Os Salmos interpretados pelos papas &
II XVI
(seleção e organização)
O material a seguir é uma seleção das catequeses dos papas João Paulo II e Bento XVI acerca dos salmos, extraídos de suas audiências às quartas-feiras. Todo o conteúdo foi retirado do site oficial do Vaticano, com o intuito de auxiliar os cristãos na leitura dos salmos. Aqui os salmos são lidos à luz da Sagrada Tradição, em seu significado religioso “ào luz de Cristo. evidenciam que, completamente nas palavras de Paulo nos Salmos, ser humano se Eles encontra a si próprio ”, João em seus os II, vários: alegria, reconhecimento, ação de graças, amor, ternura, entusiasmo, mas também sofrimento intenso, recriminação, pedido de ajuda e de justiça, que por vezes acabam em cólera e imprecações. O saltério (coleção de 150 salmos) é considerado pelos dois papas como “o Livro de oração por excelência ”, visto que, por ser Palavra de Deus, transformada em oração, “quem recita os Salmos” – ensina o papa Bento XVI – “fala a Deus com as palavras que o próprio Deus nos concedeu, dirige-se a Ele com as palavras que Ele mesmo nos doa”. Assim, recitando os Salmos aprendemos a rezar. A seleção contida nesse livrinho contem três introduções diferentes e complementares ao Saltério e à Liturgia das Horas, todas em contexto de oração. Também nesta coletânea pode-se observar que alguns salmos foram comentados mais de uma vez e, muitos outros, não constam nas catequeses. Mas, certamente, estes textos nos proporcionarão muitos frutos espirituais. A todos, desejo boa leitura e fiquem com Deus e Nossa Senhora, ela que, como ninguém, é modelo para todo o ser humano orante.
Fortaleza, 29 de agosto de 2012
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Conteúdo
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 28 de março de 2001
Os Salmos na Tradição da Igreja
Queridos irmãos e irmãs, 1. Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte manifestei o desejo de que a Igreja se distinga cada vez mais na "arte da oração", aprendendo-a sempre de novo dos lábios do Mestre divino (cf. n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia, fonte e auge da vida eclesial. Nesta linha é importante prestar uma maior atenção pastoral à promoção da Liturgia das Horas como oração de todo o povo de Deus (cf. ibid., 34). De facto, se os sacerdotes e os religiosos têm um precioso mandamento para a celebrar, ela é contudo proposta ardentemente também aos leigos. Propunha esta finalidade, há cerca de trinta anos, o meu venerado predecessor Paulo VI, com a constituição Laudis canticum na qual delineava o modelo vigente desta oração, desejando que os Salmos e os Cânticos, estrutura básica da Liturgia das Horas, fossem compreendidos "com renovado amor pelo Povo de Deus" (AAS 63 [1971], 532). É encorajador o facto de muitos leigos, quer nas paróquias quer nos agregados eclesiais, terem aprendido a valorizá-la. Contudo, ela permanece uma oração que requer uma adequada formação catequética e bíblica, para a poder apreciar profundamente. Com esta finalidade, iniciamos hoje uma série de catequeses sobre os Salmos e sobre os Cânticos propostos na oração matutina das Laudes. Desta forma, desejo encorajar e ajudar todos a rezar com as mesmas palavras usadas por Jesus e que se encontram há milénios na oração de Israel e da Igreja. 2. Podemos introduzir-nos na compreensão dos Salmos através de vários caminhos. O primeiro consistiria em apresentar a sua estrutura literária, os seus autores, a sua formação, os contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que realçasse o seu carácter poético, que por vezes alcança níveis altíssimos de intuição lírica e de expressão simbólica. Não menos interessante seria percorrer novamente os Salmos considerando os vários sentimentos do ânimo humano que eles manifestam: alegria, reconhecimento, acção de graças, amor, ternura, entusiasmo, mas também sofrimento recriminação, de justiça, que por vezes em cólera intenso, e imprecações. Nos pedido Salmos,deoajuda ser ehumano encontra-se a si acabam próprio completamente. A nossa leitura terá sobretudo por finalidade evidenciar o significado religioso dos Salmos, mostrando como eles, mesmo tendo sido escritos há tantos séculos por crentes hebreus, podem ser incluídos na oração dos discípulos de Cristo. Por isso, deixar-nos-emos ajudar pelos resultados da exegese, mas pôr-nos-emos juntos na escola da Tradição, sobretudo escutando os Padres da Igreja. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
3. Com efeito, com profunda penetração espiritual, eles souberam discernir e indicar a grande "chave" de leitura dos Salmos no próprio Cristo, na plenitude do seu mistério. Os Padres estavam convencidos disto: nos Salmos fala-se de Cristo. De facto, Jesus ressuscitado aplicou a si próprio os Salmos quando disse aos discípulos: "era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24, 44). Os Padres acrescentam que nos Salmos se fala a Cristo ou até que é Cristo quem fala. Dizendo isto, eles não pensavam apenas na pessoa individual de Jesus, mas no Christus totus, no Cristo total, formado por Cristo chefe e pelos seus membros. Surge assim, para o cristão, a possibilidade de ler o Saltério à luz de todo o mistério de Cristo. Precisamente esta óptica faz emergir também a sua dimensão eclesial, que é realçada de maneira particular pelo cântico coral dos Salmos. Compreende-se desta forma como os Salmos tenham sido assumidos, desde os primeiros séculos, como oração pelo Povo de Deus. Se, em alguns períodos históricos, se verificou uma tendência para preferir outras orações, foi grande mérito dos monges manter alta na Igreja a chama do Saltério. Um deles, S. Romualdo de Camaldoli, no início do segundo milénio cristão, chegou a defender que como afirma o seu biógrafo Bruno de Querfurt são os Salmos o único caminho para experimentar uma oração verdadeiramente profunda: "Una via in psalmis" (Passio sanctorum Benedicti et Johannes ac sociorum eorundem: MPH VI, 1983, 427). 4. Com esta afirmação, à primeira vista exagerada, na realidade ele ancorava-se na melhor tradição dos primeiros séculos cristãos, quando o Saltério se tinha tornado o livro por excelência da oração eclesial. Esta foi a opção vencedora em relação às tendências heréticas que continuamente atacavam a unidade de fé e de comunhão. A respeito disto, é interessante a maravilhosa leitura que Santo Atanásio escreveu a Marcelino na primeira metade do século IV quando a heresia ariana alastrava atentando contra a fé na divindade de Cristo. Perante os hereges que atraíam a si o povo também com cânticos e orações que eram agradáveis aos seus sentimentos religiosos, o grande Padre da Igreja dedicou-se com todas as suas energias a ensinar o Saltério transmitido pela Escritura (cf. PG 27, 12 ss.) Foi assim que ao "Pai Nosso", a oração do Senhor por antonomásia, se acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os baptizados, da oração dos Salmos. 5. Graças também à oração comunitária dos Salmos, a consciência cristã recordou e compreendeu que é impossível dirigir-se ao Pai que habita nos céus sem uma autêntica comunhão de vida com os irmãos e as irmãs que habitam na terra. Além disso, inserindo-se vitalmente na tradição orante dos hebreus, os cristãos aprenderam a rezar cantando asmagnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas realizadas por Deus quer na criação do mundo e da humanidade, quer na história de Israel e da Igreja. Esta forma de oração tirada excluipessoal, decertomas expressões livres,a própria e elas continuarão nãodas só aEscrituras, caracterizarnão a oração também a mais enriquecer oração litúrgica, por exemplo com hinos e cânticos. O livro do Saltério permanece contudo a fonte ideal da oração cristã, e nele se continuará a inspirar a Igreja no novo milénio.
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 4 de abril de 2001
A Liturgia das Horas, oração da Igreja
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. Antes de iniciar o comentário de cada Salmo e Cânticos de Laudes, completemos hoje a reflexão introdutória que começámos na última catequese. E fazemo-lo a partir de um aspecto muito querido à tradição espiritual: cantando os Salmos, o cristão experimenta uma espécie de sintonia entre o Espírito presente nas Escrituras e o Espírito que nele habita pela graça baptismal. Mais do que rezar com palavras próprias, ele faz-se eco dos "gemidos inefáveis" de que fala São Paulo (cf. Rm 8,26), com os quais o Espírito do Senhor impele os cristãos a unirem-se à invocação característica de Jesus: "Abbá, Pai!" (Rm 8,15; Gal 4,6). Os antigos monges estavam de tal modo seguros desta verdade, que não se preocupavam em cantar os Salmos na própria língua materna, bastando-lhes a consciência de ser, de qualquer modo, "órgãos" do Espírito Santo. Estavam convencidos de que a sua fé permitiria aos versículos dos Salmos desencadear uma particular "energia" do Espírito Santo. A mesma convicção se manifesta na característica utilização dos Salmos, que foi chamada "oração jaculatória" da palavra latina "iaculum", isto é, dardo para indicar brevíssimas expressões salmódicas que podiam ser "lançadas", à maneira de pontas de fogo, por exemplo, contra as tentações. João Cassiano, um escritor que viveu entre o IV e o V séculos, recorda que alguns monges tinham descoberto a eficácia extraordinária do brevíssimo incipit do Salmo 69: "dignai-vos, ó Deus, salvar-me; Senhor, apressai-Vos em socorrer-me", que desde então se tornou como o pórtico de entrada na Liturgia das Horas (cf. Conlationes, 10, 10; CPL 512, 298 ss). 2. Ao lado da presença do Espírito Santo, uma outra dimensão importante é a da acção sacerdotal que Cristo desenvolve na oração em que associa a si a Igreja, sua esposa. A tal propósito, referindo-se propriamente à Liturgia das horas, o Concílio Vaticano II ensina: "Jesus Cristo, Sumo Sacerdote da nova e eterna Aliança, [...] une a si toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de louvor. Continua este múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação de todo o mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros modos, especialmente pela recitação do Ofício divino" (Sacrosanctum Concilium, 83). A Liturgia das Horas tem, também, o carácter de oração pública, na qual a Igreja está particularmente envolvida. É esclarecedor, então, descobrir como a Igreja definiu progressivamente este seu empenho específico de oração dividida pelas várias fases do dia. É necessário, por isso, recuar aos primeiros tempos da comunidade apostólica, quando ainda estava em vigor uma estreita ligação entre a oração cristã e a chamada "oração legal" assim prescrita pela Lei moisaica que se fazia em determinadas horas do dia no Templo de Jerusalém. Pelo livro dos Actos sabemos que os Apóstolos SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
"como se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o Templo" (2, 46), e também que "subiam ao templo para a oração da nona hora" (3,1). E, por outra parte, sabemos também que as "orações legais" por excelência eram precisamente as da manhã e da tarde. 3. Pouco a pouco, os discípulos de Jesus descobriram alguns Salmos particularmente apropriados a determinados momentos do dia, da semana ou do ano, recolhendo neles um sentido profundo em relação ao mistério cristão. É uma testemunha competente deste processo São Cipriano, que assim escreve na primeira metade do século III: "É necessário, de facto, rezar desde o início do dia para celebrar na oração da manhã a ressurreição do Senhor. Isto corresponde ao que, uma vez, o Espírito Santo indicava nos Salmos com estas palavras: "atendei à voz do meu clamor, ó meu Rei e meu Deus. A Vós é que rezo; pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente" ( Sal 5, 3-4). [...] Quando, depois, o sol se põe e chega o fim do dia, é necessário põr-se de novo em oração. De facto, uma vez que Cristo é o verdadeiro sol e o verdadeiro dia, no momento em que o sol e o dia do mundo chegam ao fim, pedindo através da oração que a luz volte para nós, pedimos que Cristo volte a trazer-nos a graça da luz eterna" (De oratione dominica, 35: PL,39, 655). 4. A tradição cristã não se limitou a perpetuar a hebraica, mas renovou algumas coisas que acabaram por caracterizar de modo diverso toda a experiência de oração vivida pelos discípulos de Jesus. De facto, para além de recitarem, de manhã e pela tarde, o Pai nosso, os cristãos escolheram com liberdade os Salmos para celebrar com eles a sua oração de cada dia. Ao longo da história, este processo sugeriu a utilização de determinados Salmos, particularmente significativos para alguns momentos de fé. Entre estes, tinha o primeiro lugar a oração de vigília, que preparava para o Dia do Senhor, o Domingo, em que se celebrava a Páscoa da Ressurreição. Uma característica tipicamente cristã foi, posteriormente, o acrescentar no fim de cada Salmo e Cântico, da doxologia trinitária, "Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo". Assim, cada Salmo e Cântico aparecem iluminados pela plenitude de Deus. 5. A oração cristã nasce, alimenta-se e desenvolve-se à volta do acontecimento da fé por excelência, o Mistério pascal de Cristo. Assim, de manhã e à tarde, ao nascer e ao põr do sol, se recordava a Páscoa, a passagem do Senhor da morte à vida. O símbolo de Cristo "luz do mundo" aparece na lâmpada durante a oração de Vésperas, também chamada por issolucernário. As horas do dialembram, por sua vez, a narração da Paixão do Senhor, e a hora tércia a descida do Espírito Santo no Pentecostes. A oração da noite, por fim, tem um carácter escatológico, evocando a vigilância recomendada por Jesus na esperança da sua volta (cf. Mc 13, 35-37). Cadenciando deste modo a sua oração, os cristãos responderam ao mandamento do Senhor de "orar incessantemente" (cf. Lc 18, 1; 21, 36; I Ts 5, 17); Ef 6, 18), mas sem esquecer que toda a vida deve, de qualquer modo, tornar-se oração. Orígenes escreve a este propósito: "Reza sem cessar aquele que une a oração às obras e as obras à oração" (Sobre a oração XII, 2; PG11, 452 C). Este horizonte, no seu conjunto, constitui o ambiente natural da recitação dos Salmos. Se eles são assim sentidos e vividos, a doxologia trinitária que coroa cada 9
Salmo torna-se, para cada um dos que acreditam em Cristo, um contínuo mergulhar, sobre as ondas do Espírito e em comunhão com todo o povo de Deus, no oceano de vida e de paz em que está imerso com o Baptismo, ou seja, no mistério do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Praça de São Pedro Quarta-feira, 22 de Junho de 2011 O povo de Deus que reza: os Salmos
Queridos irmãos e irmãs Nas catequeses precedentes, reflectimos sobre algumas figuras do Antigo Testamento particularmente significativas para a nossa meditação sobre a oração. Falei a respeito de Abraão, que intercede pelas cidades estrangeiras; acerca de Jacob, que na luta nocturna recebe a bênção; de Moisés, que invoca o perdão para o seu povo; e sobre Elias, que reza pela conversão de Israel. Com a catequese de hoje, gostaria de começar um novo trecho do percurso: em vez de comentar episódios particulares de personagens em oração, entraremos no «livro de oração» por excelência, o livro dos Salmos. Nas próximas catequeses leremos e meditaremos sobre alguns dos Salmos mais bonitos e mais queridos à tradição orante da Igreja. Hoje, gostaria de os introduzir, falando sobre o livro dos Salmos no seu conjunto. O Saltério apresenta-se como um «formulário» de orações, uma colectânea de cento e cinquenta Salmos, que a tradição bíblica oferece ao povo dos fiéis para que se tornem a sua, a nossa oração, o nosso modo de nos dirigirmos a Deus e de nos relacionarmos com Ele. Neste livro, encontra expressão toda a experiência humana, com os seus múltiplos aspectos, bem como toda a gama de sentimentos que acompanham a existência do homem. Nos Salmos entrelaçam-se e exprimem-se alegria e sofrimento, desejo de Deus e percepção da própria indignidade, felicidade e sentido de abandono, confiança em Deus e solidão dolorosa, plenitude de vida e medo de morrer. Toda a realidade do crente conflui nestas orações, que primeiro o povo de Israel e depois a Igreja assumiram como mediação privilegiada da relação com o único Deus e resposta adequada ao seu revelar-se na história. Enquanto orações, os Salmos constituem manifestações da alma e da fé, em que todos se podem reconhecer e nos quais se comunica aquela experiência de particular proximidade de Deus, à qual cada homem é chamado. E é toda a SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
complexidade do existir humano que se concentra na complexidade das diversas formas literárias dos vários Salmos: hinos, lamentações, súplicas individuais e comunitárias, cânticos de acção de graças, Salmos sapienciais e outros géneros que se podem encontrar nestas composições poéticas. Não obstante esta multiplicidade expressiva, podem ser identificados dois grandes âmbitos que resumem a oração do Saltério: a súplica, ligada à lamentação, e o louvor, duas dimensões ligadas entre si e quase inseparáveis. Porque a súplica é animada pela certeza de que Deus responderá, e de que isto abre ao louvor e à acção de graças; e porque o louvor e a acção de graças brotam da experiência de uma salvação recebida, que supõe uma necessidade de ajuda que a súplica exprime. Na súplica, o orante lamenta-se e descreve a sua situação de angústia, de perigo e de desolação, ou então, como nos Salmos penitenciais, confessa a culpa, o pecado, pedindo para ser perdoado. Ele expõe ao Senhor o seu estado de espírito na confiança de ser ouvido, e isto implica um reconhecimento de Deus como bom, desejoso do bem e «amante da vida» (cf.Sb11, 26), pronto a ajudar, salvar e perdoar. Por exemplo, assim reza o Salmista, no Salmo 31: «Junto de vós, Senhor, refugio-me. Que eu não seja confundido para sempre [...] Vós livrar-me-eis das ciladas que me armaram, porque sois a minha defesa» (vv. 2.5). Por conseguinte, já na lamentação pode sobressair algo do louvor, que se preanuncia na esperança da intervenção divina e que em seguida se faz explícita, quando a salvação divina se torna realidade. De maneira análoga, nos Salmos de acção de graça e de louvor, fazendo memória do dom recebido contemplando a grandeza da misericórdia de Deus, reconhece-se também a própria insignificância e a necessidade de ser salvo, que se encontra na base da súplica. Confessa-se assim a Deus a própria condição de criatura, inevitavelmente caracterizada pela morte, e no entanto portadora de um desejo radical de vida. Por isso o Salmista exclama, noSalmo86: «Louvar-vos-ei de todo o coração, Senhor meu Deus, e glorificarei o vosso nome eternamente. Porque a vossa misericórdia foi grande para comigo, e tirastes a minha alma das profundezas da região dos mortos» (vv. 12-13). De tal modo, na oração dos Salmos, súplica e louvor entrelaçamse e fundam-se num único cântico que celebra a graça eterna do Senhor que se debruça sobre a nossa fragilidade. Precisamente para permitir que o povo dos fiéis se una a este cântico, o livro do Saltério foi concedido a Israel e à Igreja. Com efeito, os Salmos ensinam a rezar. Neles, a Palavra de Deus transforma-se em palavra de oração — e são as palavras do Salmista inspirado — que se torna também palavra do orante que recita os Salmos. Estas são a beleza e a particularidade deste livro bíblico: as preces nele contidas, diversamente de outras orações que encontramos na Sagrada Escritura, não estão inseridas numa trama narrativa que especifica o seu sentido e a sua função. Os Salmos são dados ao fiel 11
precisamente como texto de oração, que tem como única finalidade tornar-se a oração daqueles que os assumem e com eles se dirigem a Deus. Dado que são uma Palavra de Deus, quem recita os Salmos fala a Deus com as palavras que o próprio Deus nos concedeu, dirige-se a Ele com as palavras que Ele mesmo nos doa. Deste modo, recitando os Salmos aprendemos a rezar. Eles constituem uma escola de oração. Algo de análogo acontece quando a criança começa a falar, ou seja, a expressar as próprias sensações, emoções e necessidades, com palavras que não lhe pertencem de modo inato, mas que ele aprende dos seus pais e de que vive ao seu redor. Aquilo que a criança quer manifestar é a sua própria vivência, mas o instrumento expressivo pertence a outros; e ele apropria-se do mesmo gradualmente, as palavras recebidas dos pais tornam-se as suas palavras e através destas palavras aprende também um modo de pensar e de sentir, acede a um inteiro mundo de conceitos, e nele cresce, relaciona-se com a realidade, com os homens e com Deus. Finalmente, a língua dos seus pais tornou-se a sua língua, ele fala com palavras recebidas de outros, que já se tornaram as suas palavras. Assim acontece com a oração dos Salmos. Eles são-nos doados para que aprendamos a dirigir-nos a Deus, a comunicarmos com Ele, a falar-lhe de nós com as suas palavras, a encontrar uma linguagem para o encontro com Deus. E, através de tais palavras, será possível também conhecer e aceitar os critérios do seu agir, aproximar-se ao mistério dos seus pensamentos e dos seus caminhos (cf. Is 55, 8-9), de maneira a crescer cada vez mais na fé e no amor. Do mesmo modo como as nossas palavras não são apenas palavras, mas ensinam-nos um mundo real e conceitual, assim também estas preces nos ensinam o Coração de Deus, pelo que não só podemos falar com Deus, mas podemos aprender quem é Deus e, aprendendo a falar com Ele, aprendemos como ser homens, como sermos nós mesmos. A este propósito, parece significativo o título que a tradição judaica conferiu ao Saltério. Ele chama-se tehillîm, um termo hebraico que quer dizer «louvores», tirada daquela raiz verbal que encontramos na expressão «Halleluyah», isto é, literalmente: «Louvai o Senhor». Por conseguinte, este livro de orações, não obstante seja tão multiforme e complexo, com os seus diversos géneros literários e com a sua articulação entre louvor e súplica, é em última análise um livro de louvores, que ensina a dar graças, a celebrar a grandeza do dom de Deus, a reconhecer a beleza das suas obras e a glorificar o seu Nome santo. Esta é a resposta mais adequada diante do manifestar-se do Senhor e da experiência da sua bondade. Ensinando-nos a rezar, os Salmos ensinam-nos que também na desolação, inclusive na dor, a presença de Deus é uma fonte de maravilha e de consolação; pode-se chorar, suplicar, interceder e lamentar-se, mas com a consciência de que estamos a caminhar rumo à luz, onde o louvor poderá ser definitivo. Como nos ensina oSalmo 36: «Em vós está a fonte da vida, e é na vossa luz que vemos a luz!» S( l 36, 10).
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Mas além deste título geral do livro, a tradição judaica atribuiu a muitos Salmos alguns títulos específicos, conferindo-os em grande maioria ao rei David. Figura de notável importância humana e teológica, David é uma personagem complexa, que atravessou as mais diversificadas experiências fundamentais do viver. Jovem pastor do rebanho paterno, passando pelas vicissitudes alternadas e por vezes dramáticas, torna-se rei de Israel, pastor do povo de Deus. Homem de paz, combateu muitas guerras; incansável e tenaz investigador de Deus, traiu o seu Amor, e isto é característico: permaneceu sempre investigador de Deus, não obstante tenha pecado muitas vezes gravemente; penitente humilde, recebeu o perdão divino, mas também a pena divina, e aceitou um destino marcado pela dor. Assim, David foi um rei, com todas as suas debilidades, «segundo o Coração de Deus» (cf. 1 Sm 13, 14), ou seja, um orante apaixonado, um homem que sabia o que quer dizer suplicar e louvar. Por conseguinte, a ligação dos Salmos a este insigne rei de Israel é importante, porque ele é uma figura messiânica, Ungido do Senhor, no qual é de certa maneira ofuscado o mistério de Cristo. Igualmente importantes e significativos são o modo e a frequência com que as palavras dos Salmos são retomadas pelo Novo Testamento, assumindo e sublinhando aquele valor profético sugerido pela ligação do Saltério à figura messiânica de David. No Senhor Jesus, que na sua vida terrena recitou com os Salmos, eles encontram o seu cumprimento definitivo e revelam o seu sentido mais pleno e profundo. As orações do Saltério, com as quais se fala a Deus, falam-nos dele, falam-nos do Filho, imagem do Deus invisível (cf. Cl 1, 15), que nos revela completamente o Rosto do Pai. Portanto o cristão, recitando os Salmos, reza o Pai em Cristo e com Cristo, assumindo aqueles cânticos numa nova perspectiva, que tem no mistério pascal a sua última chave interpretativa. O horizonte do orante abre-se assim a realidades inesperadas, e cada Salmo adquire uma nova luz em Jesus Cristo, e o Saltério pode resplandecer em toda a sua riqueza infinita. Caríssimos irmãos e irmãs, tomemos portanto na nossa mão este livro santo, deixemo-nos ensinar por Deus a dirigir-nos a Ele, façamos do Saltério uma guia que nos ajude e nos acompanhe quotidianamente no caminho da oração. E perguntemos também nós, como os discípulos de Jesus: «Senhor, ensinai-nos a rezar!» (Lc 11, 1), abrindo o coração para receber a oração do Mestre, em que todas as preces hão-de chegar ao seu cumprimento. Deste modo, tornando-nos filhos no Filho, poderemos falar a Deus, chamando-lhe «Pai Nosso». Obrigado!
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PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Praça de São Pedro Quarta-feira, 7 de Setembro de 2011 Salm o 3: " L evanta-te , Senh or, Salva-me! "
Estimados irmãos e irmãs Retomemos hoje as audiências na praça de São Pedro e, na «escola da oração» que vivemos juntos nestas Catequeses de quarta-feira, gostaria de começar a meditar sobre alguns Salmos que, como eu dizia no passado mês de Junho, constituem o «livro de oração» por excelência. O primeiro Salmo sobre o qual medito é de lamentação e de súplica, imbuído de profunda confiança, no qual a certeza da presença de Deus funda a prece que brota de uma condição de extrema dificuldade em que se encontra o orante. Trata-se do Salmo 3, referido pela tradição judaica a David no momento em que foge do filho Absalão (cf. v. 1): é um dos episódios mais dramáticos e duros na vida do rei, quando o seu filho usurpa o seu trono régio e o obriga a deixar Jerusalém para salvar a própria vida (cf. 2 Sm 15 ss.). Portanto, a situação de perigo e de angústia experimentada por David serve de base para esta prece e ajuda compreendê-la, como cada a situação que tal Salmo apode ser recitado. apresentando-se No brado do Salmista, homemtípica pode em reconhecer os sentimentos de dor, de amargura e também de confiança em Deus que, segundo a narração bíblica, tinham acompanhado a fuga de David da sua cidade. O Salmo começa com uma invocação ao Senhor:
«Senhor, quão numerosos são os meus adversários, quão numerosos os que se levantam contra mim! Muitos dizem a meu respeito: “Não há salvação para ele em Deus!”» (vv. 2-3). Portanto, a descrição que o orante faz da sua situação é marcada por tons fortemente dramáticos. Repete-se três vezes a ideia de multidão — «numerosos», «muitos», «tantos»— que no texto srcinal é dita com a mesma raiz hebraica, de modo a frisar ainda mais a enormidade do perigo, de forma repetitiva, quase martelante. Esta insistência sobre o número e a grandeza dos inimigos serve para expressar a percepção, da parte do Salmista, da desproporção absoluta existente entre ele e os seus perseguidores, uma desproporção que justifica e funda a urgência do seu pedido de ajuda: os opressores são muitos, prevalecem, enquanto o orante está sozinho e inerme, à mercê dos seus agressores. E no entanto, a primeira palavra que o Salmista SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
pronuncia é «Senhor»; o seu grito começa com a invocação a Deus. Uma multidão incumbe e revolta-se contra ele, gerando um medo que amplia a ameaça, fazendo-a parecer ainda maior e mais terrificante; mas o orante não se deixa vencer por esta visão de morte, mantém firme a relação com o Deus da vida e antes de tudo dirige-se a Ele, em busca de ajuda. Mas os inimigos procuram também romper este vínculo com Deus e debilitar a fé da sua vítima. Eles insinuam que o Senhor não pode intervir, afirmam que nem sequer Deus pode salvá-lo. Portanto, a agressão não é só física, mas diz respeito à dimensão espiritual: «O Senhor não pode salvá-lo»— dizem — o fulcro central da alma do Salmista deve ser agredido. É a extrema tentação à qual o crente é submetido, é a tentação de perder a fé, a confiança na proximidade de Deus. O justo supera a última prova, permanece firme na fé e na certeza da verdade e na plena confiança em Deus, e precisamente assim encontra a vida e a verdade. Parece-me que o Salmo nos toca muito pessoalmente: em muitos problemas somos tentados a pensar que talvez nem Deus me salve, não me me conheça, talvez não seja capaz; a tentação contra a fé é a última agressão do inimigo, e a isto temos que resistir, pois só assim encontramos Deus e a vida. Portanto, o orante do nosso Salmo é chamado a responder com a fé aos ataques dos ímpios: os inimigos — como eu disse — negam que Deus possa ajudá-lo, mas ele invoca-O, chama-O pelo nome, «Senhor», e depois dirige-se a Ele com um «tu» enfático, que exprime uma relação firme, sólida, e encerra em si a certeza da resposta divina:
«Mas Vós, Senhor, sois o meu escudo, sois a minha glória! Sois Vós quem levantais o meu poder. Com a minha voz invoco o Senhor e Ele responde-me da sua montanha santa» (vv. 4-5). Agora, a visão dos inimigos desaparece, eles não venceram porque quem crê em Deus está convicto de que Deus é o seu amigo: só permanece o «Tu» de Deus, aos «muitos» opõe-se agora um só, mas muito maior e mais poderoso que numerosos adversários. O Senhor é ajuda, defesa, salvação; como escudo protege quem se confia a Ele, e faz-lhe levantar a cabeça, no gesto de triunfo e de vitória. O homem deixou de estar só, os inimigos não são invencíveis como pareciam, porque o Senhor ouve o clamor do oprimido e responde do lugar da sua presença, do seu monte santo. O homem clama na angústia, no perigo e na dor; o homem pede ajuda e Deus responde. Neste entrelaçar-se de clamor humano e resposta divina consiste a dialéctica da oração e a chave de leitura de toda a história da salvação. O clamor exprime a necessidade de ajuda e apela-se à fidelidade do outro; gritar quer dizer fazer um gesto de fé na proximidade e na disponibilidade à escuta de Deus. A oração expressa a certeza de uma presença divina já experimentada e acreditada, que na resposta salvífica de Deus se manifesta plenamente. Isto é 15
relevante: que na nossa prece seja importante, presente, a certeza da presença de Deus. Assim o Salmista, que se sente cercado pela morte, confessa a sua fé no Deus da vida que, como escudo, o circunda com uma protecção invulnerável; quem pensava que já estava perdido pode erguer a cabeça, porque o Senhor o salva; o orante, ameaçado e desprezado, está na glória, porque Deus é a sua glória. A resposta divina que ouve a prece oferece ao Salmista uma segurança total; terminou também o medo, e o clamor sossega na paz, numa profunda tranquilidade interior:
«Deito-me, adormeço e acordo, o Senhor é o meu sustentáculo. Não temo as grandes multidões colocadas contra mim» (vv. 6-7). O orante, mesmo no meio do perigo e da batalha, pode adormecer tranquilo, numa atitude inequívoca de abandono confiante. Ao seu redor os adversários acampam-se, assediam-no, são muitos, levantam-se contra ele, desprezam-no e procuram derrubá-lo, mas ele deita-se e dorme tranquilo e sereno, certo da presença de Deus. E quando acorda, encontra Deus ainda ao seu lado, como guardião que não dorme (cf. Sl 121, 3-4), que o sustém, pegalhe na mão e nunca o abandona. O medo da morte é vencido pela presença daquele que não morre. E precisamente a noite, povoada por temores ancestrais, a noite dolorosa da solidão e da espera angustiante, agora transforma-se: o que evoca a morte torna-se presença do Eterno. À visibilidade do assalto inimigo, maciço e imponente, opõe-se a presença invisível de Deus, com todo o seu poder invencível. E é a Ele que de novo o Salmista, depois das suas expressões de confiança, dirige a sua prece: «Levantai-vos, Senhor! Salvai-me, ó meu Deus!» (v. 8a). Os agressores «atacavam» (cf. v. 2) a sua vítima, mas quem se «elevará» é o Senhor», e fálo-á para os derrotar. Deus salvá-lo-á, respondendo ao seu grito. Por isso, o Salmo termina com a visão da libertação do perigo que mata e da tentação que pode fazer perecer. Depois do pedido dirigido ao Senhor, de se elevar para salvar, o orante descreve a vitória divina: os inimigos que, com a sua opressão injusta e cruel, são símbolo de tudo o que se opõe a Deus e ao seu plano de salvação, são derrotados. Atingidos na boca, já não poderão agredir com a sua violência destruidora, já não poderão insinuar o mal da dúvida na presença e na obra de Deus: o seu falar insensato e blasfemo é definitivamente desmentido e reduzido ao silêncio pela intervenção salvífica do Senhor (cf. v. 8bc). Assim o Salmista pode concluir a sua prece com uma frase com conotações litúrgicas que celebra, na gratidão e no louvor, o Deus da vida: «O Senhor tem a vitória. Desça a vossa bênção sobre o vosso povo» (v. 9).
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Caros irmãos e irmãs, o Salmo 3 apresentou-nos uma súplica cheia de confiança e consolação. Recitando este Salmo, podemos fazer nossos os sentimentos do Salmista, figura do justo perseguido que encontra em Jesus o seu cumprimento. Na dor, no perigo, na amargura da incompreensão e da ofensa, as palavras do Salmo abrem o nosso coração à certeza confortadora da fé. Deus está sempre perto — mesmo nas dificuldades, nos problemas e nos contratempos da vida — ouve, responde e salva à sua maneira. Mas é preciso saber reconhecer a sua presença e aceitar os seus modos, como David na sua fuga humilhante do filho Absalão, como o justo perseguido do Livro da Sabedoria e, última e definitivamente, como o Senhor Jesus no Gólgota. E quando, aos olhos dos ímpios, Deus parece não intervir e o Filho morre, é precisamente então que se manifesta, para todos os fiéis, a verdadeira glória e a realização definitiva da salvação. Que o Senhor nos conceda a fé, nos ajude na nossa debilidade e nos torne capazes de crer e de rezar em todas as angústias, nas noites dolorosas da dúvida e nos longos dias da dor, abandonando-nos com confiança a Ele, que é o nosso «escudo» e a nossa «glória». Obrigado! JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 30 de maio de 2001
Salmo 5: A oração da manhã para obter a ajuda do Senhor
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. "Pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente". Com estas palavras, o Salmo 5 apresenta-se como uma oração da manhã e por isso se situa bem na liturgia das Laudes, o cântico do fiel no início do dia. A tonalidade de fundo desta súplica está marcada também por tensão e ansiedade pelos perigos e amarguras que podem acontecer inesperadamente. Mas não falta a confiança em Deus, sempre pronto a amparar o seu fiel para que não tropece no caminho da vida. "Ninguém, a não ser a Igreja, possui uma confiança assim" (São Jerónimo, Tractatus LIX in psalmos, 5, 27: PL 26, 829). E Santo Agostinho, chamando a atenção para o título que é dado ao Salmo, título que diz na sua versão latina: Para aquela que recebe a herança, explica: "Portanto, trata-se da Igreja que recebe em herança a vida eterna por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, de maneira que ela possui o próprio Deus, adere a Ele, e n'Ele encontra a sua felicidade, segundo o que está escrito: "Bemaventurados os mansos, porque possuirão a terra" (Mt 5, 5) (Enarr. in Ps., 5: CCL 38, 1, 2-3). 2. Como acontece muitas vezes nos Salmos de "súplica" dirigidos ao Senhor para que nos liberte do mal, são três as personagens que entram em cena neste Salmo. 17
Em primeiro lugar, aparece Deus (vv. 2 e 7), o Tu por excelência do Salmo, ao qual se dirige confiante aquele que invoca. Perante os pesadelos de um dia cansativo e talvez rigoroso em relação à injustiça, alheio a qualquer compromisso com o mal: "Tu não és um Deus que se apraz com o mal" (v. 5). Um longo elenco de pessoas más o malvado, o estulto, quem pratica o mal, o mentiroso, o sanguinolento, o ignorante passa diante do olhar do Senhor. Ele é o Deus santo e justo e põe-se ao lado de quem percorre os caminhos da verdade e do amor, opondo-se a quem escolhe "as veredas que conduzem ao reino das sombras" (cf.Pr 2, 18). Então, o fiel não se sente sozinho e abandonado quando enfrentar a cidade, penetrando na sociedade e no enredo das vicissitudes quotidianas. 3. Nos versículos 8-9 da nossa oração matutina a segunda personagem, quem ora, apresenta-se a si próprio com um Eu, revelando que toda a sua pessoa se dedica a Deus e à sua "grande misericórdia". Ele tem a certeza de que as portas do templo, isto é, o lugar da comunhão e da intimidade divina, fechadas para os incrédulos, se abrem diante dele. Entra por elas a fim de sentir a segurança da protecção divina, enquanto fora o mal se alastra e celebra os seus aparentes e efémeros triunfos. Da oração matutina no templo o fiel recebe a força interior para enfrentar um mundo com frequência hostil. O próprio Senhor o levará pela mão e o guiará pelas estradas da cidade, ou melhor, "aplanará para ele o caminho", como diz o Salmista com uma imagem simples e sugestiva. No srcinal hebraico esta serena confiança funda-se em duas palavras (hésed e sedaqáh): por um lado, "misericórdia ou fidelidade" e, por outro, "justiça ou salvação". São as palavras típicas para celebrar a aliança que une o Senhor ao seu povo e a cada um dos fiéis. 4. Por fim, eis que se projecta no horizonte a obscura figura da terceira personagem deste drama quotidiano: são os inimigos, os malvados, que já se apontavam nos versículos precedentes. Depois do "Tu" de Deus e do "Eu" do orante, encontra-se agora um Eles que indica uma multidão hostil, símbolo do mal do mundo (vv. 10-11). A sua fisionomia esboçada com base num elemento fundamental na comunicação social, a palavra. Quatro elementos boca, coração, garganta, língua exprimem a radicalidade da maldade inerente às suas escolhas. A sua boca está cheia de falsidade, o seu coração planeia constantemente traições, a sua garganta é como um sepulcro aberto, preparada para desejar apenas a morte, a sua língua é sedutora, mas "carregada de veneno mortal" (Tg 3, 8). 5. Depois deste severo e realístico retrato do perverso que atenta contra o justo, o Salmista invoca a condenação divina num versículo (v. 11), que a liturgia cristã omite, querendo desta forma conformar-se com a revelação neo-testamentária do amor misericordioso, que oferece também ao malvado a possibilidade da conversão. Neste ponto, a oração do Salmista tem um final cheio de luz e de paz (vv. 1213), depois do obscuro perfil do pecador que acabamos de delinear. Uma vaga de serenidade e de alegria envolve quem é fiel ao Senhor. O dia que agora se inicia para o crente, apesar de ser marcado por canseiras e ansiedades, terá sempre sobre si o sol da bênção divina. O Salmista, que conhece profundamente o coração e o estilo de Deus, não tem nenhuma dúvida: "Pois Vós, Senhor, abençoais o justo; dum escudo de graças o circundais" (v. 13). SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 24 de setembro de 2003
No começo da Audiência Geral de 24 de Setembro, que teve lugar na Sala Paulo VI, o Cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado, introduziu esta catequese com as seguintes palavras: Venerados Irmãos no Episcopado Irmãos e Irmãs no Senhor, Devido a um mal-estar, o Santo Padre não pode estar presente nesta Audiência geral. Juntos rezaremos por ele, esperando que se restabeleça o mais depressa possível. Por seu lado, o Papa deseja fazer saber que nos segue através da televisão e, no fim deste encontro, entrará em ligação connosco para nos dirigir a sua palavra. Desde já lhe agradecemos. Leio agora, por seu encargo, o texto predisposto para este encontro, que comenta o Salmo 8, e exalta a grandeza do Senhor e a dignidade do homem. Eis o texto da Mensagem do Papa: Salmo 8 1. Meditando Salmo itinerário 8, um admirável hino dos de louvor, a conclusão do nossoo longo no âmbito Salmosencaminhamo-nos e dos Cânticos para que constituem a alma orante da Liturgia das Laudes. Durante estas catequeses, a nossa reflexão deteve-se sobre 84 orações bíblicas, das quais procurámos realçar sobretudo a intensidade espiritual, mesmo sem descurar a beleza poética. De facto, a Bíblia convida-nos a abrir o caminho do nosso dia com um cântico que não proclame apenas as maravilhas realizadas por Deus e a nossa resposta de fé, mas que também as celebre "com arte" (cf. Sl 46, 8), isto é, de maneira bonita, luminosa, suave e, ao mesmo tempo, forte. Maravilhoso entre todos é o Salmo 8, no qual o homem, inserido num quadro nocturno, quando na imensidão do céu começam a brilhar a lua e as estrelas (cf. v. 4), sente-se como um grão de areia no infinito e no espaço ilimitado que estão acima dele. 2. Com efeito, no centro do Salmo 8 emerge uma dupla experiência. Por um lado, pessoa humana sente-se quase esmagada da de criação, dedos"a divinos. Esta curiosa expressão substitui a pela "obragrandeza das mãos" Deus "obra (cf. v.dos 7), quase para indicar que o Criador traçou um desenho ou um bordado com os astros maravilhosos, lançados na grandeza do cosmos. Mas por outro lado, Deus inclina-se sobre o homem e coroa-o como o seu vice-rei: "De glória e de honra o coroastes" (v. 6). Melhor, a esta criatura tão frágil confia todo o universo, para que o conheça e dele tire o sustento de vida (cf. vv. 7-9).
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O horizonte da soberania do homem sobre as outras criaturas é especificado como que a recordar a página de abertura do Génesis: rebanhos, gado, animais do campo, aves do céu e peixes do mar são confiados ao homem para que, impondo-lhes um nome (cf. Gn 2, 19-20), descubra a sua profunda realidade, a respeite e a transforme com o trabalho e a destine para fonte de beleza e de vida. O Salmo torna-nos conscientes da nossa grandeza, mas também da nossa responsabilidade em relação à criação (cf. Sb 9, 3). 3. Lendo de novo o Salmo 8, o autor da Carta aos Hebreus descobriu nele uma compreensão mais profunda do desígnio de Deus em relação ao homem. A vocação do homem não pode ser limitada ao actual mundo terreno; se o Salmista afirma que Deus pôs tudo sob o domínio do homem, significa que deseja que ele submeta também "o mundo futuro" (Hb 2, 5), "um reino inabalável" (12, 28). Numa palavra, a vocação do homem é uma "vocação celeste" (3, 1). Deus quer "conduzir à glória" celeste "uma multidão de filhos" (2, 10). Para que este projecto divino se realizasse, era necessário que a vida fosse traçada por um "pioneiro" (cf. ibid.), no qual a vocação do homem encontrasse o seu primeiro cumprimento perfeito. Este pioneiro é Cristo. O autor da Carta aos Hebreus observou a respeito disto que as expressões do Salmo se aplicam a Cristo de maneira privilegiada, ou seja, mais pormenorizada do que para os outros homens. De facto, o Salmista usa o verbo "inferiorizar", dizendo a Deus: "fizeste-o por um pouco de tempo inferior aos anjos, coroaste-o de glória e de honra" (cf. Sl 8, 6; Hb 2, 6). Para os homens comuns, este verbo não é apropriado; não foram "inferiorizados" em relação aos anjos, dado que nunca foram superiores a eles. Mas para Cristo, o verbo é exacto, porque, sendo Filho de Deus, ele era superior aos anjos e foi diminuído quando se fez homem, sendo depois coroado de glória com a sua ressurreição. Assim Cristo cumpriu plenamente a vocação do homem e cumpriu-a, explica o autor, "em benefício de todos" (Hb 2, 9). 4. A esta luz, Santo Agostinho comenta o Salmo e aplica-o a nós. Ele parte da frase na qual se delineia a "coroação" do homem: "De glória e de honra o coroastes" (v. 6). Contudo, naquela glória ele vê o prémio que o Senhor nos dá quando superarmos a prova da tentação. Eis as palavras do grande Padre da Igreja na sua Exposição do Evangelho segundo Lucas: "O Senhor coroou o seu dilecto também de glória e de magnificência. Aquele Deus que deseja distribuir as coroas, procura as tentações: por isso, quando és tentado, sê consciente de que te é preparada a coroa. Se extingues os combates dos mártires, extinguirás também as suas coroas; se extingues os seus suplícios, também extinguirás as suas bem-aventuranças" (IV, 41: SAEMO 12, págs. 330-333). Deus prepara "coroa de justiça" (2 Tm 4, 8) que recompensará a nossa fidelidade parapara comnós Ele,aquela mantida também no tempo da tempestade, que abala o nosso coração e a nossa mente. Mas ele está, em todos os tempos, atento à sua criatura predilecta e desejaria que nela brilhasse sempre a "imagem" divina (cf. Gn 1, 26), para que saiba ser, no mundo, sinal de harmonia, de luz e de paz.
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 26 de junho de 2002
Salmo 8: A grandeza do Senhor e a digni dade do homem
Queridos irmãos e irmãs, 1. "O homem..., no centro deste empreendimento, revela-se um gigante. Revela-se divino, não em si, mas no seu princípio e no seu destino. Por conseguinte, seja honrado o homem, a sua dignidade, o seu espírito, a sua vida". Com estas palavras, em Julho de 1969 Paulo VI confiava aos astronautas americanos que partiam para a lua o texto do Salmo 8, que agora aqui se ouviu, para que entrasse nos espaços cósmicos (Insegnamenti VII [1969], págs. 493-494). De facto, este hino é uma celebração do homem, uma criatura que, se for comparada com a grandeza do universo, é insignificante, é uma "cana" frágil, para usar uma imagem do grande filósofo Blaise Pascal (Pensamentos, n. 264). Contudo, é uma "cana pensante" que pode compreender a criação, porque é senhor da criação, "coroado" pelo próprio Deus (cf. Sl 8, 6). Como acontece com frequência nos hinos que exaltam o Criador, o Salmo 8 começa e acaba com uma solene antífona dirigida ao Senhor, cuja magnificência está espalhada no universo: "Ó Senhor, nosso Deus, como é grande o vosso nome em toda a terra" (vv. 2.10). 2. O verdadeiro e próprio conteúdo do cântico deixa imaginar uma atmosfera nocturna, com a lua e as estrelas que se acendem no céu. A primeira estrofe do hino (cf. vv. 2-5) é dominada por um confronto entre Deus, o homem e o universo. Na cena sobressai antes de tudo o Senhor, cuja glória é cantada pelos céus, mas também pelos lábios da humanidade. O louvor que surge espontâneo nos lábios das crianças silencia e confunde as conversas arrogantes dos que negam Deus (cf. v. 3). Eles são definidos como "insensatos, corruptos e abomináveis", porque se iludem que podem desafiar e opor-se ao Criador com a sua razão e acção (cf. Sl 13, 1). Logo a seguir, eis que se abre um sugestivo cenário de uma noite estrelada. Face a este horizonte infinito surge a eterna pergunta: "Que é o homem?" (Sl 8, 5). A primeira e imediata resposta fala de nulidade, quer em relação à grandeza dos céus, quer sobretudo a respeito da majestade do Criador. Com efeito, o céu, diz o Salmista, é "teu", a lua e as estrelas "por ti foram fixadas" e são "obra dos teus dedos" (cf. v. 4). É bonita esta última expressão, mais do que a mais comum "obra das tuas mãos" (v. 7): Deus 21
criou estas realidades colossais com a facilidade e o esmero de um bordado ou um trabalho de cinzel, com o toque leve de quem faz deslizar os seus dedos pelas cordas da arpa. 3. Por conseguinte, a primeira reacção é de assombro: como pode Deus "recordar-se" e "ocupar-se" desta criatura tão frágil e delicada (cf. v. 5)? Mas eis a grande surpresa: ao homem, criatura frágil, Deus concedeu uma dignidade maravilhosa: fez com que ele fosse pouco inferior aos anjos ou, como também pode ser traduzido o srcinal hebraico, pouco inferior a um Deus (cf. v. 6). Entramos, desta forma, na segunda estrofe do Salmo (cf. vv. 6-10). O homem é visto como o lugar-tenente real do próprio Criador. De facto, Deus "coroou-o" como um vice-rei, destinando-o a um senhorio universal: "Tudo submetestes debaixo dos seus pés" e o adjectivo "tudo" ressoa enquanto desfilam as várias criaturas (cf. vv. 7-9). Mas este domínio não é conquistado pela capacidade do homem, realidade frágil e limitada, nem é obtido com uma vitória sobre Deus, como queria o mito grego de Prometeu. É um domínio proporcionado por Deus: às mãos frágeis e por vezes egoístas do homem está confiado todo o horizonte das criaturas, para que ele conserve a sua harmonia e beleza, o use mas não abuse, faça emergir os seus segredos e desenvolva as suas potencialidades. Como declara a Constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Vaticano II, "o homem foi criado à "imagem de Deus", capaz de reconhecer e amar o seu Criador, que o constitui senhor de todas as criaturas terrenas, para as governar e usar, glorificando a Deus" (n. 12). 4. Infelizmente, o governo do homem, afirmado no Salmo 8, pode ser mal compreendido e deformado pelo homem egoísta, que muitas vezes se revelou mais um tirano insensato do que um governador sábio e inteligente. O Livro da Sabedoria adverte-nos contra os desvios deste género, quando esclarece que Deus formou "o homem... para dominar sobre as criaturas..., e governar o mundo com santidade e justiça" (9, 2-3). Mesmo num contexto diferente, também Job faz apelo ao nosso Salmo para recordar sobretudo a debilidade humana, que não mereceria tanta atenção por parte deDeus: "Que é o homem, para que faças caso dele e ponhas nele a tua atenção, para que o visites todas as manhãs e o proves a cada instante?" (7, 17-18). A história documenta o mal que a liberdade humana semeia no mundo com as devastações ambientais e com as injustiças sociais mais clamorosas. Ao contrário dos seres humanos, que humilham os próprios semelhantes e a criação, Cristo apresenta-se como o homem perfeito, "coroado de glória e de honra... em virtude de ter padecido a morte, a fim de que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos"(Heb 2, 9). Ele reina SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
sobre o universo com aquele domínio de paz e de amor que prepara o novo mundo, os novos céus e a nova terra (cf. 2 Pd 3, 13), Aliás, a sua autoridade real como sugere o autor da Carta aos Hebreus aplicando-lhe o Salmo 8 é exercida através da entrega suprema de si na morte "em benefício de todos". Cristo não é um soberano que se deixa servir, mas que serve e se consagra ao próximo: "Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos" (Mc 10, 45). Desta forma, Ele recapitula em si "todas as coisas que há no Céu e na Terra" (Ef 1, 10). Nesta luz cristológica, o Salmo 8 revela toda a força da sua mensagem e da sua esperança, convidando-nos a exercer a nossa soberania sobre a criação, não dominando-a, mas amando-a. PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 28 de janeiro de 2004 Salmo 10: O justo tem confiança no Senhor 1. Continua a nossa reflexão sobre os textos dos Salmos, que constituem o elemento substancial da Liturgia das Vésperas. O que agora fizemos ressoar nos nossos corações foi pelo o Salmo 10, nome uma breve de oconfiança que,nome no srcinal hebraico, está marcada sagrado divino,oração 'Adonaj, Senhor. Este ressoa na abertura (cf. v. 1), encontra-se três vezes no centro do Salmo (cf. vv. 4-5) e volta no fim (cf. v. 17). A tonalidade espiritual de todo o cântico é muito bem expressa pelo versículo conclusivo: "O Senhor é justo e ama a justiça". É esta a raiz de qualquer confiança e a fonte de toda a esperança no dia da obscuridade e da prova. Deus não permanece indiferente em relação ao bem e ao mal, é um Deus bom e não um acontecimento obscuro, indecifrável e misterioso. 2. O Salmo desenvolve-se substancialmente em dois cenários. No primeiro (cf. vv. 1-3) está descrito o ímpio no seu triunfo aparente. Ele é caracterizado por imagens de tipos bélico e venial: é o pervertido, que retesa o arco da guerra ou da caça para disparar com violência contra as suas vítimas, isto é, os de coração recto (cf. v. 2). Por isso, eles são tentados pela ideia de evadir e de se libertar de uma presa tão implacável. Gostaria de fugir "para o monte como as aves" (v. 1), longe do vórtice do mal, do assédio dos malvados, das setas das calúnias lançadas à traição pelos pecadores. Há uma espécie de desconforto no fiel que se sente só e impossibilitado face à irrupção do mal. Parece que os fundamentos da justa ordem social são abalados e as próprias bases da convivência humana estão ameaçadas. (cf. v. 3). 3. Eis então a mudança, traçada no segundo cenário (cf. vv. 4-7). O Senhor, sentado no seu trono celeste, abrange com o seu olhar penetrante todo o horizonte 23
humano. Daquele lugar transcendente, sinal da omnisciência e da omnipotência divina, Deus pode perscrutar e examinar cada pessoa, distinguindo o bem do mal e condenando com vigor a injustiça (cf. vv. 4-5). É muito sugestiva e confortadora a imagem dos olhos divinos, cujas pupilas contemplam e observam as nossas acções. O Senhor não é um remoto soberano, fechado no seu mundo dourado, mas uma Presença vigilante que se declara da parte do bem e da justiça. Ele vê e providencia, intervindo com a sua palavra e com a sua acção. O justo prevê que, como acontecera em Sodoma (cf. Gn 19, 24), o Senhor "fará chover sobre os ímpios carvões acesos e enxofre" (Sl 10, 6), símbolos do juízo de Deus que purifica a história, condenando o mal. O ímpio, atingido por esta chuva ardente, que prefigura o seu destino último, experimenta fielmente que "há um Deus que faz justiça sobre a terra" (Sl 57, 12). 4. Contudo, o Salmo não se conclui com este quadro trágico de punição e de condenação. O último versículo abre o horizonte para a luz e para a paz que se destinam ao justo que contempla o seu Senhor, juiz justo, mas sobretudo libertador misericordioso: "os homens honestos contemplarão a sua face" (Sl 10, 7). Trata-se de uma experiência alegre de comunhão e de confiança serena no Deus que liberta do mal. Fizeram uma experiência como esta os numerosos justos ao longo da história. Muitas narrações descrevem a confiança dos mártires cristãos face às atrocidades e a sua determinação que não evitava a prova. Nos Actos de Euplo, diácono de Catânia, falecido por volta de 304 sob Diocleciano, o mártir exclama espontaneamente esta sequência de orações: "Obrigado, ó Cristo: protege-me porque sofro por ti... Adoro o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Adoro a Santíssima Trindade... Obrigado, ó Cristo. Vem em meu auxílio, ó Cristo! Sofro por ti, ó Cristo... É grande a tua glória, ó Senhor, nos servos que te dignaste chamar a ti!... A ti dou graças, Senhor Jesus Cristo, porque a tua força me confortou; não consentiste que a minha alma perecesse com os ímpios e concedeste-me a graça do teu nome. Agora confirma o que fizeste em mim, para que seja confundida a impudência do Adversário" (A. HAMMAN, Orações dos primeiros cristãos, Milão 1995, págs. 72-73). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 4 de fevereiro de 2004 Salmo 14: Quem é digno de estar diante do Senhor? 1. O Salmo 14, que é oferecido à nossa reflexão, muitas vezes é classificado pelos estudiosos da Bíblia como parte de uma "liturgia de entrada". Como acontece com algumas composições do Saltério (cf. por exemplo, os Salmos 23, 25 e 94), pode-se pensar numa espécie de procissão de fiéis que se agrupa às portas do templo de Sião para aceder ao culto. Num diálogo ideal entre fiéis e levitas delineiam-se as condições SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
indispensáveis para ser admitido à celebração litúrgica e, por conseguinte, à intimidade divina. De facto, por um lado, surge a pergunta: "Quem poderá, Senhor, habitar no teu santuário? Quem poderá residir na tua montanha santa?" (Sl 14, 1). Por outro, eis o elenco das qualidades exigidas para passar o limiar que leva ao "santuário", ou seja, ao templo na "montanha santa" de Sião. As qualidades enumeradas são onze e constituem uma síntese ideal dos compromissos morais de base, presentes na lei bíblica (cf. vv. 25). 2. Nas fachadas dos templos egípcios e babiloneses por vezes eram gravadas as condições exigidas para poder entrar no ambiente sagrado. Devemos notar uma diferença significativa com as que são sugeridas pelo nosso Salmo. Em muitas culturas religiosas é requerida, para ser admitido à presença da Divindade, sobretudo a pureza ritual exterior que comporta purificações, gestos e vestes particulares. Ao contrário, o Salmo 14 exige a purificação da consciência, para que as suas opções sejam inspiradas no amor pela justiça e pelo próximo. Portanto, sente-se nestes versículos o espírito dos profetas que convidam repetidamente a conjugar a fé e a vida, oração e compromisso existencial, adoração e justiça social (cf. Is 1, 10-20; 33, 14-16; Os 6, 6; Mq 6, 6-8; Jr 6, 20). Ouçamos, por exemplo, a veemente repreensão do profeta Amós, que denuncia em nome de Deus um culto separado da história quotidiana: "Eu detesto e rejeito as vossas festas, e não sinto nenhum gosto nas vossas assembleias. Se me ofereceis holocaustos e oblações, não as aceito, nem ponho os meus olhos no sacrifício das vossas vítimas gordas... Antes, jorre a equidade como uma fonte, e a justiça como torrente que não seca" (5, 21-22.24). 3. Tratemos agora os onze compromissos enumerados pelo Salmista, que poderão constituir a base de um exame de consciência pessoal todas as vezes que nos prepararmos para confessar as nossas culpas a fim de sermos admitidos à comunhão com o Senhor na celebração litúrgica. Os três primeiros compromissos são genéricos e exprimem uma opção ética: seguir o caminho da integridade moral, da prática da justiça e, por fim, da sinceridade perfeita ao falar (cf. Sl 14, 2). Seguem-se três deveres que poderíamos definir de relação com o próximo: eliminar a calúnia da linguagem, evitar qualquer acção que possa prejudicar o irmão, impedir os insultos contra quem vive ao nosso lado todos os dias (cf. v. 3). Vem depois oquem pedido de Deus. uma opção claraenumeram-se de posição noosâmbito social:preceitos desprezar o malvado, teme Por fim, três últimos sobre o modohonrar como examinar a consciência: ser fiéis à palavra dada, ao juramento, mesmo que isso nos cause consequências danosas; não praticar a usura, chaga que ainda nos nossos dias é uma realidade vil, capaz de aniquilar a vida de muitas pessoas e, por fim, evitar qualquer forma de corrupção na vida pública, outro compromisso que se deve saber praticar com rigor também no nosso tempo (cf. v. 5).
