcertei olhares. Dei gargalhadas no cinema, z sexo na escada e me senti bonita de cara lavada. Então, numa data sem aviso, antes que a terceira chuva pudesse me trazer mais um ano, tomou conta de mim uma antiga sensação de ausências. Não sei se foi um gesto diferente, um jeito de respirar acelerado, uma desatenção proposital. Sei que os fogos de artifício se tornaram, de repente, fósforos usados. Talvez, se Fernand tivesse morrido, talvez se ele tivesse amado alguém mais jovem que eu, com menos caminhadas, eu teria podido me agarrar ao consolo do plausível. Mas não foi assim. Fernand só queria mesmo ir embora. Eu ainda não estava pronta para me encontrar com a mulher vazia que morava dentro de mim, mas a solidão me alcançou inexível numa noite sem forças. E eu me cedi a ela. Com o tempo, acertamos uma trégua. Vez em quando, colho nas ruas um cheiro de saudade. Apenas o suciente para prosseguir humana.
Cinhi Kiele
É contista e cronista. É autora do livro de contos “Para enm me deitar na minha alma”, pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crôni- cas “Do todo que me cerca”. Finalista de concursos literários, participa de duas cole- tâneas de poesia e uma de contos. É jurada dos Desaos dos Escritores e da Revista Literária. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escri- toras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos.
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relicái Tatiana Alves
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Maria abriu cuidadosamente o relicário, mirando os olhos da imagem que ali cava guardada. Ajoelhou, como fora ensinada a fazer, e principiou a entoar mecanicamente mais uma de suas preces. Emendava uma oração na outra, sem jamais obter o alívio desejado. A santa olhava, impassível, nada podendo fazer diante daquela situação. Seu olhar continha uma espécie de tristeza, uma quase resignação, que não ajudava muito a confortar a devota que a ela se dirigia. “Mulher só sai de casa três vezes na vida: para ser batizada, para casar e para o próprio enterro”. As palavras da avó ainda ecoavam em seus ouvidos. Bendita sois vós entre as mulheres. Por que, então, tantas renúncias, ó mãe? Persignou-se, acendeu uma vela e saiu do cômodo. Em alguns segundos retornou, e trancou o relicário, evitando o olhar da santa. Em seguida, cerrou as janelas, não sem antes respirar a brisa
fria que vinha de fora. Cheiro de gente, de rua, de vida. Calçou os chinelos gastos e pôs-se a ler. Época de novena era assim mesmo. As outras vinham à sua casa rezar o terço durante vários dias. O motivo agora era a candidatura do pai de uma delas, prefeito da cidade. A novena, contudo, não parecia ajudar na reeleição do sujeito, cuja popularidade caíra vertiginosamente desde que fora visto saindo de uma casa de tolerância na cidade vizinha. Era caso perdido. E eleição também. Pediram, então, a imagem da santa. Que percorreria a cidade, numa procissão improvisada e direcionada. Depois, passaria alguns dias na casa de cada de vota integrante do grupo de oração, para recuperar a nódoa na imagem do sujeito. Maria, que não se interessava por política mas não podia negar o favor, cedeu, embora a contragosto. No dia seguinte, bateram à porta
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bem cedo. Duas mulheres pertencentes ao grupo vinham buscar a Virgem, padroeira de Santa Maria da Renúncia. Dirigindo-se vagarosamente ao quarto, na tentativa de protelar a retirada da imagem de sua casa, pegou cuidadosamente o relicário. O grito foi uníssono. A santa havia desaparecido. Como podia uma coisa dessas? Como ela podia ser tão desalmada e ingrata a ponto de forjar o roubo da imagem em vez de cedê-la para tão nobre propósito? As beatas do lugarejo saíram, indignadas. Os dias escoavam-se sem que a imagem aparecesse. O relicário aberto assemelhava-se a uma casca sem noz, a uma caixa sem presente. E Maria adoeceu com a falta da santinha. Ninguém mais a essa altura duvidava que a santa tivesse sido de fato roubada, embora nenhum forasteiro tivesse sido visto nos arredores na semana do desaparecimento. De resto, tudo parecia normal em Santa Maria da Renúncia. Ou até melhor. Nem parecia inverno. As rosas desabrocharam antes do tempo, o gado – sempre tão passivo – cou mais agitado, e a brisa que soprava no m da tarde trazia agora um ardor inesperado. O frio, marca característica do lugar, fora repentinamente substituído por um calor sem precedentes, como se uma espécie de sezão assolasse o local. As mulheres, que antes permaneciam em casa, aquecidas, queriam agora sair. Joelhos ofereciam-se, não mais ao milho, mas à contemplação alheia. Ombros e decotes foram vistos por ali, e madonas renascentistas surgiam a cada beco. Maria mirava o relicário, agora um santuário de ausência, e pranteava a saudade que sentia de sua companheira de
infortúnio. Adoecera na semana em que a Virgem sumira. Febres inexplicáveis atormentavam-na dia e noite. Certa vez, foi encontrada vagando perto da cachoeira, roupa molhada colada ao corpo. Delírio, dizia o médico. Pecado, dizia o padre. E havia um moço que nada dizia, mas o sorriso em seus olhos fazia a maior prece jamais entoada em louvor à santa. Ou ao roubo. Os ardores de Maria eram agora conhecidos e tolerados por todos no lugarejo. As beatas benziam-se: tadinha. Uma alma pura que se perdera longe da proteção da santa. Bebia o vinho do pai, brindando à santa ausente. Rodopiava como se não soubesse mais o que era linha reta, e sua saia alçava voos de serpente alada. Gargalhava como se nunca houvesse frequentado colégio de freiras, e deitava-se no chão, mirando inexistentes estrelas que cintilavam proibidos latejos em sua cabeça. Em seu peito. Em seu ventre. Dois meses depois, Maria foi despertada pelo olhar da santa, dentro do relicário. Incrédula, abriu-o, indagando, mentalmente, quem a havia roubado. Nenhuma resposta. Havia fugido, então? Um meio sorriso pareceu se desenhar no rosto da imagem. Devia estar mesmo louca, como todos julgavam. Tinha de anunciar o retorno da Virgem. Gritar. Sua protetora voltara. Abriu a janela, sentindo o vento frio de sempre agredir-lhe o rosto. A imagem, trancada no relicário, assumira o tom triste de antes. Não pensou duas vezes. Abriu o relicário, piscando levemente, e voltou a dormir. Ambas sabiam que a santa não mais estaria ali quando Maria acordasse. Nem ela.
tin alves É poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Coluna Momento Lítero-Cultural, dos sites Cronópios, Anjos de Prata, Germina Lite- ratura e Escritoras Suicidas. É liada à APPERJ e à Academia Cachoeirense de Letras. Possui seis livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.
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a es chv José Guilherme Vereza
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E choveu o ano inteiro em 21 minutos. ga lenga que é para tanta gente assinar um documento. Enquanto o ônibus não chega, perambulo os olhos pela rua, cantarolando as águas de Cristina não é um nome que dena idade. Tom Jobim, e encontro Cristina num cantiMas não me parece uma pós-adolescente, nho de paus, pedras, restos de toco, um toco considerando que o CPF é daqueles beges e sozinho. grandões, anteriores aos cartões azuis magnetizados que dormem com cartões de créditos Não uma Cristina gente, morta ou viva, nas carteiras ricas. carente ou determinada, enérgica ou entregue à sorte impiedosa do verão, da natureza Vidal, o nome do meio, insinua que a e do descaso. Mas uma Cristina de papel, dona do documento perdido possa trazer plasticada, enlameada, materializada por raízes ibéricas, remotamente francesas, mas a um CPF sem rosto, discreto e sujo, que me dá preguiça mental me leva a encurtar caminho pistas sobre sua pessoa. da história e admitir que seja descendente de De cara, descubro que é uma mulher. Está uma sinhá de além-mar, que deu com os na vios nas costas da Bahia, tendo envergonhado escrito em letras gagas de uma Remington: a família ao se enrabichar por um cafuso tíCristina Vidal Sotero, ao lado um número borrado, e no verso uma assinatura legível e pico, indolente por parte de pai e fogoso por parte de mãe. E saíram, colonizado e coloniinspiradora. zadora, às cópulas pelas alcovas a povoar a Decifra-me, diz o garrancho. Sou traço cidade de São Salvador da Bahia de Todos os tosco de vítima do desprezo histórico que Santos. Na enésima geração, nasceu Cristina. se tem pela educação dos pobres. Trata-se, Claro que está tudo explicado: seu último então, de alguém que rala na vida, que não sobrenome é Sotero, ó, ó, ó, digo isso meio veio ao mundo a passeio. As maiúsculas girando repetidamente a mão direita com o tentando arabescos eruditos e as minúsculas polegar e o indicador em curva formando nais apressadas tentando acabar com a len-
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uma pinça, o gesto vulgar que denota ligação infame, ó, ó, Sotero de salvador, polis de cidade, sacou? – adoro palavras cruzadas: nascido em Salvador, vertical, 14 letras. Pronto. Denida a origem da criatura. Resta agora o quesito “o que faz na vida, além de explicar que perdeu documentos na chuva”. A caligraa me cochicha: talvez seja diarista, talvez costureira, talvez balconista, caixa de supermercado. Pode ser faxineira, trocadora, a moça do café, a rainha dos serviços gerais numa empresa próspera e socialmente responsável. Nada disso. Que seja uma cozinheira, de forno e fogão, de panelas de ferro e de barro, uma Gabriela de cravo e canela, uma Dona Flor sem maridos aparentes. Decidi. Sua moqueca é de arrasar, seu xinxim é de se lamber os beiços, seu vatapá é um manjar de deus e do diabo, honra e glória dos Vidal Sotero, que zeram história nos sobrados do Pelourinho, manera no dendê, minha lha, minhas entranhas não aguentam mais tamanha perdição, já basta o acarajé que me ofertaste e a pimenta que me ardeste. Cristina Vidal Sotero já é íntima. Juro que descubro seu paradeiro. Vou de rua em rua nas redondezas, de soleira em soleira, curioso tenaz, encontro enm a dona de história tão rica, dotes tão saborosos, sorriso generoso e um corpo surpreendente, esculpido por Jorge Amado. E me esvai a fala, aauto a voz. Você é Cristina Vidal Sotero? Sim, senhor. Estou mais perdido que seu documento. O senhor achou? O destino achou. Então entra, tem recompensa, vem provar o gosto que a baiana tem. E diante de tantos encantos noite adentro, ouso retribuir com um mimo. Cristina, sou herdeiro único de uma tia abastada, que me deixou um domaine na Normandia. Um quê, moço? Um castelo na França, entendeu agora? Pois prossiga, senhorinho formoso. Indo direto ao ponto: quero levar você
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para morar comigo nas terras dos bons vinhos, da culinária soberba e das vacas premiadas. Mas eu não cozinho em francês, seu dotô. Vai como minha mulher, há quem obedeça a suas ordens naquela vida boa. E se eu sentir saudade do tempero da Bahia? Mando trazer de avião. E se painho der por minha falta? Vem de avião também. E como ca o calor da nossa terra? Te aqueço, minha deusa, nos meus braços, nos meus abraços. Mas não tenho CPF para tirar passaporte, moço, esse não presta mais. Danou-se. Olho o documento encardido e inútil. Penso em entregar a um Guarda Municipal – deve haver uma porta escrita Achados e Perdidos em alguma repartição da Prefeitura. Imagino carregá-la no bolso, para sempre comigo, tenho tia abastada nada, sou um impostor, mas ofereço minha gaveta de moradia, meu quarto e sala é a Bahia, minha cama é o Pelourinho, me açoita, morena, vem, morena, vem seguir os desígnios dos santos do acaso, dos anjos dos sonhos, dos deuses da chuva. Para tudo. Quem vem vindo agora é o ônibus lotado de realidade e juízo. Escapando entre meus dedos, deixo Cristina carinhosamente no meio o de onde veio. No pau, na pedra, no resto de toco, no toco sozinho. E sigo, e subo, e suspiro, e sento no último banco. Estico meus olhos àquele documento, que, acho, me olha também. Fecha o sinal da esquina, providência para um teimoso raio de olhar. Vejo na rua que cou para trás um gari de perna na, moroso e indiferente, passando a chuva a limpo, parando e olhando para um reles CPF jogado no chão. Antes da vassourada de misericórdia, ele se abaixa, pega e lê: Cristina Vidal Sotero. Tenho vontade de botar a cabeça pra fora da janela: tira a mão daí, moleque!
