QUATRO OLHARES FUNDADORES
PISTAS
PARA DESVENDAR DESVENDAR A SOCIOLOGIA CLÁSSICA DE
MARX, DURKHEIM, WEBER E SIMMEL
Copyright © Editora CirKula LTDA, 2017. 1° edição - 2017 Revisão do Original e Normatização: Mauro Meirelles Edição e Diagramação: Mauro Meirelles Projeto Gráfico: CirKula Impressão: Copiart Tiragem: 300 exemplares para distribuição distri buição gratuita e 200 exemplares para distribuição comercial.
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QUATRO OLHARES FUNDADORES
PISTAS
PARA DESVENDAR DESVENDAR A SOCIOLOGIA CLÁSSICA DE
MARX, DURKHEIM, WEBER E SIMMEL
DANIEL GUSTAVO MOCELIN
2017
CONSELHO EDITORIAL : César Alessandro Sagrillo Figueiredo,
José Rogério Lopes, Luciana Hoppe, Mauro Meirelles CONSELHO CIENTÍFICO: Alejandro Frigerio (Argentina) / André
Corten (Canadá) / André Luiz da Silva (Brasil) / Antonio David Cattani (Brasil) / Arnaud Sales (Canadá) / Cíntia Inês Boll (Brasil) / Daniel G. Mocelin (Brasil) / Dominique Maingueneau (França) / Estela Maris Giordani (Brasil) / Hilario Wynarczyk (Argentina) / José Rogério Lopes (Brasil) / Ileizi Luciana Fiorelli Silva (Brasil) / Leandro Raizer (Brasil) / Luís Fernando Santos Corrêa da Silva (Brasil) / Lygia Costa (Brasil) / Maria Regina Momesso (Brasil) / Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) / Mauro Meirelles (Brasil) / Simone L. Sperhacke (Brasil) / Silvio Roberto Taffarel (Brasil) / Stefania Capone (França) / Thiago Ingrassia Pereira / Wrana Panizzi (Brasil) / Zilá Bernd (Brasil)
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APRESENTAÇÃO
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INTRODUÇÃO
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CAPÍTULO 1 PERSPECTIVA: BIOGRAFIA E CONTEXTO HISTÓRICO
O I R Á 81 M U
S
DE PRODUÇÃO INTELECTUAL
CAPÍTULO 2 ABORDAGEM: CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA, OBJETO E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
133 CAPÍTULO 3 NARRATIVA: CONCEPÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL SOBRE A VIDA SOCIAL
177 CONSIDERAÇÕES FINAIS 179 DICAS DE COMO UTILIZAR OS CLÁSSICOS EM SALA DE AULA
187 REFERÊNCIAS 197 SOBRE O AUTOR
Pois é evidente, Socrátes. Tu mesmo deve ter conhecimento de que os mais poderosos e res- peitados nas cidades têm vergonha de escrever discursos e deixar à posteridade composições da sua mão, com temor de que a opinião dos vindouros venha a etiquetá-los de Sofistas.
In: PLATÃO. Fedro. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 77
APRESENTAÇÃO
Uma das grandes questões em aberto na sociologia aplicada na escola diz respeito ao uso dos clássicos e a forma sobre como trabalhá-los com os jovens do ensino médio. Essa não é uma questão de fácil resolução, tendo em vista que a teoria sociológica pode se tornar demasiado densa para aplicação prática junto aos estudantes em sala de aula. O professor de sociologia na escola precisa considerar em seu planejamento que a maior parte dos seus alunos não será e tão pouco pretende ser sociólogo. Levar muita teoria para a aula pode ser uma má receita, que pode afastar os estudantes dessa disciplina. Por outro lado, o professor de sociologia na escola, ele sim, precisa ser sociólogo, e ter o domínio elementar das teorias clássicas para praticar sua função pedagógica de maneira qualificada. É importante que o professor da disciplina de sociologia conheça os fundamentos mais abstratos que estão na base da sociologia, entendendo que há um grande leque de perspectivas interpretativas que tornam as ciências sociais uma área de conhecimento das mais ricas e estimulantes. 11
O livro QUATRO OLHARES FUNDADORES dedica-se a explorar aspectos pertinentes sobre as concepções de análise da realidade social elaboradas por quatro destacados clássicos da sociologia, Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber e Georg Simmel. A proposta do livro tem caráter introdutório, buscando indicar algumas pistas para explorar a obra desses quatro autores que estão entre os principais fundadores da sociologia e estimular a reflexão sobre suas elaborações teóricas e metodológicas e sobre a narrativa que sugerem para interpretar a realidade social moderna. O livro tem o mérito de permitir aos leitores um amplo quadro descritivo e comparativo, que, partindo de três eixos temáticos denominados perspectiva, abordagem e narrativa, brinda o leitor com importantes aspectos da biografia, do contexto histórico, das concepções científicas e das elaborações teóricas de cada um dos clássicos supra referidos. Desta forma, o presente livro destina-se à formação inicial e continuada de professores de Sociologia no ensino médio, e compõe parte do acervo bibliográfico produto do Curso de Especialização “O Ensino da Sociologia para professores do ensino médio: Contribuindo para a formação continuada dos professores de Sociologia do ensino médio do Rio Grande do Sul”, oferecido pelo Ins12
tituto de Filosofia e ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entre dezembro de 2013 e março de 2016. Esse curso de especialização contou com o apoio financeiro do Ministério da Educação (MEC), do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE) e da Secretaria Nacional da Educação Básica (SEB), que através da ação 20RJ, vinculada à Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (RENAFOR), permitiu o repasse de recursos financeiros destinados a operacionalização deste empreendimento. Não menos importante foi o apoio incondicional, operacional e logístico, da equipe de funcionários e representantes legais do Centro de Formação Continuada de Professores (FORPROF/UFRGS), assim como o apoio institucional do Departamento de Sociologia e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH/ UFRGS), que acreditaram na proposta e possibilitaram a concretização deste projeto. Leandro Raizer Mauro Meirelles 11 de Março de 2017. 13
INTRODUÇÃO
Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber e Georg Simmel foram intelectuais que se destacaram pela eminente contribuição que tiveram para a consolidação da sociologia como campo de conhecimento. Esses pensadores conceberam distintas concepções para analisar as causas, as consequências e o sentido das transformações econômicas, políticas e culturais, que vinham se estruturando no mundo ocidental desde o Século XVI e que afetaram profundamente a vida humana nas sociedades modernas, especialmente na passagem do Século XIX para o Século XX. Retornar aos clássicos é um exercício inesgotável de imaginação sociológica, pois a forma como tais autores interpretaram a realidade social e identificaram nuances da vida em sociedade é fonte primorosa de insights para pensarmos o mundo atual. Giddens (1998, p. 15) afirma que “os clássicos são os fundadores que ainda falam para nós com uma voz que é considerada relevante”. Tais autores empreenderam estudos sobre os efeitos sociais de eventos diversos e paradoxais, tais como a con15
solidação dos Estados-Nação; o declínio das monarquias e a ascensão dos regimes republicanos; a expansão do capitalismo e da propriedade privada; a rápida industrialização; a urbanização crescente; a proliferação do trabalho assalariado e de grupos profissionais, mas também do pauperismo; a luta pela democracia e pelo sufrágio universal; as novas formas de sociabilidade e de dominação; o aprofundamento da exploração dos operários fabris; a acelerada ampliação dos direitos e das liberdades individuais. Nesse contexto social emergente, houve a valorização do pensamento racional e científico, em contraposição às visões de mundo baseadas na religião, na tradição e na filosofia, bem como surgiram novas vertentes intelectuais, como os ideais revolucionários, o iluminismo e o liberalismo. Tais condições históricas favoreceram o surgimento e o desenvolvimento da sociologia como ciência da vida social. Visando favorecer o entendimento das concepções apresentadas por Marx, Durkheim, Weber e Simmel, foi proposta nesse livro uma sistematização a partir de três eixos temáticos: perspectiva , abordagem e narrativa . Os autores foram trabalhados nesses três eixos, a fim de evidenciar suas diferenças de pensamento, favorecendo, assim, a comparação e a melhor compreensão dos caminhos analíticos e argumentativos tomados por cada um deles. 16
O eixo sobre a perspectiva analisa a biografia e o contexto histórico específico de observação e teorização de cada um dos autores, destacando eventos que vivenciaram e que privilegiaram em suas observações, bem como o direcionamento que deram às suas argumentações teóricas. Destaca-se que não foi em função de uma genialidade intelectual nata que Marx, Durkheim, Weber e Simmel foram conduzidos à posição de clássicos da sociologia. A ciência social proposta por esses autores, suas propostas metodológicas e as elaborações teóricas e conceituais que buscaram desenvolver estão fundamentadas em perspectivas singulares sobre a modernidade ascendente. Essas perspectivas refletem diretamente as inclinações filosóficas, as influências e os debates intelectuais que travaram, bem como a conjuntura social em que viveram. O eixo sobre a abordagem esclarece as diferentes concepções científicas adotadas por cada autor, enfatizando as especificidades analíticas e os procedimentos metodológicos propostos. A fim de evidenciar as preocupações que levantaram e de analisar os fenômenos sociais que privilegiaram em suas perspectivas , Marx, Durkheim, Weber e Simmel desenvolveram abordagens sistemáticas para a análise e compreensão da realidade social. 17
O eixo sobre a narrativa destaca aspectos fundamentais das elaborações teóricas apresentadas pelos autores, fazendo referência aos pressupostos adotados em suas obras, com destaque para alguns conceitos centrais presentes em cada uma das teorias, o sentido explicativo dado às transformações que vivenciaram e as concepções essencialmente complementares sobre a estratificação, a mudança social e o sentido explicativo dado às transformações vivenciadas em sua época, tempo e espaço. Deve-se considerar inicialmente que Marx, Durkheim, Weber e Simmel analisaram eventos sociais decorrentes de um mesmo movimento histórico, o advento da modernidade, mas realizaram diferentes leituras sobre as características, o sentido e o destino das sociedades modernas. Em suas obras, são evidentes os anseios desses pensadores em definir e compreender as mudanças que marcaram a constituição da modernidade, a fim de desvendar a origem, os possíveis desdobramentos e as principais características da sociedade emergente. Conforme explica Giddens (1991, p. 16-17), Marx e Durkheim julgavam a modernidade como uma era conturbada, mas ambos vislumbraram potencialidades no seu advento, que superavam as características mais negativas. Marx via a luta de classes como fonte de dissidências fun18
damentais da ordem capitalista, mas acreditava que um sistema social mais humano poderia emergir a partir de uma realidade social contraditória. Durkheim acreditava que a expansão da nova ordem industrial poderia estabelecer uma vida social gratificante, por meio da formação de um sentimento de adesão coletiva, que combinava divisão social do trabalho com o individualismo moral. Max Weber foi mais cético e encarou a modernidade como uma realidade paradoxal, onde o progresso socioeconômico também desencadeava a racionalização da vida humana, criando amarras à autonomia individual. Entre esses fundadores da sociologia, Simmel foi um precursor da microssociologia, não se interessou diretamente pelos grandes movimentos e totalidades históricas. A sociologia simmeliana destaca-se pela análise dos fenômenos mais sutis e efêmeros expressos pelas formas de sociabilidade cotidianas e fundamenta-se em uma preocupação com as ambiguidades da vida social nas grandes aglomerações urbanas nos tempos modernos. Em sua concepção teórica, o autor enfatiza a individualidade como aspecto concreto da realidade social e define a intersubjetividade como objeto de investigação sociológica. Busca-se, neste texto, demonstrar que as concepções de cada um dos autores são antes complementares do 19
que contraditórias. Ao partirem de diferentes perspectivas sobre a emergência da sociedade moderna, tais autores propuseram abordagens distintas para a análise da realidade social e, consequentemente, desenvolveram teorias e conceitos que fundamentaram narrativas bastante originais sobre a vida social na era moderna. Deve-se destacar que a sistematização aqui apresentada não esgota o debate sobre o pensamento desses autores. Longe disso, o aprofundamento sobre suas concepções teóricas deve ser buscado em reflexões sobre os textos originais dos autores ou junto a diversos manuais elaborados por especialistas que se dedicam a comentar e estudar as obras de Marx, Durkheim, Weber e Simmel.
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CAPÍTULO 1
PERSPECTIVA: BIOGRAFIA E CONTEXTO HISTÓRICO DE PRODUÇÃO INTELECTUAL
A perspectiva de Karl Marx Karl Marx foi um dos mais reconhecidos pensadores modernos que se dedicaram ao estudo do capitali capitalismo smo,, tendo produzido forte influência intelectual e política durante todo o Século XX. Por meio de uma obra em que promoveu um diálogo entre a filosofia e a ciência econômica de sua época, construiu uma densa análise voltada à crítica das relações sociais e de produção que se desenvolviam no contexto da ordem capitalista emergente. Marx buscava demonstrar cientificamente que o capitalismo era um sistema socioeconômico transitório e que, por isso, rumava para sua própria superação, ao gerar em seu seio as condições sociais que o conduziriam a uma aniquilação intrínseca. Até hoje, a obra de Marx influencia muitos pensadores, especialmente na sociologia, fundamentando escolas de pensamento crítico, que adotam uma interpretação da realidade social que privilegia privile gia a noção de conflito, conflito, normalmente denominadas como marxistas ou neomarxistas. 21
Além de pensador, Marx foi um ativista político destacado em seu tempo, que adquiriu ainda mais notoriedade a partir do início do Século XX. Atribui-se a ele as bases ideológicas de revoluções comunistas reais que levaram à formação de potências econômicas como a antiga União Soviética e a China. Karl Heinrich Marx nasceu em Treves, Alemanha, em 5 de Maio de 1818, e faleceu em Londres, em 14 de Março de 1883. Durante a juventude de Marx, a Alemanha ainda não era uma nação unificada, diversos reinos, ducados e cidades livres formavam um império de territórios independentes, em geral dominados por ordens aristocráticas, que tinham em comum basicamente o idioma e tradições culturais. Em muitas dessas localidades, ainda predominavam relações socioeconômicas de tipo feudal. O poder político era permanentemente disputado pelos reinos mais desenvolvidos, a Áustria e a Prússia. A modernização da Alemanha Alemanha só viria a se desencadea desencadearr a partir de 1848, após a “Primavera dos povos”, e se consolidar com a Unificação do Estado Alemão, em 1871, após a guerra contra a França. Todavia, a cidade natal de Marx estava localizada na região da Renânia, onde já havia certo desenvolvimento comercial e manufatureiro e a emergência de uma camada social burguesa. Fica evidente, portanto, 22
que Marx desenvolveu sua obra de juventude, num contexto fecundo para a concepção crítica que viria a fundar. Não por acaso, sua concepção teórica transitava entre o plano intelectual e o político, uma vez que Marx sempre fez referência, em seus primeiros escritos, ao atraso econômico, à situação conservadora e à fragilidade política e institucional da Prússia e da Alemanha, em geral. Marx estudou Direito, Filosofia e História na Universidadee de Berlim, onde aderiu à corrente filosófica funversidad dada por Hegel, tendo participando de um círculo intelectual conhecido como “jovens hegelianos”, que adotava uma postura de renovação em relação às proposições daquele filósofo. Em 1841, Marx doutorou-se em Iena, defendendo uma tese sobre as diferenças entre as filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro. No ano seguinte, assumiu a chefia da Gazeta Rena- na , em Colônia, mas seus artigos radical-democratas não eram bem vistos pelas autoridades locais. Os manifestos intelectuais e políticos de Marx não tinham boa receptividade na época, desagradando o regime político de então, o que o levou a deixar a Alemanha, em 1843, quando se mudou para Paris. Na França, tomou contato com o Anaiss GermânicoGermânico-F France anceses ses , socialismo utópico e editou os Anai publicação periódica dos hegelianos de esquerda. Neste 23
mesmo ano, escreveu um ensaio sobre a questão judaica e um texto crítico sobre a filosofia do Direito de Hegel. Jurista, filósofo e historiador por formação, Marx destacou-se profissionalmente como redator e jornalista de periódicos reformistas e socialistas. Ainda que tenha almejado posições acadêmicas durante sua vida, Marx foi rejeitado nos círculos intelectuais mais tradicionais, onde jamais jama is cons conseguiu eguiu inse inserção rção,, e só enco encontro ntrouu maio maiorr reconhecimento por seu trabalho intelectual posteriormente, quando se radicou na Inglaterra. Já nos seus primeiros trabalhos intelectuais, Marx afasta-se do pensamento hegeliano por considerá-lo essencialmente idealista e se aproxima do materialismo de FeuerFeuerbach. Com esse movimento teórico, Marx começa a promover uma reviravolta conceitual, definindo que a realidade objetiva é que deve ser a fonte de entendimento do universo social e não mais a reflexão filosófica. Ou seja, Marx altera a filosofia dialética de Hegel, concebendo que não são as contradições entre ideias e culturas que transformam o mundo e sim as contradições entre fenômenos empíricos reais, notadamente, entre grupos opressores e oprimidos. Em 1844, Marx conheceu o filósofo e economista alemão Friedrich Engels, com quem trabalhou em muitas obras e que passou a ser seu mais importante import ante colaborador. colaborador. 24
A partir deste momento, Marx começa a tomar contato com a realidade Londrina em vista de seu exílio em Paris, após o fechamento da Gazeta Renana, e posterior mudança para Londres. Porém, o que chama mais a sua atenção é a formação de cidades industriais e a disseminação do trabalho assalariado. Tais eventos desviam o olhar de Marx da conjuntura alemã para a realidade inglesa, que julgou mais desenvolvida que a primeira, e, portanto, mais próxima de uma revolução social. Na obra de Marx, é evidente a observação e a teorização que promove sobre o apogeu do capitalismo fabril e liberal inglês, chegando a afirmar que aquela realidade seria o destino de todas as demais sociedades. Interessou-se especialmente por esse contexto histórico, tanto que suas obras promovem uma descrição densa sobre as relações de conflito existencial e político, existentes entre senhores industriais e trabalhadores assalariados. O projeto intelectual de Marx ganha força no momento em que passa a se interessar profundamente pela realidade industrial e pelas obras da teoria econômica, aspecto decisivo na simbiose teórico-conceitual que passa a desenvolver. Em 1844, Marx escreveu os Manuscritos econômico- -filosóficos , texto ensaísta e fragmentado, que contém a essência da maior parte das ideias importantes desenvolvidas pelo autor, posteriormente. Nesse ensaio, Marx dis25
cute a condição do operariado fabril e fundamenta o conceito de trabalho alienado , síntese teórica que associa um conceito da economia-política (trabalho assalariado) com um conceito da filosofia (alienação). Um fenômeno central observado era que, no capitalismo, os objetos produzidos pelos trabalhadores eram tratados da mesma maneira que o próprio trabalhador, ou seja, O trabalhador torna-se mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a valoriza- ção do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (MARX, 2004a, p. 111).
A perspectiva de Marx destaca fortemente a intensa produção de riqueza material e social promovida pela nova sociedade burguesa, onde considera haver um engrandecimento notável da humanidade. Porém, tal desenvolvimento é descrito por Marx como uma realidade geradora de contradição, expressa pelo enriquecimento de uma minoria em detrimento de uma maioria – que, mesmo produtora, torna-se cada vez mais empobrecida, quase desumanizada. 26
Chegamos, pois, ao resultado de que o homem (o operário) somente sente-se livremente ativo em suas funções animais; comer, beber e procriar, e, quando muito, em seu quarto, em sua intimidade etc., e que em suas funções de homem apenas sente-se animal. O bestial se converte em humano e o humano converte-se em bestial (MARX, 2004a, p. 114-115).
Marx mostrava-se fortemente consternado com a situação dos trabalhadores nas fábricas, mas também com o ambiente social urbano, onde cada vez mais se concentravam pessoas dispostas a trabalhar, mas que nem sempre encontravam trabalho. Essa situação formava um “exército industrial de reserva”, fenômeno que gerava a redução dos salários. Além disso, era evidente o avanço da pauperização nas cidades industriais, em que se observava o aumento da violência, do alcoolismo, da prostituição, das doenças e epidemias. Tais condições eram vistas por Marx como o lado sombrio do capitalismo. A argumentação de Marx passa, então, a direcionar-se para as dissidências da ordem capitalista e para as transformações socioeconômicas latentes às contradições dessa ordem emergente. Seu projeto intelectual passa a ser composto pela permanente exigência de evidenciar as relações conflituosas imanentes aos grupos sociais que participam do processo produtivo capitalista e a forma como se dão as rela27
ções de propriedade. A partir deste ponto, sua crítica à sociedade civil e à política burguesa, presente em seus primeiros trabalhos, foi deslocando-se, deixando de focar as contradições do ordenamento jurídico estatal (idealismo) para privilegiar as contradições do sistema econômico (materialismo). Em 1846, escreve, conjuntamente com Engels, outro texto ensaísta, A ideologia Alemã , em que rompe definitivamente com sua origem intelectual hegeliana, adotando uma concepção intelectual materialista. Ao contrário do que sucede na filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, dito de outro modo, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, nem do que são nas palavras, no pensamento, imaginação e representação dos outros para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se sim, dos homens em sua atividade real, e, a partir de seu processo na vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo vital. (...) Desse modo, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia (...) não têm história nem desenvolvimento, mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e relações materiais, transformam, a partir da sua realidade, também o seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência (MARX & ENGELS, 2004a, p. 51-52). 28
Em 1845, escreve um folheto em que apresenta onze teses críticas sobre o materialismo de Feuerbach, que passou a julgar ingênuo. Nesse ano, Marx foi expulso da França, a pedido do governo prussiano, em razão das incitações revolucionárias e socialistas que promovia, radicando-se em Bruxelas, na Bélgica, onde viveu até 1848, tendo sido novamente expulso. Em 1847, continua sua ruptura com uma visão idealista do mundo e produz a obra Miséria da Filosofia . Ainda nesse ano, viaja para Londres, onde participa do congresso da “Liga Comunista” e promete escrever um manifesto. Quando houve a revolução republicana de 1848, na França, Marx e Engels publicaram o Manifesto do Parti- do Comunista, livreto de cunho político, que conclamava por uma revolução operária e socialista. Contudo, nesse “manifesto”, também apresentou os fundamentos de sua teoria analítica, conhecida como materialismo histórico-dialético, em que define os conceitos de luta de classes e de consciência de classe. A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história da luta de classes. (...) Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante 29
oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta. (...) A moderna sociedade burguesa, surgida das ruínas da sociedade feudal, não eliminou os antagonismos de classe. Apenas estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das antigas (MARX & ENGELS, 2004b, p. 45-46).
No Manifesto , Marx também apresenta uma descrição sobre o processo de ascensão revolucionária da burguesia e da formação do sistema capitalista, fazendo uma alusão para a formação de um novo sistema social futuro, que poderia ser promovido a partir do próprio desenvolvimento do capitalismo. A sociedade burguesa joga a humanidade em uma nova era global, marcada por novas formas sociais de opressão, porém dando margem a novas condições revolucionárias.
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Devido ao rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de extinção, ela
obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar o que ela chama civilização (...). A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades (...), arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou semi-bárbaros aos países civilizados, subordinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente. (...) A burguesia, durante seu domínio de classe, apenas secular, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto. conjunto. A subjugação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo elétrico, a exploração de continentes inteiros, a canalização dos rios, populações inteiras brotando na terra como por encanto – que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social? (MARX & ENGELS, 2004b, p. 48-49).