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4. Seguir este caminho de decisões morais autênticas significa estar preparado para o encontro com o Senhor. Também Jesus, no Sermão da Montanha, proporá uma "liturgia de entrada" essencial: "Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão" (Mt 5, 23-24). Quem age da maneira indicada pelo Salmista conclui-se na nossa oração "não há-de sucumbir para sempre" (Sl 14, 5). Santo Hilário de Poitiers, Padre e Doutor da Igreja do quarto século, no seu Tractatus super Psalmos comenta assim este final do Salmo, relacionando-o à imagem inicial do templo de Sião: "Agindo de acordo com estes preceitos, mora-se no santuário, repousa-se no monte. Por conseguinte, permanecem salvaguardadas a observação dos preceitos e a obra dos mandamentos. Este Salmo deve estar fundado no íntimo, escrito no coração, anotado na memória; o tesouro da sua rica brevidade deve ser confrontado connosco em todos os momentos. E assim, adquire esta riqueza no caminho rumo à eternidade e habitando na Igreja, poderemos finalmente repousar na glória do corpo de Cristo" (PL 9, 308). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 28 de Julho de 2004 Salmo 15: O Senhor é a minha herança 1. Temos a oportunidade de meditar sobre um Salmo de forte tensão espiritual, depois de o ter ouvido e tornado oração. Não obstante as dificuldades textuais, que o srcinal hebraico revela sobretudo nos primeiros versículos, o Salmo 15 é um cântico luminoso de inspiração mística, como sugere já a profissão de fé colocada na abertura: "Tu és o meu Deus, és o meu bem e nada existe fora de ti" (v. 2). Portanto, Deus é visto como o único bem e por isso o orante escolhe colocar-se no âmbito da comunidade de todos aqueles que são fiéis ao Senhor: "Para os santos, que estão sobre a terra, homens nobres, é todo o meu amor" (v. 3). Por essa razão o Salmista rejeita radicalmente a tentação da idolatria com os seus ritos sanguinários e com as suas invocações blasfemas (cf.v. 4). Trata-se de uma escolha de campo categórica e decidida, que parece reflectir a do Salmo 72, outro canto de confiança em Deus, conquistada através de uma opção moral forte e difícil: "Quem teria eu no céu? Contigo, nada mais me agrada na terra... Quanto a mim, estar junto de Deus é o meu bem! Em Deus coloquei o meu abrigo" (Sl 72, 25.28). 2. O nosso Salmo desenvolve dois temas que são expressos através de três símbolos: antes de mais, o símbolo da "herança", termo que sustenta os versículos 5-6: de facto, fala-se de "herança, cálice, sorte". Estes vocábulos eram usados para descrever o dom da terra prometida ao povo de Israel. Nós sabemos agora que a única tribo que não tinha recebido uma porção de terra era a dos Levitas, porque o próprio Senhor constituía a sua herança. O Salmista declara justamente: "Senhor, minha herança... é
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preciosa a herança que me coube" (Sl 15, 5.6). Ele suscita, portanto, a impressão de ser um sacerdote que proclama a alegria de ser totalmente dedicado ao serviço de Deus. Santo Agostinho comenta: "O Salmista não diz: Ó Deus, dai-me uma herança! O que me dareis como herança? Ao contrário, diz: tudo o que me podeis dar fora de vós é insignificante. Sede vós mesmo a minha herança. Sois vós que amo... Esperar Deus de Deus, ser pleno de Deus por Deus. Ele te basta, fora dele nada te pode bastar" (cf. Sermão 334, 3: PL 38, 1469). 3. O segundo tema é o da comunhão perfeita e contínua com o Senhor. O Salmista exprime a firme esperança de ser preservado da morte para poder permanecer na intimidade de Deus, que não é mais possível na morte (cf. Sl 6, 6; 87,6). Todavia, as suas expressões não limitam esta preservação; aliás, podem ser entendidas como uma vitória sobre a morte que assegura a intimidade eterna com Deus. Os símbolos usados pelo orante são dois. Antes de tudo, é o corpo a ser evocado: os exegetas dizem-nos que no srcinal hebraico (cf. Sl 15, 7-10) se fala de "rins", símbolo das paixões e da interioridade mais escondida, de "direita", sinal de força, de "coração", sede da consciência, até de "fígado", que exprime a emotividade, de "carne", que indica a existência frágil do homem, e enfim, de "sopro de vida". É, portanto, a representação do "ser inteiro" da pessoa, que não é absorvido e aniquilado na corrupção do sepulcro (cf. v. 10), mas mantido na vida plena e feliz com Deus. 4. Eis, então, o segundo símbolo do Salmo 15, o do "caminho": "Hás-de ensinar-me o caminho da vida" (v. 11). É a estrada que conduz à "plena alegria na presença" divina, à "doçura sem fim, à direita" do Senhor. Estas palavras adaptam-se perfeitamente a uma interpretação que alarga a perspectiva à esperança da comunhão com Deus, além da morte, na vida eterna. Neste ponto, é fácil intuir como o Salmo foi acolhido pelo Novo Testamento em vista da ressurreição de Cristo. São Pedro, no seu discurso de Pentecostes, cita precisamente a segunda parte do hino com uma aplicação pascal e cristológica luminosa: "Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte" (Act 2, 24). São Paulo refere-se ao Salmo 15 no anúncio da Páscoa de Cristo, durante o seu discurso na sinagoga de Antioquia da Pisídia. Nesta luz, também nós o proclamamos: "Não deixarás o teu Santo ver a corrupção. Ora David, depois de servir na sua vida os desígnios de Deus, morreu; foi reunir-se aos seus pais e viu a corrupção. Mas aquele que Deus ressuscitou ou seja, Jesus Cristo não viu a corrupção" (Act 13, 35-37).
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Quarta-Feira 10 de março de 2004 Salmo 19: Salmo pela vitória do Rei-Messias
Caríssimos Irmãos e Irmãs 1. A invocação final: «Senhor, dá o triunfo ao rei e atende-nos quando te invocarmos» (Sl 19, 10), revela-nos a srcem do Salmo 19, que escutámos e que agora meditamos. Por conseguinte, estamos na presença de um Salmo real do antigo Israel, proclamado no templo de Sião durante um rito solene. Com ele é invocada a bênção divina sobre o soberano, sobretudo «no dia da angústia» (v. 2), isto é, no tempo em que toda a nação se sente atormentada por uma angústia profunda devido à ameaça de uma guerra. De facto, são recordados os carros e os cavalos (cf. v. 8) que parecem avançar no horizonte; a eles, o rei e o povo, contrapõem a sua confiança no Senhor, que se declara da parte dos fracos, dos oprimidos, das vítimas da arrogância dos conquistadores. É fácil compreender como a tradição cristã tenha transformado este Salmo num hino a Cristo-Rei, o «consagrado» por excelência, «o Messias» (cf. v. 7). Ele entra no mundo sem exércitos, mas com o poder do Espírito, e desencadeia o ataque definitivo contra o mal e a prevaricação, contra a prepotência e o orgulho, contra a mentira e o egoísmo. Ressoam também aos nossos ouvidos levemente as palavras que Cristo pronuncia, respondendo a Pilatos, emblema do poder imperial terrestre: «Eu sou rei. Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz»(Jo 18, 37). 2. Examinando o desenvolvimento deste Salmo, apercebemo-nos de que ele revela minuciosamente uma liturgia celebrada no templo hierosolimitano. Fazem parte do cenário os filhos de Israel, que rezam pelo rei, chefe da nação. Aliás, na abertura entrevê-se um rito sacrifical, em sintonia com os vários sacrifícios e holocaustos oferecidos pelo soberano ao «Deus de Jacob» (Sl 19, 2), que não abandona «o seu ungido» (v. 7), mas protege-o e defende-o. A oração está marcada em grande medida pela convicção de que o Senhor é a fonte da segurança: ele vai ao encontro do desejo confiante do rei e de toda a comunidade à qual está ligado pelo vínculo da aliança. O clima é, sem dúvida, o de um acontecimento com abstracta, todos os receios e riscos quesesuscita. de eDeus não é portanto uma bélico, mensagem mas uma voz que adaptaAàsPalavra pequenas grandes misérias da humanidade. Por isso, o Salmo reflecte a linguagem militar e a atmosfera que domina Israel em tempo de guerra (cf. v. 6), adaptando-se assim aos sentimentos do homem em dificuldade. 3. No texto do Salmo o v. 7 marca uma mudança. Enquanto os versículos anteriores exprimem implicitamente pedidos dirigidos a Deus (cf. vv. 2-5), o v. 7 afirma a certeza do atendimento obtido: «Agora tenho a certeza de que o Senhor dá a vitória ao SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
seu ungido; Ele responde-lhe do alto do seu santuário». O Salmo não esclarece qual sinal deu essa certeza. Contudo, expressa claramente um contraste entre a posição dos inimigos, que contam com a força material dos seus carros e cavalos, e a posição dos Israelitas, que têm confiança em Deus e, por conseguinte, são vitoriosos. O pensamento corre para o célebre episódio de David e Golias: o jovem hebreu contrasta as armas e a prepotência do guerreiro filisteu com a invocação do nome do Senhor, que protege os fracos e inermes. De facto, David diz a Golias: «Tu vens para mim de espada, lança e escudo; eu, porém, vou a ti em nome do Senhor do universo... não é com a espada nem com a lança que o Senhor triunfa, porque ele é o árbitro da guerra» (1 Sm 17, 45.47). 4. O Salmo, no seu concreto histórico tão ligado à lógica da guerra, pode tornar-se um convite a nunca se deixar capturar pela atracção da violência. Também Isaías exclamava: «Ai dos que... põem a sua confiança na cavalaria! Confiam nos carros porque são muitos, e nos cavaleiros porque são fortes. Não olham para o Santo de Israel, nem consultam o Senhor» (Is 31, 1). A qualquer forma de maldade o justo contrapõe a fé, a benevolência, o perdão, a oferenda de paz. O apóstolo Paulo admoesta os cristãos: «Não pagueis a ninguém o mal com o mal; interessai-vos pelo que é bom diante de todos os homens» (Rm 12, 17). E o historiador da Igreja dos primeiros séculos, Eusébio de Cesareia (séculos III-IV), ao comentar o nosso Salmo, alargará o olhar também sobre o mal da morte que o cristão sabe que pode vencer por obra de Cristo: «Todas as potências adversárias e os inimigos de Deus escondidos e invisíveis, rostos em fuga do próprio Salvador, decairão. Mas todos aqueles que receberem a salvação, ressurgirão da sua antiga ruína. Por isso Simeão dizia: “Ele veio para queda e ressurreição de muitos”, ou seja,
para a ruína dos seus adversários e inimigos e para a resurreição daqueles que outrora caíram mas agora foram por ele ressuscitados» (PG 23, 197). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 17 de março de 2004 Salmo 20: Acção de graças pela vitória do Rei 1. No âmbito do Salmo 20 a Liturgia das Vésperas destacou a parte que agora escutamos, omitindo de carácter imprecatório (cf. por vv. 9-13). A parte conservadaa fala no passado e nooutra presente dos favores concedidos Deus ao rei, enquanto parte omitida fala no futuro da vitória do rei sobre os seus inimigos. O texto que constitui o objecto da nossa meditação (cf. vv. 2-8.14) pertence ao género dos Salmos reais. Por conseguinte, no centro encontra-se a obra de Deus a favor do soberano hebraico representado talvez no dia solene da sua entronização. No início (cf. v. 2) e no fim (cf. v. 14) parece que ressoa uma aclamação de toda a assembleia, enquanto o centro do hino tem tonalidades de um cântico de gratidão, que o Salmista 29
dirige a Deus pelos favores concedidos ao rei: "bênçãos preciosas" (v. 4), "vida longa" (v. 5), "glória" (v. 6) e "alegria" (v. 7). É fácil intuir que a este cântico como aconteceu com os outros Salmos reais do Saltério foi designada uma nova interpretação quando, em Israel, desapareceu a monarquia. Já com o Judaísmo, ele se tinha tornado um hino em honra do rei-Messias: desta forma, aplainava-se o caminho da interpretação cristológica, que é precisamente adoptada pela liturgia. 2. Mas, lancemos primeiro um olhar ao texto no seu sentido srcinário. Respira-se uma atmosfera jubilosa e que ressoa de cânticos, tendo em consideração a solenidade do acontecimento: "Senhor, o rei alegra-se com o teu poder e regozija-se com o teu auxílio... Cantaremos e celebraremos a tua força!" (vv. 2.14). Depois, são referidos os dons de Deus ao soberano: Deus satisfez as suas preces (cf. v. 3), coloca-lhe sobre a cabeça uma coroa de ouro (cf. v. 4). O esplendor do rei está relacionado com a luz divina que o envolve como um manto protector: "cumulaste-o de esplendor e majestade" (v. 6). No antigo Médio Oriente considerava-se que o rei estivesse circundado por uma auréola luminosa, que confirmava a sua participação na própria essência da divindade. Naturalmente para a Bíblia o soberano é, sem dúvida, "filho" de Deus (cf. Sl 2, 7), mas apenas em sentido metafórico e adoptivo. Então, ele deve ser o lugar-tenente do Senhor em tutelar a justiça. Precisamente por esta missão Deus o circunda com a luz benéfica e com a sua bênção. 3. A bênção é um tema relevante neste hino breve: "Foste ao seu encontro com bênçãos preciosas... abençoaste-o para sempre" (Sl 20, 4.7). A bênção é sinal da presença divina que intervém no rei que, desta forma, se torna um reflexo da luz de Deus na humanidade. Na tradição bíblica, a bênção inclui também o dom da vida que é precisamente efundido sobre o consagrado: "Pediu-te a vida e Tu lha concedeste, vida longa, pelos séculos além" (v. 5). Também o profeta Natan tinha garantido a David esta bênção, fonte de estabilidade, subsistência e segurança, e David rezou da seguinte forma: "Abençoa, desde agora, a sua casa, para que ela subsista para sempre diante de ti: porque Tu, Senhor Deus, falaste e, graças à tua bênção, a casa do teu servo será abençoada eternamente!" (2 Sm 7, 29). 4. Recitando este Salmo, vemos delinear-se por detrás do retrato do rei hebraico o rosto de Cristo, rei messiânico. Ele é "irradiação da glória" (Hb 1, 3). Por conseguinte, Filho em sentido pleno e éSão a presença no meio da humanidade. Ele Ele éé oluz e vida, como proclama João no perfeita prólogode doDeus seu Evangelho: "Nele é que estava a Vida... e a Vida era a Luz dos homens" (1, 4). Nesta perspectiva, Santo Ireneu, Bispo de Lião, ao comentar o Salmo, aplicará o tema da vida (cf. Sl 20, 5) à ressurreição de Cristo: "Por que motivo o Salmista diz: "Pediu-te a vida", visto que Cristo estava para morrer? Por conseguinte, o Salmista anuncia a sua ressurreição dos mortos e que ele, ressuscitado dos mortos, é imortal.
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Com efeito, assumiu a vida para ressurgir, e longo espaço de tempo na eternidade para ser incorruptível" (Exposição da pregação apostólica, 72, Milão 1979, pág. 519). Com base nesta certeza também o cristão cultiva em si a esperança no dom da vida eterna.
PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 14 de Setembro de 2011 Salmo 22: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?"
Queridos irmãos e irmãs, Na catequese hodierna gostaria de meditar sobre um Salmo com fortes implicações cristológicas, que sobressai continuamente nas narrações da Paixão de Jesus, com a sua dúplice dimensão de humilhação e glória, de morte e vida. É o Salmo 22 segundo a tradição judaica, 21 segundo a tradição grecolatina, uma oração intensa e comovedora, de uma densidade humana e de uma riqueza teológica que fazem dele um dos Salmos mais recitados e estudados de Saltério. Trata-se de uma longaparte, composição e meditaremos de todo modooparticular sobre a sua primeira centradapoética, na lamentação, para aprofundar algumas dimensões significativas da oração de súplica a Deus. Este Salmo apresenta a figura de um inocente perseguido e circundado de adversários que desejam a sua morte; e ele recorre a Deus numa lamentação dolorosa que, na certeza da fé, se abre misteriosamente ao louvor. Na sua oração, a realidade angustiante do presente e a memória consoladora do passado alternam-se, numa difícil tomada de consciência acerca da sua situação desesperada que, no entanto, não quer renunciar à esperança. O seu clamor inicial é um apelo dirigido a um Deus que parece distante, que não responde e parece tê-lo abandonado:
«Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? As palavras do meu nãome sãorespondeis; por Vós ouvidas. Meu Deus, clamo declamor dia e não imploro durante a noite, sem conseguir sossegar» (vv. 2-3). Deus cala-se, e este silêncio dilacera a alma do orante, que chama incessantemente, mas sem encontrar uma resposta. Os dias e as noites sucedem-se, numa busca incansável de uma palavra, de uma ajuda que não chega; Deus parece tão distante, tão esquecido, tão ausente! A oração pede 31
escuta e resposta, solicita um contacto, procura uma relação que possa conferir conforto e salvação. Mas se Deus não responde, o grito de ajuda perde-se no vazio e a solidão torna-se insustentável. E no entanto o orante do nosso Salmo, no seu brado, chama três vezes o Senhor «meu» Deus, num extremo gesto de confiança e de fé. Não obstante qualquer aparência, o Salmista não pode acreditar que o vínculo com o Senhor se tenha interrompido totalmente; e enquanto pergunta o porquê do presumível abandono incompreensível, afirma que o «seu» Deus não o pode abandonar. Como se sabe, o clamor inicial do Salmo, «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?», é citado pelos Evangelhos de Mateus e de Marcos como o grito lançado por Jesus agonizante na Cruz (cf. Mt 27, 46; Mc 15, 34). Ele manifesta toda a desolação do Messias, Filho de Deus, que enfrenta o drama da morte, uma realidade totalmente oposta ao Senhor da vida. Abandonado por quase todos os seus, atraiçoado e renegado pelos discípulos, circundado por quantos o insultam, Jesus encontra-se sob o peso esmagador de uma missão que deve passar pela humilhação e o aniquilamento. Por isso, clama ao Pai, e o seu sofrimento assume as palavras dolorosas do Salmo. Mas o seu grito não é desesperado, como 0 do Salmista, que na sua súplica percorre um caminho atormentado, mas que no final acaba numa perspectiva de l0uvor, na confiança da vitória divina. E dado que no uso hebraico citar o início de um Salmo implicava uma referência ao poema inteiro, a prece dilacerante de Jesus, embora mantenha a sua carga de sofrimento indizível, abre-se à certeza da glória. «Não tinha o Messias de sofrer estas coisas para entrar na sua glória?», dirá o Ressuscitado aos discípulos de Emaús Lc ( 24, 26). Na sua paixão, em obediência ao Pai, o Senhor Jesus atravessa o abandono e a morte para alcançar a vida e para a doar a todos os fiéis. A este brado inicial de súplica, no nossoSalmo 22, segue-se num contraste doloroso a recordação do passado:
«Em Vós confiaram os nossos pais, confiaram, e Vós os livrastes; a vós clamaram e foram salvos; confiaram em Vós e não foram confundidos» (vv. 5-6). Aquele Deus que hoje ao Salmista parece tão distante é, no entanto, o Senhor misericordioso que Israel sempre experimentou na sua história. O povo ao qual o orante pertence foi objecto do amor de Deus, e pode dar testemunho da sua fidelidade. A começar pelos Patriarcas, e depois no Egipto e durante a longa peregrinação pelo deserto, na permanência na terra prometida em contacto com populações agressivas e inimigas, até ao obscurecimento do exílio, toda a história bíblica foi uma história de clamores de ajuda da parte do povo e de respostas salvíficas da parte de Deus. E o Salmista faz referência à fé inabalável dos seus Pais, que «confiaram» — esta SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
palavra é repetida três vezes — sem jamais permanecer confundidos. Agora, no entanto, parece que esta série de invocações confiantes e de respostas divinas se interrompeu; a situação do Salmista parece desmentir toda a história da salvação, tornando ainda mais dolorosa a realidade presente. Mas Deus não pode desmentir-se, e eis então que a oração volta a descrever a situação penosa do orante, para induzir o Senhor a ter piedade e a intervir, como sempre tinha feito no passado. O Salmista define-se «um verme, não um homem, o opróbrio de todos e a abjecção da plebe» (v. 7), é escarnecido, zombado (cf. v. 8) e ferido precisamente na fé: «Confiou no Senhor, que Ele o livre, que o salve, se o ama» (v. 9), dizem. Sob os golpes ultrajantes da ironia e do desprezo, parece quase que o perseguido perde as suas conotações humanas, como o Servo sofredor delineado no Livro de Isaías (cf. Is52, 14; 53, 2b-3). E como o justo oprimido, do Livro da Sabedoria (cf. 2, 12-20), ou como Jesus no Calvário (cf. Mt 27, 39-43), o Salmista vê posta em dúvida a própria relação com o seu Senhor, na evidência cruel e sarcástica daquilo que o faz sofrer: o silêncio de Deus, a sua aparente ausência. E no entanto, Deus esteve presente na existência do orante com uma proximidade e uma ternura inquestionáveis. O Salmista recorda-o ao Senhor: «Na verdade, Vós me tirastes do ventre materno, confiastes-me aos seios de minha mãe. Pertenço-vos desde o ventre materno» (vv. 10-11a). O Senhor é o Deus da vida, que faz nascer e acolher o recém-nascido, e cuida dele com carinho paterno. E se antes recordara a fidelidade de Deus na história do povo, agora o orante volta a evocar a própria história pessoal de relação com o Senhor, remontando ao momento particularmente significativo do início da sua vida. E ali, não obstante a desolação do presente, o Salmista reconhece uma proximidade e um amor divinos tão radicais que agora pode exclamar, numa confissão cheia de fé e geradora de esperança: «Desde o seio de minha mãe, Vós sois o meu Deus» (v. 11b). Agora, a lamentação torna-se uma súplica intensa: «Não vos afasteis de mim, porque estou atribulado; não há quem me ajude» (v. 12). A única proximidade que o Salmista sente e que o amedronta é a dos seus inimigos. Portanto, é necessário que Deus se aproxime e que o socorra, porque os inimigos circundam e rodeiam o orante, e são como touros poderosos, como leões que abrem as fauces para rugir e despedaçar (cf. vv. 13-14). A angústia altera a percepção do perigo, aumentando-o. Os adversários parecem invencíveis, tornaram-se animais ferozes e extremamente perigosos, enquanto o Salmista é como um pequeno verme, impotente, sem qualquer defesa. Mas estas imagens utilizadas no Salmo servem também para dizer que quando o homem se torna brutal e agride o irmão, algo de animalesco prevalece sobre ele, que parece perder qualquer semblante humano; a violência tem sempre em si algo de bestial, e só a intervenção salvífica de Deus pode restituir o homem à sua humanidade. Agora, para o Salmista, objecto de uma agressão tão feroz, parece que não existe mais salvação, e a morte começa a tomar 33
posse dele: «Sou como água que se derrama, todos os meus ossos se desconjuntam [...] A minha garganta secou-se como barro cozido; a minha língua pegou-se ao meu paladar [...] repartem entre si as minhas vestes, e lançam sorte sobre a minha túnica» (vv. 15.16.19). Com imagens dramáticas, que voltamos a encontrar nas narrações da Paixão de Cristo, descreve-se a decomposição do corpo do condenado, o calor insuportável que atormenta o moribundo e que encontra eco no pedido de Jesus: «Tenho sede» (cf. Jo 19, 28), para chegar ao gesto definitivo dos algozes que, como os soldados aos pés da Cruz, repartem entre si as vestes da vítima, já considerada morta (cf. Mt 27, 35; Mc15, 24; Lc 23, 34; Jo 19, 23-24). Eis então, imperioso, novamente o pedido de socorro: «Mas Vós, Senhor, não vos afasteis de mim; sois o meu auxílio, apressai-vos a ajudar-me [...] Salvai-me!» (vv. 20.22a). Trata-se de um grito que descerra os céus, porque proclama uma fé, uma certeza que vai mais além de toda a dúvida, de toda a escuridão e de toda a desolação. E a lamentação transforma-se, deixando espaço ao louvor no acolhimento da salvação: «Vós respondestesme. Então, anunciarei o vosso Nome aos meus irmãos, e louvar-vos-ei no meio da assembleia» (vv. 22c-23). Assim, o Salmo abre-se à acção de graças, ao grande hino final que abrange todo o povo, os fiéis do Senhor, a assembleia litúrgica e as gerações vindouras (cf. vv. 24-32). O Senhor acorreu em ajuda, salvou o pobre e mostrou o seu rosto de misericórdia. Morte e vida cruzaramse num mistério inseparável, e a vida triunfou; o Deus da salvação manifestou-se como Senhor incontestado, que todos os confins da terra celebrarão e diante do qual todas as famílias dos povos se prostrarão. É a vitória da fé, que pode transformar a morte em dom da vida, o abismo da dor em fonte de esperança. Caríssimos irmãos e irmãs, este Salmo levou-nos ao Gólgota, aos pés da Cruz de Jesus, para reviver a sua paixão e compartilhar a alegria fecunda da Ressurreição. Portanto, deixemo-nos invadir pela luz do mistério pascal, mesmo na aparente ausência de Deus, também no silêncio de Deus e, como os discípulos de Emaús, aprendamos a discernir a verdadeira realidade, para além das aparências, reconhecendo o caminho da exaltação precisamente na humilhação, e a plena manifestação da vida na morte, na cruz. Assim, depositando toda a nossa confiança e a nossa esperança em Deus Pai, em cada angústia também nós O poderemos suplicar com fé, e o nosso grito de ajuda transformar-se-á em cântico de louvor. Obrigado!
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 20 de junho de 2001
Salmo 23: O Senhor entra no seu templo
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. O antigo cântico do Povo de Deus, que agora acabamos de ouvir, ressoava no fundo do templo de Jerusalém. Para poder captar com clareza a ideia-base que atravessa este hino, é necessário ter bem presentes três dos seus pressupostos fundamentais. O primeiro diz respeito à verdade da criação: Deus criou o mundo e é o seu Senhor. O segundo refere-se ao juízo ao qual Ele submete as suas criaturas: devemos apresentar-nos a Ele para sermos interrogados sobre o que realizamos. O terceiro é o mistério da vinda de Deus: Ele vem ao mundo e à história, e deseja ter livre acesso, para estabelecer com os homens uma relação de profunda comunhão. Um comentador moderno escreveu: "Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus; nós vivemos por obra de Deus, perante Deus e podemos viver com Deus" (G. Ebeling, Sobre os Salmos, Bréscia 1973, pág. 97). 2. A estes três pressupostos correspondem as três partes do Salmo 23, que agora procuraremos aprofundar, considerando-as como três partes de um tríptico poético e orante. A primeira é uma breve aclamação ao Criador, ao qual pertence a terra com os seus habitantes (vv. 1-2). É uma espécie de profissão de fé no Senhor da criação e da história. A criação, segundo a antiga visão do mundo, é concebida como uma obra arquitectónica: Deus lança as bases da terra sobre o mar, símbolo das águas desordenadas e destruidoras, sinal do limite das criaturas, condicionadas pelo nada e pelo mal. A realidade está suspensa sobre este abismo e é a obra criadora e providencial de Deus que a conserva no ser e na vida. 3. Do horizonte cósmico a perspectiva do Salmista limita-se ao microcosmo de Sião, "o monte do Senhor". Estamos agora na segunda parte do Salmo (vv. 3-6). Estamos diante do templo de Jerusalém. A procissão dos fiéis dirige aos guardas da porta santa uma pergunta inicial: "Quem será digno de subir ao monte do Senhor? Quem poderá permanecer em seu lugar santo?". Os sacerdotes como se verifica também em alguns textos bíblicos chamados pelos estudiosos "liturgia de entrada" (cf. Sl 14; Is 33, 14-16; Mq 6, 6-8) respondem fazendo o elenco das condições para poder ter acesso à comunhão com o Senhor no culto. Não se trata de normas meramente rituais e exteriores devem ser um cumpridas, de empenhos morais e existenciais serem praticados.que É quase como exame demas consciência ou um acto penitencial queaprecede a celebração litúrgica. 4. São três as exigências apresentadas pelos sacerdotes. Em primeiro lugar é preciso ter "mãos inocentes e um coração puro". "Mãos" e "coração" recordam a acção e a intenção, isto é, todo o ser do homem que deve estar radicalmente orientado para Deus e para a sua lei. A segunda exigência é a de "não dizer mentiras" que, na linguagem bíblica, não remete apenas para a sinceridade mas sobretudo para a luta contra a 35
idolatria, sendo os ídolos falsos deuses, ou seja, "mentira". Desta forma, recorda-se o primeiro mandamento do Decálogo, a pureza da religião e do culto. Por fim, eis a terceira condição que diz respeito às relações com o próximo: "não jurar com perfídia contra o próximo". A palavra, como sabemos, numa civilização oral como era a do antigo Israel, não podia ser instrumento de engano, mas ao contrário, símbolo de relações sociais inspiradas na justiça e na rectidão. 5. Desta forma, chegamos à terceira parte que descreve indirectamente a entrada jubilosa dos fiéis no templo para se encontrarem com o Senhor (vv. 7-10). Num sugestivo jogo de apelos, perguntas e respostas, apresenta-se a revelação progressiva de Deus, marcada por três dos seus títulos solenes: "Rei da glória, Senhor forte e poderoso, Senhor dos exércitos". As portas do templo de Sião são personificadas e convidadas a levantar os seus dintéis para deixar entrar o Senhor que toma posse da sua casa. O cenário triunfal, descrito pelo Salmo nesta terceira parte poética foi utilizada pela liturgia cristã do Oriente e do Ocidente para recordar tanto a vitoriosa descida de Cristo ao inferno, da qual fala a Primeira Carta de Pedro (cf. 3, 19), como a gloriosa ascensão ao céu do Senhor ressuscitado (cf. Act 1, 9-10). O mesmo Salmo ainda é cantado em coros alternados pela liturgia bizantina na noite pascal, da mesma forma como era utilizado pela liturgia romana, no final da procissão dos ramos, no segundo Domingo da Paixão. A solene liturgia da abertura da Porta Santa, durante a inauguração do Ano Jubilar, permitiu-nos reviver com intensa comoção interior os mesmos sentimentos vividos pelo Salmista quando atravessou a porta do antigo Templo de Sião. 6. O último título, "Senhor dos exércitos", não tem como poderia parecer à primeira vista um carácter marcial, mesmo se não exclui uma referência às tropas de Israel. Ao contrário, está dotado de um valor cósmico: o Senhor, que agora está para vir ao encontro da humanidade dentro do espaço limitado do santuário de Sião, é o Criador que tem por exército todas as estrelas do céu, ou seja, todas as criaturas do universo que lhe obedecem. No livro do profeta Baruc lê-se: "As estrelas brilham nos seus postos e alegram-se. Ele chama-as e elas respondem: "Aqui estamos". E, jubilosas, dão luz ao Seu criador" (Br 3, 34-35). O Deus infinito, omnipotente e eterno adapta-se às criaturas humanas, aproxima-se delas para as encontrar, ouvir e entrar em comunhão com elas. E a liturgia é a expressão deste encontro na fé, no diálogo e no amor.
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PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Praça de São Pedro Quarta-feira, 5 de Outubro de 2011 Salmo 23
Queridos irmãos e irmãs, Dirigir-se ao Senhor na oração exige um gesto de confiança radical, com a consciência de nos confiarmos a Deus que é bom, «misericordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-se, cheio de bondade e de fidelidade» (Êx 34, 6-7; Sl 86, 15; cf. Gl 2, 13; Gn 4, 2; Sl 103, 8; 145, 8; Ne9, 17). Por isso, hoje gostaria de meditar convosco sobre um Salmo inteiramente imbuído de confiança, em que o Salmista exprime a sua certeza tranquila de que é guiado e protegido, salvaguardado de todo o perigo, porque o Senhor é o seu pastor. Trata-se do Salmo 23 — segundo os dados greco-latinos, 22 — um texto familiar para todos e amado por todos. «O Senhor é o meu pastor: nada me falta»: assim começa esta linda oração, evocando o ambiente nómade da pastorícia e a experiência de conhecimento recíproco que se estabelece entre o pastor e as ovelhas que compõem o seu pequeno rebanho. A imagem evoca uma atmosfera de confiança, intimidade e ternura: o pastor conhece as suas ovelhas uma por uma, chama-as pelo nome e elas seguem-no porque o reconhecem e confiam nele (cf. Jo 10, 2-4). Ele cuida delas, conserva-as como bens preciosos, pronto a defendê-las, a garantir o seu bem-estar e a fazer com que vivam em tranquilidade. Nada lhes pode faltar, se o pastor estiver com elas. A esta experiência faz referência o Salmista, chamando Deus seu pastor e deixandose orientar por Ele para pastagens seguras:
«Em verdes prados me faz descansar, e conduz-me a águas refrescantes. Reconforta a minha alma e guia-me pelos caminhos rectos, por amor do seu nome» (vv. 2-3). A visão que se abre aos nossos olhos é de verdes prados e águas refrescantes, oásis de paz rumo aos quais o pastor acompanha o rebanho, símbolos dos lugares de vida para os quais o Senhor conduz o Salmista, que se sente como as ovelhas deitadas na relva ao lado de uma nascente, numa situação de descanso, não em tensão nem em estado de alarme, mas confiantes e tranquilas, porque o lugar é seguro, a água é fresca e o pastor vela sobre 37
elas. E não esqueçamos aqui que a cena evocada do Salmo é ambientada numa terra em boa parte desértica, atingida pelo sol ardente, onde o pastor seminómade médio-oriental vive com o seu rebanho nas estepes que se estendem ao redor dos povoados. Mas o pastor sabe onde encontrar erva e água fresca, essenciais para a vida, sabe conduzir ao oásis em que a alma «se restabelece» e é possível retomar as forças e novas energias para se pôr novamente a caminho. Como diz o Salmista, Deus guia-o rumo a «verdes prados» e «águas refrescantes», onde tudo é superabundante, tudo é concedido abundantemente. Se o Senhor é o pastor, também no deserto, lugar de ausência e de morte, não esmorece a certeza de uma presença de vida radical, a ponto de poder dizer: «Nada me falta». Com efeito, o pastor tem a peito o bem do seu rebanho, adapta os próprios ritmos e as suas exigências aos das suas ovelhas, caminha e vive com elas, guiando-as por caminhos «rectos», ou seja adequados, com atenção às necessidades delas, e não às suas. A segurança do seu rebanho é a sua prioridade, e a ela obedece ao guiá-lo. Prezados irmãos e irmãs, também nós, como o Salmista, se caminharmos atrás do «Bom Pastor», por mais difíceis, sinuosos ou longos que possam parecer os percursos da nossa vida, com frequência inclusive em regiões espiritualmente desérticas, sem água e com um sol de racionalismo ardente, sob a guia do Bom Pastor, Cristo, temos a certeza de caminhar pelas estradas «rectas», e que o Senhor nos orienta e está sempre próximo de nós, e nada nos faltará. Por isso, o Salmista pode declarar uma tranquilidade e uma segurança, sem incertezas nem temores:
«Mesmo que atravesse os vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo. O vosso bastão e o vosso cajado dão-me conforto» (v. 4). Quem atravessa com o Senhor mesmo os vales sombrios do sofrimento, da incerteza e de todos os problemas humanos, sente-se seguro. Tu estás comigo: esta é a nossa certeza, aquela que nos sustém. A escuridão da noite causa medo, com as suas sombras mutáveis, a dificuldade de distinguir perigos, silêncio quando cheio dea visibilidade ruídos indecifráveis. Se oé rebanho se os move depoiso doseupôr-do-sol, se faz incerta, normal que as ovelhas se sintam inquietas, pois há o risco de tropeçar, ou então de se afastar e de se perder, e há ainda o temor de possíveis agressores que se escondam na obscuridade. Para falar do vale «sombrio», o Salmista usa uma expressão hebraica que evoca as trevas da morte, pelo que o vale a atravessar é um lugar de angústia, de ameaças terríveis, de perigo de morte. E no entanto, o orante procede seguro, sem medo, porque sabe que o Senhor está SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
com ele. Aquele «Tu estás comigo» é uma proclamação de confiança inabalável e resume a experiência de fé radical; a proximidade de Deus transforma a realidade, o vale sombrio deixa de ser perigoso, esvaziando-se de qualquer ameaça. Agora, o rebanho pode caminhar tranquilo, acompanhado pelo barulho familiar do bastão que bate no terreno e denota a presença tranquilizadora do pastor. Esta imagem confortadora encerra a primeira parte do Salmo, e deixa o lugar a um cenário diverso. Ainda estamos no deserto, onde o pastor vive com o seu rebanho, mas agora somos transportados para a sua tenda, que se abre para oferecer hospitalidade:
«Preparais-me um banquete diante dos meus adversários. Ungis com óleo a minha cabeça; e a minha taça transborda» (v. 5). Agora o Senhor é apresentado como Aquele que recebe o orante, com os sinais de uma hospitalidade generosa e cheia de atenções. O anfitrião divino prepara o alimento na «mesa», um termo que em hebraico indica, no seu sentido primitivo, a pele de animal que era estendida no chão, e sobre a qual eram postos os alimentos para a refeição em comum. Trata-se de um gesto de partilha não só da comida, mas também da vida, numa oferenda de comunhão e de amizade que cria vínculos e exprime solidariedade. E depois há ainda o dom magnânimo do óleo perfumado sobre a cabeça, que dá alívio ao calor do sol do deserto, refresca e cura a pele, e alegra o espírito com a sua fragrância. Enfim, a taça transbordante acrescenta uma nota de festa, com o seu vinho delicioso, compartilhado com generosidade superabundante. Alimento, óleo e vinho: são os dons que fazem viver e dão alegria porque vão além do que é estritamente necessário e expressam a gratuidade e a abundância do amor. Celebrando a bondade providente do Senhor, o Salmo 104 proclama: «Fazeis brotar a relva para o gado, e plantas úteis para o homem, a fim de que da terra possa extrair o pão e o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que lhe faz brilhar o rosto e o pão que lhe sustenta as forças» (vv. 14-15). O Salmista torna-se objecto de muitas atenções, pelo que se vê como um viandante que encontra salvaguarda numa tenda hospitaleira, enquanto os seus adversários devem parar para olhar, sem poder intervir, porque aquele que consideravam sua presa encontrou refúgio, tornouse hóspede sagrado, intocável. E o Salmista somos nós, se formos realmente crentes em comunhão com Cristo. Quando Deus abre a sua tenda para nos receber, nada nos pode ferir. Depois, quando o viandante volta a partir, a salvaguarda divina prolonga-se e acompanha-o durante a sua viagem: 39
«A graça e a bondade hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida. A minha morada será a casa do Senhor ao longo dos dias» (v. 6). A bondade e a fidelidade de Deus são a escolta que acompanha o Salmista que sai da tenda e se põe novamente a caminho. Mas é um caminho que adquire um novo sentido e se torna peregrinação rumo ao Templo do Senhor, o lugar santo em que o orante quer «habitar» para sempre e para o qual também deseja «voltar». O verbo hebraico aqui utilizado tem o sentido de «voltar», mas com uma pequena modificação vocálica, pode ser entendido como «habitar», e é assim citado pelas antigas versões e pela maior parte das traduções modernas. Ambos os sentidos podem ser conservados: voltar ao Templo e ali habitar é o desejo de cada israelita, e habitar perto de Deus na sua proximidade e bondade é o anseio e a saudade de cada crente: poder habitar realmente onde está Deus, perto de Deus. O seguimento do Pastor conduz à sua casa; esta é a meta de cada caminho, oásis almejado no deserto, tenda de refúgio na fuga dos inimigos, lugar de paz onde experimentar a bondade e o amor fiel de Deus, dia após dia, na alegria serena de um tempo sem fim. As imagens deste Salmo, com a sua riqueza e profundidade, acompanharam toda a história e a experiência religiosa do povo de Israel e acompanham os cristãos. A figura do pastor, em particular, evoca o tempo srcinário do Êxodo, o longo caminho no deserto, como um rebanho sob a guia do Pastor divino (cf. Is 63, 11-14; Sl 77, 20-21; 78, 52-54). E na Terra prometida o rei tinha a tarefa de apascentar a grei do Senhor, como David, pastor escolhido por Deus e figura do Messias (cf. 2 Sm 5, 1-2; 7, 8; Sl 78, 7072). Depois, após o exílio da Babilónia, como que num novo Êxodo (cf.Is 40, 3-5.9-11; 43, 16-21), Israel é reconduzido à sua pátria como uma ovelha tresmalhada que volotu a ser encontrada, reconduzida por Deus para verdes prados e lugares de descanso (cf. Ez 34, 11-16.23-31). Mas é no Senhor Jesus que toda a força evocativa do nosso Salmo alcança a sua totalidade, encontra a sua plenitude de significado: Jesus é o «Bom Pastor» que vai à procura da ovelha tresmalhada, que conhece as suas ovelhas e que dá a própria vida por elas (cf. Mt 18, 12-14; Lc 15, 4-7; Jo 10, 2-4.11-18); Ele é a vereda, o caminho recto que nos leva à vida (cf. Jo 14, 6), a luz que ilumina o vale sombrio e vence todo o nosso medo (cf.Jo 1, 9; 8, 12; 9, 5; 12, 46). Ele é o anfitrião generoso que nos recebe e nos protege dos inimigos, preparando-nos a mesa do seu Corpo e do seu Sangue (cf. Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 19-20), e a mesa definitiva do banquete messiânico no Céu (cf. Lc 14, 15 ss.; Ap 3, 20; 19, 9). Ele é o Pastor real, rei na mansidão e no perdão, entronizado no madeiro glorioso da Cruz (cf. Jo 3, 13-15; 12, 32; 17, 4-5).