Cns
Otávio Martins
o CataVENto maLuCo Nunca perguntou ao pai porque a escolha de um tango argentino. Sua mãe, ele bem o sabia, aquiescia a todos os seus caprichos, e era de fazer-lhe companhia pelo simples hábito de permanecerem juntos em quase todos os momentos de lazer. À tardinha, o seu pai costumava colocar na eletrola sempre o mesmo disco de Gardel – “uma relíquia!”, como costumava dizer – para, em seguida, sentar-se na sua poltrona preferida. Tudo parecendo mais uma encenação da primeira vez em que escutou – junto com sua mãe, supunha – a belíssima composição de Gardel, Razzano e Celedonio Flores. Nem lembrava direito desde quando os acompanhava naquele ritual – quase um culto à nostalgia. Enquanto o vinil era, cuidadosamente, colocado no prato da eletrola, sua mãe e ele tomavam assento nas outras duas poltronas e, sem qualquer palavra, aguardavam os primeiros acordes da introdução do Mano a Mano. Carlos Gardel, El
Morocho, como era carinhosamente chamado pelos porteños, logo começaria a contar a história de um grande amor, na inesquecí vel gravação de 1923. Quase encostada na parede do lado de dentro da grande varanda, a eletrola, instalada num lindo móvel de três compartimentos, todo em madeira envernizada, ganhava um toque colorido por uma tela aveludada, verde-escuro; o tecido, pespontado por os dourados, servia para cobrir o nicho onde estavam instalados os alto-falantes. Dali surgiriam os sons que impregnariam todo o ambiente com uma das mais conhecidas músicas do cancioneiro argentino. A iluminação da varanda, que tinha todo um lado envidraçado, era proporcionada pelas réstias que escapavam do sol a se pôr detrás do quintal, atravessando por entre os galhos e as folhagens das enormes gueiras e um imponente abacateiro. Não se atinava para outros detalhes, como se todo o ambiente fosse preenchido apenas pelo som que vinha da eletrola e por aqueles tênues raios de sol, além dos três personagens
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que permaneciam imóveis e silentes durante toda a audição. Logo após a última nota do Mano a Mano, o tempo retomava ao seu curso e cada qual ia para o seu canto. Enquanto seus pais encaminhavam-se vagarosamente para o interior da casa, ele, num gesto quase autômato, dirigia-se ao seu quarto, que também lhe ser via de estúdio. Localizado do lado esquerdo da varanda, quase chegando aos fundos da casa, a porta permanecia quase sempre fechada. Nem mesmo a senhora, que ainda vinha de vez em quando para dar um jeito na casa, entrava em seu quarto. Ele mesmo se encarregava de arrumá-lo. Não obstante, era de fazer-lhe algumas condências. De sua janela ele podia estender a vista além do quintal, até alcançar os trigais que o sol – recém passada a primavera e já nos primeiros dias de calor – banhava com uma luz intensa, já ao tempo da colheita, dando-lhes a aparência de pequenas ondas douradas que corriam em direção ao horizonte. Durante o outono e o inverno, boa parte da terra cava em descanso para outras safras, deixando
um vazio de aspecto triste, talvez pela ausência da vegetação e de algumas ores que só voltariam na próxima primavera. Do lado de fora, nada, ou quase nada, se ouvia depois que ele trancava-se no quarto. Espalhados pelo pequeno cômodo, enormes bonecos traziam entre as mãos cada um o seu instrumento: violinos, violas, celo, postando-se, assim, como uma orquestra de câmara. Todos vestidos ao rigor de uma grande apresentação. Somente ele ouviria, através dos fones, a música que passaria por um amplicador de altadelidade, trajando o melhor de seus gurinos para a ocasião; tinha caídos, sobre os ombros, os cabelos soltos e desalinhados, precocemente grisalhos. Após alguns instantes de concentrado silêncio, com a voz baixa, dirigia-se aos outros componentes da pequena orquestra, iniciando a contagem que deniria a divisão e o andamento para os compassos que surgiriam ao erguer a batuta, num gesto de extrema delicadeza e elegância, iniciando a regência de uma das mais belas músicas de Mozart. Depois que a mãe morreu, talvez por costume,
ainda acompanhava o seu pai nas audições do tango de Gardel, as quais continuaram acontecendo por todas as tardinhas. Em algumas manhãs, era de transpor os limites do quintal para car próximo à plantação de trigo e dos canteiros de girassóis que a circundavam e ali permanecer, por longo tempo, imóvel, na feição de um espantalho, hipnotizado pelo espetáculo de luz e movimento. Com o mesmo entusiasmo que regia a pequena orquestra, dedicava-se à construção do seu catavento, de grandes dimensões, que ele chamava de circuladô de fulô, nome que aprendera numa das canções de Caetano Veloso. Acreditava que a sua engenhoca ainda o levaria, como as asas de um beija-or, em meio a uma noite estrelada, muito além dos trigais e dos canteiros de girassóis. No dia em que não mais precisou fazer companhia ao seu pai, para ouvirem o francês Charles Romuald Gardés – o verdadeiro nome de Carlos Gardel – numa de suas mais belas interpretações, trancou-se na velha casa e nunca mais foi visto pela vizinhança.
oávi mins 68 anos, fotógrafo, mantém um jornaleco eletrônico, O Spam. Trabalhou na TV Tupi, TV Cultura de SPaulo, produção de shows (Adoniran, Paulinho Nogueira, Eduardo Gudin, Márcia, Roberto Riberti, Tom Zé e outros); Festival de Verão do Guarujá, 1980 e Festival MPB Universitário, TV Cultura 1979, assistente de produção. Cozinheiro prossional, compositor MPB, música e letra.
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dEPuraÇÃo Silvana Michele Ramos
A apuração dum crime de corrupção acadêmica passado numa academia consistiu no seguinte: requisitou-se que a academia onde o crime de corrupção acadêmica se tinha passado fornecesse aquilo de que estava de posse sobre esse crime de corrupção acadêmica nela passado, o que a academia onde o crime de corrupção acadêmica se tinha passado efetivamente fez, inclusi ve prontamente, fornecendo justamente aquilo de que estava de posse sobre esse crime de corrupção acadêmica nela passado, e como a academia onde o
crime de corrupção acadêmica se tinha passado efetivamente forneceu aquilo de que estava de posse sobre esse crime de corrupção acadêmica nela passado, inclusive prontamente, e como aquilo de que ela estava de posse sobre esse crime de corrupção acadêmica nela passado não constituiu convicção suciente de que se tinha passado crime de corrupção acadêmica nessa academia, a apuração foi nalizada, o caso em comento tendo sofrido arquivamento.
Silvn michele rs Natural de Belém, onde estudou Medicina, Inglês e Alemão. Ao longo da graduação em Medicina, publicou 57 textos cientícos em congressos e outros eventos médico-cientícos. Iniciou carreira de escritora em 2006 e possui, até o momento, onze distinções em certames literários.
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aivinh,
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Roberto Klotz
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Jovem — Posso me sentar? — perguntou ao senhor grisalho. von Silva — Por favor, que à vontade. J — Se o senhor se incomodar, posso me sentar em outra mesa. vS — Oras, não é nenhum incômodo. Acho melhor almoçar acompanhado a car só. A mesa é pequena, mas suciente para nós dois. O mais moço encheu o garfo duas vezes de peixe frito e falou sobre a vitória do seu time no jogo da noite anterior. Mais duas garfadas de arroz e comentou sobre a impunidade em todas as esferas do governo. Comeu uma rodela de tomate e criticou o galã da novela. Tomou um gole de suco de abacaxi e se desculpou por ter chutado a mesa desequilibrada no chão irregular da calçada. Assim, entre mastiga, mastiga, mastiga, engole, o moço falou de música erudita a guerras no Oriente Médio. Foi de Nelson Rodrigues e Cecília Meireles. E voltou de Sófocles e Platão. O senhor de cabeça branca concordava ou discordava discretamente, com gestos suaves, sem dizer palavra. J — Desculpe senhor, acho que falei demais. Tomei a palavra e não larguei. Estamos sentados aqui já há algum tempo e sequer me apresentei... vS — Não há nenhum problema, Gilberto. A solidão nos leva a esse tipo de comportamento. Isso é absolutamente normal nos casos como o seu.
J — Como assim? De onde o senhor me conhece? vS — Você sentou-se à minha frente há meia hora. J — Em momento algum falei meu nome. Como sabe meu nome? vS — Está escrito no seu crachá. J — E esse negócio de solidão? Eu não falei da minha vida particular. Caso como o meu? Por que acha que estou solitário? Leu no meu crachá? vS — Havia tantas mesas vazias. E você escolheu a que eu estava para ter companhia. Poderia ter escolhido aquela próxima à televisão. Mas preferiu gente. A televisão é sua companhia noturna. Você está só e continua apaixonado por aquela que o deixou. J — O senhor está semeando verde para colher maduro... vS — Olhe para aquela mesa com aquela mocinha... Pouco mais nova que você. Não é atraente? J — É sim, e daí? O que tem a ver comigo? vS — Você poderia ter escolhido aquela mesa. Seria uma companhia muito mais interessante. Signica que não está à procura de mulher. E sei que está sem nenhuma. J — Como sabe que estou sem mulher? Só porque co vendo tevê? Onde o senhor leu isso? vS — Na sua camisa. J — Não entendi. Escrito na minha camisa?
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vS — Sim. Você Você está usando usando a mesma mesma camisa há vários dias. J — Ela está cheirand cheirando? o? vS — Não. — respondeu respondeu sério sério — Ela não foi passada e está manchada. J — Isto não quer quer dizer nada. vS — Quer Quer dizer que que você almoçou almoçou aqui na terça-feira e ontem com a mesma camisa. J — O senhor senhor também almoçou almoçou aqui? aqui? vS — Não. Esta é minha primeira primeira vez. No cartaz está escrito que, às terças, servem nhoque, e às quartas, feijoada. E na sua camisa há molho de tomate e restos de feijão. J — E o que mais, mais, ó grande grande Sherlock, Sherlock, o senhor vê na minha camisa? vS — Vejo Vejo que você você já teve teve um bom emprego e que agora está nanceirananceiramente prejudicado. J — A mancha deveria deveria ser de de estrogonofe gonofe com co m champignon? cha mpignon? vS — Você Você está usando usando uma camicamisa social com seu monograma, GBAS, bordado no bolso. A gola e os punhos estão bem gastos. A sua linguagem e modos nos contrastam com a camicami seta vermelha por debaixo da camisa social. Noutras épocas, provavelmente, usaria um casaco para se proteger do
frio. J — O senhor senhor é adivinho, adivinho, dete detetive tive ou ou fofoqueiro? O que mais andou reparando? do? vS — Que agora é pedestre, pedestre, sem carcarro. Só anda a pé ou de ônibus. J — O senhor senhor é totalmen totalmente te maluco. maluco. A troco do quê eu não teria carro? vS — O chaveiro chaveiro que você colocou colocou sobre a mesa não tem chave de carro. E não se exalte, sua pressão vai subir mais ainda. J — Pressão? O que o senhor senhor sabe da minha saúde? vS — Você Você despejou despejou o saleiro saleiro sobre sobre sua comida, isso provoca pressão alta e aquela quantidade de malagueta sobre o peixe frito provoca hemorróidas. Gilberto, sem dizer mais nada, levantou-se e foi pagar a conta. Ainda pegou um café, quando viu seu companheiro de mesa se aproximar. Com muita raiva, jogou o café no velho velho e pergunto perguntou u provocativo: provocativo: J — E aí, sabe-tudo, sabe-tudo, o que que achou? achou? vS — Achei Achei sem açúcar. açúcar. Extraído do livro Cara de crachá de Roberto Klotz. Edição do autor, 2011
rbe Kl autor dos contos e crônicas de Pepino e farofa, Quase pisei! e Cara de crachá. Com linguajar leve, dinâmico, dinâmico, bem-humorado e nais surpreendentes foi premiado em mais de 20 concursos literários. Promove ocinas e palestras sobre a escrita. Jurado de concursos concursos literários. É conselheiro de cultura em literatura da Secretaria de Cultura do DF. Participa do Núcleo de Literatura da Câmara dos Depu- tados. Recebeu elogios de Moacyr Scliar e Ignácio Loyola Brandão. Produziu 40 crônicas semanais ininterruptas ininterruptas sobre notícias publicadas no jornal. Está em robertoklotz.blo robertoklotz.blogspot.com gspot.com
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avess ( ) Sara Meynard
Parecia que aquela seria mais uma das noites em que se vai dormir com quase quatro mil coisas na cabeça. Deitei-me ainda cedo, com o objetivo que o sono fosse mais proveitoso do que enfrentar enfrentar a madrugada fria. Aquilo já era de costume, os sons dos carros e motos na avenida invadindo o meu quarto me embalavam e me faziam companhia. As luzes penetravam inquietas pelas grades da janela, fazendo com que minha escuridão fosse menor. Todo aquele barulho me fazia sentir mais em casa do que se eu estivesse no silêncio de mim. Talvez fosse medo; ou
covardia. Mas é que depois de tantas feridas o corpo quer é sossego. Mesmo que eu fosse covarde e me tendesse para as pessoas, aquilo era muito mais forte, era conforto. Mas não importava o meu conforto; as feridas ainda estavam lá, mesmo que não ousasse nem pronunciá-las. Ignorei. Segurei o ar com uma das mãos, e movi a outra misteriosamente, como se não soubesse onde fosse parar, até que as duas se encontraram e se visitaram por dentro. Meu próprio calor me aquecia, o corpo se repartia em dois, transformando a solidão em duas, que
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se ligavam. Que fosse só um disfarce, não importava. Quando criei coragem para fechar os olhos e ver todos aqueles pesos, e minhas pálpebras começaram começaram a se fechar na mesma lentidão do pôr do sol, com todos os raios indo embora, o corpo se preparando para a noite, a vida recuando como se tivesse medo, nada veio. Eu até me assustei, mas já cansada, achei agradável e afundei na cama com a força de um lutador. Foi quando ela entrou. A porta do quarto se abriu devagar, e embora nenhum feixe de luz a acompanhasse, via sua silhue silhueta ta claramente. claramente. Eu poderia poderia falar que quei com medo, mas a verdaverda de é que eu não reconhecia perigo em uma companhia para a noite. Mesmo que fosse estrangeira; eu não poderia saber o motivo de temer aquilo, era estranho demais para mim. Meus olhos no começo se arregalaram; mas logo foram se fechando, à medida que ela ia chegando mais perto, e era tudo tão devagar que parecia ter todo tempo do mundo. Ao contrário contrár io dos dias corridos que se passavam em sufoco, naquela noite os acontecimentos foram se entrelaçando de maneira tão lenta, que era possível ver e sentir todos os os soltos, e todos os os que se uniam na construção do que agora narro nesse conto póstumo. Póstumo sim, pois alguma coisa morreu aquela noite. Meus lençóis eram brancos, mas eu juro que que acordaram verm vermelh elhos. os. Não me lembro em momento algum de haver sangue; nem dor. Pelo contrário, era uma paz tão grande que eu fechei mesmo os olhos – mas tenho certeza que não dormi, pois os abria sempre – e até comecei a gargalhar de prazer com aquela coisa se movendo em meu quarto.