Nesta altura, Marx entendia que o capitalismo simplificava os antagonismos de classe que até então tinham existido, ao gerar duas grandes classes diretamente opostas entre si: burguesia e proletariado. Na sociedade burguesa, a classe capitalista (proprietária dos meios de produção) e a classe trabalhadora (proprietária apenas de sua força de trabalho) mantêm-se em conflito endêmico 31
no que se refere ao usufruto dos resultados da produção. Uma contradição básica evidenciada pelo autor era a de que quanto mais o capitalismo progredia, mais evidentes ficavam as condições de sua superação. Marx delineia sua visão do capitalismo como uma sociedade onde a burguesia e o proletariado são classes sociais revolucionárias e antagônicas, uma vez que, enquanto a primeira instaura o capitalismo, a segunda começa a lutar pela destruição do novo regime no próprio instante em que se forma. Na nova formação social, o proletariado aparece desde o princípio como alienado do produto de seu trabalho ao produzir a mais-valia, que é apropriada pela burguesia. O proletariado passa então a lutar para modificar tal situação. A burguesia deixa de ser revolucionária quando passa a preocupar-se com a preservação e o aperfeiçoamento das instituições que garantem o status quo , por exemplo, definindo novas regulações de propriedade. (IANNI, 1980, p. 17) A partir de 1849, Marx fixa residência em Londres, onde produziu sua obra madura. A partir de então, aprofundou os estudos sobre a economia política e produziu esboços críticos sobre tal ciência, iniciando por um ensaio sobre os conceitos de trabalho, salário e capital. Nesse pelutas de clas- clas- ríodo, escreveu obras fundamentais, como As lutas 32
se na França , em 1850, O 18 Brumário de Luís Bonaparte ,
em 1852, os Grundrises , esboço de sua obra máxima, em 1857, e a Contribuição para a Crítica da Economia Política , entre 1857 e 1859. A imersão teórica que empreendeu, levou Marx a um denso trabalho de filosofia sócio-histórica e econômica, em que buscou historicizar os conceitos da economia política. Para Marx, definições da economia política como capital, propriedade, trabalho assalariado, mercadoria, produção, circulação e consumo não são apenas conceitos puramente abstratos abstr atos,, antes disso, expressam relações sociais reais, materiais. Ou seja, tais abstrações são acima de tudo “aparênc “aparências”, ias”, que escondem a “essência” do que realmente são. Entre 1851 e 1862, Marx escreveu artigos sobre economia internacional para o New York Tribune , jornal norte-americano de linha ativista e modernista, tendo supostamente tido influência sobre o desenvolvimento político dos Estados Unidos, uma vez que teria tido como leitores atores políticos importantes, entre esses, Abraham Lincoln. Em 1857, escreve o texto Salário, Preço e Mais-valia . Tais reflexões culminam, em 1867, na publicação do primeiro volume de O Capital , obra madura em que esboça sua análise sobre a formação e a lógica interna inter na do sistema capitalista, analisando o processo histórico de acumulação 33
primária do capital, a produção de mercadorias, a circulação do capital, as lutas dentro das fábricas, o mecanismo da mais valia. Nessa época Marx desenvolveu, também, teses sobre o eminente colapso do capitalismo. Em O Capital , Marx desenvolve sua concepção teórica sobre a intensificação da exploração do trabalho no capitalismo. Apresentando uma análise profunda dos mecanismos de exploração e xploração do trabalho, trabalho, faz uma descrição densa da anatomia do ambiente fabril, demonstrando o processo que combina ferramentas, máquinas e homens em um grande gr ande sistema que caracteriza como um autômato. autômato. A produção mecanizada encontra sua forma mais desenvolvida no sistema orgânico de máquinas-ferramenta combinadas que recebem todos os seus movimentos de um autômato central e que lhes são transmitidos por meio do mecanismo de transmissão. Surge, então, então, em lugar da máquina isolada, um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho tr abalho (MARX, 2004b, p. p. 438).
O trabalho intelectual de Marx não o afastou do ativismo político, pelo contrário. Em 1864, Marx foi um dos 34
fundadores da Associação Internacional dos Trabalhadores, depois chamada Primeira Internacional Socialista, onde encontrou oposição dos anarquistas, liderados por Bakunin. Em 1872, no Congresso de Haia, a associação foi dissolvida. Depois da derrota dos movimentos revolucionários socialistas na Europa, entre eles a “Comuna de Paris”, Marx voltou a dedicar-se aos estudos econômicos e históricos, preparando os outros dois volumes de O Capital , que seriam publicados apenas após sua morte, por Engels. Marx não mencionou em suas obras que pretendia contribuir com o desenvolvimento da sociologia. Ele foi alçado à posição de clássico da sociologia posteriormente, sobretudo, em função da elaboração de uma perspectiva crítica para a interpretação de uma formação socioeconômica historicamente específica, o capitalismo. Todavia, sua reivindicação sobre o caráter universal dessa realidade social é questionável. Conforme Giddens (2005), a maior fragilidade da concepção de Marx repousa em suas reflexões sobre a superação do capitalismo pelo socialismo, aspecto que ele acreditava ser o fundamento de sua originalidade. As contribuições mais permanentes da proposição de Marx, segundo Giddens (2005, p. 23) residem na sua aná- lise da ordem do capitalismo industrial, que ele incorretamente imaginou ter vida curta . De toda forma, a obra de Marx 35
é referência obrigatória na sociologia e suas ideias continuam a suscitar questões e a provocar inquietação em diversas áreas. A perspectiva de Émile Durkheim Diferentemente de Marx, Émile Durkheim dedicou-se integralmente a delimitação de um campo de estudos próprio à sociologia. Foi um intelectual que empreendeu durante toda a sua vida um projeto para transformar a sociologia em uma disciplina acadêmica. Defendia a ideia de que a sociologia deveria ter um objeto científico próprio, que permitiria distingui-la das demais ciências, tais como a economia, a filosofia e a psicologia. Apropria-se de recursos epistemológicos das ciências naturais, em especial a biologia. Concebia as sociedades como sistemas integrados, tendo como preocupação central compreender como e porque as sociedades mantinham-se coesas. Durkheim partiu da ideia de que, em todas as formações sociais, existem “energias” que conduzem os indivíduos a uma inevitável aproximação. Reconhecido como fundador da “Escola Sociológica Francesa”, os trabalhos dele foram fonte de inspiração tanto para seus contemporâneos como para gerações posteriores a ele, seja dan36
do continuidade a seu trabalho ou questionando-o. Até hoje, a obra de Durkheim influencia muitos sociólogos, fundamentando escolas de pensamento que adotam uma interpretação da realidade social que privilegia a noção de integração, entre as quais se destacam o estrutural-funcionalismo, o interacionismo e a teoria dos sistemas. David Émile Durkheim nasceu em Epinal, no noroeste da França, em 15 de abril de 1858. Neste país, viveu por toda a sua vida e desenvolveu sua carreira. Veio a falecer em 15 de dezembro de 1917, em Paris, supostamente pelo abatimento que teria sofrido após a morte de seu filho durante a primeira Guerra Mundial. De origem judaica, Durkheim optou por não seguir o caminho do rabinato, como era costume na sua família. Mais tarde, declarou-se agnóstico. Durkheim formou-se em Filosofia na Escola Normal Superior, importante centro de formação da elite intelectual francesa, porém sua obra inteira foi dedicada à Sociologia. A juventude de Durkheim foi marcada por um conjunto de acontecimentos que marcaram a França e a Europa de então, e que tiveram repercussão sobre o direcionamento teórico que deu a seus trabalhos. As nações europeias passavam por transições políticas importantes e as sociedades mostravam-se ainda pouco integradas, sobretudo devido ao enfraquecimento de instituições tradicionais como a re37
ligião, que até certo momento, garantia a coesão social. Ainda na adolescência, Durkheim presenciou uma humilhante derrota da França para a Alemanha, em uma guerra que encerrou em 1871. Nesse momento, a sociedade francesa via-se arrasada pela capitulação diante das tropas alemãs e ante o endividamento provocado pela guerra. Naquele mesmo ano, a situação social da França agravou-se ainda mais quando houve uma sangrenta repressão à insurreição desencadeada pelos trabalhadores, movimento social de cunho socialista, conhecido como “Comuna de Paris”. A desmoralização vivida na França levou grande parte da elite política e intelectual de então, a compartilhar ideais republicanos, laicos e universalistas. A formação da Terceira República Francesa, iniciada com a promulgação de uma nova constituição em 1875 e com a eleição do primeiro presidente, também trouxe mudanças legais. O sistema de ensino foi reformado, a educação básica foi tornada gratuita e obrigatória e o ensino religioso foi proibido, sendo substituído pela “instrução moral e cívica”, que tinha cunho republicano e patriótico. O acirramento de conflitos entre empregadores e trabalhadores também desencadeou a formação e a consolidação de sindicados, corporações e confederações trabalhistas, que estabeleceram maior equilíbrio entre capital e trabalho. 38
Diante da profunda crise social e econômica vivida até então, o novo projeto político e institucional observado na França foi recebido com entusiasmo e esperança no futuro. Inovações tecnológicas, como a eletricidade, a telegrafia, o motor à combustão, o automóvel, a aviação e o cinema, somaram-se a outras novidades, como o progresso econômico e o científico, os avanços na área da saúde e o desenvolvimento da democracia moderna e do princípio da cidadania. Havia uma sensação de que os ideais “civilizatórios”, promulgados durante a Revolução Francesa de 1789, finalmente pareciam se instaurar. Imerso nesse cenário social, Durkheim volta-se para o estudo das relações entre a personalidade individual e a solidariedade social, demonstrando uma clara intenção de “descobrir” novas fontes de solidariedade entre os membros das sociedades, que poderiam fortalecer a coesão dessas sociedades modernas. O autor promoveu uma nova forma de conceber a relação entre indivíduo e sociedade, rechaçando o individualismo egoísta e utilitarista, presente nos estudos da economia e da filosofia de Spencer, e reformulando a concepção de física social de Comte, julgando essa última como uma pregação doutrinária. Em 1885, Durkheim viaja para a Alemanha, onde passa alguns meses participando de cursos de ciências 39
históricas e humanas e toma contato com as obras de importantes filósofos sociais. No seu retorno, escreve manuscritos sobre o desenvolvimento das ciências sociais na Alemanha, que abrem caminho para iniciar sua carreira na Universidade de Bordeaux, em 1887. Lecionando Pedagogia e Ciência Social na Faculdade de Letras, permaneceu nesta Universidade até 1902, onde além de formar professores do ensino primário, promovia cursos de sociologia e desenvolveu a maior parte de sua obra. Em 1893, Durkheim publicou sua tese doutoral Da divisão do Trabalho Social , estudo em que buscou demonstrar como a crescente divisão do trabalho poderia impulsionar as condições de criação de um sentimento de pertencimento social entre os membros das sociedades modernas. Entendia que as relações profissionais emergentes não se reduzem a simples transações econômicas, como seria o uso da “força de trabalho” em troca de um salário. Durkheim afirmava que o crescimento econômico e a eficiência econômica, por si só, não eram suficientes para legitimar moralmente a sociedade moderna, pois,
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[...] Os serviços econômicos que ela [a divisão do trabalho] pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias
pessoas um sentimento de solidariedade. Como quer que esse resultado seja obtido, é ela que suscita essas sociedades de amigos, e ela as marca com seu cunho (DURKHEIM, 1999, p. 21).
Para Durkheim, a nova divisão do trabalho nas sociedades modernas tinha potencial para mobilizar a personalidade individual, com base num sentimento de inserção e de integração. O autor argumentava que a profissionalização poderia permitir o desenvolvimento pleno do indivíduo na sociedade moderna, desde que a divisão do trabalho ocorresse em especialidades que se apresentassem para os indivíduos com conteúdo e com sentido. Com a divisão moderna do trabalho, constituem-se relações em que os membros da sociedade moderna desenvolvem uma forma especial de solidariedade, que denominou “orgânica”. Nessa forma de solidariedade, passava a ocorrer um reconhecimento recíproco entre os indivíduos, que, com base nas suas respectivas atribuições, contribuíam para o “bem-estar” conjunto. A partir das posições sociais ocupadas, os indivíduos sentir-se-iam mutuamente interdependentes, uma vez que teriam papéis complementares. Tratava-se, assim, de pensar as hierarquias na estrutura social como uma estrutura de dependência simétrica entre grupos sociais. A distribuição entre as posições superiores 41
e inferiores ocorre em função da necessidade de complexificação da sociedade e as “melhores” posições passam a ser ocupadas com base no mérito, o qual, por sua vez, é definido pelas aptidões profissionais adquiridas. Nessa obra, Durkheim também apresenta o conceito de “anomia”, ao analisar criticamente o trabalho fabril parcelado, realizado nas indústrias modernas, de modo que, segundo Durkheim (2004, p. 97) “se a divisão do trabalho não produz a solidariedade, é que as relações dos órgãos não são regu- lamentadas, é que elas estão num estado de anomia ”. Isto posto,
tem-se então que Durkheim nega a ideia de que o trabalho industrial parcelado teria condições de gerar coesão social. Muito criticado sobre o método aplicado em sua tese doutoral, preparou, em 1895, um “manual de sociologia”, que ambiciosamente denominou de As Regras do Método Sociológico . Nessa obra, definiu o que deveria ser entendido como sociologia, seu objeto e método. De caráter acadêmico muito forte, Durkheim busca promover com essa obra a demarcação do campo de conhecimento sociológico. Um dos embates marcantes proposto por Durkheim diz respeito ao caráter não reformista da sociologia:
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A sociologia não será nem individualista, nem comunista, nem socialista, (...). Por princípio, irá ignorar essas teorias, às quais não poderia
reconhecer valor científico, já que elas tendem diretamente, não a exprimir os fatos, mas a reformá-los (DURKHEIM, 2002a, p. 124).
Outro importante aspecto presente em As Regras é que os homens dispostos a fazer sociologia precisam ter uma postura científica, isto é, distanciada do senso comum e afastada de pré-noções e julgamentos de valor, tal qual os profissionais das ciências da natureza; além disso, não deviam se preocupar com a aceitação pública da sociologia, mas com a autoridade científica da qual precisava para consolidar-se enquanto ciência, uma vez que, Acreditamos que chegou para a sociologia o momento de renunciar aos sucessos por assim dizer mundanos, tomando o caráter esotérico que convém a toda a ciência. O que perderia talvez em popularidade, ganharia assim em dignidade e autoridade. Pois enquanto continuar misturada às lutas partidárias, enquanto se contentar com a elaboração das ideias comuns empregando uma lógica apenas mais elaborada do que a do vulgo e, por conseguinte, enquanto não supuser nenhuma competência especial nos indivíduos que a cultuam, não estará em posição para falar com bastante força e fazer calar paixões e preconceitos (DURKHEIM, 2002a, p. 126-127). 43
Um “manual” como As Regras não foi facilmente aceito em muitos círculos acadêmicos. O objetivo parece ter sido exatamente esse, provocar inquietude entre outros interessados, ao ponto de lançar as bases para um debate acerca da constituição de um campo de conhecimento especializado. Em 1897, supostamente em resposta a seus críticos, publica outra obra, O Suicídio , em que promete aplicar o método proposto, mas avança em relação aos aspectos metodológicos originalmente concebidos na obra anterior. Tal obra transforma-se num exemplo magistral de análise sociológica, uma vez que demonstra como o suicídio, um fenômeno tipicamente psicológico, poderia ser analisado sob um olhar sociológico. Nesse trabalho, Durkheim negou a ideia corrente em seu tempo de que o suicídio resultava apenas de uma enfermidade mental. Comparou as taxas de suicídio em diferentes populações e dedicou-se a demonstrar que essas variavam também devido a causas sociais, ou seja, em função do grau de coesão social, observado em diferentes regiões, grupos sociais e religiosos. Diante do permanente desafio de delimitar a sociologia, em 1898, Durkheim ainda escreveu um artigo o qual esboça a relação entre as representações individuais e as representações coletivas dialogando com o campo da psi44
cologia. Afirma ainda, que a sociologia não se reduz a um corolário da primeira. Durante os quinze anos que permaneceu em Bordeaux, Durkheim introduziu nas aulas de pedagogia o tema da sociologia da educação, enfatizando o conceito de socialização. Nos cursos de sociologia que ministrava, o autor abordou diversos temas tratados em seus livros, tais como solidariedade social, coesão social, autoridade, trabalho, suicídio, anomia, direito, representações coletivas, entre outros, profundamente preocupado com a manutenção da estabilidade da nova ordem social que vivenciava. Em 1896, Durkheim fundou uma revista periódica, L’Année Sociologique , que rapidamente se torna exemplo de publicação científica voltada à pesquisa sociológica. Visando ampliar o espaço de discussão sociológica, Durkheim promoveu, nessa revista, um programa destinado a divulgar trabalhos de destacados cientistas preocupados com as questões sociais. Após dedicar-se a seu grande projeto de transformar a sociologia em disciplina acadêmica e formar sua reputação como sociólogo em Bordeaux, Durkheim foi colher os frutos de seu trabalho em Paris. Tornou-se auxiliar de Ferdinand Buisson, na cadeira de Ciência da Educação da Universidade de Sorbonne, e sucedeu-o, a partir de 1906. 45
Na Sorbonne, criou, em 1910, a primeira cátedra de sociologia em uma universidade francesa, consolidando o sta- tus acadêmico que projetara para essa disciplina. Segundo Rodrigues (2004, p. 15), suas aulas na Sorbonne transfor- maram-se em verdadeiros acontecimentos, exigindo um grande anfiteatro para comportar o elevado número de ouvintes (...) .
Continuamente preocupado com as questões morais de seu tempo, em 1911, Durkheim escreve um ensaio sobre juízos de valor e julgamentos de realidade, no qual chegou a afirmar que o valor simbólico das coisas é maior que o seu valor material. Nesse sentido esboça a concepção de que emana da sociedade a valorização que os homens dão as coisas e, [...] se o valor das coisas fosse verdadeiramente medido pelo grau de sua utilidade social (ou individual), o sistema de valores humanos deveria ser revisto e transformado profunda e completamente, porque o lugar ocupado pelos valores de luxo seria, por esse ponto de vista, incompreensível e injustificável. [...] Como a vida intelectual, a vida moral tem uma estética que lhe é peculiar. As mais altas virtudes não consistem na prática regular e estrita dos atos mais imediatamente necessários à boa ordem social; mas são feitas de movimentos livres e espontâneos, de sacrifícios desnecessários e que mesmo, por vezes, são contrários aos pre46
ceitos de uma economia prudente. Existem virtudes que são verdadeiras loucuras, e é nesta loucura que reside sua grandeza. [...] A própria vida econômica não se submete estritamente à regra da economia. Se os objetos de luxo são aqueles que custam mais caro, não é unicamente porque em geral sejam os mais raros; é também porque são os mais apreciados. [...] Viver é, antes de mais nada, agir, agir sem cálculo, pelo prazer de agir (DURKHEIM, 2004a, p. 55-56).
Durkheim esboça repetidas vezes em suas obras, um interesse muito grande por desvendar de onde emanam as forças que guiam os atos individuais. Segundo o autor, as pessoas em sociedade não agem apenas com base na razão ou em sentimentos essencialmente individuais, mas sua ação depende de valores morais e ideais, social e emocionalmente compartilhados na medida em que Um ídolo é uma coisa muito santa e a santidade é o valor mais elevado que o homem reconhece. Ora, um ídolo é, na maioria das vezes, um monte de pedras ou um pedaço de madeira que, por si só é despido de qualquer espécie de valor. [...] A história contradiz o conceito corrente de que as coisas, às quais o culto é dirigido, foram sempre as que mais impressionavam a imaginação. O valor incomparável que lhes era atribuído não decorria de suas características intrínsecas. [...] Uma bandeira 47
não é mais do que um pedaço de pano; o soldado, entretanto, morre para salvá-la. A vida moral não é menos rica em contrastes desse gênero. [...] Os homens são desiguais tanto em força física como em talento; apesar disso, tendemos a reconhecer em todos um idêntico valor moral. Sem dúvida, o igualitarismo moral tem um limite ideal que não será jamais atingido, mas do qual nos aproximamos sempre mais (DURKHEIM, 2004a, p. 56-57).
Durkheim passa a direcionar sua argumentação para a concepção de que o desenvolvimento moral e o reconhecimento individual são potencializados pela emergente sociedade moderna. Para o autor, a sociedade emergente permite o surgimento do indivíduo, uma vez que ela alça as unidades humanas a uma existência “superior”. Nessa concepção, as realizações individuais se tornam possíveis por meio da socialização e de uma trajetória de ocupação de papéis socialmente disponíveis e obrigatoriamente implicados, onde,
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(...) Os sentimentos que nascem e se desenvolvem no seio dos grupos têm uma energia que os sentimentos puramente individuais não atingem. O homem que os experimenta tem a impressão de que é dominado por forças que não reconhece como suas, das quais não é mais o dono, que o conduzem, e todo o meio no qual ele está mergulhado lhe parece sulcado por forças do mesmo
gênero. Ele sente-se como que transportado para um mundo diferente daquele onde flui sua existência privada. A vida não lhe é apenas intensa; ela é qualitativamente diferente. Arrastado pela coletividade, o indivíduo desinteressa-se de si mesmo, esquece-se de si, dá-se por inteiro aos objetivos comuns (DURKHEIM, 2004a, p. 58).