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Caros irmãos e irmãs, o Salmo 23 convida-nos a renovar a nossa confiança em Deus, abandonando-nos totalmente nas suas mãos. Portanto, peçamos com fé ao Senhor que nos conceda, também através das estradas difíceis do nosso tempo, caminhar sempre pelas suas sendas como um rebanho dócil e obediente, nos receba na sua casa, à sua mesa e nos conduza a «águas refrescantes» para que, no acolhimento do dom do seu Espírito, possamos saciar-nos nas suas nascentes, fontes daquela água viva «que jorra para a vida eterna» (Jo 4, 14; cf. 7, 37-39). Obrigado! PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 21 de abril de 2004 Salmo 26: Confiança em Deus face aos perigos
1. Retomamos hoje o nosso itinerário no âmbito das Vésperas com o Salmo 26, que a liturgia distribui em dois trechos diferentes. Seguiremos agora a primeira parte deste díptico poético e espiritual (cf. vv. 1-6) que tem como pano de fundo o templo de Sião, sede do culto de Israel. Com efeito, o Salmista fala explicitamente de "casa do Senhor", de "santuário" (v. 4), de "refúgio, habitação, casa" (cf. vv. 5-6). Aliás, no srcinal hebraico estas palavras indicam mais precisamente o "tabernáculo" e a "tenda", ou seja, o próprio coração do templo, onde o Senhor se revela com a sua presença e com a sua palavra. Recorda-se também o "rochedo" de Sião (cf. v. 5), lugar de segurança e de refúgio, e é feita alusão à celebração dos sacrifícios de agradecimento (cf. v. 6). Por conseguinte, se a liturgia é a atmosfera em que o Salmo está mergulhado, o fio condutor da oração é a confiança em Deus, tanto no dia da alegria como no tempo do receio. 2. A primeira parte do Salmo, que agora meditamos, está marcada por uma grande serenidade, fundada na confiança em Deus no dia tenebroso do assalto dos malvados. As imagens usadas para descrever estes adversários, que são o sinal do mal que corrompe a história, são de dois tipos. Por um lado, parece que há uma imagem de caça feroz: os malvados são como feras que avançam para se apoderar da sua vítima e para devorar a sua carne, mas resvalam e caem (cf. v. 2). Por outro lado, há o símbolo militar de um assalto realizado por um exército inteiro: trata-se de uma batalha que se alastra impetuosa, semeando terror e morte (cf. v. 3). A vida do crente muitas vezes é submetida a tensões e contestações, por vezes também a uma recusa e até à perseguição. O comportamento do homem justo incomoda, porque ressoa como uma admoestação em relação aos prepotentes e pervertidos. Reconhecem isto sem meios termos os ímpios descritos no Livro da Sabedoria: o justo "tornou-se para nós uma condenação dos nossos sentimentos"; o justo "tornou-se uma viva censura para os nossos pensamentos; só o acto de o vermos nos incomoda, pois a 41
sua vida não é semelhante à dos outros e os seus caminhos são muito diferentes" (2, 1415). 3. O fiel tem consciência de que a coerência cria isolamento e até provoca desprezo e hostilidade numa sociedade que muitas vezes escolhe como estandarte a vantagem pessoal, o sucesso exterior, a riqueza, o prazer desenfreado. Contudo, ele não está só e o seu coração conserva uma paz interior surpreendente, porque como diz a maravilhosa "antífona" de abertura do Salmo "o Senhor é minha luz e salvação" (Sl 26, 1). Repete continuamente: "de quem terei medo?... quem me assustará?... o meu coração não temerá... ainda assim terei confiança" (vv. 1-3). Parece que quase ouvimos a voz de São Paulo que proclama: "Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?" (Rm 8, 31). Mas a tranquilidade interior, a fortaleza de ânimo e a paz são um dom que se obtém refugiando-se no templo, isto é, recorrendo à oração pessoal e comunitária. 4. Com efeito, o orante entrega-se nos braços de Deus e o seu sonho é expresso também por outro Salmo (cf. 22, 6): "habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida". Nela ele pedirá "para saborear o seu encanto" (Sl 26, 4), contemplar e animar o mistério divino, participar na liturgia sacrifical e elevar os seus louvores ao Deus libertador (cf. v. 6). O Senhor cria à volta do seu fiel um horizonte de paz, que deixa fora o tumulto do mal. A comunhão com Deus é fonte de serenidade, de alegria, de tranquilidade; é como entrar num oásis de luz e de amor. 5. Ouçamos agora, como conclusão da nossa reflexão as palavras do monge Isaías, de srcem síria, que viveu no deserto egípcio e faleceu por volta de 491. No seu Asceticon ele aplica o nosso Salmo à oração na tentação: "Se vemos os inimigos que nos circundam com a sua astúcia, isto é, com a acídia, quer porque enfraquecem a nossa alma no prazer, quer porque não contemos a nossa cólera contra o próximo quando ele age contra o seu dever, ou se oprimem os nossos olhos para os conduzir à concupiscência, ou se nos querem induzir a saborear os prazeres da gula, se fazem com que, para nós, a palavra do próximo seja como que um veneno, se nos fazem subestimar a palavra de outrem, se nos levam a fazer diferenças entre os fiéis dizendo: "Este é bondoso, aquele é maldoso": portanto, se todas estas coisas nos circundam, não desanimemos, mas ao contrário, como David, brademos com o coração firme, dizendo: "O Senhor é o baluarte da minha vida!" (Sl 26, 1)" (Recueil ascétique, Bellefontaine, 1976, pág. 211). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 28 de abril de 2004 Salmo 26: Oração do inocente perseguido 1. A Liturgia das Vésperas subdividiu em duas partes o Salmo 26, seguindo a própria estrutura do texto que é semelhante a um díptico. Proclamámos agora a segunda parte deste cântico de confiança que se eleva ao Senhor no dia tenebroso do ataque do SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
mal. São os versículos 7-14 do Salmo: eles começam com um brado dirigido ao Senhor: "tem compaixão de mim e responde-me" (v. 7), porque expressam uma busca intensa do Senhor, com o doloroso receio de ser abandonado por ele (cf. vv. 8-9) e, por fim, apresentam aos nossos olhos um horizonte dramático onde os próprios afectos familiares vêm a faltar (cf. v. 10) enquanto neles se movem "inimigos" (v. 11), "adversários" e "falsas testemunhas" (v. 12). Mas também agora, como na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo é a confiança que o orante tem no Senhor, que salva na prova e dá apoio durante a tempestade. A este propósito, é bonito o apelo que no final o Salmista dirige a si próprio: "Confia no Senhor! Sê forte e corajoso e confia no Senhor!" (v. 14; cf. Sl 41, 612 e 42, 5). Também noutros Salmos se fazia sentir a certeza de que do Senhor se obtém fortaleza e esperança: "O Senhor protege os seus fiéis, mas castiga com rigor os orgulhosos. Tende coragem e fortalecei o vosso coração todos vós, que esperais no Senhor" (Sl 30, 24-25). Já o profeta Oseias exorta Israel da seguinte forma: "guarda a misericórdia e a justiça, e espera sempre no teu Deus" (12, 7). 2. Contentamo-nos agora com realçar três elementos simbólicos de grande intensidade espiritual. O primeiro deles é o negativo do pesadelo dos inimigos (cf. Sl 26, 12). Eles são caracterizados como uma fera que "cobiça" a sua presa e depois, de maneira mais directa, como "falsas testemunhas" que parecem soprar pelo nariz a violência, precisamente como as feras diante das suas vítimas. Por conseguinte, no mundo existe um mal agressivo, que encontra em Satanás o guia e o inspirador, como recorda São Pedro: "O vosso adversário, o demónio, como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar" (1 Pd 5, 8). 3. A segunda imagem ilustra de modo claro a confiança serena e fiel, apesar do abandono até por parte dos pais: "Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem, o Senhor há-de acolher-me" (Sl 26, 10). Também na solidão e na perda dos afectos mais queridos, o orante nunca está totalmente sozinho porque Deus misericordioso se inclina sobre ele. O pensamento corre para um célebre trecho do profeta Isaías, que confere a Deus sentimentos de compaixão e de ternura mais do que maternas: "Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, eu nunca te esqueceria" (49, 15). Recordemos a todas as pessoas idosas, doentes, esquecidas por todos, às quais ninguém jamais fará euma carícia, estas palavras Salmista e doe profeta, que sintam a mão paterna materna do Senhor acariciardo silenciosamente com amorpara os seus rostos sofredores e talvez assinalados pelas lágrimas. 4. Assim, chegamos ao terceiro e último símbolo, reiterado várias vezes pelo Salmo: "os meus olhos te procuram, é a Tua face que eu procuro, Senhor, não desvies de mim o teu rosto" (cf. vv. 8-9). Por conseguinte, é o rosto de Deus a meta da busca espiritual do orante. Por fim emerge uma certeza indiscutível, a de poder "contemplar a bondade do Senhor" (v. 13). 43
Na linguagem dos Salmos "procurar o rosto do Senhor" muitas vezes é sinónimo da entrada no templo para celebrar e experimentar a comunhão com o Deus de Sião. Mas a expressão inclui também a experiência mística da intimidade divina mediante a oração. Por conseguinte, na liturgia e na oração pessoal é-nos concedida a graça de intuir aquele rosto que nunca poderemos ver directamente durante a nossa existência terrena (cf. Êx 33, 20). Mas Cristo revelou-nos, de uma maneira acessível, o rosto divino e prometeu que no encontro definitivo da eternidade como nos recorda São João "o veremos tal como Ele é" (1 Jo 3, 2). E São Paulo acrescenta: "veremos face a face" (1 Cor 13, 12). 5. Ao comentar este Salmo, o grande escritor cristão do terceiro século, Orígenes, assim anota: "Se um homem procurar o rosto do Senhor, verá a glória do Senhor de maneira revelada e, tendo-se tornado igual aos anjos, verá sempre o rosto do Pai que está no céu" (PG 12, 1281). E Santo Agostinho, no seu comentário aos Salmos, continua da seguinte forma a oração do Salmista: "Não procurei em Ti prémio algum que não esteja em Ti, mas o teu rosto. "É o Teu rosto, Senhor, que procuro". Insistirei com perseverança nesta busca; de facto, não procurarei algo de pouco valor, mas o Teu rosto, ó Senhor, para te amar gratuitamente, visto que nada encontro de mais precioso... "Não te afastes encolerizado do Teu servo", para que ao procurar-te, não me depare com outras coisas. Que pena pode ser mais grave do que esta para quem ama e procura a verdade do Teu rosto?" (Exposições sobre os Salmos, 26, 1, 8-9), Roma 1967, pp. 355 e 357). JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 13 de junho de 2001
Salmo 28: O Senhor proclama solenemente a sua palavra
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. Alguns estudiosos consideram o Salmo 28, que acabamos de recitar, como um dos textos mais antigos do Saltério. É poderosa a imagem que o sustém no seu desenvolvimento poético e orante: de facto, estamos perante o desencadear progressivo de uma tempestade. Ela é marcada no srcinal hebraico por uma palavras, qol, que significa ao mesmo tempo "voz" e "trovão". Por isso alguns comentadores deram ao nosso texto o título de "Salmo dos sete trovões", devido ao número de vezes que essa palavra é repetida. dizer-se, como efeito, que o transcendente Salmista concebe o trovão como umnele símbolo da vozPode divina que, com seu mistério e inatingível, irrompe na realidade criada chegando ao ponto de a perturbar e amedrontar, mas que no seu significado mais profundo é palavra de paz e de harmonia. Aqui o pensamento vai para o capítulo 12 do IV Evangelho, onde a voz que, do céu, responde a Jesus, é entendida pela multidão como um trovão (cf. Jo 12, 28-29). Ao propor o Salmo 28 para a oração das Laudes, a Liturgia das Horas convidanos a assumir uma atitude de profunda e confiante adoração da Majestade divina. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
2. São dois os momentos e os lugares aos quais o cantor bíblico nos conduz. No centro (cf. vv. 3-9) encontra-se a representação da tempestade que se desencadeia a partir da "extensão das águas" do Mediterrâneo. As águas marinhas, aos olhos do homem da Bíblia, encarnam a desordem que atenta contra a beleza e o esplendor da criação, chegando a corrompê-la, a destruí-la e a abatê-la. Por conseguinte, temos na observação da tempestade que se enfurece, a descoberta do poder imenso de Deus. Quem reza vê o furacão que se desloca para norte e cai na terra firme. Os cedros altíssimos do monte Líbano e do monte Sirion, chamado outras vezes Hermon, são arrancados pelos raios e parecem saltar sob os trovões como animais amedrontados. Os estrondos aproximam-se, atravessam toda a Terra Santa e descem para sul, nas estepes desérticas de Kades. 3. Após esta visão de grande movimento e tensão somos convidados a contemplar, por contraste, outro cenário que é representado no início e no final do Salmo (cf. vv. 1-2.9-11). Ao assombro e ao medo contrapõe-se agora a glorificação adorante de Deus no templo de Sião. Há quase um canal de comunicação que une o santuário de Jerusalém com o santuário celeste: nestes dois âmbitos sagrados há paz e eleva-se o louvor à glória divina. O barulho ensurdecedor dos trovões é substituído pela harmonia do cântico litúrgico, o terror pela certeza da protecção divina. Agora Deus aparece "dominante sobre a tempestade" como "rei para sempre" (v. 10), isto é, como o Senhor e o Soberano de toda a criação. 4. Diante destes dois quadros antitéticos o orante é convidado a realizar uma dupla experiência. Em primeiro lugar, deve descobrir que o mistério de Deus, expresso no símbolo da tempestade, não pode ser apreendido e dominado pelo homem. Como canta o profeta Isaías, o Senhor, semelhante ao esplendor ou à tempestade, irrompe na história semeando pânico em relação aos perversos e aos opressores. Sob a intervenção do seu juízo, os adversários soberbos são destronados como árvores atingidas por um furacão ou como cedros despedaçados pelas flechas divinas (cf. Is 14, 7-8). Nesta luz é evidenciado aquilo que o pensador moderno (Rudolph Otto) qualificou como o tremendum de Deus, ou seja, a sua transcendência inefável e a sua presença de juíz justo na história da humanidade. Ela ilude-se em vão ao pensar que pode opor-se ao seu poder soberano. Também Maria exaltará no Magnificat este aspecto do agir de Deus: "Exerceu a força com o Seu braço e aniquilou os que se elevavam no seu próprio conceito. Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes" (Lc 1, 51-52). 5. Mas o Salmo apresenta-nos outro aspecto do rosto de Deus, o que se descobre na intimidade da oração e naoucelebração da liturgia. Segundo o pensador mencionado, é o fascinosum de Deus, seja, o fascínio que provém da sua graça, o mistério do amor que se propaga no fiel, a segurança serena da bênção reservada para o justo. Até perante a confusão do mal, das tempestades da história, e da própria cólera da justiça divina, o orante se sente em paz, envolvido pelo manto de protecção que a Providência oferece a quem louva a Deus e segue os seus caminhos. Através da oração chega-se à consciência de que o verdadeiro desejo do Senhor consiste em conceder a paz. 45
No templo é restabelecida a nossa apreensão e cancelado o nosso terror; nós participamos na liturgia celeste com todos "os filhos de Deus", anjos e santos. E sobre a tempestade, semelhante ao dilúvio destruidor da maldade humana, curva-se então o arco-íris da bênção divina, que recorda "a aliança eterna concluída entre Deus e todos os seres vivos de toda a espécie que há na terra" (Gn 9, 16). É esta, principalmente, a mensagem que se realça na leitura "cristã" do Salmo. Se os sete "trovões" do nosso Salmo representam a voz de Deus no universo, a expressão mais nobre desta voz é aquela com que o Pai, na teofania do Baptismo de Jesus, revelou a Sua identidade mais profunda como "Filho muito amado" (Mc 1, 11 e par.). São Basílio escreve: "Talvez, e de maneira mais mística, "a voz do Senhor sobre as águas" ecoou quando veio uma voz do alto ao baptismo de Jesus e disse: Este é o Meu Filho muito amado. Então, de facto, o Senhor pairava sobre muitas águas, santificando-as com o baptismo. O Deus da glória ecoou do alto com a voz poderosa do seu testemunho... E podes também entender como "trovão" aquela mudança que, depois do baptismo, se realiza através da grande "voz" do Evangelho"(Homilias sobre os Salmos: PG 30, 359 PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 12 de maio de 2004 Salmo 29: Acção de graças pela libertação da morte 1. Eleva-se a Deus, do coração do orante, uma acção de graças intensa e suave depois de se ter dissolvido nele o pesadelo da morte. Eis o sentimento que sobressai com vigor no Salmo 29, que agora ressoou não só aos nossos ouvidos, mas sem dúvida também nos nossos corações. Este hino de gratidão possui uma notável dedicadeza literária e fundamenta-se sobre uma série de constrastes que expressam de maneira simbólica a libertação obtida pelo Senhor. Assim, o "descer ao túmulo" opõe-se ao "livrar a alma da mansão dos mortos" (cf. v. 4); a "indignação de um instante" por parte de Deus, substitui-se "à benevolência para toda a vida" (v. 6); o "pranto" nocturno é substituído pela "alegria" da manhã (ibid.); ao "lamento" sucede a "dança", às "vestes" fúnebres de "saco", o "hábito de alegria" (v. 12). Por conseguinte, tendo passado a noite da morte, desperta o alvorecer do novo dia. A tradição cristã pois, este Salmolitúrgico como um pascal. Confirma isto a citação de abertura queleu, a edição do texto dascântico Vésperas deduz de um grande escritor monástico do século IV, João Cassiano: "Cristo dá graças ao Pai pela sua ressurreição gloriosa". 2. O orante dirige-se com insistência ao "Senhor" não menos de 8 vezes tanto para anunciar que O louvará (cf. vv. 2 e 13), como para recordar o brado que a Ele foi elevado no tempo da prova (cf. vv. 3 e 9) e a sua intervenção libertadora (cf. vv. 2-
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4.8.12), como para invocar novamente a sua misericórdia (cf. v. 11). Noutro trecho, ele convida os fiéis a cantar hinos ao Senhor para lhe dar graças (cf. v. 5). As sensações oscilam constantemente entre a recordação terrível do pesadelo vivido e a alegria da libertação. Sem dúvida, o perigo superado é grave e ainda consegue fazer arrepiar; a memória do sofrimento passado é ainda nítida e viva; há pouco que as lágrimas dos olhos se enxugaram. Mas já surgiu a aurora de um novo dia; a morte foi substituída pela perspectiva da vida que continua. 3. O Salmo demonstra assim que nunca nos devemos deixar seduzir pelo enredo obscuro do desespero, quando parece que tudo já se perdeu. Sem dúvida, é preciso evitar cair na ilusão de salvar-se sozinho, com os próprios recursos. De facto, o Salmista é tentado pela soberba e pela auto-suficiência: "Eu dizia na minha felicidade: "Jamais serei abalado"!" (v. 7). Também os Padres da Igreja reflectiram sobre esta tentação que se insinua no tempo da prosperidade, e viram na prova uma chamada divina à humildade. Assim faz, por exemplo, São Fulgêncio, Bispo de Ruspe (467-532), na sua Epístola 3, dirigida à religiosa Proba, na qual comenta o trecho do Salmo com estas palavras: "O Salmista confessava que por vezes se tinha envaidecido de ser sadio, como se fosse uma sua virtude, e que nisto tinha visto o perigo de uma gravíssima enfermidade. De facto, diz: ..."Eu dizia na minha felicidade: jamais serei abalado!". E visto que, dizendo isto, tinha sido abandonado do apoio da graça divina e, perturbado, precipitou na sua enfermidade, continua dizendo: "Senhor, foste bom para mim e deste-me segurança; mas, se escondes a tua face, logo fico perturbado". Além disso, para mostrar que a ajuda da graça divina, mesmo quando já a possuímos, deve ser contudo invocada humildemente sem ininterrupção, ele acrescenta ainda: "A ti brado, Senhor, peço a ajuda ao meu Deus". Aliás, ninguém eleva a oração nem faz pedidos sem reconhecer as suas faltas, nem considera poder conservar aquilo que possui confiando unicamente na própria virtude" (Fulgêncio de Ruspe, As Cartas, Roma 1999, pág. 113). 4. Depois de ter confessado a tentação de soberba que teve no tempo da prosperidade, o salmista recorda a prova que a ela se seguiu, dizendo ao Senhor: "Se escondes a tua face, logo fico perturbado" (v. 8). Então, o orante recorda de que maneira implorou o Senhor (cf. vv. 9-11): gritou, pediu ajuda, suplicando que fosse salvaguardado da morte, apresentando como razão o facto de que a morte não traz vantagem alguma para Deus, dado que os mortos já não estão em condições de louvar a Deus, nem têm motivos para proclamar a fidelidade de Deus, tendo sido abandonados por Ele. os mesmos no Salmo 87, no qual o orante, ou próximo da morte,Encontramos pede a Deus: "Poderáargumentos a tua bondade ser exaltada no sepulcro a tua fidelidade, na mansão dos mortos?" (Sl 87, 12). De modo semelhante, o rei Ezequias, que estava gravemente doente mas que depois se curou, dizia a Deus: "O abismo dos mortos não te louvará, nem a morte te celebrará... apenas os vivos te podem louvar" (Is 38, 18-19). O Antigo Testamento exprimia assim o intenso desejo humano de uma vitória de Deus sobre a morte e referia diversos casos em que esta vitória tinha sido obtida: 47
pessoas ameaçadas de morrer de fome no deserto, presos que se livraram da pena de morte, doentes que se curaram, marinheiros salvos do naufrágio (cf. Sl 106, 4-32). Tratava-se contudo de vitórias não definitivas. Cedo ou tarde, a morte conseguia prevalecer sempre. Contudo, a aspiração pela vitória manteve-se sempre e tornou-se, no final, uma esperança de ressurreição. A satisfação desta poderosa aspiração foi plenamente garantida com a ressurreição de Cristo, pela qual o nosso agradecimento nunca será demasiado.
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Quarta-Feira 19 de maio de 2004 Salmo 31: Acção de graças pelo perdão dos pecados
Queridos Irmãos e Irmãs: 1. "Feliz aquele a quem é perdoada a culpa e absolvido o pecado!". Esta bemaventurança, que abre o Salmo 31 há pouco proclamado, faz-nos compreender imediatamente o motivoDepois pelo qualdaeledupla foi acolhido pela tradiçãoinicial cristã na(cf. sérievv. dos 1-2), sete Salmos penitenciais. bem-aventurança encontramos não uma reflexão genérica sobre o pecado e o perdão, mas o testemunho pessoal de um convertido. A composição do Salmo é bastante complexa: depois do testemunho (cf. vv. 35) vêm dois versículos que falam de perigo, de oração e de salvação (cf. vv. 6-7), depois uma promessa divina de conselho (cf. v. 8) e uma admoestação (cf. v. 9), por fim, um ditado sapiencial antitético (cf. v. 10) e um convite a rejubilar no Senhor (cf. v. 11). 2. Retomamos agora apenas alguns elementos desta composição. Antes de mais o orante descreve a sua penosíssima situação de consciência quando "se calava" (cf. v. 3): tendo cometido graves culpas, ele não tinha a coragem de confessar a Deus os seus pecados. Era um tormento interior terrível, descrito com imagens impressionantes. Os seus ossos quase definhavam sob uma febre abaladora, o calor consumia o seu vigor dissolvendo-o, o seu gemido era contínuo. O pecador sentia pesar sobre si a mão de Deus, de quedaDeus não é indiferente porqueconsciente Ele é o guardião justiça e da verdade. ao mal perpetrado pela sua criatura, 3. Não podendo resistir mais, o pecador decidiu confessar a sua culpa com uma declaração corajosa, que parece antecipar a do filho pródigo da parábola de Jesus (cf. Lc 15, 18). De facto, disse com sinceridade de coração: "Confessarei ao Senhor as minhas culpas". São poucas palavras, mas surgem da consciência; Deus responde-lhe imediatamente com um generoso perdão (cf. Sl 31, 5).
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O profeta Jeremias referia este apelo de Deus: "Volta, rebelde Israel, não mais te mostrarei um semblante enfurecido oráculo do Senhor; porque sou misericordioso. A minha ira não é eterna oráculo do Senhor. Reconhece somente a tua falta, pois foste infiel ao Senhor, teu Deus" (3, 12-13). Abre-se assim diante de "cada fiel" arrependido e perdoado um horizonte de segurança, de confiança, de paz, apesar das provas da vida (cf. Sl 31, 6-7). Ainda pode vir o tempo da angústia mas a maré progressiva do receio não prevalecerá, porque o Senhor guiará o seu fiel para um lugar seguro: "Tu és o meu refúgio, livras-me da angústia e me envolves em cânticos de libertação" (v. 7). 4. A este ponto, o Senhor toma a palavra, e promete guiar o pecador já convertido. Com efeito, não é suficiente ter sido purificados; é necessário depois caminhar pela recta via. Por isso no Livro de Isaías (cf. 30, 21), o Senhor promete: "Indicar-te-ei o caminho que deves seguir" (Sl 31, 8) e convida à docilidade. O apelo faz-se solícito, eivado de um pouco de ironia com a vivaz comparação do jumento e do cavalo, símbolos de obstinação (cf. v. 9). Com efeito, a verdadeira sabedoria induz à conversão, deixando para trás o vício e o seu obscuro poder de atracção. Mas sobretudo conduz ao gozo daquela paz que brota do facto de sermos libertados e perdoados. São Paulo na Carta aos Romanos refere-se explicitamente ao início do nosso Salmo para celebrar a graça libertadora de Cristo (cf. Rm 4, 6-8). Nós poderíamos aplicá-lo ao sacramento da Reconciliação. Nele, à luz do Salmo, experimenta-se a consciência do pecado, com frequência obscurecida nos nossos dias, e ao mesmo tempo a alegria do perdão. O binómio "delito-castigo" é substituído pelo binómio "delitoperdão", porque o Senhor é um Deus "que perdoa as culpas, as transgressões e os pecados" (Êx 34, 7). 5. São Cirilo de Jerusalém (IV séc.) usa o Salmo 31 para ensinar aos catecúmenos a renovação profunda do Baptismo, radical purificação de qualquer pecado (Pro-Catequese n. 15). Também ele exaltará, através das palavras do Salmista, a misericórdia divina. Concluímos com as suas palavras a nossa catequese: "Deus é misericordioso e não poupa o seu perdão... Não superará a grandeza da misericórdia de Deus o acúmulo dos teus pecados: não superará a maestria do sumo Médico a gravidade das tuas feridas: se a ele te abandonares com confiança. Manifesta ao Médico o teu mal, e ao expô-lo com as palavras que David disse: "Eis que confessarei sempre ao Senhor a minha iniquidade". Assim obterás que se realizem as outras: "Tu perdoaste as infidelidades do meu coração"" (As catequeses, Roma 1993, pág 52-53).
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AUDIÊNCIA Quarta-feira 8 de agosto de 2001
Salmo 32: Hino à providência de Deus 1. Distribuído em 22 versículos, tantos quanto é o número de letras do alfabeto hebraico, o Salmo 32 é um cântico de louvor ao Senhor do universo e da história. Um frémito de alegria invade-o desde as primeiras expressões: "Exultai, ó justos, no Senhor, aos rectos de coração pertence o louvor. Louvai o Senhor com a cítara: cantailhe salmos com a harpa decacorde. Cantai-lhe um cântico novo, tocai os instrumentos com arte, entre orações" (vv. 1-3). Por conseguinte, esta aclamação (tern'ah) é acompanhada pela música e é expressão de uma voz interior de fé e de esperança, de felicidade e de confiança. O cântico é "novo", não só porque renova a certeza da presença divina no âmbito da criação e das vicissitudes humanas, mas também porque antecipa o louvor perfeito que se entoará no dia da salvação definitiva, quando o Reino de Deus chegar à sua actuação gloriosa. É precisamente para a realização final em Cristo que olha São Basílio, o qual explica este trecho da seguinte forma: "Habitualmente, chama-se "novo" o que é inusitado ou o que acaba de nascer. Se pensas no modo maravilhoso e superior a qualquer imaginação da encarnação do Senhor, cantas necessariamente um cântico novo e extraordinário. E se percorres com a mente a regeneração e a renovação de toda a humanidade, envelhecida pelo pecado, e anuncias os mistérios da ressurreição, também cantas um cântico novo e extraordinário" (Homilia sobre o Salmo 32, 2: PG 29, 327). Em síntese, segundo São Basílio o convite do salmista que diz: "Cantai-lhe um cântico novo", para os crentes em Cristo significa: "Honrai a Deus, não segundo o antigo costume da "letra", mas na novidade do "espírito". De facto, quem não compreende a Lei sob o aspecto exterior, e todavia reconhece o seu "espírito", canta um "cântico novo"" (ibid.). 2. No seu corpo central, o hino divide-se em três partes que se compõem como uma trilogia de louvor. Na primeira (cf. vv. 6-9) celebra-se a palavra criadora de Deus. A admirável arquitectura do universo, semelhante a um templo cósmico, desabrochou e cresceu não através de uma luta entre deuses, como sugeriam algumas cosmogonias do antigo Próximo Oriente, mas apenas com base na eficaz palavra divina. Precisamente como ensina a primeira página do Génesis (cf. cap. 1): "Deus disse... e tudo foi feito". De facto, o Salmista repete: "Porque Ele falou e as coisas existiram. Ele mandou e as coisas subsistiram" (v. 9). O orante reserva um relevo especial ao controle das águas do mar porque, na Bíblia, elas são o sinal do caos e do mal. Apesar dos seus limites, o mundo é contudo mantido no seu ser pelo Criador que, como recorda o livro de Job, ordena que o mar se detenha no litoral: "Chegarás até aqui, mas não irás mais além; aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas" (38, 11).
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3. O Senhor também é o soberano da história humana, como está escrito na segunda parte do Salmo 32, nos versículos 10-15. Com uma vigorosa antítese, opõem-se os projectos dos poderes terrenos e o desígnio admirável que Deus está a traçar na história. Quando querem ser alternativos, os programas humanos introduzem a injustiça, o mal e a violência, pondo-se contra o projecto divino de justiça e salvação. E apesar dos êxitos transitórios ou aparentes, limitam-se a simples conjuras, que se destinam a dissolver-se e a falir. No livro bíblico dos Provérbios declara-se sinteticamente: "Há muitos projectos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece" (19, 21). De maneira análoga, o Salmista recorda-nos que, do céu, sua habitação transcendente, Deus acompanha todos os itinerários da humanidade, mesmo os que são insensatos e absurdos, e intui todos os segredos do coração humano. "Onde quer que tu vás, tudo o que tu realizas, quer nas trevas, quer à luz do dia, o olhar de Deus observa-te", comenta São Basílio (Homilia sobre o Salmo 32, 8: PG 29, 343). Feliz será o povo que, acolhendo a revelação divina, seguir as suas indicações de vida, percorrendo as suas veredas nos caminhos da história. No final só permanece uma coisa: "Somente o plano do Senhor subsiste para sempre, os desígnios do Seu coração, por todas as idades" (v. 11). 4. A terceira e última parte do Salmo (cf. vv. 16-22) retoma de dois pontos de vistas novos o tema do senhorio único de Deus sobre as vicissitudes humanas. Em primeiro lugar, por parte dos poderosos, convidados a não se iludirem no que se refere à força militar dos exércitos e das cavalarias. Depois, por parte dos fiéis, muitas vezes oprimidos, famintos e à beira da morte: são convidados a ter esperança no Senhor que não os deixará precipitar no abismo da destruição. Revela-se, desta forma, também a função "catequética" deste Salmo. Ele transforma-se num apelo à fé num Deus que não é indiferente à arrogância dos poderosos e que está próximo das debilidades da humanidade, elevando-a e apoiando-a se tem esperança, se n'Ele confia, se a Ele eleva a súplica e o louvor. "A humildade dos que servem a Deus explica ainda São Basílio mostra que eles esperam na sua misericórdia. De facto, quem não tem confiança nos seus grandes empreendimentos, nem espera ser justificado pelas suas obras, tem como única esperança de salvação a misericórdia de Deus" (Homilia sobre o Salmo 32, 10: PG 29, 347). 5. O Salmo termina com uma antífona que foi inserida no final do conhecido hino Te Deum: "Venha sobre nós, Senhor, o Vosso amor, pois esperamos em Vós" (v. 22). Graça divina e esperança humana encontram-se e abraçam-se. Aliás, a fidelidade amorosa de Deus (segundo o valor da palavra hebraica srcinal usada aqui, hésed), semelhante um um manto, envolve-nos, e protege-nos, oferecendo-nos serenidade e adando fundamento certo à aquece-nos nossa fé e esperança.
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 22 de agosto de 2001
Salmo 35: Malícia do pecador, bondade do Senhor 1. Cada vez que tem início um dia de trabalho e de relacionamentos humanos, duas são as atitudes fundamentais que cada homem pode assumir: escolher o bem, ou então ceder ao mal. O Salmo 35, que acabamos de ouvir, apresenta precisamente estes dois perfis antitéticos. Por um lado, há quem desde o seu "leito", de onde está para se levantar, medita projectos iníquos; por outro, ao contrário, há quem procura a luz de Deus, "fonte da vida" (v. 10). O abismo da malícia do ímpio opõe-se ao abismo da bondade de Deus, nascente viva que sacia e luz que ilumina o fiel. Por isso, dois são os tipos de homem descritos pela oração salmista, que acaba de ser proclamada, e que a Liturgia das Horas nos propõe para as Laudes de quartafeira da primeira Semana. 2. O primeiro retrato que o Salmista nos apresenta é o do pecador (cf. vv. 2-5). No seu interior como diz o srcinal hebraico encontra-se o "oráculo do pecado" (cf. v. 2). A expressão é forte. Faz pensar numa palavra satânica que, em contraste com a palavra divina, ressoe no coração e na linguagem do ímpio. Nele o mal parece conatural com a sua íntima realidade, de maneira a manifestar-se em palavras e actos (cf. vv. 3-4). Ele passa os seus dias a escolher "maus caminhos", desde muito cedo, quando ainda está "no seu leito" (v. 5), até à noite, quando está prestes a adormecer. Esta escolha constante do pecador deriva de uma opção que empenha toda a sua existência e gera a morte. 3. Mas o Salmista está totalmente orientado para o outro retrato em que ele deseja reflectir-se: o do homem que procura o rosto de Deus (cf. vv. 6-13). Ele eleva um verdadeiro e próprio cântico ao amor divino (cf. vv. 6-11) al qual faz seguir, no final, uma suplicante invocação para ser libertado do fascínio obscuro do mal e imbuído para sempre pela luz da graça. Neste cântico desenvolve-se uma verdadeira e própria ladainha de termos, que celebram os lineamentos do Deus de amor: graça, fidelidade, justiça, juízo, salvação, sobra protectora, abundância, delícia, vida e luz. Salientem-se, em particular, quatro destes expressos vocábulos hebraicos que têm um valor mais intenso traços do que divinos, é demonstrado pela com tradução nas línguas modernas. 4. Em primeiro lugar há o termo hésed, "graça", que é fidelidade e, ao mesmo tempo, amor, lealdade e ternura. Constitui um dos termos fundamentais para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo. E é significativo que ele ressoe por 127 nos Salmos, mais de metade de todas as vezes que esta palavra aparece no restante do Antigo Testamento. Além disso, há o termo 'emunáh, que deriva da mesma raiz do amen, a palavra da fé, e significa estabilidade, segurança e fidelidade inabalável. A SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
seguir, vem a palavra sedaqáh, a "justiça", que tem um significado sobretudo salvífico: é a atitude santa e providencial de Deus que, através da sua intervenção na história, liberta do mal e da injustiça os seus fiéis. Enfim, eis a mishpát, o "juízo" com que Deus governa as suas criaturas, debruçando-se sobre os pobres e os oprimidos, e derrubando os arrogantes e os prepotentes. Quatro palavras teológicas, que o orante repete na sua profissão de fé, enquanto se encaminha pelas sendas do mundo, convicto de ter ao seu lado o Deus amoroso, fiel, justo e salvador. 5. Aos vários títulos com que exalta a Deus, o Salmista acrescenta duas imagens sugestivas. Por um lado, a abundância de alimentos: ela faz pensar, em primeiro lugar, no banquete sagrado, que se celebrava no templo de Sião, com a carne das vítimas sacrificais. Há também a fonte e a torrente, cujas águas saciam não apenas a garganta sedenta, mas também a alma (cf. vv. 9-10; Sl 41, 2-3; 62, 2-6). O Senhor sacia e dessedenta o orante, tornando-o partícipe da sua vida plena e imortal. A outra imagem é representada pelo símbolo da luz: "Na vossa Luz é que vemos a luz" (v. 10). Trata-se de uma luminosidade que se irradia como que "a cântaros" e é um sinal da revelação de Deus ao seu fiel. Assim aconteceu com Moisés no Sinai (cf. Êx 34, 29-30) e assim acontece com o cristão, na medida em que, "com o rosto descoberto, com o rosto reflectindo a glória do Senhor, como um espelho, é transformado nessa mesma imagem" (cf. 2 Cor 3, 18). Na linguagem dos Salmos, "ver a luz do rosto de Deus" significa concretamente encontrar o Senhor no templo, onde se celebra a oração litúrgica e se escuta a palavra divina. Também o cristão vive esta experiência, quando celebra os louvores do Senhor na aurora do dia, antes de se encaminhar pelas sendas nem sempre lineares da vida quotidiana.
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Quarta-Feira 2 de Junho de 2004
Salmo 40: Súplica de um doente 1. Um motivo que nos leva a compreender e amar o Salmo 40 que agora ouvimos, é o facto de o próprio Jesus o ter citado: "Não me refiro a todos vós. Eu bem sei quem escolhi, e há-de cumprir-se a Escritura: Aquele que come do meu pão levantou contra mim o calcanhar" (Jo 13, 18). É a última noite da sua vida terrestre e Jesus, no Cenáculo, está prestes a oferecer o pedaço de pão ensopado a Judas, o traidor. O seu pensamento vai a esta frase 53
do Salmo que, na realidade, é a súplica de um homem enfermo abandonado pelos seus amigos. Naquela antiga oração Cristo encontra sentimentos e palavras para expressar a sua profunda tristeza. Agora, nós procuraremos seguir e iluminar todo o enredo deste Salmo, que surgiu dos lábios de uma pessoa que sofre, sem dúvida, devido à sua enfermidade, mas sobretudo devido à cruel ironia dos seus "inimigos" (cf. Sl 40, 6-9) e até pela traição de um "amigo" (cf. v. 10). 2. O Salmo 40 começa com uma bem-aventurança. Ela tem como destinatário o amigo verdadeiro, aquele que "cuida do pobre": ele será recompensado pelo Senhor no dia do seu sofrimento, quando estiver, por sua vez, "no leito do sofrimento" (cf. vv. 24). Mas o coração da súplica encontra-se na parte seguinte, onde o doente toma a palavra (cf. vv. 5-10). Ele começa o seu discurso pedindo perdão a Deus, segundo a tradicional concepção antico-testamentária que a cada sofrimento fazia corresponder uma culpa: "Senhor, tem compaixão de mim; cura-me, embora tenha pecado contra ti" (v. 5; cf. Sl 37). Para o antigo hebreu a doença era um apelo à consciência para dar início à conversão. Mesmo se se trata de uma visão superada por Cristo, Revelador definitivo (cf. Jo 9, 1-3), o sofrimento em si próprio pode esconder um valor secreto e tornar-se um caminho de purificação, de libertação interior, de enriquecimento da alma. Ela convida a vencer a superficialidade, a vaidade, o egoísmo, o pecado e a confiar-se mais intensamente a Deus e à sua vontade savífica. 3. Mas eis que entram em cena os maldosos, aqueles que vieram visitar o doente não para o confortar, mas para o atacar (cf. vv. 6-9). As suas palavras são ásperas e atingem o coração do orante, que experimenta uma maldade que não conhece piedade. Farão a mesma experiência muitos pobres humilhados, condenados a estar sozinhos e a sentir-se um peso para os seus familiares. E se por vezes lhes são destinadas algumas palavras de conforto, sentem imediatamente o tom falso e hipócrita. Aliás, como se dizia, o orante experimenta a indiferença e a dureza até por parte dos amigos (cf. v. 10), que se transformam em figuras hostis e odiosas. O Salmista usa com eles a expressão de "levantar o calcanhar", o acto ameaçador de quem está para ofender um vencido ou o impulso do cavaleiro que excita o seu cavalo com o calcanhar para fazer com que vença o adversário. A amargura é profunda, quando quem nos ofende é o "amigo" no qual se tinha confiança, hebraico "o de homem O pensamento dirigese para os chamado amigos deliteralmente Job que deem companheiros vida da se paz". transformam em presenças indiferentes e hostis (cf. Job 19, 1-6). Ressoa no nosso orante a voz de uma multidão de pessoas esquecidas e humilhadas na sua enfermidade e debilidade, também da parte daqueles que deveriam tê-las amparado. 4. Contudo a oração do Salmo 40 não termina com este quadro sombrio. O orante tem a certeza de que Deus se apresentará no seu horizonte, revelando mais uma vez o seu amor (cf. vv. 11-14). Será ele quem oferece o apoio e tomará nos seus braços SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
o doente, o qual voltará "para a presença" do seu Senhor (v. 13), isto é segundo a linguagem bíblica reviverá a experiência da liturgia no templo. O Salmo, marcado pelo sofrimento, termina contudo num raio de luz e de esperança. Nesta perspectiva consegue-se compreender como Santo Ambrósio, ao comentar a bem-aventurança inicial (cf. v. 2), tenha visto profeticamente nela um convite a meditar sobre a paixão salvífica de Cristo que conduz à resurreição. De facto, o Padre da Igreja sugere que nos introduzamos da seguinte maneira na leitura do Salmo: "Bem-aventurados aqueles que pensam na miséria e na pobreza de Cristo, o qual, sendo rico, se fez pobre por nós. Rico no seu Reino, pobre na carne, porque assumiu sobre si esta carne de pobres... Portanto, não sofreu na sua riqueza, mas na nossa pobreza. Não foi então a plenitude da divindade que sofreu... mas a carne... Procura, pois, penetrar o sentido da pobreza de Cristo, se queres ser rico! Procura penetrar o sentido da sua debilidade, se desejas obter a saúde! Procura penetrar o sentido da sua cruz, se não te queres envergonhar dela; o sentido da sua ferida, se queres curar as tuas; o sentido da sua morte, se desejas alcançar a vida eterna; o sentido da sua sepultura, se desejas encontrar a ressurreição" (Comentário a doze salmos: Saemo, VIII, Milão-Roma 1980, pp. 39-41). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 6 de outubro de 2004 Salmo 44: A Rainha e a Esposa 1. O doce retrato feminino que nos foi oferecido constitui o segundo quadro do díptico com o qual se compõe o Salmo 44, um sereno e jubiloso cântico nupcial, que a Liturgia das Vésperas nos faz ler. Assim, depois de ter contemplado o rei que está a celebrar as núpcias (cf. v. 2-10), agora os nossos olhos fixam-se na figura da rainha esposa (cf. vv. 11-18). Esta perspectiva nupcial permite que dediquemos o Salmo a todos os casais que vivem com intensidade e vigor interior o seu matrimónio, sinal de um "mistério grandioso", como sugere Paulo, o do amor do Pai pela humanidade e de Cristo pela sua Igreja (cf. Ef 5, 32). Contudo, o Salmo apresenta um ulterior horizonte. De facto, no cenário encontra-se o rei hebreu e precisamente nesta perspectiva a tradição judaica sucessiva leu nele um perfil do Messias davídico, enquanto o cristianismo transformou o hino num cântico em honra de Cristo. Mas (cf. agora, a nossa atenção perfil daerainha que o A poeta da corte, autor do 2. Salmo Sl 44, 2), pinta com fixa-se grande no delicadeza sentimento. indicação da cidade fenícia de Tiro (cf. v. 13) faz supor que se trata de uma princesa estrangeira. O apelo a esquecer o povo e a casa do pai (cf. v. 11), do qual a princesa teve que se afastar, adquire então um significado particular. A vocação nupcial é uma mudança na vida e altera a existência, como já emerge no livro do Génesis: "o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne" (2, 24). A rainha esposa caminha agora, com o 55
seu cortejo nupcial que leva os dons, em direcção ao rei deslumbrado pela sua beleza (cf. Sl 44, 12-13). 3. É relevante a insistência com que o Salmista exalta a mulher: ela é "toda formosura" (v. 14) e esta magnificência é expressa pelo hábito nupcial completamente decorado de ouro e enriquecido com preciosos bordados (cf. vv. 14-15). A Bíblia ama a beleza como reflexo do esplendor do próprio Deus; também as vestes podem ser sinal de uma luz interior resplandecente, de uma candura da alma. O pensamento corre paralelamente, por um lado, para as páginas do Cântico dos Cânticos (cf. cc 4 e 7) e, por outro, para a retomada do Apocalipse que compara as "núpcias do Cordeiro", isto é de Cristo, com a comunidade dos redimidos, realçando o valor simbólico das vestes nupciais: "chegou o momento das núpcias do Cordeiro; a sua esposa já está ataviada. Ele ofereceu-lhe um vestido de linho resplandecente e puro. O linho representa as boas obras dos santos" (Ap 19, 7-8). 4. Paralelamente com a beleza, é exaltada a alegria que transparece no jubiloso cortejo das "virgens, suas amigas", as donzelas que acompanham a esposa "com alegria e júbilo" (cf. Sl 44, 15-16). O júbilo genuíno, muito mais profundo que a simples alegria, é expressão de amor, que participa no bem da pessoa amada com serenidade de coração. Mas, segundo as palavras conclusivas de bons votos, delineia-se outra realidade ínsita radicalmente no matrimónio: a fecundidade. De facto, fala-se de "filhos" e de "gerações" (cf. vv. 17-18). O futuro, não só da dinastia mas também da humanidade, realiza-se precisamente porque o casal oferece ao mundo novas criaturas. Trata-se de um tema relevante nos nossos dias, no Ocidente muitas vezes incapaz de confiar a própria existência ao futuro através da geração e da tutela de novas criaturas, que continuem a civilização dos povos e realizem a história da salvação. 5. Muitos Padres da Igreja, como se sabe, leram o retrato da rainha aplicando-o a Maria, a partir do apelo inicial: "Filha, escuta, vê e presta atenção..." (v. 11). Assim acontece, por exemplo, na Homilia sobre a Mãe de Deus de Crisipo de Jerusalém, um capadócio que na Palestina foi um dos monges que iniciaram o mosteiro de Santo Eutímio e, quando sacerdote, foi guarda da santa Cruz na basílica da Anastasis em Jerusalém. "Dirige-se a ti o meu discurso disse ele dirigindo-se a Maria a ti que estás destinada para esposa do grande soberano; dirige-se a ti o meu discurso, a ti que estás para conceber o Verbo Deus, do modo quedaEle conhece... "EscutaPresta filha eatenção vê, presta atenção"; verifica-se de de facto o feliz anúncio redenção do mundo. eo que ouvires aliviará o teu coração... "Esquece o teu povo e a casa de teu pai": não prestes atenção aos parentes terrenos, porque tu serás transformada numa rainha celeste. E ouve diz quanto te ama Aquele que é o Criador e Senhor de todas as coisas. "Porque o rei diz deixou-se prender pela tua beleza": o próprio Pai tomar-te-á como sua esposa; o Espírito predisporá todas as condições necessárias para estas núpcias... Não penses que darás à luz um menino humano, "porque ele é o teu Senhor e tu adorá-lo-ás". O teu
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Criador tornou-se o teu menino; concebê-lo-ás e, com os outros, adorá-lo-ás como teu Senhor" (Textos marianos do primeiro milénio, I, Roma 1988, pág. 605-606).
Salmo 44, 11-18 Filha, escuta, vê e presta atenção; esquece o teu povo e a casa de teu pai. Porque o rei deixou-se prender pela tua beleza; ele é agora o teu senhor: presta-lhe homenagem! As filhas de Tiro vêm com presentes, os mais ricos do povo imploram o teu favor. A filha do rei é toda formosura, os seus vestidos são de brocados de ouro. Em vestes de muitas cores é apresentada ao rei; as donzelas, suas amigas, seguem-na em cortejo. Avançam com alegria e júbilo e entram felizes no palácio real. No lugar de teus pais, estarão os teus filhos; farás deles príncipes sobre toda a terra. Celebrarei o teu nome por todas as gerações, e os povos hão-de louvar-te para sempre. PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 16 de Junho de 2004 Salmo 45: Deus, refúgio e força do seu povo 1. Acabamos de ouvir o primeiro dos seis cânticos de Sião que estão contidos no Saltério (cf. Sl 47; 75; 83; 86; 121). O Salmo 45, como as demais composições análogas, celebra a cidade santa de Jerusalém, "a cidade de Deus, a mais santa entre as moradas do Altíssimo" (v. 5), mas expressa sobretudo uma confiança inabalável em Deus, que "é o nosso refúgio e a nossa força, ajuda permanente nos momentos de angústia" (v. 2; cf. v. 8 e 12). O Salmo recorda as perturbações mais terríveis para afirmar com maior vigor a intervenção vitoriosa de Deus, que dá segurança total. Devido à presença de Deus nela, Jerusalém "não pode vacilar" (v. 6). O pensamento corre do oráculo do profeta Sofonias que se dirige a Jerusalém e lhe diz: "Rejubila, filha de Sião, solta gritos de alegria, povo de Israel! Alegra-te e exulta com todo o coração, filha de Jerusalém... O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso de alegria causa, pelo (Sf seu3,amor te renovará. Ele dança e gritasalvador! de alegriaEle porexulta tua causa, comopor nostua dias de festa" 14.17-18). 2. O Salmo 45 está dividido em duas grandes partes por uma espécie de antífona, que ressoa nos versículos 8 e 12: "O Senhor do universo está connosco! O Deus de Jacob é a nossa esperança!". O título "Senhor dos exércitos" é típico do culto hebraico no templo de Sião e, apesar do aspecto marcial, relacionado com a arca da aliança, remete para o senhorio de Deus sobre todo o universo e sobre a história. 57
Por conseguinte, este título é fonte de confiança, porque todo o mundo e todas as suas vicissitudes estão sob o governo supremo do Senhor. Portanto, este Senhor está "connosco", como diz ainda aquela antífona, com uma referência implícita ao Emanuel, o "Deus-connosco" (cf. Is 7, 14; Mt 1, 23). 3. A primeira parte do cântico (cf. Sl 45, 2-7) está centrada no símbolo da água e apresenta um dúplo significado contrastante. Com efeito, por um lado, desencadeiamse as águas tenebrosas que, na linguagem bíblica, são símbolo das devastações, da confusão e do mal. Elas fazem tremer as estruturas do ser e do universo, simbolizadas nos montes, abalados por uma espécie de dilúvio destruidor (cf. vv. 3-4). Mas, por outro lado, eis as águas que saciam a sede a Sião, uma cidade situada sobre os montes áridos, mas que "um rio com os seus canais" (v. 5) alegram. O Salmista mesmo fazendo alusão às fontes de Jerusalém como a de Siloé (cf. Is 8, 6-7) entrevê neles um sinal da vida que prospera na cidade santa, da sua fecundidade espiritual, da sua força regeneradora. Por isso, apesar das perturbações da história que fazem murmurar os povos e agitar os reinos (cf. Sl 45, 7), o fiel encontra em Sião a paz e a serenidade derivantes da comunhão com Deus. 4. A segunda parte do Salmo (cf. vv. 9-11) pode delinear assim um modelo transfigurado. O Senhor do seu trono, em Sião, intervém com extremo vigor contra as guerras e estabelece a paz que todos imploramos. Quando se lê o v. 10 do nosso cântico: "Ele acaba com as guerras no mundo inteiro, quebra os arcos e despedaça as lanças, queima no fogo os escudos", o pensamento corre espontaneamente para Isaías. Também o profeta cantou o fim da recorrência às armas e a transformação dos instrumentos bélicos de morte em meios para o desenvolvimento dos povos: "transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra" (Is 2, 4). 5. Com este Salmo, a tradição cristã dirigiu hinos a Cristo, "nossa paz" (cf. Ef 2, 14) e nosso libertador do mal através da sua morte e ressurreição. É sugestivo o comentário cristológico desenvolvido por Santo Ambrósio sobre o v. 6 do Salmo 45, que descreve o "socorro" oferecido à cidade pelo Senhor "antes do amanhecer". O célebre Padre da Igreja vê nele uma alusão profética à ressurreição. De facto explica "a ressurreição matutina obtém-nos o sustento da ajuda celeste, ela que afastou a noite, trouxe-nos o dia, como dizem as Escrituras: "Acorda e levanta-te, eleva-te dos mortos! E resplandecerá para ti a luz de Cristo". Observa o sentido místico! Ao anoitecer cumpriu-se a paixão de Cristo... Ao alvorecer a ressurreição... Ao anoitecer mundo é morto, quandono a luz já esmorece, este mundo jazia totalmente nas do trevas e teria sido imerso horror de trevas porque ainda mais escuras, se Cristo, luz de eternidade, não tivesse vindo do céu para trazer a idade da inocência ao género humano. Por conseguinte, o Senhor Jesus sofreu e com o seu sangue perdoou os nossos pecados, fez resplandecer a luz de uma consciência mais límpida e brilhou o dia de uma graça espiritual" (Comentário a doze Salmos: SAEMO, VIII, Milão-Roma 1980, pág. 213).
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Quarta-Feira 29 de setembro de 2004 Salmo 45: As núpcias do Rei 1. "Vou recitar ao rei o meu poema": estas palavras, inseridas na abertura do Salmo 45 (44), orientam o leitor no que se refere ao carácter fundamental deste hino. O escriba da corte que o compôs revela-nos imediatamente que se trata de um carme em honra do soberano hebraico. Aliás, voltando a percorrer os versículos da composição, nota-se que se está na presença de um epitalâmio, ou seja, de um cântico nupcial. Os estudiosos comprometeram-se em identificar as coordenadas históricas do Salmo, tendo como base alguns indícios como a ligação da rainha à cidade fenícia de Tiro (cf. v. 13) mas sem conseguir realizar uma identificação exacta do casal real. É relevante o facto de que na cena há um rei hebraico, porque isto permitiu que a tradição judaica transformasse o texto em cântico ao rei Messias, e que a tradição cristã voltasse a ler o Salmo em chave cristológica e, em virtude da presença da rainha, também em perspectiva mariológica. 2. A Liturgia das Vésperas faz-nos usar este Salmo como oração, subdividindo-o em dois momentos. Agora nós ouvimos a primeira parte (cf. vv. 2-10) que, depois da introdução já evocada do escriba autor do texto (cf. v. 2), apresenta um retrato maravilhoso do soberano que está para celebrar as suas núpcias. Por isso, o judaísmo reconheceu no Salmo 45 (44) um cântico nupcial, que exalta a beleza e a intensidade do dom de amor entre os cônjuges. Em particular, a mulher pode repetir com o Cântico dos Cânticos: "O meu amado é para mim e eu para ele" (2, 6). "Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim" (6, 3). 3. O perfil do esposo real é traçado de modo solene, com o recurso a todos os aspectos de um cenário de corte. Ele tem condecorações militares (cf. Sl 44, 4-6), a que se acrescentam sumptuosas vestes perfumadas, enquanto ao fundo brilham os palácios revestidos de marfim nas suas salas grandiosas e ressoantes de músicas (cf. vv. 9-10). No centro eleva-se o trono e é mencionado o ceptro, dois sinais do poder e da investidura real (cf. vv. 7-8). Nesta altura, gostaríamos de sublinhar dois elementos. Em primeiro lugar a beleza do esposo, sinal de interior da bênção divina: "Tua és o maiscristã belo dos filhos dos homens" (v.um 3).esplendor Precisamente come base neste versículo, tradição representou Cristo em forma de homem perfeito e fascinante. Num mundo muitas vezes marcado por torpezas e fealdades, esta imagem é um convite a encontrar a "via pulchritudinis" na fé, na teologia e na vida social para ascender à beleza divina. 4. Porém, a beleza não é um fim em si mesma. A segunda nota que gostaríamos de propor diz respeito exactamente ao encontro entre beleza e justiça. Com efeito, o soberano "avança... em defesa da verdade, da misericórdia e da justiça" (v. 5); ele "ama 59
a justiça e odeia a injustiça" (cf. v. 8) e o seu é um "ceptro de justiça" (v. 7). A beleza deve-se unir à bondade e à santidade de vida, de maneira a fazer resplandecer no mundo o rosto luminoso de Deus bom, admirável e justo. Segundo os estudiosos, no v. 7 o apelativo "Deus" seria dirigido ao próprio rei, porque consagrado pelo Senhor e, portanto, de certa forma pertencente à área divina: "O teu trono, como o de um deus, é eterno e duradouro". Ou então, poderia ser uma invocação ao único rei supremo, o Senhor, que se debruça sobre o rei-Messias. Sem dúvida, a Carta aos Hebreus, aplicando o Salmo a Cristo, não hesita em reconhecer a divindade plena e não meramente simbólica do Filho que entrou na glória (cf. Hb 1, 89). 5. Na esteira desta leitura cristológica, concluímos remetendo para a voz dos Padres da Igreja, que a cada versículo atribuem ulteriores valores espirituais. Assim, sobre a frase do Salmo em que se diz que "Deus te abençoou para sempre" ( Sl 45 [44], 3), São João Crisóstomo tece a seguinte aplicação cristológica: "O primeiro Adão foi cumulado de uma grandíssima maldição, mas o segundo, de grande bênção. O primeiro tinha ouvido: "Maldita seja a terra por tua causa" (Gn 3, 17) e, de novo: "Maldito o que executa com negligência o mandato do Senhor!" ( Jr 48, 10), "Maldito o que não respeitar as palavras desta lei" ( Dt 27, 26) e "O enforcado é uma maldição de Deus" (Dt 21, 23). Vês quantas maldições? Foste libertado de todas estas maldições por obra de Cristo, que se fez maldição (cf. Gl 3, 13): com efeito, assim como se humilhou para depois te erguer e morreu para te tornar imortal, assim tornou-se maldição para te encher de bênção. O que é que podes comparar com esta bênção, quando por meio de uma maldição te concede uma bênção? De facto, Ele não tinha necessidade de bênção, mas concede-te a mesma" (Expositio in Psalmum XLIV, 4 PG 55, 188-189). O meu coração vibra com belas palavras; vou recitar ao Rei o meu poema! A minha língua é como pena de hábil escriba. Tu és o mais belo dos filhos dos homens! O encanto se derramou em teus lábios! Por isso, Deus te abençoou para sempre. Ó herói, coloca a tua espada à cintura; ela é o teu adorno e a tua glória. Avança e cavalga triunfante em defesa da verdade, da misericórdia e da justiça; a tua direita realizará prodígios. As tuas flechas são penetrantes, a ti se submetem os povos, perdem a coragem os inimigos do rei. O teu trono, como o de um deus, é eterno e duradouro, um ceptro de justiça é o teu ceptro real. Amas apreferindo-te justiça e odeias a injustiça; por isso, Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo da alegria, aos teus companheiros. As tuas vestes exalam mirra, aloés e cássia. Nos palácios de marfim alegram-te os sons da lira. Entre as damas da tua corte há filhas de reis, à tua direita está a rainha ornada com ouro de Ofir.