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A sombra dançava; os pés esticavam e encurvavam; tinha a habilidade de uma bailarina. Não me lembro que roupa usava, e nem se usava. Mas ela veio e se sentou ao meu lado. Agarrou minhas mãos, e as segurou assim como esta vam: juntas. juntas. E sem falar nada, veio veio me pegando, me passando, me aninhando, anin hando, com o mesmo calor do ventre materno e o mesmo prazer das mais éis ou inéis amantes. Eu não pensei muito aquela noite. Na verdade verdade não pensei nada. Por Por isso não tive medo da respiração pesada no meu ouvido, das mãos que me rodeavam. E não deveria mesmo ter. Era tudo o que eu esperava, meu avesso estava ali: e me segurando, apalpou meus arranhões, minhas marcas, meus vermelhões, roxos e tudo mais que um dia houvera me ferido . Só sentia minhas gargalhadas agora. Gargalhávamos juntas. Aquela sombra e eu. Rindo alto da vida que passava, do tempo indecoroso, das ruas inacessíveis, das roupas desnecessárias... era tudo e muito mais. Era eu, e o avesso. A avessa. Não me lembro quando dormi, e nem sei mesmo se dormi. Sei que quando abri os olhos, estava sozinha de novo. Mas já não me sentia assim. Era como se ela ainda estivesse ali, comigo, como se tivesse se tornado parte de mim. Não; já era parte de mim antes. Eu só a achei. E no riso fugido da noite, eu acordei ainda com os dentes de fora. A sensação de luto me tomava ao mesmo tempo em que o sol raiava forte. Nunca soube o que morreu aquela noite, e nunca nem procurei saber. Só sei que se perderam na sua inutilidade todas as quatro mil coisas, e eu tinha lençóis novos.
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Edweine Loureiro
CoLEtIVo Toca o buzão motorista, esse ônibus passa no Largo, licença dona, tô indo pro trabalho… Sentou-se no banco de trás, o olhar perdido. E agora, o que faria? Demitido, endividado e três lhos para criar… Menina tu tá grávida, esse Botafogo não tá mais com nada, viu o jogo ontem, passa na praça sim senhor… O que diria à esposa? Como reagiria Mariana a uma notícia assim? Temeu possíveis discussões; até mesmo a separação.
Pode baixar o som cumpadi, tu num tá no ônibus sozinho, qual é seu mané, vai encarar, Deus do céu, ele tá armado… Tudo o que sabia é que, não importando o que acontecesse, precisava seguir vivendo. Amanhã mesmo… Escapou pela janela o desgraçado, toca pro hospital motorista, meu Deus, o tiro pegou no peito, tá morto, não, ele tá ten- tando dizer alguma coisa, silêncio gente, pobre do homem, não tinha nada a ver com a briga… — Mariana…
Eweine Lei Nasceu no Brasil em 20 de Setembro de 1975. É advogado, professor e reside no Japão desde 2001. Prêmios literários incluem: Primeiro Lugar na Categoria Crônica do 6º Desao dos Escrito - res (2010) e o Primeiro Lugar no V Concurso Crônica e Literatura – Prêmio Ferreira Gullar (Mi- nas Gerais, 2011). É membro correspondente da Academia Cabista de Letras, Artes e Ciências (Rio de Janeiro). Autor dos livros: Sonhador Sim Senhor! (Editora Litteris, 2000) e Clandestinos [e outras crônicas] (Clube de Autores e Agbook, 2011).
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Zulmar Lopes
Pgói Está se vendo que você nunca se apaixonou, não é, meu caro? Dizem que paixão é uma coisa avassaladora, uma fábrica de loucuras. O Frejat ilustrou bem isso naquela música, como era mesmo a letra? Deixa pra lá. Isto não deve ser do seu interesse, não é mesmo? Apesar de estar apaixonado, julgo que, o que z por Lívia, não foi uma loucura de amor, pensei inclusive estar agindo da maneira correta e olha o que me aconteceu? Aonde vim parar? Caso houvesse cometido um desatino amoroso, certamente a história teria sido outra e hoje estaríamos juntos e felizes curtindo o nosso amor. Confesso que a primeira vez que eu a vi, Lívia não me despertou a mínima atenção. Mal a notei, diluída naquele vai e vem de gente transitando dentro do restaurante de comida a quilo da sua família. Na verdade, eu estava faminto e os predicados do sexo feminino me interessavam menos do que um suculento prato de comida, baratinha, como mostrava o cartaz do lado de fora do estabelecimento. Ela era a encarregada de servir as bebidas do restaurante. Ficava de um lado para o outro zanzando com uma bandeja apinhada
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de garrafas e copos, sempre comandada aos berros por aquela senhora de maus modos que tudo scalizava por detrás da balança onde os pratos eram pesados. “Lívia, não esqueça o refrigerante do moço lá no fundo! Vamos logo, menina, deixa de preguiça! Você é uma estabanada mesmo, não serve pra nada!” Elogios daquela mulher, eu creio que minha amada nunca tenha ouvido. Compunha o resto da família um sujeito mal-encarado que cava na caixa, invariavelmente trajando a camisa do Botafogo. Pouco falava, muito grunhia para os clientes ao devolver o troco. A comida não era grande coisa, mas por aquele ser o restaurante mais próximo do trabalho, tornei-me seu habitué e, pouco a pouco, fui reparando na beleza rústica de Lívia. Tinha o meu amor o rosto redondo, sardentinho, decorado com dois olhos chamativos, nunca soube ao certo serem verdes ou azuis, e um cabelo cacheado, ruivo e há tempos longe de um cabeleireiro. Seu corpo era de uma leve obesidade disfarçada por uma coleção de calças jeans que modelavam sensualmente os quadris. O busto, farto, se escondia atrás das camisetas t-shirt de algodão em cores e estampas berrantes.
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Aparentava pouco mais de 18 anos e uma enorme vontade em largar a escravidão familiar a que era submetida. No nal de uma semana eu já era um homem apaixonado. Contudo, nossa aproximação foi lenta e gradual. Trocávamos parcas palavras e fartos sorrisos maliciosos sempre que Lívia vinha servir-me o refrigerante. Certa vez, fui até audacioso e toquei de leve sua mão, enquanto ela depositava o copo sobre a mesa. Lívia assentiu ao toque, contudo, não deixei de notar que ela procurou com os olhos certicar-se de que nem a mãe e o irmão haviam reparado em minha ousadia. No dia seguinte à cena, ela disfarçadamente deixou em minha mesa um pedaço de folha de caderno onde estava escrito “eu te amo” em garranchos quase infantis. A singela frase vinha acompanhada de dois corações entrelaçados mal desenhados. Feliz como um adolescente correspondido, guardei no bolso o recado ao mesmo tempo em que acompanhei com os olhos Lívia sumir em direção à cozinha do restaurante. Decidi que não passaria daquele dia mas, homem feito que era, desejei que as coisas fossem feitas às claras. Não estava em idade de namoros escondidos. Resolução tomada, deixei a mesa onde costumeiramente almoçava e fui ao encontro do irmão de Lívia. Ele parecia mais trombudo do que seu estado normal. A mãe encontrava-se a seu lado na caixa registradora, certamente conferiam a féria do dia e não gostariam de ser incomodados, porém, eu tinha que falar com os dois acerca dos meus propósitos com a moça, como eu havia dito, desejava agir da maneira correta. A senhora me recebeu munida de um sorriso amável, pois já se acostumara com a minha presença no restaurante. O botafoguense
mal tirou os olhos das contas que fazia numa calculadora. As palavras jorraram da minha boca descontroladas: “Bem, já faz algum tempo que almoço neste estabelecimento e só tenho elogios à comida aqui servida, mas, não é disso que desejo falar com vocês. É sobre Lívia. Sei que pode parecer estranho, mal nos conhecemos, mas, o amor tem dessas coisas. Sou um sujeito decente, respeitador e minhas intenções com a menina são as melhores possíveis. Preferi falar com os dois antes até do que com ela que, desculpem o modo de me expressar, já tem correspondido a minha paixão. Gostaria de pedir permissão a vocês para...” Nunca imaginei que o botafoguense guardasse uma arma atrás do balcão. Aliás, deveria sim ter imaginado, pois a cidade andava muito perigosa naqueles tempos. Só não poderia supor que o sujeito era o marido de Lívia e aquela senhora tratava-se na verdade da sogra da moça. Mas como é que eu iria saber? Os três eram tão parecidos. O cara nem me deixou explicar o lamentável engano. Os tiros foram mortais. Nem cheguei a experimentar sofrimento. Descobri que se perde a consciência quase que imediatamente com várias balas alojadas no seu cérebro. Agora estou aqui, neste purgatório, esperando a minha triagem para a morada nal. Você ainda vai demorar muito a decidir, meu caro? Veja bem. Fui um sujeito honesto, cumpridor dos meus deveres, bom cidadão. Apenas traído por uma paixão arrebatadora, não sabia que Lívia era casada. Também, ela poderia ter me dito, não é verdade? O senhor é um anjo? É o responsável por este local? Amar a mulher errada não é um pecado que justique minha passagem para o inferno, não é verdade? Poderia, por gentileza, avaliar com simpatia a minha situação?
zl Lpes Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem diversos prêmios literários com destaque para as menções honrosas no 11º Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, 7º Concurso de Contos Luis Jardim e 23º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba. Vencedor do 33º Concurso Literário Felippe D’Oliveira na modalidade conto. Membro correspon- dente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”.