A sociedade é vista, portanto, por Durkheim como uma entidade superior às consciências individuais, não apenas por considerá-la mais do que a soma delas, mas porque é a sociedade que proporciona a existência das consciências individuais e as coloca em relação íntima, fazendo com que ajam umas sobre as outras. Nesse sentido, deve-se entender que, Durkheim não presta apenas reverência à sociedade, mas também deixa explícito um forte “culto ao indivíduo”. O individualismo moral de que fala Durkheim é diferente do egoísmo: trata-se da formação da personalidade individual, concepção que, segundo o autor, penetrou nas instituições e nos costumes; e que permeia a vida na sociedade moderna. Durkheim nega a concepção de que a existência da sociedade reside na repressão de faculdades e propensões individuais. O autor entende que nas sociedades tradicionais, onde predomina um tipo de solidariedade que denomina “mecânica”, os “indivíduos” estão sujeitos ao 49
que chama de “tirania do grupo”. Em tais formações sociais, inexiste a tolerância ao desvio dos códigos morais incorporados à consciência coletiva e verifica-se baixo desenvolvimento das capacidades e faculdades individuais. A complexidade crescente das sociedades produz mais liberdades e maior riqueza da personalidade individual. Diante desse crescimento das sociedades, as formas tradicionais de autoridade moral tornam-se obsoletas. A conduta moral não apenas limita a ação, ela também carrega uma valência positiva. Para Durkheim, a oposição entre “liberdade” e “autoridade” é espúria. O individualismo moral conserva um caráter limitativo, impondo deveres e disciplina. Contudo, a aceitação dessa autoridade moral é uma condição necessária para se evadir de uma submissão servil comum às sociedades tradicionais e se projetar a uma existência individual característica das sociedades modernas (GIDDENS, 2001). Em 1912, Durkheim publica a obra As Formas Ele- mentares da Vida Religiosa , e a partir disso dá uma guinada intelectual ao redirecionar suas preocupações para a sociologia do conhecimento e da religião. O modelo funcionalista presente nas obras anteriores é promovido a uma abordagem “genética”, em que Durkheim buscou desvendar os processos sócio-históricos que levaram à 50
emergência do individualismo moral nas sociedades modernas, partindo das realidades mais “primitivas” (GIDDENS, 2005). Neste trabalho sobre a religião “primitiva”, foi estabelecido um profundo diálogo com etnólogos e etnógrafos da época, que traziam muitos diários de campo sobre sociedades aborígenes de regiões remotas. Para Durkheim, as representações coletivas eram forças simbólicas especiais e expressavam a autocriação das sociedades humanas. Procurou demonstrar que, mesmo os modernos ideais seculares embutidos no individualismo moral, apresentam um caráter “sagrado”, tal qual os aspectos religiosos. Conforme afirma Giddens (2001), para Durkheim, o declínio do papel da religião na coesão social não implica no desaparecimento da representação sagrada de outros fenômenos, aos quais irá se dirigir o culto. Entre 1913 e 1914, Durkheim escreve sobre Prag- matismo e Sociologia , logo em seguida inicia a Primeira Guerra Mundial, que literalmente joga um “balde de água fria” sobre seu entusiasmo com o mundo moderno. Consternado com as consequências sociais promovidas por uma guerra sangrenta, Durkheim escreve dois ensaios em 1915, em que afronta as motivações de uma guerra: Quem quer a guerra? As origens da guerra, de acordo com documentos diplomáticos e A mentalidade alemã e a guerra . 51
A perspectiva de Durkheim estabeleceu-se, portanto, com base em uma preocupação estritamente simbólica e humanista da realidade social. Esse autor defendia a concepção de que os problemas sociais são primeiramente de ordem moral, e não de ordem econômica, como vinham sugerindo os utilitaristas e os socialistas, até então. A moral significa algo como a internalização de normas coletivas e é essencial para a coesão social. Para Durkheim, a sociologia deveria direcionar esforços para a análise “das forças e das energias imateriais”, socialmente elaboradas, que produzem laços de solidariedade, e que conduzem os indivíduos a uma vida coletiva mais gratificante, quando comparada a uma existência isolada e egoísta. A perspectiva de Max Weber Assim como Durkheim, Weber foi um intelectual decisivo para a institucionalização da sociologia como área de conhecimento, embora não possa ser apenas identificado como um sociólogo. Seus trabalhos também revelaram preocupações com questões da economia, do direito, da filosofia e da história, sendo considerado autor importante também nessas áreas. Construiu sólida carreira acadêmica na Alemanha, embora tenha também se dedicado a ativida52
des políticas e militares. Weber escreveu alguns dos livros de sociologia mais importantes do século XX, em que promoveu análises sociológicas sobre fenômenos históricos em diferentes contextos culturais e dedicou-se a discutir os fundamentos analíticos das ciências humanas e sociais. Muitos trabalhos de Weber estavam voltados para a análise do desenvolvimento do capitalismo moderno. Para tanto, ele dedicou-se a compreender a natureza e as causas das transformações sociais que conduziram a formação do capitalismo no ocidente, tendo sido influenciado pela obra de Marx. Porém, rejeitou a concepção do materialismo histórico, procurando alternativas a este. A crítica de Weber recaiu especialmente sobre a “exagerada” relevância que Marx dava ao conflito de classes como movimento capaz de impulsionar as transformações sociais. Para Weber, os fatores econômicos são decisivos, mas as ideias e os valores são igualmente necessários para desencadear um efetivo processo de transformação social. Nesse sentido, concebia os indivíduos como agentes que são mobilizados por paixões e ideias e lhes atribuía habilidades e competência para agir e moldar seu destino. Na visão de Weber, a complexa interação entre motivações, ações e relações sociais é que desencadeariam as transformações da realidade social. Diferentemente 53
de Marx e de Durkheim, que buscavam direcionar seus estudos respectivamente para as macroestruturas e instituições sociais, Weber conferia à sociologia o papel de compreender os significados que os agentes atribuem às suas ações, para a partir daí explicar os efeitos dessas. Até hoje, a obra de Weber influencia muitos sociólogos, fundamentando escolas de pensamento que adotam uma interpretação da realidade social que privilegia a compreensão do sentido da ação social empreendida pelos agentes em sociedade, entre as quais se destacam o individualismo metodológico e a fenomenologia. Karl Emil Maximilian Weber nasceu em Erfurt, na Alemanha, em 21 de abril de 1864 e morreu em Munique, em 14 de junho de 1920, em consequência de pneumonia aguda. Seu pai foi deputado do Partido Nacional Liberal e Weber teve oportunidade de entrar em contato com ilustres historiadores, filósofos, intelectuais e juristas da época. Durante toda a sua trajetória, teve uma vida confortável e um convívio social muito sofisticado, em meio a acadêmicos e políticos. A juventude de Weber foi marcada pela unificação alemã e pelos primeiros efeitos sociais e políticos que esse processo desencadeou. Naquele momento, a burguesia liberal ainda não tinha uma posição dominante consolidada. O governo era chefiado por militares e ain54
da era dominado por uma pequena aristocracia agrária conservadora, que sofria oposição crescente de grupos políticos liberais e democratas, que representavam novas forças oriundas do meio urbano crescente. A modernização do Estado alemão também trazia consigo a formação de uma elite de servidores públicos e burocratas. O entrevero político que presenciava, levou Weber a questionar as possibilidades de desenvolvimento social e econômico alemão. Não por acaso, destinou grande parte da sua obra intelectual ao estudo da economia, do Estado, do poder e da política. Foi um autor fascinado pela política, tanto que teve participações contínuas na vida política de seu país. Para Weber, a política era uma “arena” na qual os grupos políticos expressavam seus interesses e disputavam as condições para impor os seus ideais ao conjunto da sociedade. Weber diplomou-se em Direito, mas estudou história, economia e filosofia nas universidades de Heidelberg e Berlim. Laureou-se em Goting, em 1889, com uma tese de história econômica sobre as sociedades comerciais na Idade Média. Em 1891, conseguiu a livre docência com a tese A história agrária romana e sua significação para o di- reito público e privado . Em 1893, casou-se com Marianne, com quem manteve profícuo debate intelectual e mudou-se para Berlin. Em 1894, tornou-se professor ao aceitar 55
a cátedra de economia política na Universidade de Friburgo. Em 1896, passou a ensinar na Universidade de Heidelberg, onde teve intensa vida social e intelectual, participando de círculos acadêmicos com eminentes pensadores da época. Entre 1893 e 1898 produziu uma série de estudos sobre os mercados e a bolsa de valores. De 1897 a 1903, sua atividade profissional ficou bloqueada por causa de uma doença nervosa. A partir de então, sua vida passou a ser dividida entre períodos de crises emocionais e de produção intelectual intensa. Nesse meio tempo, em 1902, juntamente com Sombart, tornou-se codiretor da destacada revista Archiv Fur Sozialwissenschaft und Sozialpolitik . Em 1904 publicou um manuscrito metodológico sobre A objetividade do conhecimento nas ciências sociais , texto de referência fundamental para as ciências humanas em geral e para a sociologia em particular. Nesse texto, além de discutir o recurso metodológico conhecido como tipo ideal, posiciona-se sobre a natureza do conhecimento científico. Para Weber, o conhecimento sempre incide sobre aspectos limitados da realidade, até porque a realidade é infinita no espaço e no tempo e jamais poderia ser captada como uma “totalidade”. Defende então a concepção de que todo o conhecimento científico é objetivo apenas 56
nos resultados do estudo, mas não na gênese, pois a curiosidade que motiva a pesquisa é dada pelos valores e interesses do cientista social. É o cientista quem seleciona da realidade infinita, um fenômeno analisável. Para Weber, a ciência não é conhecimento puro, mas conhecimento carregado de significação, pois é sempre expressão daquilo que os homens de uma época consideram importante de ser conhecido. Também em 1904, Weber realizou uma viagem aos Estados Unidos, onde ficou deslumbrado pela “agitação” daquela nova realidade social, que o ajudou a refletir sobre o sentido do fenômeno empresarial moderno e como esse era estimulado e exigido por uma sociedade de consumo de massa. Após essa excursão, escreveu o artigo A ética protestante e o espírito do capitalismo , uma de suas principais contribuições sociológicas, que só foi publicada em versão integral em 1920, pouco antes de sua morte. Nessa obra, defendeu a ideia de que a formação do capitalismo também é de natureza cultural. Diferente de Marx, que identifica o capitalismo como resultado de um desenvolvimento contínuo pelo qual todas as sociedades inevitavelmente passariam, Weber percebe que o que faz com que este tenha se desenvolvido em um lugar e não em outro foram bases culturais, valores e instituições nas 57
quais se assentou um modo de comportamento, uma conduta especial. O “espírito do capitalismo” seria uma forma de viver e de agir, uma forma de relações sociais regulares e difundidas, em suma, uma ética profissional, que também possibilitou o surgimento do capitalismo. Uma conduta racional e regrada que possui nos ideais da prosperidade sua salvação, juntar dinheiro como um objetivo e a valorização do trabalho como algo benéfico à dignidade pessoal. São esses os valores que estão entre os vetores constituintes da ética de vida moderna, sem a qual o capitalismo não teria se desenvolvido da mesma forma, pois,
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O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos – empresários e operários – de que necessita. (...) Para que essas modalidades de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à peculiaridade do capitalismo pudessem ter sido “selecionadas”, isto é, tenham podido sobrepujar outras modalidades, primeiro elas tiveram que emergir, evidentemente, e não apenas em indivíduos singulares isolados, mas sim como um modo de ver portado por grupos de pessoas. Portanto, é essa emergência de um modo de ver que se trata propriamente de explicar. (...) O “espírito do capitalismo” existiu incontestavelmente antes do desenvolvimento do capitalismo (WEBER, 2004a, p. 48).
Weber entendia que a explicação de Marx sobre o capitalismo era essencialmente geral e, por isso, não era suficientemente completa para compreender a formação do capitalismo. Na acepção weberiana, o capitalismo foi possível também em razão de uma ética social, uma nova mentalidade, que se expressa como uma “cultura capitalista” e se difunde nos países ocidentais, assimilando singularidades culturais locais. Entre essas singularidades culturais está a religião. Na realidade social moderna e capitalista, o “dever profissional” pode ser pensado como uma obrigatoriedade, tal qual uma obrigação religiosa, de modo que para Weber (2004a, p. 165) a ideia do ‘dever profissional’ ronda nossa vida como um fantasma das crenças religiosas de outrora . Inclusive, diferentemente de Marx, Weber considerava que o capitalismo poderia ser de diversos tipos, variando em função de singularidades culturais e institucionais locais existentes no momento de seu surgimento. Weber demonstra como a moral puritana foi um evento que também contribuiu para o desenvolvimento do capitalismo, demarcando uma variável cultural importante para a compreensão da formação do capitalismo. Imersos numa realidade particular, os agentes em relação conformam um modo de ser específico. No caso do capitalismo, esse modo de ser é dotado de uma visão racional e fun59
damentado em uma ética peculiar, em que valores como laboriosidade, poupança, prosperidade, honestidade, pontualidade e dever profissional, passam a fazer parte da convivência humana. Dessa forma, as instituições e organizações sociais, combinadas à égide de valores e ideais mobilizados, recebem uma matriz cultural, que impulsiona o desenvolvimento do sistema social. Diferentemente de Marx, Weber observava que a conduta capitalista fundava-se em relações de cooperação, não expressando apenas relações conflituosas. Na origem do capitalismo estavam presentes novas ideias de mundo e a cooperação entre homens em nome da luta contra a tradição e seus ideais. Deve-se considerar, então, que Weber descarta compreender a cultura como uma representação de consensos normativos aos quais todos os indivíduos aderem passivamente, adotando uma concepção da cultura como sentidos compartilhados que orientam a ação dos homens. Conforme destaca Clifford Geertz (2003, p. 15), Weber concebia que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu . Nessa acepção a cultura é resultante de “arenas” em que os agentes lutam para definir o sentido das coisas e as condutas que são exemplares e que podem servir para orientar as suas ações perante o mundo. 60
A organização actual amarra cada indivíduo a uma infinidade de outros indivíduos por incontáveis fios. Cada um procura as suas conveniências, puxando pelos fios da rede para chegar ao lugar que julga ser o seu; mas, mesmo que ele seja um gigante e reúna nas suas mãos muitos dos fios, o mais certo é que os outros o arrastem para onde exista um lugar vago à sua espera” (Weber, 2004b).
É importante destacar, neste ponto, que o autor define as “unidades humanas” como “agentes” que mobilizam em sua ação valores e recursos disponibilizados no ambiente cultural. Weber concebeu os homens como seres que lutam heroicamente por suas vontades, guiados por ideais, crenças e interesses. Essa inclinação voluntarista, que Weber atribui à ação humana, foi influência da filosofia de Nietzsche. Para o autor, o agente tem convicções e sua performance depende da força com que luta e da “verdade” com que traça seu caminho. A perspectiva de Weber funda-se, portanto, sobre as realizações da ação humana e seus efeitos sobre as formações sociais. Nessa concepção, o mundo social sempre é expressão de vontades e realizações humanas. Isso não significa, entretanto, que as configurações históricas são expressões exatas dos propósitos dos agentes. As consequências reais da ação podem ser diferentes ou até mesmo completamente contrárias às intenções originais que a de61
sencadearam. A história na será demarcada por rupturas, será um fluxo contínuo, reflexo de arranjos socio-históricos das ações sociais no espaço e no tempo. Outro importante elemento da perspectiva de Weber é a de que as sociedades se configuram em muitas “esferas de ação”, tais como a religião, a política, a ciência, a economia, o mercado, o direito, a arte. Esses “espaços” em que os agentes atuam, compõem as sociedades e apresentam ordenamentos distintos e sentidos específicos. Para o autor, a única entidade em que os sentidos das esferas de ação estão presentes e em contato é o agente. Ao transitar entre essas esferas, o agente carrega múltiplos sentidos em que acredita e os combina em sua ação. Diante disso, deve-se entender que Weber parte da ideia de que a ação humana tem significado e está carregada de propósitos e de intenções. Para o autor, a sociologia busca decifrar a originalidade das realizações humanas, por isso não é uma ciência dos grupos ou das instituições, mas dos homens agindo socialmente, por meio de suas relações. Nessa concepção, as instituições e organizações não existem como entidades objetivas, apenas como sistemas de orientação, que imprimem conteúdo significativo para a ação dos agentes. Instituições como igrejas, partidos, as62
sociações existem apenas enquanto têm significado para aqueles agentes que delas participam. A perspectiva de Weber, então, está voltada para o estudo do significado que os agentes dão a suas ações e os efeitos que essas produzem para o conjunto da sociedade. Não por acaso serão temas recorrentes e encadeados na obra de Weber o costume, a moda, o poder, a disciplina, a dominação e a legitimidade. A variedade de temas e objetos empíricos presentes na obra de Weber demonstra sua permanente preocupação com os limites sociopolíticos que via na Alemanha e que impediam seu desenvolvimento como uma potência econômica continental e liberal. Em 1906, Weber produz dois ensaios, um sobre a situação da democracia burguesa na Rússia e outro sobre as seitas protestantes e o espírito do capitalismo. Em 1909, estudou as relações de produção na agricultura do mundo antigo. Nesse mesmo ano, começou a escrever um grande manual metodológico, em que definiria as bases de uma ciência compreensiva, que só foi publicado após a sua morte. Assim como Durkheim, Weber não deixou de dedicar atenção especial a trabalhos sobre os fundamentos da sociologia. Em 1913, escreveu o texto Ensaio sobre algumas categorias da ciência compreensiva . 63
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Weber defendeu as razões da Alemanha nesse conflito e prestou serviço como diretor de hospital militar. Nesse período, Weber esteve muito preocupado com a ruína moral e cultural da Alemanha que, segundo ele, era devida à política equivocada do Imperador e de seus ministros. Depois da derrota na guerra, e com a queda do Império alemão, Weber participou da redação da Constituição da República de Weimar, em 1919, que instaurou na Alemanha um governo presidencial e parlamentarista. Em meio à guerra produziu um estudo sobre a ética econômica das religiões universais, lançando em 1915. Logo após a guerra, publicou dois famosos ensaios A política como vocação e A ciência como vocação , obras em que não apenas analisa duas formações profissionais do mundo moderno, mas que faz duras críticas à conduta de alguns grupos políticos e acadêmicos. Em 1919, publica a obra História geral da economia . Foi apenas após a morte de Weber que Marianne publicou o grande manual de sociologia intitulado Economia e Sociedade , iniciado pelo seu marido em 1909, e que é referência fundamental na metodologia das ciências sociais, até os dias de hoje. 64
A perspectiva de Georg Simmel Georg Simmel nasceu em Berlim, no dia 1° de março de 1858 e morreu aos 60 anos, em Estrasburgo 1, em 28 de setembro de 1918. Era o sétimo filho de Edward Simmel e Flora Bodstein, casal de ascendência judaica. Edward Simmel, dono de uma fábrica de chocolates morreu em 1874, deixando uma herança considerável que permitiu a Georg se formar e dedicar-se à vida acadêmica. Diplomou-se na Universidade de Berlim, passando, inicialmente, pela formação em História, mas, posteriomente dedicando-se à Filosofia. Sua tese de doutorado levou o título de A natureza da matéria segundo a monadologia física de Kant e rendeu-lhe o título no ano de 1881. Foi um filósofo e intelectual alemão muito admirado em seu país e no exterior, mas que sempre teve dificuldade em encontrar um lugar no seio da academia alemã de seu tempo, ao que se sabe, devido ao sentimento antisemita já bastante manifesto naquela época. Seu inte1 Localizada no leste da França, às margens do Rio Reno, a cidade de Estrasburgo foi anexada ao Império Germânico após a Guerra franco-prussiana como capital da Alsácia-Lorena, em 1871. A cidade beneficiou-se da dominação política e territorial alemã, que transformou a cidade em um “Reichsland”, uma “vitrine da cultura alemã”, para mostrar ao mundo e à França a suposta superioridade germânica. A cidade voltou ao domínio francês após a Primeira Guerra Mundial, como definido pelo Tratado de Versalhes.
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resse de pesquisa foi plural (filosofia, sociologia, psicologia social, análise cultural, etc.) não podendo ser facilmente enquadrado a uma disciplina, sendo autor de mais de 200 artigos e 20 livros que foram traduzidos à época para as línguas inglesa e francesa (MORAES FILHO, 1983). Simmel apenas assumiu uma posição institucional de prestígio na Alemanha aos 56 anos, quando conseguiu a titularidade de uma cátedra em filosofia em Estrasburgo, pouco antes do início da primeira guerra mundial (TEDESCO, 2006, p. 12). Antes disso, atuou, a partir de 1885, como professor independente na Universidade de Berlim e escrevia para jornais e periódicos culturais, andava sempre muito próximo dos pensadores liberais independentes. Era um grande conferencista que prendia e empolgava seu auditório. Os biógrafos apontam certa marginalidade dos quadros permanentes durante sua vida acadêmica na Universidade de Berlim, na qual se formou e se iniciou professor. Em 1901, tornou-se professor colaborador, mas jamais foi incorporado de modo formal e definitivo. Simmel vivia de herança deixada por seu pai e das taxas pagas pelos estudantes que se inscreviam em seus cursos e assistiam suas conferências (MORAES FILHO, 1983). A juventude de Simmel foi marcada pela unificação da Alemanha e pelos primeiros efeitos sociais e políticos 66
que esse processo desencadeou, especialmente a intensa industrialização alemã e a acelerada urbanização de Berlim. Naquele momento, a burguesia liberal ainda buscava uma posição dominante, mas a realidade industrial e comercial já se expandia, transformando a cidade numa metrópole muito populosa. O governo era chefiado por militares e ainda era dominado por uma pequena aristocracia agrária conservadora – a qual sofria oposição crescente de grupos políticos liberais e democratas – que representavam novas forças oriundas do meio urbano crescente. Não por acaso, destinou grande parte de sua obra intelectual ao estudo dessa vida cotidiana urbana. Simmel foi um autor fascinado pelos aspectos mais rotineiros da vida de uma grande cidade, observava que a urbanização acelerada trazia consigo novas expressões identitárias que caracterizavam a vida nas grandes cidades. Esse fenômeno observado despertou seu interesse sobre as reações do indivíduo frente à expansão da realidade urbana. Como seria possível manter e preservar a autonomia e a existência individual diante das impressionantes forças impessoais que a realidade moderna forjava? Um fenômeno que muito inquietou Simmel foi o constante afluxo de pessoas que vinham do interior para tentar a vida nas novas grandes cidades. Como um migrante do 67
mundo rural, daqueles que chegavam aos milhares, diariamente nas estações das cidades, conseguiria adaptar-se aos grandes conglomerados humanos que surgiam a toda hora sem ver sumir suas características mais pessoais, sua singeleza, sua afabilidade e pureza aldeã? Em diversos de seus ensaios e em suas principais obras, Simmel identifica na realidade moderna o desenvolvimento crescente de uma cultura objetiva que acaba por animar as expressões da cultura subjetiva. As estruturas sociais e culturais na modernidade adquirem identidades fixas pautando-se por uma lógica e razão de ser próprias, independentes dos conteúdos que as criaram e que ameaçavam de forma imperativa e coercitiva a liberdade dos indivíduos. A preocupação de Simmel é com a autonomização do mundo social e das estruturas culturais que se configuravam a partir dos indivíduos em suas interações e que saiam de seu controle. Nesse sentido, a modernidade apresenta um caráter dual e contraditório, pois as estruturas culturais que os indivíduos formam ao estabelecer suas relações, passam a ter, em última instância, vida própria, ameaçando a cultura subjetiva. De uma forma muito semelhante ao fetichismo da mercadoria de Marx, no qual os indivíduos se encontram marcados sob o processo produtivo capitalista por uma separação do produto de 68
seu trabalho, Simmel teme uma separação entre a cultura objetiva – entendida como os resultados das produções culturais dos indivíduos – e a cultura subjetiva, ou seja, da capacidade do ator de produzir, absorver e controlar os elementos da cultura objetiva (RITZER, 2002). Não por acaso, um destacado tema da sociologia simmeliana foi sua análise da vida urbana em um escrito intitulado As grandes cidades e a vida do espírito , também traduzido como A metrópole e a vida mental , escrito em 1903, este, considerado um dos textos pioneiros da sociologia urbana. Este ensaio foi fruto de uma conferência proferida no inverno de 1902-1903 e trata-se de uma versão ampliada do capítulo final “O estilo de vida”, da primeira versão de A Filosofia do Dinheiro , publicada em 1900. No ensaio, Simmel reflete sobre como as novas formas de mediação nas esferas de circulação, de troca e de consumo, surgidas na modernidade, impactaram as relações entre os indivíduos que passaram também a ser mediadas por criações culturais como o dinheiro, o estilo de vida urbano, a moda, as migrações, as demarcações espaciais etc. Cabe mencionar que As grandes cidades e a vida do es- pírito foi escrito no contexto do expressionismo, que foi um movimento artístico surgido na Alemanha, no início do século XX, em oposição ao impressionismo francês. Os ex69
pressionistas retratavam em suas obras os dramas individuais do homem e as injustiças da sociedade moderna. Da mesma forma, Simmel buscou descrever e analisar em seus ensaios a fobia urbana, a sensação de solidão, abandono, indiferença, medo e pânico que uma metrópole provocava nos indivíduos, revelando manifestações das formas de adaptação a essa nova condição. A vida nas grandes aglomerações urbanas é outro traço fundamental dos tempos modernos. Analisando seu impacto sobre a sociabilidade e a individualidade, Simmel (2005a, p. 277-8) destacou o fenômeno do embotamento dos sentidos, de modo que O fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades da cidade grande é a intensificação da vida nervosa, que resulta da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores. O homem é um ser que faz distinções, isto é, sua consciência é estimulada mediante a distinção da impressão atual frente a que lhe precede. As impressões persistentes, a insignificância de suas diferenças, a regularidade habitual de seu transcurso e de suas oposições exigem por assim dizer menos consciência do que a rápida concentração de imagens em mudança, o intervalo ríspido no interior daquilo que se compreende com um olhar, o caráter inesperado das impressões que se impõem. Na 70
medida em que a cidade grande cria precisamente estas condições psicológicas — a cada saída à rua, com a velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social —, ela propicia, já nos fundamentos sensíveis da vida anímica, no quantum da consciência que ela nos exige em virtude de nossa organização enquanto seres que operam distinções, uma oposição profunda com relação à cidade pequena e à vida no campo, com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida.
Desta feita, tem-se que a imensidade de estímulos gerados pelas intensas atividades urbanas tinham seu reflexo na personalidade do indivíduo, gerando sujeitos que iam perdendo sua capacidade de relação com seu meio circundante, tornando-se objetivos, impessoais, distantes e calculistas. Nas palavras de Simmel (2005a, p. 580-1): A pontualidade, a contabilidade, a exatidão, que coagem a complicações e extensões da vida na cidade grande, estão não somente no nexo mais íntimo com o seu caráter intelectualístico e econômico-monetário, mas também precisam tingir os conteúdos da vida e facilitar a exclusão daqueles traços essenciais e impulsos irracionais, instintivos e soberanos, que pretendem determinar a partir de si a forma da vida, em vez de recebê-la de fora como uma forma universal, definida esquematicamente. 71
A caracterização sociológica desta personalidade social, na perspectiva de Simmel (2005a, p. 581) é o indi- víduo blasé , atomizado, indiferente e distante do ambiente social na medida em que A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos.
Já em seus estudos acerca da metrópole, destaca a questão do papel do sujeito no interior da totalidade, um tema caro à sociologia. Neste sentido, Simmel (2005a, p. 589) argumenta que: Ao lado desse ideal do liberalismo cresceu no século XIX, por um lado por intermédio de Goethe e do Romantismo, por outro por meio da divisão econômica do trabalho, a ideia de que os indivíduos, libertos das ligações históricas, querem então também se distinguir uns dos outros. Agora o suporte de seu valor não é mais o “homem universal” em cada singular, mas sim precisamente a unicidade e incomparabilidade qualitativas. [...] A função das cidades grandes é fornecer o lugar 72
para o conflito e para as tentativas de unificação dos dois, na medida em que as suas condições peculiares se nos revelam como oportunidades e estímulos para o desenvolvimento de ambas.