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 5 de setembro de 2001
Salmo 46: O Senhor é o rei do universo
Queridos irmãos e irmãs, 1. "O Senhor, o Altíssimo, é Grande Rei sobre toda a terra"! Esta aclamação inicial é repetida em diversas tonalidades em todo o Salmo 46, que agora ouvimos. Ele configura-se como um hino ao Senhor soberano do universo e da história: "Ele é o rei da terra inteira... Reina o Senhor sobre as nações" (vv. 8-9). Este hino ao Senhor, rei do mundo e da humanidade, como outras composições semelhantes presentes no Saltério (cf. Sl 92; 95-98), supõe uma atmosfera celebrativa litúrgica. Por isso, estamos no coração espiritual do louvor de Israel, que sobe ao céu partindo do templo, o lugar no qual o Deus infinito e eterno se revela e encontra o seu povo. 2. Seguiremos este cântico de louvor glorioso nos seus momentos fundamentais, semelhantes a duas ondas que progridem rumo à beira-mar. Diferem na maneira édedeconsiderar relação entre Israel e as nações. partepõe do Salmo, a relação domínio: aDeus "submete as nações debaixoNadoprimeira nosso jugo, os povos sob os nossos pés" (v. 4); na segunda parte, ao contrário, a relação é de associação: "Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo do Deus de Abraão" (v. 10). Por conseguinte, verifica-se um grande progresso. Na primeira parte (vv. 2-6) diz-se: "Povos todos, batei as palmas, aclamai ao Senhor, com vozes de alegria!" (v. 2). O centro deste aplauso festivo é a figura grandiosa do Senhor supremo, ao qual se atribuem três títulos gloriosos: "altíssimo, grande e temível" (v. 3). Eles exaltam a transcendência divina, a primazia absoluta no ser, a omnipotência. Também Cristo ressuscitado exclamará: "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28, 18). 3. No âmbito da senhoria universal de Deus sobre todas as nações da terra (cf. v. 4) o orante evidencia a sua presença particular em Israel, o povo da eleição divina, "o predilecto", a herança mais preciosa e querida ao Senhor (cf. v. 5). Por conseguinte, Israel de um amor particular Deus, quedasearca manifestou comjunto a vitória sobre sente-se as naçõesobjecto inimigas. Durante a batalha,de a presença da aliança das tropas de Israel garantia-lhes a ajuda de Deus; depois da vitória, a arca voltou a ser posta no monte Sião (cf. Sl 67, 19) e todos proclamavam: "Deus se eleva entre aclamações, o Senhor entre clamores de trombeta" (Sl 46, 6). 4. O segundo momento do Salmo (cf. vv. 7-10) abre-se com outra onda de louvor e de cântico festivo: "Cantai ao Senhor, cantai! Cantai ao nosso rei, cantai... Cantai salmos a Deus com toda a arte!" (vv. 7-8). Também agora se entoam hinos ao 61
Senhor sentado no trono na plenitude da sua realeza (cf. v. 9). Este trono real é chamado "santo", porque dele não se pode aproximar o homem limitado e pecador. Mas trono celeste é também a arca da aliança presente na área mais sagrada do templo de Sião. Deste modo, o Deus distante e transcendente, santo e infinito, aproxima-se das suas criaturas, adaptando-se ao espaço e ao tempo (cf. 1 Rs 8, 27.30). 5. O salmo termina com uma nota surpreendente devido à sua abertura universal: "Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo de Deus de Abraão" (v. 10). Remonta-se a Abraão, o patriarca que está na base não só de Israel mas também de outras nações. Ao povo eleito que dele descende, é confiada a missão de fazer convergir para o Senhor todas as nações e todas as culturas, porque Ele é Deus de toda a humanidade. Do oriente ao ocidente reunir-se-ão então em Sião para encontrar este rei de paz e de amor, de unidade e de fraternidade (cf. Mt 8, 11). Como esperava o profeta Isaías, os povos inimigos entre si foram convidados a lançar à terra as armas e a viver juntos sob a única soberania divina, sob um governo regido pela justiça e pela paz (Is 2, 2-5). O olhar de todos estará fixo na nova Jerusalém onde o Senhor "sobe" para se revelar na glória da sua divindade. Será "uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas... clamavam em alta voz, dizendo: a salvação pertence ao nosso Deus que está sentado no trono e ao Cordeiro" (Ap 7, 9.10). 6. A Carta aos Efésios vê a realização desta profecia no mistério de Cristo redentor quando afirma, dirigida aos cristãos não provenientes do judaísmo: "vós éreis gentios pela carne... lembrai-vos que nesse tempo estáveis sem Cristo, privados do direito de cidade em Israel e alheios às alianças da Promessa sem esperança e sem Deus no mundo. Agora, porém, vós, que outrora estáveis longe, pelo sangue de Cristo, vos aproximastes. Ele é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava" (Ef 2, 11-14). Por conseguinte, em Cristo, a realeza de Deus, cantada pelo nosso Salmo, realizou-se na terra para todos os povos. Uma homilia anónima do século VIII comenta do seguinte modo este mistério: "Até à vinda do Messias, esperança das nações, os povos gentios não adoraram Deus e não conheceram quem Ele é. E enquanto o Messias não os resgatou, Deus não reinou sobre as nações por meio da sua obediência e do seu culto. Pelo contrário, agora Deus, com a sua Palavra e com o seu espírito, reina sobre eles, porque os salvou do engano e fez com que se tornassem amigos" (Palestino anónimo, Homilia árabe-cristã do século VIII, Roma, 1994, pág. 100). JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 17 de outubro de 2001
Salmo 47: Acção de graças pela salvação do povo
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. O Salmo que foi proclamado é um cântico em honra de Sião, "a cidade do grande Soberano" (Sl 47, 3), que nessa época era sede do templo do Senhor e lugar da SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
sua presença entre a humanidade. A fé cristã já o aplica à "Jerusalém, lá do alto", que é "nossa mãe" (Gl 4, 26). A tonalidade litúrgica deste hino, a evocação de uma procissão de festa (cf. vv. 13-14), a visão pacífica de Jerusalém que reflecte a salvação divina, fazem do Salmo 47 uma oração para iniciar o dia e fazer dele um cântico de louvor, mesmo se no horizonte se condensam algumas nuvens. Para compreender o sentido do Salmo, servem-nos de ajuda três aclamações colocadas no início, no centro e no final, que nos oferecem como que a chave espiritual da composição e nos introduzem no seu clima interior. Eis as três invocações: "Grande é o Senhor e digno de louvor, na cidade do nosso Deus" (v. 2); "Revivemos, ó Deus, as Vossas graças, no meio do Vosso templo" (v. 10); "Este é o Senhor, o nosso Deus pelos séculos sem fim; Ele é que nos guia" (v. 15). 2. Estas três aclamações, que exaltam o Senhor mas também "a cidade do nosso Deus" (v. 2), enquadram duas partes grandes do Salmo. A primeira é uma jubilosa celebração da cidade santa, a vitoriosa Sião, contra os assaltos dos inimigos, serena sob o manto da protecção divina (cf. vv. 3-8). Tem-se quase uma litania de definição desta cidade: é uma altura admirável que se ergue como um farol de luz, uma fonte de alegria para todos os povos da terra, o único verdadeiro "Olimpo" onde o céu e a terra se encontram. É para usar uma expressão do profeta Ezequiel a cidade-Emanuel, porque "Deus está ali" presente nela (cf. 48, 35). Mas em redor de Jerusalém estão a agrupar-se as tropas em cerco, como um símbolo do mal que atenta contra o esplendor da cidade de Deus. O confronto tem um êxito previsto e quase imediato. 3. De facto, os poderosos da terra, ao assaltar a cidade santa, provocaram também o seu Rei, o Senhor. O Salmista mostra como o orgulho de um exército poderoso se dissolve com a imagem sugestiva das dores de parto: "foram colhidos pelo terror, um terror como o da mulher em parto" (v. 7). A arrogância transforma-se em fragilidade e fraqueza, o poder em queda e derrota. O mesmo conceito é expresso com outra imagem: o exército em marcha é comparado a uma frota naval invencível, sobre a qual cai um furacão causado por um terrível vento do oriente (cf. v. 8). Por conseguinte, permanece uma certeza incontestável para os que estão sob a protecção divina: a última palavra não é confiada ao mal mas ao bem; Deus triunfa sobre as potências adversas, mesmo quando parecem ser grandiosas e invencíveis. 4. Então o fiel, celebra precisamente no templo o seu agradecimento ao Deus libertador. O seutípica é umdahino ao amor misericordioso do Senhor, com adopalavra hebraica hésed, teologia da aliança. Chegamos assim à expresso segunda parte Salmo (cf. vv. 10-14). Depois do grande cântico de louvor a Deus fiel, justo e salvador (cf. vv. 10-12), realiza-se uma espécie de procissão à volta do templo e da cidade santa (cf. vv. 13-14). Contam-se as torres, sinal da protecção certa de Deus, observam-se as fortalezas, expressão da estabilidade oferecida a Sião pelo seu Fundador. Os muros de Jerusalém falam e as suas pedras recordam os factos que devem ser transmitidos "às gerações futuras" (v. 14) através da narração que os pais farão aos seus filhos (cf. Sl 77, 7). Sião é o espaço de uma cadeia ininterrupta de acções salvíficas do Senhor, que são 63
anunciadas na catequese e celebradas na liturgia, para que os crentes continuem a ter esperança na intervenção libertadora de Deus. 5. É maravilhosa na antífona conclusiva uma das mais nobres definições do Senhor como pastor do seu povo: "Ele é que nos guia" (v. 15). O Deus de Sião é o Deus do Êxodo, da liberdade, da proximidade ao seu povo escravo no Egipto e peregrino no deserto. Agora que Israel se estabeleceu na terra prometida, sabe que o Senhor não o abandona: Jerusalém é o sinal da sua proximidade, e o templo é o lugar da sua esperança. Voltando a ler estas expressões, o cristão eleva-se à contemplação de Cristo, o templo de Deus novo e vivo (cf. Jo 2. 21), e dirige-se para a Jerusalém celeste, que já não precisa de um templo e de uma luz exterior, porque "o Senhor, Deus TodoPoderoso, é o seu Templo, assim como o Cordeiro... porque é iluminada pela glória de Deus e a sua luz é o Cordeiro" (Ap 21, 22-23). Santo Agostinho convida-nos a fazer de novo esta leitura "espiritual", convencido de que nos livros da Bíblia "não se encontra nada que se refira apenas à cidade terrena, mas tudo o que dela se refere, ou para ela se realiza, simboliza algo que por alegoria se pode também referir à Jerusalém celeste" (Cidade de Deus, XVII, 3, 2). Faz-lhe eco São Paulino de Nola, que precisamente ao comentar as palavras do nosso Salmo, exorta a rezar a fim de que "possamos ser como pedras vivas nas muralhas da Jerusalém celeste e livre" (Carta 28, 2 a Severo). E ao contemplar a robustez e solidez desta cidade, o mesmo Padre da Igreja prossegue: "De facto, todo aquele que habita nesta cidade revela-se como o Uno em três pessoas... Dela Cristo foi constituído não só fundamento, mas também torre e porta... Funda-se portanto sobre Ele a casa da nossa alma e sobre ele se eleva uma construção digna de uma base assim tão grande, e a porta de entrada para a sua cidade será para nós precisamente Aquele que nos orientará nos séculos e nos levará ao lugar das suas pastagens" (ibid.)
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Quarta-Feira 20 de outubro de 2004 Salmo 48: Vaidade das riquezas 1. A como nossafaz meditação acerca do Salmoque 48 no-lo será marcada pordois duas etapas, precisamente a Liturgia das Vésperas, propõe em tempos. Comentaremos agora de maneira essencial a primeira parte, na qual a reflexão se inspira numa situação de mal-estar, como no Salmo 72. O justo deve enfrentar "dias maus", porque "o cerca a maldade dos inimigos", que se "vangloriam nas suas riquezas" (cf. Sl 48, 6-7). A conclusão a que chega o justo é formulada como uma espécie de provérbio, que se reencontrará também no fim de todo o Salmo. Ela sintetiza de modo límpido a SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
mensagem dominante da composição poética: "O homem que vive na opulência não permanecerá: é semelhante aos animais que são abatidos" (v. 13). Noutras palavras, a "grande riqueza" não é uma vantagem, ao contrário! É melhor ser pobre e unido a Deus. 2. No provérbio parece ressoar a voz austera de um antigo sábio bíblico, o Eclesiastes ou Qoelet, quando descreve o destino aparentemente igual de cada criatura viva, o da morte, que vanifica completamente o apego frenético às coisas terrenas: "Assim como saiu nu do ventre de sua mãe, de novo nu partirá como veio, e nada levará do seu esforço, nada nas mãos quando se for... Porque é o mesmo o destino dos filhos dos homens e o destino dos animais; um mesmo fim os espera... Todos vão para um mesmo lugar" (Ecl 5, 14; 3, 10-20). 3. Uma profunda obtusidade se apodera do homem quando se ilude que evita a morte preocupando-se por acumular bens materiais: não é casualmente que o Salmista fala de um "não compreender" com uma marca quase grosseira. Contudo, o tema será explorado por todas as culturas e espiritualidades e será expresso na sua substância de maneira definitiva por Jesus que declara: "Guardai-vos de toda a ganância, porque, mesmo que um homem viva na abundância, a sua vida não depende dos seus bens" (Lc 12, 15). Depois ele narra a famosa parábola do rico insensato, que acumula bens sem medida não pensando na cilada que a morte lhe está a preparar (cf. Lc 12, 16-21). 4. A primeira parte do Salmo centra-se completamente nesta ilusão que conquista o coração do rico. Ele está convencido que consegue "comprar" também a morte, procurando quase corrompê-la, um pouco como fez para obter todas as outras coisas, ou seja, o sucesso, o triunfo sobre o próximo no âmbito social e político, a prevaricação impune, a saciedade, os confortos, os prazeres. Mas o Salmista não hesita em qualificar esta pretensão estulta. Ele recorre a uma palavra que tem um valor também financeiro, "resgate": "Infelizmente, o homem não consegue escapar nem pagar a Deus o seu resgate. O resgate da sua vida é muito caro e nunca se pagaria o suficiente; nunca chegaria para poder viver para sempre, sem chegar a ver a sepultura" (Sl 48, 8-10). 5. O rico, apegado às suas imensas fortunas, está convencido de que consegue dominar também a morte, do modo como dispôs de tudo e de todos com o dinheiro. Mas por muito grande que seja a cifra que está disposto a oferecer, o seu destino será inexorável. De facto, ele, como todos os homens e mulheres, ricos ou pobres, sábios ou estultos, deverá encaminhar-se para o túmulo, assim como aconteceu também com os poderosos e deverá deixar na terra aquele ouro tão amado, aqueles bens materiais tão idolatrados (cf. vv. 11-12). Jesus insinua aos seus ouvintes esta pergunta perturbadora: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?" (Mt 16, 26). Não é possível mudança alguma porque a vida é dom de Deus, que "tem nas suas mãos a vida de todo o ser vivo, e o sopro de vida de todos os homens" (Jb 12,10). 6. Entre os Padres que comentaram o Salmo 48 merece uma atenção particular Santo Ambrósio, que alarga o seu sentido segundo uma visão mais ampla, precisamente 65
a partir do convite inicial do Salmista: "Ouvi bem isto, povos de toda a terra; escutai, habitantes do mundo inteiro". O antigo Bispo de Milão comenta: "Reconhecemos aqui, precisamente no início, a voz do Senhor salvador que chama os povos para a Igreja, para que renunciem ao pecado, se tornem seguidores da verdade e reconheçam a vantagem da fé". De resto, "todos os corações das várias gerações humanas eram impuros com o veneno da serpente e a consciência humana, escrava do pecado, não era capaz de se afastar dele". Por isso o Senhor "promete, por sua iniciativa, o perdão na generosidade da sua misericórdia, para que o culpado não tenha mais receio, mas, em total consciência, se alegre por ter que oferecer agora os seus ofícios de servo ao Senhor bom, que soube perdoar os pecados, premiar as virtudes" (Comentário aos doze Salmos, n. 1: SAEMO, VIII, Milão-Roma 1980, pág. 253). 7. Sente-se ressoar, nestas palavras do Salmo, o convite evangélico: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo" (Mt 11, 28-29). Ambrósio continua: "Como quem virá para visitar os doentes, como um médico que virá para curar as nossas feridas dolorosas, assim ele nos perspectiva a cura, para que os homens o ouçam bem e todos corram com solicitude confiante para receber o remédio da cura... Chama todos os povos à nascente da sabedoria e do conhecimento, a todos promete a redenção, para que ninguém viva na angústia, para que ninguém viva no desespero" (n. 2: ibidem, págs. 253.255).
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Quarta-Feira 27 de outubro de 2004 Salmo 48: A riqueza humana não salva
1. A Liturgia das Vésperas, no seu desenvolvimento progressivo, apresenta-nos de novo o Salmo 48 de tipo sapiencial, do qual agora foi proclamada a segunda parte (cf. vv. 14-21). Como a precedente (cf. vv. 1-13) sobre a qual já reflectimos, também esta parte do Salmo condena a ilusão gerada pela idolatria da riqueza. Esta é uma das tentações constantes da humanidade: apegando-se ao dinheiro, considerado dotado de uma si. força invencível, que se ilude de poder "comprar também a morte", afastando-a de 2. Na realidade a morte irrompe com a sua capacidade de arrasar qualquer ilusão, destruindo todos os obstáculos, humilhando qualquer confiança em si próprio (cf. v. 14) e encaminhando ricos e pobres, soberanos e súbditos, estultos e sábios para o além. Eficaz é a imagem que o Salmista esboça apresentando a morte como um pastor que conduz com mão firme o rebanho das criaturas corruptíveis (cf. v. 15). Por
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conseguinte, o Salmo 48 propõe-nos uma meditação realista e severa sobre a morte, meta iniludível e fundamental da existência humana. Com frequência, nós procuramos de todas as formas ignorar esta realidade, afastando o seu pensamento do nosso horizonte. Mas esta fadiga, além de ser inútil, é também inoportuna. A reflexão sobre a morte, de facto, revela-se benéfica porque relativiza tantas realidades secundárias que infelizmente absolutizámos, precisamente como a riqueza, o sucesso, o poder... Por isso, um sábio do Antigo Testamento, Ben Sirac, admoesta: "Em todas as tuas obras, lembra-te do teu fim, e jamais haverás de pecar" (7, 36). 3. Mas eis no nosso Salmo uma mudança decisiva. Se o dinheiro não consegue "resgatar-nos" da morte (cf. Sl 48, 8-9), há contudo alguém que nos pode redimir daquele horizonte obscuro e dramático. De facto, diz o Salmista: "Deus há-de resgatar a minha vida, há-de arrancar-me ao poder da morte" (v. 16). Abre-se assim, para o justo, um horizonte de esperança e de imortalidade. À pergunta feita no início do Salmo ("Por que hei-de temer?": v. 6), é agora dada a resposta: "Não te preocupes, se alguém enriquece" (v. 17). 4. O justo, pobre e humilhado na história, quando chega à última fronteira da vida, não possui bens, não tem nada para depositar como "resgate" para deter a morte e subtrair-se ao seu abraço gélido. Mas eis a grande surpresa: o próprio Deus deposita um resgate e arranca das mãos da morte o seu fiel, porque Ele é o único que pode vencer a morte, inexorável em relação às criaturas humanas. Por isto o Salmista convida a "não temer" e a não invejar o rico sempre mais arrogante na sua glória (cf. ibid.) porque, quando chegar à morte, será despojado de tudo, não poderá levar consigo nem ouro nem prata, nem fama nem sucesso (cf. vv. 1819). O fiel, ao contrário, não será abandonado pelo Senhor, que lhe indicará "o caminho da vida, saciá-lo-á de alegria na sua presença, e de delícias eternas, à sua direita" (cf. Sl 15, 11). E então poderíamos citar, como conclusão da meditação sapiencial do Salmo 48, as palavras de Jesus que nos ilustra o verdadeiro tesouro que desafia a morte: "Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam os muros, a fim de os roubar. Acumulai tesouros no Céu, onde a traça e a ferrugem não corroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois, onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração" (Mt 6, 19-21). 6. Em continuidade com as palavras de Cristo, Santo Ambrósio no seu
Comentário ao Salmo recorda desemaneira clara e firmedea quando inconsistência "Todas elas são coisas 48 caducas que vão mais depressa vieram.das Umriquezas: tesouro deste tipo não passa de um sonho. Quando acordas já desapareceu, porque o homem que consegue curar a embriaguez deste mundo e apropriar-se da sobriedade da virtude, despreza todas estas coisas e não dá valor algum ao dinheiro"(Comentário a doze salmos, n. 23: SAEMO, VIII, Milão-Roma 1980, pág. 275). 7. Por conseguinte, o Bispo de Milão convida a não se deixar ingenuamente atrair pelas riquezas e pela glória humana: "Não tenhas receio, nem sequer quando 67
sentires que engrandeceu a glória de alguma família poderosa! Sabe olhar profundamente com atenção, e ela mostrar-se-á vazia se não tiver consigo um mínimo da plenitude da fé". De facto, antes que Cristo viesse, o homem estava arruinado e vazio: "A queda desastrosa daquele antigo Adão esvaziou-nos, mas encheu-nos da graça de Cristo. Ele despojou-se a si mesmo para nos encher e para fazer habitar na carne do homem a plenitude da virtude". Santo Ambrósio conclui que precisamente por isto, podemos exclamar agora, com São João: "Da sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça" (Jo 1, 16) (cf. ibid.). JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 24 de outubro de 2001
Salmo 50: Senhor, tende piedade de mim
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. Escutámos o Miserere, uma das orações mais célebres do Saltério, o Salmo penitencial mais intenso e repetido, o cântico do pecado e do perdão, a meditação mais profunda sobre a culpa e a graça. A Liturgia das Horas faz-nos repeti-lo nas Laudes de cada sexta-feira. Desde há muitos séculos numerosos corações de fiéis judeus e cristãos elevam aos céus como que um suspiro de arrependimento e de esperança dirigido a Deus misericordioso. A tradição judaica colocou o Salmo nos lábios de David, convidado pelas palavras severas do profeta Natan a fazer penitência (cf. vv. 1-2; 2 Sam 11, 12), o qual lhe reprovava o adultério cometido com Betsabé e o homicídio de seu marido, Urias. Mas o Salmo enriquece-se nos séculos seguintes, com a oração de muitos outros pregadores, que retomam os temas do "coração novo" e do "Espírito" de Deus infundido no homem redimido, segundo o ensinamento dos profetas Jeremias e Ezequiel (cf. v. 12; Jr 31, 31-34; Ez 11, 19; 36, 24-28). 2. São dois os horizontes que o Salmo 50 delineia. Em primeiro lugar, está a região tenebrosa do pecado (cf. vv. 3-11), na qual se encontra o homem desde o início da sua existência: "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-me no pecado" (v. 7). Mesmo se esta declaração não pode ser assumida como uma formulação explícita da doutrina do pecado srcinal como foi delineada pela teologia cristã, não há dúvida de que ela lhe corresponde: de facto, exprime a dimensão profunda da inata debilidade moral do homem. O Salmo, nesta primeira fase, apresenta-se como uma análise do pecado, feita diante de Deus. São três as palavras hebraicas usadas para definir esta triste realidade, que provém da liberdade humana mal empregue. 3. A primeira palavra, hattá, significa literalmente "não atingir o alvo": o pecado é uma aberração que nos afasta de Deus, meta fundamental das nossas relações, e por conseguinte também do próximo.
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A segunda palavra hebraica é "awôn, que remete para a imagem de "torcer", "curvar". Por conseguinte, o pecado é um desvio sinuoso do caminho recto; é a inversão, a deturpação, a deformação do bem e do mal, no sentido declarado por Isaías: "Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas" (Is 5, 20). Precisamente por este motivo, na Bíblia, a conversão é indicada como um "voltar" (em hebraico shûb) ao caminho recto, corrigindo o percurso. A terceira palavra que o salmista usa para falar do pecado é peshá. Ela exprime a rebelião do súbdito em relação ao soberano e, por conseguinte, é um desafio aberto dirigido a Deus e ao seu projecto para a história humana. 4. Mas se o homem confessa o seu pecado, a justiça salvífica de Deus está pronta para o purificar radicalmente. Desta forma passa-se para a segunda parte espiritual do Salmo, a luminosa da graça (cf. vv. 12-19). De facto, através da confissão das culpas abre-se para quem reza um horizonte de luz no qual Deus actua. O Senhor não age apenas negativamente, eliminando o pecado, mas regenera a humanidade pecadora através do seu Espírito vivificante: infunde no homem um "coração" novo e puro, ou seja, um conhecimento renovado, e abre-lhe a possibilidade de uma fé límpida e de um culto agradável a Deus. Orígenes fala a este propósito de uma terapia divina, que o Senhor realiza através da sua palavra e mediante a obra regeneradora de Cristo: "Assim como Deus predispôs para o corpo o remédio das ervas terapêuticas misturadas com sabedoria, assim também preparou remédios para a alma com as palavras que infundiu, distribuindo-as nas divinas Escrituras... Deus também deu outra actividade médica, cujo arquiatra é o Salvador, o qual diz de si mesmo: "não são os sadios que precisam do médico, mas os doentes". Ele era o médico por excelência capaz de curar qualquer debilidade, qualquer enfermidade" (Homilias sobre os Salmos, Florença, 1991, pp. 247249). 5. A riqueza do Salmo 50 mereceria uma exegese cuidadosa de cada uma das suas partes. É o que faremos quando ele voltar a ressoar nas várias sextas-feiras das Laudes. O olhar de conjunto, que agora dirigimos a esta grande súpplica bíblica, já nos revela algumas componentes fundamentais de uma espiritualidade que deve reflectir-se na existência quotidiana dos fiéis. Em primeiro lugar, há um profundo sentido do pecado, entendido como uma escolha livre, conotada negativamente a nível moral e teologal: "Contra Vós apenas é que eu pequei, pratiquei o mal perante os Vossos olhos" (v. 6). Depois, verifica-se também no Salmo um profundo sentido da possibilidade de conversão: o pecador, sinceramente arrependido (cf. v. 5), apresenta-se em toda a sua miséria e despojamento a Deus, suplicando-lhe que não o afaste da sua presença (cf. v. 13). Por fim, no Miserere, vê-se uma radicada convicção do perdão divino que "apaga, lava e purifica" o pecador (cf. vv. 3-4) e chega até a transformá-lo numa criatura nova que tem espírito, língua, lábios e coração transformados (cf. vv. 14-19). "Mesmo se os nossos pecados afirmava santa Faustina Kowalska fossem escuros como a noite, a misericórdia divina é mais forte do que a nossa miséria. É necessária uma só coisa: que o pecador abra pelo menos um pouco da porta do seu coração... o resto fá-lo-á Deus... Tudo se iniciou com a tua misericórdia e tudo terminará com a tua misericórdia" (M. 69
Winowska, O ícone do Amor misericordioso. A mensagem da Irmã Faustina, Roma, 1981, pág. 271). PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 30 de julho de 2003
Salmo 50: Tende piedade de mim, Senhor 1. É a quarta vez que ouvimos, durante estas nossas reflexões sobre a Liturgia das Laudes, a proclamação do Salmo 50, o célebreMiserere. De facto, ele é proposto de novo na sexta-feira de cada semana, para que se torne um oásis de meditação, onde descobrir o mal que se esconde na consciência e invocar do Senhor a purificação e o perdão. Com efeito, como confessa o Salmista noutra súplica, "nenhum vivente é justo na Vossa presença", ó Senhor (Sl 142, 2). No Livro de Job lê-se: "Como, pois, pode justificar-se o homem diante de Deus? Como será puro o homem nascido da mulher? Até a própria luz não brilha e as estrelas não são puras aos Seus olhos! Quanto menos o homem, simples verme, e o filho do homem, mero vermezinho!" (25, 4-6). Estas são frases fortes e dramáticas, que querem mostrar em toda a seriedade e gravidade o limite e a fragilidade da criatura humana, a sua capacidade perversa de semear o mal e a violência, a impureza e a mentira. Contudo, a mensagem de esperança do Miserere, que o Saltério coloca nos lábios de David, pecador convertido, é esta: Deus pode "apagar, lavar, purificar" a culpa confessada com o coração contrito (cf. Sl 50, 2-3). Diz o Senhor através da voz de Isaías: "Mesmo que os vossos pecados fossem como escarlate, tornar-se-iam brancos como a neve" (1, 18). 2. Deter-nos-emos desta vez brevemente no fim do Salmo 50, um fim cheio de esperança porque o orante é consciente de ter sido perdoado por Deus (cf. vv. 17-21). Agora, os seus lábios preparam-se para proclamar ao mundo o louvor ao Senhor, confirmando desta forma a alegria que experimenta a alma purificada do mal e, por isso, libertada dos remorsos (cf. v. 17). O orante testemunha de modo claro outra convicção, relacionando-se com o ensinamento reiterado pelos profetas (cf. Is 1, 10-17; Am 5, 21-25; Os 6, 6): o sacrifício mais agradável que se eleva ao Senhor como perfume e fragrância agradável (cf. Gn 8, 21) não é o holocausto de touros ou de cordeiros mas, antes, o "coração quebrantado e humilhado" (Sl 50, 19). A Imitação de Cristo, texto tão querido à tradição espiritual cristã, repete a mesma admoestação do Salmista: "A humilde contrição dos pecados é um sacrifício que te é agradável, um perfume muito mais suave do que o fumo do incenso... Ali purificase e lava-se qualquer iniquidade" (III, 52, 4). 3. O Salmo conclui-se de maneira inesperada, com uma perspectiva completamente diferente, que até parece contraditória (cf. vv. 20-21). Da última súplica de um só pecador passa-se a uma oração pela reconstrução de toda a cidade de SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
Jerusalém, o que nos leva da época de David à da destruição da cidade, alguns séculos mais tarde. Por outro lado, depois de ter expresso no v. 18 a recusa divina das imolações de animais, o Salmo anuncia no v. 21 que estas mesmas imolações serão agradáveis a Deus. É evidente que esta passagem final é um acréscimo posterior, feito no tempo do exílio, que quer, num certo sentido, corrigir ou pelo menos completar a perspectiva do Salmo de David. E isto, sob dois aspectos: por um lado, não se quis que todo o Salmo se limitasse a uma oração individual; era necessário pensar também na situação piedosa de toda a cidade. Por outro lado, quis-se reduzir a recusa divina dos sacrifícios rituais; esta recusa não podia ser completa nem definitiva, porque se tratava de um culto prescrito pelo próprio Deus na Tora. Quem completou o Salmo teve uma intuição válida: compreendeu a necessidade em que se encontravam os pecadores, a necessidade de uma mediação sacrifical. Os pecadores não são capazes de se purificarem sozinhos; não bastam bons sentimentos. É preciso uma mediação externa eficaz. O Novo Testamento revelará o sentido pleno desta intuição, mostrando que, com a oferta da sua vida, Cristo realizou uma mediação sacrifical perfeita. 4. Nas suas Homilias sobre Ezequiel, São Gregório Magno compreendeu bem a diferença de perspectiva que existe entre os vv. 19 e 21 do Miserere. Ele propõe uma interpretação da mesma, que podemos acolher também, concluindo assim a nossa reflexão. São Gregório aplica o v. 19, que fala de espírito contrito, à existência terrena da Igreja e o v. 21, que fala de holocausto, à Igreja no céu. Eis as palavras daquele grande Pontífice: "A santa Igreja tem duas vidas: uma que conduz no tempo, outra que recebe eternamente; uma com a qual fadiga na terra, outra que é recompensada no céu; uma com a qual reúne os méritos, outra que já goza dos méritos recolhidos. E tanto numa como noutra vida oferece o sacrifício: aqui o sacrifício da contrição e lá no céu o sacrifício do louvor. Está escrito acerca do primeiro sacrifício: "O meu sacrifício, Senhor, será o meu espírito contrito" ( Sl 50, 19); acerca do segundo está escrito: "Então agradecereis as ofertas puras, sacrifícios e holocaustos" (Sl 50, 21)... Os dois oferecem a carne, porque aqui a oblação da carne é a mortificação do corpo, no céu a oblação da carne é a glória da ressurreição no louvor a Deus. No céu oferecer-se-á a carne como que em holocausto quando, transformada na incorruptibilidade eterna, não haverá mais conflito algum e nada será mortal, porque perdurará totalmente acesa de amor por ele, no louvor sem fim" (Homilias sobre Ezequiel/2, Roma 1993, pág. 271).
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AUDIÊNCIA Quarta-feira 19 de setembro de 2001
Salmo 56: A prece matutina no sofrimento
Queridos irmãos e irmãs, 1. É uma noite tenebrosa, em que se sente a presença de feras vorazes nos arredores. O orante está à espera do despontar da aurora, para que a luz vença a obscuridade e os temores. Este é o contexto do Salmo 56, hoje proposto à nossa reflexão: um cântico nocturno que prepara o orante para a luz da aurora, esperada com ansiedade, para poder louvar ao Senhor na alegria (cf. vv. 9-11). Com efeito, o Salmo passa da lamentação dramática dirigida a Deus, à esperança serena e ao agradecimento jubiloso, expresso com as palavras que em seguida voltarão a ressoar, num outro Salmo (cf. 107, 2-6). Em síntese, assiste-se à passagem do medo à alegria, da noite ao dia, do pesadelo à serenidade e da súplica ao louvor. Trata-se de uma experiência frequentemente descrita nos Salmos: "Convertestes o meu luto em júbilo, despistes-me do meu saco e cingistes-me de alegria. Por isso, o meu coração há-de cantar-vos sem cessar" (30 [29], 12-13). 2. Portanto, estamos a meditar sobre dois momentos do Salmo 56. O primeiro diz respeito à experiência do medo do assalto do mal, que procura atingir o justo (cf. vv. 2-7). No centro desta cena há leões em posição de ataque. Esta imagem transforma-se depressa num símbolo bélico, delineado com lanças, flechas e espadas. O orante sentese atacado por uma espécie de esquadrão da morte. À sua volta, há um grupo de caçadores, que arma ciladas e escava fossas para capturar a presa. Mas esta atmosfera de tensão dissolve-se imediatamente. Com efeito, já no início (cf. v. 2) aparece o símbolo protector das asas divinas, que concretamente fazem pensar na arca da aliança com os querubins alados, ou seja, na presença de Deus ao lado dos fiéis no templo santo de Sião. 3. O orante pede instantemente que Deus mande do céu os seus mensageiros, a quem atribui os nomes emblemáticos de "Fidelidade" e de "Graça" (cf. v. 4), qualidades próprias do amor salvífico de Deus. Por isso, embora sinta arrepios pelo rugido terrível das feras e pela perfídia dos perseguidores, no seu íntimo o fiel permanece sereno e confiante, como Daniel na cova dos leões (cf. Dn 6, 17-25). A presença do Senhor não demora a mostrar a sua eficácia, mediante a autopunição dos adversários: eles caem na fossa que tinham cavado para o justo (cf. v. 7). Esta confiança na justiça divina, sempre viva nos Salmos, impede o desencorajamento e a rendição à prepotência do mal. Deus, que confunde as manobras dos ímpios, fazendo-os cair dos seus próprios projectos de maldade, mais cedo ou mais tarde põe-se ao lado do fiel.
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4. Assim, chegamos ao segundo momento do Salmo, o da acção de graças (cf. vv. 8-11). Há um trecho que brilha de intensidade e beleza: "O meu coração, Senhor, está firme, o meu coração está firme: quero cantar-vos e louvar-vos! Despertai, minhas entranhas, despertai, harpa e cítara; quero despertar-me com a aurora" (vv. 8-9). As trevas já se dissiparam: o alvorecer da salvação aproxima-se com o cântico do orante. Aplicando a si esta imagem, o Salmista talvez traduza nos termos da religiosidade bíblica, rigorosamente monoteísta, o uso dos sacerdotes egípcios ou fenícios que eram encarregados de "despertar a aurora", ou seja, de fazer voltar a nascer o sol, considerado como uma divindade benéfica. Ele alude também ao costume de suspender e de velar pelos instrumentos musicais no tempo do luto e da provação (cf. Sl 137 [136], 2) e de os "despertar" ao som festivo no tempo da libertação e da alegria. Portanto, a liturgia faz nascer a esperança: dirige-se a Deus, convidando-o a aproximarse de novo do seu povo e a escutar a sua súplica. Nos Salmos, a aurora é com frequência o momento da concessão divina, depois de uma noite de oração. 5. Assim, o Salmo termina com um cântico de louvor dirigido ao Senhor, que age com as suas grandes qualidades salvíficas, que já se manifestaram com termos diferentes na primeira parte da súplica (cf. v. 4). Agora entram em cena, de modo quase personificador, a Bondade e a Fidelidade. Elas inundam os céus com a sua presença e são como a luz que brilha na obscuridade das provas e das perseguições (cf. v. 11). É por este motivo que, na tradição cristã, o Salmo 56 se transformou em cântico do despertar para a luz e a alegria pascal, que se irradia no fiel, cancelando o medo da morte e alargando o horizonte da glória celeste. 6. Gregório de Nissa descobre nas palavras deste Salmo uma espécie de descrição típica daquilo que se verifica em cada experiência humana, aberta ao reconhecimento da sabedoria de Deus. "Efectivamente, salvou-me exclama fazendo-me sombra com a nuvem do Espírito, e aqueles que me espezinharam foram humilhados" (Sobre os títulos dos Salmos, Roma 1994, pág. 183). Depois, referindo-se às expressões que concluem este Salmo, onde se diz: "O vosso amor chega até aos céus, sobre toda a terra (se estende) a vossa glória", ele conclui: "Na medida em que a glória de Deus se estende sobre a terra, enriquecida pela fé daqueles que são salvos, os poderes celestes entoam hinos de louvor a Deus, exultando pela nossa salvação" (Ibid., pág. 184). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 10 de Novembro de 2004 Salmo 61: Só Deus é a nossa paz 1. Ressoaram agora as doze palavras do Salmo 61, um cântico de confiança, aberto por uma espécie de antífona, repetida a meio do texto. É como uma serena e forte jaculatória, uma invocação que é também um programa de vida: "Só em Deus descansa a minha alma; dele vem a minha salvação. Só Ele é o meu refúgio e a minha salvação, a minha fortaleza: jamais serei abalado" (vv. 2-3.6-7). 73
2. Contudo, o Salmo, no seu desenvolvimento, contrapõe duas espécies de confiança. São duas escolhas fundamentais, uma boa e uma pervertida, que obrigam a dois comportamentos morais diferentes. Antes de tudo, está a confiança em Deus, exaltada na invocação inicial onde entra em cena um símbolo de estabilidade e de segurança, como o rochedo, "a rocha de defesa", ou seja, uma fortaleza e um baluarte de protecção. O Salmista recorda: "Em Deus está a minha salvação e a minha glória, Ele é o meu rochedo e o meu refúgio" (v. 8). Ele afirma isto depois de ter evocado as armadilhas hostis dos seus inimigos que procuram "derrubá-lo do seu posto" (cf. vv. 45). 3. Depois, há outra confiança de tipo idolátrico, sobre a qual o orante fixa com insistência a sua atenção crítica. Trata-se de uma confiança que faz procurar a segurança e a estabilidade na violência, na rapina e na riqueza. Então, o apelo torna-se claro e decisivo: "Não confieis na violência, nem confieis no que roubais; se as vossas riquezas crescerem, não lhe entregueis o coração" (v. 11). São três os ídolos aqui evocados ou condenados como sendo contrários à dignidade do homem e à convivência social. 4. O primeiro falso deus é a violência, à qual infelizmente a humanidade continua a recorerr também nos nossos dias ensanguentados. Este ídolo está acompanhado pelo enorme cortejo de guerras, opressões, prevaricações, torturas e assassínios abomináveis, infligidos sem o mínimo remorso. O segundo falso deus é a rapina, que se expressa na extorção, na injustiça social, na usura, na corrupção política e económica. Demasiadas pessoas cultivam a "ilusão" de satisfazer desta maneira a própria avidez. Por fim, a riqueza é o terceiro ídolo ao qual "se apega o coração" do homem na esperança enganadora de se poder salvar da morte (cf. Sl 48) e garantir para si uma primazia de prestígio e de poder. 5. Servindo esta tríade diabólica, o homem esquece que os ídolos são soluções inconsistentes, aliás, danosas. Confiando nas coisas e em si mesmo, ele esquece-se de que é "um sopro... uma mentira" (Sl 61, 10; cf. Sl 38, 6-7). Se nós estivéssemos mais conscientes da nossa caducidade e dos limites próprios das criaturas, não vida optaríamos da confiança nos ídolos, organizaríamos a nossa sobre pelo uma caminho escala de pseudo-valores frágeisneme inconsistentes. Ao contrário, orienta-la-íamos para outra confiança, a que tem o seu centro no Senhor, fonte de eternidade e de paz. De facto, unicamente a Ele "pertence o poder"; só Ele é fonte de graça; só Ele é o artífice de justiça; "recompensado cada homem segundo as suas obras" (cf.Sl 61, 12-13). 6. O Concílio Vaticano II aplicou aos sacerdotes, o convite do Salmo 61 a "não entregar o coração à riqueza" (v. 11b). O Decreto sobre o ministério e a vida sacerdotal SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
exorta: "não apegando de forma alguma o coração às riquezas, evitem sempre toda a cupidez e abstenham-se cautelosamente de toda a espécie de lucro" (Presbyterorum ordinis, 17). Contudo este apelo a rejeitar o desafio pervertido e a optar por aquilo que nos conduz a Deus é válido para todos e deve tornar-se a nossa estrela polar no comportamento quotidiano, nas decisões morais, no stilo de vida. 7. Sem dúvida, este é um caminho difícil que comporta, para o justo, também provas e opções corajosas, que contudo se distinguem sempre pela confiança em Deus (cf. Sl 61, 2). Nesta luz os Padres da Igreja viram no orante do Salmo 61 a prefiguração de Cristo, e colocaram a invocação inicial de total confiança e adesão a Deus sobre os seus lábios. A este propósito no Comentário ao Salmo 61 Santo Ambrósio argumenta assim: "O Senhor nosso Deus, ao assumir sobre si a condição humana a fim de a purificar na sua pessoa, que deveria ter feito imediatamente, a não ser cancelar a influência maléfica do antigo pecado? Por meio da desobediência, isto é, violando as prescrições divinas, tinha-se insinuado a culpa, rastejando. Então, antes de tudo, foi preciso restabelecer a obediência, para placar a sede do pecado... Assumiu sobre si a obediência, para a derramar em nós" (Comentário aos doze Salmos 61, 4: SAEMO, VIII, Milão-Roma 1980, pág. 283). JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 25 de abril de 2001
Salmo 62: A alma sedenta do Senhor 1. O Salmo 62, no qual nos detemos para reflectir, é o Salmo do amor místico que celebra a adesão total a Deus, partindo de um anseio quase físico e chegando à sua plenitude num abraço íntimo e perene. A oração faz-se desejo, sede e fome, porque envolve a alma e o corpo. Como escreve Santa Teresa de Ávila, "a sede exprime o desejo de algo, mas um desejo tão intenso que perecemos se dele nos privamos" ( Caminho de perfeição, c. XIX). Deste Salmo, a liturgia propõe-nos as primeiras duas estrofes, que estão centradas precisamente nos símbolos da sede e da fome, enquanto a terceira estrofe faz oscilar um horizonte juízo divino sobre o mal, em contraste com a luminosidade e a candura doobscuro, resto do do Salmo. 2. Então, iniciemos a nossa meditação com o primeiro cântico, o da sede de Deus (cf. vv. 2-4). É a aurora, o sol que está a nascer no céu obscuro da Terra Santa, e o orante começa o seu dia, indo ao templo para buscar a luz de Deus. Ele tem necessidade daquele encontro com o Senhor de maneira quase instintiva, dir-se-ia "física". Assim como a terra árida é morta, enquanto não for irrigada pela chuva, e assim como nas 75
fendas do terreno ela se parece com uma boca dessedentada e seca, assim o fiel aspira por Deus para ser por Ele saciado e poder assim existir em comunhão com Ele. O profeta Jeremias já tinha proclamado: o Senhor é "fonte de águas vivas", reprovando o povo por ter cavado "cisternas rotas, que não podem reter as águas" (2, 13). O próprio Jesus exclamará em voz alta: "Se alguém tem sede venha a mim e beba... que acredite em mim" (Jo 7, 37-38). Em plena tarde de um dia ensolarado e silencioso, Ele promete à mulher samaritana: "Quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der se tornará nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna" (Jo 4, 14). 3. No que diz respeito a este tema, a oração do Salmo 62 relaciona-se com o cântico de outro Salmo maravilhoso: "Assim como a corça suspira pelas correntes de água, assim também a minha alma suspira por Vós, ó meu Deus. A minha alma tem sede do Senhor, do Deus vivo" (41, 2-3). Pois bem, na língua do Antigo Testamento o hebraico a "alma" é expressa com o termo nefesh, que nalguns textos designa a "garganta" e em muitos outros chega a indicar todo o ser da pessoa. Compreendido nesta acepção, o vocábulo ajuda a entender como é essencial e profunda a necessidade de Deus; sem Ele faltam a respiração e a própria vida. Por isso, o Salmista chega a pôr em segundo plano a própria existência física, se vier a faltar a união com Deus: "O vosso amor é mais precioso do que a vida" (62, 4). Inclusivamente no Salmo 72, repetir-se-á ao Senhor: "Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra. A minha carne e o meu coração já desfalecem, mas o Senhor é para sempre a rocha do meu coração e a minha herança... o meu bem é estar perto de Deus" (vv. 25-26 e 28). 4. Depois do cântico da sede, eis que se modula nas palavras do Salmista o cântico da fome (cf. Sl 62, 6-9). Provavelmente, com as imagens do "lauto banquete" e da saciedade, o orador remete para um dos sacrifícios que se celebravam no templo de Sião: o sacrifício chamado "de comunhão", ou seja, um banquete sagrado em que os fiéis comiam a carne das vítimas imoladas. Outra necessidade fundamental da vida é aqui utilizada como símbolo da comunhão com Deus: a fome é saciada quando se escuta a Palavra divina e se encontra o Senhor. Com efeito, "o homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor" ( Dt 8, 3; cf. Mt 4, 4). E aqui o pensamento do cristão corre para aquele banquete que Cristo preparou na última noite da sua vida terrestre, e cujo profundo valor Ele já tinha explicado durante o discurso de Cafarnaum: "A minha carne é, em verdade, comida e o meu sangue é, em verdade, bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele" ( Jo 6, 55-56). 5. Através do alimento místico da comunhão com Deus, "a alma une-se a Ele", como declara Salmista. palavrade"alma" refere-se todo oDeus ser humano. Não éosem motivo Uma que sevez falamais, de uma abraço, um abraço quaseafísico: e o homem já estão em plena comunhão, e dos lábios da criatura não pode brotar senão o louvor jubiloso e agradecido. Mesmo quando estamos na noite escura, sentimo-nos protegidos sob as asas de Deus, como a arca da aliança é coberta pelas asas dos querubins. E então floresce a expressão extática da alegria: "Exulto à sombra das vossas asas". O medo dissolve-se, o abraço não se aperta ao vazio, mas ao próprio Deus, enquanto a nossa mão se entrelaça com o poder da Sua direita (cf. Sl 62, 8-9).
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6. A partir de uma leitura do Salmo à luz do mistério pascal, a sede e a fome que nos impelem para Deus encontram a sua satisfação em Cristo crucificado e ressuscitado, de Quem chega até nós, mediante o dom do Espírito e dos Sacramentos, a vida nova e o alimento que a sustém. É o que nos recorda João Crisóstomo que, comentando a anotação joanina: do lado "saiu sangue e água" (cf. Jo 19, 34), afirma: "Aquele sangue e aquela água são símbolos do Baptismo e dos Mistérios", ou seja, da Eucaristia. E conclui: "Vedes como Cristo atraiu a si mesmo a esposa? Vedes com que alimento Ele nos nutre a todos nós? Fomos formados e somos nutridos pelo mesmo alimento. Com efeito, assim como a mulher nutre aquele que ela gerou com o próprio sangue e leite, assim também Cristo alimenta continuamente com o seu sangue aquele que Ele mesmo gerou" (Homilia III, destinada aos neófitos, 16-19 passim: SC 50 bis, 160-162). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 17 de Novembro de 2004 Salmo 66: Todos os povos te louvem, Senhor 1. "O campo dá o seu fruto", exclama o Salmo que acabámos de proclamar, o 66, um dos textos inseridos na Liturgia das Vésperas. A frase faz-nos pensar num hino de agradecimento dirigido ao Criador pelos frutos da terra, sinais das bênçãos divinas. Mas este elemento natural está profundamente ligado com o histórico: os frutos da natureza são tomados como ocasião para pedir repetidamente a Deus que abençoe o seu povo (cf. vv. 2.7.8), de forma que todas as nações da terra se dirijam a Israel, procurando por seu intermédio alcançar o Deus Salvador. Por conseguinte, tem-se na composição uma perspectiva universal e missionária, em continuidade com a promessa divina feita a Abraão: "Todas as famílias da Terra serão em ti abençoadas" (Gn 13, 3; cf. 18, 18; 28, 14). 2. A bênção divina pedida por Israel manifesta-se concretamente na fertilidade dos campos e na fecundidade, isto é, no dom da vida. Por isso o Salmo começa com um versículo (cf. Sl 66, 2), que invoca a célebre bênção sacerdotal referida no Livro dos Números: "O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz!" (6, 24-26). da bênção ressoa no final odotema Salmo, onde comparecem frutos da terra (cf.OSltema 66, 7-8). Mas ali encontra-se universal que confere àossubstância espiritual de todo o hino, uma surpreendente amplitude de horizontes. Trata-se de uma abertura que reflecte a sensibilidade de um Israel preparado para se confrontar com todos os povos da terra. Talvez se deva situar a composição do Salmo depois da experiência do exílio na Babilónia, quando o povo já iniciara a vicissitude da Diáspora entre nações estrangeiras e em novas regiões.
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3. Graças à bênção implorada por Israel, toda a humanidade poderá conhecer "o caminho" e "a salvação" do Senhor (cf. v. 3), ou seja, o seu projecto salvífico. É revelado a todas as culturas e todas as sociedades o Deus que julga e governa os povos e as nações de todas as partes da terra, conduzindo cada um rumo a horizontes de justiça e de paz (cf. v. 5). Trata-se do grande ideal para o qual todos propendemos, do anúncio mais arrebatador que surge do Salmo 66 e de tantas páginas proféticas (cf. Is 2, 1-5; 60, 122: Jb 4, 1-11; Sof 3, 9-10; Ml 1, 11). Será também esta a proclamação cristã, que São Paulo traçará recordando que a salvação de todos os povos é o centro do "mistério", isto é, do desígnio divino salvífico : "Os gentios são admitidos à mesma herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho" (Ef 3, 6). 4. Agora Israel pode pedir a Deus para que todas as nações sejam envolvidas no seu louvor: será um coro universal: "Que os povos te louvem, ó Deus! Todos os povos te louvem", repete-se no Salmo (cf. Sl 66, 4.6). O desejo do Salmo anuncia o acontecimento descrito pela Carta aos Efésios quando menciona talvez o muro de separação que no templo de Jerusalém mantinha separados os hebreus dos pagãos: "Mas em Cristo Jesus, vós, que outrora estáveis longe, agora, estais perto, pelo sangue de Cristo. Com efeito, Ele é a nossa paz, Ele que, dos dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade... Portanto, já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus" (Ef 2, 13-14.19). Provém daqui uma mensagem para nós: devemos abater os muros das divisões, da hostiliade e do ódio, para que a família dos filhos de Deus se reencontre em harmonia na única mesa, a bendizer e a louvar o Criador pelos dons que ele concede a todos, sem distinções (cf. Mt 5, 43-48). 5. A tradição cristã releu o Salmo 66 em chave cristológica e mariológica. Para os Pais da Igreja "a terra que deu o seu fruto" é a Virgem Maria que dá à luz Cristo Senhor. Assim, por exemplo, São Gregório Magno na Exposição sobre o primeiro livro dos Reis comenta este versículo, relacionando-o com muitos outros trechos da Escritura: "Maria é justamente chamada "monte rico de frutos", porque dela nasceu um fruto óptimo, ou seja, um homem novo. E o profeta, vendo-a bela e adornada na glória da sua fecundidade, exclama: "Brotará um rebento do tronco de Jessé, e um renovo brotará das suas raízes" (Is 11, 1). David, exultando pelo futuro deste monte, diz a Deus: povos ó Deus! povos te louvem! terrao concebeu deu o seu fruto". "Que Sim, aosterra deuteolouvem, seu fruto, porqueTodos aqueleosque a Virgem gerouAnão por obra do homem, mas porque o Espírito Santo espalhou sobre ela a sua sombra. Por isso o Senhor diz ao rei e profeta David: "Hei-de colocar no teu trono um descendente da tua família" (Sl 131, 11). Por isso Isaías afirma: "e o fruto da terra será grandeza e honra" (Is 4, 2). De facto, aquele que a Virgem gerou não foi unicamente "homem santo", mas também "Deus poderoso" (Is 9, 5)" (Textos marianos do primeiro milénio, III, Roma 1990, pág. 625).