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d-se helicópe. t i. Leandro Luiz
Doei minha casa, meu carro, meu iate, a pousada do interior e a minha coleção de selos raros por uma boa causa, ou melhor, para realizar um sonho: eu queria ser pobre. Olha, foi um investimento a curto prazo que deu muito certo, de dar inveja a qualquer economista de plantão. Desde a minha infância, não aguentava a vida que levava. Piscina, spa toda quinta-feira, polo com o Clube dos Investidores de Petróleo, ah não, cansei. A minha vida era muito chata, sempre regada a vinhos importados e queijos caros. Troquei a escolta armada pela liberdade, o condomínio de luxo por uma modesta moradia e os restaurantes chiques, ou chiquérrimo, como diz a minha tia-avó, pelo delicioso churrasco grego do centro. Com o suco grátis, diga-se de passagem. Estou agora com amigos verdadeiros, parceiros para todas as ocasiões e “manos” (uma gíria que aprendi na pelada aqui do bairro, que prometo saber o que signica) incríveis. Chega de polo aos sábados, leilão aos domingos, mocassim e roupa engomada até
para dormir. Tive que lutar contra tudo e contra todos e, para piorar a situação, enfrentando uma série crise pela falta de caviar toda manhã. Mas valeu a pena. Hoje estou realizado e cheguei onde queria. Sou pobre e confesso que, para chegar até aqui, foi um grande desao. Duvida? Então, escuta essa: têm muitos por aí que fazem mil promessas se carem milionários. Dizem que vão fazer isso, comprar aquilo, largar o emprego, viajar e mais um monte de blá-blá-blá. Agora, confesse: você já viu alguém fazendo promessas caso que pobre? Tá vendo? Eu estou no perrengue e já tenho os meus projetos para o futuro. Quero apenas ser feliz. Vou seguir a vida cheio de alegria, cantando e, entre um charuto e outro, pedindo alguns trocados. Ué, por que não? Anal, eu podia tá comprando empresas, gastando fortunas em joias, mas estou aqui, na maior humildade, mano.
Len Li 29 anos, é redator publicitário e, nas horas vagas, adora escrever sobre tudo e todos. Entre os seus trabalhos literários, obteve três menções honrosas e, em 2011, foi destaque nacional no XVI Concurso Literário Internacional de Poesias, Contos e Crônicas com a crônica “Chega de Au-Au”.
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rgs tep Juliano Ramos de Oliveira
Saiu. A noite quente não lhe dava sossego, mas ânsias de partir. Partiu. O ar inou-lhe o peito repleto de liberdade. Afastou-se da casa. Engraçado! Não voltaria. A certeza conduzialhe os passos. Engraçado! Imaginara-se sempre tomando esta atitude num momento de angústias, mágoas. Mas não. Encontrava-se brando, os lhos com lhos e famílias a mais para se dedicarem. A esposa aposentada do professorado exercido com triunfo. Dona Glória de geograa sentiria sua falta, todavia toda dor ameniza-se no todo dia. Partiu. No bolso algum dinheiro e o cartão da “previdência” faziam-se sucientes. Buscava motivos para a fuga. Não há causas concretas? Há? Acordara no meio da noite com o suor que cobria-lhe o corpo. Levantou-se, observou o sono da esposa na semiclaridade vinda da fenda da porta. Ainda amava o vestígio da bela mulher de outrora. Deixou o cômodo. Aprontou-se ligeiro. Fitou-se no espelho. Setenta e dois anos, envelhecera: as rugas do tempo cra vadas na face avançada, os os brancos doma vam as têmporas... Seria a causa? As rugas do tempo? Sentou-se, a passagem no bolso. Para onde? Não importava, escolhera um nome qualquer na placa da cabine da empresa... “O ônibus está atrasado”, disseram. O atraso do carro arrastou-se na madrugada semideserta da rodoviária. O sono grosso empurrou-o sobre o banco convidativo, entregou-se... Acordou. Leu no ônibus o nome da cidadedestino. Não o perdera. Olhou a volta. Poucos
viajavam naquela hora. Reparou que um jovem muito próximo chorava em silêncio. Notando o olhar do velho, o rapaz controlou-se e explicou-se sem que lhe perguntasse: “Desculpeme... minha esposa teve um parto difícil esta noite... a criança se foi... a mãe também está morrendo... me avisaram há pouco... e eu aqui, preso nesta rodoviária. Não há ninguém para se pedir ajuda, este é o último ônibus para a minha cidade a tempo do enterro da criança e, talvez, ver Maria viva... Entende minha aição? Mesmo que saia pedindo... não há gente obastante para juntar o dinheiro... – Espere! – o velho vasculhou na carteira; o dinheiro que trouxera não seria suciente. Resolveu. Entregou-lhe a passagem que comprara. – Vá você! – Mas... senhor!?!? – Pego o próximo, não importa se me atrasar. Vá! Você tem mais pressa. Vá! O rapaz resplendeceu, apertou-lhe vigorosamente a mão agradecendo-o e correu para o veículo. O velho pensou com saudade súbita na sua vida de sempre, na família bem viva, criada, segura, na sua glória: Dona Glória de geograa... – Deus lhe abençoe! – disse o jovem da janela, acenando expansivamente. – Amém! – murmurou o velho apiedado do jovem em quem as rugas da vida se faziam profundas e prematuras no tempo.
Jlin e olivei rs Nasceu em 1977 e vive na cidade de Avaré – SP – Brasil. Formado em Letras (Português/Inglês/ Espanhol), atua como professor efetivo na rede pública do estado de São Paulo em dois cargos. Além de educador, trabalha como ator e diretor teatral há mais de 10 anos, tendo atuado e diri- gido mais de 15 espetáculos. Escreve desde muito cedo. Portanto, além dos livros publicados pelo CLUBE DE AUTORES e AGBOOK, tem seus textos publicados em antologias e jornais literários de sua cidade natal e região. http://www.ickr.com/photos/simoom/11178416/
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minh vi, e pesel Sonia Regina Rocha Rodrigues
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Não adianta trancar as portas e as janelas. O inimigo já se instalou. Como dizia Nietzsche: “Procuravas o fardo mais pesado e te encontraste a ti mesmo... Não podes mais libertar-te de ti mesmo...”. Ah, como eu bem compreendo as palavras de Zaratustra! Eu sempre soube, desde bem pequena, que o meu pior inimigo mora dentro de mim. Neste momento mesmo, pode estar à espreita.... E eu me sinto tão desprotegida! Escrevi na porta de meu quarto minha frase favorita de Edgar Allan Poe: “A desgraça é variada. O infortúnio sobre a terra é multiforme.” E não conheço infortúnio maior do que ser um personagem de Kafka, condenado, eu o sei, a tornar-se um matricida. Ah! Como eu entendo Kafka! Todo lho único de mãe perfeccionista entende Kafka. Condenado sem culpa antes de qualquer julgamento, o lho único de mãe perfeccionista jamais conhecerá a metamorfose que o tornaria humano. É execrado pelos colegas desde o berçário por sua precocidade genial e seu vocabulário corretíssimo. Este menino ou menina aos quatro anos de idade faz um rabisco à la Picasso usando cores como Matisse, em vão. Sua mãe torce o nariz: ‘para sua idade, até que está bom...’ Aos sete, ele ou ela desenha usando perspectiva, planos de fundo e sombreado que obedece rigorosamente a posição da luz. Nem os pintores italianos anteriores a Da Vinci coloriam tão bem, porém a mãe boceja com enfado: ‘razoável’. Em vão esta criança se aplica aos estudos.
Se tira nove, poderia fazer melhor, se tira dez, não fez mais do que sua obrigação. Se atleta, ao exibir orgulhoso o título de campeão estadual, ouve da mãe o comentário: ‘o campeão brasileiro, na sua idade, bateu o recorde mundial e o campeão sul-americano é mais novo que você’. Ela nunca aplaude, para não ‘estragar’ o rebento. Caso ganhe o ouro olímpico, a mãe arma que ele está abaixo de suas possibilidades, que seu desempenho poderia ter sido melhor, pois ela, que o criou, sabe como ele é preguiçoso, contentando-se com um resultado inferior a seu potencial. Quando a cumprimentam, ela recebe os louros especicando quantas horas sacricouse acompanhando o herdeiro a treinos e competições, frisando o quão dedicada foi e ainda é, saboreando sua fatia no triunfo do lho. Filho que trocaria todos os prêmios, troféus, diplomas e medalhas pelo único elogio que ela nunca pronunciará. E se um dia, ele, desesperado, pular no pescoço da mãe, apertando, estrangulando, sacudindo, conrmará ser um lho ingrato que não reconhece o quanto ela faz por ele. E eu sinto todos os dias estes impulsos agressivos. Fico atento, vigilante, como aconselha a Bíblia, surpreendendo minuto a minuto os pensamentos furiosos do meu demônio interior, intentando contra a vida da minha mãe. Sonho que estou com a faca nas mãos, tinta do sangue dela, e imagino inúmeras maneiras de assassiná-la. Acordo suando frio, sabendo que, um dia, perderei a batalha, e o demônio guiará minha mão, que se tornará a mão de um criminoso.
Sni regin rch riges nasceu em 1955 no Brasil, em Santos, cidade histórica, espremida entre o mar e a serra, de clima instável, onde todas as estações do ano podem ocorrer no mesmo dia, e ocorrem. A partir de 1993 começou a divulgar seus textos, em vários periódicos nacionais e informativos de gru- pos literários. Participou do grupo editorial Um Dedo de Prosa e é autora dos livros: os romances Rosa, A fantástica experiência de Carolina Helena, Viagem ao Canadá, Dias de Outono, Encontro com a Deusa; Uma casa no interior – infantil; Dias de Verão – contos e crônicas. Na internet, foi considerada uma das melhores prosadoras do site Blocos Online em 2004. página pessoal - http://alegriadeler.blogspot.com
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m e gs ep Fernanda Cristina de Paula
Noite. O estacionamento muito escuro. *** Parou o carro e olhou-se pelo retrovisor. Estavam em pessoas nove no bar. Ela Ela esqueceu de pentear o cabelo. Mas não sorriu da piada que o Alexandre contou, fazia tanta diferença. O cabelo liso e pesado, mas virou delicadamente o rosto. Ao menos bagunçado desse jeito, ia parecer só charsorria. me – ponderou. E olhando os próprios olhos Por todo o tempo, escorregava casualorientais (irritados e sem maquiagem) murmente os dedos pelo copo. E sorria, sempre murou: charme de merda. suave. Seria justo tirar da boca aquele batom Estavam em nove pessoas, não conseguiroxo (seu preferido), que passara às pressas. ram mesa. Estavam amontoados ali, junto Mas desistiu da ideia. ao balcão. Ela, sentada na banqueta (sempre Subitamente, se apressou: jogou os óculos sorrindo, simpática e delicada) tinha uma e as chaves de casa de qualquer jeito dentro visão privilegiada de Marta, no meio da roda da bolsa e saiu com rapidez do carro. Char- de amigos. me de merda. Marta insegura, tapada e mal resolvida. Entrou no bar.