Outro ponto a ser destacado na sociologia simmeliana é sua análise da monetarização da vida urbana moderna. Em 1908, Simmel produziu a versão final de seu grande tratado sociológico intitulado Filosofia do Dinheiro que buscava identificar as origens, o desenvolvimento e as consequências do desenvolvimento da economia monetária. Ao tomar o dinheiro como objeto de análise, o autor demonstra que uma das características marcantes da vida moderna é a ligação dessa com as relações monetárias, na qual destacou aspectos como a monetarização das relações sociais, a ampliação dos mercados, a racionalização e a quantificação da vida. “O dinheiro confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa” (SIMMEL, 1998a, p. 24). Simmel (2011) sugeria a ideia de que o dinheiro é como um “deus” da vida moderna, uma vez que na modernidade der nidade muitas coisas da vida real passavam a girar ao redor do dinheiro e, ao mesmo tempo, o dinheiro fazia a realidade se movimentar. movimentar. Nesta obra, obr a, estabelece um diá73
logo franco com algumas discussões econômicas propostas por Karl Marx, em O Capital , buscando resgatar alguns elementos subjetivos que teriam sido desprezados por Marx. Pois, Pois, para Simmel, a modernidade moder nidade intensificava a experiência da alienação de modo que ele entende que esta não se dá apenas na esfera do trabalho trabalho,, mas também na esfera cultural e, portanto, ele não acreditava, como Marx, que com o fim do capitalismo, capitalismo, da divisão de classes e do estado burguês seria possível acabar com os processos alienantes. Simmel não era um revolucionário, não acreditava em mudanças radicais, pensava a realidade social em termos de valores, sentimentos e emoções, a partir do pressuposto de que a superação da alienação somente poderia ocorrer no campo da individualidade, da sensibilidade estética e das experiências e xperiências de liberdade. A obra Filosofia do Dinheiro tem tem duas partes e propõe uma ampla abordagem fenomenólogica do dinheiro, demonstrando sua influência e sua relação com os elementos centrais da vida2 nas sociedades modernas. A primeira parte, intitulada “analítica”, destaca os aspectos mais econômicos do tema e analisa a relação entre valor e 2 Note-se que o foco de Simmel em sua produção sociológica volta-se especialmente à “vida em sociedade” e não propriamente ou exclusivamente à “sociedade”, entendida aqui como uma entidade social geral e superior aos indivíduos. 74
dinheiro. A troca constitui para dinheiro. par a Simmel um tipo puro de interação social. Quando o dinheiro passa a ser o símbolo predominante nas trocas tornam-se evidentes os efeitos profundos na subjetividade e da natureza das relações humanas. A segunda parte, chamada de “sintética”, destaca o lugar do dinheiro e sua relação com a liberdade ini ndividual e os valores pessoais, para desembocar em uma análise fascinante sobre o estilo de vida moderno, como relatado anteriormente (MORAES FILHO, 1983). Simmel não pretendia confrontar ou negar as concepções de Marx acerca das determinações econômicas, mas antes, de maneira semelhante a Weber, adicionar alguns elementos não-econômicos como fatores explicativos para a importância do dinheiro na vida urbana moderna. Em seu argumento, Simmel demonstra que, no desenvolvimento da economia monetária, o dinheiro possui um caráter libertador que, assim como a moda, por exemplo, favorece a emancipação do sujeito, promovendo por sua objetividade uma maior liberdade nas trocas mercantis e permitindo per mitindo o desenvolvimento desenvolvimento econômico ao romper com as velhas amarras da tradição. Por outro lado, o dinheiro possui um caráter de dissolução das relações sociais reduzindo-as a termos monetários. Entretanto, não se trata de afirmar que no mundo con75
temporâneo tudo é determinado e explicado pela vida monetária, mas de perceber que esta é uma manifestação oriunda de traços culturais da época moderna, como a aceleração do tempo, a monetarização das relações sociais,, a ampliação dos mercados ciais mercados,, a racionalização r acionalização e quantificação da vida e inversão de meios e fins fins.. O dinheiro na vida moderna é um sistema simbólico, simbólico, uma forma de comunicação e um recurso de interação, representa situações paradoxais, paradoxais, pois manifesta-se como impessoalidade, privação, emoção, promessa, independência e liberdade. Essa característica da vida moderna é vista pelo autor como paradoxal e ambígua, pois a vida social técnica, fria e calculista também é estilingue para as manifestações mais subjetivas do espírito humano humano.. Conforme relatado por Tedesco (2006, p. 14), Habermas (1988) reconhece em Simmel uma fina sensibilidade para detectar os estímulos de sua época, as inovações estéticas, a tendência espiritual, a percepção da vida nas grandes cidades, as alterações de posição subpolíticas e os fenômenos mais cotidianos e difusos, porém reveladores. Em sua sociologia, Simmel vai estudar os processos sociais amplos e efêmeros da vida moderna moder na como a impessoalidade, a mercantilização da vida, a moda (imitação e distinção), a dominação, o conflito, a cooperação, o dinheiro, o segredo, a 76
aventura, a fidelidade, o feminismo, a amizade, a refeição, a preguiça, a mentira, a intriga, a identidade, a sociabilidade, entre muitas outras formações sociais. Contemporâneo e interlocutor de Max Weber, Georg Simmel fundou junto com Weber e Tönnies a sociedade sociológica alemã. Com a obra Soziologie , publicada em 1908, o autor contribuiu decisivamente para a consolidação da sociologia na Alemanha. Contudo, deve-se destacar que sua produção foi e continua sendo, ainda nos dias de hoje, parcialmente negligenciada como uma contribuição à sociologia em diversos círculos intelectuais. Tornou-se conhecido como um ensaísta, mas em seus ensaios, e especialmente na obra acima citada, tratou sobre a especificidade da sociologia, refletiu sobre o método sociológico e aprofundou a análise das formas de sociação , que é a ação recíproca entre os indivíduos, elemento que ele considerava como objeto fundamental da sociologia. Simmel julgava que a modernidade emergente era uma realidade social ambivalente. O mundo moderno produz alienação da mesma forma que viabiliza a liberação do indivíduo, paradoxalmente, correlaciona a ideia de alienação e de liberdade e amplia as formas de sociabilidade. Mesmo assim, o autor manteve sempre um espírito crítico em relação à modernidade e a algumas 77
tendências da vida moderna, como o empobrecimento da sensibilidade emocional e o descaso a valores considerados conquistas da modernidade, como a liberdade que permitiria maior possibilidade dos indivíduos desenvolverem suas preferências. Na interpretação de Simmel, a modernidade permite aos indivíduos conhecer melhor e ter a consciência de experienciar novos meios de viver; esses são mais permeáveis, menos fechados e seletos e provocam alterações, tensões profundas e contínuas na estruturação da existência humana (WAIZBORT, 2000). As questões em torno da moda, do dinheiro, da prostituição, do estrangeiro, da aventura, da confiança, da mentira, do segredo, temas de Simmel, interessavam pouco aos filósofos da época que o consideravam um analista da interação, não um teórico das macroestruturas sociais e das grandes questões políticas, econômicas e institucionais nascentes. Autores marxistas da época consideravam que ele era um ideólogo da burguesia. Weber e Durkheim o respeitavam como um filósofo de grande talento, não como especialista em sociologia como muito bem escreve Tedesco (2006, p. 9-10). De toda forma, sua obra é exuberante, sensível, densa, tensa e toca em questões muito sutis da vida social moderna. Simmel procurou sempre colocar em pauta o 78
enredo mais cotidiano das relações entre as pessoas e dos círculos convivência que os atores sociais formam para garantir suas individualidades. Ele enfatiza que a sociedade é edificada em torno das sociabilidades produzidas pela interação recíproca entre os indivíduos, isso porque entende que a natureza humana reside na habilidade do homem de ser sociável. Trata-se de uma sociologia dos grupos, dos indivíduos nos grupos e dos elementos emocionais que eles mobilizam para viverem juntos, ou seja, “as formas que tomam os grupos de homens, unidos para viver uns ao lado dos outros, ou uns para os outros, ou então uns com os outros – aí está o domínio da sociologia” (SIMMEL, 1983a, p. 47). A perspectiva de Simmel é marcada por um olhar “ecológico” do meio urbano emergente, o que acaba por demarcar sua sociologia como uma interpretação das sociabilidades manifestas no cotidiano moderno e urbano, das interações, dos grupos e das emoções. Simmel observa a interação entre diferentes grupos com base em aproximações, diferenças, expressões, simpatias e aversões. O foco de análise volta-se ao sentido das ações mais discretas, dos grupos sociais emergentes e em adaptação à nova realidade social, que é cada vez mais impessoal e racionalizada. O autor concebe que a vida humana não se expressa 79
entorno da sobrevivência, mas antes das experiências, da identificação e das sociabilidades. Como o indivíduo pode manter sua individualidade no âmbito das relações que se estabelecem na vida urbana moderna? Simmel entende que os homens são sociáveis e no contexto de uma sociedade cada vez mais impessoal viriam a formar tribos de pertencimento, mas que também são de diferenciação e de distinção, a fim de garantir, proteger e sustentar suas individualidades. Esses são os pontos centrais de sua pers- pectiva , que vão fundamentar a sistematização de sua abor- dagem e a elaboração de sua narrativa .
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CAPÍTULO 2
ABORDAGEM: CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA, OBJETO E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A abordagem de Karl Marx A abordagem de Marx ainda adota uma concepção pré-científica, mas promove uma interpretação explicativa historicista e materialista. Partiu da filosofia da história e do método dialético de Hegel, concebendo que a humanidade evolui, em decorrência de etapas definidas, em certas direções pré-definidas, mas em sua visão a marcha histórica é para o comunismo e não para o Estado de tipo prussiano. Desenvolveu um embate teórico com o materialismo de Feuerbach, ao sofrer dupla influência, por um lado, da teoria econômica clássica de Adam Smith e David Ricardo e, por outro, do socialismo utópico de Saint Simon, Robert Owen, Charles Fourier e Joseph Proudhon. A abordagem de Marx parte da prerrogativa de que o conhecimento científico envolve teoria e práxis. Define que o conhecimento é uma elaboração inteligível da realidade e contém um potencial de mudança, ao evidenciar as opressões na realidade social e estabelecer bases teori81
camente fundamentadas às lutas políticas. Define que o conhecimento científico do real começa com a produção crítica de suas múltiplas determinações. Diferentemente da filosofia, o papel da ciência não é mais o de compreender a história, mas o de modificá-la. O modelo de interpretação dialético é concebido em três dimensões: tese, antítese, síntese. Esse último estágio expressa uma transformação com conservação, sintetizando elementos presentes na tese e na antítese. A síntese, por sua vez forma uma nova tese, que sofrerá efeito de nova antítese, e assim sucessivamente. Ao renegar o idealismo de Hegel, Marx promove uma inversão da dialética hegeliana. Enquanto para Hegel as transformações sociais decorrem de embates entre ideais na esfera ideológica e cultural, para Marx as transformações sociais decorrem de conflitos reais na esfera socioeconômica, induzindo mudanças também na esfera ideológica e cultural. Na visão de Marx, para analisar a evolução da sociedade humana, deve-se partir do exame empírico dos processos concretos da vida social que constituem a condição da existência humana. O autor proclama a necessidade de uma ciência concreta da sociedade, baseada no estudo da interação dinâmica e criadora entre homem e natureza, homem e ambiente material, dos homens entre si, do 82
processo criador através do qual o homem se faz a si mesmo
(GIDDENS, 2005, p. 53). Esse processo criador estaria estampado nas sociedades em que as relações de produção estão mais avançadas e uma profícua análise empírica deve ser empreendida sobre essas, uma vez que podem melhor evidenciar o futuro da humanidade. Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o modo de produção capitalista e as correspondentes relações de produção e de circulação. Até agora, a Inglaterra é o campo clássico dessa produção. Este o motivo por que a tomei como principal ilustração de minha explanação teórica. (...) A história é a teu respeito! Intrinsecamente, a questão que se debate aqui não é o maior ou menor grau de desenvolvimento dos antagonismos sociais oriundos das leis naturais da produção capitalista, mas estas leis naturais, estas tendências que operam e se impõem com férrea necessidade. O país mais desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura do menos desenvolvido (MARX, 2004b, p. 16).
O método de Marx preconiza que, ao estudar as sociedades, se parta de seus processos econômicos, que são relações que os homens estabelecem entre si para transformar a natureza em seu benefício. Porém, o método 83
de Marx não se restringe ao empirismo. Para o autor, o conhecimento da realidade social exige um conjunto de conceitos articulados, que tornam a visão do pesquisador mais sensível ao entendimento completo da realidade. No Prefácio de O Capital , explica que na análise das formações socioeconômicas, o pesquisador não pode utilizar nem um microscópio nem reagentes químicos. A capacidade de abs- tração substitui esses meios (MARX, 2004b, p. 16). Então as
teorias e os conceitos são “instrumentos” analíticos, que servem aos analistas sociais tal qual o microscópio serve aos biólogos. Nesse sentido, a prática de investigação envolve um encadeamento de ações: estudo teórico, seleção de conceitos, observação da realidade empírica, crítica conceitual, nova observação da realidade, interconexão de observações, formulação de novos conceitos, explicação abstrata repensada, nova teoria. Marx denomina a realidade empírica como “concreto em si”; e a realidade empírica representada no pensamento como “concreto pensado”. Através de aproximações sucessivas ao objeto empírico, o intelecto examina a realidade sob a orientação de conceitos, sem os quais a realidade apresentar-se-ia sempre e apenas como uma massa confusa de dados sem sentido. 84
O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida [...]. (Marx, 1999, p. 39-40).
Segundo o autor, o método de exposição das conclusões de um estudo difere do método de investigação. Este último representa as sucessivas incursões na realidade empírica, que permitem elaborar um “fio condutor”, ou seja, um modelo mental, que emerge durante o contínuo processo de investigação. Esse “fio condutor” difere da acepção de “hipótese”, uma vez que Marx o considerava mais do que isso: trata-se da elaboração mental sobre um conjunto de fenômenos empíricos (concreto em si) que vão sendo observados e que, ao serem demonstrados de maneira interconectada (concreto pensado), passam a representar uma “totalidade”, uma “explicação geral” sobre a realidade, que é tão reveladora que pode ser aplicada sobre a realidade, a fim de modificá-la. Marx pressupunha buscar compreender as relações sociais escondidas por detrás das relações sociais evidentes que estão a nossa volta.
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A abordagem de Émile Durkheim A abordagem de Durkheim adota uma concepção funcionalista de interpretação da realidade social. Partiu de uma filosofia interpretativa de vertente racionalista, que defendia a observação e a experimentação regulada pelo raciocínio indutivo. Nessa acepção, o conhecimento é resultado da concordância e da variação dos fenômenos que, se devidamente observados, apresentam a causa real dos fenômenos. A produção de conhecimento exige descrição dos fatos observados, registro de presenças das formas que se investigam, controle de situações nas quais as formas pesquisadas se revelam ausentes, comparação e classificação. A sociologia de Durkheim foi construída sobre a influência de importantes intelectuais e filósofos modernos e iluministas, tais como Francis Bacon, Condorcet, Rousseau, Saint Simon, August Comte, Montesquieu, Tocquevile, e em diálogo crítico com economistas e filósofos utilitaristas, como Spencer. A concepção de ciência adotada por Durkheim defende o conhecimento objetivo da realidade. A realidade social não pode ser explicada por ações individuais, apenas pela relação entre fatos sociais gerais. Nesse sentido, atribui à sociedade uma condição sui-gene- ris , isto é, como algo que existe fora dos indivíduos, por86
tanto, objetivo e observável. Não se trata de pensar “Leis” sociais universais, que ocorrem independente do tempo e do espaço, tanto que Durkheim nega o positivismo de Comte, todavia, podem-se descobrir relações generalizáveis entre fenômenos sociais. Durkheim defendeu a ideia de que a sociologia é uma ciência autônoma, que possui objeto – os fatos sociais – e métodos próprios – a experimentação indireta. Para Durkheim, a sociedade é um complexo integrado de fatos sociais. Esses fatos sociais devem ser tratados como “coisa”, o que exige a neutralidade do pesquisador. Essa neutralidade deveria ser atingida pela postura do cientista em apreender o objeto pela observação e experimentação indireta, eliminando o senso comum. Os fatos sociais são constatados na realidade empírica e evidenciados pelo pesquisador, uma vez que apresentam um conjunto de condições. São características do fato social a exterioridade, a coercitividade, a regularidade e a generalidade. Buscando desenvolver uma chave-interpretativa para a compreensão da realidade social, Durkheim concebe a ideia de fato social da seguinte forma: É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, que é geral na extensão de uma
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sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter (DURKHEIM, 2002a, p. 11).
Deve-se, pois, retomar a perspectiva de Durkheim e destacar sua preocupação para com os laços sociais que fazem com que os indivíduos vivam juntos, dado que Se a população se comprime nas cidades em lugar de se dispersar nos campos, é porque existe uma corrente de opinião, uma pressão coletiva que impõe aos indivíduos esta concentração. Não podemos escolher a forma de nossas casas, nem a de nossas roupas, pois uma é tão obrigatória quanto à outra (DURKHEIM, 2002a, p. 10)
Esses impulsos de que fala Durkheim, sejam representações simbólicas ou materiais, crenças ou ideais coletivos instituídos, são fatos sociais, isto é, o “objeto especial” e objetivo delineado pelo pesquisador. Considerando, então, que os fatos sociais representam forças sociais objetivas, que enlaçam os indivíduos e os colocam em interação, têm-se que, estes, devem ser objetos privilegiados de estudo da sociologia na medida em que,
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[...] há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos com caracteres nítidos, que se distingue daqueles estudados pelas outras ciências.
Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. [...] O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de moedas que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo nas relações comerciais, as práticas seguidas na profissão, etc., etc., funcionam independentemente do uso que delas faço. [...] Estamos, pois, diante de maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propriedade marcante de existir fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores ao indivíduo, são também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queira, quer não. Não há dúvida de que esta coerção não se faz sentir, ou é muito pouco sentida quando com ela me conformo de bom grado, pois então torna-se inútil, mas não deixa de constituir caráter intrínseco de tais fatos, e a prova é que se afirma desde que tento resistir. Se experimento violar as leis, estas reagem contra mim de maneira a impedir meu ato se ainda é tempo; com o fim de anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal se já se realizou e é reparável (DURKHEIM, 2004b, p. 46-47). 89
Em termos gerais, portanto, os fatos sociais devem ser entendidos como forças sociais que enlaçam os indivíduos, produzindo sobre eles um sentimento de complementação mútua, ou seja, um sentido de solidariedade. Essas “energias” sociais atuam sobre os indivíduos como uma imposição gratificante. O indivíduo segue os fluxos de valores e os padrões sociais porque sente que sua adesão a tais valores o conduz ao grupo; e ao fazer parte de uma coletividade, percebe que esse pertencimento lhe engrandece. Assim, Estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, que não existem senão na consciência individual e por meio dela. Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Esta é a qualificação que lhes convém; pois é claro que, não tendo por substrato o indivíduo, não podem possuir outro que não seja a sociedade: ou a sociedade política em sua integridade, ou qualquer um dos grupos parciais que ela encerra, tais como confissões religiosas, escolas políticas e literárias, corporações profissionais, etc. (DURKHEIM, 2004b, p. 48). 90
Os fatos sociais compreendem aquilo que se impõe aos indivíduos como ação que devem realizar sob “pena” de ficar de fora do conjunto social. A socialização é um exemplo concreto usado por Durkheim para demonstrar a eficácia dessas forças e energias que atuam sobre os indivíduos, onde, Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente, – observação que salta aos olhos todas as vezes que os fatos são encarados tais quais são e tais quais sempre foram. Desde os primeiros anos de vida, são as crianças forçadas a comer, beber, dormir em horas regulares; são constrangidas a terem hábitos higiênicos, a serem calmas obedientes; mais tarde, obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, respeitar usos e conveniências, forçamo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, esta coerção deixa de ser sentida, é porque pouco a pouco dá lugar a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil, mas que não a substituem senão porque dela derivam (DURKHEIM, 2004b, p. 48-49).
A abordagem de Durkheim prevê três formas de inserção empírica: o método funcionalista, o comparativo e o método das variações concomitantes. O primeiro é uma acepção mais geral que sugere a investigação de como 91
se mantém (conexões funcionais) a integridade do todo social (conjunto dos fatos sociais). O segundo envolve a experimentação indireta, segundo a qual um tema deve ser analisado em suas diversas dimensões e na comparação entre categorias, as diferenciações entre as categorias revelam evidências que servem de comprovação. O pesquisador deve “perseguir” as variações das séries de dados e informações para aproximar-se de explicações precisas de fatos da realidade social, o que significa administrar a prova. Finalmente, o método das variações concomitantes, pressupõe que uma mudança em um fato gera mudança em outro fato, demonstrando em que grau dois ou mais fenômenos podem ser relacionados. (MOCELIN & AZAMBUJA, 2011, p. 36) Essa abordagem sugere, portanto, buscar a causa que produz um dado fenômeno e a função que esse desempenha para a integração da sociedade. A explicação sociológica fundamenta-se, nessa acepção, em estabelecer relações de causalidade, ou seja, liga-se um fenômeno à sua causa ou uma causa a seus efeitos. A concepção metodológica proposta por Durkheim apresenta uma orientação empírico-indutiva, definindo que o pesquisador deve “ir do particular ao geral”, isto porque o dado empírico provoca uma sensação que, indutivamente, pode ser generalizada. 92
Durkheim também reconhecia que a ciência tinha o dever de auxiliar na resolução da crise moral decorrente de uma passagem incompleta da solidariedade mecânica para a orgânica. Nesse sentido reconhecia uma relação entre teoria e prática. Para tanto, propôs pensar a distinção entre fatos normais e patológicos. As noções de normal e patológico estão ligadas respectivamente à regularidade e à excepcionalidade no tempo e no espaço. Os fatos patológicos seriam expressos por fenômenos desconexos de uma determinada realidade social. Conforme explica Giddens (2001, p. 198), Durkheim acreditava que o sociólogo poderia exercer um papel tal qual o desempenhado por um clínico, ou seja, com uma habilidade para diagnosticar e sugerir “remédios” para os “males” de um organismo social. Essa atribuição seria importante, sobretudo, em situações de transição ou de crise social, em que novas instituições sociais surgem e outras se tornam obsoletas, podendo ser descartadas por não combinarem com os novos fluxos de valores e padrões sociais. A abordagem de Max Weber A abordagem de Weber deve ser entendida em meio a correntes de pensamento como o idealismo, o romantismo alemão, o antirracionalismo e a hermenêutica. We93
ber sofreu decisiva influência intelectual de pensadores como Kant, Herder, Dilthey, Nietzsche, Rickert, Tönnies e Marx e manteve interlocução com muitos outros, destacando-se Simmel e Sombart. Rejeitou o positivismo, o funcionalismo e a busca de “Leis” na explicação dos fenômenos sociais. Daí resulta sua reação crítica ao “otimismo” frente à “soberania” da razão, oriunda do Iluminismo. Sua abordagem, então, adota uma postura neokantiana, entendendo que qualquer construção mental que busca explicar um fenômeno da realidade, consiste na seleção e na “montagem” do material empírico, que obedece a estruturas subjetivas existentes na mente do cientista. Nessa acepção, toda elaboração conceitual seleciona alguns aspectos da realidade infinita e exclui outros. Essa “seleção” é orientada por meio de atribuição de valor pelo sujeito que investiga. Diante disso, o objeto do conhecimento reflete o repertório de valores de uma época, da cultura e do pesquisador. O conhecimento científico se torna possível a partir do momento em que o investigador seleciona da “realidade infinita” a parte finita que pode ser submetida à compreensão. A relação com valores define o primeiro momento do conhecimento científico. A validade dos conhecimentos científicos produzidos é restrita a uma dimensão parcial da realidade. O conhecimento é, portanto, 94
sempre questionável e jamais expressa uma “Lei natural”, uma verdade absoluta. Em razão desse pressuposto, Weber estabelece uma distinção entre juízos e ideias de valor. As ideias de valor referem-se aos ideais e aos interesses de uma época, são, portanto, sentidos analisáveis pelo observador. Os juízos de valor são questões morais, que se não controlados pelo pesquisador, desvirtuam o processo de pesquisa, expressando mais o “dever ser” do que a explicação. Para Weber a ciência pode produzir conhecimentos que permitam tecnicamente “dominar os acasos da vida” por meio de “previsões” e fornecer métodos de pensamento capazes de explicar as consequências que as escolhas humanas trazem. A ciência tem função de esclarecimento , mas não é capaz de dizer “o que fazer” e nem “como viver”, mas pode conduzir a uma maior clareza sobre os fenômenos da realidade social. Weber define a sociologia como “uma ciência que pretende entender, interpretando a ação social para, dessa maneira, explicá-la causalmente em seu desenvolvimento e efeitos”. Na explicação dos fenômenos sociais, a sociologia deve tomar como ponto de partida o indivíduo e a sua conduta. Porém, em Weber, o indivíduo não é só a pessoa, mas, também, organizações, coletividades e singu95
laridades históricas. Trata-se da análise de manifestações sociais concretas, marcadas por um contexto histórico e cultural singular. Os elementos básicos de análise da sociologia são a ação social e a relação social, onde, Por “ação” entende-se [...] um comportamento humano [...] sempre que e na medida em que o agente ou os agentes o relacionem com um senti- do subjetivo. Ação “social”, por sua vez, significa uma ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os agentes, se refere ao comportamento de outros , orientando-se por este em seu curso (WEBER, 1999, p. 3).
Weber define a ação social como a unidade elementar dos fenômenos sociais. Nessa definição está implicada a concepção de interação entre os agentes sociais, ou seja, os indivíduos agem com base na ação adequadamente interpretada dos outros. Se cada ato fosse derivado de uma interpretação errônea das expectativas sociais, não haveria padrões nos fenômenos sociais. A ação social deve ser considerada como uma cadeia motivacional: não é nem um ato isolado nem um ato espontâneo. Cada ato opera como fundamento do ato seguinte. A conduta é dotada de significado para quem a executa, e por essa razão é analisável. A análise de uma ação social, então, busca compreender o 96
sentido subjetivo da ação, que requer identificar o objetivo visado pelo agente, as motivações, os fundamentos da ação, os meios mobilizados. Após reconstruir os motivos da ação, é possível evidenciar as suas causas e identificar seus efeitos. Weber define quatro formas básicas de ação social. Na ação racional referente a fins, o agente envolve no curso de sua conduta o uso do cálculo para determinar os meios mais eficientes para atingir propósitos, trata-se fundamentalmente, da racionalidade formal ou instrumental. As características dessa forma de ação social a tornam explicável e as consequências decorrentes são essencialmente previsíveis. A ação racional referente a valores é determinada em seu curso pela crença consciente do agente em ideais e visões de mundo. Independente das consequências, o agente orienta sua conduta com base em ideias dominantes de dever, honra e dedicação a uma causa. Trata-se fundamentalmente de uma racionalidade substantiva ou da ética religiosa ou profissional. Por suas características, essa forma de ação social só pode ser compreendida. A ação social afetiva é determinada em seu curso por estados emocionais, crenças, fé, fundamentalmente refletindo irracionalidades. Nessa forma de conduta o significado da ação não se situa na instrumentalidade dos 97
meios para se alcançar determinados fins. A ação social tradicional é determinada pelos costumes, pela força do hábito, fundamentalmente trata-se de rotinas, quando o agente não controla nem fins nem consequências. Para Weber, todo evento social que se pretende explicar sociologicamente, deve ser considerado com base na combinação dessas formas de ação – ou em outras, observando quais se evidenciam com maior e menor regularidade, e, Podem ser observadas, na ação social, regularidades de fato, isto é, o curso de uma ação repete-se com o mesmo agente ou (às vezes simultaneamente) é comum entre muitos agentes, com sentido tipicamente homogêneo. Com estes tipos de cursos das ações ocupa-se a Sociologia, em oposição à História [...] (WEBER, 1999, p. 17-18)
Já a relação social, refere-se a ações sociais plurais, que expressam sentidos compartilhados e caracterizam-se por condutas efetivas, recorrentes e duradouras em determinado espaço, como usos, moda e costumes. Trata-se de um sistema de orientação da ação, em que os agentes estabelecem referências recíprocas de dominação, autoridade, competição e/ou cooperação, onde, 98
Por “relação” social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência. A relação social consiste , portanto, completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável (pelo sentido), não importando, por enquanto, em que se baseia essa probabilidade (WEBER, 1999, p. 16)
O termo relação social será usado para indicar o comportamento de uma pluralidade de atores. Consiste na existência de uma probabilidade de haver, em algum sentido compreensível, uma linha de ação social. A definição de “sociedade” também aparece, convencionalmente, associada à expressão rede de relações sociais, na qual se destaca o processo de interação social. Weber trabalha com duas formas básicas de relação social: Uma relação social denomina-se “relação comunitária” quando e na medida em que a atitude na ação social [...] repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo . Uma relação social denomina-se “relação associativa” quando e na medida em que a atitude na ação social repousa num ajuste ou numa união de interesses racionalmente motivados (com referência a valores ou fins). A 99
relação associativa, como caso típico, pode repousar especialmente (mas não unicamente) num acordo racional, por declaração recíproca. Então, a ação correspondente, quando é racional, está orientada: a) de maneira racional referente a valores, pela crença no compromisso próprio ; b) de maneira racional referente a fins pela expectativa da lealdade da outra parte (WEBER, 1999, p. 25).