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PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 1° de Dezembro de 2004 Salmo 72: O poder real do Messias 1. A Liturgia das Vésperas, cujos textos sálmicos e cânticos estamos a comentar progressivamente, propõe em duas etapas um dos Salmos mais preciosos da tradição judaica e cristã, o Salmo 72 [71], um canto real que os Padres da Igreja meditaram e voltaram a interpretar em chave messiânica. Agora, escutámos o primeiro grande movimento desta solene oração (cf. vv. 111). Ele começa com uma intensa invocação coral a Deus, para que conceda ao soberano aquele dom que é fundamental para o bom governo, a justiça. Ela é exercida sobretudo em relação aos pobres que, geralmente, são as vítimas do poder. Observar-se-á a particular insistência com que o Salmista realça o compromisso moral de governar o povo segundo a justiça e o direito: "Ó Deus, concede ao rei a tua rectidão e a tua justiça ao filho do rei, para que julgue o teu povo com justiça e os teus pobres com equidade. [...] Que o rei proteja os humildes do povo" (vv. 1-2.4). Assim como o Senhor governa o mundo segundo a justiça (cf. Sl 35, 7), também o rei, que é o seu representante visível sobre a terra segundo a antiga concepção bíblica deve adaptar-se à acção do seu Deus. 2. Se se violam os direitos dos pobres, não só se realiza um acto politicamente injusto e iníquo do ponto de vista moral. Para a Bíblia, perpetra-se também um acto contra Deus, um crime religioso, porque o Senhor é o tutor e o defensor dos miseráveis e dos oprimidos, das viúvas e dos órfãos (cf. Sl 67, 6), ou seja, daqueles que não têm protectores humanos. É fácil intuir como a tradição substituiu a figura, muitas vezes decepcionante, do rei davídico já a partir da derrocada da monarquia de Judá (séc. VI a.C) com a fisionomia luminosa e gloriosa do Messias, na linha da esperança profética expressa por Isaías: "[Ele] julgará os pobres com justiça, e com equidade os humildes da terra" (11, 4). Ou então, segundo o anúncio de Jeremias: "Dias virão em que farei brotar de David um rebento justo que será rei, governará com sabedoria e exercerá no país o direito e a justiça oráculo do Senhor" (23, 5). 3. Depois desta profunda e apaixonada imploração do dom da justiça, o Salmo amplia o horizonte e contempla o reino messiânico-real no seu desenvolvimento ao longo das suas coordenadas, tanto do tempo como do espaço. Com efeito, por um lado exalta-se a sua duração na história (cf. Sl 71, 5.7). As imagens de tipo cósmico são vivazes: de facto, elas contêm o correr dos dias, cadenciados pelo sol e pela lua, mas também a passagem das estações, com a chuva e o florescimento. 79
Portanto, um reino fecundo e sereno, mas inserido sempre na linha daqueles valores que são capitais: a justiça e a paz (cf. v. 7). Estes são os sinais do ingresso do Messias na nossa história. Nesta perspectiva, é iluminador o comentário dos Padres da Igreja, que vêem naquele rei-Messias o rosto de Cristo, rei eterno e universal. 4. Assim São Cirilo de Alexandria, na sua Explanatio in Psalmos observa que o juízo, que Deus dá ao rei, é o mesmo de que fala São Paulo, "o plano... [de] submeter tudo a Cristo" (Ef 9-10). Com efeito, "nos seus dias florescerá a justiça e transbordará a paz", como que para dizer que "nos dias de Cristo, por meio da fé, surgirá para nós a justiça, e da nossa orientação para Deus a paz brotará sobejamente para nós". De resto, precisamente nós somos os "miseráveis" e os "filhos dos pobres", que este rei socorre e salva: e se, em primeiro lugar, ele "chama "miseráveis" aos santos apóstolos, porque eram pobres de espírito, contudo salvou-nos enquanto "filhos dos pobres", justificandonos e santificando-nos na fé por meio do Espírito" (PG LXIX, 1180). 5. Por outro lado, o Salmista delineia também o âmbito espacial em que se insere a realeza de justiça e de paz do rei-Messias (cf. Sl 71, 8-11). Aqui, entra em cena uma dimensão universalista que vai desde o Mar Vermelho ou do Mar Morto até ao Mediterrâneo, desde o Eufrates, o grande "rio" oriental, até aos extremos confins da terra (cf. v. 8), evocados também por Társis e pelas ilhas, os territórios ocidentais mais remotos, segundo a antiga geografia bíblica (cf. v. 10). Trata-se de um olhar que se estende sobre o mapa do mundo inteiro então conhecido, que empenha Árabes e nómades, soberanos de Estados longínquos e até mesmo inimigos, num abraço universal, não raro cantado pelos Salmos (cf. Sl 46, 10; 86, 1-7) e pelos profetas (cf. Is 2, 1-5; 60, 1-22; Ml 1, 11). Assim, a confirmação ideal desta visão poderia ser formulada precisamente com as palavras de um profeta, Zacarias, palavras que os Evangelhos aplicarão a Cristo: "Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti, Ele é justo... Ele exterminará os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações. O seu império irá de um mar ao outro e do rio às extremidades da terra" ( Zc 9, 9-10; cf. Mt 21, 5). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 15 de Dezembro de 2004 Salmo 72: Reino de paz e de bênção 1. A Liturgia das Vésperas, que estamos a acompanhar através da série dos seus Salmos, propõe-nos em duas etapas distintas o Salmo 72 [71], um hino realmessiânico. Depois de já ter meditado a primeira parte (cf. vv. 1-11), agora temos à nossa frente o segundo movimento poético e espiritual deste cântico dedicado à gloriosa figura do rei Messias (cf. vv. 12-19). Porém, devemos observar imediatamente que o
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final dos últimos dois versículos (cf. vv. 18-19) é, na realidade, um acréscimo litúrgico sucessivo ao Salmo. Com efeito, trata-se de uma breve mas intensa bênção que devia selar o segundo dos cinco livros, em que a tradição judaica tinha subdividido a colectânea dos 150 Salmos: este segundo livro tinha começado com o Salmo 42 [41], o da corça sequiosa, símbolo luminoso da sede espiritual de Deus. Pois bem, é um cântico de esperança numa era de paz e de justiça, que conclui aquela sequência de Salmos, e as palavras da bênção final são uma exaltação da presença eficaz do Senhor, tanto na história da humanidade, onde "realiza maravilhas" ( Sl 72 [71], 18), como no universo repleto da sua glória (cf. v. 19). 2. Como já se podia ver na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo para reconhecer a figura do rei messiânico é sobretudo a justiça e o seu amor pelos pobres (cf. vv. 12-14). Eles têm como ponto de referência e fonte de esperança somente Ele, enquanto é o representante visível do seu único defensor e padroeiro, Deus. A história do Antigo Testamento ensina que os soberanos de Israel, na realidade, desmentiram com demasiada frequência este seu compromisso, prevaricando sobre os fracos, os miseráveis e os pobres. É por isso que, agora, o olhar do Salmista visa um rei justo, perfeito, encarnado pelo Messias, o único soberano pronto a livrar os oprimidos "da opressão e da violência" (cf. v. 14). O verbo hebraico utilizado é o jurídico, do protector dos últimos e das vítimas, aplicado também a Israel "resgatado" da escravidão quando era oprimido pelo poder do faraó. O Senhor é o "salvador-redentor" primário, que actua através do rei-Messias, salvaguardando "a vida e o sangue" dos pobres, seus protegidos. Pois bem, "vida" e "sangue" são a realidade fundamental da pessoa, é a representação dos direitos e da dignidade de cada ser humano, direitos muitas vezes violados pelos poderosos e pelos prepotentes deste mundo. 3. Na sua redacção srcinal, o Salmo 72 [71] termina antes da antífona final, à qual já nos referimos, com uma aclamação em honra do rei-Messias (cf. vv. 15-17). Ela é semelhante a um toque de corneta, que acompanha um coro de bons votos e de auspícios para o soberano, para a sua vida, para o seu bem-estar, para a sua bênção e para a permanência da sua recordação nos séculos. Naturalmente, encontramo-nos na presença de elementos que pertencem ao estilo das conciliações de corte, com a ênfase que lhes é própria. Contudo, estas palavras adquirem a sua verdade na acção do rei perfeito, aguardado e esperado, o Messias. Segundo uma característica dos carmes messiânicos toda a natureza está envolvida numa transformação, que é em primeiro lugar social: o trigo das messes será tão abundante, que se tornará quase como um mar de espigas que ondulam até aos cimos dos montes (cf. v. 16). Este é o sinal da bênção divina, que se difunde plenamente sobre uma terra apaziguada e serena. Aliás, toda a humanidade, abandonando e eliminando toda a divisão, convergerá para este soberano de justiça, cumprindo deste 81
modo a grande promessa feita pelo Senhor a Abraão: "Todos nele se sentirão abençoados; todos os povos o hão-de bendizer!" (v. 17; cf. Gn 12, 3). 4. No rosto deste rei-Messias, a tradição cristã intuiu o retrato de Jesus Cristo. Na sua Exposição sobre o Salmo 71, relendo o cântico precisamente em chave cristológica, Santo Agostinho explica que os miseráveis e os pobres, de quem Cristo vai ao encontro, são "o povo dos que nele crêem". Aliás, recordando os reis aos quais o Salmo se tinha precedentemente referido, especifica que "neste povo estão incluídos também os reis que o adoram. Com efeito, não desdenharam ser miseráveis e pobres, ou seja, confessar humildemente os próprios pecados e reconhecer-se necessitados da glória e da graça de Deus, a fim de que aquele rei, filho do rei, os libertasse do poderoso", isto é, de Satanás, o "caluniador", o "forte". "Porém, o nosso Salvador humilhou o caluniador e entrou na casa do forte, tirando-lhe os seus vasos depois de o ter acorrentado; ele "libertou o miserável do poderoso, e o pobre que não tinha quem o socorresse". Efectivamente, isto não poderia ter sido feito por qualquer poder criado: nem o de qualquer homem justo e nem sequer o do anjo. Não havia ninguém capaz de nos salvar; e eis que veio ele pessoalmente e nos salvou" (71, 14: Nuova Biblioteca Agostiniana, XXVI, Roma 1970, pp. 809.811). PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 3 de setembro de 2003
Salmo 91: Louvor ao Senhor Criador 1. O cântico que acaba de nos ser proposto é o cântico de um homem fiel a Deus. Trata-se do Salmo 91 que, como sugere o título da composição, era usado pela tradição judaica "para o dia do sábado" (v. 1). O hino abre com um amplo apelo a celebrar e a louvar o Senhor com o canto e a música (cfr. vv. 2-4). É um movimento de oração que parece nunca ser interrompido, porque o amor divino deve ser exaltado de manhã, quando se começa o dia, mas deve ser também proclamado durante o dia e no decurso das horas nocturnas (cfr. v. 3). Até a referência aos instrumentos musicais, que o salmista faz no convite da introdução, levou Santo Agostinho a esta meditação no interior da sua Exposição sobre o Salmo 91: "Que significa, irmãos, aclamar com o saltério? O saltério é um instrumento musical dotado de cordas. O nosso saltério é o nosso trabalho. Todo aquele que, com as mãos, realiza obras boas, aclama a Deus com o saltério. Todo aquele que proclama Deus com a boca, canta a Deus. Canta com a boca! Salmodia obras!... então, aqueles que cantam? que realizam ocom bem as com alegria.Mas, O canto, de quem facto, são é sinal de alegria. Que diz Aqueles o Apóstolo? "Deus ama o que dá com alegria (2 Cor 9, 7). Qualquer coisa que tu faças, fá-la com alegria. Então, faz o bem e fá-lo bem. Se, ao contrário, trabalhas com tristeza, mesmo que por teu intermédio se faça o bem, não és tu a fazê-lo: diriges o saltério, não cantas". (Esposizioni sui Salmi, III, Roma,1976, pp. 192-195). 2. Através das palavras de Santo Agostinho podemos entrar no coração da nossa reflexão e enfrentar o tema fundamental do Salmo: o do bem e do mal. Um e SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
outro são avaliados por Deus justo e santo, "o eternamente excelso"(v.9), Aquele que é eterno e infinito, a que não foge nenhuma das acções do homem. Confrontam-se, assim, de modo renovado, dois comportamentos opostos. A conduta do fiel é dedicada a celebrar as obras divinas, a penetrar na profundidade dos pensamentos do Senhor e, por este caminho, a sua vida irradia luz e alegria (cfr. vv. 56). Pelo contrário, o homem perverso é descrito na sua insensatez, incapaz como é de compreender o secreto sentido das vicissitudes humanas. A sorte momentânea torna-o arrogante, mas na realidade, ele é intimamente frágil e está votado, depois de um sucesso efémero, à queda e à ruína (cfr. vv. 7-8), O Salmista, seguindo um modelo interpretativo caro ao Antigo Testamento, o da retribuição, está convencido de que Deus recompensará os justos já neste mundo, dando-lhes uma velhice feliz (cfr. v. 15) e depressa castigará os maus. Na realidade, como afirmará Job e Jesus ensinará, a história não é interpretável tão linearmente. A visão do salmista torna-se, por isso, uma súplica ao Deus justo e "excelso" (cfr. v. 9), para que entre na série dos acontecimentos humanos para os julgar, fazendo resplandecer o bem. 3. O contraste entre o justo e o ímpio é, depois, retomado pelo orante. Por um lado, eis os "inimigos" do Senhor, os "malfeitores", mais uma vez votados à dispersão e à derrota. (cfr. v. 10). Por outro, os fiéis aparecem em todo o seu esplendor, incarnados pelo Salmista que se descreve a si mesmo com imagens pitorescas, extraídas da simbologia oriental. O justo tem a força irresistível de um búfalo e está pronto para desafiar qualquer adversidade; a sua fronte gloriosa está consagrada com o óleo da protecção divina, que se torna semelhante a um escudo, que defende o eleito tornando-o seguro. (cfr. v. 11). Do alto do seu poder e da sua segurança, o orante vê os iníquos a precipitarem-se no abismo da sua ruína (cfr. v. 12). O Salmo 91 inspira, pois, felicidade, confiança e optimismo: dons que devemos pedir a Deus também no nosso tempo, em que se insinua facilmente a tentação da desconfiança e até do desespero. 4. O nosso hino, na esteira da profunda serenidade que o invade, lança no final um olhar sobre os dias da velhice dos justos e prevê-os igualmente serenos. Mesmo quando estes dias chegarem, o espírito do orante estará ainda vivaz, alegre e operoso (cfr. v. 15). Ele sente-se semelhante às palmeiras e aos cedros, que estão plantados nos átrios do templo de Sião (cfr. vv. 13-14). As raízes dodo justo fundamentam-se próprio Deustornando-o de quem recebe da graça divina. A vida Senhor alimenta-o eno transforma-o, floridoaelinfa viçoso, isto é, em posição de dar aos outros e de testemunhar a própria fé. As últimas palavras do Salmista, nesta descrição de uma existência justa e operosa e de uma velhice intensa e activa, estão, de facto, ligadas ao anúncio da perene fidelidade do Senhor (cfr. v. 16). Poderemos, por isso, concluir agora com a proclamação do canto que sobe ao Deus glorioso no último Livro da Bíblia, o Apocalipse: um livro de luta terrível entre o bem e o mal, mas também de esperança na vitória final de Cristo: "grandes e maravilhosas são as Tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os Teus 83
caminhos, ó Rei das nações... Porque só Tu és santo e todas as nações virão prostrar-se diante de Ti, pois os Teus juízos foram manifestados. Justo és Tu, Ó Senhor, que és e que eras, e és Santo, por assim teres feito justiça. Sim, Senhor, Deus Todo-Poderoso, os Teus juízos são verdadeiros e justos" (15, 3-4; 16, 5. 7). JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 7 de novembro de 2001
Salmo 100: A alegria dos que entram no templo 1. A tradição de Israel impôs ao hino de louvor agora proclamado o título de "Salmo para atodáh", isto é, para a acção de graças no cântico litúrgico, e por isso adapta-se bem à entoação das Laudes matutinas. Nos poucos versículos deste alegre hino podem identificar-se três elementos significativos, de forma que tornam espiritualmente frutuoso o seu uso por parte da comunidade orante cristã. 2. Antes de tudo, encontra-se o apelo premente à oração, claramente descrita na sua dimensão litúrgica. É suficiente enumerar os verbos usados no imperativo que marcam o Salmo e são acompanhados por indicações de ordem cultual: "Aclamai..., servi ao Senhor com alegria, vinde à sua presença com cânticos de júbilo! Sabei que o Senhor é Deus... Entrai nos seus pórticos com acção de graças, entrai nos seus átrios com louvores, glorificai e bendizei o seu nome" (vv. 2-4). Uma série de convites não só para entrar na área sagrada do templo através dos seus pórticos e átrios (cf. Sl 14, 1; 23, 3.7-10), mas também a cantar hinos jubilosos a Deus. É uma espécie de fio constante de louvor que nunca se interrompe, exprimindo-se numa contínua profissão de fé e de amor. Um louvor que se eleva da terra para Deus, e que ao mesmo tempo alimenta a alma do crente. 3. Desejaria reservar outra pequena observação ao início do cântico, onde o Salmista chama toda a terra a aclamar o Senhor (cf. v. 1). Sem dúvida, o Salmo dedicará depois toda a sua atenção ao povo eleito, mas o horizonte envolvido no louvor é universal, como acontece muitas vezes no Saltério, sobretudo nos chamados "hinos ao Senhor e Rei" (cf. Sl 95-98). O mundo e a história não estão nas mãos do destino, da confusão, de uma necessidade cega. Pelo contrário, são governados por um Deus que é ao mesmo tempo misterioso, mas que também deseja que a humanidade viva, de modo estável, relações justas e autênticas. Ele "fixou o orbe, não vacilará, governa os povos com equidade... governará a terra com justiça, e os povos na Sua fidelidade" (Sl 95, 10.13). 4. Por conseguinte, estamos todos nas mãos de Deus, Senhor e Rei, e todos o celebramos, confiantes de que Ele não nos deixará cair das Sua mãos de Criador e de Pai. A esta luz, pode apreciar-se melhor o terceiro elemento significativo do Salmo. No centro do louvor que o Salmista coloca nos nossos lábios, encontra-se de facto uma espécie de profissão de fé, expressa mediante uma série de atributos que definem a realidade íntima de Deus. Este credo fundamental contém as seguintes afirmações: o SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
Senhor é Deus, o Senhor é o nosso criador, nós somos o seu povo, o Senhor é bom, o seu amor é eterno, a sua fidelidade não tem fim (cf. vv. 3-5). 5. Tem-se, em primeiro lugar, uma renovada confissão de fé no único Deus, como nos é pedido pelo primeiro mandamento do Decálogo; "Eu sou o Senhor, teu Deus... não terás outro Deus além de Mim" (Êx 20, 2.3). E como se repete muitas vezes na Bíblia: "Reconhece, agora, e grava no teu coração, que só o Senhor é Deus e que não há outro" (Dt 4, 39). Depois, é proclamada a fé em Deus criador, fonte do ser e da vida. Segue-se a afirmação, expressa através da chamada "fórmula da aliança", da certeza que Israel tem da eleição divina: "pertencemos-Lhe, somos o Seu povo e as ovelhas do Seu rebanho" (v. 3). É uma certeza que os fiéis do novo Povo de Deus fazem sua, na consciência de constituírem a grei que o Pastor supremo das almas conduz aos prados eternos do céu (cf. 1 Pd 2, 25). 6. Depois da proclamação do Deus uno, criador e fonte da aliança, o retrato do Senhor cantado pelo nosso Salmo continua com uma meditação de três qualidades divinas, muitas vezes exaltadas no Saltério: a bondade, o amor misericordioso (hésed), e a fidelidade. São as três virtudes que caracterizam a aliança de Deus com o seu povo; elas exprimem um vínculo que jamais será violado, dentro do fluxo das gerações e apesar do rio lamacento dos pecados, das rebeliões e das infidelidades humanas. Com confiança serena no amor divino que nunca virá a faltar, o povo de Deus encaminha-se na história com as suas tentações e debilidades quotidianas. E esta confiança far-se-á cântico, ao qual por vezes as palavras já não bastam, como observa Santo Agostinho: "Quanto mais aumentar a caridade, tanto mais te darás conta do que dizias e não dizias. Com efeito, antes de saborear determinadas coisas, pensavas que podias utilizar palavras para indicar Deus; ao contrário, quando começaste a saboreá-lo, apercebeste-te de que não és capaz de explicar adequadamente aquilo que sentes. Mas se te aperceberes de que não sabes exprimir com as palavras o que sentes, deverás, por isso, permanecer calado e não louvar?... Não, certamente. Não serás tão ingrato. A Ele devemos a honra, o respeito, o maior louvor... Ouve o Salmo: "Terra inteira, louva o Senhor!". Compreenderás a alegria de toda a terra, se tu mesmo te alegras no Senhor" (Exposições sobre os Salmos III/1, Roma 1993, pág. 459). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 26 de novembro de 2003
Salmo 109: O Messias, rei e sacerdote 1. Escutamos um dos Salmos mais célebres da história da cristandade. O Salmo 109, que a Liturgia das Vésperas nos propõe todos os domingos é citado, de facto, várias vezes pelo Novo Testamento. Sobretudo os versículos 1 e 4 são aplicados a Cristo, no seguimento da antiga tradição judaica, que tinha transformado este hino de cântico real davídico em Salmo messiânico.
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Deve-se a popularidade desta oração também ao uso constante que dela fazem as Vésperas do domingo. Por este motivo o Salmo 109, na versão latina da Vulgata, foi objecto de numerosas e maravilhosas composições musicais que assinalaram a história da cultura ocidental. A Liturgia, segundo a praxe escolhida pelo Concílio Vaticano II, retirou do texto srcinal hebraico do Salmo, que entre outras coisas é formado apenas por 63 palavras, o violento versículo 6. Ele evoca a tonalidade dos chamados "Salmos imprecatórios" e descreve o rei hebraico no momento em que avança para uma espécie de campanha militar, esmagando os seus adversários e julgando as nações. 2. Visto que teremos ocasião de voltar a falar acerca deste Salmo, considerando o uso que dele faz a Liturgia, limitemo-nos agora a oferecer apenas uma visão de conjunto do mesmo. Nele podemos distinguir claramente duas partes. A primeira (cf. vv. 1-3) contém um oráculo dirigido por Deus àquele que o Salmista chama "o meu senhor", ou seja, ao soberano de Jerusalém. O oráculo proclama a entronização do descendente de David "à direita" de Deus. Com efeito, o Senhor dirige-se a ele dizendo: "Senta-te à minha direita" (v. 1). Provavelmente, temos aqui a menção de um ritual, segundo o qual o eleito se sentava à direita da arca da aliança, de modo que pudesse receber o poder de governo do rei supremo de Israel, isto é, do Senhor. 3. No fundo intuem-se forças hostis, que contudo são neutralizadas por uma conquista vitoriosa: os inimigos são representados aos pés do soberano, que avança solene no meio deles segurando o ceptro da sua autoridade (cf. vv. 1-2). É sem dúvida o reflexo de uma situação política concreta, que se verificava nos momentos de passagem do poder de um rei para outro, com a rebelião de alguns subalternos ou com tentativas de conquista. Mas agora o texto remete para um contraste de índole geral entre o projecto de Deus, que age através do seu eleito, e os desígnios daqueles que gostariam de afirmar o seu poder hostil e prevaricador. Tem-se, por conseguinte, o eterno confronto entre o bem e o mal, que se verifica no âmbito de vicissitudes históricas, mediante as quais Deus se manifesta e nos fala. 4. A segunda parte do Salmo contém, ao contrário, um oráculo sacerdotal, que tem ainda como protagonista o rei davídico (cf. vv. 4-7). Garantida por um solene juramento divino, a dignidade real une em si também a sacerdotal. A referência a Melquisedec, rei-sacerdote de Salém, ou seja, da antiga Jerusalém (cf. Gn 14), talvez seja o meio para justificar o sacerdócio particular do rei ao lado do sacerdócio oficial levítico do templo de Sião. Depois, sabemos também que a Carta aos Hebreus partirá precisamente deste oráculo: "Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec" (Sl 109, 4), para ilustrar o sacerdócio único e perfeito de Jesus Cristo. Examinaremos sucessivamente de maneira mais profunda o Salmo 109, fazendo uma análise atenta de cada um dos versículos. 5. Mas para concluir, gostaríamos de ler o versículo inicial do Salmo com o oráculo divino: "Senta-te à minha direita, enquanto ponho os teus inimigos por escabelo dos teus pés". E fá-lo-emos com São Máximo de Turim (quarto-quinto século), que, no seu Sermão sobre o Pentecostes, o comenta do seguinte modo: "Segundo os nossos costumes a compartilha do trono é oferecida àquele que, tendo realizado qualquer empreendimento, ao chegar vencedor merece sentar-se em sinal de honra. Por conseguinte, também o homem Jesus Cristo, ao vencer com a sua paixão o diabo, SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
abrindo com a sua ressurreição os reinos do abismo e chegando vitorioso ao céu, como que depois de ter cumprido uma tarefa, ouve de Deus Pai este convite: "Senta-te à minha direita". Não nos devemos admirar se o Pai oferece ao Filho, que é consubstancial ao Pai, a partilha do trono... O Filho senta à direita porque, segundo o Evangelho, à direita estarão as ovelhas e à esquerda os cordeiros. Por conseguinte, é necessário que o primeiro Cordeiro ocupe a parte das ovelhas e o Chefe imaculado ocupe antecipadamente o lugar destinado ao rebanho imaculado que o seguirá" (40, 2: Scriptores circa Ambrosium, IV, Milão-Roma 1991, pág. 195).
PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 18 de Agosto de 2004 Salmo 109: O Messias, rei e sacerdote 1. Em continuidade com uma antiga tradição, o Salmo 109, que agora foi proclamado, constitui a componente primária das Vésperas dominicais. Ele é reproposto nas quatro semanas em que se desenvolve a Liturgia das Horas. A sua brevidade, ulteriormente acentuada pela exclusão no uso litúrgico cristão do v. 6 de tipo imprecatório, não significa ausência de dificuldades exegéticas e interpretativas. O texto apresenta-se como um Salmo real, ligado à dinastia davídica, e provavelmente remete para o rito de entronização do soberano. Contudo, a tradição judaica e cristã viu no rei consagrado o perfil do Consagrado por excelência, o Messias, Cristo. Precisamente nesta luz o Salmo torna-se um cântico luminoso elevado pela Liturgia cristã ao Ressuscitado no dia festivo, memória da Páscoa do Senhor. 2. São duas as partes do Salmo 109, ambas caracterizadas pela presença de um oráculo divino. O primeiro oráculo (cf. vv. 1-3) dirige-se ao soberano no dia da sua solene entronização "à direita" de Deus, ou seja, ao lado da Arca da Aliança no templo de Jerusalém. A memória da "geração" divina do rei fazia parte do protocolo oficial da sua coroação e assumia para Israel um valor simbólico de investidura e de tutela, sendo o rei o representante de Deus na defesa da justiça (cf. v. 3). Naturalmente na releitura cristã aquela "geração" torna-se real e apresenta Jesus Cristo como verdadeiro Filho de Deus. Acontecera assim na leitura cristã de outro célebre Salmo real-messiânico, o segundo do Saltério, onde se lê este oráculo divino: "Tu és o meu filho, Eu hoje te gerei" (Sl 2, 7). 3. Ao contrário, o segundo oráculo do Salmo 109, tem um conteúdo sacerdotal (cf. v. 4). Antigamente o rei desempenhava também funções cultuais, não segundo a linha do sacerdócio levítico, mas segundo outra conexão: a do sacerdócio de Melquisedec; o soberano-sacerdote de Salém, a Jerusalém pré-israelita (cf. Gn 14, 1720).
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Na perspectiva cristã o Messias torna-se o modelo de um sacerdócio perfeito e supremo. Será a Carta aos Hebreus na sua parte central que exalta este ministério sacerdotal "A maneira de Melquisedec" (5, 10), vendo-o encarnado em plenitude na pessoa de Cristo. 4. O primeiro oráculo é assumido várias vezes no Novo Testamento para celebrar o carácter messiânico de Jesus (cf. Mt 22, 44; Act 2, 34-35; 1 Cor 15, 25-27; Hb 1, 13). Face ao Sumo sacerdote, e diante do Sinédrio hebraico, remete explicitamente para o nosso Salmo proclamando que já estará "sentado à direita do Poder" divino, precisamente como está escrito no Salmo 109, 1 (Mc 14, 62; cf. 12, 3637). Voltaremos a falar sobre este Salmo no nosso itinerário no âmbito dos textos da Liturgia das Horas. Gostaríamos agora, na conclusão da nossa breve apresentação deste hino messiânico, de recordar a sua leitura cristológica. 5. Fazemo-lo com uma síntese oferecida por Santo Agostinho. Ele, na Exposição sobre o Salmo 109, feita na Quaresma do ano 412, delineava o Salmo como verdadeira e própria profecia das promessas divinas em relação a Cristo. Dizia o célebre Padre da Igreja: "Era necessário conhecer o único Filho de Deus, que estava para vir entre os homens, para assumir o homem e para se tornar homem através da natureza assumida: ele seria morto, ressuscitado, subido ao céu, sentar-se-ia à direita do Pai e cumpriria entre as nações quanto havia prometido... Por conseguinte, tudo isto devia ser profetizado, devia ser prenunciado, devia ser assinalado como destinado a vir, para que, acontecendo imprevistamente, não assustasse, mas, ao contrário, fosse aceite com fé e esperado. Este Salmo insere-se no âmbito destas promessas, o qual profetiza, com palavras tanto seguras como explícitas, o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e nós não podemos minimamente duvidar que nele seja anunciado Cristo" (Exposições sobre os Salmos, III, Roma 1976, pág. 951.953). 6. Dirigimos agora a nossa invocação ao Pai de Jesus Cristo, único rei e sacerdote perfeito e eterno, para que faça de nós um povo de sacerdotes e de profetas de paz e de amor, um povo que cante Cristo rei e sacerdote que se imolou para reconciliar em si, num só corpo, toda a humanidade, criando o homem novo (cf. Ef 2, 15-16). Salmo 109, 1.3-4:
"Disse o Senhor ao meu senhor: "Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos como escabelo dos teus pés". A ti o principado no dia do teu nascimento, as honras sagradas desde o seio, desde a aurora da tua juventude. O Senhor jurou e jamais se arrependerá: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec""
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BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 8 de Junho de 2005 Salmo 110: São grandes as obras do Senhor
Queridos Irmãos e Irmãs! 1. Hoje sentimos o vento forte. Na Sagrada Escritura o vento é símbolo do Espírito Santo. Esperemos que o Espírito nos ilumine agora na meditação do Salmo 110 que acabámos de ouvir. Neste Salmo encontra-se um hino de louvor e acção de graças pelos numerosos benefícios que definem Deus nos seus atributos e na sua obra de salvação: fala-se de "piedade", de "ternura", de "justiça", de "poder", de "verdade", de "rectidão", de "fidelidade, de "aliança", de "obras", de "prodígios", até de "alimentos" que ela doa e, no fim, do seu "nome" glorioso, isto é, da sua pessoa. Por conseguinte, a oração é contemplação do mistério de Deus e das maravilhas que Ele realiza na história da salvação. 2. O Salmo abre-se com o verbo de agradecimento que se eleva não só do coração do orante, mas também de toda a assembleia litúrgica (cf. v. 1). O objecto desta oração, que inclui também o rito do agradecimento, é expresso com a palavra "obras" (cf. vv. 2.3.6.7). Elas indicam as intervenções salvíficas do Senhor, manifestação da sua "justiça" (cf. v. 3), palavra que na linguagem bíblica indica antes de tudo o amor que gera salvação. Portanto, o coração do Salmo transforma-se num hino da aliança (cf. vv. 4-9), aquele vínculo íntimo que une Deus com o seu povo e que inclui uma série de atitudes e de gestos. Fala-se assim de "piedade e ternura" (cf. v. 4), em continuidade com a grande proclamação do Sinai: "Senhor! Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade" (Êx 34, 6). A "piedade" é a graça divina que envolve e transfigura o fiel, enquanto a "ternura" é expressa no srcinal hebraico com uma palavra característica que remete para as "vísceras" maternas do Senhor, ainda mais misericordioso do que as de uma mãe (cf. Is 49, 15). 3. Este vínculo de amor abrange o dom fundamental do alimento e, por conseguinte, da vida (cf. Sl 110, 5) que, na releitura cristã, se identificará com a Eucaristia, diz alimentemo-nos São Jerónimo: "Como alimento deuino pão que desceu se dele somoscomo dignos, dele!" (Breviarium Psalmos, 110: do PL céu: XXVI, 1238-1239). Há depois o dom da terra, "a herança das nações"(Sl 110, 6), que alude à grande vicissitude do Êxodo, quando o Senhor se revela como o Deus da libertação. Portanto, devemos procurar a síntese do corpo central deste cântico no tema do pacto especial entre o Senhor e o seu povo, como afirma de maneira clara o v. 9: "Estabeleceu com ele uma aliança para sempre". 89
4. O Salmo 110 é selado com a palavra da contemplação do rosto divino, da pessoa do Senhor, expressa através do seu "nome" santo e transcendente. Citando depois uma expressão sapiencial (cf. Pr 1, 7; 9, 10; 15, 33), o Salmista convida cada fiel a cultivar o "temor do Senhor" (Sl 110, 10), início da verdadeira sabedoria. Esta expressão não quer significar o medo e o terror, mas o respeito sério e sincero, que é fruto do amor, a adesão genuína e laboriosa ao Deus libertador. E, se a primeira palavra do cântico tinha sido de agradecimento, a última é de louvor: assim como a justiça salvífica do Senhor "dura para sempre" (v. 3), também a gratidão do orante não conhece pausas, ressoa na oração "sem fim" (v. 10). Para resumir, o Salmo convida-nos a descobrir as numerosas coisas boas que o Senhor nos oferece todos os dias. Nós vemos mais facilmente os aspectos negativos da nossa vida. O Salmo convida-nos a ver também as coisas positivas, os numerosos dons que recebemos, e assim encontrar a gratidão, porque só um coração grato pode celebrar dignamente a grande liturgia da gratidão, a Eucaristia. 5. Como conclusão da nossa reflexão desejaríamos meditar com a tradição eclesial dos primeiros séculos cristãos o versículo final com a sua célebre declaração reiterada noutra parte da Bíblia (cf. Pr 1, 7): "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria" (Sl 110, 10). O escritor cristão Barsanúfio de Gaza (activo na primeira metade do século VI) comentava-o assim: "O que é o princípio de sabedoria, a não ser abster-se de tudo o que Deus repudia? E de que forma pode abster-se, a não ser evitando fazer seja o que for sem ter pedido conselho, ou com não dizer nada do que não se deve dizer e, além disso, considerando-se a si mesmo insensato, estulto, desprezível e nada do todo?" (Epistolário, 234: Colecção de textos patrísticos, XCIII, Roma 1991, pp. 265-266). João Cassiano (que viveu entre os séculos IV e V), preferia contudo esclarecer que "há muita diferença entre o amor, ao qual nada falta e que constitui o tesouro da sabedoria e da ciência, e o amor imperfeito, denominado "início da sabedoria"; este, contendo em si a ideia do castigo, é excluído do coração dos perfeitos devido ao advento da plenitude de amor"(Conferências aos monges, 2, 11, 13; Colecção de textos patrísticos, CLVI, Roma 2000, p. 29). Assim, no caminho da nossa vida rumo a Cristo, o temor servil que se verifica no início, é substituído por um temor perfeito que é amor, dom do Espírito Santo. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 2 de Novembro de 2005 Salmo 111: Bem-aventurança do homem justo 1. Depois de ter celebrado ontem a solene festa de todos os Santos do céu, hoje fazemos memória de todos os fiéis defuntos. A liturgia convida-nos a rezar pelos nossos queridos que faleceram, dirigindo o pensamento para o mistério da morte, herança comum de todos os homens. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
Iluminados pela fé, olhamos para o enigma humano da morte com serenidade e esperança. Segundo a Escritura, de facto, ela mais do que um fim, é um nascimento novo, é a passagem obrigatória através da qual podem alcançar a vida em plenitude aqueles que modelam a sua existência terrena segundo as indicações da Palavra de Deus. O salmo 111, composição de tipo sapiencial, apresenta-nos a figura destes justos, os quais temem o Senhor, reconhecem a sua transcendência e aderem com confiança e amor à sua vontade na expectativa de O encontrar depois da morte. A estes fiéis está reservada uma "bem-aventurança": "Feliz o homem que teme o Senhor" (v. 1). O Salmista esclarece imediatamente em que consiste tal temor: ele manifesta-se na docilidade aos mandamentos de Deus. É proclamado bem-aventurado aquele que "sente grande alegria" em guardar os mandamentos, encontrando neles alegria e paz. 2. A docilidade a Deus é, por conseguinte, raiz de esperança e de harmonia interior e exterior. A observância da lei moral é fonte de profunda paz da consciência. Aliás, segundo a visão bíblica da "retribuição", sobre o justo estende-se o manto da bênção divina, que imprime estabilidade e sucesso às suas obras e às dos seus descendentes: "A sua descendência será poderosa sobre a terra, e bendita, a geração dos justos" (vv. 2-3; cf. v. 9). Sem dúvida, a esta visão optimista opõem-se as observações amargas do justo Job, que experimenta o mistério do sofrimento, se sente injustamente punido e submetido a provas aparentemente insensatas. Job representa muitas pessoas justas que sofrem duramente no mundo. Por conseguinte , será necessário ler este Salmo no contexto global da Sagrada Escritura, até à cruz e à ressurreição do Senhor. A Revelação inclui a realidade da vida humana em todos os seus aspectos. Contudo, permanece válida a confiança que o Salmista deseja transmitir e fazer experimentar a quem escolheu seguir o caminho de um comportamento moralmente irrepreensível, contra qualquer alternativa de sucesso ilusório obtido através da injustiça e da imoralidade. 3. O centro desta fidelidade à Palavra divina consiste numa opção fundamental, isto é, a caridade para com os pobres e os necessitados: "Feliz o homem que se compadece e empresta... Reparte do que é seu com os pobres" (vv. 5.9). Portanto, o fiel é generoso; respeitando a norma bíblica, ele concede empréstimos aos irmãos em necessidade, sem juros (cf. Dt 15, 7-11) e sem cair na infâmia da usura que destrói a vida dos miseráveis. O justo, aceitando a admoestação dos"Reparte profetas,dodeclara-se lado dos marginalizados, e ampara-os com ajudasconstante abundantes. que é seudo com os pobres", diz o versículo 9, expressando assim uma extrema generosidade, completamente desinteressada. 4. O Salmo 111, paralelamente com o retrato do homem fiel e caridoso, "bom, misericordioso e justo", apresenta no fim, num só versículo (cf. v. 10), também o perfil do malvado. Este indivíduo assiste ao sucesso da pessoa justa enfurecido de raiva e de 91
inveja. É o tormento de quem tem uma má consciência, ao contrário do homem generoso que "tem o seu coração firme e seguro" (vv. 7-8). Nós fixamos o nosso olhar no rosto sereno do homem fiel que "reparte do que é seu com os pobres" e confiamo-nos para a nossa reflexão conclusiva às palavras de Clemente Alexandrino, o Padre da Igreja do século II, que comentou uma afirmação difícil do Senhor. Na parábola sobre o administrador injusto encontra-se a expressão segundo a qual devemos fazer o bem com o "dinheiro desonesto". Daqui surge a pergunta: o dinheiro, a riqueza, são em si injustos, ou o que pretende dizer o Senhor? Clemente Alexandrino explica muito bem este conceito na sua homilia "Qual é o rico que se salvará", e diz: com esta afirmação Jesus "declara injusto por natureza qualquer bem que alguém possua para si mesmo como bem próprio e não o reparta com aqueles que têm necessidade; mas declara também que desta injustiça é possível realizar uma obra justa e saudável, dando repouso a alguns dos pequeninos que habitam eternamente junto do Pai (cf. Mt 10, 42; 18, 10)" (31, 6: Collana di Testi Patristici, CXLVIII, Roma 1999, pp. 56-57). E, dirigindo-se ao leitor, Clemente adverte: "Observa em primeiro lugar que ele não te comandou que te faças suplicar nem que esperes ser suplicado, mas que procures tu mesmo aqueles que são dignos de ser ouvidos, porque são discípulos do Salvador" (31, 7; ibidem, p. 57). Recorrendo depois a outro texto bíblico, comenta: "É, pois, a frase do apóstolo: "Deus ama quem dá com alegria" (2 Cor 9, 7), quem sente prazer em doar e não semeia escassamente, para não recolher do mesmo modo, mas partilha sem amarguras nem distinções ou sofrimentos, e isto é praticar autenticamente o bem" (31, 8: ibidem). No dia da comemoração dos defuntos, como disse no início, todos somos chamados a confrontar-nos com o enigma da morte e, por conseguinte, como viver bem, como encontrar a felicidade. E este Salmo responde: bem-aventurado o homem que doa; bem-aventurado o homem que não usa a vida para si mesmo mas partilha; feliz o homem que é misericordioso, bom e justo; feliz o homem que vive do amor de Deus e do próximo. Assim vivemos bem e não devemos ter receio da morte, porque estamos na felicidade que provém de Deus e que permanece para sempre. BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 18 de Maio de 2005 Salmo 112: Louvai o nome do Senhor
Caríssimos irmãos e irmãs! 1. Ressoou agora na sua simplicidade e beleza o Salmo 112, verdadeiro pórtico de entrada para uma pequena recolha de Salmos que vai do 112 ao 117, convencionalmente chamada "o Hallel egípcio". É o aleluia, isto é o cântico de louvor, SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
que exalta a libertação da escravidão do faraó e a alegria de Israel em servir o Senhor em liberdade na terra prometida (cf. Sl 113). Não foi por acaso que a tradição hebraica tinha relacionado esta série de salmos com a liturgia pascal. A celebração deste acontecimento, segundo as suas dimensões histórico-sociais e sobretudo espirituais, era sentida como sinal da libertação do mal na multiplicidade das suas manifestações. O Salmo 112 é um breve hino que no srcinal hebraico consta apenas de cerca de sessenta palavras, todas permeadas de sentimentos de confiança, louvor e alegria. 2. A primeira estrofe (cf. Sl 112, 1-3) exalta "o nome do Senhor" que como se sabe na linguagem bíblica indica a própria pessoa de Deus, a sua presença viva e activa na história humana. Por três vezes, com apaixonada insistência, ressoa "o nome do Senhor" no centro da oração de adoração. Todo o ser e todo o tempo "desde o surgir do sol até ao seu ocaso", diz o Salmista (v. 3) está envolvido numa única acção de graças. É como se um respiro incessante subisse da terra para o céu para exaltar o Senhor, Criador do cosmos e Rei da história. 3. Precisamente através deste movimento para o alto, o Salmo conduz-nos ao mistério divino. A segunda parte (cf. vv. 4-6) celebra, de facto, a transcendência do Senhor, descrita com imagens verticais que superam o simples horizonte humano. Proclama-se: o Senhor é "excelso", "está sentado no alto", e ninguém é como ele; até para olhar para o céu se deve "inclinar", porque "a sua majestade está acima dos céus" (v. 4). 4. O olhar divino dirige-se sobre toda a realidade, sobre os seres terrenos e sobre os celestes. Contudo os seus olhos não são altivos nem afastados, como os de um insensível imperador. O Senhor diz o Salmista "inclina-se para observar" (v. 6). Passa-se desta forma ao último movimento do Salmo (cf. vv. 7-9), que desloca a atenção das alturas celestes ao nosso horizonte terreno. O Senhor abaixa-se com solicitude em relação à nossa pequenez e indigência que nos estimularia a retirar-nos receosos. Ele dirige directamente o seu olhar amoroso e o seu compromisso eficaz para os últimos e os miseráveis do mundo: "Ele levanta do pó o indigente e tira o pobre da miséria" (v. 7). Por conseguinte, Deus inclina-se sobre os necessitados e os que sofrem para os confortar. E esta palavra encontra a sua última densidade, o seu último realismo no momento em que Deuspobres se inclina até ao ponto de seele encarnar, tornar um de nós,"os e precisamente um dos do mundo. Ao pobre conferedea se maior honra, a de fazer sentar entre os grandes"; sim, "entre os grandes do seu povo" (v. 8). À mulher sozinha e estéril, humilhada pela antiga sociedade como se fosse um ramo seco e inútil, Deus dá a honra e a grande alegria de ter muitos filhos (cf. v. 9). Por isso, o Salmista louva um Deus muito diferente de nós na sua grandeza, mas ao mesmo tempo muito próximo das suas criaturas que sofrem.
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É fácil intuir nestes versículos finais do Salmo 112 a prefiguração das palavras de Maria no Magnificat, o cântico das opções de Deus que "olha para a humilde condição da sua serva". Mais radical que o nosso Salmo, Maria proclama que Deus "derruba os poderosos dos tronos e exalta os humildes (cf. Lc 1, 48.52; cf. Sl 112, 6-8). 5. Um "Hino vespertino" muito antigo conservado nas chamadas Constituições dos Apóstolos (VII, 48), retoma e desenvolve o início jubiloso do nosso Salmo. Gostaria de recordar aqui, no final da minha reflexão, para realçar a releitura "cristã" que a comunidade dos primeiros tempos fazia dos Salmos. "Louvai, crianças, ao Senhor, / Louvai o nome do Senhor. / A ti louvamos, a ti cantamos, a ti bendizemos/ pela tua glória imensa. /Senhor rei, / Pai de Cristo cordeiro imaculado, / que tira o pecado do mundo. / A ti convém o louvor, / a ti o hino, a ti a glória, / a Deus Pai por meio do Filho no Espírito Santo / por toda a eternidade. Amém" (S. Pricoco M. Simonetti, A oração dos cristãos, Milão 2000, pág. 97). Antes de nos introduzirmos numa breve interpretação do Salmo agora cantado, desejo recordar que hoje é o aniversário do nosso amado Papa João Paulo II. Teria completado 85 anos e temos a certeza que do Alto nos vê e está connosco. Nesta ocasião desejamos dizer ao Senhor um grande obrigado pelo dom deste Papa e dizer obrigado ao próprio Papa por tudo o que fez e sofreu. Salmo 112 (113)
Aleluia! Louvai, servos do Senhor louvai o nome do Senhor. Bendito seja o nome do Senhor, agora e para sempre. Desde o nascer ao pôr do sol, seja louvado o nome do Senhor. O Senhor reina sobre todas as nações, a sua majestade está acima dos céus... Ele levanta do pó o indigente e tira o pobre da miséria... Ele dá família à mulher estéril e faz dela a mãe feliz de muitos filhos! Aleluia!". PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 3 de dezembro de 2003 Salmo 113: Maravilhas do êxodo do Egipto 1. O jubiloso e triunfal cântico que acabamos de proclamar, recorda o êxodo de Israel da opressão dos egípcios. O Salmo 113 faz parte daquela colectânia que a tradição
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judaica chamou "Hallel egípcio". São os Salmos 112-117, uma espécie de fascículo de cânticos, usados sobretudo na liturgia judaica da Páscoa. O cristianismo adoptou o Salmo 113 com a mesma conotação pascal, mas abriu-o à nova leitura derivante da ressurreição de Cristo. Por isso, o êxodo celebrado pelo Salmo torna-se figura de outra libertação mais radical e universal. Dante, na Divina Comédia, coloca este hino, segundo a versão latina da Vulgata, nos lábios das almas do Purgatório: "In exitu Israël de Aegypto / cantavam todos juntos em uníssono..." (Purgatorio II, 46-47). O que significa que ele vê no Salmo o cântico da expectativa e da esperança de quantos estão orientados, depois da purificação de todos os pecados, para a meta derradeira da comunhão com Deus no Paraíso. 2. Sigamos agora o enredo temático e espiritual desta breve composição orante. Na abertura (cf. vv. 1-2) evoca-se o êxodo de Israel da opressão egípcia até à entrada naquela terra prometida que é o "santuário" de Deus, ou seja, o lugar da sua presença entre o povo. Aliás, terra e povo são unidos: Judá e Israel, palavras com as quais se designava quer a terra santa quer o povo eleito, são considerados como sede da presença do Senhor, sua propriedade e herança especiais (cf. Êx 19, 5-6). Depois desta descrição teológica de um dos elementos de fé fundamentais do Antigo Testamento, ou seja, a proclamação das obras maravilhosas de Deus para o seu povo, o Salmista aprofunda espiritual e simbolicamente os seus acontecimentos constitutivos. 3. O Mar Vermelho do êxodo do Egipto e o Jordão da entrada na Terra santa são personificados e transformados em testemunhas e instrumentos partícipes da libertação realizada pelo Senhor (cf. Sl 113, 3.5). No início, no êxodo, eis que o mar se retira para deixar passar Israel e, no final da marcha no deserto, eis que as águas do Jordão ficaram completamente separadas, deixando o seu leito seco para que a procissão dos filhos de Israel o pudesse atravessar (cf. Js 3.-4). No centro, recorda-se a experiência do Sinai: agora são os montes que participam da grande revelação divina, que se realiza sobre as suas colinas. Semelhantes a criaturas vivas, como os carneiros e os cordeiros, eles estremecem e saltam. Com uma personificação muito vivaz, o Salmista interroga então os montes e as colinas acerca do motivo da sua perturbação: "Montes, porque saltais como carneiros, e vós, colinas, como cordeiros?" (Sl 113, 6). Não é referida a sua resposta: é dada directamente por meio de uma ordem, dirigida depois à terra, para que tremesse com a chegada do Senhor, Deus de Israel, um acto de exaltação gloriosa do Deus transcendente e salvador. 4. É este o tema da parte final do Salmo 113 (cf. v. 7-8), que introduz outro acontecimento da marcha de Israel deserto, oada águanuma que saía da rocha Êx 17, 1-7; Nm de Meribá (cf. significativo 20, 1-13). Deusno transforma rocha nascente de água, que se torna um lago: na base deste prodígio está a sua solicitude paterna em relação ao povo. O gesto adquire, então, um significado simbólico: é o sinal do amor salvífico do Senhor que ampara e regenera a humanidade enquanto progride no deserto da história. 95
Como se sabe, São Paulo retomará esta imagem e, com base numa tradição judaica segundo a qual a rocha acompanhava Israel no seu percurso no deserto, lê de novo o acontecimento em chave cristológica: "Todos beberam da mesma bebida espiritual; pois bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo" (1 Cor 10, 4). Neste contexto, um grande mestre cristão como Orígenes, ao comentar a saída do povo de Israel do Egipto, pensa no novo êxodo realizado pelos cristãos. De facto, ele exprime-se do seguinte modo: "Não penses que só então Moisés tenha guiado o povo para fora do Egipto: também agora o Moisés que temos connosco..., isto é, a lei de Deus quer guiar-te fora do Egipto; se a ouvires, quer afastar-te do Faraó... Não quer que tu permaneças nas acções tenebrosas da carne, mas que vás ao deserto, que alcances o lugar privado das perturbações e das flutuações do século, que chegues à tranquilidade e ao silêncio... Por conseguinte, quando chegares a este lugar, lá poderás imolar ao Senhor, reconhecer a lei de Deus e o poder da voz divina"(Homilias sobre o Êxodo, Roma 1981, pp. 71-72). Retomando a imagem paulina que recorda a travessia do mar, Orígenes continua: "O Apóstolo chama a isto um baptismo, realizado em Moisés na nuvem e no mar, para que tu, que foste baptizado em Cristo, na água e no Espírito Santo, saibas que os egípcios estão no teu seguimento e querem chamar-te ao seu serviço, ou seja, aos regedores deste mundo e aos espíritos malvados dos quais antes foste escravo. Sem dúvida, eles procurarão seguir-te, mas tu desces à água e salvas-te incólume e, tendo lavado as manchas dos pecados, sobes como um homem novo preparado para cantar o cântico novo" (Ibid., pág. 107). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 1° de setembro de 2004 Salmo 113B: Louvor ao verdadeiro Deus
Amados Irmãos e Irmãs 1. O Deus vivo e o ídolo inerte embatem-se no Salmo 113 B, que acabámos de ouvir, e faz parte da série dos Salmos das Vésperas. A antiga tradução grega da Bíblia chamada dos Setenta, seguida pela versão latina da antiga Liturgia cristã, uniu este Salmo em honra do verdadeiro Senhor ao Salmo precedente. Disto derivou uma única composição A e 113 B). que é, contudo, claramente cadenciada em dois textos distintos (cf. Sl 113 Depois de uma palavra inicial, dirigida ao Senhor para dar testemunho da sua glória, o povo eleito apresenta o seu Deus como o Criador todo-poderoso: "O nosso Deus está no céu e realiza tudo o que deseja" ( Sl 113 B, 3). "Fidelidade e graça" são as virtudes típicas do Deus da aliança, em relação ao povo por Ele eleito, Israel (cf. n. 1). Assim, o cosmos e a história encontram-se sob a sua soberania, que é poder de amor e de salvação. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
2. Ao Deus verdadeiro, adorado por Israel, são imediatamente opostos "os ídolos das gentes" (v. 4). A idolatria é uma tentação de toda a humanidade, em todas as terras e em todos os tempos. O ídolo é uma coisa inanimada, nascida das mãos do homem, estátua fria, sem vida. O Salmista descreve-a com ironia nos seus sete membros, totalmente inúteis: boca muda, olhos cegos, ouvidos surdos, narinas insensíveis aos aromas, mãos inertes, pés paralisados, garganta desprovida da emissão de sons (cf. vv. 5-7). Depois desta crítica cruel dos ídolos, o Salmista expressa um desejo sarcástico: "Fiquem como eles os que os fazem e todos os que neles confiam" (v. 8). É um desejo expresso de uma forma seguramente eficaz, para produzir um efeito de dissuasão radical em relação à idolatria. Quem adora os ídolos da riqueza, do poder e do sucesso perde a sua dignidade de pessoa humana. O profeta Isaías dizia: "Os fabricantes de estátuas nada são e as suas coisas preferidas não têm valor. Os seus devotos nada vêem nem conhecem, e por isso acabam por ser enganados" (44, 9). 3. Ao contrário, os fiéis do Senhor sabem que encontram no Deus vivo o "seu auxílio" e o "seu escudo" (cf. Sl 113 B, 9-13). Eles são apresentados segundo uma categoria tríplice. Em primeiro lugar está "a casa de Israel", ou seja, todo o povo, a comunidade que se reúne no templo para rezar. Ali encontra-se também a "casa de Araão", que remete para os sacerdotes, guardiães e anunciadores da Palavra divina, chamados a presidir ao culto. Por fim, evocam-se aqueles que temem o Senhor, ou seja, os fiéis autênticos e constantes, que no judaísmo sucessivo ao exílio babilónico e mais tarde denotam também aqueles pagãos que se aproximavam da comunidade e da fé de Israel com um coração sincero e com uma busca genuína. Assim será, por exemplo, o centurião romano Cornélio (cf. Act 10, 1-2.22), sucessivamente convertido ao cristianismo por São Pedro. Sobre estas três categorias de verdadeiros crentes desce a bênção divina (cf. Sl 113 B, 12-15). Segundo a concepção bíblica, ela é fonte de fecundidade: "Que o Senhor vos multiplique, a vós a aos vossos filhos" (v. 14). Enfim os fiéis, felizes pelo dom da vida, recebido do Deus vivo e criador, entoam um breve hino de louvor, respondendo à bênção eficaz de Deus com a sua bênção agradecida e confiante (cf. vv. 16-18). 4. De modo vivaz e sugestivo, um Padre da Igreja do Oriente, São Gregório de Nissa (século IV), na quinta Homilia sobre o Cântico dos Cânticos, evoca o nosso Salmo para descrever a passagem da humanidade do "gelo da idolatria" à primavera da salvação. Com efeito, recorda São Gregório, a própria natureza humana se transformou, por assim dizer, "em seres imóveis" e sem vida "que se fizeram objecto de culto", como de facto está escrito: "Fiquem como eles os que os fazem e todos os que neles confiam". "E era lógico que isto acontecesse. Assim como, com efeito, aqueles que dirigem o seu olhar para o verdadeiro em si dos as peculiaridades divina,que também o homem que se Deus volta recebem para a vaidade ídolos passou adasernatureza como aquele olhava, tornando-se pedra. Portanto, dado que a natureza humana, que se tornou pedra por causa da idolatria, permaneceu imóvel diante do melhor, encerrada no gelo do culto dos ídolos, por este motivo nasce neste Inverno tremendo o Sol da justiça e desponta a Primavera do sopro do meio-dia, que derrete este gelo e aquece, com o nascer dos raios daquele sol, tudo o que está por baixo; e assim o homem, que foi transformado em pedra por obra do gelo, aquecido pelo Espírito e pelos raios do Logos, voltou a ser a 97
água que jorrava para a vida eterna" ( Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, Roma 1988, pp. 133-134). BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 25 de Maio de 2005 Salmo 115: Acção de graças no Templo 1. O Salmo 115, com o qual agora rezamos, foi sempre usado pela tradição cristã, a partir de São Paulo que, citando o seu início na tradução grega dos Setenta, escreve do seguinte modo aos cristãos de Corinto: "Animados do mesmo espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também nós acreditamos e por isso falamos" (2 Cor 4, 10). O Apóstolo sente-se em sintonia espiritual com o Salmista na confiança serena e no testemunho sincero, apesar dos sofrimentos e debilidades humanas. Escrevendo aos Romanos, Paulo retomará o v. 2 do Salmo e realçará um contraste entre o Deus fiel e o homem incoerente: "Fique claro que Deus é verdadeiro, mesmo que todo o homem seja falso" (Rm 3, 4). A tradição cristã leu, rezou e interpretou o texto em diversos contextos e surge assim toda a riqueza e profundidade da Palavra de Deus, que abre novas dimensões e situações. No início foi lido sobretudo um texto do martírio, mas depois, na paz da Igreja tornou-se cada vez mais um texto eucarístico, devido à palavra do "cálice da salvação". Na realidade, Cristo é o primeiro mártir. Deu a sua vida num contexto de ódio e falsidade, mas transformou esta paixão e assim também este contexto na Eucaristia: numa festa de agradecimento. A Eucaristia é agradecimento: "elevarei o cálice da salvação". 2. O Salmo 115 no srcinal hebraico constitui uma única composição com o Salmo precedente, o 114. Ambos são um agradecimento unitário, dirigido ao Senhor que liberta do pesadelo da morte. No nosso texto sobressai a memória de um passado angustiante: o orante manteve chama da fé, quando nos seus lábioseleva-se surgia uma a amargura desesperoalta e daa infelicidade (cf.também Sl 115, 10). De facto, em volta espécie do de barreira gélida de ódio e de engano, porque o próximo se manifestava falso e infiel (cf. v. 11). Mas a súplica transforma-se agora em gratidão, porque o Senhor permaneceu fiel neste contexto de infelicidade, elevou o seu fiel do vórtice obscuro da mentira (cf. v. 12). E assim este Salmo é sempre para nós um texto de esperança, porque também em situações difíceis o Senhor não nos abandona, e por isso devemos manter alta a chama da fé.