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Marta que se pensava mulher interessante, só porque se fazia sexualmente liberal. A bartender era a Leila. Leila, A Estranha (cochichou maldosamente pra Roberta). Normalmente, tinha dó de Marta. Mas, nesse dia, sentada junto ao balcão, afundada na meia escuridão, Marta parecia lhe reluzir (esfuziante em sua vulgaridade de mulher moderna). Marta ao rir e conversar com todos e alisar constantemente o cabelo (charme de merda) reluzia de idiotice e falta de noção. Passou com urgência a mão no próprio cabelo bagunçado; ainda desejosa de arrancar o batom. Sorria suave pra esconder seus bufos de impaciência. E desviava o rosto. Leila, sobrinha da prima de segundo grau do tio da cunhada do Edvaldo. Magrela e feia de doer: Leila, sempre sorrindo, atenciosa. Queria tirar o batom. Escorregando os dedos lentamente pelo copo, ponderou que se casse bêbada acabaria dando pro sujo do Alexandre. E se casse bêbada acabaria (totalmente absurda e etílica e cambaleante) levando Marta para algum canto. Se casse bêbada, tinha certeza, acabaria com a fala engrolada, tentando explicar calmamente à Marta: Que Porra Marta para de oferecer essa bunda pra todo mundo. Para, Marta! Você ‘tá fazendo a droga toda errada. Não vê, Marta? Não vê? Caralho, Marta, você não vê? Nenhum deles (os que te comeram ou não) te respeitam. Eles nem ngem, Marta, nem ngem que te dão a porra d’uma atenção. Para de oferecer essa bunda feia pra todo mundo! Mas que caralho, Marta! Não vê? (a voz engrolada, os olhos dançando de bêbada). Você, pra eles, não é uma liberal, é só uma vagabunda fácil e suja com diploma de economista. Marta, eles são uns machistas tapados e sujos. Marta? (com voz de bêbada triste diria) Marta? Vai tomar no cu, Marta! Não vê?! Não vê?! (chacoalhando Marta pelo braço; Marta chorando; ela mesma chorando, bêbada, derrubando a vodka do copo na roupa; Alexandre mandando-a soltar Marta; Alexandre querendo levá-la embora pra comê-la, ela também como Marta: vagabunda, fácil e suja). Ela sorri da terceira piada que Luciano conta. Pondera internamente que não deve car bêbada. Ao mesmo tempo, escuta (perfeitamente atenciosa) Sandra contar sobre
a gravidez da Luana. Sorri suavemente nas partes bonitas ou engraçadas da história: sempre simpática em sua perfeita delicadeza oriental. O cabelo bagunçado e os olhos descuidadamente (mas eternamente) pousados no próprio copo. Se casse bêbada, pensa consigo mesma, seria um desastre. Seus dedos descem e sobem pelo copo: lentos de reexão. Nunca fora amiga da Marta. Às vezes, passava horas escutando as lamúrias dela, via-a apenas uma ou três vezes a cada dois meses. Alardeava a dó que tinha da Marta (a vaca insegura) para quem quisesse ouvir. Pega o guardanapo e, discretamente, tira o batom da boca. Fora besteira ir ali. Não suporta o próprio batom. Não tem força pra um sorriso genuíno. E Marta, inocente, reluz feito seu novo objeto de ódio na meia escuridão. Adriano começa uma piada de japonês, percebe a gafe e faz um cumprimento oriental para ela, à guisa de desculpa. Todos riem; ela ri, faz sinal de que tudo bem, que ele podia continuar a piada. Sandra para a história da gravidez da Luana pra ouvir a piada de Adriano. Ela sorri enquanto desvia sua vemente o rosto. A Marta ri pra uns caras, ri, se jogando, se oferecendo. E observando Marta, ela ca brava ao ter a certeza de que acabará bêbada, gritando com Marta, dando pro Alexandre. Os olhos ardem com a força de segurar um choro ridículo. Ela bebe um gole e sorri para ninguém. Leila, A Feia, prepara alguma bebida estranha. Leila percebe o olhar dela e oferece a bebida dizendo: — Essa é grátis. Ela sorri, pega o copo. — É feito do quê? — Prova primeiro. Mentalmente, ela xinga Leila e ri (não queria a porra da droga de bebida nenhuma). Toma a tal da bebida. Engasga, tosse, cospe. Põe raiva na voz ao reclamar: — É amargo. Leila sempre-feia-simpática responde calmamente: — Feito teu tempo.
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Todo o dia, sentados no pátio em um banco, estavam os quatro lhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos e viravam a cabeça com a boca aberta. O pátio era de terra, fechado a oeste por um muro de tijolos. O banco cava paralelo a ele, a cinco metros, e ali eles se mantinham imóveis, xos os olhos nos tijolos. Como o sol se ocultava atrás do muro, ao declinar os idiotas faziam festa. A luz que cegava chamava a atenção deles, a princípio, pouco a pouco seus olhos se anima vam; riam-se, por m, estrepitosamente, congestionados pela mesma hilariância ansiosa, olhando o sol com alegria bestial, como se fosse comida. Outras vezes, alinhados no banco, zumbiam por horas inteiras, imitando o bonde elétrico. Os ruídos fortes sacudiam assim a inércia deles, e então corriam, mordendo a língua e mugindo ao redor do pátio. Mas quase sempre cavam apagados numa sombria letargia de idiotismo, e passavam todo o dia sentados em seu banco, com as pernas suspensas e quietas, empapando de glutinosa saliva a calça. O maior tinha doze anos e o menor, oito. Em todo o aspecto sujo e desvalido deles, notava-se a falta absoluta de um pouco de cuidado maternal. No entanto, estes quatro idiotas haviam sido um dia o encanto de seus pais. Aos três meses de casados, Mazzini e Berta orientaram seu estreito amor de marido e mulher, e mulher e marido, para um por vir muito mais vital: um lho. Que maior benção para dois enamorados do que esta honrada consagração de seu carinho, libertado agora do vil egoísmo de um amor mútuo sem nalidade alguma e, o que é pior do que o amor mesmo, sem esperanças possíveis de renovação? Assim o sentiram Mazzini e Berta, e quando o lho chegou, aos quatorze meses de matrimônio, acreditaram cumprida a felicidade. A criatura cresceu bela e radiante, até que completou um ano e meio. Mas, no vigésimo mês, sacudiram-no uma noite convulsões terríveis, e na manhã seguinte
não conhecia mais seus pais. O médico o examinou com esta atenção prossional que está visivelmente buscando as causas do mal nas enfermidades dos pais. Depois de alguns dias, os membros paralisados recobraram o movimento; mas a inteligência, a alma, até o instinto, se haviam ido de todo; havia cado profundamente idiota, baboso, suspenso, morto para sempre sobre os joelhos de sua mãe. — Filho, meu lho querido! — soluçava esta sobre aquela espantosa ruína de seu primogênito. O pai, desolado, acompanhou o médico até afora. — A você se pode dizê-lo: creio ser um caso perdido. Poderá melhorar, educar-se em tudo que lhe permita seu idiotismo, mas nada mais além. — Sim! Sim! — assentia Mazzini — Mas, diga-me: o senhor acredita que é herdado, que...? — Quanto a herança paterna, já lhe disse o que acredito quando vi seu lho. A respeito da mãe, há ali um pulmão que não sopra bem. Não vejo nada mais, mas há um sopro um pouco áspero. Faça-a examinar detidamente. Com a alma destroçada pelo remorso, Mazzini redobrou o amor por seu lho, o pequeno idiota que pagava os excessos do avô. Teve ainda que consolar, apoiar sem trégua Berta, ferida profundamente por aquele fracasso de sua jovem maternidade. Como é natural, o casal pôs todo seu amor na esperança de outro lho. Nasceu este, e sua saúde e limpidez de riso reacenderam o porvir extinto. Mas aos dezoito meses, as convulsões do primogênito se repetiram, e no dia seguinte, o segundo lho amanhecia idiota. Desta vez, os pais caíram em profundo desespero. Portanto seu sangue, seu amor estavam malditos! Seu amor, sobretudo! Vinte e oito anos ele, vinte e dois ela, e toda sua apaixonada ternura não conseguia criar um átomo de vida normal. Já não pediam mais beleza e inteligência como
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para o primogênito, mas um lho, um lho como todos! Do novo desastre brotaram novas labaredas do dolorido amor, uma louca ânsia de redimir de uma vez para sempre a santidade de sua ternura. Sobrevieram gêmeos, e ponto por ponto repetiu-se o processo dos dois maiores. Mas, por sobre sua imensa amargura havia em Mazzini e Berta uma grande compaixão por seus quatro lhos. Tiveram de arrancar do limbo da mais profunda animalidade, não mais suas almas, senão o instinto mesmo, abolido. Não sabiam deglutir, mudar de lugar, nem mesmo sentarse. Aprenderam enm a caminhar, mas chocavam-se contra tudo, por não se darem conta dos obstáculos. Quando os lavavam, mugiam até injetarem de sangue o rosto. Animavam-se apenas ao comer, ou quando viam cores brilhantes ou ouviam estrondos. Riam-se, então, pondo para fora a língua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, em troca, certa faculdade imitati va; mas não se podia obter nada mais. Com os gêmeos pareceu haverem concluído a aterradora descendência. Mas passados três anos desejaram de novo ardentemente outro lho, conando que o longo tempo transcorrido houvesse aplacado a fatalidade. Não satisfaziam suas esperanças. E neste ardente anseio que se exasperava em razão de sua infrutuosidade, azedaram. Até este momento cada qual havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na desgraça de seus lhos; mas a desesperança de redenção perante as quatro bestas que haviam nascido deles pôs para fora esta imperiosa necessidade de culpar os outros, que é patrimônio especíco dos corações inferiores. Iniciaram com a mudança de pronome: seus lhos. E como além do insulto havia a insídia, a atmosfera se carregava. — Parece-me — disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mãos — que podia manter mais limpos os meninos.
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Berta continuou lendo como se não hou vesse ouvido. — É a primeira vez — retrucou depois de um tempo — que vejo você inquietar-se pelo estado de seus lhos. Mazzini voltou um pouco o rosto para ela com um sorriso forçado: — De nossos lhos, parece-me? — Bem, de nossos lhos. Prefere assim? — ergueu ela os olhos. Desta vez, Mazzini se expressou claramente: — Creio que não vai dizer que eu tenha a culpa, não é? — Ah, não! — sorriu Berta, muito pálida — mas eu também não, suponho! Não faltava mais! — murmurou. — O que não faltava mais? — Que se alguém tem a culpa, não sou eu, entenda-o bem! É o que eu queria lhe dizer. Seu marido a olhou por um momento, com brutal desejo de insultá-la. — Deixe estar! — articulou, secando enm as mãos. — Como quiser; mas se quer dizer.... — Berta! — Como quiser! Este foi o primeiro choque e se sucederam outros. Mas nas inevitáveis reconciliações, suas almas se uniam com redobrado arrebatamento e loucura por outro lho. Nasceu assim uma menina. Viveram dois anos com a angústia à or da pele, esperando sempre outro desastre. Nada ocorreu, no entanto, e os pais puseram nela toda sua complacência, que a pequena os levava aos mais extremos limites do mimo e da má criação. Se nos últimos tempos Berta ainda cuidava de seus lhos, ao nascer Bertita se esqueceu quase de todo dos outros. Só a recordação deles a horrorizava, como algo atroz que a houvessem obrigado a cometer. Com Mazzini, se bem que em menor grau,
passava o mesmo. Nem por isto a paz havia chegado a suas almas. A menor indisposição de sua lha os tirava agora de si, com o terror de perdê-la, os rancores de sua descendência podre. Haviam acumulado fel de sobra para que, ao menor contato, o veneno se vertesse para fora do copo. Desde o primeiro desgosto envenenado haviam-se perdido o respeito; e se há algo a que o homem se sente arrastado com cruel fruição é, quando já se começou, a humilhar de todo uma outra pessoa. Antes, continhamse pela mútua falta de êxito; agora que este havia chegado, cada qual, atribuindo-o a si mesmo, sentia maior a infâmia dos outros quatro engendros que o outro lhe havia forçado a criar. Com estes sentimentos, não houve mais aos quatro lhos mais velhos afeto possí vel. A empregada os vestia, dava-lhes de comer, punha-os para dormir, com visível brutalidade. Quase nunca os lavava. Passa vam todo o dia sentados diante do muro, abandonados de toda remota carícia. Deste modo, Bertita cumpriu quatro anos, e nesta noite, resultado das guloseimas que aos pais era impossível lhe negar, a criatura teve alguns calafrios e febre. E o temor de vê-la morrer ou car idiota, tornou a reabrir a eterna chaga. Fazia três horas que não falavam, e o motivo foi, como quase sempre, os fortes passos de Mazzini. — Meu Deus! Não pode caminhar mais devagar? Quantas vezes...? — Bom, é que me esqueço; acabou! Não o faço de propósito. Ela sorriu, desdenhosa: — Não, não creio tanto em você! — Nem eu jamais havia acreditado tanto em você... tísica! — Quê! Que disse? — Nada! — Sim, eu ouvi algo! Olhe: não sei o que você disse; mas lhe juro que prero qualquer coisa a ter um pai como o que você teve! Mazzini cou pálido.