A abordagem de Weber considera que as esferas sociais, as relações sociais, as organizações e as instituições, podem ser decompostas e analisadas através das formas regulares de ação e de relação social das quais são formadas. Não existem seitas sem seguidores, Igrejas sem fiéis, partidos sem militantes. Para tanto, propõe a integração de metodologias compreensivas e explicativas. O método compreensivo significa o entendimento do sentido que orienta a ação dos indivíduos. Trata sobre a dimensão comunitária das sociedades, a dimensão do sentido das coisas, das qualidades (justo-injusto, bem-mal, belo-feio). Abrange a análise da ação e interação dos indivíduos (nível micro), como também da cultura e dos sistemas éticos, como as religiões (nível macro). A compreensão da ação social enseja a interpretação do sentido subjetivo da ação. Esse é complementado pelo método explicativo, que significa a busca de séries causais, que inclui o uso da es100
tatística, com o objetivo de controlar a subjetividade inerente ao método compreensivo. Também seria o método mais adequado ao estudo da dimensão societária das sociedades. Em termos de procedimentos metodológicos, a abor- dagem de Weber sugere a elaboração do “tipo ideal”, que significa o uso de conceitos abstratos “puros”, construídos teoricamente para definir com clareza o que se estuda, por exemplo, burocracia, ética calvinista, patrimonialismo, dominação legítima. Os tipos ideais são instrumentos teóricos, que consistem na articulação de inferências indutivas e dedutivas racionais, voltados para a compreensão da ação e das relações reais, No que se refere à investigação, o conceito do tipo ideal propõe-se formar o juízo de atribuição. Não é uma “hipótese”, mas pretende apontar o caminho para a formação de hipóteses. Embora não consti- tua uma exposição da realidade, pretende conferir a ela meios expressivos unívocos. É, portanto, a “ideia” da organização moderna e historicamente dada da sociedade numa economia de mercado, idéia essa que evolui de acordo com os mesmos princípios lógicos que serviram, por exemplo, para formar a da “economia urbana” da Idade Média à maneira de um conceito “genético”. Não é pelo estabelecimento de uma média dos princípios 101
econômicos que realmente existiram em todas as cidades examinadas, mas antes, pela construção de um tipo ideal, que neste último caso se forma o conceito de “economia urbana” [...] Qual é, em face disso, a significação desses conceitos de tipo ideal para uma ciência empírica, tal como nós pretendemos praticá-la? Queremos sublinhar desde logo a necessidade de que os quadros de pensamento que aqui tratamos, “ideais” em sentido puramente lógico, sejam rigorosamente separados da noção do dever ser, do “exemplar”. Trata-se da construção de relações que parecem suficientemente motivadas para a nossa imaginação e, consequentemente, “objetivamente possíveis”, [...]. [...] o tipo ideal é acima de tudo uma tentativa para apreender os indivíduos históricos ou os seus diversos elementos em conceitos genéticos. (WEBER, 2004c, p. 106-109).
Para o autor, a construção de tipos ideias favorece uma visão mais ampla da realidade social, pois implica proposições conceituais que expressam a singularidade dos eventos sociais. O tipo ideal implica a escolha de um problema, que o pesquisador julga relevante, e a comprovação exaustiva do conceito a partir de evidências empíricas. Negando a objetividade pura da ciência, Weber entende que os conceitos sociológicos são carregados de subjetividade e, por isso, não derivam diretamente da realidade, exigindo a pressuposição de valores. Os concei102
tos são construídos para ilustrar configurações históricas, singularidades temporais e espaciais, e por isso não podem refletir propriedades universalmente gerais da realidade. O tipo ideal não deve ser confundido com a realidade. Ele é uma síntese abstrata, uma interpretação, e não se presta a fundar “Leis” gerais. [...] resulta ser tanto mais natural e necessário repetir a tentativa de construir novos conceitos de tipo ideal, com a finalidade de tomar consciência de aspectos significativos sempre novos das relações (WEBER, 2004c, p. 113).
Deve-se apreender, então, que a abordagem de Weber parte do indivíduo e de sua ação e não de realidade objetiva, diferenciando-se, nesse ponto, fundamentalmente das abordagens propostas por Marx e Durkheim. A abordagem de Georg Simmel A fim de evidenciar suas preocupações e de analisar os fenômenos sociais que privilegiou, Simmel desenvolveu uma abordagem sistemática para a análise e compreensão da realidade social, que expressa as suas inclinações filosóficas, as influências e os debates intelectuais que tra103
vou. A abordagem de Simmel deve ser entendida em meio a correntes de pensamento como o idealismo, o romantismo alemão, o antirracionalismo e a hermenêutica. Simmel sofreu decisiva influência intelectual de pensadores como Kant, Herder, Dilthey, Nietzsche, Rickert, Tönnies e Marx e manteve interlocução com muitos outros, destacando-se Weber e Sombart. Rejeitou o positivismo, o funcionalismo e a busca de “Leis” na explicação dos fenômenos sociais. Daí resulta sua reação crítica ao otimismo frente a soberania da razão, oriunda do Iluminismo. Sua abordagem, então, adota uma postura neokantiana, entendendo que qualquer construção mental que busca explicar um fenômeno da realidade, consiste na seleção e na montagem do material empírico, que obedece às estruturas subjetivas existentes na mente do cientista. Nessa acepção, toda elaboração conceitual seleciona alguns aspectos da realidade infinita e exclui outros. O conhecimento é, portanto, sempre questionável e jamais expressa uma “Lei natural”, uma verdade absoluta e objetiva. Seu interesse analítico fundamental volta-se para as interações sociais a partir do indivíduo, entendido como o elemento derradeiro da análise social. Em sua interpretação, os fenômenos sociais não se constituem como uma realidade externa e objetiva a ser observada e apreendida pelo pesqui104
sador, mas perpassa sempre o sujeito, como lócus central, no qual as diferentes esferas da realidade se interpenetram. A sociedade, para Simmel, não constitui um sistema ou organismo autônomo, mas antes reflete um conjunto consolidado – institucionalizado e cristalizado – de ações recíprocas que condicionam o comportamento individual (RITZER, 2002). Simmel dedicou-se a estudar aspectos sociológicos fundamentais, refletindo sobre os determinantes quantitativos da vida social, mas, sobretudo, dedicou-se ao estudo qualitativo da relação entre a vida urbana e as individualidades. Ele sempre buscou interpretar as ações e interações individuais, consagrando-se pelas concepções de formas de interação (por exemplo, conflito, cooperação, dominação) e os tipos de interatores (por exemplo, o estrangeiro, o pobre, a prostituta, o miserável, o ganancioso, o estranho, as sociedades secretas, os clubes sociais). Essas formas são ob jetivadas pelos próprios atores sociais, em alguns casos, em processos de sociabilidade. Muitos críticos de sua contribuição à sociologia acusavam-no de falta de rigor metodológico. Em alguns pontos de seus textos, inclusive, Simmel expressa “opiniões” suas a respeito do mundo, subsidiando argumentos com base em relatos de experiências pessoais, motivo pelo qual sua obra pode ser considerada, por alguns, carente em fundamentação empírica. 105
No entanto, por mais que tenha demonstrado interesse por múltiplos fenômenos e que tenha escrito sobre diferentes assuntos, Simmel não foi tão assistemático quanto parece, podendo ser identificadas as mesmas ideias e critérios metodológicos em todos os seus livros (MORAES FILHO, 1983, p. 19). Uma das principais problemáticas que perpassa toda sua obra é a resposta à pergunta: “ Como é possível a socieda- de? ”. A sociedade é resultante das ações e reações dos indivíduos entre si, isto é, por suas interações. Moraes Filho (1983, p. 21) demarca o campo da Sociologia simmeliana afirmando que Como ciência empírica, a sociologia deve ter por campo ou objeto a multiplicidade de interações, numa incessante vida de aproximação e de separação, de consenso e de conflito, de permanente vir-a-ser. A sociedade não é algo estático, acabado; pelo contrário, é algo que acontece, que está acontecendo. O objeto da sociologia são esses processos sociais, num constante fazer, desfazer e refazer, e assim, incessantemente. É através das múltiplas interações uns-com-os-outros, contra-os-outros e pelos-outros, que se constitui a sociedade, como realidade inter-humana.
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Esta ideia ainda pode ser complementada pela observação de Alcântara Jr. (2006a, p.184-5): [...] viria o princípio kantiano atender ao esforço explicativo acerca das formas e dos conteúdos das forças de integração e desintegração nos conjuntos sociais. Na análise simmeliana, as formas de sociação estarão prenhes de energias, entre as quais aquelas consideradas “energias de repulsa”, que, em contato com as “forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergência de interesses” produziriam formas e distinções grupais. Essas criam estruturas proporcionadoras de delimitações sociais, como, por exemplo, os confinamentos: espaços sociais reservados às identidades sociais constituintes nas sociedades; indicam particularidades dos indivíduos aglutinados em searas, constituídos de estruturas conflituosas, consequentemente, forjando a vida social sob essa condição.
O objeto sociológico é o conjunto das interações e formas sociais, entendidas como uma realidade inter-humana, construída pelas múltiplas interações uns com outros, contra os outros e pelos outros. Nas palavras de Simmel (2006, p. 15), “o conceito de sociedade significa a interação psíquica entre os indivíduos.” Nesse sentido, pode ser avaliada a importante categoria de sociação na sua obra. Nem socialização, nem associação, “o processo 107
básico de sociação é constituído pelos impulsos dos indivíduos, ou por interesses ou objetivos, e pelas formas que essas motivações assumem” (MORAES FILHO, 1983, p. 21). No entanto, não são esses impulsos e interesses a finalidade da investigação sociológica, mas sim o seu resultado social efetivo, ou seja, as formas que se originam da interação conduzida pelas motivações humanas, as próprias motivações cristalizadas em formas sociais das quais elas derivam. As formas sociais, invariavelmente, representam expressões e manifestações humanas, são sempre microcosmos em constituição e movimento. Essas formas é que dão sentido à definição de sociologia formal proposta por Simmel, então seria propriamente o estudo de tais formas a finalidade da sociologia. No artigo intitulado Como as formas sociais se mantêm , publicado em 1898, na revista científica L’Année Sociologique, dirigida por Émile Durkheim, Simmel (1983a, p. 47) defendia:
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Dizer a respeito dos fins econômicos, religiosos, políticos, etc., pelos quais essas sociações começam a existir, cabe a outras ciências. Então, de vez que toda sociação humana ocorre visando tais fins, de que modo conheceremos as formas e as leis próprias da sociação? Reaproximando as sociações destinadas às mais diferentes finalidades e liberando aquilo que elas têm em comum. Des-
se modo, todas as diferenças apresentadas pelos fins especiais em torno dos quais as sociedades se constituem, se neutralizarão mutuamente, e a forma social será a única a sobressair. [...] Quando essas inúmeras formas de sociação humana tiverem sido estabelecidas, indutivamente, e se houver encontrado seu significado psicológico, somente então se poderá pensar em resolver a questão: que é uma sociedade.
Neste sentido, as condições espaciais da sociação assumem caráter explicativo central na obra de Simmel. A qualidade e o desenvolvimento da sociação passam pelos fatores espirituais que aproximam, unem, distanciam ou separam as pessoas ou os grupos. São as condições espaciais (naturais, demográficas, políticas, econômicas, ideológicas, etc.) que mobilizam os impulsos de agregação. A abordagem proposta por Simmel (1983b, p. 59-60) fundamenta-se na ideia de que as pessoas e os grupos enredam-se, atraem-se, repelem-se, manifestando-se e reconhecendo nesses movimentos, em seu infinito conjunto, conformando o meio social, pois A sociedade existe onde quer que vários indivíduos entram em interação. Esta ação recíproca se produz sempre por determinados instintos (Trieben) ou para determinados fins. Instintos eróticos, religiosos ou simplesmente sociais; fins de defesa 109
ou ataque, de jogo ou ganho, ganho, de ajuda ou instrução, instrução, estes e infinitos outros fazem com que o homem se encontre num estado de convivência com outros homens, com ações a favor deles, em conjunto com eles, contra eles, em correlação de circunstâncias com eles. Numa palavra, que exerça influência sobre eles e por sua vez as receba deles. Essas interações significam que os indivíduos, nos quais se encontram aqueles instintos e fins, foram por eles levados a unir-se convertendo-se numa unidade, numa “sociedade”. Pois unidade em sentido empírico nada mais é do que interação de elementos.
A sociação é, portanto, constituída tanto por conteúdos (interesses, motivos, proposições, etc.) como é, ela própria, a forma que esse conteúdo assume. Deve-se ter em vista que o que Simmel (1983b, p. 60) designa como matéria ou conteúdo da sociação é “tudo quanto exista nos indivíduos [...] – como instinto, interesse, fim, inclinação, inclinação, estado ou movimento psíquico –, tudo enfim capaz de originar a ação sobre outros ou a recepção de suas influências”. Os indivíduos, portanto, estabelecem entre si relações sociais guiadas por um conjunto diverso de motivações (amor, impulso, interesses, fé, ideologia) que constituem o conteúdo das relações sociais. A partir dessas motivações os indivíduos desenvolvem determinadas formas de interação, que os auxiliam a conferir ordem e 110
sentido ao mundo, constituindo uma unidade – forma, ob jeto de estu estudo do da soci sociolo ologia. gia. A soci sociedad edadee existe a parti partirr de interações e da consciência dessa interação por parte dos indivíduos. A personalidade do indivíduo encontra-se, por sua vez, permeada por diversos círculos sociais, que lhe condicionam a consciência na medida em que, como escreve Simmel (1983c, ( 1983c, p.165-6), Em qualquer sociedade humana pode-se fazer uma distinção entre seu conteúdo e sua forma. [...] a própria sociedade em geral se refere à interação entre indivíduos. Essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos. Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxílio ou instrução, e incontáveis outros, fazem com que o homem viva com ouros homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando desse modo, reciprocamente, as suas condições – em resum resumoo, para inf influenc luenciar iar os outro outross e para ser influenciado por eles. A importância dessas interações está no fato de obrigar os indivíduos que possuem aqueles instintos, interesses, etc., a formarem uma unidade – precisamente, uma “sociedade”. Tudo o que está presente nos indivíduos (que são os dados concretos e imediatos de qualquer realidade histórica) sob a forma de impulso, interesse, propósito, inclinação, estado 111
psíquico, movimento – tudo o que está presente neles de maneira a mediar ou engendrar influencias sobre outros, ou que receba tais influências, designo como conteúdo, como matéria, por assim dizer, da sociação. Em sim esmos, essas matérias com as quais a vida é preenchida, as motivações que a impulsionam, não são sociais. sociais. Estritamente falando, nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade, nem tecnologia, nem as funções e resultados da inteligência são sociais. São fatores de sociação apenas quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados em formas específicas de ser com e para um outro – formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação. Desse modo, a sociação é a forma (realizada de incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses. Esses interesses, quer sejam sensuais ou ideais, temporários ou duradouros, conscientes ou inconscientes, causais ou teleológicos, formam a base das sociedades humanas.
Então, como vimos, vimos, quando Simmel fala em sociologia formal, refere-se sempre a uma sociologia das formas sociais; por sociologia pura entende a análise das formas corriqueiras e cotidianas de sociação. A interpretação dessas formas não deixa de se aproximar dos tipos ideais desenvolvidos na metodologia de Max Weber, embora com uma sutileza mais direcionada às emoções individuais. 112
Conforme explica Moraes Filho (1983, 21-2), No processo de sociação, há que distinguir entre forma e conteúdo. [...] e só ela deve ser o próprio e particular objeto da sociologia, deixando os múltiplos conteúdos concretos para as outras ciências sociais – o direito, a economia, a moral, a história, etc. A isso chamou Simmel de sociologia formal, [...] A sociologia, para Simmel, seria como a geometria, que somente ela “determina o que é realmente espacialidade nas coisas espaciais”. [...] Simmel frisa, no entanto – [...] – que ao chamar a sociologia de “geometria espacial”, apresenta somente uma metáfora. A forma e o conteúdo são, de certo cer to modo, inextricáveis, inseparáveis, inseparáveis, podendo a primeira ser construído apenas por abstração, como acontece no trabalho de qualquer ciência. Não há formas vazias, como não há conteúdos sem forma. As formas puras podem nunca ser encontradas na história; são obtidas pela exageração de certas características dos dados reais, até o ponto em que se tornem “linhas e figuras absolutas”. Funcionam como “tipos-ideais”.
Ao desenvolver estudos em âmbito microssociológico, Simmel rompe com a pretensão sociológica de apreender, de modo causal, leis relativamente estáveis para a explicação das relações sociais. De forma distinta, busca aquilo que não parece utilitário, as pequenas sutilezas da 113
ação que fazem o ser humano ter a satisfação e o desejo de manter-se vivendo em interação com outros. Tal concepção microssociológica fica evidente na seguinte passagem de sua obra quando escreve: “Vejo uma sociedade em toda parte onde os homens se encontram em reciprocidade de ação e constituem uma unidade permanente ou passageira” (SIMMEL, 1983c, p. 48). Assim, o autor aproxima-se de outros campos do saber, como a psicologia e a antropologia, reconhecendo que a “sociologia geral”, por si só, não é suficiente para a explicação dos fenômenos sociais. Pode-se dizer, nesse sentido, que ele produz um rompimento com o ideal positivista de uma sociologia que pretende oferecer explicações amplas, universais e totalizantes aos fenômenos sociais, naturalmente sem desprezar esse tipo de “sociologia política”. A sociologia proposta por Simmel (1983b, p. 71-2) se debruça sobre as reações humanas mais espontâneas derivadas da exposição das personalidades ao meio circundante, manifestações existenciais quase instintivas, formas de sociabilidade permanentemente inventadas pelos homens a partir de suas experiências sociais, pois
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Em geral, a Sociologia se tem limitado a estudar aqueles fenômenos sociais nos quais as forças recíprocas dos seus portadores imediatos já se cris-
talizaram em unidades, ideais pelo menos. Estados e associações sindicais, sacerdócios e formas de família, constituições econômicas e organizações militares, grêmios e municípios, formação de classes e divisão industrial do trabalho – estes e outros grandes órgãos e sistemas pareciam constituir a sociedade, preenchendo o círculo de sua ciência. [...] em organizações objetivas, surgindo assim uma existência abstrata, situada mais além dos processos individuais primários. [...] [mas] Ao lado dos fenômenos visíveis que se impõem por sua extensão e por sua importância externa, existe um número imenso de formas de relação e de interação entre os homens, que, nesses casos particulares, parecem de mínima monta, mas que se oferecem em quantidade incalculável e são as que produzem a sociedade, tal como a conhecemos, intercalando-se entre as formações mais amplas, oficiais, por assim dizê-lo. [...] O que dificulta a fixação científica dessas formas sociais, pouco visíveis, é ao mesmo tempo o que as faz infinitamente importantes para a compreensão mais profunda da sociedade: é o fato de que, em geral, não estão assentadas ainda em organizações fortes, supraindividuais, e sim que nelas a sociedade se manifeste, por assim dizer, em status nascens, naturalmente não em sua origem primeira, historicamente inexeqüível, mas no que traz consigo cada dia e cada hora. Constantemente se ata, se desata e se ata de novo a sociação entre os homens, num constante fluir e pulsar, que encadeia os indivíduos, ainda que não chegue a formar 115
organizações propriamente ditas. Trata-se aqui dos processos microscópico-moleculares, por assim dizer, que se oferecem no material humano, mas que constituem o verdadeiro acontecer, mas que mais tarde se organiza ou hipostasia naquelas unidades e sistemas fortes, macroscópicos.
Temos, então, os fundamentos de uma microssociologia, que busca interpretar as formas de sociabilidades cotidianas – sociação, que na perspectiva de Simmel efervescem nas grandes metrópoles modernas de maneira jamais registrada na história da civilização. O acelerado processo de urbanização, a crescente intensidade de contatos humanos e a ebulição permanente de experiências agitam o meio social, desencadeando e estimulando, veloz e consequentemente, a potencialidade da interação e da agregação. A sociabilidade é esse jogo de interações espirituais entre os indivíduos para a produção de “unidades”, formas sociais, coligações para enfrentar a desafiante intensidade da ordem social. Mais uma vez, destaca-se a proposta simmeliana da interpretação microssociológica da vida social. A ampla dimensionalidade da vida humana moderna estabelece interações sociais incalculáveis, que evidentemente podem prefigurar relações conflitivas, relações de interesse mútuo, relações de subordinação ou dominação. Cabe desta116
car que para Simmel, o conflito também é concebido como algo benéfico à constituição social, porque é um momento que sinaliza o desenvolvimento da tomada de consciência individual, que teria uma função positiva para sociedade como um todo, principalmente à medida que o conflito fosse superado, mediante acordos. Da mesma forma, a competição é um espaço de aprendizado social. Neste sentido, no interior da abordagem simmeliana, a moda constitui-se numa ilustração típica do fenômeno da sociação ou ação recíproca. Na interpretação de Simmel, a moda configura-se num elemento dual e contraditório que permite a expressão do individualismo moderno dando liberdade ao sujeito para manifestar sua singularidade. Ao mesmo tempo a moda, entendida como ação social recíproca entre indivíduos, configura uma relação social que permite estabelecer fronteiras e pontes entre distintos grupos sociais. Ao interpretar o fenômeno da moda, Simmel (1998b, p. 164-5) evita utilizar-se do componente de hierarquização, evita uma visão reducionista da moda como conflito de classes: A essência da moda reside no fato de que sempre apenas uma parte do grupo a pratica; a totalidade, no entanto, fica a meio caminho dela. Ela nunca é, mas é sempre um vir a ser. Tão logo ela seja
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dominante, ou seja, tão logo aquilo que apenas alguns poucos praticavam passe a ser praticado por todos sem exceção, como elementos do vestuário ou das formas de contato social, não se pode mais falar em moda. Desse fato - de que a moda como tal não pode ter alcance geral - é que surge no indivíduo a satisfação que a moda representa, na medida em que o particulariza como algo especial, enquanto, ao mesmo tempo, ele é carregado pela multidão que anseia o mesmo - e não como em outras formas de satisfação social da totalidade de efetivos fazedores do mesmo. Por conta disso, é que a mentalidade que permeia o modismo exprime uma mistura bem temperada entre aprovação e inveja. A moda toma-se, dessa forma, a arena por excelência dos indivíduos, os quais não são autônomos no seu íntimo e no seu conteúdo pessoal, que necessitam da aprovação social, ao mesmo tempo que sua autoestima exige distinção, atenção e o sentimento de ser algo especial. Ela eleva de certo modo também o insignificante, na medida em que o faz representante de um coletivo, sentindo-se portador de um espírito geral.
A abordagem de Simmel sobre a moda dá-se em termos de diferenciação e imitação, traçando uma associação mais vinculada aos impulsos e desejos dos grupos, do que uma associação entre consumo, ostentação de bens e afirmação de status social. Sem desconsiderar essa dimensão real, o autor enfatiza a existência de tensões na difusão da 118
moda, na medida em que, por meio desta, combinam-se desejos de conformidade, individualismo, igualdade social e diferenciação individual. E, neste sentido, para Simmel (1998b, p. 166-7), O significado sociológico do modo de expressar, simultaneamente, tanto o impulso para a igualdade quanto para a individualidade, tanto o estímulo para a imitação quanto para a distinção. [...] Principalmente as pessoas jovens demonstram uma extravagância surpreendente na sua maneira de apresentar-se, um interesse sem fundamento real de produzir-se que domina todo seu círculo de consciência e desaparece da mesma forma irracional como apareceu. Isso pode ser chamado de moda pessoal, que constitui um caso-limite da moda social. [...] As classes e os indivíduos mais nervosos que pressionam por mudanças reencontram na moda o ritmo dos seus próprios movimentos psicológicos: ela possui uma curva de consciência muito aguda, precisamente por chamar para si, de forma muito forte, a atenção, por significar uma radicalização momentânea de consciência social para um certo ponto.