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Por isso, o orante dispõe-se a oferecer um sacrifício de agradecimento, no qual se beberá o cálice ritual, o cálice da oferenda sagrada que é sinal de reconhecimento pela libertação (cf. v. 13) e encontra o seu último cumprimento no cálice do Senhor. É por conseguinte a Liturgia a sede privilegiada na qual elevar o louvor agradecido a Deus salvador. 3. De facto é feita explícita menção, além do rito sacrifical, também à assembleia de "todo o povo", diante da qual o orante cumpre a promessa e testemunha a própria fé (cf. v. 14). Será nesta circunstância que ele tornará público o seu agradecimento, sabendo bem que, também quando a morte incumbe, o Senhor se inclina sobre ele com amor. Deus não permanece indiferente ao drama da sua criatura, mas rompe as suas cadeias (cf. v. 16). O orante salvo da morte sente-se "servo" do Senhor, "filho da sua escrava" (Ibidem), uma bonita expressão oriental para indicar quem nasceu na mesma casa do Senhor. O Salmista professa humildemente e com alegria a sua pertença à casa de Deus, à família das criaturas unidas a ele no amor e na fidelidade. 4. O Salmo, sempre através das palavras do orante, termina evocando de novo o rito de agradecimento que será celebrado na moldura do templo (cf. vv. 17-19). A sua oração colocar-se-á desta forma num âmbito comunitário. A sua vicissitude pessoal é narrada para que seja para todos um estímulo a crer e a amar o Senhor. Por isso, no fundo podemos entrever todo o povo de Deus enquanto agradece ao Senhor da vida, o qual não abandona o justo no seio obscuro do sofrimento e da morte, mas o guia à esperança e à vida. 5. Concluimos a nossa reflexão confiando-nos às palavras de São Basílio Magno que, na Homilia sobre o Salmo 115 , comenta do seguinte modo a pergunta e a resposta presentes no Salmo:
"Que darei ao Senhor por quanto me concedeu? Levantarei o cálice da salvação. O Salmista compreendeu os numerosos dons recebidos de Deus: do não ser foi levado ao ser, foi depois plasmado da terra e dotado de razão... distinguiu a economia da salvação a favor do género humano, reconhecendo que o Senhor se entregou a si mesmo em redenção no lugar de todos nós; e permanece incerto, procurando entre todas as coisas que lhe pertencem, qual o dom que possa ser digno do Senhor. Que darei ao Senhor? Sacrifícios, não, nem holocaustos... mas toda a minha vida. Por isso diz: Levantarei o cálice da salvação, chamando cálice ao sofrimento no combate espiritual, resistir ao pecado até à morte. De resto, o que o nosso Salvador ensinou no Evangelho: Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; e de novo aos discípulos: podeis beber o cálice que Eu vou beber?, referindo-se claramente à morte que aceitava pela salvação do mundo" (PG XXX, 109), transformando assim mundo do pecado num mundo redimido, num mundo de agradecimento pela vida que oo Senhor nos concedeu. Salmo 116 (114-115)
Eu tinha confiança, mesmo quando disse: "A minha aflição é muito grande!" Na minha perturbação, eu dizia: 99
"Todo o homem é mentiroso!" Como retribuirei ao Senhor todos os seus benefícios para comigo? Elevarei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor. Cumprirei as minhas promessas feitas ao Senhor. na presença de todo o seu povo, nos átrios da casa do Senhor, no meio de ti, Jerusalém! Aleluia! JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 28 de novembro de 2001
O Salmo 116: Convite a louvar a Deus pelo seu amor
Queridos irmãos e irmãs, 1. Este é o Salmo mais curto, composto no srcinal hebraico apenas por dezassete palavras, das quais nove são particularmente relevantes. É uma pequena doxologia, isto é, um cântico essencial de louvor, que em pensamento poderia fazer as vezes de fecho orações hínicas Assimcom se verificou por vezes na liturgia, um pouco comoa acontece com o mais nossoamplas. Gloria Patri, o qual concluímos a recitação de qualquer Salmo. Na verdade, estas poucas palavras de oração revelam-se significativas e profundas para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo, no âmbito de uma perspectiva universal. Nesta luz, o primeiro versículo do Salmo é tomado pelo apóstolo Paulo para convidar todos os povos do mundo a glorificar Deus. De facto, ele escreve aos cristãos de Roma: "os gentios dão glória a Deus, pela sua misericórdia, como está escrito... Nações, louvai todas ao Senhor; e que todos os povos o celebrem" (Rm 15, 9.11). 2. Por conseguinte, o breve hino que estamos a meditar começa, como acontece muitas vezes a este género de Salmos, com um convite ao louvor, que não se destina só a Israel, mas a todos os povos da terra. Um alleluia deve brotar dos corações de todos os justos que procuram e amam Deus com o coração sincero. Mais uma vez o Saltério reflecte uma visão de amplo alcance, provavelmente alimentada pela experiência vivida por Israel durante o exílio na Babilónia no sexto século a.C.: o povo hebraico encontrou então outras nações e culturas e sentiu a necessidade de anunciar a própria fé àqueles entre os quais ele vivia. Encontra-se no Saltério a consciência de que o bem floresce em tantos terrenos e pode ser como que canalizado e dirigido para o único Senhor e Criador. Por isso, poderíamos falar de um "ecumenismo" da oração, que inclui num único abraço povos diferentes por srcem, história e cultura. Encontramo-nos na linha SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
da grande "visão" de Isaías que descreve "no final dos tempos" a afluência de todas as nações para "o monte do templo do Senhor". Então, cairão das mãos as espadas e as lanças, e serão transformadas em relhas de arados e foices, para que a humanidade viva em paz, cantando o seu louvor ao único Senhor de todos, ouvindo a sua palavra e observando os seus mandamentos (cf.Is 2, 1-5). 3. Israel, o povo da eleição, tem neste horizonte universal uma missão a cumprir. Deve proclamar duas grandes virtudes divinas, que conheceu ao viver a aliança com o Senhor (cf. v. 2). Estas duas virtudes, que são as duas feições fundamentais do rosto divino, o "bom binómio" de Deus, para dizer com São Gregório de Nissa (cf.
Sobre os títulos dos Salmos, Roma 1994, p. 183), são expressas com igual número de palavras hebraicas que, nas traduções, não conseguem brilhar em toda a sua riqueza de significado. A primeira é hésed, uma palavra usada repetidas vezes pelo Saltério e sobre a qual já falei noutra ocasião. Ela indica a rede dos sentimentos profundos que existem entre duas pessoas, ligadas por um vínculo autêntico e constante. Por isso, abraça valores como o amor, a fidelidade, a misericórdia, a bondade, a ternura. Por conseguinte, existe ente nós e Deus uma relação que não é fria, como a que pode existir entre um imperador e o seu súbdito, mas palpitante, como a que se desenvolve entre dois amigos, entre dois esposos, entre pais e filhos. 4. A segunda palavra é 'emét que é quase sinónimo da primeira. Também ela é querida ao Saltério, que a repete quase metade de todas as vezes em que ressoa no resto do Antigo Testamento. Em si, a palavra exprime a "verdade", ou seja, a genuinidade de uma relação, a sua autenticidade e lealdade, que se conserva apesar dos obstáculos e das provas; é a fidelidade pura e jubilosa que não conhece faltas. Não é sem motivo que o Salmista declara que ela "dura eternamente" (v. 2). O amor fiel de Deus nunca faltará e não nos abandonará a nós próprios ou à obscuridade do contra-senso, de um destino cego, do vazio e da morte. Deus ama-nos com um amor incondicionado, que não se cansa, que nunca esmorece. Eis a mensagem do nosso Salmo, breve como uma ladainha, mas intenso como um cântico grande. 5. As palavras que ele nos sugere são como um eco do cântico que ressoa na Jerusalém celeste, onde uma grande multidão de todas as línguas, povos e nações, canta a glória divina diante do trono de Deus e do Anjo (cf. Ap 7, 9). A este cântico a Igreja peregrina une-se com infinitas expressões de louvor, muitas vezes moldadas pelo génio poético pela artedemusical. dando um exemplo no oTeSenhor Deum,e do qual se serviramegerações cristãos Pensamos ao longo dos séculos, para louvar agradecerLhe: "Te Deum Laudamos, te Dominum confitemur, te aeternum Patrem omnis terra veneratur". Por seu lado, o pequeno Salmo que hoje estamos a meditar é uma síntese eficaz da perene liturgia de louvor com que a Igreja se faz voz no mundo, unindo-se ao louvor perfeito que o próprio Cristo dirige ao Pai. Por conseguinte, louvamos o Senhor! Louvamos sem nos cansarmos. Mas o nosso louvor exprime-se com a vida, mais do que com as palavras. De facto, seríamos 101
muito pouco credíveis, se com o nosso Salmo convidássemos os povos a glorificar o Senhor, e não levássemos a sério a admoestação de Jesus: "Brilhe a vossa luz diante dos homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus" (Mt 5, 16). Ao cantar o Salmo 116, como todos os Salmos dirigidos ao Senhor, a Igreja, Povo de Deus, esforça-se por se tornar, ela mesma, um cântico de louvor. PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 26 de Janeiro de 2005 Salmo 116: Acção de graças 1. No salmo 116 [114-115], que acaba de ser proclamado, a voz do Salmista expressa o amor reconhecido pelo Senhor, depois da realização de uma súplica intensa: "Amo o Senhor, porque ouviu a voz do meu lamento. Ele inclinou para mim os seus ouvidos, no dia em que o invoquei" (vv. 1-2). Imediatamente após esta declaração de amor, tem-se uma profunda descrição do pesadelo mortal que atormentou a vida do orante (cf. vv. 3-6). O drama é representado com os símbolos habituais presentes nos Salmos. Os laços que prendem a existência são os da morte, as cordas que a angustiam são as espirais dos sepulcros, que querem atrair a si os vivos sem jamais se aplacar (cf. Pr 30, 15-16). 2. A imagem é a de uma presa que caiu na armadilha de um caçador inexorável. A morte é como uma mordaça que aperta (cf. Sl 114, 3). Portanto, por detrás do orante encontra-se um perigo de morte, acompanhado de uma experiência psíquica dolorosa: "[Eu] estava aflito e cheio de saudade" (v. 3). Contudo, desse abismo trágico foi lançado um grito ao Único que pode estender a mão e tirar o orante angustiado daquele enredo inextricável: "Ó Senhor, salva-me a vida!" (v. 4). É uma oração breve mas intensa do homem que, encontrando-se numa situação desesperada, se agarra à única tábua de salvação. Assim, no Evangelho, bradaram os discípulos na tempestade (cf. Mt 8, 25), assim implorou Pedro quando, caminhando sobre as águas do mar, começava a afundar (cf. Mt 14,30). 3. Tendo sido salvo, o orante proclama que o Senhor é "bondoso e compassivo", aliás, horizonte hebraico, este último adjectivo remete para"misericordioso" a ternura da mãe,(Sl de 114, quem5). eleNo evoca as "entranhas". A confiança autêntica sente sempre Deus como amor, embora em certos momentos seja difícil intuir o percurso da sua acção. De qualquer forma, permanece certo que "o Senhor guarda os simples" (v. 6). Portanto, na miséria e no abandono podese contar sempre com ele, "pai dos órfãos e defensor das viúvas" ( Sl 68 [67], 6).
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4. Agora tem início um diálogo do Salmista com a sua alma, que continuará no sucessivo Salmo 115, a considerar-se um só com o nosso. Foi o que fez a tradição judaica, dando srcem ao único Salmo 116, segundo a numeração hebraica do Saltério. O Salmista convida a sua alma a voltar a encontrar a paz serena, depois do pesadelo mortal (cf. Sl 114, 7). Invocado com fé, o Senhor estendeu a mão, rompeu os laços que amordaçavam o orante, enxugou as lágrimas dos seus olhos e deteve a sua descida precipitosa ao abismo infernal (cf. v. 8). A mudança já é clara e o cântico termina com uma cena de luz: o orante volta "ao mundo dos vivos", ou seja, pelos caminhos da terra, para andar na "presença do Senhor". Ele une-se à oração comunitária no templo, antecipação daquela comunhão com Deus, que o aguardará no final da sua existência (cf. n. 9). 5. Enfim, gostaríamos de retomar os trechos mais importantes do Salmo, deixando-nos orientar por um grande escritor cristão do século III, Orígenes, cujo comentário ao Salmo 114, em grego, chegou até nós na versão latina de São Jerónimo. Ao ler que o Senhor "inclinou para mim os seus ouvidos", ele observa: "Nós somos pequenos e humildes, e não podemos estender-nos nem elevar-nos para o alto; é por isso que o Senhor inclina os seus ouvidos e se digna ouvir-nos. Afinal, dado que somos homens e não podemos tornar-nos deuses, Deus fez-se homem e inclinou-se, segundo quanto está escrito: "Inclinou os céus e desceu" ( Sl 18 [17], 10)". Com efeito, o Salmo continua: "O Senhor guarda os simples" ( Sl 114, 6): "Se alguém é grande, se se exalta e é soberbo, o Senhor não o protege; se alguém se julga grande, o Senhor não tem misericórdia dele; mas se alguém se humilha, o Senhor tem misericórdia dele e protege-o. A tal ponto que diz: "Eis que eu e os filhos que o Senhor me deu" (Is 8, 18). E ainda: "Eu estava sem forças e Ele salvou-me"". Assim, quem é pequeno e desventurado pode voltar à paz e ao descanso, como diz o Salmo (cf. Sl 114, 7) e como comenta o próprio Orígenes: Quando se diz: "Volta ao teu repouso", é sinal que antes tinha o descanso e que depois o perdeu... Deus criounos bons, fez-nos árbitros das nossas decisões e colocou-nos todos no paraíso, juntamente com Adão. Mas dado que, pela nossa livre decisão, precipitámos daquela bem-aventurança, terminando no vale de lágrimas, por isso o justo exorta a sua alma a voltar ao lugar de onde caiu... "Volta, minha alma, ao teu repouso, porque o Senhor foi bom para contigo". Se tu, alma, voltas ao Paraíso, não é porque és digna disto, mas porque é obra da misericórdia de Deus. Se saíste do Paraíso, foi por tua culpa; contudo, voltar para ali é obra da misericórdia do Senhor. Digamos também nós à nossa alma: "Volta ao teu repouso". “O nosso descanso é Cristo, nosso Deus" (Orígenes -Jerónimo,
sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, pp. 409 e 412-413).
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74 Homilias
JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 5 de dezembro de 2001
Salmo 117: Cântico de alegria e de vi tória
Caríssimos Irmãos e Irmãs: 1. Quando o cristão, em sintonia com a voz orante de Israel, canta o Salmo 117 que acabamos de ouvir entoar, sente dentro de si um particular frémito. De facto, ele encontra neste hino que se caracteriza por uma grande marca litúrgica duas frases que se repetem no Novo Testamento com uma nova tonalidade. A primeira é constituída pelo versículo 22: "A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se pedra angular". Esta frase é citada por Jesus, que a aplica à sua missão de morte e de glória, depois de ter narrado a parábola dos vinhateiros (cf. Mt 21, 42). A frase é citada também por Pedro nos Actos dos Apóstolos: "Ele é a pedra que vós, os construtores, desprezastes e que se transformou em pedra angular. E não há salvação em nenhum outro, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar" (Act 4, 1112). Cirilo de Jerusalém comenta: "Um só é o Senhor Jesus Cristo, para que a filiação seja única; proclamamos um só, para que não penses que haja outro... Com efeito, é chamado pedra, não inanimada nem cortada por mãos humanas, mas pedra angular, porque aquele que crê nela não ficará desiludido" (Catequeses, Roma 1993, pp. 312313). A segunda frase que o Novo Testamento extrai do Salmo 117 é proclamada pela multidão na solene entrada messiânica de Cristo em Jerusalém: "Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor!" (Mt 21, 9; cf. Sl 117, 26). A aclamação é envolvida por um "Hossana" que retoma a invocação hebraica hoshiana', "Ó Deus, salvai-nos!".
2. Este maravilhoso hino bíblico está situado no âmbito da pequena recolha de Salmos, do 112 ao 117, chamada o "Hallel pascal", ou seja, o louvor salmódico usado pelo culto hebraico para a Páscoa e também para as principais solenidades do ano litúrgico. O fio condutor do Salmo 117 pode ser considerado o rito da procissão, talvez marcado por cânticos para o solista e para o coro, tendo como fundo a cidade santa e o seu templo. Uma bonita antífona abre e encerra o texto: "Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor" (vv. 1. 29). A palavra "misericórdia" traduz a palavra hebraica hesed, que designa a fidelidade generosa de Deus em relação ao seu povo aliado e amigo. São três as categorias de pessoas que cantam esta fidelidade: Israel inteiro, a "casa de Aarão", isto é, os sacerdotes, e "quem teme Deus", uma expressão que indica os fiéis e sucessivamente também os prosélitos, ou seja, os membros das outras nações desejosos de aderir à lei do Senhor (cf. vv. 2-4). 3. Parece que a procissão se desenrola pelas ruas de Jerusalém, porque se fala das "tendas dos justos" (cf. v. 15). Contudo, eleva-se um hino de agradecimento (cf. vv. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
5-18), cuja mensagem é fundamental: mesmo quando estamos angustiados é necessário manter alta a chama da confiança, porque a mão poderosa do Senhor conduz o seu fiel à vitória sobre o mal e à salvaçao. O poeta sagrado usa imagens fortes e vivazes: os adversários cruéis são comparados com um enxame de abelhas ou a uma frente de chamas que progride reduzindo tudo a cinzas (cf. v. 12). Mas a reacç¢o do justo, apoiado pelo Senhor, é veemente; é repetida três vezes: "No nome do Senhor esmagá-las-ei" e o verbo hebraico evidencia uma intervenção destruidora em relação ao mal (cf. vv. 10.11.12). De facto, na base encontra-se a direita poderosa de Deus, ou seja, a sua obra eficaz, e, indubitavelmente, nao a mão débil e incerta do homem. E é por isto que a alegria pela vitória sobre o mal se abre a uma profissão de fé muito sugestiva: "O Senhor é a minha fortaleza e o meu cantar, é a minha salvaçao" (v. 14). 4. Parece que a procissão chegou ao templo, às "portas da justiça" (v. 19), à porta santa de Sião. Entoa-se aqui um segundo cântico de agradecimento, que é aberto por um diálogo entre a assembleia e os sacerdotes para serem admitidos ao culto. "Abrime as portas da justiça, desejo entrar para dar graças ao Senhor", diz o solista em nome da assembleia em procissao. "Esta é a porta do Senhor; por ela entram os justos" (vv. 19-20), respondem outros, provavelmente os sacerdotes. Depois de terem entrado, podem dar voz ao hino de gratidão ao Senhor, que no templo se oferece como "pedra" estável e certa sobre a qual se edifica a casa da vida (cf. Mt 7, 24-25). Desce uma benção sacerdotal sobre os fiéis, que entraram no templo para exprimir a sua fé, elevar a sua oração e celebrar o culto. 5. O último cenário que se apresenta aos nossos olhos é constituído por um rito jubiloso de danças sagradas, acompanhadas por um festivo agitar de ramos: "Ordenai o cortejo com ramos de palmeiras, até aos ângulos do altar" (v. 27). A liturgia é alegria, encontro de festa, expressão de toda a existência que louva o Senhor. O rito dos ramos faz pensar na solenidade hebraica dos Tabernáculos, memória da peregrinação de Israel no deserto, solenidade na qual se realizava uma procissão com ramos de palmeiras, murta e salgueiro. Este mesmo rito evocado pelo Salmo é reproposto ao cristão com a entrada de Jesus em Jerusalém, celebrado na liturgia do Domingo de Ramos. A Cristo são elevados "Hossanas" como "filho de David" (cf. Mt 21, 9) pela multidão que, "veio à Festa... tomou ramos de palmeira e saiu ao seu encontro, clamando: "Hossana! Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel!"" (Jo 12, 12-13). Naquela celebração de festa que, contudo, anuncia o momento da paixão e morte de Jesus, realiza-se e compreende-se em sentido pleno também o símbolo da pedra angular, proposta na abertura, adquirindo um valor glorioso e pascal. O Salmo 117 encoraja os cristãos a reconhecer no acontecimento pascal de Jesus "o dia que o Senhor fez", em que "a pedra que os construtores rejeitaram, tornouse pedra angular". Por conseguinte, eles podem cantar com o Salmo cheios de gratidão: "O Senhor é a minha fortaleza e o meu cantar, é a minha salvação" (v. 14); "O Senhor actuou neste dia, cantemos e alegremo-nos n'Ele" (v. 24).
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Quarta-Feira 21 de Julho de 2004 Salmo 118: A promessa de cumprir os mandamentos de Deus 1. Depois da pausa por ocasião da minha permanência no Vale de Aosta, retomamos agora, nesta Audiência geral, o nosso itinerário ao longo dos Salmos propostos pela Liturgia das Vésperas. Hoje, encontramos a décima quarta das vinte e duas estrofes que compõem o Salmo 118, grandioso hino à Lei de Deus, expressão da sua vontade. O número das estrofes corresponde às letras do alfabeto hebraico e indica plenitude; cada uma delas está composta por oito versículos e por palavras que começam com a letra do alfabeto correspondente em sucessão. No nosso caso é a letra hebraica nun que abre as palavras iniciais dos versículos que agora escutamos. Esta estrofe é esclarecida com a imagem luminosa do seu primeiro versículo: "A tua palavra é farol para os meus passos e luz para os meus caminhos" (v. 105). O homem avança no percurso, muitas vezes obscuro da vida, mas improvisamente as trevas são rasgadas pelo esplendor da Palavra de Deus. Também o Salmo 18 aproxima a Lei de Deus ao Sol, quando afirma que "os mandamentos do Senhor são rectos, alegram o coração" (18, 9). Depois, no Livro dos Provérbios recorda-se que "o preceito é uma lâmpada, o ensinamento é uma luz" (6, 23). O próprio Cristo apresentará a sua pessoa como revelação definitiva precisamente com a mesma imagem: "Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida" (Jo 8, 12). 2. O Salmista continua depois a sua oração recordando os sofrimentos e os perigos da vida que deve levar e que precisa de ser iluminada e sustentada: Senhor, sinto-me angustiado; dá-me a vida segundo a tua promessa... A minha vida está continuamente em perigo, mas não me esqueço da tua lei" (Sl 118, 107.109). Toda a estrofe está permeada por um fio tenebroso: "Os pecadores armaramme ciladas" (v. 110), confessa ainda o orante, recorrendo a uma imagem de caça muito conhecida no Saltério. O fiel sabe que progride pelos caminhos do mundo no meio de perigos, preocupações, e perseguições; sabe que as provas armam sempre ciladas. O cristão, por seu seu Calvário (cf.lado, Lc 9,sabe 23).que todos os dias deve carregar a cruz ao longo da subida do 3. Contudo, o justo conserva intacta a sua fidelidade: "Jurei e vou cumprir: hei-de guardar os teus justos decretos... não me esqueço da tua lei... nunca me afastei dos teus preceitos" (Sl 118, 106.109.110). A paz da consciência é a força do crente; a sua constância na obediência aos mandamentos divinos é a fonte da serenidade.
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Então, a declaração final é coerente: "As tuas ordens são a minha herança para sempre, porque elas alegram o meu coração" (v. 111). Eis a realidade mais preciosa, a "herança", a "recompensa" (v. 112), que o Salmista conserva com solicitude vigilante e amor fervoroso: os ensinamentos e os mandamentos do Senhor. Ele deseja ser totalmente fiel à vontade do seu Deus. Por este caminho encontrará a paz da alma e conseguirá atravessar o enredo obscuro das provas, alcançando a alegria verdadeira. A este propósito, são iluminadoras as palavras de Santo Agostinho, que, iniciando o comentário próprio do Salmo 118, desenvolve o tema da alegria que brota do cumprimento da Lei do Senhor. "Este longuíssimo Salmo convida-nos desde o início à felicidade que, como sabemos, está presente na esperança de cada homem. De facto, poderá existir alguém (existiu ou existirá) que não deseje ser feliz? Mas neste estado de coisas, que necessidade há de convites para uma meta para a qual o espírito humano tende espontaneamente?... Não será talvez porque, mesmo se todos aspiram à felicidade, é contudo desconhecido a muitos o modo como alcançá-la? Sim, é precisamente este o ensinamento daquele que exclama: Felizes os íntegros nos seus caminhos, os que andam na lei do Senhor. Parece querer dizer: Sei o que desejas; sei que procuras a felicidade; pois bem, se queres ser feliz, mantem-te limpo de qualquer mancha. A primeira coisa que todos procuram, e poucos, ao contrário, se preocupam da outra: mas sem ela não se pode obter aquilo que é desejo comum. Onde é que devemos estar sem mancha, a não ser no caminho? Ele é unicamente a lei do Senhor. Por conseguinte, felizes os que são íntegros nos seus caminhos, os que andam na lei do Senhor! Exortação que não é supérflua, mas necessária para o nosso espírito" (Exposições sobre os Salmos, III, Roma, 1976, pág. 1113). Façamos nossa a conclusão do grande Bispo de Hipona, que recorda a actualidade permanente da felicidade prometida a quantos se esforçarem por cumprir fielmente a vontade de Deus.
PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Praça de São Pedro Quarta-feira, 9 de Novembro de 2011 Salmo 119 (118)
Prezados irmãos e irmãs Nas últimas catequeses reflectimos sobre alguns Salmos que são exemplos dos géneros típicos da oração: lamentação, confiança e louvor. Na catequese de hoje, gostaria de meditar sobre o Salmo 119 segundo a tradição judaica, e 118 segundo a tradição greco-latina: um Salmo muito particular, único do seu género. Antes de tudo, pelo seu comprimento: com efeito, é 107
composto por 176 versículos, divididos em 22 estrofes de oito versículos cada uma. Além disso, tem a peculiaridade de ser um «acróstico alfabético»: ou seja, é construído segundo o alfabeto hebraico, que é composto por 22 letras. Cada estrofe corresponde a uma letra daquele alfabeto, e com tal letra começa a primeira palavra dos oito versículos da estrofe. Trata-se de uma construção literária srcinal e muito difícil, em que o autor do Salmo teve de demonstrar toda a sua habilidade. Mas aquilo que para nós é mais importante é a temática central deste Salmo: com efeito, trata-se de um imponente e solene canto sobre aTorah do Senhor, ou seja sobre a sua Lei, um termo que na sua acepção mais ampla e completa, deve ser compreendido como ensinamento, instrução, directriz de vida; a Torah é revelação, é Palavra de Deus que interpela o homem e suscita a sua resposta de obediência confiante e de amor generoso. E este salmo está inteiramente impregnado de amor pela Palavra de Deus, o qual celebra a sua beleza, a sua força salvífica, a sua capacidade de doar alegria e vida. Porque a Lei divina não é um jugo pesado de escravidão, mas um dom de graça que nos torna livres e nos leva para a felicidade. «Delicio-me com as vossas leis, jamais esquecerei as vossas palavras», afirma o Salmista (v. 16); e depois: «Dirigi-me pela senda dos vossos preceitos, porque neles me deleito» (v. 35); e ainda: «Quanto amo a vossa lei! Nela medito todos os dias» (v. 97). A Lei do Senhor, a sua Palavra, é o centro da vida do orante; aí encontra consolação, dela faz objecto de meditação e conserva-a no seu coração: «Guardo no meu coração as vossas promessas, para não pecar contra Vós» (v. 11): este é o segredo da felicidade do Salmista; e depois ainda: «Os soberbos forjam mentiras contra mim, mas com toda a alma quero guardar os vossos mandamentos» (v. 69). A fidelidade do Salmista nasce da escuta da Palavra, a conservar no íntimo, meditando-a e amando-a, precisamente como Maria, que «conservava, poderando-as no seu coração», as palavras que lhe tinham sido dirigidas e os acontecimentos maravilhosos em que Deus se revelava, pedindo o seu consentimento de fé (cf. Lc2, 19.51). E se o nosso Salmo começa nos primeiros versículos, proclamando «feliz» «os que conduzem os seus passos na Lei do Senhor» (v. 1b) e «quantos observam os seus preceitos» (v. 2a), é ainda a Virgem Maria que completa a figura perfeita do crente, descrito pelo Salmista. Com efeito, Ela é a verdadeira «bem-aventurada», assim proclamada por Isabel, porque «acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» ( Lc 1, 45), e é dela e da sua fé que o próprio Jesus dá testemunho quando, à mulher que tinha bradado: «Felizes as entranhas que te trouxeram», responde: «Felizes aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática!» (Lc 11, 27-28). Sem dúvida, Maria é feliz porque o seu ventre trouxe o Salvador, mas principalmente porque acolheu o anúncio de Deus e foi guardiã atenta e amorosa da sua Palavra.
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Por conseguinte, o Salmo 119 desenvolve-se inteiramente ao redor desta Palavra de vida e de bem-aventurança. Embora o seu tema central sejam a «Palavra» e a «Lei» do Senhor, ao lado destes termos recorrem em quase todos os versículos sinónimos como «preceitos», «decretos», «ordens», «ensinamentos», «promessa», «juízos»; e além disso muitos verbos a eles correlativos, como observar, guardar, compreender, conhecer, amar, meditar e viver. Todo o alfabeto se desenvolve através das 22 estrofes deste Salmo, e também todo o vocabulário da relação confiante do crente com Deus; aqui encontramos o louvor, a acção de graças, a confiança, mas inclusive a súplica e a lamentação, porém sempre imbuídos da certeza da graça divina e do poder da Palavra de Deus. Também os versículos mais marcados pela dor e pelo sentido de obscuridade permanecem abertos à esperança e são permeados de fé. «A minha alma está colada ao pó; dai-me a vida, segundo a vossa palavra» (v. 25), reza confiante o Salmista; «Sou como odre exposto ao fumo, mas não esqueço os vossos preceitos» (v. 83), é o seu clamor de crente. Mesmo sendo posta à prova, a sua fidelidade encontra força na Palavra do Senhor: «Assim, darei resposta àquele que me insulta, porque confio na vossa palavra» (v. 42), diz ele com firmeza; e inclusive diante da perspectiva angustiante da morte, os decretos do Senhor constituem o seu ponto de referência e a esperança de vitória: «Por pouco não me eliminaram desta terra, mas eu nunca renego os vossos preceitos» (v. 87). A lei divina, objecto do amor apaixonado do Salmista e de cada crente, é fonte de vida. O desejo de a compreender, de a observar e de orientar para ela todo o seu ser é a característica do homem justo e fiel ao Senhor, que a «medita dia e noite», como recita o Salmo 1 (v. 2); trata-se de uma lei, a de Deus, que devemos conservar «no coração», como reza o famoso texto do Shema no Deuteronómio: Escuta, ó Israel... Estes mandamentos que hoje te imponho serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás aos teus filhos, e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-te, ou ao levantar-te (6, 4.6-7). Centro da existência, a Lei de Deus exige a escuta do coração, uma escuta feita de obediência não servil, mas filial, confiante e consciente. A escuta da Palavra é encontro pessoal com o Senhor da vida, um encontro que deve traduzir-se em escolhas concretas e tornar-se caminho e seguimento. Quando se lhe pergunta o que é necessário fazer para alcançar a vida eterna, Jesus aponta o caminho da observância da Lei, mas indicando o modo de o fazer para lhe dar cumprimento: «Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me!» (Mc 10, 21 e par.). O cumprimento da Lei consiste em seguir Jesus, percorrer o caminho de Jesus, em companhia de Jesus.
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Portanto, o Salmo 119 leva-nos ao encontro com o Senhor e orientanos para o Evangelho. Ele contém um versículo sobre o qual agora gostaria de meditar: é o v. 57: «Eu declarei, Senhor, ser meu quinhão guardar os vossos mandamentos». Também noutros Salmos o orante afirma que o Senhor é o seu «quinhão», a sua herança: «Senhor, Vós sois a parte da minha herança e da minha taça», recita o Salmo 16 (v. 5a), «O Senhor é para sempre a rocha do meu coração e a minha herança» é a proclamação do fiel no Salmo 73 (v. 26 b), e ainda, no Salmo 142, o Salmista clama ao Senhor: «Vós sois o meu refúgio, Vós sois o meu quinhão na terra dos vivos» (v. 6b). Este termo, «quinhão», evoca o acontecimento da repartição da terra prometida entre as tribos de Israel, quando não foi atribuída aos levitas porção alguma de território, porque o seu «quinhão» era o próprio Senhor. Dois textos do Pentateuco são explícitos a este propósito, utilizando o termo em questão: «O Senhor disse a Aarão: “Nada possuirás na terra deles, e não
terás parte alguma entre eles. Eu sou a tuaparte e a tua herança no meio dos israelitas”», assim declara o Livro dos Números (18, 20), e o Deuteronómio
reitera: «Por isso, Levi não teve parte nem herança entre os seus irmãos: Deus é a sua herança, como lhe prometeu o Senhor, teu Deus» Dt ( 10, 9; cf. 18, 2; Gn 13, 33; Ez 44, 28). Os sacerdotes, pertencentes à tribo de Levi, não podem ser proprietários de terras no país que Deus oferecia em herança ao seu povo, cumprindo a promessa feita a Abraão (cf. Gn 12, 1-7). A posse da terra, elemento fundamental de estabilidade e de possibilidade de sobrevivência, era um sinal de bênção, porque implicava a possibilidade de construir uma casa, de aí crescer os próprios filhos, de cultivar os campos e de viver dos frutos da terra. Pois bem os levitas, mediadores do sagrado e da bênção divina, não podem ter, como os outros israelitas, este sinal exterior da bênção e esta fonte de subsistência. Inteiramente consagrados ao Senhor, devem viver apenas dele, abandonados ao seu amor providencial e à generosidade dos seus irmãos, sem dispor de uma herança porque Deus é o seu quinhão de herança, Deus é a sua terra, que os faz viver em plenitude. E agora, o orante do Salmo 119 aplica a si mesmo esta realidade: «O Senhor é o meu quinhão». O seu amor a Deus e à sua Palavra leva-o à escolha radical de possuir o Senhor como único bem e também de conservar as suas palavras com um dom inestimável, mais precioso que toda a herança e toda a posse terrena. Com efeito, o nosso versículo tem a possibilidade de uma dupla tradução e poderia ser apresentado também do seguinte modo: «Eu declarei, Senhor, ser meu quinhão guardar as vossas palavras». As duas traduções não se contradizem mas, ao contrário, completam-se reciprocamente: o Salmista afirma que a sua parte é o Senhor, mas que também conservar as palavras divinas é a sua herança, como depois dirá no v. 111: «A minha herança serão sempre as vossas ordens, elas são a alegria da minha alma». Esta é a felicidade SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
do Salmista: a ele, assim como aos levitas, foi confiada como porção de herança a Palavra de Deus. Caríssimos irmãos e irmãs, estes versículos são de grande importância também hoje, para todos nós. Em primeiro lugar para os sacerdotes, chamados a viver unicamente do Senhor e da sua Palavra, sem outras seguranças, possuindo-O como único bem e única fonte de vida verdadeira. É nesta luz que se compreende a livre escolha do celibato pelo Reino dos céus, a ser redescoberto na sua beleza e força. Mas estes versículos são importantes também para todos os fiéis, povo de Deus pertencente unicamente a Ele, «reino de sacerdotes» pelo Senhor (cf. 1 Pt 2, 9; Ap 1, 6; 5, 10), chamados à radicalidade do Evangelho, testemunhas da vida trazida por Cristo, novo e definitivo «Sumo Sacerdote», que se ofereceu em sacrifício pela salvação do mundo (cf. Hb 2, 17; 4, 14-16; 5, 5-10; 9, 11 ss.). O Senhor e a sua Palavra: eis a nossa «terra», na qual viver na comunhão e alegria. Portanto, deixemos que o Senhor grave no nosso coração este amor pela sua Palavra, e que nos conceda de O ter, bem como a sua santa vontade, sempre no centro da nossa existência. Peçamos que a nossa prece e toda a nossa vida sejam iluminadas pela Palavra de Deus, lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho, como diz o Salmo 119 (cf. v. 105), de tal modo que o nosso caminhar seja seguro, na terra dos homens. E Maria, que acolheu e gerou a Palavra, seja a nossa guia e o nosso conforto, estrela polar que indica o caminho da felicidade. Então, também nós poderemos alegrar-nos na nossa oração, como o orante do Salmo 16, pelos dons inesperados do Senhor e a herança imerecida que nos coube como sorte:
«Senhor, Vós sois a parte da minha herança e da minha taça... As medidas caíram-me em lugares aprazíveis, e agrada-me a minha herança» (Sl 16, 5.6). JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 14 de novembro de 2001
Salmo 118: Promessa de observar a lei de Deus
Queridos irmãos e irmãs 1. O que a liturgia de Laudes nos propõe no sábado da primeira semana é uma única estrofe tirada do Salmo 118, uma monumental oração de vinte e duas estrofes, tantas quantas são as letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe se caracteriza por uma 111
letra do alfabeto, com que começa cada um dos versículos; a ordem das estrofes segue a do alfabeto. A que proclamámos agora é a estrofe número dezanove, correspondente à letra qof. Esta premissa, um pouco superficial, permite-nos compreender melhor o significado deste cântico em honra da Lei divina. Ele é semelhante a uma música oriental, cujas modulações sonoras parecem nunca mais ter fim e elevam-se ao céu numa repetição que envolve a mente e os sentidos, o espírito e o corpo daquele que reza. 2. Numa sequência que se desenvolve do'alef ao tau, isto é, da primeira à última letra do alfabeto do A ao Z, diremos nós com o alfabeto italiano aquele que reza expande-se no louvor da Lei de Deus, que adopta como lâmpada para os seus passos no caminho, tantas vezes obscuro, da vida (cf. v 105). Diz-se que o grande filósofo e cientista Blaise Pascal recitava diariamente este Salmo, que é o maior de todos, enquanto o teólogo Dietrich Bonhoeffer, assassinado pelos nazistas em 1945, o transformava numa oração viva e actual, escrevendo: "Indubitavelmente, o Salmo 118 é pesado pela sua extensão e monotonia, mas nós devemos avançar palavra por palavra, frase por frase, muito lenta e pacientemente. Descobriremos então que as aparentes repetições são, na relidade, aspectos novos de uma só e mesma realidade: o amor pela palavra de Deus. Como este amor não pode ter fim, também não o terão as palavras que o confessam. Elas podem acompanhar-nos ao longo de toda a nossa vida, e na sua simplicidade tornam-se oração da criança, do adulto e do idoso" (Rezar os Salmos com Cristo, Brescia, 1978³, p. 48). 3. O facto de repetir, além de ajudar a memória no canto coral, é ainda um modo de estimular a adesão interior e o abandono confiante nos braços de Deus, invocado e amado. Entre as repetições do Salmo 118, queremos assinalar uma muito significativa. Cada um dos 176 versículos de que é composto este louvor à Torah, isto é, à Lei e à Palavra divina, contém, pelo menos, uma das oito palavras com que se define a própria Torah: lei, palavra, testemunho, juízo, prescrição, decreto, preceito, ordem. Celebra-se assim a Revelação divina, que é manifestação do mistério de Deus, mas também guia moral para a existência do fiel. Deus e o homem estão, deste modo, unidos por um diálogo composto de palavras e de obras, de ensino e escuta, de verdade e de vida. 4. Voltemos, agora, à nossa estrofe (cf. vv. 145-152), que se adapta bem à atmosfera das Laudes matutinas. De facto, a cena, que é posta no centro deste conjunto de oito versículos, é nocturna, mas aberta ao novo dia. Depois de uma longa noite de espera e de vigília de oração no templo, quando a aurora aparece no horizonte e se começa a liturgia, o fiel está certo dedivina. que o Confortado Senhor ouvirá que passou perante a noite aa rezar, esperar e a meditar a Palavra poraquele esta consciência, jornada que se abre diante dele, não temerá mais os perigos. Sabe que não será arrastado pelos seus perseguidores que, traiçoeiramente, o atacam, (cf. v. 150), porque o Senhor está a seu lado. 5. A estrofe exprime uma intensa oração: "Invoco-Vos com todo o coração: ouvi-me, Senhor... Pela manhã apresso-me a invocar-Vos; nas Vossas palavras eu espero..." (vv 145.147). No Livro das Lamentações lê-se este convite: "Levanta-te, grita SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
durante a noite ao começo das vigílias; derrama o teu coração como água ante a face do Senhor; ergue para Ele as mãos" (Lam 2, 19). Santo Ambrósio repetia: " Não sabes, ó homem, que em cada dia deves oferecer a Deus as primícias do teu coração e da tua voz? Apressa-te, ao alvorecer, para levar à igreja as primícias da tua piedade" ( Exp. in ps. CXVIII: PL 15, 1476A). Ao mesmo tempo, a nossa estrofe é ainda, a exaltação de uma certeza: nós não estamos sós, porque Deus escuta e intervém. Di-lo aquele que reza: "Vós, Senhor, estais perto" (v. 151). Também o dizem outros Salmos: "Aproximai-Vos de mim e salvai-me, respondei aos meus inimigos, resgatando-me" ( Sl. 68, 19); "O Senhor está perto dos aflitos do coração e salva os de espírito torturado" (Ps 33, 19). BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 4 de Maio de 2005 Salmo 120: O guarda de Israel
Salmo 120 das Vésperas da sexta-feira da 2ª semana Caríssimos Irmãos e Irmãs! 1. Como já anunciei na quarta-feira passada, as decidi retomarusando nas catequeses comentário aos Salmos e Cânticos que compõem Vésperas, os textoso predispostos pelo meu querido predecessor, o Papa João Paulo II. Iniciamos hoje com o Salmo 120. Este Salmo faz parte da colecção dos "cânticos das subidas", ou seja da peregrinação rumo ao encontro com o Senhor no templo de Sião. É um salmo de confiança porque nele ressoa seis vezes o verbo hebraico shamar, "guardar, proteger". Deus, cujo nome é invocado repetidamente, elege como o "guarda" sempre acordado, atento e solícito, a "sentinela" que vigia sobre o seu povo para o tutelar de qualquer risco e perigo. O cântico abre-se com um olhar do orante dirigido para o alto, "para os montes", isto é, para as colinas sobre as quais se eleva Jerusalém: de lá vem a ajuda, porque sobre eles habita o Senhor no seu templo (cf. vv. 1-2). Contudo os "montes" podem evocar também os lugares onde surgem os santuários idolátricos, as chamadas "alturas", muitas vezes condenadas pelo Antigo Testamento (cf. 1 Rs 3, 2; 2 Rs 18, 4). Neste caso caem haveria um os contraste: o peregrino progride em direcção Sião,ele. os seus olhos sobre templos enquanto pagãos, que constituem uma grande tentaçãoa para Mas a sua fé é inabalável e a sua certeza é uma só: "O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra" (Sl 120, 2). Também na peregrinação da nossa vida existem coisas semelhantes. Vemos alturas que se abrem e se apresentam como uma promessa de vida: a riqueza, o poder, o prestígio, a vida confortável. Alturas que são tentações, porque se apresentam realmente como a promessa da vida. Mas nós, na nossa fé vemos que não é verdade e que estas alturas não são a vida. A verdadeira vida, a verdadeira ajuda vem do 113
Senhor. E o nosso olhar dirige-se portanto para a altura verdadeira, para o verdadeiro monte: Cristo". 2. Esta confiança é ilustrada no Salmo através da imagem do guarda e da sentinela, que vigiam e protegem. É feita alusão também ao pé que não vacila (cf. v. 3) no caminho da vida e talvez ao pastor que na pausa nocturna vigia sobre o seu rebanho sem adormecer nem dormitar (cf. v. 4). O pastor divino não conhece repouso na obra de tutela do seu povo, de todos nós. Depois, surge no Salmo outro símbolo, o da "sombra", que supõe a retomada da viagem durante o dia ensolarado (cf. v. 5). O pensamento corre para a histórica marcha no deserto do Sinai, onde o Senhor caminha diante de Israel "durante o dia, numa coluna de nuvem para os conduzir na estrada"(Êx 13, 21). No Saltério reza-se assim com frequência: "Protege-me à sombra das tuas asas..." (Sl 16, 8; cf. Sl 90, 1). Há aqui também um aspecto realístico da nossa vida. Com frequência a nossa vida move-se sob um sol desumano. O Senhor é a sombra que nos protege, que nos ajuda. 3. Depois da vigília e da sombra, eis o terceiro símbolo, o do Senhor que "está à direita" do seu fiel (cf. Sl 120, 5). Esta é a posição do defensor quer militar quer processual: é a certeza de não ser abandonados no tempo das provações, do assalto do mal, da perseguição. A este ponto o Salmista volta à ideia da viagem durante um dia quente no qual Deus nos protege do sol escaldante. Mas depois do dia vem a noite. Na antiguidade considerava-se que também os raios lunares fossem nocivos, causa de febre, ou de cegueira, ou até de loucura; por isso, o Senhor também nos protege durante a noite (cf. v. 6), nas noites da nossa vida. O Salmo chega agora ao final com uma declaração sintética de confiança: Deus guardar-nos-á com amor em cada momento, tutelando a nossa vida de qualquer mal (cf. v. 7). Todas as nossas actividades, resumidas nos dois verbos extremos de "sair" e "entrar", está sempre sob o olhar vigilante do Senhor. Ele protege cada um dos nossos actos e todo o nosso tempo, "agora e para sempre" (v. 8). 4. Desejamos agora, no final, comentar esta última declaração de confiança com um testemunho espiritual da antiga tradição cristã. De facto, no Epistolário de Barsanufio de Gaza (falecido a meados do século VI), um asceta de grande fama, interpelado por monges, eclesiásticos e leigos devido à sabedoria do seu discernimento, encontramos citado várias vezes o versículo do Salmo: "O Senhor protege-te de todo o mal e vela pela tua vida". Com este Salmo, com este versículo Barsanufio pretendia confortar quantos lhe manifestavam as próprias fadigas, as provas da vida, os perigos e as desgraças. Certa vez Barsanufio, tendo-lhe sido pedido por um monge que rezasse por ele e pelos seus companheiros, respondeu do seguinte modo, incluindo nos seus votos a citação deste versículo: "Diletos filhos meus, abraço-vos no Senhor, suplicando-o que vos proteja de qualquer mal e que vos conceda, como a Job a resignação, como a José a graça, como a Moisés a humildade, como a Josué, filho de Nun, o valor nos combates, como aos Juízes o perdão dos pensamentos, como aos reis David e Salomão a subjugação dos inimigos, e como aos Israelitas, a fertilidade da terra...
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Conceda-vos a remissão dos vossos pecados com a cura do corpo como ao paralítico. Vos salve das ondas como a Pedro e vos poupe às tribulações como a Paulo e aos outros Apóstolos.
Proteja-vos da todo o mal, como seus verdadeiros filhos e vos conceda o que o vosso coração pede, para benefício da alma e do corpo no seu nome. Amém" (BARSANUFIO e JOÃO de GAZA, Epistulário, 194: Colecção de textos Patrísticos, XCIII, Roma 1991, págs. 235.236). PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 12 de Outubro de 2005 Salmo 121: Saudação à Cidade santa de Jerusalém 1. É um dos mais bonitos e apaixonantes Cânticos graduais o que agora ouvimos e apreciamos em oração. Trata-se do Salmo 121, uma celebração viva e partícipe em Jerusalém, a cidade santa para a qual se dirigem os peregrinos. De facto, logo na abertura, fundem-se juntamente os dois momentos vividos pelo fiel: o do dia em que aceitou o convite a ir "para a casa do Senhor" (v. 1) e o da chegada jubilosa às "portas" de Jerusalém (cf. v. 2); agora os pés pisam finalmente aquela terra santa e amada. Precisamente, então, os lábios se abrem a um cântico de festa em honra de Sião, considerada no seu profundo significado espiritual. 2. "Cidade bem construída" (v. 3), símbolo de segurança e de estabilidade, Jerusalém é o coração da unidade das doze tribos de Israel, que para ela convergem como centro da sua fé e do seu culto. Com efeito, ali, elas "sobem para louvar o nome do Senhor" (cf. v. 4), no lugar que a "Lei de Israel" (Dt 12, 13-14; 16, 16) estabeleceu como único santuário legítimo e perfeito. Existe em Jerusalém outra realidade relevante, também ela sinal da presença de Deus em Israel: são "os tribunais da casa de David" (v. 5), isto é, governa a dinastia davídica, expressão da acção divina na história, que teria chegado com o Messias (2 Sm 7, 8-16). 3. Os "tribunais da casa de David" são ao mesmo tempo chamados "tribunais de justiça" (cf. Sl 121, 5), porque o rei era também o juiz supremo. Assim Jerusalém, capital política, também era a sede judiciária suprema, onde se resolviam em última instância as àscontrovérsias: destajustos forma, saindo de Sião, os peregrinos hebreus regressavam suas cidades mais e pacificados. Assim, o Salmo traçou um retrato ideal da cidade santa na sua função religiosa e social, mostrando que a religião bíblica não é abstracta nem intimidatória, mas é fermento de justiça e de solidariedade. À união com Deus segue necessariamente a dos irmãos entre si.