— Enm! — murmurou apertando os dentes — Enm, víbora, disse o que queria! — Sim, víbora, sim! Mas eu tive pais saudáveis, ouça, saudáveis! Meu pai não morreu de delírio! Eu teria tido lhos como os de todo o mundo! Estes são lhos seus, seus os quatro! Mazzini explodiu, por sua vez. — Víbora tísica! Foi isto o que eu lhe disse, o que quero lhe dizer! Pergunte, pergunte ao médico quem tem a maior culpa da meningite de seus lhos: meu pai ou o seu pulmão furado, víbora! Continuaram cada vez com maior violência, até que um gemido de Bertita selou instantaneamente suas bocas. À uma da manhã a ligeira indigestão havia desaparecido, e como ocorre fatalmente com todos os casais jovens que se hão amado intensamente uma vez sequer, a reconciliação chegou, tanto mais efusiva quanto infames foram os agravos. Amanheceu um esplêndido dia, e enquanto Berta se levantava cuspiu sangue. As emoções e a má noite passada tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a reteve abraçada por um longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas sem que ninguém se atrevesse a dizer uma palavra. Às dez decidiram sair, depois de almoçar. Como ainda tinham tempo, ordenaram a empregada que matasse uma galinha. O dia radiante havia arrancado os idiotas de seu banco. De modo que, enquanto a empregada degolava na cozinha o animal, sangrando-o com parcimônia (Berta havia aprendido com sua mãe este bom modo de conservar a frescura da carne), acreditou ouvir algo como respiração atrás dela. Voltou-se e viu os quatro idiotas, com os ombros colados uns nos outros, olhando estupefatos a operação... Vermelho... Vermelho... — Senhora! Os meninos estão aqui, na cozinha. Berta chegou; não queria que jamais pisassem ali. E nem mesmo nestas horas de pleno perdão, esquecimento e felicidade
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reconquistada, podia evitar esta horrível visão! Porque, naturalmente, quanto mais intensos eram os arroubos de amor a seu marido e lha, mas irritado era seu humor com os monstros. — Que saiam, Maria! Tire-os! Tire-os, eu lhe digo! As quatro pobres bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, foram dar a seu banco. Depois de almoçar, saíram todos. A empregada foi a Buenos Aires e o casal a passear pelas quintas. Ao baixar o sol voltaram; mas Berta quis saudar por um momento as suas vizinhas da frente. Sua lha escapou-se em seguida para casa. Entretanto, os idiotas não haviam se movido durante todo o dia de seu banco. O sol havia transposto já o muro, começa va a baixar, e eles continuavam olhando os tijolos, mais inertes do que nunca. De súbito, algo se interpôs entre seus olhares e o muro. Sua irmã, cansada de cinco horas paternais, queria observar por sua conta. Parada ao pé do muro, mirava pensativa o topo. Queria trepar, disto não havia dúvida. Por m, decidiu-se por uma cadeira sem fundo, mas ainda não alcança va. Recorreu então a um galão de querosene, e seu instinto topográco fez-lhe colocá-lo verticalmente, com o qual triunfou. Os quatro idiotas, o olhar indiferente, viram como sua irmã conseguia pacientemente dominar o equilíbrio, e como em pontas de pé apoiava a garganta sobre o topo do muro, entre suas mãos tensas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com o pé para subir mais. Mas o olhar dos idiotas havia se animado; uma mesma luz insistente estava xa em suas pupilas. Não apartavam os olhos de sua irmã enquanto crescente sensação de gula bestial ia mudando cada linha de seus rostos. Lentamente avançaram até o muro. A pequena, que tendo conseguido apoiar o pé, ia já montar e cair para o outro lado, seguramente, sentiu-se pega pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.
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— Soltem-me! Deixem-me! — gritou sacudindo a perna. Mas foi puxada. — Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! — chorou imperiosamente. Tentou ainda segurar-se à borda, mas foi arrancada e caiu. — Mamãe, ai! Ma... — não pôde gritar mais. Um deles lhe apertou o pescoço, apartando os cabelo como se fossem plumas, e os outros a arrastaram por uma só perna até a cozinha, onde essa manhã se havia sangrado a galinha, bem presa, arrancando-lhe a vida segundo por segundo. Mazzini, na casa em frente, pensou ouvir a voz de sua lha. — Me parece que a chama — ele disse a Berta. Prestaram atenção, inquietos, mas não ouviram mais. Contudo, um momento depois se despediram, e enquanto Berta ia tirar seu chapéu, Mazzini avançou para o pátio. — Bertita! Ninguém respondeu. — Bertita! — ergueu mais a voz, já alterada. E o silêncio foi tão fúnebre para seu coração sempre amedrontado, que subiu um calafrio pela espinha por causa do horrível pressentimento. — Minha lha, minha lha! — correu já desesperado para o fundo. Mas ao passar frente à cozinha viu no chão um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta encostada e lançou um grito de horror. Berta, que já se havia lançado correndo por sua vez ao ouvir o angustiado chamado do pai, escutou o grito e respondeu com outro. Mas ao precipitar-se para a cozinha, Mazzini, lívido como a morte, se interpôs, contendo-a: — Não entre! Não entre! Berta chegou a ver o piso inundado de sangue. Apenas pôde levar os braços sobre a cabeça e cair sobre ele com um rouco suspiro.
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decálg pefei cnis Horacio Quiroga trad.: Henry Alfred Bugalho
I
Creia em um mestre — Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov — como em Deus mesmo. II
Creia que sua arte é um cume inacessível. Não sonhe em domá-la. Quando puder fazê-lo, você o conseguirá sem mesmo sabê-lo. III
Resista o quanto puder à imitação, mas imite se o inuxo for forte demais. Mais do que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma grande paciência. IV
Tenha fé cega não em sua capacidade para o triunfo, senão no ardor com que o deseja. Ame a sua arte como à sua namorada, dando-lhe todo seu coração. V
Não comece a escrever sem saber desde a primeira palavra aonde vai. Em um conto bem realizado, as três primeiras linhas têm quase a importância das três últimas.
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VI
Se quer expressar com exatidão esta circunstância: “Do rio sopra va o vento frio”, não há em língua humana mais palavras do que as apontadas para expressá-la. Uma vez dono de suas palavras, não se preocupe em observar se são consoantes ou assonantes entre si. VII
Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão quantas notas de cor adicionar a um substantivo débil. Se achar aquele que é necessário, apenas ele terá uma cor incomparável. Mas tem de achá-lo. VIII
Tome seus personagens pela mão e conduza-os rmemente até o nal, sem ver outra coisa além do caminho que lhes traçou. Não se distraia vendo o que eles podem ou não lhes importa ver. Não abuse do leitor. Um conto é um romance depurado de cascalho. Tenha isto como uma verdade absoluta, mesmo que não seja. IX
Não escreva sob o império da emoção. Deixe-a morrer, e evoquea depois. Se for capaz então de revivê-la tal qual foi, terá chegado à metade do caminho na arte. X
Não pense em seus amigos ao escrever, nem na impressão que causará sua história. Conte como se seu relato não tivesse mais importância do que para o pequeno ambiente de seus personagens, dos quais você poderia ter sido um. De nenhum outro modo se obtém a vida do conto.
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Hci qig Horacio Silvestre Quiroga Forteza (Salto, 31 de dezembro de 1879 — Buenos Aires, 31 de dezembro de 1937) foi um escritor uruguaio famoso por seus contos, que geralmente tratavam de eventos fantásticos e macabros na linha de Edgar Allan Poe e de temas relacionados à selva, sobretudo da região de Misiones, na Argentina, onde Quiroga passou parte da vida. Sua obra mais famosa são os Cuentos de amor de locura y de muerte (1917; título sem vírgula no original), na qual se encontra o célebre conto A Galinha Degolada. Em 1937, após ter sido diagnosticado com câncer, Quiroga cometeu suicídio, ingerindo uma dose letal de cianureto.
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tei Lieái
o e ningé lhe iá n cin lieái – pe 1
a Ciçã Henry Alfred Bugalho
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a esci nã e n ve c len e inspiçã. u cei lieái se f e lb e pesisênci.
É célebre a frase de Albert Einstein que diz que “O trabalho é 1% inspiração e 99% transpiração”, e não poderia ser mais verdadeira. A inspiração é a origem da trama, de quem são os personagens, o tema de um poema ou a ideia para uma crônica. Todo o resto, a materialidade da escrita, é puro trabalho. É trabalho a leitura de outros escritores. É trabalho o aprendizado da escrita. É trabalho sentar-se diante da página em branco e enchê-la de palavras na esperança que alguém, em algum lugar do mundo em algum tempo, detenha-se para lê-las.
qual você tanto tem orgulho não será lido por ninguém. Então, você, muito teimoso, continuará escrevendo, pois é o seu trabalho e o que lhe dá felicidade. Esceve be é fcil. Ci b hisói é fácil. o ifícil é esceve be b hisói.
Não existe segredo algum para escrever. Existem normas ortográcas e gramaticais, basta um pouco de estudo para dominá-las quase completamente.
Já as histórias estão por aí, ao nosso redor, ocorrendo no mundo inteiro o tempo todo. Leia os jornais e a quantidade de desgraças e histórias interessantes a cada dia. Veja os grandes livros da História e perceba quantas histórias boas já foram Após o vislumbre inicial, a grande ideia, escritas. Relembre sua própria vida, o que nada mais resta senão o intenso trabalho você viveu e ouviu, e perceberá que muito de escrita, reescrita, revisão, reescrita, edi- já aconteceu. ção, revisão, reescrita... É um labor intermiO problema começa quando se tem de nável, que tomará meses ou anos, às vezes juntar uma boa história com uma boa para uma única obra. escrita. Uma narrativa eciente é um equiÉ neste ponto que entra a persistência, líbrio entre o que é contado e como isto é pois os resultados da escrita são lentos e contado. Idealmente, o estilo e as palavras geralmente insatisfatórios. não deveriam ofuscar o que está aconteLevará anos para se obter alguma espécendo na história. cie de reconhecimento, e muitos mais anos Uma escrita muito rebuscada pode dispara ganhar alguns trocados com o que se trair o leitor. Uma escrita muito simplória escreve. O tempo e esforço investido serão pode afastar o leitor. muito maiores do que qualquer retorno Uma história desinteressante é do tipo possível. As horas gastas trabalhando sobre que dá sono. Uma história abarrotada de o texto se depararão com críticas ácidas e, reviravoltas pode soar inverossímil. na maioria das situações, com indiferença. Onde está o equilíbrio entre estilo e Muitas vezes, aquele texto brilhante do enredo? página oposta: Hesíodo e as Musas , de Gustave Moreau. O mito clássico da inspiração artística.
Isto é o que todos os escritores do
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mundo estão tentando descobrir. Se esci é en cnvence s eis e ss bs sã iginis e ciivs, es e nã sej.
Pense numa história... Imagine um personagem... Conceba uma ambientação... Agora, tenha certeza que alguém, em algum lugar do planeta, em algum momento da história da humanidade, já escreveu esta mesma história, com este mesmo personagem nesta mesma ambientação. E pior! Provavelmente melhor do que você. Desanimador, não? Primeiro, porque o repertório de histórias e enredo é limitado. Segundo, porque todo o mundo pensa que existe um escritor dentro de si. Por m, somos humanos, e as histórias que contamos, via de regra, se espelham no mundo em que vivemos, que é o mesmo de outros bilhões de pessoas.
Gêneros literários podem estar presentes nos mais diversos meios de comunicação. No entanto, os meios de comunicação também possuem linguagens especícas. Ser um bom jornalista não signica que o sujeito será um bom romancista, do mesmo modo que ser um blogueiro de sucesso não o tornará um bom contista ou poeta. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E o mesmo vale no interior dos próprios gêneros literários. Ser um contista não o tornará um bom romancista, são estruturas literárias diferentes com exigências distintas. Entre prosa e poesia há um imenso abismo, que a maioria dos escritores não consegue transpor com competência. Isto não quer dizer que você não deva se arriscar, mas esteja preparado. Ser bom em um gênero, ou em uma mídia, não quer dizer que você terá competência nos demais. Vcê peneá i is c s cíics e c s elgis.
Então, a sua tarefa de escritor, além de escrever sua obra da melhor maneira posTodo jovem escritor precisa de elogios sível, é também de convencer os demais de como uma or necessita de sol e água. No que ninguém mais poderia tê-la escrito. E começo, qualquer estímulo, por mais paristo não é fácil! cial e vago que seja, já é um enorme incentivo para escrevermos as próximas linhas. rnce é nce, cn é cn, pesi é pesi, blg é blg. Se vcê é b esceven , nã e ie e vcê bé seá b esceven s s.
Romance, conto e poesia são gêneros literários. Jornais, livros, revistas, TV, rádio e blogs são meios de comunicação.
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No entanto, elogios não tornarão sua escrita melhor. Elogios lhe darão a ilusão que tudo está ótimo e que não há mais necessidade de se aperfeiçoar. A escrita é uma estrada sem m, você nunca terá descanso e nunca chegará ao destino. E você só saberá se pegou a rota errada quando alguém lhe enar o dedo na cara e for sincero com você.