Disto decorre que, na busca por diferenciação, os indivíduos acabam por aproximar-se de alguns a quem se igualam por seus gostos e afastar-se de outros, gerando 119
um ciclo permanente de coesão e dispersão que confere lógica e sentido à vida individual no ambiente social na medida em que, como escreve Simmel (1998b, 169-70), Toda moda singular aparece como se quisesse viver para sempre. Quem compra hoje um mobiliário, que deve durar um quarto de século, compra-o de acordo com a última moda sem sequer considerar aquela que vingava dois anos antes. No entanto, depois de alguns anos, o estímulo dessa moda já teria passado, ficando para ambas outros critérios de avaliação. Parece realizar-se aqui um processo dialético-psicológico: sempre existe uma moda, ou seja, a moda como um conceito geral é imortal e está refletida em todas as suas conformações particulares, apesar de a essência dessas manifestações particulares residir precisamente no fato de elas não serem passageiras; [...]. O que existe de picante na atração estimulante da moda é o contraste entre sua ampla proliferação, que a tudo abarca, e seu caráter de rápida e fundamental transitoriedade.
No ensaio sobre a Sociologia do segredo e das socie- dades secretas , escrito em 1905, Simmel (2009a, p. 219) exemplifica outras formas puras de sociação, destacando como exemplo a necessidade que os indivíduos possuem de conhecer os outros e suas expectativas para que se desencadeie a interação recíproca quando coloca que 120
Todas as relações das pessoas repousam sobre a precondição de que elas saibam alguma coisa urna sobre a outra. O comerciante sabe que o seu concorrente quer comprar ao preço mais baixo e vender a um preço mais alto. O professor sabe que pode transmitir ao seu aluno uma certa qualidade e uma certa quantidade de informação. Dentro de cada estrato social, o indivíduo sabe aproximadamente que medida de cultura esperar do outro indivíduo. Em todas as relações de tipo diferenciado, desenvolvem-se, o que chamamos com reservas óbvias, intensidade e clareza ou sombreamento, a depender do grau em que cada parte se revela a outra através de palavras e de atos.
Ainda nessa direção, é interessante observar o argumento de Simmel (2009a, p. 223) sobre a importância de elementos como a empatia e a confiança, os quais considera como importantes e fundamentais para a formação de grupos sociais quando escreve que Num grau maior do que estamos acostumados, a vida civilizada moderna desde o sistema econômico que se toma cada vez mais uma economia de credito até a procura da ciência em que a maior parte dos pesquisadores termina usando inúmeros resultados obtidos por outros e não diretamente sujeitos à verificação - depende da fé na honra dos outros. Baseamos as nossas decisões
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mais serias num sistema complicado de concepções, cuja maioria pressupõe a confiança de não estarmos sendo enganados. Assim, a prevaricação nas circunstancias modernas se toma muito mais devastadora e ameaça muito mais os fundamentos da vida, do que no caso anterior. Se a mentira fosse para nós tão permissível quanto o foi entre as divindades gregas, os patriarcas hebreus ou os ilhéus dos Mares do Sul, se a extrema severidade da lei moral não o impedisse, a construção progressiva da vida moderna seria simplesmente impossível, pois a vida moderna é, num sentido mais do que econômico, urna “economia de crédito”.
No entanto, o autor chama a atenção também para a ideia do segredo como elemento constitutivo da vida social. Ou seja, entende que o conhecimento recíproco não é a única condição das relações sociais, a ocultação recíproca também funda as interações, uma vez que A evolução histórica da sociedade se manifesta em muitas partes, pelo fato de muitas coisas que antes eram públicas, entrarem na esfera protetora do segredo; e inversamente, muitas coisas que antes eram secretas, chegarem a prescindir desta proteção, tornando-se manifestas. É uma evolução do espírito que se assemelha a outra em virtude da qual, atos que antes se realizam conscientemente, descem depois ao nível inconsciente e mecânico, enquanto ao contrário, o que antes era inconscien122
te e instintivo, ascende à consciência e à visibilidade. [...] O sentido negativo que se atribui moralmente ao segredo não nos deve induzir ao erro. O segredo e uma forma sociológica geral que se mantém neutra e acima do valor dos seus conteúdos. Por um lado assume o valor mais alto, o pudor delicado da alma refinada que oculta o melhor de si para não receber louvores nem recompensas, que se por um lado outorga o prêmio justo, por outro sombreia aquele valor. Mas por outra parte, se o que é secreto não está ligado ao mal, o mal se associa ao que e secreto. Por razões fáceis de alcançar, o imoral se esconde, mesmo quando não há punição social a temer. (SIMMEL, 2009a, p. 236)
O segredo é a ocultação consciente e voluntária sobre coisas, informações que podem ser restritas a grupos, e muitas vezes o fundamento de sua coesão. No entanto, o que é ou não é oculto varia entre os grupos, podendo ou não ser modificado com o tempo, tanto no que é interno ao grupo quanto no que é externalizado pelo grupo. O segredo pode ser, portanto, o elo fundamental e a garantia do fortalecimento identitário do grupo e dos indivíduos nos grupos na medida em que, como escreve Simmel (2009a, 237-8), O segredo outorga uma posição excepcional à personalidade; exerce uma ação social determinada, em princípio independente do seu conteúdo, ainda que, como é natural, cresça segundo a importância
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e a dimensão do que é secreto. [...] Toda personalidade e obra eminentes, têm para o comum dos homens um caráter misterioso. [...] Do mistério e do segredo que rodeiam tudo o que é profundo e importante, surge a falácia de que tudo o que e secreto deva ser também profundo e importante. [...] Com esses atrativos do segredo, se combinam de modo singular os do seu oposto lógico, a traição, que tem, evidentemente, não menos que os outros, um caráter sociológico. O segredo contém uma tensão que se dissolve no momento da revelação. [...] O segredo também se faz acompanhar do sentimento de que não o podemos atraiçoar, o que nos põe nas mãos o poder de produzir mudança e surpresas, de causar alegrias e promover destruições, ainda que seja a nossa própria ruína. Por isso o segredo ocorre envolto na possibilidade e na tentação da revelação; e com o risco externo de que seja descoberto, se combina este intento de desvelá-lo [...] O segredo levanta uma barreira entre os homens; mas, ao mesmo tempo, a tentação de romper essa barreira, por indiscrição ou por confissão, acompanha a vida psíquica do que é secreto [...] Por isso, a significação sociológica do segredo encontra seu modo de realização, sua medida prática, na capacidade ou na inclinação do sujeito para guardá-lo ou, se se quer, na sua resistência ou fraqueza diante da tentação de atraiçoa-lo.
É fundamental perceber a aproximação de Simmel aos fenômenos mais corriqueiros, mas ao mesmo tempo es124
sencialmente constitutivos da sociedade e da vida coletiva. Em um ensaio sobre A refeição , o autor afirma que de tudo o que os seres humanos têm em comum, o mais comum é que precisam comer e beber. Este seria o elemento mais egoísta e também o mais imprescindível ao indivíduo. Por ser algo humano absolutamente universal, esse elemento fisiológico torna-se necessariamente conteúdo manifesto de ações sociais compartilhadas, permitindo o surgimento da refeição como ente sociológico. Segundo o olhar simmeliano, entendida como forma social, a refeição alia a frequência de estar junto e o costume de estar em companhia ao egoísmo do ato de comer; um evento marcado pelo primitivismo fisiológico e pela inevitável universalidade própria da esfera das ações sociais recíprocas. Assim, a refeição conjunta toma um sentido suprapessoal e adquire um enorme valor social que foi histórica e espacialmente se transformando de modo que, com isso [...] surge o nexo que permite que a simples exterioridade física da alimentação se apoie, não obstante, no princípio de uma ordem infinitamente maior: na medida em que a refeição se torna um assunto sociológico, ela assume formas mais estilizadas, mais estéticas e mais reguladas supraindividualmente. Formam-se então todas as prescrições sobre comer e beber, e isto não
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em uma perspectiva secundária sobre a comida como matéria, mas com respeito à forma de sua consumação. Entra em cena, em primeiro lugar, a regularidade das refeições. [...] Com tudo isso, uma regra formal é imposta acima das carências variáveis do indivíduo: a socialização da refeição a eleva ao grau de uma estilização estética, que atua de volta sobre este. Pois onde se exige uma satisfação estética, além da necessidade de saciar-se, é necessário que ocorra um investimento, que a comunidade de muitos pode realizar não apenas antes do indivíduo isolado, como também interiormente, antes de fazer dele o portador regular daquela satisfação (SIMMEL, 2004, p. 160-1).
Deve-se perceber que na abordagem simmeliana a relação entre atos estritamente fisiológicos, pessoais, individuais e sociais está colocada como um jogo dialético perene. É da natureza humana a necessidade de comer, como é da natureza humana ser sociável, portanto, a refeição é uma forma social eminente, uma vez que
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Ter que comer é uma trivialidade muito primitiva e baixa, própria do desenvolvimento dos nossos valores vitais, indubitavelmente comum a cada indivíduo. E isto justamente que possibilita a reunião dos indivíduos para compartilhar uma refeição e, nessa oportunidade, desenvolver um tipo de socialização que permite a superação do simples naturalismo do ato de comer. Se esse ato não fosse em si tão baixo,
também não teria sido buscada essa ponte, através da qual se alçou até a significância da refeição sacrificial, até a estilização e a estetização de suas formas mais elaboradas (SIMMEL, 2004, p. 165).
Em outro ensaio, Simmel (2009b, p. 243) estuda entidades sociológicas muito tênues que entende como opostas e vinculadas, como o indivíduo “mão-aberta” e o “miserento”, dando especial ênfase às figuras do avarento e do esbanjador quando coloca que O avarento é aquele que encontra satisfação na posse mais intensa do dinheiro, sem proceder à aquisição ou ao desfrute de objetos específicos. O seu senso de poder e assim mais profundo, mais perigoso e mais precioso para ele do que o domínio sobre objetos específicos pudesse jamais ser. [...] Os prazeres do avarento são quase que estéticos. [...] Conheci certa vez um homem que não sendo mais muito jovem e vindo de uma família abastada, passava o tempo todo aprendendo o que pudesse – línguas as quais nunca falou, danças soberbas que nunca praticou; realizações de todo tipo de que nunca fez uso nem nunca quis usar. Essa é precisamente a característica do avaro: a satisfação com a posse completa de uma potencialidade sem jamais pensar na sua realização.
No ensaio em destaque, deve-se observar que, em sua abordagem, primeiro define o avarento e depois o esbanja127
dor, para depois aproximar suas formas, sem desconectá-los do meio circundante em que ambos estão constituídos de modo que, como escreve Simmel (2009b, p. 245-6), O esbanjador se parece muito mais ao avarento do que a sua aparente polarização poderia indicar. [...] O perdulário na economia monetária (que só é significativo para uma filosofia do dinheiro) não é alguém que sai distribuindo seu dinheiro tolamente, mas o usa para compras desnecessárias, não apropriadas às suas circunstancias. O prazer do gasto deve ser diferenciado do prazer no usufruto passageiro dos objetos, da ostentação e da ansiedade na alteração da compra e do consumo. O prazer do gasto depende simplesmente do instante da troca de dinheiro por quaisquer coisas. Para o perdulário, a fascinação do instante obscurece a avaliação racional do dinheiro ou de mercadorias. A esta altura, a posição do gastador no nexo instrumental fica clara. O objetivo de gozar da posse de um objeto é precedido por dois momentos – primeiro a posse do dinheiro e segundo a troca desse dinheiro pelo objeto dese jado. Para o avarento, o primeiro pode até ser um fim prazeroso em si; para o perdulário, o segundo. O dinheiro é quase tão importante para o perdulário como para o avarento estando a diferença na atitude da posse, mais do que no seu gasto. A sua apreciação do seu valor se revela no instante em que o dinheiro se transforma em outros valores; 128
a intensidade desse sentimento e tão grande que compra o usufruto desse momento em detrimento de todos os valores mais concretos.
É interessante perceber o modo como Simmel trabalha estas formas sociais, estabelecendo as diferenças ente elas, mas ao mesmo tempo mostrando as pontes que às interconectam em um mesmo meio social. O mesmo é evidente na análise do estrangeiro: O estrangeiro é visto e sentido, então, de um lado, como alguém absolutamente móvel. Como um su jeito que surge de vez em quando através de cada contato específico e, entretanto, singularmente, não se encontra vinculado organicamente a nada e a ninguém, nomeadamente, em relação aos estabelecidos parentais, locais e profissionais. De outro lado, a expressão para esta constelação de significados encontra-se na objetividade do estrangeiro. Porque este não é determinado a partir de uma origem específica para os componentes singulares de um social, ou para as tendências unilaterais de um grupo. Vai além, faz frente a estes com uma atitude particular “objetiva”, que significa não uma simples distância e indiferença, mas um fato especial da distância e da proximidade. Fato especial dado pela relação ambígua entre insensibilidade e envolvimento (SIMMEL, 2005a, p. 267). 129
O autor transpõe conceitos metafísicos em elementos estruturais de observação. Exemplo disso são as noções de porta e de ponte , as quais metaforicamente revelam limites, fragmentos, liberdade, separação e possibilidade de aproximação e associação.
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Na relação com um “estrangeiro” ou “estranho”, em um sentido positivo, porém, o que existe é um não-relacionamento. Nos contatos possíveis ele, o estranho, é sempre considerado como alguém de fora, como um não membro do grupo, portanto, as relações se dão a partir de um certo parâmetro de distanciamento objetivo, mas partindo das características essenciais de que também ele é um membro de um outro determinado grupo. Como tal, os contatos com ele são, ao mesmo tempo, estreitos e remotos, na fragmentação das relações por onde uma abstrata igualdade humana em geral se encontra. Entre estes dois elementos em contato cria-se, no entanto, a consciência de haver conjuntamente uma tensão específica, ou geral e difusa, e mais precisamente, da existência de algo não comum, embora afável a um determinado acento específico, e possível de promover as relações desejadas. Este é, contudo, o caso de um país, de uma cidade, de etnias estranhas, ou outros tipos vários e, de forma alguma, se refere a questões individuais, porém, a uma estranha, difusa e abstrata origem, que seria comum a muitos estrangeiros ou, talvez, que poderia ser. Nestes termos, os estranhos não são to-
mados como indivíduos, mas como estrangeiros de um certo tipo socialmente definido. A distância em relação a ele não é mais abstrata e geral, se baseia agora em elementos socialmente objetivados em relação aos quais se dão às possibilidades de proximidade. (SIMMEL, 2005a, p. 270).
Esse modelo de interpretação será frequentemente utilizado pelo autor, para a análise das mais diversas formas sociais. Ele quer deixar sempre evidente que embora as formas sociais sejam e se constituam essencialmente distintas, todas são individualidades que se desenvolvem em relação com outras como respostas ao meio ou espaço em que estão colocadas (SIMMEL, 2013). A originalidade da sociologia de Simmel reside na sua insistência em demonstrar que as pessoas vivem promovendo um universo de formas, e não apenas sob o domínio de crenças, de ideologias e da razão; vivem, sobretudo, na multiplicidade da própria vida cotidiana. O foco do autor não é na dimensão histórica da modernidade, mas nas formas, nos modos, nas percepções e nas experiências da própria realidade social, no fluxo contínuo de momentos e de circunstâncias. Segundo Waizbort (2007, p. 16), Simmel aparece como um sociólogo importante ou muito importante, ao lado de outros, no processo de definição, circunscrição, constituição e
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legitimação da sociologia como ciência e/ou campo autônomo de problematização e investigação. Simmel é reconhecido como um dos patriarcas da disciplina, que precisa, portanto, ser de algum modo minimamente conhecido por todos.
Sua sociologia envolve importantes dimensões da análise sociológica. A proposição inicial da sociologia formal refere-se à interpretação e análise das formas sociológicas. A referência a essas formas indica também uma sociologia dos indivíduos nos grupos sociais, que por sua vez aponta para uma sociologia estética, preocupada com as expressões e as configurações do comportamento humano nos espaços (SIMMEL, 2013). Pode-se ir ainda mais longe, e constatar uma sociologia dos jogos, que contempla tanto a análise da interação e da ação recíproca como dos propósitos e das intenções. Considerando, ainda, que Simmel reporta à natureza das formas sociais fins que produzam alguma satisfação ao participante da interação, temos representada também a eminência de uma sociologia das emoções. Esses são os pontos centrais que fundamentam a sistematização de sua abordagem e que embasam a elaboração de sua narrativa .
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CAPÍTULO 3
NARRATIVA: CONCEPÇÃO TEÓRICA E CONCEITUAL SOBRE A VIDA SOCIAL
A narrativa de Karl Marx Para Marx, todo fenômeno econômico é simultaneamente um fenômeno social e a existência de determinado tipo de economia pressupõe, necessariamente, a existência de uma ordem social específica (GIDDENS, 2005, p. 38). A narrativa proposta por Marx funda-se na ideia de que as condições de produção, características do capitalismo, são generalizáveis a todas as formas de economia. O autor tinha convicção de que todas as sociedades rumavam para o capitalismo, uma vez que esse era o primeiro sistema social e econômico de difusão mundial. A constituição dessa economia de produção e de trocas de larga escala e global foi, na visão de Marx, consequência de um longo processo histórico, baseado no “trabalho livre” e na sua venda, o qual culminou no capitalismo. Contudo, entendia-o como um sistema de produção histórico específico, característico de uma época, como outros sistemas históricos que o antecederam na história. Diante desse postulado, Marx 133
entendia que o capitalismo não podia ser considerado como uma formação social definitiva e, tal como os sistemas que o precederam, tinha um caráter transitório. Conforme explica Giddens (2005, p. 51-52), Marx entendia que Feuerbach propusera uma ideia de importância decisiva, quando demonstrou que a filosofia idealista de Hegel não passava de uma religião, que deveria ser condenada como qualquer outra forma de alienação humana. Marx embasa sua perspectiva sobre uma dialética entre o homem em sociedade (sujeito) e o mundo material (objeto), através da qual os homens iriam subordinando progressivamente o mundo material aos seus propósitos, transformando esses propósitos e gerando novas necessidades. Para encadear sua narrativa, Marx parte do pressuposto filosófico de que a consciência humana é condicionada pela relação dialética entre sujeito e objeto, na qual o homem forma o mundo em que vive, sendo por outro lado, por ele formado também. Marx define a história como um processo de criação, satisfação e recriação contínua das necessidades humanas. O trabalho é o intercâmbio criador entre os homens e o seu ambiente, mas a relação entre os indivíduos e o seu ambiente material é mediada pelo tipo de sociedade em que esses homens vivem (GIDDENS, 2005, p. 52). 134
Marx considerava que a característica fundamental para a compreensão da sociedade, seria a forma pela qual os homens reproduzem suas condições de existência. A narrativa de Marx assenta-se sobre uma proposição teleológica da realidade social, o que significa que o desenvolvimento da sociedade aponta para um destino. Nesse sentido, entende que a história posterior é finalidade da história anterior, que já traz em seu seio as lutas que a conduzirão a um novo estágio, uma vez que, A história não é outra coisa senão a sucessão das diferentes gerações, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações que a antecederam; assim, por um lado, prossegue em condições completamente distintas a atividade anterior, enquanto, por outro, transforma as circunstâncias anteriores por meio de uma atividade completamente diferente (...) (MARX & ENGELS, 2004a, p. 77).
Essa narrativa define que a história direciona-se, etapa após etapa, em direção ao comunismo, utopia social pouco definida pelo autor, mas que marcaria o fim da pré- -história humana , quando as atividades sociais ainda são externamente definidas, impostas e contraditórias com as expectativas humanas (MARX & ENGELS, 2004a, p. 57135
58). Segundo Marx, dissidências dessa natureza aparecem como estímulos ou resistências da marcha das sociedades para o comunismo. Essas circunstâncias são mais evidentes nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, pois estariam mais próximas de uma revolução inédita, uma vez que, na Inglaterra, é palpável o processo revolucioná- rio (MARX, 2004d, p. 17). O materialismo histórico encerra uma abordagem sobre a dinâmica das transformações sociais. Esse historicismo dialético sugere uma autoprodução permanente da sociedade, guiada pela ação conflituosa de classes sociais antagônicas. Todavia, essa ação não é autoevidente para os “atores individuais”, uma vez que ela se expressa em razão das condições existenciais que grupos humanos oprimidos compartilham. Ao compartilhar uma forma de existência sob a qual um grupo de homens está sujeito, esses grupos adquirem uma consciência comum que os conduz a lutar contra a opressão que sofrem e pela transformação de suas condições existenciais, onde, os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, lega- das e transmitidas pelo passado (MARX, 2007, p. 19).
A crise de um modo de produção, e sua consequente substituição por um novo modo de produção, requer 136
condições objetivas e políticas. A história é definida como um movimento contínuo, marcado pelo desenvolvimento histórico de associação coletiva, mas que não depende das vontades individuais. Nesse sentido, Marx dedica-se à análise da “totalidade” social, onde apenas a conjugação de grupos na forma de classes sociais, podem impulsionar os processos mais gerais de transformação social. Aqui as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesses de classe (MARX, 2004b, p. 18).