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4. Chegamos agora à invocação final (cf. vv. 6-9). Ela está toda ritmada sobre a palavra hebraica shalom, "paz", tradicionalmente considerada na base do próprio nome da cidade santa Jerushalaim, interpretada como"cidadedapaz". Como sabemos, shalom faz alusão à paz messiânica, que reúne em si alegria, prosperidade, bem, abundância. Aliás, na saudação final que o peregrino dirige ao templo, à "casa do Senhor nosso Deus", acrescenta à paz o "bem": "pedirei para ti o bem" (v. 9). Tem-se assim de forma antecipada a saudação franciscana: "Paz e bem!". Todos temos um pouco de alma franciscana. É um voto de bênção para os fiéis que amam a cidade santa, para a sua realidade física de muros e casas nos quais pulsa a vida de um povo, para todos os irmãos e amigos. Desta forma Jerusalém tornar-se-á um lar de harmonia e de paz. 5. Concluindo a nossa meditação sobre o Salmo 121 com uma sugestão de reflexão feita pelos Padres da Igreja, para os quais a antiga Jerusalém era sinal de outra Jerusalém, também ela "construída como cidade sólida e compacta". Esta cidade recorda São Gregório Magno nas Homilias sobre Ezequiel "já possui uma grande construção nos costumes dos santos. Num edifício, uma pedra serve de base para outra, porque se coloca uma pedra sobre outra, e quem ampara outro e, por sua vez, amparado por alguém. Assim, precisamente assim, na santa Igreja, cada um ampara o outro e é amparado. Os mais próximos amparam-se reciprocamente, e assim por meio deles eleva-se o edifício da caridade. Eis por que Paulo admoesta, dizendo: "Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis a Lei de Cristo" (Gl 6, 2). Realçando a força desta lei, diz: "é no amor que está o pleno cumprimento da lei" (Rm 13, 10). Se eu, de facto, não me esforço por vos aceitar tal como sois, e se vós não vos comprometerdes a aceitar-me tal como sou, não pode erguer-se o edifício da caridade entre nós, mesmo estando unidos por amor recíproco e paciente". E, para completar a imagem, não esqueçamos o que "há um alicerce que suporta todo o peso da construção, é o nosso Redentor, o qual sozinho consente no seu conjunto os costumes de todos nós. Dele o Apóstolo diz: "ninguém pode pôr um alicerce diferente do que já foi posto: Jesus Cristo" (1 Cor 3, 11). O fundamento suporta as pedras e não é suportado pelas pedras; isto é, o nosso Redentor carrega o peso de todas as nossas culpas, mas n'Ele não houve culpa alguma a ser tolerada" (2, 1, 5: Obras de Gregório Magno, III/2, Roma, pp. 27.29). E assim o grande Papa São Gregório diz-nos o que significa o Salmo concretamente para a prática da nossa vida, diz-nos que devemos ser na Igreja de hoje uma verdadeira Jerusalém, isto é, um lugar de paz, "suportando-nos uns aos outros" tal como somos; "suportando-nos juntos" na alegre certeza de que o Senhor nos "suporta a todos". E assim cresce a Igreja como uma verdadeira Jerusalém, um lugar de paz. Mas queremos pela cidade de Jerusalém que seja cada vez mais um lugar de encontrotambém entre asrezar religiões e os povos; para que para seja realmente um lugar de paz.
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Quarta-feira, 15 de Junho de 2005 Salmo 122: A confiança do povo está no Senhor
Queridos irmãos e irmãs! Infelizmente sofrestes muito debaixo da chuva. Agora esperamos que o tempo melhore. 1. De modo muito incisivo Jesus, no Evangelho, afirma que os olhos são um símbolo expressivo do eu profundo, são um espelho da alma (cf. Mt 6, 22-23). Pois bem, o Salmo 122, agora proclamado, concentra-se totalmente num cruzar de olhares: o fiel eleva os seus olhos ao Senhor e aguarda uma reacção divina, para nela ver um gesto de amor, um olhar de benevolência. Também nós elevamos um pouco os olhos e aguardamos um gesto de benevolência do Senhor. Não raramente, no Saltério, se fala do olhar do Altíssimo que "olhou para os seres humanos a ver se havia alguém sensato, alguém que ainda procura Deus" (Sl 13, 2). Como ouvimos, o Salmista recorre a uma imagem, à do servo e da escrava que estão voltados para o seu senhor à espera de uma decisão libertadora. Mesmo se o cenário se refere ao mundo antigo e às suas estruturas sociais, a ideia é clara e significativa: aquela imagem tirada do mundo do Oriente antigo pretende exaltar a adesão do pobre, a esperança do oprimido e a disponibilidade do justo em relação ao Senhor. 2. O orante está na expectativa de que as mãos divinas se movam, porque elas actuam segundo a justiça, destruindo o mal. Por isso muitas vezes no Saltério o orante eleva o seu olhar repleto de esperança no Senhor: "Os meus olhos estão sempre postos no Senhor, porque ele tira os meus pés da armadilha" (Sl 24, 15), enquanto se cansam "os meus olhos à espera do meu Deus"(Sl 68, 4). O Salmo 122 é um súplica na qual a voz de um fiel se une à de toda a comunidade: de facto, o Salmo passa da primeira pessoa do singular "elevo os meus olhos" ao plural "os nossos olhos" e "piedade de nós" (cf. vv. 1-3). É expressa a esperança de que as mãos do Senhor se abram para efundir dons de justiça e de liberdade. espera quesacerdotal o olhar dedo Deus se revele em toda "O a sua ternura e bondade, Livro dos Números: como se lêOnajusto antiga bênção Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz" (Nm 6, 25-26). 3. Revela-se na segunda parte do Salmo quanto é importante o olhar amoroso de Deus, que se caracteriza pela invocação: "Tem piedade de nós, Senhor, tem piedade de nós" (Sl 122, 3). Ela coloca-se em continuidade com o final da primeira parte, onde é 117
recordada a expectativa confiante "no Senhor, nosso Deus, até que tenha piedade de nós" (v. 2). Os fiéis precisam de uma intervenção de Deus porque se encontram numa situação dolorosa de desprezo e de escárnio da parte de pessoas prepotentes. A imagem que agora o Salmista usa é a da saciedade: "estamos saturados de desprezo. A nossa alma está saturada da troça dos arrogantes e do desprezo dos orgulhosos" (vv. 3-4). À tradicional saciedade bíblica de alimentos e de anos, considerada um sinal da bênção divina, opõe-se agora uma intolerável saciedade constituída de uma carga exagerada de humilhações. Sabemos como hoje tantas Nações, tantos indivíduos são realmente escarnecidos, desmasiado saturados do desprezo dos arrogantes, da troça dos orgulhosos. Rezemos por eles e ajudemos estes nossos irmãos humilhados. Por isso os justos confiaram a sua e a nossa causa ao Senhor e ele não permanece indiferente àqueles olhos implorantes, não ignora a sua invocação, nem desilude a sua esperança. 4. Por fim deixemos espaço à voz de Santo Ambrósio, o grande Arcebispo de Milão, o qual, no espírito do Salmista ritma poeticamente a obra de Deus que nos alcança em Jesus Salvador: "Cristo é tudo para nós. Se quiseres curar uma ferida, ele é o médico; se ardes de febre, ele é a fonte; se és oprimido pela iniquidade, ele é a justiça; se precisas de ajuda, ele é a força; se temes a morte, ele é a vida; se desejas o céu, ele é o caminho; se evitas as trevas, ele é a luz; se procuras alimento, ele é o pão" (A virgindade, 99: SAEMO, XIV/2, Milão-Roma 1989, p. 81) PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 22 de Junho de 2005 Salmo 123: O nosso auxílio está no nome do Senhor 1. Eis diante de nós o Salmo 123, um cântico de acção de graças entoado por toda a comunidade orante que eleva a Deus o louvor pelo dom da libertação. O Salmista proclama na abertura este convite: "que o diga Israel!" (v. 1), estimulando assim todo o povo a elevar um obrigado vivo e sincero ao Deus salvador. Se o Senhor não se tivesse declarado da parte das vítimas, elas, com as suas forças limitadas teriam sido impotentes para se libertarem e os adversários, semelhantes a monstros, tê-las-iam dilacerado e esmagado. Mesmo tendo pensado num determinado acontecimento histórico, como o fim do exílio da Babilónia, é mais provável que o Salmo queira ser um hino para agradecer ao Senhor os perigos evitados e para implorar d'Ele a libertação de qualquer mal. Neste sentido, ele permanece um Salmo sempre actual. 2. Depois da menção de certos "homens" que se levantavam contra os fiéis e eram capazes de os "engolir vivos" (cf. vv. 2-3), o cântico tem dois momentos. Na SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
primeira parte dominam as águas abundantes, símbolo na Bíblia da confusão devastadora, do mal e da morte: "As águas ter-nos-iam submergido, a torrente teria passado sobre nós. Então, sim, teriam passado sobre nós as águas turbulentas" (vv. 4-5). O orante sente agora a sensação de estar numa praia, milagrosamente salvo da fúria impetuosa do mar. A vida do homem está circundada pelos atentados dos malvados que não só atentam contra a sua existência mas querem destruir também todos os valores humanos. Vemos como estes pequenos perigos existem também agora. Mas, disso podemos ter a certeza também hoje, o Senhor intervém para tutelar o justo e salva-o, como se canta no Salmo 17: "Do alto, Deus interveio e recolheu-me; tirou-me das águas caudalosas. Livrou-me de inimigos poderosos, de adversários mais fortes do que eu... o Senhor foi o meu amparo. Retirou-me para um lugar seguro; libertou-me, porque me quer bem" (vv. 17.20). Verdadeiramente o Senhor nos quer bem: esta é a nossa certeza e o motivo da nossa grande confiança. 3. Na segunda parte do nosso cântico de agradecimento passa-se da imagem mariana para um cenário de caça, típica em muitos Salmos de súplica (cf. Sl 123, 6-8). De facto, eis a evocação de uma fera que aperta entre os seus dentes uma presa, ou de uma rede de caçadores que captura um pássaro. Mas a bênção expressa pelo Salmo faznos compreender que o destino dos fiéis, que era um destino de morte, foi radicalmente mudado por uma intervenção salvífica: "Bendito seja o Senhor, que não nos entregou como presa nos seus dentes! A nossa vida escapou como um pássaro do laço dos caçadores; rompeu-se o laço e nós libertámo-nos" (vv. 6-7). Neste ponto, a oração torna-se um respiro de alívio que se eleva do fundo da alma: também quando caem todas as esperanças humanas, pode surgir o poder divino que liberta. Por conseguinte, o Salmo conclui com uma profissão de fé, que há séculos entrou na liturgia cristã como premissa ideal de qualquer oração nossa: "Adiutorium nostrum in nomine Domini, qui fecit caelum et terram O nosso auxílio está no nome do Senhor; Ele fez o céu e a terra" (v. 8). Em particular o Omnipotente declara-se da parte das vítimas e dos perseguidos "que a Ele clamam dia e noite" e "lhes fará justiça prontamente" (cf. Lc 18, 7-8). 4. Santo Agostinho faz deste Salmo um comentário pormenorizado. Num primeiro tempo, observa que este Salmo está adaptado ao cântico dos "membros de Cristo que obtiveram a felicidade". Depois, em particular, "cantaram-no os santos mártires, os quais, tendo saído deste mundo, estão com Cristo na alegria, prontos para retomar aqueles mesmos corpos incorruptíveis que antes eram corruptíveis. Em vida sofreram tormentos no corpo, mas na eternidade estes tormentos transformaram-se em ornamentos de justiça". E Santo Agostinho fala dos mártires de todos os séculos, também do nosso século. Mas, num segundo tempo, o Bispo de Hipona diz-nos que também nós, não só os beatos no céu, podemos cantar este Salmo na esperança. Ele declara: "Também nós estamos animados por uma esperança certa e cantaremos na exultação. De facto, sãonos familiares os cantores deste Salmo... Portanto, cantemos todos em unidade de coração: tanto os santos que já possuem a coroa como nós, que com o afecto nos unimos na esperança à sua coroa. Juntos desejamos aquela vida que temos na terra mas que nunca poderemos ter se antes não a desejámos". 119
Santo Agostinho volta agora à primeira perspectiva e explica: "Os santos pensam nos sofrimentos que encontraram, e olham agora, do lugar de bem-aventurança e de tranquilidade onde se encontram, para o caminho percorrido a fim de o alcançar; e, dado que teria sido difícil obter a libertação se não tivesse intervido a mão do Libertador, para os socorrer, cheios de alegria exclamam: "Se o Senhor não tivesse estado connosco". Inicia assim o seu cântico. Nem sequer disseram do que salvaram, tão grande é a sua exultação" (Exposição sobre o Salmo 123, 3: Nova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma 1977, p. 65).
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Quarta-feira, 3 de Agosto de 2005 Salmo 124: O Senhor protege o seu povo
Irmãos e irmãs 1. Neste nosso encontro, que tem lugar depois das minhas férias passadas no Vale de Aosta, retomamos o itinerário que estamos a percorrer no interior da Liturgia das Vésperas. Agora, entra em cena o Salmo 124, que faz parte daquela intensa e sugestiva colectânea, chamada "Cânticos das ascensões", livrinho de orações ideal para a peregrinação a Sião, em vista do encontro com o Senhor no templo (cf.Sl 119-133). Aquele sobre o qual agora nós meditaremos brevemente é um texto sapiencial, que suscita a confiança no Senhor e contém uma breve oração (cf. Sl 124, 4). A primeira frase proclama a estabilidade dos "que confiam no Senhor", comparando-a com a estabilidade "rochosa" e segura do "monte Sião" que, evidentemente, é devida à presença de Deus que, como afirma outro Salmo, é "rocha, fortaleza, refúgio, abrigo, escudo, baluarte e poderosa salvação" (cf. Sl17, 3). Mesmo quando o fiel se sente isolado e rodeado de perigos e de hostilidades, a sua fé deve ser tranquila, porque o Senhor está sempre connosco. A sua força circunda-nos e protege-nos. Também o profeta Isaías confirma que ouviu da boca de Deus estas palavras, destinadas aos fiéis: "Vou colocar em Sião uma pedra que vos ponha à prova. Será uma pedra preciosa, angular, bem firme. Aquele que nela confiar, não tropeçará" (28, 16). 2. Contudo, continua o Salmista, a confiança que é a atmosfera da fé do fiel dispõe de um ulterior sustentáculo: o Senhor como que acampou em defesa do seu povo, precisamente como os montes rodeiam Jerusalém, tornando-a uma cidade fortificada por bastiões naturais (cf. Sl124, 2). Numa
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profecia de Zacarias, Deus diz de Jerusalém: "Mas Eu serei para ela... como um muro de fogo à sua volta e serei no meio dela a sua glória" (2, 9). Nesta atmosfera de confiança radical, o Salmista tranquiliza "os justos", os fiéis. A sua situação pode ser, por si mesma, preocupante por causa da prepotência dos ímpios, que desejam impor o seu domínio. Haveria também a tentação, para os justos, de se tornar cúmplices do mal para evitar graves inconvenientes, mas o Senhor protege-os da opressão: "Não durará muito o domínio dos maus sobre a terra dos justos" S( l 124, 3); ao mesmo tempo, Ele preserva-os da tentação, para que "não estendam a sua mão à maldade" (Ibidem). Portanto, o Salmo infunde na alma uma profunda confiança. Ajuda poderosamente a enfrentar as situações difíceis, quando à crise externa do isolamento, da ironia e do desprezo em relação aos fiéis, se associa a crise interna, feita de desencorajamento, de mediocridade e de cansaço. Conhecemos esta situação, mas o Salmo diz-nos que se tivermos confiança seremos mais fortes do que estes males. 3. O final do Salmo contém uma invocação dirigida ao Senhor, a favor dos "bons" e dos "rectos de coração" (cf. v. 4) e um anúncio de desventura contra "aqueles que se desviam por caminhos tortuosos" (v. 5). Por um lado, o Salmista pede que o Senhor se manifeste como um Pai amoroso para com os justos e os fiéis que conservam alta a chama da rectidão de vida e da boa consciência. Por outro, espera-se que Ele se revele como juiz justo diante daqueles que se desviaram pelos caminhos tortuosos do mal, cujo resultado conclusivo é a morte. O Salmo termina com a tradicional saudação deshalom, de "paz a Israel", uma saudação ritmada por assonância a Jerushalajim, a Jerusalém (cf. v. 2), a cidade símbolo de paz e de santidade. É uma saudação que se torna um voto de esperança. Nós podemos torná-la explícita através das palavras de São Paulo: "Paz e misericórdia para quantos seguirem esta regra, bem como para todo o Israel de Deus" (Gl 6, 16). 4. No seu comentário a este Salmo, Santo Agostinho contrapõe "aqueles que se desviam por caminhos tortuosos" "àqueles que são rectos de coração e não se afastam de Deus". Se os primeiros foremNa associados sorte dos maus", qual será a sorte dos "rectos de coração"? esperança"àde se tornar ele mesmo, juntamente com os seus ouvintes, partícipe da sorte ditosa destes últimos, o Bispo de Hipona interroga-se: "O que possuiremos? Qual será a nossa herança? Qual será a nossa pátria? Qual é o seu nome?". E ele mesmo responde, indicando o seu nome faço minhas estas palavras: "Paz. Saudamos-vos com o voto da paz; anunciamos-vos a paz; os montes recebem a paz, enquanto a justiça se estende sobre as colinas (cf.Sl 71, 3). Pois bem, a 121
nossa paz é Cristo: "Com efeito, Ele é a nossa paz" (Ef 2, 14)" ( Exposições sobre os Salmos, IV, Nuova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma 1977, pág. 105). Santo Agostinho conclui com uma exortação que é, ao mesmo tempo, também bons votos: "Nós somos o Israel de Deus e abraçamos a paz, porque Jerusalém significa visão de paz e nós somos Israel: aquele Israel sobre o qual paira a paz" (Ibid., pág. 107), e a paz é Cristo. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 17 de Agosto de 2005 Salmo 125: Deus é a nossa alegria e a nossa esperança 1. Ouvindo as palavras do Salmo 125, tem-se a impressão de ver passar diante dos olhos o acontecimento cantado na segunda parte do Livro de Isaías: o "novo êxodo". É a volta de Israel do exílio babilónico para a terra dos pais, a seguir ao édito do rei persa Ciro, no ano 538 a.C. Então, repetiu-se a experiência jubilosa do primeiro êxodo, quando o povo hebraico foi libertado da escravidão do Egipto. Este Salmo adquiria um particular significado, quando era entoado nos dias em que Israel se sentia ameaçado e amedrontado, porque estava a ser submetido novamente à prova. Com efeito, o Salmo compreende uma oração pela volta dos prisioneiros do momento (cf. v. 4). Assim, ele tornava-se uma prece do povo de Deus no seu itinerário histórico, repleto de perigos e de provações, mas sempre aberto à confiança em Deus Salvador e Libertador, sustentáculo dos fracos e dos oprimidos. 2. O Salmo introduz numa atmosfera de exultação: as pessoas sorriem, festejam a liberdade alcançada, enquanto nos seus lábios brotam cânticos de alegria (cf. vv. 1-2). A reacção diante da liberdade reconquistada é dupla. Por um lado, as nações pagãs reconhecem a grandeza do Deus de Israel: "O Senhor fez grandes coisas por eles" (v. 2). A salvação do povo eleito torna-se uma prova límpida da existência eficaz e poderosa de Deus, presente e activo na história. Por outro, é o povo de Deus que professa a sua fé no Senhor salvador: "Sim, o Senhor fez grandes coisas por nós" (v. 3). 3. Depois, o pensamento dirige-se ao passado, revivido com um sobressalto de medo e de amargura. Gostaríamos de fixar a atenção na imagem agrícola utilizada pelo Salmista: "Aqueles que semeiam com lágrimas, vão recolher com alegria" (v. 5). Sob o peso do trabalho, às vezes o rosto banha-se de lágrimas: realiza-se uma sementeira cansativa, talvez destinada à inutilidade e ao fracasso. Mas quando chega a hora da colheita abundante e jubilosa, descobre-se que aquela dor foi fecunda.
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Neste versículo do Salmo está resumida a grande lição sobre o mistério de fecundidade e de vida, que pode estar contida no sofrimento. Precisamente como Jesus tinha dito na vigília da sua paixão e morte: "Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, ficará ele só; mas se morrer, dará muito fruto" (Jo 12, 24). 4. Assim, o horizonte do Salmo abre-se à sementeira festiva, símbolo da alegria gerada pela liberdade, pela paz e pela prosperidade, que constituem o fruto da Bênção divina. Então, esta oração é um cântico de esperança, ao qual recorrer quando se está mergulhado no tempo da prova, do medo, da ameaça exterior e da opressão interior. Contudo, pode tornar-se também um apelo mais geral, a viver os próprios dias e a tomar as decisões pessoais num clima de fidelidade. A perseverança no bem, mesmo que seja incompreendida e contrastada, no final chega sempre a uma meta de luz, de fecundidade e de paz. Era o que São Paulo recordava aos Gálatas: "Quem semear no Espírito, do Espírito colherá a vida eterna. E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido" (6, 8-9). 5. Concluímos com uma reflexão de São Beda, o Venerável (cf. 672/3-735) sobre o Salmo 125, para comentar as palavras com que Jesus anunciava aos seus discípulos a tristeza que os esperava e, ao mesmo tempo, a alegria que teria brotado da sua aflição (cf. Jo 16,20). Beda recorda que "choravam e se queixavam aqueles que amavam Cristo, quando O viram aprisionado pelos inimigos, atado, levado para ser julgado, condenado, flagelado, escarnecido e enfim crucificado, atingido pela lança e sepultado. Aqueles que amavam o mundo, ao contrário, alegravam-se... quando condenavam a uma morte extremamente torpe Aquele, cuja simples visão era para eles já um incómodo. Entristeceram-se os discípulos com a morte do Senhor, mas tendo tomado conhecimento da sua ressurreição, a sua tristeza transformou-se em júbilo; em seguida, vendo o prodígio da ascensão, com alegria ainda maior louvavam e bendiziam o Senhor, como testemunha Lucas (cf. 24, 53). Porém, aquelas palavras do Senhor adaptam-se a todos os fiéis que, através das lágrimas e das aflições do mundo, procuram chegar às alegrias eternas e que, justamente, agora choram e ficam tristes, porque ainda não podem ver Aquele a Quem amam e porque, enquanto estão no corpo, sabem que se encontram longe da pátria e do reino, embora estejam persuadidos de que alcançarão o prémio através dos cansaços e das lutas. A sua tristeza transformar-se-á em alegria quando, concluído o combate desta vida, receberem a recompensa da vida eterna, em conformidade com quanto afirma o Salmo: "Aqueles que semeiam com lágrimas, vão recolher com alegria"" (Omelie sul Vangelo, 2, 13: Collana di Testi Patristici, XC, Roma 1990, pp. 379-380).
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Quarta-feira, 31 de Agosto de 2005 Salmo 126: Toda a fadiga é vã sem o Senhor
Queridos Irmãos e Irmãs! 1. O Salmo 126, agora proclamado, apresenta diante dos nossos olhos um espectáculo em movimento: uma casa em construção, a cidade com os seus guardas, a vida das famílias, as vigílias nocturnas, o trabalho quotidiano, os pequenos e os grandes segredos da existência. Mas acima de tudo eleva-se uma presença decisiva, a do Senhor que paira sobre as obras do homem, como sugere o início incisivo do Salmo: "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores" (v. 1). Sem dúvida, uma sociedade sólida nasce do compromisso de todos os seus membros, mas precisa da bênção e do amparo daquele Deus que, infelizmente, muitas vezes é excluído ou ignorado. O Livro dos Provérbios realça a primazia da acção divina para o bem-estar de uma comunidade e fá-lo de maneira radical afirmando que "a bênção do Senhor é que enriquece, o nosso esforço nada lhe acrescenta" (Pr 10, 22). 2. Este Salmo sapiencial, fruto da meditação sobre a realidade da vida de todos os dias, está construído substancialmente sobre um contraste: sem o Senhor, em vão se procura construir uma casa estável, edificar uma cidade segura, fazer frutificar a própria fadiga (cf. Sl 126, 1-2). Com o Senhor, ao contrário, tem-se prosperidade e fecundidade, uma família rica de filhos e serena, uma cidade bem fornecida e defendida, livre de pesadelos e inseguranças (cf.vv.3-5). O texto inicia com a menção feita ao Senhor representado como construtor da casa e sentinela que vigia sobre a cidade (cf. Sl 120, 1, 8). O homem sai de manhã para se empenhar no seu trabalho e no sustento da família e ao serviço do desenvolvimento da sociedade. É um trabalho que ocupa as suas energias, provocando o suor no seu rosto (cf. Gn 3,19) durante todo o dia (cf. Sl 126, 2). 3. Pois bem, mesmo reconhecendo a importância do trabalho, o Salmista não hesita em afirmar que todo este trabalho é inútil, se Deus não está ao lado de quem trabalha. E afirma que, ao contrário, Deus gratifica até o sono dos seus amigos. O Salmista deseja assim exaltar a primazia da graça divina, que imprime consistência e valor ao sereno agir humano, marcadoao pelas limitações pela caducidade. No abandono e fiel da mesmo nossa liberdade Senhor, também ase nossas obras se tornam sólidas, capazes de um fruto permanente. O nosso "sono" torna-se, desta forma, um repouso abençoado por Deus, destinado a sigilar uma actividade que tem sentido e consistência. 4. Passa-se, neste ponto, a outro cenário descrito pelo nosso Salmo. O Senhor oferece o dom dos filhos, considerados uma bênção e uma graça, sinal da vida que continua e da história da salvação propensa para novas etapas (cf. v. 3). O Salmista SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
exalta em particular "filhos nascidos na juventude": o pai que teve filhos quando jovem não só os verá em todo o seu vigor, mas serão o seu amparo na velhice. Assim, ele poderá enfrentar com segurança o futuro, tornando-se semelhante a um guerreiro, armado com aquelas "flechas" afiadas e vitoriosas que são os filhos (cf. vv. 4-5). A imagem, tirada da cultura daquela época, tem a finalidade de celebrar a segurança, a estabilidade, a força de uma família numerosa, como é repetido no seguinte Salmo 127, no qual é esboçado o retrato de uma família feliz. O quadro final representa um pai circundado pelos seus filhos, o qual é recebido com respeito às portas da cidade, sede da vida pública. Por conseguinte, a geração é um dom portador de vida e de bem-estar para a sociedade. Disto somos conscientes nos nossos dias perante nações nas quais a diminuição demográfica priva do vigor, da energia, do futuro encarnado pelos filhos. Mas, acima de tudo, eleva-se a presença abençoadoradeDeus,fontedevidae de esperança. 5. O Salmo 126 foi usado com frequência pelos autores espirituais precisamente para exaltar esta presença divina, decisiva para proceder pelo caminho do bem e do reino de Deus. Assim o monge Isaías (falecido em Gaza em 491) no seu Asceticon (Logos 4, 118), recordando o exemplo dos antigos patriarcas e profetas, ensina: "Colocaram-se sob a protecção de Deus implorando a sua assistência, sem depor a sua confiança em qualquer fadiga realizada. E a protecção de Deus foi para eles uma cidade fortificada, porque sabiam que sem a ajuda de Deus não tinham poder e a sua humildade fazia-lhes dizer com o Salmista: "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela"" (Recueil ascéptique, Abbaye de Bellefontaine 1976, pp. 74-75). Isto é válido também hoje: só a comunhão com o Senhor pode guardar as nossas casas e as nossas cidades. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 19 de Outubro de 2005 Salmo 129: Das profundezas clamo a ti 1. Foi proclamado um dos Salmos mais célebres e amados pela tradição cristã: o De profundis, assim chamado devido ao seu início na versão latina. Com o Miserere, ele tornou-se um dos Salmos penitenciais preferidos na devoção popular. Alémdivina da sua fúnebre, é antes de tudoumum cântico misericórdia e à aplicação reconciliação entre oo texto pecador e o Senhor, Deus justo àe sempre pronto a revelar-se "misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado" (Êx 34, 6-7). Precisamente por este motivo o nosso Salmo encontra-se inserido na liturgia vespertina do Natal e de toda a oitava do Natal, assim como na do IV domingo de Páscoa e da solenidade da Anunciação do Senhor.
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2. O Salmo 129 inicia com uma voz que se eleva das profundezas do mal e da culpa (cf. vv. 1-2). O eu orante dirige-se ao Senhor dizendo: "clamo a ti, Senhor". Depois, o Salmo desenvolve-se em três momentos delicados o tema do pecado e do perdão. Dirigimo-nos antes de tudo a Deus, interpelado directamente com o "Tu": "Se fazes conta das culpas, Senhor, quem poderá se manter? Mas contigo está o perdão, para que sejas temido" (vv. 3-4). É significativo o facto de que aquilo que gera o temor, atitude de respeito misturado com amor, não é o castigo mas o perdão. Mais que a cólera de Deus, deve causar em nós um santo temor a sua magnanimidade generosa e desarmante. De facto, Deus não é soberano inexorável que condena o culpado, mas um pai amoroso, que devemos amar não por receio de uma punição, mas pela sua bondade pronta a perdoar. 3. No centro do segundo momento está o "eu" do orante que já não se dirige ao Senhor, mas fala dele: "Eu espero, Iahweh... Minha alma aguarda o Senhor mais que os guardas pela aurora" (vv. 5-6). Agora florescem no coração do Salmista arrependido a expectativa, a esperança, a certeza de que Deus pronunciará uma palavra libertadora e cancelará o pecado. A terceira e última etapa no desenvolvimento do Salmo abrange todo o Israel, ao povo muitas vezes pecador e consciente da necessidade da graça salvífica de Deus: "Israel espera pelo Senhor, porque nele há misericórdia, e com Ele é abundante a redenção. Ela há-de livrar Israel de todos os seus pecados" (vv. 7-8). A salvação pessoal, antes implorada pelo orante, é agora ampliada a toda a comunidade. A fé do Salmista insere-se na fé histórica do povo da Aliança, "remido" pelo Senhor não só pelas angústias da opressão egípcia, mas também "por todas as culpas". Pensamos que o povo da eleição, o povo de Deus agora somos nós. Também a nossa fé se insere na fé comum da Igreja. E precisamente assim nos dá a certeza de que Deus é bom para connosco e nos liberta das nossas culpas. Partindo do abismo tenebroso do pecado, a súplica do De profundis alcança o horizonte luminoso de Deus, onde domina "a misericórdia e a redenção" duas grandes características do Deus que é amor. 4. Recomendemo-nos agora à meditação que a tradição cristã fez sobre este Salmo. Escolhamos a palavra de Santo Ambrósio: nos seus escritos, ele recorda com frequência os motivos que estimulam a invocar o perdão de Deus. "Temos um Senhor bom que a todos quer perdoar", recorda ele no tratado sobre A penitência, e acrescenta: "Se queres ser justificado, confessa o teu crime: uma humilde dosa pecados desfaz enlace Sancti das culpas... Tu vês com qual esperança de perdãoconfissão te estimula confessar" (2, 6,o 40-41: Ambrosii Episcopi Mediolanensis Opera SAEMO, XVII, Milão-Roma 1982, p. 235). Na Exposição do Evangelho segundo Lucas, repetindo o mesmo convite, o Bispo de Milão expressa a admiração pelos dons que Deus acrescenta ao seu perdão: "Vê como Deus é bom, e disposto a perdoar os pecados: não só volta a dar o que tinha tirado, mas concede também dons inesperados". Zacarias, pai de João Baptista, tinha permanecido mudo por não ter acreditado no anjo, mas depois, perdoando-o, Deus SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
concedera-lhe o dom de profetizar no canto do "Benedictus": "Aquele que pouco antes era mudo, agora já profetiza", observa santo Ambrósio, "é uma das maiores graças do Senhor, que precisamente aqueles que o renegaram o confessem. Por conseguinte, ninguém desanime, ninguém desespere das recompensas divinas, mesmo se o atormentam antigos pecados. Deus sabe mudar o parecer, se tu souberes emendar a culpa" (2, 33: SAEMO, XI, Milão-Roma 1978, p. 175). PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 10 de Agosto de 2005 Salmo 130: Confiar em Deus como a criança na mãe 1. Ouvimos somente poucas palavras, cerca de trinta, no srcinal hebraico do Salmo 130. Contudo, são palavras intensas que desenvolvem um tema precioso para toda a literatura religiosa: a infância espiritual. O pensamento corre rápida e espontaneamente até Santa Teresa de Lisieux, ao seu "pequeno caminho", ao seu "permanecer pequena" para "estar nos braços de Jesus" (cf. Manuscrito "C", 2rº-3vº: Obras Completas, Cidade do Vaticano 1997, pp. 235-236). Com efeito, no centro do Salmo sobressai a imagem de uma mãe com o menino, sinal do amor terno e materno de Deus, como já se tinha expresso o profeta Oseias: "Quando Israel ainda era menino, Eu amei-o... Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me sobre ele para lhe dar de comer" (11, 1.4). 2. O Salmo começa com a descrição da atitude antitética em relação ao comportamento da infância, que está consciente da sua própria fragilidade, mas tem confiança na ajuda dos outros. Todavia, no Salmo entram em cena o orgulho do coração, a soberba do olhar, as "coisas grandiosas e superiores" (cf. Sl 130, 1). É a representação da pessoa soberba, descrita mediante vocábulos hebraicos que indicam a "altivez" e a "exaltação", a atitude arrogante daquele que olha os outros com um sentido de superioridade, considerando-os inferiores a si mesmo. A grande tentação do indivíduo soberbo, que deseja ser como Deus, juiz do bem e do mal (cf. Gn 3, 5), é decididamente rejeitada pelo orante, que opta pela confiança humilde e espontânea do único Senhor. 3. Assim, passa-se à imagem inesquecível do menino e da mãe. O texto srcinal hebraico não fala de um recém-nascido, mas sim de uma "criança saciada" ( Sl 130, 2). Pois bem, sabe-se que no antigo Oriente Próximo a desmama oficial se situava aproximativamente nos três anos de idade e era celebrada com uma festa (cf. Gn 21, 8; 1 Sm 1, 20-23; 2 Mac 7, 27). O menino, ao qual o Salmista remete, está ligado à mãe por um relacionamento que já é pessoal e íntimo, portanto não pelo mero contacto físico e pela necessidade de 127
alimentação. Trata-se de um vínculo mais consciente, embora sempre imediato e espontâneo. Esta é a parábola ideal da verdadeira "infância" do espírito, que se abandona a Deus não de maneira cega e automática, mas tranquila e responsável. 4. Nesta altura, a profissão de confiança no orante alarga-se a toda a comunidade: "Israel, espera no Senhor, desde agora e para sempre!" ( Sl 130, 3). Ora, a esperança brota em todo o povo, que recebe de Deus a segurança, a vida e a paz, estendendo-se do presente ao futuro, "desde agora e para sempre!". É fácil continuar a oração, fazendo ecoar outras vozes do Saltério, inspiradas na mesma confiança em Deus: "Pertenço-te desde o ventre materno; desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus" ( Sl 21, 11). "Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem, o Senhor há-de de acolher-me" ( Sl 26, 10). "Tu és a minha esperança, ó Senhor Deus, e a minha confiança desde a juventude. Em ti me apoio desde o seio materno, desde o ventre materno és o meu sustentáculo" (Sl 70, 5-6). 5. À confiança humilde, como se pôde ver, opõe-se a altivez. Um escritor cristão dos séculos IV-V, João Cassiano, admoesta os fiéis sobre a gravidade deste vício, que "destrói todas as virtudes no seu conjunto e não atinge apenas os medíocres e os fracos, mas principalmente aqueles que se colocaram no ápice com o uso das suas próprias forças". Depois, ele continua: "Este é o motivo pelo qual o bem-aventurado David salvaguarda o seu coração com tanta circunspecção, a ponto de ousar proclamar, diante daquele a Quem decerto não passavam despercebidos os segredos da sua consciência: "Senhor, o meu coração não se orgulha e o meu olhar não se exalta com altivez; não vou à procura de coisas grandiosas, superiores às minhas forças"... Todavia, bem sabendo que esta salvaguarda é difícil também para os perfeitos, ele não tem a presunção de se alicerçar unicamente nas suas capacidades, mas suplica o Senhor com orações, a fim de que o ajude a esquivar-se das flechas do inimigo e a não ser ferido pelas mesmas: "Não permitas que me pisem os pés dos orgulhosos" (Sl 35, 12)" (Le istituzioni cenobitiche, XII, 6, Abadia de Praglia, Bresseo di Teolo Pádua 1989, pág. 289). Analogamente, um idoso anónimo dos Padres do deserto legou-nos esta declaração, que faz ressoar o Salmo 130: "Jamais ultrapassei a minha categoria para caminhar de forma mais altiva, e nunca fiquei perturbado em caso de humilhação, porque cada um dos meus pensamentos consistia nisto: em rezar ao Senhor para que me despojasse do homem velho" (I Padri del deserto. Detti, Roma 1980, pág. 287).
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Quarta-feira, 14 de Setembro de 2005 Salmo 131, 1-10: As promessas divinas feitas a David 1. Ouvimos a primeira parte do Salmo 131, um hino que a Liturgia das Vésperas nos oferece em dois momentos distintos. Não poucos estudiosos pensam que este cântico tenha ressoado na celebração solene do transporte da arca do Senhor, sinal da presença divina no meio do povo de Israel, em Jerusalém, a nova capital escolhida por David. Na narração deste acontecimento, do modo como nos é narrado pela Bíblia, lê-se que o rei David "cingindo a insígnia votiva de linho, dançava com todas as suas forças diante do Senhor. O rei e todos os israelitas conduziram a Arca do Senhor, com gritos de alegria e tocando trombetas" (2 Sm 6, 14-15). Outros estudiosos, ao contrário, reconduzem o Salmo 131 a uma celebração comemorativa daquele acontecimento antigo, depois da instituição do culto no santuário de Sião por obra precisamente de David. 2. O nosso hino parece supor uma dimensão litúrgica: provavelmente era usado durante o desenvolvimento de uma procissão, com a presença de sacerdotes e fiéis e a participação de um coro. Seguindo a Liturgia das Vésperas, deter-nos-emos sobre os primeiros dez versículos do Salmo, que agora proclamamos. No centro desta parte está colocado o juramento solene pronunciado por David. De facto, diz-se que ele deixando para trás o áspero contraste com o predecessor, o rei Saul "fez juramento ao Senhor e um voto ao Deus de Jacob" (cf. Sl 131, 2). O conteúdo deste compromisso solene, expresso nos vv. 3-5, é claro: o soberano não entrará no palácio real de Jerusalém, não irá repousar tranquilo, se primeiro não tiver encontrado uma morada para a arca do Senhor. Por conseguinte, deve haver no próprio centro da vida social uma presença que evoca o mistério de Deus transcendente. Deus e homem caminham juntos na história, e o templo tem a tarefa de assinalar de modo visível esta comunhão. 3. Neste ponto, depois das palavras de David, apresenta-se, talvez através das palavras de um coro litúrgico, a memória do passado. De facto, é reevocado o encontro da arca nos campos de Jaar, na região de Efrata (cf. v. 6): permenecera ali durante muito tempo, depois(cf. de 1terSmsido restituída a Israel, que a tinha perdido àdurante uma batalha 7, 1; 2 Sm 6,pelos 2.11).Filisteus Por isso, da província é conduzida futura cidade santa e o nosso trecho termina com uma celebração de festa que vê, por um lado, o povo adorante (cf. Sl 131, 7.9), isto é, a assembleia litúrgica e, por outro, o Senhor que volta a fazer-se presente e operante no sinal da arca colocada em Sião (cf. v. 8), no centro do seu povo. A alma da liturgia encontra-se neste cruzamento entre sacerdotes e fiéis, por um lado, e por outro, o Senhor com o seu poder. 129
4. Como selo da primeira parte do Salmo 131 ressoa uma aclamação orante a favor dos reis sucessores de David: "Por amor de David, teu servo, não desvies o teu rosto do teu ungido" (v.10). Vê-se, portanto, o futuro sucessor de David, o "teu ungido". É fácil intuir uma dimensão messiânica nesta súplica, inicialmente destinada a impetrar amparo para o soberano hebraico nas provas da vida. A palavra "ungido" traduz de facto a palavra hebraica "Messias": o olhar do orante vai assim para além das vicissitudes do reino de Judas e projecta-se para a grande expectativa do "Consagrado" perfeito, o Messias que será sempre agradável a Deus, por ele amado e abençoado, e será não só de Israel, mas o "ungido", o rei para todo o mundo. Ele, Deus, está connosco e espera este "ungido", que depois veio na pessoa de Jesus Cristo. 5. Esta interpretação messiânica para o futuro "ungido" dominará a releitura cristã e alargar-se-á a todo o Salmo. É significativa, por exemplo, a aplicação que Hesíquio de Jerusalém, um presbítero da primeira metade do século V, fará do v. 8 à encarnação de Cristo. Na sua Segunda Homilia sobre a Mãe de Deus ele dirige-se a Maria do seguinte modo: "Sobre ti e sobre Aquele que de ti nasceu, David não cessa de cantar sobre a cítara: "Levanta-te, Senhor, e entra no teu repouso, tu e a Arca do teu poder" (Sl 131, 8)". Quem é a "Arca do teu poder?" Hesíquio responde: "Evidentemente a Virgem, a Mãe de Deus. Porque, se tu és a pérola, ela é de direito a arca; se tu és o sol, necessariamente a Virgem será chamada céu; e se tu és a Flor incontaminada, a Virgem será a planta incorruptível, paraíso de imortalidade" (Textos marianos do primeiro milénio, I, Roma 1988, pp. 532533). Parece-me muito importante esta dupla interpretação. Cristo é o "Ungido", o Filho do próprio Deus encarnou-se. E a Arca da Aliança, a verdadeira morada de Deus no mundo, não feita de madeira mas de carne e sangue, é Nossa Senhora, que se oferece a si mesma ao Senhor como Arca da Aliança e nos convida a sermos, nós também, morada viva para Deus no mundo. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 21 de Setembro de 2005 Salmo 131, 11-18: Eleição de David e de Sião 1. Ressoou agora a segunda parte do Salmo 131, um cântico que evoca um acontecimento capital na história de Israel: a transladação da arca do Senhor para a cidade de Jerusalém. David tinha sido o artífice desta transferência, testemunhado na primeira parte do Salmo, por nós já considerada. De facto, o rei tinha feito o juramento de não se estabelecer no palácio real se não tivesse encontrado primeiro uma moradia para a arca de Deus, sinal da presença do Senhor junto ao seu povo (cf. vv. 3-5). SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
Àquele juramento do soberano corresponde agora o juramento do próprio Deus: "O Senhor fez um juramento a David, uma promessa a que não faltará" (v. 11). Substancialmente esta promessa solene é a mesma que o profeta Natan fizera, em nome de Deus, ao próprio David; ela refere-se à descendência davídica futura, destinada a reinar estavelmente (cf. 2 Sm 7, 8-16). 2. Mas o juramento divino requer o compromisso humano, a ponto de estar condicionado por um "se": "Se os teus filhos guardarem a minha Aliança" (Sl 131, 12). À promessa e ao dom de Deus, que nada tem de mágico, deve corresponder a adesão fiel e laboriosa do homem num diálogo que relaciona duas liberdades, a divina e a humana. A este ponto o Salmo transforma-se num cântico que exalta os maravilhosos efeitos quer do dom do Senhor, quer da fidelidade de Israel. De facto, experimentar-se-á a presença de Deus no meio do povo (cf. vv. 13-14): ele será como um habitante entre os habitantes de Jerusalém, como um cidadão que vive com os outros cidadãos as vicissitudes da história, oferecendo contudo a força da sua bênção. 3. Deus abençoará as colheitas, preocupando-se que os pobres sejam saciados (cf. v. 15); revestirá com o seu manto protectivo os seus sacerdotes oferecendo-lhes a salvação; fará com que todos os fiéis vivam na alegria e na confiança (cf. v. 16). A bênção mais intensa é reservada mais uma vez a David e à sua descendência: "Ali farei surgir descendência para David e farei brilhar a luz do meu ungido. Cobrirei de vergonha os seus inimigos, mas sobre ele farei brilhar o seu diadema" (vv. 17-18). Mais uma vez, como tinha acontecido na primeira parte do Salmo (cf. v. 10), entra em cena a figura do "Consagrado", em hebraico "Messias", relacionando assim a descendência davídica com o messianismo que, na releitura cristã, encontra plena actuação na figura de Cristo. As imagens usadas são vivazes: David é representado como um rebento que cresce vigoroso. Deus ilumina o descendente davídico com uma lâmpada cintilante, símbolo de vitalidade e de glória; uma coroa esplendorosa marcará o seu triunfo sobre os inimigos e, por conseguinte, a vitória sobre o mal. 4. Em Jerusalém, no templo que conserva a arca e na dinastia davídica, realizase a dupla presença do Senhor, a presença no espaço e na história. O Salmo 131 tornase, então, uma celebração do Deus-Emanuel que está com as suas criaturas, vive ao lado delas e beneficia-as, sob condição de que permaneçam unidas a ele na verdade e na justiça. O centro espiritual deste hino já é prelúdio à proclamação joanina: "E o Verbo fez-se carne e veio habitar connosco" (Jo 1, 14). 5. Concluímos recordando o início segunda parte do Salmo 131 foi usado habitualmente pelos Padres daque Igreja paradesta descrever a encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria. Já Santo Ireneu, referindo-se à profecia de Isaías sobre a Virgem que está para dar à luz, explicava: "As palavras: "Ouve, pois, casa de David" (Is 7, 13) indicam que o rei eterno, que Deus tinha prometido a David de suscitar do "fruto do seu seio" (Sl 131, 11), é o mesmo que nasceu da Virgem, proveniente de David. Por isso, ele tinha prometido um rei que teria nascido do "fruto do seu seio", expressão que indica uma 131
virgem grávida. Portanto a Escritura... situa e afirma o fruto do seio para proclamar que a geração daquele que deveria vir, teria vindo na Virgem. Precisamente como Isabel, cheia de Espírito Santo, confirmou dizendo a Maria: "Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu seio" (Lc 1, 42). Assim o Espírito Santo indica àqueles que o querem ouvir que, com o parto da Virgem, isto é de Maria, se cumpriu a promessa, feita por Deus a David, de suscitar um rei do fruto do seu seio" (Contra as heresias, 3, 21, 5: Já e Ainda Não, CCCXX, Milão 1997, p. 285). E assim vemos no grande arco, que vai do Salmo antigo até à Encarnação do Senhor, a fidelidade de Deus. No Salmo já aparece e transparece o mistério de um Deus que habita connosco, que se torna um connosco na Encarnação. E esta fidelidade de Deus é a nossa confiança nas mudanças da história, é a nossa alegria. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 28 de Setembro de 2005 Salmo 134, 1-12: Louvai o Senhor que faz maravilhas 1. Apresenta-se agora diante de nós a primeira parte do Salmo 134, um hino de índole litúrgica, composto de alusões, reminiscências e referências de outros textos bíblicos. A liturgia, de facto, elabora com frequência os seus textos bíblicos haurindo do grande património da Bíblia um rico repertório de temas e orações, que sustentam o caminho dos fiéis. Sigamos a elaboração orante desta primeira parte (cf. Sl 134, 1-12), que se abre com um amplo e apaixonado convite a louvar o Senhor (cf. vv. 1-3). O apelo dirige-se aos "servos do Senhor, que estão no templo do Senhor, nos átrios da casa do nosso Deus" (cf. vv. 1-2). Portanto, estamos perante uma atmosfera viva do culto que se faz no templo, o lugar privilegiado e comunitário da oração. Ali experimenta-se de maneira eficaz a presença do "nosso Deus", um Deus "bom" e "amável", o Deus da eleição e da aliança (cf. vv. 3-4). Depois do convite ao louvor, eis que uma voz solista proclama a profissão de fé, que tem início com uma fórmula "Eu sei" (v. 5). Este Creio constituirá a substância de todo o hino, que se revela uma proclamação da grandeza do Senhor (ibidem), manifestada nas suas obras maravilhosas. 2. A omnipotência divina manifesta-se continuamente no mundo inteiro "no céu e na terra, nos mares e nos abismos". É Ele que faz as nuvens, os relâmpagos, a chuva e os ventos, imaginados como que se estivessem encerrados em "reservatórios" ou contentores (cf. vv. 6-7). Mas é sobretudo outro aspecto da actividade divina que é celebrado nesta profissão de fé. Trata-se da admirável intervenção na história, onde o Criador mostra o SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
rosto de redentor do seu povo e de soberano do mundo. Passam diante dos olhos de Israel recolhido em oração os grandes acontecimentos do Êxodo. Antes de tudo, eis a comemoração sintética e essencial das "chagas" do Egipto, os flagelos suscitados pelo Senhor para dominar o opressor (cf. vv. 8-9). Segue-se depois a evocação das vitórias alcançadas por Israel depois da longa caminhada no deserto. São atribuídas à intervenção poderosa de Deus, que "derrotou as grandes nações e matou os reis poderosos" (v. 10). Por fim, eis a meta tão desejada e esperada, a da terra prometida: "entregou a terra deles como herança, como herança a Israel, seu povo" (v. 12). O amor divino tornou-se concreto e quase experimentável na história com todas as suas vicissitudes ásperas e gloriosas. A liturgia tem a tarefa de fazer com que os dons divinos estejam sempre presentes, sobretudo na grande celebração pascal que é a raiz de todas as outras solenidades e constitui o emblema supremo da liberdade e da salvação. 3. Acolhamos o espírito do Salmo e o seu louvor a Deus repropondo-o através da voz de São Clemente Romano, do modo como ressoa na longa oração conclusiva da sua Carta aos Coríntios. Ele faz notar que, como no Salmo 134 sucede o rosto de Deus redentor, também a sua protecção, já concedida aos antigos padres, chega agora até nós em Cristo: "Ó Senhor, faz resplandecer o teu rosto sobre nós, para o bem da paz, para nos proteger com a tua mão poderosa e livrar-nos de todos os pecados com o teu braço altíssimo e salvar-nos de quantos nos odeiam injustamente. Concede a concórdia e a paz a nós e a todos os habitantes da terra, como a concedeste aos nossos pais quando te invocavam santamente na fé e na verdade... A ti, o único capaz de realizar estes bens e outros maiores para nós, agradecemos por meio do grande Sacerdote e protector das nossas almas, Jesus Cristo, pelo qual sejam dadas agora glória e magnificência a Ti, de geração em geração em todos os séculos". (60, 3-4; 61, 3: Colecção de Textos Patrísticos, V, Roma 1984, pp. 90-91). Sim, também nós podemos recitar esta oração de um Papa do primeiro século, como nossa oração para o tempo presente. "Ó Senhor, faz resplandecer o teu rosto sobre nós hoje, para o bem da paz. Concede a estes tempos concórdia e paz a nós e a todos os habitantes da terra, por Jesus Cristo que reina de geração em geração e pelos séculos dos séculos. Amém". PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 5 de Outubro de 2005 Salmo 134, 13-21: Só Deus é grande e eterno 1. O Salmo 134, um cântico com tons pascais, é-nos oferecido pela liturgia das Vésperas em dois trechos distintos. O que agora ouvimos trata a segunda parte (cf. vv. 13, 21), que termina com o aleluia, a exclamação de louvor ao Senhor que tinha iniciado o Salmo. 133
Depois de ter comemorado na primeira parte do hino o acontecimento do Êxodo, centro da celebração pascal de Israel, agora o Salmista confronta de maneira incisiva duas visões religiosas diferentes. Por um lado, eleva-se a figura do Deus vivo e pessoal que está no centro da fé autêntica (cf. vv. 13-14). A sua é uma presença eficaz e salvífica; o Senhor não é uma realidade imóvel e ausente, mas uma pessoa viva que "guia" os seus fiéis, "movido por piedade" deles, apoiando-os com o seu poder e o seu amor. 2. Por outro lado, emerge a idolatria (cf. vv. 15-18), expressão de uma religiosidade desviada e enganadora. De facto, o ídolo mais não é do que uma "obra das mãos do homem", um produto dos desejos humanos; por conseguinte, é importante superar as limitações criaturais. Ele possui uma forma humana com boca, olhos, ouvidos, garganta, mas é inerte, sem vida, como acontece precisamente com uma estátua inanimada (cf. Sl 113, 4-8). O destino de quem adora estas realidades mortas é tornar-se semelhante a elas, impotente, inerte. Nesta descrição da idolatria como falsa religião está representada a eterna tentação do homem de procurar a salvação na "obra das nossas mãos", pondo a sua esperança na riqueza, no poder, no sucesso, na matéria. Infelizmente a quem se move nesta direcção, que adora a riqueza, a matéria, acontece o que já tinha descrito de maneira eficaz o profeta Isaías: "Esta gente alimenta-se de cinzas, e o seu coração, extraviado, desencaminha-os. Não consegue salvar-se, dizendo: "Não será um puro engano o que tenho na mão direita?"" (Is 44, 20). 3. O Salmo 134, depois desta meditação sobre a verdadeira ou a falsa religião, sobre a fé genuína no Senhor do universo e da história e a idolatria, conclui-se com uma bênção litúrgica (cf. vv. 19-21), que coloca em cena uma série de figuras presentes no culto praticado no templo de Sião (cf. Sl 113, 9-13). De toda a comunidade reunida no templo eleva-se ao Deus criador do universo e salvador do seu povo na história uma bênção coral, expressa na diversidade das vozes e na humildade da fé. A liturgia é o lugar privilegiado para a escuta da Palavra divina, que torna presentes os actos salvíficos do Senhor, mas é também o âmbito no qual se eleva a oração comunitária que celebra o amor divino. Deus e homem encontram-se num abraço de salvação, que encontra o seu cumprimento próprio na celebração litúrgica. Poderíamos dizer que esta é quase uma definição da liturgia: ela realiza um abraço de salvação entre Deus e o homem. 4. Ao comentar os versículos deste Salmo relativos aos ídolos e à semelhança que com quantos confiam (cf.uma Sl 134, Santo Agostinho fazídolos: notar: "De assumem facto acreditai, irmãosneles incide-se neles certa15-18), semelhança com os seus certamente não no seu corpo, mas no seu homem interior. Eles têm ouvidos, mas não ouvem o que Deus lhes grita: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Têm olhos mas não vêem: isto é, têm os olhos do corpo, mas não os olhos da fé". Eles não sentem a presença de Deus, Têm olhos mas não vêem. E do mesmo modo, "têm narinas mas não sentem odores. Somos o bom odor de Cristo em todos os
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lugares (cf. 2 Cor 2, 15). Que vantagem têm eles em possuir as narinas, se não conseguem perceber o perfume suave de Cristo?". É verdade, reconhece Agostinho, existem ainda pessoas ligadas à idolatria; isto é válido também para o nosso tempo, com o seu materialismo que é uma idolatria. Agostinho acrescenta: mesmo se estas pessoas permanecem, continua esta idolatria; "mas há contudo, todos os dias, pessoas que, convencidas dos milagres de Cristo Senhor, abraçam a fé e graças a Deus também hoje acontece! Todos os dias se abrem olhos aos cegos e ouvidos aos surdos, começam a respirar narinas que antes estavam fechadas, dissolvem-se as línguas do mudos, consolidam-se os membros dos paralíticos, endireitam-se os pés tortos. De todas estas pedras saem filhos de Abraão (cf. Mt 3, 8). Por conseguinte, diga-se também a todos eles: "Casa de Israel, bendiz ao Senhor"... Bendizei o Senhor vós, todos os povos! Isto significa: "Casa de Israel". Bendizei-o vós, prelados da Igreja! Isto significa "Casa de Aarão". Bendizei-o, vós, ministros! Isto significa "Casa de Levi". E que dizer das outras nações? "Vós que temeis o Senhor, bendizei-o"" (Exposição sobre o Salmo 134, 24-25: Nova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma 1977, pp. 375.377). Apropriemo-nos deste convite e bendigamos, louvemos e adoremos o Senhor, o Deus vivo e verdadeiro. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 9 de Novembro de 2005 Salmo 135, 1-9: Hino pascal 1. Foi chamado "O grande Hallel", ou seja, o louvor solene e grandioso que o judaísmo entoava durante a liturgia pascal. Falamos do Salmo 135, do qual ouvimos a primeira parte, segundo a divisão proposta pela Liturgia das Vésperas (cf. vv. 1-9). Antes de tudo detenhamo-nos no refrão: "porque o seu amor é eterno". No centro da frase ressoa a palavra "misericórdia" que, na realidade, é uma tradução legítima, mas limitada, do vocábulo srcinário hebraico hesed. De facto, ele faz parte da linguagem característica da Bíblia para exprimir a aliança que intercorre entre o Senhor erelação: o seu povo. A palavra procura odefinir atitudes que sea estabelecem desta a fidelidade, a lealdade, amor as e evidentemente misericórdiano de interior Deus. Temos aqui a representação sintética do vínculo profundo e interpessoal instaurado pelo Criador com a sua criatura. Dentro desta relação, Deus não é apresentado na Bíblia como um Senhor impassível e implacável, nem como um ser obscuro e indecifrável, semelhante ao destino, contra cuja força misteriosa é inútil lutar. Ele manifesta-se ao contrário como uma pessoa que ama as suas criaturas, vigia sobre elas, as segue no caminho da história e sofre pelas infidelidades que muitas vezes o povo opõe ao seu hesed, ao seu amor misericordioso e paterno. 135
2. O primeiro sinal visível desta caridade cristã diz o Salmista deve procurar-se na criação. O olhar, repleto de admiração e estupefacção, detém-se antes de tudo na criação: os céus, a terra, as águas, o sol, a lua e as estrelas. Ainda antes de descobrir o Deus que se revela na história de um povo, há uma revelação cósmica, aberta a todos, oferecida à humanidade inteira pelo único Criador, "Deus dos deuses" e "Senhor dos senhores" (cf. vv. 2-3). Como tinha cantado o Salmo 18, "os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia passa ao outro esta mensagem e uma noite dá conhecimento à outra noite" (vv. 2-3). Portanto, existe uma mensagem divina, secretamente gravada na criação e sinal do hesed, da fidelidade amorosa de Deus que doa às suas criaturas o ser e a vida, a água e o alimento, a luz e o tempo. É preciso ter olhos límpidos para contemplar esta revelação divina, recordando a admoestação do Livro da Sabedoria, que nos convida a "contemplar na grandeza e na beleza das criaturas, por analogia, o seu Criador" (cf. Sb 13, 5; cf. Rm 1, 20). O louvor orante desemboca então na contemplação das "maravilhas" de Deus (cf. Sl 135, 4), espalhadas pela criação e transforma-se num jubiloso hino de louvor e de agradecimento ao Senhor. 3. Por conseguinte ascende-se das obras criadas à grandeza de Deus, à sua amorosa misericórdia. É o que nos ensinam os Padres da Igreja, em cuja voz ressoa a constante Tradição cristã. Assim, São Basílio Magno numa das páginas iniciais da sua primeira homilia sobre Exameron, na qual comenta a narração da criação segundo o primeiro capítulo do Génesis, detém-se a considerar a acção sábia de Deus, e termina reconhecendo na bondade divina o centro propulsor da criação. Eis algumas expressões tiradas da longa reflexão do santo Bispo de Cesareia da Capadócia: ""No princípio Deus criou o céu e a terra". A minha palavra rende-se, subjugada pela estupefacção deste pensamento" (1, 2, 1: Sulla Genesi [Omelie sull'Esamerone], Milão 1990, pp. 9.11). De facto, também se alguns, enganados pelo ateísmo que levavam dentro de si, imaginaram o universo privado de orientação e de ordem, como que à mercê das circunstâncias", o escritor sagrado ao contrário "esclareceu-nos de imediato a mente com o nome de Deus no início da narração, dizendo: "No princípio Deus criou". E que beleza nesta ordem!" (1, 2, 4: ibidem, p. 11). "Se portanto o mundo tem um princípio e foi criado, procura quem lhe deu o início e quem é o seu Criador... Moisés preveniu-te com o seu ensinamento imprimindo nas nossas almas como selo e filactera o santíssimo nome de Deus, quando diz: "No princípio Na de natureza bem-aventurada, aquele outra que é objecto deDeus amorcriou". por parte todos os seres razoáveis,a bondade a beleza sem maisinveja, que qualquer desejável, o princípio dos seres, a fonte da vida, a luz intelectiva, a sabedoria inacessível, em suma, Ele "no princípio criou o céu e a terra"" (1, 2, 6-7: ibidem, p. 13). Penso que as palavras deste Padre do século IV são de uma actualidade surpreendente quando diz: "Alguns, deixando-se enganar pelo ateísmo que levavam dentro de si, imaginaram um universo privado de orientação e de ordem, como que à mercê das circunstâncias". SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
Quantos são hoje estes "alguns". Eles, deixando-se enganar pelo ateísmo, consideram e procuram demonstrar que é científico pensar que tudo está privado de ordem, como que à mercê das circunstâncias. O Senhor com a Sagrada Escritura desperta a razão que dorme e diz-nos: no início está a Palavra criadora. No início a Palavra criadora esta Palavra que tudo criou, que criou este projecto inteligente que é o cosmos também é amor. Por conseguinte, deixemo-nos despertar por esta Palavra de Deus; rezemos para que ela esclareça também a nossa mente, para que possamos compreender a mensagem da criação inscrita também no nosso coração que o princípio de tudo é a Sabedoria criadora, e esta Sabedoria é amor, é bondade: "A sua misericórdia permanece eternamente". PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 16 de Novembro de 2005 Salmo 135, 10-26: Acção de graças pela salvação realizada por Deus 1. A nossa reflexão volta ao hino de louvor do Salmo 135 que aLiturgia das Vésperas propõe em duas etapas sucessivas, seguindo uma distinção específica que a composição oferece a nível temático. De facto, a celebração das obras do Senhor delineia-se em dois âmbitos, o do espaço e o do tempo. Na primeira parte (cf. vv. 1-9), que foi objecto da nossa meditação precedente, o cenário era composto por actos divinos dispostos na criação: eles deram srcem às maravilhas do universo. Assim, naquela parte do Salmo proclama-se a fé em Deus criador, que se revela através das suas criaturas cósmicas. Agora, porém, o jubiloso canto do Salmista, chamado pela tradição judaica "O grande Hallel", ou seja, o maior louvor que nos eleva ao Senhor, conduz-nos a um horizonte diverso, ao da história. Portanto, a primeira parte fala da criação como reflexo da beleza de Deus, a segunda fala da história e do bem que Deus realizou para nós no decorrer da história. Sabemos que a Revelação bíblica proclama repetidamente que a presença de Deus salvador se manifesta de modo particular na história da salvação (cf. Dt 26, 5-9; Js 24, 1-13). 2. Assim, desfilam diante do orante as acções libertadoras do Senhor que têm o seu coração no acontecimento fundamental do êxodo do Egipto. Com ele está profundamente relacionada a difícil viagem pelo deserto do Sinai, cujo meta derradeira é a terra prometida, o dom divino que Israel continua a experimentar em todas as páginas da Bíblia. A célebre travessia do Mar Vermelho, "dividido em duas partes", como que rasgado e dominado como um monstro domado (cf. Sl 135, 13), faz nascer o povo livre e chamado a uma missão e a um destino glorioso (cf. vv. 14-15; Êx 15, 1-21), que terá a sua releitura cristã na plena libertação do mal com a graça baptismal (cf. 1 Cor 10, 1-4). Depois, abre-se o itinerário do deserto: lá o Senhor está representado como um guerreiro que, prosseguindo a obra de libertação iniciada na travessia do Mar Vermelho, se 137
declara em defesa do seu povo ferindo os adversários. Deserto e mar representam, portanto, a passagem através do mal e da opressão para receber o dom da liberdade e da terra prometida (cf. Sl 135, 16-20). 3. No final, o Salmo apresenta aquela terra que a Bíblia exalta de modo entusiasta como "terra óptima, terra de torrentes de água, de fontes e de nascentes, que jorram por vales e montes; terra de trigo, cevada, videiras, figos e de romãs; terra de oliveiras, azeite e mel; terra onde não comerás pouco pão, onde nada te faltará, terra onde as pedras são de ferro e de cujas montanhas extrairás cobre" (Dt 8, 7-9). Esta celebração enfática, que vai além da realidade daquela terra, quer exaltar o dom divino, dirigindo a nossa expectativa para o dom mais nobre da vida eterna com Deus. Um dom que permite que o povo seja livre, um dom que nasce como se continua a repetir na antífona que marca cada versículo do hesed do Senhor, isto é, da sua "misericórdia", da sua fidelidade ao compromisso assumido na aliança com Israel, do seu amor que continua a revelar-se através da "recordação" (cf. Sl 135, 23). No tempo da "humilhação", ou seja, nas provas e opressões sucessivas, Israel descobrirá sempre a mão salvadora do Deus da liberdade e do amor. Também no tempo da fome e da miséria o Senhor entra em acção para oferecer a toda a humanidade o alimento, confirmando a sua identidade de criador (cf. v. 25). 4. Por conseguinte, com o Salmo 135 entrelaçam-se duas modalidades da única Revelação divina, a cósmica (cf. vv. 4-9) e a histórica (cf. vv. 10-25). Sem dúvida, o Senhor é transcendente como criador e árbitro do ser; mas também está próximo das suas criaturas, entrando no espaço e no tempo. Não permanece fora, no céu longínquo. Aliás, a sua presença no meio de nós alcança o seu ápice na Encarnação de Cristo. É quanto proclama a releitura cristã do Salmo de modo límpido, como é confirmado pelos Padres da Igreja que vêem o vértice da história da salvação e o sinal supremo do amor misericordioso do Pai no dom do Filho, como salvador e redentor da humanidade (cf. Jo 3,16). Assim, são Cipriano, um mártir do século III, ao iniciar o seu tratado sobre As obras de caridade e a esmola, contempla com admiração as obras que Deus realizou em Cristo seu Filho a favor do seu povo, irrompendo por fim num reconhecimento apaixonado da sua misericórida. "Caríssimos irmãos, são muitos e grandiosos os benefícios de Deus, que a bondade generosa e abundante de Deus Pai e de Cristo realizou e sempre realizará para a nossa salvação; de facto, para nos preservar de uma nova vida e para nos podermos redimir, o Pai enviou o Filho; o Filho, que tinha sido enviado, quis ser chamado também Filho do homem, para que nos tornássemos filhos de Deus: humilhou-se, para elevar o povo que antes jazia por terra, foi ferido para curar as nossas feridas, tornou-se para nos conduzir à liberdade, a nós São que estes éramos escravos. Aceitou morrer, escravo para poder oferecer aos mortais a imortalidade. os numerosos e grandiosos dons da divina misericórdia" (1: Tratados: Colecção de Textos Patrísticos, CLXXV, Roma, 2004, p. 108). Com estas palavras o santo Doutror da Igreja desenvolve o Salmo com uma ladainha dos benefícios que Deus nos fez, acrescentando ao que o Salmista ainda não conhecia, mas já esperava, o verdadeiro dom que Deus nos fez: o dom do Filho, o dom da Encarnação, na qual Deus se doou a nós, na Eucaristia e na sua Palavra, todos os SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
dias, até ao fim da história. O nosso perigo é que a memória do mal, dos males suportados, muitas vezes seja mais forte do que a memória do bem. O Salmo serve para despertar em nós também a memória do bem, do muito bem que o Senhor nos faz, e que podemos ver se o nosso coração estiver atento: é verdade, a misericórdia de Deus é eterna, está presente dia após dia. PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 30 de Novembro de 2005 Salmo 136: Junto dos rios da Babilónia 1. Nesta primeira quarta-feira do Advento, tempo litúrgico de silêncio, vigilância e oração em preparação para o Natal, meditamos o Salmo 136, que se tornou célebre na versão latina do seu início, Super flumina Babylonis. O texto recorda a tragédia vivida pelo povo hebraico durante a destruição de Jerusalém, que aconteceu em 586 a.C., e o sucessivo e consequente exílio na Babilónia. Estamos diante de um canto nacional de sofrimento, marcado por uma saudade crescente do que se perdeu. Esta insistente invocação ao Senhor, para que liberte os seus fiéis da escravidão babilónia, exprime bem também os sentimentos de esperança e de expectativa da salvação com os quais iniciámos o nosso caminho do Advento. A primeira parte do Salmo (cf. vv. 1-4) tem como fundo a terra do exílio, com os seus rios e canais, precisamente os que irrigam a planície babilónica, sede dos deportados hebreus. É quase a antecipação simbólica dos campos de extermínio nos quais o povo hebreu no século que há pouco terminou foi encaminhado através de uma opressão aviltante de morte, que permaneceu como vergonha indelével na história da humanidade. A segunda parte do Salmo (cf. vv. 5-6) é, ao contrário, a cidade perdida mas viva no coração dos exilados. 2. Nas palavras do Salmista estão incluídos a mão, a língua, o paladar, a voz, as lágrimas. A mão é indispensável para quem toca a harpa: mas agora ela está paralisada (cf. v. 5) pela dor, também porque as harpas estão penduradas nos salgueiros. A língua é necessária ao cantor, mas agora está colada ao paladar (cf. v. 6). Em vão raptores babilónios "pediam de alegria" (v. 3).e de Os espectáculo. "cânticos de Sião"ossão "cânticos do Senhor" (vv.canções... 3-4), nãocanções são canções folclóricas Só na liturgiae na liberdade de um povo podem elevar-se ao céu. 3. Deus, que é o último arbítrio da história, saberá compreender e acolher segundo a sua justiça também o grito das vítimas, além dos acentos ásperos que por vezes ele assume.