Algumas críticas serão puramente destrutivas, geralmente de pessoas que têm inveja de você. Todavia, haverá aquelas críticas tão pertinentes, que poderão transformar sua carreira. Algumas críticas atingem tanto o nervo que, todas as vezes que você sentar-se para escrever, elas estarão na sua mente, protegendo-o de certos equívocos, de clichês ou de atalhos equivocados. Ter um bom crítico por perto é a melhor companhia de um escritor. Esclh ene se li se i. obs e vng, enss, invs e ebscs é pe cheg se is, s se ningé s leá. o e s leies gs é e hisóis c ceç, ei e , pesngens plns, n is e eneenien p le n viã n piv.
milhares de personagens, com páginas em branco, sem enredo, e assim por diante. Escreva, se você gosta disto, se lhe dá prazer! É o tipo de livros que você lê, ou só está fazendo isto para impressionar os outros, mostrar como você é brilhante ou genial? Se for para escrever uma obra que ninguém lerá, que seja, pelo menos, pelos motivos certos... Mas lembre-se que os leitores são pessoas normais, que assistem novela das oito, gostam dos lmes de Spielberg, ouvem forró universitário e quase nunca vão a museus. Aliás, muitos dos leitores nem gostam muito de ler... A maioria deles deseja apenas uma história com começo, meio e m, com personagens simples e com motivações claras. “De que adianta ler um livro se eu não posso contar a história para alguém depois?”, muitos devem pensar.
Todos nós já quisemos revolucionar Quanto mais complexa e alternativa for a Literatura, ser considerados gênios ou sua escrita, menor será o seu público. trazer a paz ao mundo através de nossos liVocê terá de escolher: quer ser lido ou vros. Você pode tentar, mas é quase certeadmirado? za que isto não ocorrerá. São raríssimos os casos de escritores liE todos nós temos um modernista dentro da gente – aquele escritor que não está dos por públicos imensos e admirados pela nem aí para os leitores, que deseja escrever crítica. Ou você vende muito, ou é lido nas romances sem parágrafos, sem pontuação, universidades. Nem sempre se pode ter com páginas de cabeça para baixo, narrati- tudo na vida. vas não lineares, sem personagens, ou com
Heny alfe Bglh Formado em Filosoa pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Litera- tura e História. Autor de “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), de outros quatro romances e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fun- dador da Ocina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de- Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, em Buenos Aires, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
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tei Lieái
CaStILLo E modErN: doIS PoEtaS arGENtINoS Elias Antunes Quando se pensa na literatura argentina, logo vêm a nossa mente os nomes de Jorge Luis Borges e de Ernesto Sábato, escritores de uma importância monumental para a Literatura, entretanto esquecemos que existem outros escritores e poetas excelentes nas letras argentinas. Prova disso está nas guras de Horacio Castillo e Rodolfo Modern, ambos eminentes poetas e tradutores renomados, com diversos livros publicados, mas, infelizmente, pouco conhecidos fora do rincão argentino, ao menos no Brasil. Rodolfo Modern consiste em ser um poeta conciso, adepto do poema sintético, que consegue expressar uma gama enorme de sentidos em poucos versos, como no poema em que presta homenagem a Paul Celan, poeta judeu de expressão alemã: RESPOSTA A PAUL CELAN Para quê palavras quando a pele está aberta ao coração o agita um vento desacorrentado e o peso da voz
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dissolve o mundo em puro pranto. Rodolfo Modern tornou-se ao longo do tempo um poeta renado, lembrando os clássicos, utilizando uma linguagem concisa, como um bloco, ou monólito que em cada poema traz a marca da emoção e da inteligência. Seus poemas são curtos, porém de grande densidade poética e não é por acaso que conseguiu levantar importantes prêmios nesse país excepcional que é a Argentina. Nascido em 1922, em Buenos Aires, doutor
9 4 5 = w ? g p j . n r e d o m o f l o d o r / 0 1 / 1 1 0 2 / m o c . s s e r p d r o w . s e l . o t n e u c l e d s i n i m / / : p t t h
em Direito e Ciências Sociais e em Filosoa Nuca deserta, láudano trágico, até a faca e Letras; foi professor de Literatura Alemã na Descamado, desossado, e o olho – vesgo – Universidade Nacional de La Plata e Buenos AiExtraviado na mais completa lassidão. res; tradutor de vários autores de língua alemã, A alma, a alma, diz vomitando as vísceras. como: Hermann Hesse, Rilke, Paul Celan, entre outros. Seu campo de atuação é vasto como sua A alma, respondeu pisando a roda de seu cultura e carrega a força da tradição, sem se vestido descuidar da modernidade. De noiva e correndo até o sumidouro Horacio Castillo, por sua vez, também conMeca de gatos exercendo também seus quistou prêmios importantes. Tradutor de podireitos. etas gregos, como Odysseus Elytis, nasceu em 1934, em Ensenada, província de Buenos Aires. Advogado emérito, concebe uma poesia viva e TERCEIRO GALO vibrante, cheia da força da língua espanhola. Graça abundante, atoleiro do orvalho, Alguns de seus poemas são construídos à base Martírio na corredeira do jamais, de questionamentos e tendem a apresentar o olhar do poeta que capta o mundo de uma Todos ao funeral, todos ao funeral, forma diferente, mais humana, mais consciente Às cegas frente à espreita do aguilhão. das leis da natureza, do que há de feérico e Olá, chamariz do penacho rosa, misterioso no universo. Há também uma aproximação da religiosidade, como no poema: Nó cerrando-se com o peso do iminente. E você, diamante ébrio, mito e natureza do pedernal. DUELO À HORA EM QUE CANTA O GALO PRIMEIRO GALO Ambos os poetas argentinos convocam-nos a entrar em contato com poesias de alta qualidaO desejo fez sua obra, mas excedendo-se de, abrindo-nos um universo de possibilidades. Promoveu a guerra santa da negação. Esse contato leva-nos a alargar nossas fronteiEstopa na boca, a alma sobre pregos, ras culturais e fugir dos padrões impostos por uma dominação mercantilista, a mais das vezes Tudo perdido antes da estrela matutina. de gosto duvidoso. E a matéria, um bem menor, híbrido, Precipitando-se na região das mães mudas. SEGUNDO GALO A aurora vem e venderão seus olhos, a empurrões Tropeçando até as largas mesas de pescados,
Elis annes Professor, escritor e servidor público. Autor de mais de uma dezena de livros. Ga- nhador de mais de 140 prêmios literários. Seu romance “Suposta biograa do poeta da morte” ganhou os prêmios Hugo de Carvalho Ramos (2008), Prêmio Jabuti de 2011 (nalista) e Prêmio Il Convívio, na Itália, 2011 (1º lugar). Contato:
[email protected]
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tei Lieái
o GraNdE SErtÃo dE rIoBaLdo Alessa Bertazzo
aless Be Formada em Letras e pós-graduada em Teoria Literária pela Uniandrade – PR, atua como professora particular e, poeta nas horas vagas, participando de diversos concursos literários pelo Brasil. Tem participações em algumas antolo- gias, frutos destes concursos, alguns e-books publicados na Internet, além do blog de Poesias: http://transversu.blogspost.com e página no Recanto das Letras (http:// www.recantodasletras.com.br/autores/alebertazzo).
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Discorrer sobre Guimarães Rosa ou Grande Sertão: Veredas, ou ainda sobre qualquer outra de suas obras é simplesmente “chover no molhado”. Praticamente tudo o que se podia dizer a respeito da genialidade do autor já foi dito pela grande maioria dos críticos literários brasileiros e até mesmo internacionais. Entretanto, as várias leituras que suas obras permitem parece não se esgotarem nunca. A cada releitura, descobre-se uma nova faceta escondida dentro de suas obras.Grande Sertão, talvez seja a obra que melhor traduza essa constatação. Ainda hoje vários pesquisadores e acadêmicos em trabalhos de conclusão de curso se debruçam sobre ela sempre em busca de novas veredazinhas nas grandes veredas da obra rosiana. A saga de Riobaldo deixa de ser uma simples “aventura” no sertão mineiro para tornar-se alvo de reexões sérias e universais acerca da existência humana e dois dos seus maiores conitos: o bem e o mal. Torna-se objeto de especulações losócas, místicas, religiosas, metafísicas, psicológicas, etc. É, portanto, motivo de inquietação e perturbação não só para o jagunço letrado como também para todo aquele que se dispõe a ajudá-lo a caminhar pelas veredas do SER TÃO junto ao seu ouvinte misterioso, a quem nunca é dada a chance da réplica durante sua narrati va. Ainda chovendo no molhado, trata-se, obviamente de uma obra singular, que a princípio incomoda pela peculiaridade com que Guimarães Rosa explora a linguagem oral do sertanejo. É o tipo de obra que o leitor deve estar disposto a enfrentar, a percorrer com Riobaldo, acompanhando atentamente seu
relato um tanto quanto “desorganizado”, segundo ele. Mas, uma vez vencida a barreira da linguagem, o sertão se revela um lugar onde, para Riobaldo, “tudo é e não é”, onde “viver é muito perigoso”. Aliás, já nas primeiras páginas, Riobaldo previne o leitor de que “o sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias” e que “Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal”... Por aí se comprova sua tese sobre o perigo que é o viver. E que o diabo está “na rua no meio do redemunho”. A partir dessas inquietações, Riobaldo vai construindo sua narrativa e, à medida que o vai fazendo, vai também lançando outras dúvidas relacionadas a ela a m de compreender sua trajetória de vida como jagunço no sertão e o que a teria motivado, já que no momento do relato encontra-se, como ele mesmo diz, “de range rede”, inventado no gosto de “especular ideia”. Além disso, pode-se dizer que, entre outros motivos, o que o leva a refazer suas andanças no sertão mineiro através da memória é também o relacionamento confuso e trágico desenvolvido com o companheiro de ofício Reinaldo-Diadorim, a quem conhece na beira do São Francisco e que mais tarde se revela Deodorina - lha de Joca Ramiro (o chefe do bando a que Riobaldo pertenceu) sendo esta a vereda inicial de suas reexões existenciais, pois segundo ele, tudo começa e termina em Diadorim. É, portanto, um livro que não se deve deixar de ler, principalmente para aqueles leitores que gostam de se sentir desaados.
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Cônic
Ep descil João Paulo Hergesel
Os britânicos tomavam seu pontual e tradicionalíssimo chá matinal; os portugueses assistiam ao programa de culinária exibido na televisão; os taiwaneses comemoravam o dia da juventude; os brasileiros festejavam o aniversário de duas metrópoles, Curitiba e Salvador; os sumérios homenageavam Ishtar, deusa mitológica. Era 29 de março e os russos andavam de trem. Um vagão superlotado, gente de Moscou, cada qual com seu objetivo trilhado. Uma mulher grávida com consulta marcada no obstetra; um estudante adolescente rumo à aula de ciências que
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lhe aguardava; um poeta amador que só queria divulgar seus versos metricados e fazer uma autopromoção; uma senhora de cabelos grisalhos que falava sozinha, em busca de alguém que ouvisse suas loucuras. Algumas vidas entre muitas outras. O rapaz de quinze anos estava cansado de sua vida. Sabia que os dias seguintes seriam iguais aos dias passados. Sentiase entediado de uma semana que apenas começava. Para se distrair da rotina, fazia algo também rotineiro: escutava música moderna em seu celular moderno. O alto-falante ligado, o suposto desejo de
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compartilhar o lixo musical americano dos trinta, mas não conseguia assumir o com os demais passageiros. fardo de mãe solteira. A hipótese de um aborto já lhe perturbava muito a mente. O ritmo acelerado de uma canção para corações acelerados — All the single Em meio a uma conssão nonsense, a um ladies, now put your hands up — se mis- exemplo de literatura marginal e a uma turava com as palavras proclamadas pelo melodia de black music, não aguentou o estresse sonoro e desembestou a gritar. frustrado escritor de meia-idade. O grito foi um pedido de silêncio O tido poeta estava cansado de sua bem aceito: o metrô parou, as pessoas vida. Todos os dias, pegava sempre o também. No entanto, não demorou a mesmo metrô, recitando sempre os que uma nova perturbação ocorresse. A mesmos versos, sempre para as mesmas garota loura sentada no fundo cou em pessoas. A mesmice era porque consipé e revelou o mecanismo que escondia derava aquela tentativa de trova a mais sob o casaco. Assim que a bomba fosse bem feita por ele. acionada, todos estariam em uma roleta A rima rara de um poema hendecassí- russa, sem saber quais sobreviveriam e labo — Não preciso de um caldeirão de quais dariam adeus à vida da que estaágua quente / Basta-me uma panelinha vam cansados. de água morna / Não quero cozer um Um chá amargo difícil de ser ingerido, ovo de avestruz / Só cozinharei um ovo um erro de gravação que não pôde ser de codorna —, acompanhada pela trilha sonora da Beyoncé, atrapalhava a história evitado, juventudes corrompidas, aniversários interrompidos. Uma situação que contada pela pobre anciã. nem deuses foram capazes de impedir. A idosa vista como louca estava Da explosão, saíram os corpos. O gacansada de sua vida. Haviam morrido os pais, os irmãos, o marido, o lho. Não ti- roto, com as mãos mutiladas, não agranha mais família, não tinha amigos e, as- deceu por poder faltar às aulas daquela sim, acabava não tendo nem a si mesma. quinzena. O poeta, sem a pele do abdoQueria desabafar os tropeços que levara, me, não cou feliz por viver uma grande emoção que pudesse ser transcrita para o mas tropeçava nas próprias palavras e papel. A velha, cuja perna direita estava não era entendida por ninguém. ensanguentada, não estava satisfeita por O relato sem sentido — Eu tinha um ter uma nova história para contar com gato que não era meu e tinha um peixe detalhes. que o gato comeu— juntamente da poSem mais aborrecimentos, dúvidas esia contemporânea e da balada (badaou queixas, a moça grávida, cruelmente lada?), irritava a grávida que só queria decepada, representava, no chão do meum minuto de sossego antes de ter que trô, duas vidas extintas, duas frases que se despir e se submeter a um ultrassom receberam o impiedoso ponto nal — transvaginal. sendo que uma ainda nem havia aberto A futura mamãe estava cansada de as aspas. sua vida. Já era crescida, a idade na casa Jã Pl Hegesel Um jovem escritor brasileiro de 19 anos. Reside na cidade de Alumínio, onde é colunista de dois jornais locais. É estudante de Letras na Universidade de Sorocaba e se dedica principalmente às literaturas infantil e juvenil. Autor de um livro de contos e com participações em diversas anto- logias, coleciona dezenas de prêmios literários, nacionais e internacionais.