A dinâmica interna da sociedade se explica pelo movimento que a conduz a um estágio mais avançado. Tal movimento é um embate contínuo entre novas e velhas gerações, entre o passado e o futuro, entre a tradição e a inovação. A luta entre as classes sociais conformam o “motor da história”, ou seja, o princípio gerador das mudanças ocorridas ao longo do desenvolvimento da humanidade. Na visão de Marx, o mesmo ocorreu nas passagens do comunismo primitivo para o feudalismo, do feudalismo para o mercantilismo, do mercantilismo para o capitalismo, e do capitalismo para o comunismo social. O trecho abaixo expressa, nas próprias palavras de Marx, o encadeamento que dá a sua narrativa : 137
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O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e a qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode
ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim. Assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do julgamento que ele se faz de si mesmo, da mesma maneira não se pode julgar uma época de transformação a partir de sua própria consciência; ao contrário, é preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vida material, a partir do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as formas produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade (MARX, 1999, p. 52)
As relações de produção formam a base material da sociedade. Essa base material constitui a “infraestrutura” da sociedade, sob a qual se ergue uma “superestrutura”, ou seja, instituições jurídicas (Direito, definição de propriedade), políticas (Estado) e ideológicas (arte, religião e moral) que visam garantir o funcionamento da ordem social dominante. A infraestrutura é formada por forças produtivas (tecnologia, ferramentas, máquinas, técnicas, tudo aquilo 139
que permite a produção) e por relações de produção (relações que estabelecem arranjos sociais para produção, reprodução e circulação de mercadorias). Ao se desenvolverem, as forças produtivas produzem contradições, que no caso do capitalismo, ocorrem entre os proprietários e os não-proprietários dos meios de produção. O conflito produz novas relações de produção, que já se delineavam no interior da sociedade antiga. Com isso, a superestrutura também se modifica e abre-se possibilidade de revolução social. Ao conceber o conceito de fetichismo, Marx define que o capital é um conjunto de relações entre os seres humanos que, no entanto, aparece à consciência alienada como um sistema de “coisas”. A mentalidade burguesa faz completa abstração das pessoas, sentimentos, projetos, substituindo estas realidades vivas por pseudorrealidades mortas: mercadoria, dinheiro, produtos, onde, A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho. (...) Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (...) É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias (MARX, 2004b, p. 94). 140
Marx defende a ideia de que o poder produtivo do capitalismo alça o desenvolvimento da humanidade a um patamar que não existiu em qualquer outro sistema de produção anterior. No entanto, a organização das relações sociais que acompanham o modo de produção capitalista impede, sobretudo, a realização dessas possibilidades históricas. O caráter do trabalho alienado não constitui, portanto, expressão da tensão entre o homem na natureza e o homem em sociedade, mas sim da tensão entre o potencial gerado por uma forma específica de sociedade – o capitalismo – e a realização frustrada desse potencial. (GIDDENS, 2005) A produção capitalista, para Marx, é um processo que extrai a parte humana e animal do trabalhador e só devolve a parte animal por meio do salário, que garante sua subsistência. Em razão disso, todo o sistema cresceria em complexidade, conhecimento, informação e riquezas, enquanto a maior parcela da população permaneceria em condição subumana. Nesse sentido, o “capital” representaria um volume imensurável de criação humana, que é produzido pelos homens e acumulado na forma de sociedade, mas que não é aproveitado por todos os homens. O comunismo tornar-se-ia, então, uma nova etapa histórica (utópica) de realização plena da humanidade, ao permitir a todos os homens o usufruto de toda a criação humana. 141
Mesmo tendo buscado explicar o impressionante dinamismo da sociedade burguesa e seus limites, Marx não considerou a também intrínseca capacidade do capitalismo se reinventar. A narrativa de Émile Durkheim Em sua narrativa , Durkheim adota um tipo de historicismo, mas não é propriamente evolucionista, substitui a ideia de evolução pela de função. Durkheim entende as sociedades como formações particulares, renegando uma visão de que a humanidade ruma para uma sociedade universal. As sociedades tendem sim a traçarem caminhos diferenciados, mas sempre dependem de mecanismos de integração. Para esse autor, as sociedades “crescem” constituindo arranjos cada vez mais complexos. Esse crescimento é resultado de um adensamento social, que se expressa pelo aumento do volume social (relações, comunicação e trocas) e do volume material e humano (riqueza, conhecimento, demografia). Para Durkheim, a sociedade não é o produto da soma de consciências, ações e sentimentos individuais. Ainda que o todo seja composto de partes individuais, origina uma série de fenômenos que dizem respeito ao todo diretamente. 142
Nesse sentido, reconhece a existência de uma consciência coletiva. O homem se tornou humano porque se tornou sociável, sendo capaz de aprender hábitos e costumes para poder conviver em um grupo social. Essa “aprendizagem” está na gênese da socialização, processo por meio do qual a consciência coletiva é internalizada durante a vida do indivíduo. A socialização imputa aquilo que habita nas mentes individuais e que serve para orientar a ação humana, seus sentimentos e comportamentos. Assim, tudo o que as pessoas sentem, pensam ou fazem, reflete um comportamento socialmente estabelecido. Não é algo imposto, mas é algo partilhado, que existe antes e que continua depois e que não é resultado de simples escolhas pois, O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; pode-se chamá-lo de consciência coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um único órgão; ela é, por definição, difusa em toda extensão da sociedade; mas não tem menos caracteres específicos que a tornem uma realidade distinta. Com efeito, ela independe das condições particulares em que se encontram os indivíduos; estes passam e ela permanece. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes e nas pequenas cidades, nas mais diferentes profissões. Da mesma forma, 143
não muda a cada geração mas, ao contrário, enlaça umas às outras e as gerações sucessivas. Ela é portanto uma coisa inteiramente diferente das consciências particulares, ainda que não se realize senão nos indivíduos (DURKHEIM, 2004c, p. 74)
A solidariedade social é a grande responsável pela coesão surgida entre os indivíduos, mas ela não produz apenas homogeneidade, mas também individualidade. Os indivíduos socializados apresentam duas consciências, uma individual, representando-os no que têm de mais pessoal e distinto, e outra coletiva, que é comum aos grupos humanos, mas que age e que “vive” nos indivíduos. As sociedades se mantêm integradas devido à simbiose de duas formas de solidariedade. A solidariedade mecânica ou por semelhança que reduz o indivíduo, pois todos os membros da comunidade partilham os mesmos costumes e valores. As normas são definidas no direito repressivo e o desvio de pensamento e conduta em relação à “consciência coletiva” é punido. A consciência coletiva é muito forte nas sociedades mais simples, homogêneas e com divisão natural do trabalho. Por sua vez, a solidariedade orgânica ou por diferença, que é característica das sociedades modernas, promove a individuação dos membros da sociedade. As normas se expressam no direito restitutivo e o desvio de conduta é erro e pode ser compensado. É marcada pela ampliação da 144
divisão do trabalho social em especialização e profissões. A divisão do trabalho social é uma forma complexa de configuração social em que a divisão das tarefas cria uma interdependência muito forte entre os atores que ocupam papéis sociais. Diferente da solidariedade mecânica em que os indivíduos são ligados por um forte sentimento de pertencimento ao grupo, típico das sociedades tradicionais, na solidariedade orgânica os atores sociais estão ligados entre si por dependência recíproca, fundadas em suas atribuições, mas que ao mesmo tempo lhe fornecem uma personalidade perante o corpo coletivo em que [...] os indivíduos estão agrupados não mais segundo suas relações de descendência, mas segundo a natureza particular da atividade social a que se consagram. O meio natural e necessário não é mais o meio natal, mas o meio profissional. Não é mais a consanguinidade, real ou fictícia, que marca o lugar de cada indivíduo, mas a função que ele desempenha. Sem dúvida, quando essa nova organização começa a aparecer, tenta utilizar e se assimilar à já existente. [...]. Os segmentos ou pelo menos os grupos de segmentos unidos por afinidades especiais tornam-se órgãos (DURKHEIM, 2004d, p. 90-91).
O adensamento material e o moral da sociedade provocam um processo de diferenciação social, que promove o 145
reconhecimento e a constituição de diferenças entre grupos ou categorias de indivíduos. A modernidade, então, apresenta duas tendências marcantes que são a diferenciação social e uma crescente autonomia dos atores sociais. Esta autonomia constitui o processo de individuação, que só é possível ao homem em sociedade, Se, portanto, o homem concebe ideais, se não pode mesmo prescindir de concebê-los e a eles se ligar, é porque ele é um ser social. É a sociedade que o impulsiona ou o obriga a erguer-se acima de si mesmo, e é ela também que para tanto lhe fornece os meios. Ao mesmo tempo em que toma consciência de si, ela arrebata o indivíduo de si mesmo e arrasta-o a um círculo de vida superior. Ela não pode se constituir sem criar um ideal. Esses ideais são simplesmente as ideias com as quais se pinta e se resume a vida social, tal como ela existe nos pontos culminantes de seu desenvolvimento. Diminui-se a sociedade quando nela se vê apenas um corpo organizado a fim de cumprir certas funções vitais. Nesse corpo vive uma alma: é o conjunto dos ideais coletivos. Mas esses ideais não são abstrações, frias representações intelectuais, despidas de qualquer eficácia. São essencialmente motores; porque, atrás deles, existem forças reais e ativas: são as forças coletivas e, por conseguinte, forças naturais, ainda que sejam todas forças morais, e comparáveis àquelas que agem no resto do universo (DURKHEIM, 2004a, p. 59) 146
Durkheim entende a sociedade como uma estrutura sistêmica, ou seja, existem mecanismos perenes que mantêm a integração das formações sociais históricas. Por conseguinte, a sociedade também se compõe de conteúdo, ideias, normas e valores que são historicamente variáveis na medida em que Uma sociedade não pode criar-se nem recriar-se sem criar, ao mesmo tempo, alguma coisa de ideal. Essa criação [...] é o ato pelo qual ela se faz e se refaz periodicamente. [...] A sociedade ideal não está fora da sociedade real; faz parte dela. [...] uma sociedade não é constituída simplesmente pela massa de indivíduos que a compõem, pelo solo que ocupa, pelas coisas de que se serve, pelos movimentos que realiza, mas, antes de tudo, pela ideia que ela faz de si mesma (DURKHEIM, 1989, p. 500).
A sociedade é uma entidade “sagrada” para os indivíduos que dela participam e que é periodicamente revificada e celebrada pelos seus membros, pois Não pode haver sociedade que não sinta a necessidade de conservar e reafirmar, a intervalos regulares, os sentimentos coletivos e as ideias coletivas que constituem a sua unidade e a sua personalidade. Ora, essa restauração moral só 147
pode ser obtida por meio de reuniões, assembleias, congregações onde os indivíduos, muito próximos uns dos outros, reafirmam em comum os seus sentimentos comuns, daí, cerimônias que, por seu objetivo, pelos resultados que produzem, pelos procedimentos que empregam, não diferem, quanto à natureza, das cerimônias propriamente religiosas (DURKHEIM, 1989, p. 504-505).
Sendo a sociedade uma entidade “sagrada” para aqueles que a compõem, existem ideais que as consagram. No caso das sociedades modernas, a concepção de “indivíduo” assume um caráter também sagrado. Ao tratar sobre o tema da moral cívica, Durkheim estabelece uma relação intrínseca entre o Estado moderno e o individualismo moral, ao afirmar que a atividade do Estado é essen- cialmente libertadora do indivíduo (DURKHEIM, 2002b, p. 80). O Estado é uma instituição que regula as ações, a fim de manter a ordem, ao mesmo tempo em que garante o respeito ao indivíduo, possibilitando sua expressão própria, afinal é pelo Estado e só por ele que os indivíduos existem moralmente (DURKHEIM, 2002b, p. 89). Para o autor, deve-se admitir, então, uma relação de causa e efeito entre o avanço do individualismo moral e o avanço do Estado. Se nas sociedades tradicionais o indivíduo era absorvido pela sociedade, a qual servia docilmente, tendo 148
seu destino subordinado ao destino do ser coletivo, nas sociedades modernas tal relação é diferente: Quanto mais avançamos na história, mas vemos as coisas mudarem. Antes perdida no seio da massa social, a personalidade individual se destaca dela. O círculo da vida individual, antes restrito e pouco respeitado, amplia-se e torna-se o objeto eminente do respeito moral. O indivíduo adquire direitos cada vez mais extensos a dispor de si mesmo, das coisas que lhe são atribuídas, a se fazer do mundo as representações que lhe pareçam mais convenientes, a desenvolver livremente sua natureza (DURKHEIM, 2002b, 78-79).
Considerando que as sociedades são cada vez mais formadas por grupos sociais com interesses diversos, Durkheim entende que as regulações garantidas pelo Estado moderno são permanentemente rearranjadas. Sendo o Estado moderno emergente, uma força coletiva, ela é contrabalanceada por outras forças coletivas, que se expressam pelos novos grupos sociais nascentes. A inter-relação entre essas novas forças coletivas, desencadeiam mudanças institucionais e promovem as liberdades individuais. A ampliação do Estado e de suas funções deriva, portanto, da maior diferenciação social e resulta em maior reconhecimento de expressões individuais, uma vez que 149
o Estado não é por si mesmo um antagonista do indivíduo. O individualismo só é possível por meio dele, embora ele só possa servir à sua realização em condições determinadas. Pode-se dizer que é ele que constitui a função essencial. Foi ele que subtraiu a criança à dependência patriarcal, à tirania doméstica, foi ele que livrou o cidadão dos grupos feudais, mais tarde comunais, foi ele que livrou o operário e o patrão da tirania corporativa (DURKHEIM, 2002b, p. 89).
O individualismo moral torna-se, portanto, um substrato das sociedades modernas que é institucionalizado ao mesmo tempo em que é cultuado coletivamente. Em sua narrativa , Durkheim defende a ideia de que todas as sociedades, independentemente do seu tipo, vivem de cultos e de rituais. Os rituais são mecanismos funcionais perenes. Todavia, cada tipo específico de sociedade, seja no espaço ou no tempo, apresenta variação nos conteúdos de tais rituais. Se os rituais são uma constante funcional em todas as formações humanas, a variação em seu conteúdo expressa uma infinidade de ideais humanos e a reformulação contínua dos mesmos. Os ideais cultuados pelas sociedades, podem variar muito rapidamente, especialmente nas sociedades modernas, gerando até mesmo, com certa frequência, períodos de crise moral, mas que tenderão a se (re)arranjar e, 150
Se hoje encontramos talvez, alguma dificuldade para imaginar em que poderão consistir essas cerimônias no futuro é porque atravessamos uma fase de transição e de mediocridade moral. As grandes causas do passado, aquelas que entusiasmavam os nossos pais, não provocam mais em nós o mesmo ardor, seja porque entraram para o uso comum a ponto de se tornarem inconscientes para nós, seja porque já não correspondem às nossas aspirações atuais; e no entanto não se produziu ainda nada que as substituísse. [...] Os antigos deuses envelhecem ou morrem [...]: é da própria vida, e não de um passado morto, que pode surgir um culto vivo. Mas esse estado de incerteza e de agitação confusa não poderá durar eternamente (DURKHEIM, 1989, p. 505).
Os ideais coletivos também propiciam uma interpretação individual dos mesmos. Deve-se relembrar que Durkheim dedica-se a analisar a origem do “culto” que a sociedade moderna promove ao indivíduo. Esse é um dos aspectos positivos que o autor vê na modernidade e não por acaso, destina muito de sua narrativa para o esclarecimento desse novo fenômeno. A personalidade individual emana dos ideais coletivos e permite que os indivíduos também tenham ideais, a partir do momento em que entendem que: 151
[...] foi na vida coletiva que o indivíduo aprendeu a idealizar. Foi assimilando os ideais elaborados pela sociedade que se tornou capaz de conceber o ideal. Introduzindo-o na sua esfera de ação, a sociedade fê-lo contrair a necessidade de se alçar acima do mundo experimental e fornecer-lhe ao mesmo tempo os meios de conceber um outro mundo. Pois esse mundo novo ela o construiu ao construir-se a si mesma, visto que ela o exprime. Assim, tanto entre os indivíduos como no grupo, a faculdade de idealizar nada tem de misteriosa. Ela não é uma espécie de luxo que o homem poderia dispensar, mas uma condição de sua existência. Ele não seria um ser social, isto é, não seria um homem, se não a tivesse adquirido. Sem dúvida, os ideais coletivos, ao se encarnarem nos indivíduos, tendem a individualizar-se. Cada um os entende à sua maneira e lhes empresta sua feição; eliminam-se alguns elementos e acrescentam-se outros. O ideal pessoal deriva pois do ideal social, na medida em que a personalidade individual se desenvolve e se torna uma fonte autônoma de ação. Mas se pretendemos compreender essa atitude, tão singular na aparência, de viver fora da realidade, basta referi-la às condições sociais de que depende (DURKHEIM, 2004e, p. 171).
Na sequência dessas afirmações, Durkheim faz alusão ao conceito de efervescência, que promove um movimento muito dinâmico a sua concepção de mudança so152
cial, mas que é muito pouco ou não referido por grande parte de seus comentadores. Segundo Durkheim, Virá um dia em que as nossas sociedades conhecerão novamente horas de efervescência criadora, durante as quais novos ideais surgirão, novas fórmulas aparecerão e, por certo tempo, servirão de guia para a humanidade; e essas horas, uma vez vividas, os homens sentirão espontaneamente a necessidade de revivê-las de tempos em tempos, pelo pensamento, ou seja, conservar a sua lembrança por meio de festas que revivifiquem regularmente os seus frutos. [...] Não há evangelhos que sejam imortais e não há razão para se acreditar que a humanidade seja doravante incapaz de conceber outros (DURKHEIM, 1989, p. 505-506).
Émile Durkheim relacionava as mudanças sociais com momentos de intensa agitação coletiva, definindo o conceito de efervescência para explicar o processo de constituição das diferentes ordens sociais, a partir de períodos de instabilidade generalizada. O autor explica que toda sociedade que busca constituir uma regularidade de organização, passa por processos de alta concentração energética, onde as consciências individuais se aproximam. Nesses movimentos circunstanciais, ações e pensamentos múltiplos são compartilhados, proporcionando 153
um estado de êxtase que visa criar uma concepção de sagrado, ordenadora de estabilidade. Ou seja, juntos, os indivíduos munem-se de energias para elaborar uma ideia de equilíbrio da ordem social que desafia uma ordem caótica ou anômica preexistente. Partindo da análise sobre as formações sociais mais simples, Durkheim elaborou uma teoria sobre a coesão social e a forma como são consubstanciadas as normas e regras morais que efetivam tal coesão, sobretudo destacando que momentos de entusiasmo vivificam a vida social. Representações coletivas, tidas pelos membros de uma sociedade como simbologias “sagradas”, promovem o enlace dos indivíduos e os conduzem a se aproximarem uns dos outros, e o mesmo observa-se nas sociedades mais modernas. Durkheim não concebeu em sua narrativa uma sociedade ideal e não fez referências ao destino da humanidade. A narrativa de Max Weber A narrativa de Weber é a menos linear entre os clássicos. O autor não se ateve a investigar fenômenos sociais como “totalidades”, ou enquanto mecanismos de integração. Analisou diversos fenômenos como probabilidades, sem necessariamente estabelecer um encadeamento 154
comum entre os mesmos. No entanto, pode-se perceber na sua concepção, uma preocupação com fenômenos originais e especificidades das sociedades ocidentais, ao evidenciar um processo que vincula os seguintes fenômenos: racionalização, dominação e desencantamento. Weber entende que a sociedade moderna ocidental é produto de um processo histórico difuso, porém constante e de longa duração: a racionalização das esferas de ação. A sociedade moderna ocidental tem suas raízes em processos de racionalização diversos, por exemplo, a racionalização do conhecimento com o nascimento da filosofia na Grécia Antiga; a racionalização das Leis com o Direito Escrito Romano; a racionalização das trocas econômicas com a emergência do dinheiro e do sistema de preços. Tal processo pode ser definido como a crescente organização racional das condutas individuais, nas diferentes esferas sociais, por meio de normas, princípios e regras cada vez mais impessoais e formais. A racionalização denota, portanto, um processo no qual as relações sociais são estruturadas por ações sociais racionais em detrimento das formas tradicionais e afetivas. Weber acreditava que as pessoas cada vez mais pautam suas ações em atitudes racionais, preocupados com a eficácia e as consequências futuras, afastando-se de cren155
ças, costumes e hábitos ancestrais. O processo de racionalização não tem uma origem determinada ou é causado por um fator específico e, sim, manifesta-se em diferentes esferas da vida (economia, política, religião, ciência). Para Weber o capitalismo é uma evidencia da racionalização da vida humana, e sua formação é marcada pela ascensão de duas organizações de grande escala: a ciência e a burocracia. A ciência promove conhecimento e técnicas e repercute na eficiência ante as circunstâncias da vida, sendo uma marca distintiva do Ocidente. A burocracia, por sua vez, é a expressão da eficiência do aparato administrativo, baseada na rotina legal operatória das organizações capitalistas e do Estado moderno; é o modo mais eficiente de organizar grandes populações. Para Weber, entidades como as organizações e as instituições existem na medida em que o sentido da ação da qual são formados, é compartilhado pelos indivíduos que participam de sua produção, portanto, existem porque as ações que os reproduzem fazem sentido aos indivíduos, isto é, são legitimas. Nesta perspectiva, a legitimidade de uma ordem envolve relações de poder que são imputadas às formações sociais. Weber entende o poder como toda a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, sofrendo resistência ou não. A dominação é a probabilida156
de de encontrar obediência a uma determinada ordem. A disciplina é a probabilidade de encontrar obediência automática a uma ordem. Weber define três formas de dominação que ocorrem nas sociedades. A dominação legal ocorre quando o dominado obedece a leis e estatutos externos; tipicamente, é a dominação burocrática. Essa dominação é característica das formações associativas e depende de aparatos e procedimentos racionais e as ações são impessoais, efetivadas “sem ódio nem paixão”. Seus fundamentos são a formalidade e a previsibilidade. O sistema de poder é compartimentalizado horizontal e verticalmente pelas atribuições dos cargos. A liderança decorre da competência técnica. A dominação tradicional ocorre quando a vontade do líder é internalizada na forma de valores e esses são passados às gerações seguintes como uma ordem imutável. Envolve uma relação entre o “senhor” e seus “súditos”. É característica das relações servis, aristocráticas, comunitárias e familiares, como a dominação patriarcal. Essa forma de dominação mobiliza a fidelidade e requer a obediência a lideranças “santificadas” pela tradição. As ações são reguladas por relações pessoais e privilégios. A dominação carismática ocorre quando o dominado é fascinado pelas virtudes extraordinárias de um líder. 157
Essa forma de dominação fundamenta-se na irracionalidade do dominado. O carisma está na mente de quem o sente e não no sujeito carismático, por isso, o dominado acredita que o líder é capaz de tudo. O carisma permite romper com estruturas tradicionais de valores. Contudo, o surgimento de um líder carismático é imprevisível. Todas essas formas de dominação são recorrentes na história ocidental. Porém, Weber entendia que a modernidade produz um excesso de racionalidade societária e formalista. A burocracia, o capitalismo, a técnica e a ciência moderna são elementos que compõem o processo histórico e difuso de racionalização. Nesse sentido, sua narrativa ficou fortemente marcada pela ideia de que a modernidade tem produzido uma cotidianização do mundo legal, formal, racional e cientificista, produzindo o esvaziamento da tradição e do carisma. Weber tinha grande receio sobre o risco de uma crescente rotinização “fria” e estanque da vida humana. Temia que a sociedade moderna pudesse estar caminhando rumo a uma realidade tecnocrática que regularia todas as esferas da vida social e esmagaria o espírito humano. Denominou tal processo como “desencantamento do mundo”. Weber chegou a sugerir que os movimentos socialistas poderiam ser uma expressão da racionalização do mundo, uma vez 158
que promoveriam sociedades baseadas no planejamento eficiente da distribuição da produção humana. Em sua narrativa , Weber entende que a realidade social deve ser entendida enquanto um conjunto de possibilidades históricas, dado que é marcada pela diversidade cultural e institucional. Nega as visões teleológicas sobre a realidade social, partindo da premissa que não existem “Leis” que determinam o curso da História. Em sua sociologia, enfatiza o estudo das singularidades históricas, combinações específicas de fatores econômicos, políticos e culturais, que possuem “afinidades eletivas”, ou seja, entende que alguns fenômenos caminham conjuntamente, desencadeando um processo em que se autoimplicam, porém, esses variam conforme as realidades sociais específicas. De toda forma, não podemos perder de vista o foco de Weber nas ações sociais e na formação de individualidades históricas. O autor reconhece que o universo humano se caracteriza pela existência de ideias incompatíveis e irredutíveis
(GIDDENS, 2005, p. 195). A realidade social não segue um caminho certo, nem trilha um destino programado; nem mesmo a ciência pode mudar essa condição. A realidade social deve ser entendida como realizações humanas contínuas e eventuais, decorrentes de embates entre interesses ideais e materiais dos agentes sociais em luta. Nesta perspectiva, a 159
análise da vida social envolve uma interpretação processual das diversas configurações históricas, observando-se os incontáveis arranjos que decorrem da ação humana. A narrativa de Georg Simmel Segundo o olhar simmeliano, a sociedade é produto das interações entre os indivíduos. Os temas da vida cotidiana em sociedade trabalhados por Simmel, em muitos casos, são bastante efêmeros, alguns diriam que seriam objetos sociológicos banais. Entretanto, deve-se reconhecer a sutiliza e a sensibilidade das análises propostas pelo autor em descobrir o sentido das relações sociais mais discretas, mas que são, segundo sua interpretação, aspectos constitutivos da sociedade na medida em que A sociedade, no sentido em que pode ser considerada pela Sociologia, é ou o conceito geral abstrato que engloba todas essas formas, o gênero do qual são espécies, ou a soma das formas que atuam em cada caso. Segue-se daí, deste conceito, que um número dado de indivíduos pode constituir uma sociedade, em maior ou menor grau. A cada novo aumento de formações sintéticas, a cada formação de partidos, a cada união para uma obra comum ou num comum sentimento ou 160
modo de pensar, a cada distribuição mais precisa da submissão e da dominação, a cada refeição em comum, a cada adorno que alguém use para os demais, o mesmo grupo vai se tornando cada vez mais sociedade do que antes. Não há uma sociedade absolta, no sentido de que deveria existir como condição prévia para que surjam esses diversos fenômenos de união; pois não há interação absoluta mas somente diversas modalidades dela, cuja a emergência determina a existência da sociedade, da qual não são causa nem efeito, mas ela própria de maneira imediata. Somente a extraordinária pluralidade e variedade destas formas de interação a cada momento emprestam uma aparente realidade histórica autônoma ao conceito geral de sociedade. (SIMMEL, 1983b, p. 64-5)
Como se vê, em sua sociologia, Simmel esforça-se para analisar a vida cotidiana, aquilo que os homens fazem na rotina da vida, revelando a preocupação do autor com os limites da objetividade histórica. Promove em sua narrativa uma visão mais estética das relações humanas, reconhecendo que o conhecimento sociológico não deve afrontar apenas os problemas macrossociais, como as concepções de poder, burocracia, organizações econômicas, classes sociais, representações coletivas e Estado. Em sua narrativa, o autor estabelece uma ruptura com o conceito mais genérico de sociedade como uma uni161
dade limitada a um determinado território ou localidade. Para Simmel (1983b, p. 72), uma sociedade toma forma a partir do momento em que os atores sociais criam relações de interdependência ou estabelecem contatos e interações sociais de reciprocidade, momento este em que
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Os homens se olham uns aos outros, têm ciúmes mútuos, escrevem-se cartas, comem juntos, são simpáticos ou antipáticos, independente de qualquer interesse apreciável; o agradecimento produzido pela prestação altruísta possui o poder de um vínculo irrompível; um homem pergunta o caminho ao outro, os homens se vestem e se enfeitam uns para os outros, e todas estas e mil outras relações momentâneas ou duradouras, conscientes ou inconscientes, inconsequentes ou fecundas, que se dão entre pessoas e pessoa, e das quais se destacam arbitrariamente estes exemplos, nos vinculam incessantemente uns aos outros. Em cada momento fiam-se fios deste gênero, se abandonam, se tornam a recolher, se substituem por outros, se tecem com outros. Aqui se encontram as interações que se produzem entre os átomos da sociedade, [...]; mas produzem toda a resistência e elasticidade, a variedade e unidade desta vida da sociedade, tão clara e tão misteriosa. [...] [esses] passos tão pequenos criam a conexão da unidade histórica; as interações de pessoa a pessoa, igualmente pouco visíveis, estabelecem a conexão da unidade social. Tudo o que acontece no campo
dos contínuos contatos físicos e espirituais, as mútuas excitações ao prazer e à dor, as conversações e os silêncios, os interesses comuns e antagônicos, é o que faz com que a sociedade seja irrompível; de tudo isso dependem as flutuações de sua vida, mediante as quais seus elementos ganham, perdem, se transformam incessantemente.