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Volmar Camargo Junior
em boa hora vens e me tomas em tuas patas outra hora eras cão agora és uma gratuidade devota por ora és dono da calçada [e de minhas botas mas me incomoda estares a muito da altura dos olhos e sei o quanto queres isso que cheira quente e suculento [também eu quero, cãozinho [tenho tanta fome quanto tu tens a mim onde andei desconheciam-me aonde vou idem percorri esses espaços para ir para ser para quê? se meus medos minhas manias ah, sim, os apelos estes eu tenho aqueles não mais
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não quero compartilhar mais nada nem posso nada possuo de meu para ser também de outrem nenhum vício ou valor só meu nunca mais talvez talvez só o que eu tenha sejam esses pés com que brincas [isso sim [isso eu posso dividir contigo
contudo ainda preocupa-me a distância que estás dos narizes [e denitivamente do lugar por onde anda a cabeça dos homens ali, logo adiante, nietzsche de allstars discute com platão de camiseta do manowar lá, um tanto atrás, uma criança pranteia o papai que foi, ou por um doce, ou por que lhe dói, ou porque [há pouco melhor a fazer que chorar aqui eu com vontade de chorar igualmente, cachorro
contigo nos pés rindo risos de cão comigo noutro tempo rindo de ti sozinho na la (acho que sou o quadragésimo segundo) lá vai o banco do brasil para cima e para os lados [se ele caísse esmagaria-nos a todos [eu [o bebê [os lósofos [as moças que confabulam [a senhora no at apalpando os peitos [a senhora à porta do restaurante que nos chama “vamos chegar para o almoço” [e a ti, cão nem eu estaria olhando nenhuma das caras na la veria ninguém veria nada nada nada faria diferença nunca mais se ouviria falar de mim ou de ti ou dessa gente toda com os dedos pintados de preto não, não foi dessa vez que o banco desabou
quem quase caiu foi um senhor de guarda-chuva pisoteando sem ver por cima de ti por quê? porque estás longe demais de para onde ele olha e a carne morta em bifes no metal quente revolve as entranhas do velho assim como revolve as minhas como revolve as tuas, cão por isso o homem te pisa por isso quase cai como cairia o banco do brasil por isso quase morreste esmagado e tiveste de sair chorando teu choro de dor de cão porque és cão e ele é homem e a carne nos move a todos pelas tripas e a la andou é uma e meia lá vamos nós
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#18. Rafael Zen
mãe, se é de deus que sejamos tristes, esse será nosso maior dilema. se a vida for maior que nossa sala, e a felicidade maior que nosso pinheiro de natal, se a morte for mais importante que nossa própria morte, ou que nosso humor nas quartas, quero saber do princípio, de qual estrela deus foi feito, do que ele é, e muito mais que isso: se um dia vou acordar na metade de uma linha incompleta, se vou acordar seu lho lho DELE procurando algas no chão do céu.
rfel zen Poeta, contista e artista gráco, Rafael Zen mora em Brusque, Santa Catarina. Trabalha como publicitário e organizador de projetos educacionais e artísticos. 66
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rIto Anna Apolinário
Mordo a maçã pura da Musa Flerto com o olhar fatal da Medusa Depois me deito no leito mais lírico E me embriago de Innito.
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ann aplinái Natural de João Pessoa, Paraíba, poetisa e graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba. Participou de várias antologias nacionais. Foi premiada com o 4° Lugar no VI Festival de Poesia Encenada do Sesc Paraíba em 2010 com o poema “Dédalo”, no mesmo ano publicou seu primeiro livro, “Solfejo de Eros” pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores (Rio de Janeiro - RJ). Prepara seu segundo livro de poemas com título provisório SAPHIRA.
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olhs e isânci Daniel Moreira
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Enquanto a saudade Arrumar um jeito De me trazer teu rosto Teu cheiro e teu gosto Estarão comigo ao amanhecer As fotos não sabem dos fatos E sorriem por serem simulacros De uma realidade Que não canso de reinventar Enquanto a ausência Encher meus olhos de distância Teu sorriso de extrema relevância Tomará várias formas Até a lua crescente Finalmente nos encontrar
dniel mei é r r a G l u a R : o t o F
Natural de Caçapava do Sul/RS, reside em Pelotas/RS desde 1996. Em 2009 publicou seu primeiro livro de poesias chamado “Poemas Urbanos”. Foi coordenador por onze edições do Projeto Sarau Poético Musical da Bibliotheca Pública Pelotense. Faz parte do núcleo Poesia no Bar, projeto que distribui poemas de autores locais e regionais em marca-textos pelos bares de Pelotas. Mantém o blog poemasurbanos.blogspot.com onde posta com frequência seus escritos mais recentes.
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Sg Luiza Oliveira
Às vezes, sinto falta do sagrado, de sua textura; cânticos religiosos, missa dominical... De coros cantantes, Panis Angelicus, meninas de branco, com laços de ta pregados em suas cabeças.. E eu, fervorosa, com os olhos infantis, pedintes, me dirigindo aos anjos, santos, Deus!
Saudades dos pedaços da vida, como carnes penduradas em matadouros. E eu, perdida no inferno sem telhado, como multidões rastejantes em seus torpores vazios despejando seus juízos em taças furadas deixando escorrer o sangue pisado em palavras em vão...
Reverenciando cada lágrima, advinda do fervor,
Crendices populares, frestas escondidas almas escuras falsas profecias...
hoje, me afasto do dogmatismo fervoroso que se diluiu e fez desaparecer antigos clamores...
Desanuvio mentes, expulso lágrimas endurecidas, e caio de joelhos, em pé...
É o novo se rasgando, é o batismo se depurando, é Nossa Senhora chorando...
Volto para a relva endurecida do concreto e vejo carros, com seus motores barulhentos Volto para mim, em prantos...
Lágrimas perdidas nos buracos da fé... The end
Li Silv olivei Advogada, atriz e socióloga, Luiza Silva Oliveira inicia um novo caminho: o da escrita. Seu livro “Afetos transgressores”, lançado em novembro deste ano, foi escrito após a perda de seu irmão Arnaldo Silva Oliveira, a quem é o livro é dedicado, in memorian. Dois poemas desse livro já se tornaram música, e outros estão em processo. Além disso, já fazem parte de importantes saraus paulistanos, entre eles, o Sarau dos Inquietos. Três de seus contos foram selecionados entre mais de mil e quinhentos, e por isso, fará parte da coletânea organizada pela Editora Guemanisse, com publicação prevista para janeiro de 2012. 70
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SENILIdadE Valmir Luis Saldanha
Passeio com meu velho cão. Mantemos entre nós uma aceitação pacíca, ele me aceita como seu guia e eu o aceito como meu. Um problema na pata o faz tropeçar três vezes. (Nos olhos dele vejo os meus e os contrastes) A não ser que me suceda um acidente, ou meu cão seja alvo de um milagre, eu o verei partir dessa para uma melhor, como é costume se dizer. Aos poucos ele está denhando, mas isso não o impede de parar algumas vezes a espalhar jatos de uma urina já rala demarcando todo um território, erguendo, trêmulo, a espada contra os piratas.
Continuamos nosso passeio, mais longo que o habitual, os dois tentando mostrar para o tempo que nada havia mudado. Vejo-o resfolegar, me compadeço, depois, sinto que lançamos um olhar seco para adiante. Eu o incito a continuar e ele me olha, penso, tentando fazer o mesmo comigo. Ele pede para que eu o guie (não pode mais com as próprias pernas) e eu o faço, mas cada passo traz, sempre, a mesma pergunta: e quem nos guia, a ambos?
Vli Lis Slnh Nasceu na cidade de Palmital - SP em 1987, mas viveu a infância toda em Itatinga. Ingres sou no curso de Letras na UNESP - Araraquara, em 2006. Hoje leciona Literatura nos colégios COC e Objetivo. Valmir já participou de diversos concursos literários, além de participação em antologias e publicação de seu conto MISTÉRIOS DO INDIZÍVEL pela revista A MARgem, da Universidade Federal de Uberlândia.
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Nº1 Douglas Batalha
De tanta água, cou Vitória. Nada de peixe, muito mais or. O pai dizia: - Sai da água, menina! Ela batia os pés e respondia: - Estou aprendendo a existir! À noite, em outro mundo, Tarsila sonhava em nadar. Mas não tinha tempo para a vida. Quando ia para cama, imaginava o mundo no ritmo da sua braçada.
Toda ssura de árvore é quebrar o cimento, a calçada, a passagem. Seguia a casca a engrossar, para proteger dos insultos. Jogada na água sem muita esperança, a minhoca contorce de metal por dentro. Da terra ao azul, torce: - Quero viver! Vem a boca, com instinto de fome, ferrar-se a si própria. Pobre animal, vamos todos morrer.
Na rua, se se importasse o Jacarandá... Para seiva: bruta e na. Fim.
Todo sonho é vontade de memória.
dgls Blh Estudante do último ano de losoa (UNIMEP/Piracicaba) é leitor entusiasmado da literatura brasileira, em especial poesia. Professor temporário da rede pública, estuda para o vestibular de letras, desencantado com o exagerado otimismo dos lósofos niilistas. Desde 2010 escreve em verso e participa de saraus e concursos de poesia (sem muito sucesso). A terceira pessoa lhe cai muito bem, apesar dos recentes fracassos vividos. Contato:
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SAMIZDAT fevereiro de 2012
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Pesi
missã (para João do Corujão da Poesia)
Mariana Valle
Todo dia essa página me olha com cara de nada. E começo a escrever besteiras, alucinada.
E pra quem não sente o mesmo, nem adianta explicar. Escreviver o poema me é como inspirar o ar.
Não, mentira. Vira e mexe e escrevo coisas que prestam. Com calma. Quando as palavras, num ai, me emprestam suas almas.
Inspirada, inspirando, por vezes pirando com essa mistura. É vício e ao mesmo tempo cura.
Nessas horas, a inspiração é genuína e pareço uma menina deslumbrada com as descobertas. Porque a poesia me desperta pra vida. É ela que cura as feridas e me mostra o caminho, compreende? Sem poesia, minha vida não rende.
Depois que a poesia se impôs em minha vida, virei prisioneira, fanática, el, daquelas bem lunáticas, sabe? E isso não é problema: é poema. Não é inferno: é céu. Os poetas moram na lua mesmo. / 9 7 8 9 5 3 7 6 6 3 / e f i l t e e r t s e l i b o m / s o t o h p / m o c . r k c i . w w w / / : p t t h
Agora, não ando mais a esmo. Tenho destino certo: perder-me na vida. Para depois me achar nas palavras e dizer: missão cumprida.
min Vlle Poeta desde os 12 anos, Mariana Valle vive como publicitária, é jornalista, roteirista e investe cada vez mais na literatura. Seus assuntos? A vida, seus encontros e desencontros, sempre de um ponto de vista muito íntimo. Seu primeiro livro, “SORRIA, VOCÊ ESTÁ NA BARRA e outras histórias” (Editora Multifoco), foi lançado em dezembro de 2008 e seu segundo livro está em fase de revisão.
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