Para Simmel, as fronteiras e os limites de uma sociedade são difusos e extremamente transitórios. Concebendo como sociedade todo o produto de interações individuais, o autor parte do conceito de sociação para designar mais apropriadamente as formas ou modos pelos quais os atores sociais relacionam-se. Para tanto, empreende uma interessante análise sobre a natureza e a configuração dos grupos sociais. Em ensaio intitulado A determinação quantitativa dos grupos sociais, Simmel (1983d) analisou as diversas formas que os grupos apresentam, considerando critérios como o tamanho, a qualidade, a coesão e a estrutura dos grupos. Como grupos pequenos, identifica o socialismo, as seitas religiosas e as aristocracias. Sobre o socialismo, avalia que só pode se desenvolver efetivamente quando incrustado em grupos maiores, pois sua coesão (força) estaria exatamente no contraste com o meio circundante, que seria, também, o fundamento de sua forte identidade; entende que não funcionaria em grupos 163
grandes, pois não seria possível planificar os desejos individuais de grandes populações da mesma forma como se pode racionalizar a atividade produtiva. As seitas religiosas adquirem sua força no sentimento de comunidade e no marcante contraste com o ambiente social; a expansão quebraria o laço fundamental de solidariedade do grupo, sua crença agregadora. As aristocracias dependem de um sentimento estamental, todos devem se conhecer e se reconhecer como membros da confraria, a qual se mantêm por relações de sangue, de casamento e de fidelidade; quando as aristocracias envolvem-se em movimentos de expansão e cedem às tendências democráticas, elas alcançam um conflito mortal com seu princípio de vida. Como grupos grandes, Simmel descreve as massas entendendo que estas suspendem as personalidades, pois representam uma avalanche de excitação emocional, na qual todos acreditam que têm tudo a ganhar, assim, as decisões acabam sendo simples, radicais e cruéis. Uma interessante conclusão do ensaio é que todos os grupos lutam essencialmente para manter sua coesão e sobreviverem enquanto grupo. Neste sentido, a qualidade dos grupos exige que sua energia agregadora esteja permanentemente ativa. Todos eles apresentam um paradoxo intrínseco, a relação entre realidade impessoal e realida164
de pessoal. O comportamento dos indivíduos nos grupos fundamenta-se, portanto, naqueles elementos que constituem os grupos como, por exemplo, o costume, o direito e a moralidade. Nos grupos grandes, há mais liberdade para a expressão individual, enquanto que nos pequenos, o indivíduo é governado pelo costume. As interações sociais e as relações de interdependência não representam, necessariamente, a convergência de interesses entre os atores sociais envolvidos, nos fundamentos das formas sociais podem ser demarcados aspectos como o conflito, a competição e a cooperação. A questão da natureza sociológica do conflito foi amplamente interpretada por Simmel na obra Soziologie , publicada em 1908. Esse foi um tema também privilegiado por Karl Marx e Max Weber para compreender a realidade moderna de modo que, como escreve Tedesco (2006, p. 209), O conflito é entendido como associação, como forma de interação consigo, paradoxalmente, de harmonia e discórdia, de concorrência e acordos. Para Simmel, o conflito possui sua positividade e funcionalidade para o convívio e dinamismo social; pode ser expressão de horizontes macro como também das esferas micro. Entende que as dinâmicas de oposição envolvem adesão, consenso, reconhecimento, acordos, comunhões, uni165
dades para a luta. Nesse sentido, o conflito pode ser mais latente e mais intenso nas dinâmicas de maior proximidade, de maior pertença, de maior emoção e sentimentos, de maior identidade.
Segundo o olhar simmeliano, o conflito é uma forma pura de sociação, tão necessária à vida e à coesão do grupo quanto o consenso; não é patológico nem mesmo nocivo à vida social, pelo contrário, é uma condição para a manutenção e fundamento da mudança social, o conflito é também a força integradora dos grupos. Pois, nas palavras de Simmel (1983, p. 122), “admite–se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações” na medida em que, “é uma forma de sociação.” Cabe mencionar aqui um aspecto etimológico que pode ajudar a melhor entender o amplo sentido dado por Simmel à ideia de conflito. O conceito “der Streit ”, termo em alemão usado por ele em sua teoria, foi traduzido para o português como “conflito”. Porém, o mesmo conceito traduzido para o espanhol aparece como o substantivo “ lucha ”, em português, luta. Na língua portuguesa o termo “luta” não reduziria a ideia de conflito a um acontecimento carregado de sentidos negativos, pois
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Se toda interação entre os homens é uma sociação, o conflito – afinal, [é] uma das mais vívidas interações [...]. O próprio conflito resolve a tensão
entre contrastes. [...] sua natureza: a síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra o outro, quanto um para o outro. Essa natureza aparece de modo mais claro quando se compreende que ambas as formas de relação – a antitética e a convergente – são fundamentalmente diferentes da mera indiferença entre dois ou mais indivíduos ou grupos. [...] o conflito contém algo de positivo (SIMMEL, 1983e, p.122-3).
Quando considerado enquanto uma forma social, o conflito pode possibilitar momentos de construções e destruições nas instituições, estruturas, arranjos, processos, relações e interações sociais. O conflito é interpretado como um tempo socialmente espacializado, promotor de indeterminadas formas sociais, uma expressão das relações existente entre formas e conteúdos. Nesta perspectiva, os conflitos sociais são formas prevalecentes nas interações de convivência social, tendo como virtude o fato de que o conflito cria um patamar, um tablado social, como um palco teatral, onde as partes podem se encontrar e efetuar a trama ou embate que ele encerra, um ato de disputa e de negociação. Para Simmel, o conflito é um meio integrador e desintegrador. Nos grupos pequenos, o conflito é uma força substantiva da união, mas também pode ser movimento de desentendimento. Nos grandes grupos, o elemento constitutivo do conflito seria a controvérsia, na 167
medida em que ela é uma forma avançada de se conduzir os elementos do conflito de uma forma mais civilizada (ALCÂNTARA JR., 2006a). O conflito manifesta expressões carregadas de energias de repulsa que, em contato com as “forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergências de interesses”, conforme Simmel (1983, p. 126-7), produziriam formas e distinções grupais. O autor identifica, assim, “uma matriz formal de tensões”, esta, carregada de atitudes de “oposição”, “aversão”, “sentimentos de mútua estranheza”, “repulsa”, “ódio”, “lutas sociais”. Essas são atitudes viabilizadoras, mecanismos relacionais que proporcionam a existência dos modos de vida, posto que Sem tal aversão, não poderíamos imaginar que forma poderia ter a vida urbana moderna, que coloca cada pessoa em contato com inumeráveis outras todos os dias. Toda a organização interna da interação urbana se baseia numa hierarquia extremamente complexa de simpatias, indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao mais duradouro. (SIMMEL, 1983e, p. 128).
A competição é igualmente uma forma de conflito, sempre manifesta na realidade social, também com grande variabilidade em termos de conteúdo. Simmel inter168
pretou a competição como um fenômeno vinculado a uma meta subjetiva e a um resultado objetivo. Os jogos competitivos podem se subsidiar de disputas sociais, as mais diversas, em torno da maior riqueza material ou da vitória esportiva, pela ostentação do consumo ou da beleza física e vaidade, o fato é que envolve um sentimento de satisfação pessoal para quem está “jogando”. Simmel analisou a competição em diversas dimensões: como sociação interna e externa aos grupos, como função civilizadora, como elemento estruturante da coesão dos grupos. Também evidenciou a ocorrência da competição na família e em grupos religiosos. Outra questão constante na narrativa de Simmel (1998c, p. 186-7) e que está implícita ou explicitamente relacionada a tudo o que se disse até aqui é o da formação da individualidade, demonstrando a relevância que o autor buscou dar aos atores sociais e às formas como os mesmos lidam em sua própria experiência social com a sua liberdade individual, pois, como escreve o referido autor, Somos os aventureiros da Terra, nossa vida é perpassada a cada passo pelas tensões que constituem a aventura [...] ela é sentida como tensão da vida, mudança de ritmo [...] a força misteriosa de deixar a totalidade da vida ser sentida. 169
Assim sendo, como escreve Moraes Filho (1983, p. 21-2), tem-se que Simmel considerava que a participação do indivíduo na vida social seria tanto mais rica quanto “maior o número de círculos sociais a que pertença, quanto mais forte é a sua independência, quanto mais nítida se destaca a sua personalidade.” No entanto, no ensaio sobre As grandes cidades e a vida do espírito , Simmel (2005a, p. 577-9) destaca que as emoções humanas são intensificadas na vida urbana, pois os sujeitos buscam consciente ou inconscientemente preservar sua individualidade, afirmando que as pessoas lutam e resistem, por exemplo, frente ao nivelamento técnico-social uma vez que Os problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida. [...] o tipo do habitante da cidade grande — que naturalmente é envolto em milhares de modificações individuais — cria um órgão protetor contra o desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pela mesma causa, propicia a prerrogativa anímica. Com isso, a reação àque170
les fenômenos é deslocada para o órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das profundezas da personalidade. Essa atuação do entendimento, reconhecida portanto como um preservativo da vida subjetiva frente às coações da cidade grande, ramifica-se em e com múltiplos fenômenos singulares. [...] Todas as relações de ânimo entre as pessoas fundamentam-se nas suas individualidades, enquanto que as relações de entendimento contam os homens como números, como elementos em si indiferentes, que só possuem um interesse de acordo com suas capacidades consideráveis objetivamente.
Chegamos agora a um conceito central que parece expressar amplamente a narrativa de Simmel. A sociabilidade é uma questão-chave no estudo da permanentemente retratada luta das individualidades no espaço social da modernidade, no qual o “espírito moderno tornou-se mais e mais um espírito contábil” (SIMMEL, 2005a, p. 580). No entanto, o conceito é mais genérico. A sociabilidade é resultante das condições inerentes e gestadas pelas múltiplas combinações interacionais acionadas a partir dos indivíduos, sintetizadas e cristalizadas na própria sociedade (ALCÂNTARA JR., 2006b, p. 190). Na obra de Simmel, sociabilidade aparece como um conceito forjado para compreender as formas sociais em geral, pois evidencia os princípios organizativos de como opera tudo aquilo que 171
é individualmente constituído e socialmente edificado a partir das ações recíprocas entre as pessoas. Neste sentido, as formas nas quais o estar com o outro, para o outro ou contra o outro, aqui entendida como interação, ganham vida própria podendo enquadrar-se, ou não, na definição de sociabilidade, pois O que é autenticamente “social” nessa existência é aquele ser com, para e contra com os quais os conteúdos e interesses materiais experimentam uma forma ou um fomento por meio de impulsos ou finalidades. Essas formas adquirem então, puramente por si mesmas e por esse estímulo que delas irradia a partir dessa liberação, uma vida própria, um exercício livre de todos os conteúdos materiais, esse é justamente o fenômeno da sociabilidade (SIMMEL, 2006, p. 63-4).
O mero fato de estar com o outro, para o outro ou contra o outro, por si só, não consiste em sociabilidade. A sociabilidade deriva da interação, mas é também uma forma mais elevada de interação. Para haver sociabilidade, é preciso que a interação se origine da autonomia entre quem está em sociação, ou seja, expresse o desejo de se liberar de determinados laços da realidade. Impulsos, propósitos, interesses e necessidades individuais – conteúdos 172
– que conduzem os indivíduos a se agrupar, configurando uma sociação. No entanto, para que tal sociação converta-se em sociabilidade, os indivíduos precisam se relacionar em função de um sentimento, a satisfação mútua de estarem articulados, uma vez que, Interesses e necessidades específicas certamente fazem com que os homens se unam em associações econômicas, em irmandades de sangue, em sociedades religiosas, em quadrilhas de bandidos. Além de seus conteúdos específicos, todas estas sociações também se caracterizam, precisamente, por um sentimento, entre seus membros, de estarem sociados, e pela satisfação derivada disso. [...] A sociabilidade se poupa dos atritos com a realidade por meio de uma relação meramente formal com esta. [...] essa relação formal extrai da realidade [...] uma importância e uma riqueza de vida simbólica e lúdica que são tanto maiores quanto mais perfeita ela é. [...]. Como categoria sociológica, designo a sociabilidade como a forma lúdica da sociação. Sua relação com a sociação concreta, determinada pelo conteúdo, é semelhante à relação do trabalho de arte com a realidade (SIMMEL, 1983c, p.168-9).
Na narrativa simmeliana, a sociabilidade é uma forma autônoma da sociação, ela manifesta a interação que promove o prazer dos envolvidos, que dá sentido à vida in173
dividual mesmo que situada em ambiente ou espaço hostil. A sociabilidade depende das personalidades entre os quais ela ocorre, não possui em si mesma nenhuma finalidade objetiva, além do interesse em estar sociado naquele instante. De certa forma, ela constitui-se de espaços de liminaridade com o meio circundante (SIMMEL, 2013), onde os indivíduos realizam-se subjetivamente e identitariamente, uma vez que “riqueza, posição social, cultura, fama, méritos e capacidades excepcionais não podem representar qualquer papel na sociabilidade” (SIMMEL, 1983c: 170). Pois, nenhum interesse egoísta deve assumir nesses espaços a função reguladora, em função de que Os limiares da sociabilidade são transpostos quando os indivíduos interagem motivados por propósitos e conteúdos objetivos e quando seus aspectos subjetivos e inteiramente pessoais se fazem sentir. Em ambos os casos, a sociabilidade deixa de ser o princípio formativo e central de suas sociações e se torna, no melhor dos casos, uma conexão formalista e superficialmente mediadora (SIMMEL, 1983c, p. 171).
O fenômeno da sociabilidade interpretado por Simmel como um valor – ela é um fim em si mesma – representa uma guinada interpretativa e uma contribuição 174
decisiva para a investigação sociológica uma vez que aponta para a categoria das emoções como elementos constitutivos fundamentais da vida social. Como apontam Peres et all (2011, p. 105) quando asseveram que Nesse sentido, seria possível pensar algumas práticas e vivências diárias como um play form of sociation por excelência. “Sair”, “jogar conversa fora”, “namorar”, “encontrar com os amigos”, em geral, não têm outro fim principal senão o prazer e o sentimento de estar junto e de “praticar” a própria sociação; prazer e sentimento que figuram em graus variados em muitos momentos em que pessoas se encontram.
O enredo da narrativa de Simmel está fundado em um panteísmo estético. O autor esforçou-se muito para interpretar os fenômenos aparentemente mais casuais e superficiais da vida urbana cotidiana, dando destaque às formas de associação moderna, ou seja, às redes de relações sociais recíprocas criadas pelos indivíduos, e às noções de intenções, finalidades, desejos, tendências, interesses que se expressavam e se manifestavam através das individualidades (HABERMAS, 1988; RITZER, 1997, 2002; WAIZBORT, 2000; LALLEMENT, 2003; TEDESCO, 2006). 175
A sociologia de Simmel pode ser considerada polêmica em círculos intelectuais mais ortodoxos, que acreditam numa sociologia mais ativa e politizada, mas é impossível desconsiderar a maneira sutil, mas certeira, com que Simmel aborda os fenômenos sociológicos. A narrativa oferecida pelo autor cobre algumas lacunas deixadas por outros fundadores da sociologia. Ela dá um ar mais singelo à compreensão da vida em sociedade, valorizando aquilo que acontece contínua e constantemente na vida e nos espaços de convivência dos atores sociais, ou seja, ocupa-se daqueles fenômenos sociais que transcendem as grandes rupturas históricas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retornar aos clássicos é sempre uma tarefa instigante. Especialmente quando buscamos colocá-los em diálogo. O esboço sobre as concepções de análise social desenvolvidas por Marx, Durkheim, Weber e Simmel apresentado nesse breve livro, teve a intenção primeira de apresentar alguns dos aspectos fundamentais que conduziram tais pensadores à condição de clássicos da sociologia. Clássicos devem ser entendidos como autores que tiveram um papel destacado na fundamentação de uma área de conhecimento, mas que, devido à exuberância e complexidade de sua obra, estimulam, sempre que revisitados, insights sobre questões contemporâneas nas áreas de conhecimento que ajudaram a fundar. A segunda intenção desse trabalho foi produzir um mapeamento sobre algumas ideias centrais da obra desses autores, dando algumas pistas sobre como explorar o vasto arcabouço bibliográfico que deixaram. O livro buscou analisar alguns aspectos centrais das visões sobre o advento da modernidade de quatro 177
importantes fundadores da sociologia, mas nos esquivamos de privilegiar as suas doutrinas. Não referendamos uma concepção em detrimento de outra, tratamos todas com igual importância. Afinal, ambas têm papel decisivo na consolidação da sociologia. As reflexões apresentadas nas obras de Marx, Durkheim, Weber e Simmel são fonte inesgotável de “imaginação”, que sendo bem aproveitadas, podem ainda contribuir decisivamente para pensarmos os caminhos trilhados pela humanidade e os problemas sociais contemporâneos. Nesse sentido, procuramos elencar alguns aspectos que pudessem ajudar o leitor a aventurar-se nesta seara.
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DICAS DE COMO UTILIZAR OS CLÁSSICOS EM SALA DE AULA
A sociologia no ensino médio não deve ter caráter academicista. Faz parte do trabalho do professor transpor didaticamente as teorias e os conceitos típicos desse campo científico. O elemento mais importante a destacar aqui é que não se vai formar no ensino médio “pequenos sociólogos”. Assim parece ser fundamental à prática do professor, ao trabalhar com as concepções clássicas da sociologia na escola, estimular os jovens não necessariamente a compreender os conceitos desses autores, mas a entenderem as perguntas que tais clássicos se faziam na busca de interpretar as transformações sociais. Apesar de serem muitas as possibilidades oferecidas pela obra dos quatro clássicos, sugerimos a seguir uma estratégia de trabalho que pode auxiliar o professor ao lido com a vasta obra desses autores. Propomos aqui um eixo e o exemplificamos, mas deixamos o caminho aberto e a estrutura que pode ser adaptada a outras realidades e eixos temáticos se o professor assim o desejar. Assim, sugerimos algumas questões que podem ser levantadas 179
a partir da obra de cada um dos autores supra referidos nesse texto e algumas questões que podem nortear a aplicabilidade do mesmo. No que se refere à obra de Marx, sugerimos ao professor, num primeiro momento, elencar as contradições que os alunos percebem existir na sociedade atual para, em seguida, a partir dos exemplos levantados, identificar os grupos sociais que emergem sob condições existenciais contraditórias e apontar as visões de mundo que os mesmos elaboram ao se enfrentarem. E, junto a isto, a partir desse primeiro levantamento, passar a seu aprofundamento, buscando, junto com os alunos, mapear quais conflitos se estabelecem entre tais grupos, quais são resultados materiais e existenciais que são produzidos a partir desses conflitos, quais mudanças podem ser observadas como consequência desses embates entre diferentes grupos, quais são seus condicionantes históricos e como o ambiente se reconfigurou após os embates. Ao ocupar-se de Durkheim, o professor pode começar sua aula questionando aos educandos sobre as concepções de autoridade e liberdade que existem na sociedade atual e de que modo elas se relacionam entre si. Em seguida, pode-se ocupar de questões relacionadas à cidadania e ao cumprimento de certos deveres e explorar o modo como 180
seu cumprimento implica em determinados direitos que lhe garantem uma existência individual plena e um pleno exercício da cidadania. Também, pode ocupar-se das diferentes patologias sociais, ou ainda, das consequências de não se cumprir determinados deveres e/ou infringir as regras. Outra possibilidade reside, também, em se pensar os “ritos” e as cerimônias sociais, questionando aos alunos sobre as finalidades ligadas à ideia de coesão social, que cumprem o batismo, a celebração de um casamento, uma festa de aniversário, uma formatura, uma “balada” ou uma cerimônia fúnebre. Pode o professor trabalhar com imagens e levar a sala de aula, por exemplo, diversas fotografias de festas de aniversário, para estimular os alunos a verificar os aspectos que são regulares nas fotografias e analisar as funções sociais que têm tais celebrações para os indivíduos e as razões de como tais eventos se impõem a eles. No que se refere a Weber, nossa sugestão é que se escolha, em conjunto com os educandos, alguns eventos sociais e que se busque nesses, identificar as ações que o desencadearam. Tomando tais eventos, podemos identificar os agentes que dele participam e proceder a um mapeamento das motivações que levaram os agentes partícipes a agir no evento selecionado. O intuito desse exercício reside em elucidar o enredo do evento e compreender o 181
sentido das relações sociais nesse contexto, verificando os ideais, as intenções, os sentimentos e os recursos que foram mobilizados por esses grupos para atingir um propósito inicial. É interessante ainda verificar se as consequências foram as esperadas. Na reconstrução do evento cabe ainda identificar quais são as relações que se estabelecem entre os agentes, que sentido eles atribuem às coisas que fazem, e se, entre esses, se fazem presentes processos, no que tange a ação dos agentes, de dominação, formação, catequização, discriminação, cooperação, mobilização, competição, regulação, inovação, corrupção, considerando os tipos de ação social que tais processos envolvem. Menos referida, mas igualmente importante, é a teoria de Simmel, que atualmente está sendo muito resgatada, especialmente como contribuição à sociologia e à antropologia das emoções, embora sua obra tenha sido sempre muito acionada pela sociologia urbana e pela sociologia econômica. Os trabalhos do autor chegaram aos Estados Unidos pelo menos duas décadas antes da sociologia de Durkheim e Weber, tendo maior aceitação naquele contexto do que a teoria de Marx. Na sociologia americana, teve papel destacado como influência nas escolas do interacionismo simbólico e da etnometodologia. Influenciou também as correntes fenomenológicas. 182
A preocupação com os processos ambíguos da vida urbana moderna e com a forma como as individualidades expressavam-se neste contexto, brilhantemente interpretados por Simmel, foi o aspecto que mais chamou a atenção dos estudiosos interessados em compreender a vida cotidiana nas grandes cidades. Pois, fundamentalmente, Simmel propunha uma teoria da sociabilidade cotidiana e moderna, que deu relevância nos estudos sociológicos para a forma como os indivíduos enfrentavam os desafios que lhes eram apresentados nos ambientes sociais, inóspitos ou não. Entre os jovens do ensino médio essa pode ser uma excelente sacada para estimulá-los a entender as ciências sociais e a gostar da disciplina de sociologia. As reflexões de Simmel são fonte inesgotável de imaginação sociológica, sendo bem aproveitadas, podem ainda contribuir decisivamente para pensarmos os caminhos recentemente trilhados pela humanidade e os problemas sociais contemporâneos. A forma como o autor interpretou a realidade social pode ser subsídio para analisar as novas formas sociais e sociabilidades que emergem todos os dias em nossa realidade, expressões e manifestações dos mais diversos grupos humanos – o consumidor, a celebridade, o cidadão, o surfista, o marombado, a feminista, o machista, o mochileiro, o militante, o manifestante, o inquieto, o 183
hacker, o ambicioso, o drogadito, o funkeiro, o ostentador, o rolezeiro, o blogueiro, o coxinha, o mortadela, o corrupto, o corruptor... entre infinitas outras formas. Exercícios de pesquisa sobre formas sociais como as referidas podem ser analisadas em sua dimensão quantitativa e qualitativa. Inúmeras são as possibilidades de se apropriar do modelo de análise e de abordagem de Simmel para pensar a vida em uma sociedade como a atual, cheia de matéria e conteúdo, tão diversa, plural, densa e tensa. Destacamos aqui um pouco mais a concepção simmeliana, pois nos parece que pode estimular muito o jovem a compreender os tipos sociais que estão ao seu redor, e, com isso, aproximá-los ainda mais daquilo que a sociologia tem a lhes oferecer. E por fim, outra possibilidade mais geral e até mesmo aprofundada, e que escapa à especificidade da obra dos quatro autores, reside em se fazer uma pesquisa e mapear as influências filosóficas e intelectuais que tiveram os clássicos da sociologia, analisando com quais autores Marx, Durkheim, Weber e Simmel dialogavam e em que termos estabeleciam esse diálogo. Pequenos grupos de alunos podem ficar encarregados de pesquisar sobre cada um dos autores que influenciou cada um dos clássicos e coletivamente com a turma, estabelecer os links com a teoria dos clássicos. Posteriormente, grupos de alunos também 184
podem pesquisar autores que tenham partido das propostas dos clássicos da sociologia e dado continuidade a sua abordagem ao analisar fenômenos sociais desencadeados durante o Século XX ou mais recentes.
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SOBRE O AUTOR
Daniel Gustavo Mocelin é Doutor em Sociologia, professor do Departamento de Sociologia e também do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na universidade, atua como pesquisador do Laboratório Virtual e Interativo de Ensino de Ciências Sociais e do Grupo de Pesquisa Sociedade, Economia e Trabalho (GPSET). Atualmente, o foco de seus estudos reside no desenvolvimento de pesquisas que discutem teórica e metodologicamente o tema da qualidade do emprego no contexto específico da sociedade do conhecimento.
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