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Gostaríamos de nos confiar a santo Agostinho para uma ulterior meditação sobre o nosso Salmo. Nela o grande Padre da Igreja introduz uma nota surpreendente e de grande actualidade: ele sabe que entre os habitantes da Babilónia se encontram pessoas que se comprometem pela paz e pelo bem da comunidade, mesmo se não partilham a fé bíblica, isto é, se não conhecem a esperança da Cidade eterna pela qual nós aspiramos. Eles levam consigo uma centelha de desejo do desconhecido, do maior, do transcendente, de uma verdadeira redenção. E ele diz que também entre os perseguidores, entre os não-crentes, existem pessoas com esta centelha, com uma espécie de fé, de esperança, na medida que lhes é possível nas circunstâncias em que vivem. Com esta fé, também numa realidade desconhecida, eles estão realmente a caminho rumo à verdadeira Jerusalém, a Cristo. E com esta abertura de esperança também para os babilónios como lhes chama Agostinho para os que não conhecem Cristo, nem sequer Deus, e contudo desejam o desconhecido, o eterno, ele adverte-nos também a nós que não nos fixemos simplesmente nas coisas materiais do momento presente, mas que perseveremos no caminho para Deus. Só com esta esperança maior podemos também, do modo justo, transformar este mundo. Santo Agostinho diz isto com as seguintes palavras: "Se somos cidadãos de Jerusalém... e devemos viver nesta terra, na confusão do mundo presente, na actual Babilónia, onde não habitamos como cidadãos mas somos presos, é preciso que quanto foi dito pelo Salmo não só o cantemos mas vivamos: o que se faz com uma aspiração profunda do coração, plena e religiosamente desejoso da cidade eterna". E acrescenta em relação à "cidade terrestre, chamada Babilónia": ela "tem pessoas que, movidas pelo amor por ela, se esforçam para garantir a paz paz temporal sem alimentar no coração outra esperança, aliás repondo nisto toda a sua alegria, sem se promover outra coisa. E nós vemo-los fazer todos os esforços para se tornarem úteis à sociedade terrena. Mas, se se esforçam com consciência pura nestas tarefas, Deus não permitirá que pereçam com Babilónia, tendo-os predestinado para serem cidadãos de Jerusalém: mas contanto que, vivendo na Babilónia, não tenham a ambição da soberba, a pompa caduca e a arrogância irritante... Ele vê a sua disponibilidade e mostrar-lhes-á a outra cidade, pela qual devem verdadeiramente suspirar e orientar todos os esforços" (Exposições sobre os Salmos, 136, 1-2; Nova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma 1977, pp. 397.399). E pedimos ao Senhor que desperte em todos nós este desejo, esta abertura a Deus, e que também os que não conhecem Deus, e os que não conhecem Cristo possam ser tocados pelo seu amor, para que todos juntos nos coloquemos em peregrinação para a Cidade definitiva e a luz desta Cidade possa surgir também neste nosso tempo e no nosso mundo.
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Quarta-feira, 7 de Dezembro 2005 Salmo 137: Acção de graças 1. Colocado pela tradição judaica sob o patrocínio de David, embora provavelmente tenha surgido numa época sucessiva, o hino de acção de graças que agora escutámos, e que constitui o Salmo 137, abre-se com um cântico pessoal do orante. Ele eleva a sua voz no âmbito da assembleia do templo ou, pelo menos, tendo como referência o Santuário de Sião, sede da presença do Senhor e do seu encontro com o povo dos fiéis. De facto, o Salmista confessa que "se prostrar em direcção do santuário" hierosolimitano (cf. v. 2): ali ele canta diante de Deus que está nos céus com a sua corte de anjos, mas que também está à escuta no espaço terreno do templo (cf. v. 1). O orante tem a certeza de que o "nome" do Senhor, isto é, a sua realidade pessoal viva e operante, e as suas virtudes da fidelidade e da misericórdia, sinais da aliança com o seu povo, são a base de qualquer confiança e esperança (cf. v. 2). 2. O olhar dirige-se então, por um momento, para o dia do sofrimento: então, o grito do fiel angustiado tinha respondido à voz divina. Ela tinha infundido coragem na alma perturbada (cf. v. 3). O srcinal hebraico fala literalmente do Senhor que "agita a força na alma" do justo oprimido: é como se fosse a irrupção de um vento impetuoso que elimina as hesitações e os receios, imprime uma energia vital nova, faz florescer a fortaleza e a confiança. Depois desta promessa aparentemente pessoal, o Salmista alarga o olhar ao mundo e imagina que o seu testemunho envolve todo o horizonte: "todos os reis da terra", numa espécie de adesão universalista, se associam ao orante hebreu num louvor comum em honra da grandeza e do poder soberano do Senhor (cf. vv. 4-6). 3. O conteúdo deste louvor coral que se eleva de todos os povos, já mostra a futura Igreja universal. Este conteúdo tem como primeiro tema a "glória" e os "caminhos do Senhor" (cf. v. 5), isto é, os seus projectos de salvação e a sua revelação. Assim, descobre-se que Deus é certamente "excelso" e transcendente, mas "olha para o humilde" com afecto, enquanto afasta do seu rosto o soberbo em sinal de rejeição e de julgamento (cf. v. 6). Como proclamava Isaías: "Pois assim diz Aquele que está no alto, lá em cima, Aquele que mora na eternidade e que tem um nome santo: Eu moro na Altura santa, mas estou com os oprimidos e humilhados, para reanimar o espírito dos humilhados e reanimar o coração dos oprimidos" (57, 15). Por conseguinte, Deus escolhe declarar-se em defesa dos débeis, das vítimas, dos últimos: isto é dado a conhecer a todos os reis, porque sabemos qual deve ser a sua posição ao governar as nações. Naturalmente isto é dito não só aos reis e a todos os governos, mas a todos nós, porque também nós 141
devemos saber que escolha fazer, qual é a opção: declarar-nos com os humildes, com os últimos, com os pobres e fracos. 4. Depois desta interpelação a nível mundial dos responsáveis das nações, não só daquele tempo, mas de todos os tempos, o orante volta ao louvor pessoal (cf. Sl 137, 7-8). Com um olhar que se orienta para o futuro da sua vida, ele implora uma ajuda de Deus também para as provações que a existência ainda apresentar. E todos nós rezamos assim com este orante daquele tempo. Fala-se de modo sintético da "ira dos inimigos" (v. 7), uma espécie de símbolo de todas as hostilidades que pode apresentar-se ao justo durante o seu caminho na história. Mas ele sabe, e com ela também nós sabemos, que o Senhor jamais o abandonará e estenderá a sua mão para o amparar e guiar. O fim do Salmo é, então, uma última apaixonada profissão de confiança em Deus, cuja bondade é infinita: Ele "não abandonará a obra das tuas mãos", isto é, da sua criatura (v. 8). E nesta confiança, nesta certeza da bondade de Deus, devemos viver também nós. Devemos ter a certeza de que, por mais pesadas e tormentosas que sejam as provas que nos esperam, nós jamais seremos abandonados, nunca agiremos fora das mãos do Senhor, aquelas mãos que nos criaram e que agora nos acompanham no itinerário da vida. Como confessará são Paulo, "Deus, que em vós começou esse bom trabalho, vai continuá-lo até que seja concluído" (Fl 1, 6). 5. Assim, também nós rezamos com o Salmo de louvor, de acção de graças e de confiança. Desejamos continuar a fazer correr este fio de louvor hínico através do testemunho de um cantor cristão, o grande Efrém Sírio (século IV), autor de textos de extraordinária fragrância poética e espiritual. "Por maior que seja a nossa admiração por ti, ó Senhor, / a tua glória supera o que os nossos lábios podem expressar", canta Efrém num hino (Hinos sobre a Virgindade, 7: A harpa do Espírito, Roma 1999, p. 66), e noutro: "Louvor a ti, para quem todas as coisas são fáceis, / porque tu és omnipotente" (Hinos sobre a Natividade, 11: ibidem, p. 48), e este é o último motivo da nossa confiança, que Deus tem o poder da misericórdia e usa o seu poder para a misericórdia. Por fim, mais uma citação: "Louvor a ti de todos os que compreendem a tua verdade" (Hinos sobre a Fé, 14: ibidem, p. 27). PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 14 de Dezembro 2005 Salmo 138, 1-12: Deus tudo vê 1. Em duas etapas diferentes a Liturgia das Vésperas cujos Salmos e Cânticos estamos a meditar propõe-nos a leitura de um hino sapiencial de límpida beleza e de forte impacto emotivo, o Salmo 138. Temos hoje diante de nós a primeira parte da composição (cf. vv. 1-12), isto é, as primeiras duas estrofes que exaltam SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
respectivamente a omnisciência de Deus (cf. vv. 1.6) e a sua omnipresença no espaço e no tempo (cf. vv. 7-12). O vigor das imagens e das expressões tem como finalidade a celebração do Criador: "Se é tanta a grandeza das obras criadas afirma Teodoro de Ciro, escritor cristão do século V quanto deve ser grande o seu Criador!" (Discursos sobre a Providência, 4: Colecção de Textos Patrísticos, LXXV, Roma 1988, p. 115). A meditação do Salmista tem sobretudo por finalidade penetrar no mistério do Deus transcendente, mas que está próximo de nós. 2. A substância da mensagem que ele nos oferece é linear: Deus tudo sabe e está presente ao lado da sua criatura, que a Ele não pode subtrair-se. Mas a sua presença não é dominante nem examinadora; sem dúvida, o seu olhar é também severo em relação ao mal, face ao qual não permanece indiferente. Contudo o elemento fundamental é o de uma presença salvífica, capaz de abraçar todo o ser e toda a história. Trata-se, na realidade, do cenário espiritual ao qual s. Paulo, falando no Areópago de Atenas, alude recorrendo à citação de um poeta grego: "Nele vivemos, nos movemos e existimos" (Act 17, 28). 3. O primeiro trecho (cf. Sl 138, 1-5), como se dizia, é a celebração da omnisciência divina: de facto, repetem-se as palavras do conhecimento como "perscrutar", "conhecer", "saber", "penetrar", "compreender" e "sabedoria". Como se sabe, o conhecimento bíblico supera o puro e simples aprender e compreender intelectivo; é uma espécie de comunhão entre conhecedor e conhecido: por conseguinte, o Senhor está em intimidade connosco, durante o nosso pensar e agir. Ao contrário, à omnipotência divina está dedicado o segundo trecho do nosso Salmo (cf. vv. 7-12). Nele descreve-se de maneira vívida e ilusória a vontade do homem de se subtrair àquela presença. Todo o espaço é percorrido: antes de tudo, está o eixo vertical "céu mundo dos mortos" (cf. v. 8), que é substituído pela dimensão horizontal, a que vai da aurora, isto é, do oriente, e chega até "à extremidade do mar" Mediterrâneo, o Ocidente (cf. v. 9). Todos os âmbitos do espaço, também o mais secreto, contém uma presença activa de Deus. O Salmista continua a introduzir também a outra realidade na qual nós estamos imersos, o tempo, simbolicamente representado pela noite e pela luz, pelas trevas e pelo dia (cf. vv. 11-12). Também a obscuridade, na qual é difícil mover-se e ver, está penetrada pelo olhar e pela epifania do Senhor da existência e do tempo. A sua mão está sempre pronta a pegar na nossa para nos guiar no nosso itinerário terreno (cf. v. 10). Portanto, é uma proximidade não de julgamento que incute terror, mas de apoio e de libertação. E assim podemos compreender qual é o conteúdo último e essencial deste Salmo: é um cântico de confiança. Deus está sempre connosco. Também nas noites mais obscuras da nossa vida, não nos abandona. Também nos momentos mais difíceis, permanece presente. E também na última noite, na última solidão na qual ninguém nos pode acompanhar, na noite da morte, o Senhor não nos abandona. Acompanha-nos também nesta última solidão da noite da morte. E por isso nós, cristãos, podemos ter confiança: nunca somos deixados sós. A bondade de Deus está sempre connosco. 143
4. Começámos com uma citação do escritor cristão Teodoreto de Ciro. Concluimos confiando-nos ainda a ele e ao seu IV Discurso sobre a Providência divina, porque em última análise este é o tema do Salmo. Ele detém-se no v. 6 no qual o orante exclama: "É maravilhosa para mim a tua sabedoria, muito alta, e eu não a compreendo". Teodoreto comenta aquela passagem dirigindo-se à interioridade da consciência e da experiência pessoal e afirma: "Dirigido para mim mesmo e tendo-me tornado íntimo comigo mesmo, afastando-me dos clamores externos, quis imergir-me na contemplação da minha natureza... Reflectindo sobre estas coisas e pensando na harmonia entre a natureza mortal e a imortal, sinto-me dominado por tanto prodígio e, não conseguindo contemplar este mistério, reconheço a minha derrota; e ainda mais, enquanto proclamo a vitória da sabedoria do Criador e a ele canto hinos de louvor, grito: "É maravilhosa para mim a tua sabedoria, demasiado alta, e eu não a compreendo"" (Colecção de Textos Patrísticos, LXXV, Roma 1988, pp. 116.117).
PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 28 de Dezembro 2005 Salmo 138, 18. 23-24: Sonda-me, ó Deus e conhece o meu coração! 1. Nesta Audiência geral da quarta-feira da Oitava de Natal, festa litúrgica dos Santos Inocentes, retomamos a nossa meditação sobre o Salmo 138, cuja leitura orante é proposta pela Liturgia das Vésperas em duas etapas distintas. Depois de ter contemplado na primeira parte (cf. vv. 1-12) o Deus omnisciente e omnipotente, Senhor da existência e da história, agora este hino sapiencial de intensa beleza e paixão indica a realidade mais alta e admirável de todo o universo, o homem, definido como o "prodígio" de Deus (cf. v. 14). Trata-se, na realidade, de um tema profundamente em sintonia com o clima natalício que estamos vivendo nestes dias, em que celebramos o grande mistério do Filho de Deus que se fez homem, aliás, que se fez Menino para a nossa salvação. Depois de ter considerado o olhar e a presença do Criador, que abrangem todo o horizonte cósmico, na segunda parte do Salmo que hoje meditamos, os olhos amáveis de Deus voltam-se para o ser humano, considerado na sua srcem plena e completa. Ele ainda está "sem forma" no útero materno: o vocábulo hebraico usado é entendido por alguns estudiosos da Bíblia remissivo ao "embrião", descrito como uma pequena realidade oval, envolvida em(cf. si mesma, amoroso dos olhos de Deus v. 16). mas sobre a qual já se coloca o olhar benévolo e 2. Para definir a acção divina dentro do ventre materno, o Salmista recorre às clássicas imagens bíblicas, enquanto a cavidade geradora da mãe é comparada com as "profundezas da terra", ou seja, com a vitalidade constante da grande mãe-terra (cf. v. 15). Antes de mais nada, há o símbolo do oleiro e do escultor que "forma", plasma a sua criação artística, a sua obra-prima, exactamente como se dizia no livro da Génesis, para a criação do homem: "O Senhor plasmou o homem com pó do solo" ( Gn 2, 7). A seguir, SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
há o símbolo "têxtil" que evoca a delicadeza da pele, da carne, dos nervos "tecidos" no esqueleto ósseo. Também Job evoca com força estas e outras imagens para exaltar aquela obra-prima que é a pessoa humana, apesar de ser golpeada e ferida pelo sofrimento: "As tuas mãos formaram e modelaram todo o meu ser... Lembra-te de que me fizeste do barro... Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? Revestiste-me de pele e carne, e teceste-me de ossos e nervos" (Job 10, 8-11). 3. Extremamente poderosa é, no nosso Salmo, a ideia de que o Deus daquele embrião ainda "sem forma" já veja todo o futuro: no livro da vida do Senhor já estão inscritos os dias que aquela criatura viverá e cumulará de obras durante a sua existência terrena. Assim, volta a emergir a grandeza transcendente do conhecimento divino, que não abraça somente o passado e o presente da humanidade, mas também o arco ainda escondido do futuro. Mas manifesta-se também a grandeza desta pequena criatura humana nascitura, formada pelas mãos de Deus e rodeada pelo seu amor: um elogio bíblico do ser humano, desde o primeiro momento da sua existência. Agora, gostaríamos de confiar-nos à reflexão que São Gregório Magno, nas suas Homilias sobre Ezequiel, teceu sobre a frase do Salmo, que antes comentámos: "Os teus olhos viam as minhas acções e eram todas escritas no teu livro" (v. 16). Sobre estas palavras o Pontífice e Padre da Igreja edificou uma meditação srcinal e delicada, relativa àqueles que, na Comunidade cristã, são mais frágeis no seu caminho espiritual. E diz também que os indivíduos frágeis na fé e na vida cristã fazem parte da arquitectura da Igreja. E continua: "Contudo, nela são incluídos... em virtude da boa vontade. É verdade, são imperfeitos e pequenos, mas naquilo que conseguem compreender, amam a Deus e o próximo e não deixam de realizar o bem que podem. Embora ainda não alcancem os dons espirituais, a ponto de abrir a alma à acção perfeita e à contemplação ardente, todavia não renunciam ao amor a Deus e ao próximo, na medida em que são capazes de o compreender. Por isso, ainda que ocupem um lugar menos importante, é verdade que também eles contribuem para a edificação da Igreja porque, embora sejam inferiores por doutrina, profecia, graça dos milagres e desprezo completo pelo mundo, todavia estão alicerçados sobre o fundamento do temor e do amor, onde encontram a própria solidez" (2, 3, 12-13, Obras de Gregório Magno, III/2, Roma 1993, pp. 79.81). Assim, a mensagem de São Gregório torna-se uma grande consolação para todos nós que, frequentemente, progredimos com dificuldade ao longo do caminho da vida espiritual e eclesial. O Senhor conhece todos nós e circunda-nos com o seu amor. PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 5 de novembro de 2003 Salmo 140: A oração em tempo de perigo 1. Nas catequeses anteriores lançamos um olhar de conjunto à estrutura e ao valor da Liturgia das Vésperas, a grande oração eclesial da tarde. Hoje pretendemos 145
analisar o seu interior. Será como realizar uma peregrinação naquela espécie de "terra santa" constituída por Salmos e Cânticos. Deter-nos-emos perante cada uma daquelas orações poéticas, que Deus selou com a sua inspiração. São as invocações que o próprio Senhor deseja que lhe sejam dirigidas. Por isso, ele gosta de as ouvir, sentindo vibrar nelas o coração dos seus amados filhos. Iniciaremos com o Salmo 140, que abre as Vésperas do domingo da primeira das quatro semanas em que, depois do Concílio, foi articulada a oração nocturna da Igreja. 2. "Suba até Vós como incenso, a minha oração, as minhas mãos estendidas como a oferenda da tarde". O v. 2 deste Salmo pode ser considerado o sinal distintivo de todo o cântico e a justificação evidente do facto de ele ter sido colocado dentro da Liturgia das Vésperas. A ideia expressa reflecte o espírito da teologia profética que une intimamente o culto à vida, a oração à existência. A mesma oração feita com um coração puro e sincero torna-se um sacrifício oferecido a Deus. Todo o ser da pessoa que reza se torna um acto sacrifical, aludindo assim a quanto sugere São Paulo quando convida os cristãos a oferecer os seus corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o sacrifício espiritual que Ele aceita (cf. Rm 12, 1). As mãos elevadas na oração são uma ponte de comunicação com Deus, assim como a fumaça que sobe como perfume suave da vítima durante o rito sacrifical vespertino. 3. O Salmo continua assumindo a tonalidade de uma súplica, que nos foi transmitida por um texto que no srcinal hebraico apresenta não poucas dificuldades e obscuridões interpretativas (sobretudo nos vv. 4-7). Contudo, o sentido geral pode ser identificado e transformado em meditação e oração. Antes de mais, o orante suplica ao Senhor para que impeça que os seus lábios (cf. v. 3) e os sentimentos do seu coração sejam atraídos e seduzidos pelo mal e o induzam a realizar "acções criminosas" (cf. v. 4). De facto, palavras e obras são a expressão da opção moral da pessoa. É fácil que o mal exerça tanta atracção, a ponto de estimular o fiel a saborear "as delícias" que os pecadores podem oferecer, sentando-se à sua mesa, ou seja, participando das suas acções pervertidas. O Salmo adquire quase o sabor de um exame de consciência, ao qual segue o compromisso de escolher sempre os caminhos de Deus. 4. Mas a este ponto, o orante tem um sobressalto que o faz sair de uma declaração apaixonada de recusa de qualquer cumplicidade com o ímpio: ele não deseja absolutamente ser hóspede do ímpio, nem permitir que o óleo perfumado reservado aos convidados de honra (cf. Sl 22, 5) confirme a sua conivência com quem pratica o mal (cf. Sl 140, 5). A fim de exprimir com maior veemência o seu afastamento radical do malvado, o Salmista proclama em relação a ele uma condenação indignada, expressa com o recurso colorido a imagens de juízo veemente. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
Trata-se de uma das típicas imprecações do Saltério (cf. Sl 57 e 108), que têm por finalidade afirmar de maneira plástica e até pitoresca a ostilidade ao mal, a opção pelo bem e a certeza de que Deus intervém na história com o seu juízo de condenação severa da injustiça (cf. vv. 6-7). 5. O Salmo termina com uma última invocação confiante (cf. vv. 8-9): trata-se de um cântico de fé, de gratidão e de alegria, na certeza de que o fiel não será envolvido no ódio que os pervertidos lhe reservam e não cairá na cilada que lhe preparam, depois de ter notado a sua decidida opção pelo bem. Desta forma, o justo poderá superar incólume qualquer engano, como está escrito noutro Salmo: "A nossa vida escapou como um pássaro do laço do caçador; ao romper-se o laço nós pudemos escapar" (Sl 123, 7). Concluimos a nossa leitura do Salmo 140 voltando à imagem inicial, a da oração da noite como sacrifício agradável a Deus. Um grande mestre espiritual que viveu entre o IV e o V século, João Cassiano, o qual, provindo do Oriente transcorreu na Gália meridional a última parte da sua vida, relia aquelas palavras em chave cristológica: "Nelas, de facto, podemos compreender de modo mais espiritual uma alusão ao sacrifício da noite, realizado pelo Senhor e Salvador durante a sua última ceia e entregue aos apóstolos, quando ele sancionava o início dos santos mistérios da Igreja, ou (podemos entrever uma menção) ao próprio sacrifício que ele, no dia seguinte, ofereceu à noite, em si mesmo, com a elevação das próprias mãos, sacrifício que se prolongará até ao fim dos séculos para a salvação do mundo inteiro" (As instituições cenobíticas, Abadia de Praglia, Pádua 1989, pág. 92). PAPA JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA
Quarta-Feira 12 de Novembro de 2003 Salmo 141: "Vós sois o meu refúgio" 1. Na tarde do dia 3 de Outubro de 1226, São Francisco de Assis estava prestes a falecer: a sua última oração foi precisamente a recitação do Salmo 141, que acabamos de ouvir. São Boaventura recorda que Francisco "irrompeu com a exclamação do Salmo: "Em alta voz clamo o Senhor, em alta voz imploro ao Senhor" e recitou-o até ao versículo final: "os justos farão círculo à minha volta porque fostes bondoso para comigo"" (Leggenda Maggiore, XIV, 5, in Fonti Franciscane, Padova Assisi 1980, p. 958). O Salmo é uma súplica intensa, marcada por uma série de verbos de imploração dirigidos ao Senhor: "clamo", "imploro ao Senhor", "ponho diante d'Ele a minha inquietação", "exponho-lhe a minha angústia" (vv. 2-3). A parte central do Salmo está dominada pela confiança em Deus que não é indiferente ao sofrimento do fiel (cf. vv. 4-8). Com esta atitude São Francisco encaminhou-se rumo à morte. 2. Deus é interpelado com o "Vós", como uma pessoa que dá segurança: "Vós sois o meu refúgio" (v. 6). "Sois o meu quinhão na terra", isto é, o itinerário da minha 147
vida, um percurso marcado pela opção pela justiça. Mas naquele percurso, os ímpios armaram uma cilada (cf. v. 4): é a imagem típica que se deduz dos cenários de caça e que é frequente nas súplicas dos Salmos para indicar os perigos e as insídias às quais o justo é submetido. Perante este pesadelo, o Salmista lança quase um sinal de alerta para que Deus veja a sua situação e intervenha: "Olho para a minha direita e vejo" (v. 5). Mas, na tradição oriental, à direita de uma pessoa colocava-se o defensor ou a testemunha favorável em sede processual, ou então, no caso de guerra, o guarda-costas. Por conseguinte, o fiel está só e abandonado, "mais ninguém o reconhece". Por isso ele exprime uma constatação angustiante: "não há quem se importe de mim; não tenho onde refugiar-me" (v. 5). 3. Imediatamente a seguir, um brado revela a esperança que habita o coração do orante: agora a única protecção e proximidade eficaz é a de Deus: "Vós sois o meu refúgio, sois o meu quinhão na terra dos vivos" (v. 6). O "quinhão" ou "porção", na linguagem bíblica é o dom da terra prometida, sinal do amor divino em relação ao seu povo. Agora, o Senhor permanece o último e o único fundamento sobre o qual basearse, a única possibilidade de vida, a esperança suprema. O Salmista invoca-o com insistência, porque está "extremamente consumido" (v. 7). Suplica-o para que intervenha para romper as cadeias da sua prisão de solidão e de hostilidade (cf. v. 8) e arrancá-lo do abismo da provação. 4. Como noutros Salmos de súplica, a perspectiva final é a de uma acção de graças, que será oferecida a Deus depois do atendimento: "Tirai-me desta prisão, para que dê graças ao Vosso nome" (ibid.). Quando tiver sido salvo, o fiel irá agradecer ao Senhor no meio da assembleia litúrgica (cf. ibid.). Circundá-lo-ão os justos, que sentirão a salvação do irmão como um dom feito também a eles. Esta atmosfera também deveria exalar nas celebrações cristãs. O sofrimento do indivíduo deve encontrar eco no coração de todos; do mesmo modo, a alegria de cada um deve ser vivida por toda a comunidade orante. De facto, "como é bom, como é agradável viverem os irmãos em unidade (Sl 132, 1) e o Senhor Jesus disse: "Pois onde estiverem reunidos, em Meu nome, dois ou três, Eu estou no meio deles" (Mt 18, 20). 5. A tradição cristã aplicou o Salmo 141 a Cristo perseguido e sofredor. Nesta perspectiva, a meta luminosa da súplica sálmica transfigura-se num sinal pascal, com base no êxito glorioso da vida de Cristo e do nosso destino de ressurreição com ele. Afirma isto Santo Hilário de Poitiers, famoso Doutor da Igreja do quarto século, no seu Tratado sobre os Salmos.
Ele comenta a tradução latina do último versículo do Salmo, que fala de recompensa para o orante e de expectativa dos justos: "Me expectant iusti, donec retribuas mihi". Santo Hilário explica: "O Apóstolo ensina-nos qual a recompensa que o Pai deu a Cristo: "Deus exaltou-o e deu-lhe o nome que está acima de qualquer nome; para que, no nome de Jesus, todos os joelhos se dobrem nos céus, na terra e sob a terra; e todos os lábios proclamem que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai" (Fl 2, 9-11). A recompensa é esta: ao corpo, que assumiu, é oferecida a eternidade da glória do Pai. SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
O significado da expectativa dos justos, é-nos ensinado pelo próprio Apóstolo, quando diz: "Nós, porém, somos cidadãos do Céu e de lá esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo miserável, tornando-o conforme ao Seu corpo glorioso" (Fl 3, 31-21). Com efeito, os justos esperam-no para que os recompense, isto é, para que os conforme com a glória do seu corpo, que é abençoado por toda a eternidade. Amém!" (PL 9, 833-837). PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 9 de julho de 2003
Salmo 142: A oração na tribulação Queridos irmãos e irmãs,
1. Acaba de ser proclamado o Salmo 142, o último dos chamados "Salmos penitenciais", na série de sete súplicas distribuídas no Saltério (cf. 6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142). A tradição cristã utilizou-os todos para invocar do Senhor o perdão dos pecados. O texto que hoje queremos aprofundar era particularmente caro a São Paulo, que nele reconheceu uma pecaminosidade radical em cada criatura humana: "Nenhum ser vivo é justo na vossa presença (ó Senhor)" (v. 2). Esta frase é vista pelo Apóstolo como a base do seu ensinamento sobre o pecado e a graça (cf.Gl 2, 16; Rm 3, 20). A Liturgia das Laudes propõe-nos esta súplica como um propósito de fidelidade e pedido de socorro divino no despontar do dia. Com efeito, o Salmo faz-nos dizer a Deus: "Fazei-me sentir pela manhã a vossa bondade, porque em Vós confio" (v. 8). 2. O Salmo começa com uma intensa e insistente súplica dirigida a Deus, fiel às promessas de salvação oferecidas ao povo (cf. v. 1). O orante reconhece que não tem qualquer mérito para fazer valer e, portanto, pede humildemente a Deus que não o julgue (cf. v. 2). Em seguida, ele fala sobre a situação dramática, semelhante a um pesadelo mortal, em que se está a debater: o inimigo, que é a representação do mal da história e do mundo, levou-o até ao limiar da morte. Com efeito, eis que está prostrado no pó da terra, que já é uma imagem do sepulcro; eis as trevas, que constituem uma negação da luz, sinal divino de vida; eis, por fim, "os mortos de há muito tempo", ou seja, os que já passaram (cf. v. 3), entre os quais ele parece ter sido relegado. 3. A própria existência do Salmista está ameaçada: já lhe falta a respiração e o seu coração parece um bloco de gelo, incapaz de continuar a bater (cf. v. 4). O fiel, prostrado por terra e espezinhado, só tem as mãos livres, que se elevam para o céu num gesto que é, ao mesmo tempo, de pedido de ajuda e de procura de socorro (cf. v. 6). Efectivamente, o seu pensamento corre ao passado, em que Deus realizou prodígios (cf. v. 5). 149
Esta centelha de esperança aquece o gelo do sofrimento e da provação, em que o orante se sente mergulhado, prestes a desfalecer (cf. v. 7). Em todo o caso, a tensão é sempre forte; mas um raio de luz parece vislumbrar-se no horizonte. Assim, passamos à outra parte do Salmo (cf. vv. 7-11). 4. Ela começa com uma nova e urgente súplica. Sentindo que a vida quase lhe escapa, o fiel lança o seu clamor a Deus: "Senhor, apressai-vos a responder-me, [porque] estou a ponto de desfalecer" (v. 7). Aliás, ele teme que Deus tenha escondido o seu Rosto, afastando-se, abandonando-o e deixando sozinha a sua criatura. O desaparecimento do Rosto divino faz com que o homem caia na desolação, aliás, na própria morte, porque o Senhor é a fonte da vida. É precisamente neste tipo de fronteira extrema que floresce a confiança no Deus que não abandona. O orante multiplica as suas invocações, sustentando-as com declarações de confiança no Senhor: "Porque em Vós confio... porque é para Vós que elevo a minha alma... é em Vós que me refugio... porque Vós sois o meu Deus...". Ele pede para ser salvo dos seus inimigos (cf. vv. 8-10) e libertado da angústia (cf. v. 11), mas faz continuamente um pedido, que manifesta uma profunda aspiração espiritual: "Ensinai-me a cumprir a vossa vontade, porque Vós sois o meu Deus" (v. 10 a; cf. vv. 8 b e 10 b). Temos o dever de fazer nosso este pedido admirável. Devemos compreender que o nosso maior bem é a união da nossa vontade à vontade do nosso Pai celestial, porque é somente assim que podemos receber em nós todo o seu amor, que nos traz a salvação e a plenitude da vida. Se não for acompanhada de um forte desejo de docilidade a Deus, a confiança nele não será autêntica. O orante está consciente disto e, por conseguinte, exprime este desejo. Então, a sua é uma verdadeira e própria confissão de confiança em Deus salvador, que tira da angústia e volta a dar o gosto da vida, em nome da sua "justiça", ou seja, da sua fidelidade amorosa e salvífica (cf. v. 11). Partindo de uma situação mais angustiante do que nunca, a oração chegou à esperança, à alegria e à luz, graças a uma adesão sincera a Deus e à sua vontade, que é uma vontade de amor. Este é o poder da oração, geradora de vida e de salvação. 5. Fixando o olhar na luz matutina da bondade (cf. v. 8), no seu comentário aos sete Salmos penitenciais, São Gregório Magno descreve desta maneira aquele alvorecer de esperança e de júbilo: "É o dia iluminado por aquele sol verdadeiro, que não conhece ocaso, que as nuvens não tornam tenebroso e que a neblina não obscurece... Quando aparecer Cristo, nossa vida, e começarmos a ver Deus abertamente, então desaparecerá todo o vestígio das trevas, esvaecendo-se toda a nuvem da ignorância, dissipando-se toda a névoa da tentação... Esse será o dia luminoso e maravilhoso, preparado para todos os eleitos por Aquele que nos tirou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho predilecto". "A manhã desse dia é a ressurreição futura... Naquela manhã resplandecerá a felicidade dos justos, aparecerá a glória, ver-se-á a alegria, quando Deus enxugar todas as lágrimas dos olhos dos santos, quando por fim for destruída a morte, quando os justos brilharem como o sol no reino do Pai". "Naquela manhã, o Senhor fará experimentar a sua misericórdia... dizendo: "Vinde, benditos de meu Pai" (Mt 25, 34). Então, tornar-se-á manifesta a misericórdia SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
de Deus que, na vida presente, a mente humana não consegue conceber. Com efeito, para aqueles que O amam, o Senhor preparou aquilo que os olhos não viram, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do homem" (PL 79, coll. 649-650). PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 11 de Janeiro 2006 Salmo 143, 1-8: Oração do Rei pela vitória e pela paz 1. O nosso itinerário no Saltério usado na Liturgia das Vésperas chega agora a um hino real, o Salmo 143, do qual foi proclamada a primeira parte: de facto, a Liturgia propõe este cântico subdividindo-o em dois momentos. A primeira parte (cf. vv. 1-8) revela de modo claro a característica literária desta composição: o Salmista recorre a citações de outros textos sálmicos, desenvolvendo-os num novo projecto de canto e oração. Precisamente porque o Salmo pertence a uma época sucessiva é fácil pensar que o rei exaltado já não tem os traços do soberano davídico, pois a realeza hebraica concluiu-se com o exílio babilónio do século VI a.C., mas representa contudo a figura luminosa e gloriosa do Messias, cuja vitória não é um acontecimento bélico-político, mas uma intervenção de libertação contra o mal. Portanto a palavra "messias" que em hebraico indica o "consagrado", como era o soberano é substituída por "Messias" por excelência que, na releitura cristã, tem o rosto de Jesus Cristo, "filho de David, filho de Abraão" (Mt 1,1). 2. O hino inicia com uma bênção, ou seja, com uma exclamação de louvor dirigida ao Senhor, celebrado com uma pequena ladainha de títulos salvíficos: ele é a rocha segura e estável, é a graça amorosa, é a fortaleza protegida, o refúgio defensivo, a libertação, o escudo que afasta qualquer ataque do mal (cf. Sl 143, 1-2). Há também a imagem marcial do Deus que adestra para a guerra o seu fiel para que saiba enfrentar as hostilidades do ambiente, os poderes obscuros do mundo. Diante do Senhor omnipotente o orante, mesmo na sua dignidade real, sente-se débil e frágil. Então ele faz uma profissão de humildade que é formulada, assim se dizia, com as palavras dos Salmos 8 e 38. De facto, ele sente que é "como um sopro", semelhante a uma sombra passageira, frágil e inconsistente, imerso no fluxo do tempo que passa, marcado pelos limites que são característicos da criatura (cf. Sl 143, 4). 3. Eis, então, a pergunta: por que é que Deus cuida e pensa nesta criatura tão miserável e caduca? A esta pergunta (v. 3) responde a grandiosa irrupção divina, a chamada teofania que é acompanhada por um cortejo de elementos cósmicos e acontecimentos históricos, orientados para celebrar a transcendência do Rei supremo do ser, do universo e da história.
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Eis os montes que fumegam em erupções vulcânicas (cf. v. 5), raios que se assemelham a setas que afugentam os inimigos (cf. v. 6), eis as "águas caudalosas" oceânicas que são símbolo do caos do qual, contudo, o rei é salvo por obra da própria mão divina (cf. v. 7). Em segundo plano permanecem os ímpios que dizem "mentiras" e "juram falso" (cf. vv. 7-8), uma representação concreta, segundo o estilo semítico, da idolatria, da perversão moral, do mal que verdadeiramente se opõe a Deus e ao seu fiel. 4. Agora nós, com a nossa meditação, deter-nos-emos inicialmente na profissão de humildade que o Salmista faz e confiar-nos-emos às palavras de Orígenes, cujo comentário ao nosso texto chegou até nós na versão latina de São Jerónimo. "O Salmista fala da fragilidade do corpo e da condição humana", porque "no que diz respeito à condição humana, o homem é uma nulidade. "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade", disse o Eclesiastes". Mas volta então a pergunta admirada e reconhecida: ""Senhor, que é o homem, para cuidares dele?"... Que grande felicidade é para o homem, conhecer o seu Criador. Nisto, nós diferenciamo-nos das feras e dos outros animais, porque sabemos que temos o nosso Criador, enquanto que eles não o sabem". Vale a pena meditar um pouco sobre estas palavras de Orígenes, que vê a diferença fundamental entre o homem e os outros animais no facto de que o homem é capaz da verdade, capaz de um conhecimento que se torna relação, amizade. É importante, no nosso tempo, que não esqueçamos Deus, juntamente com todos os outros conhecimentos que entretanto adquirimos, e são tantos! Eles tornam-se todos problemáticos, por vezes perigosos, se falta o conhecimento fundamental que dá sentido e orientação a tudo: o conhecimento de Deus Criador. Voltemos a Orígenes. Ele diz: "Não poderás salvar esta miséria que é o homem, se tu mesmo não a assumes sobre ti. "Senhor, abaixa os céus e desce". A tua ovelha perdida não se poderá curar, se não for colocada sobre os teus ombros... Estas palavras dirigem-se ao Filho: "Senhor, abaixa os céus e desce"... desceste, abaixaste os céus e estendeste lá do alto a tua mão, e muitos acreditaram em ti" (Orígenes Jerónimo, 74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, pp. 512-515). Para nós, cristãos, Deus já não é, como na filosofia precedente ao cristianismo, uma hipótese mas uma realidade, porque Deus "abaixou os céus e desceu". O céu é Ele mesmo, e desceu entre nós. Justamente Orígenes vê na parábola da ovelha perdida, que o pastor carrega sobre os ombros, a parábola da Encarnação de Deus. Sim, na Encarnação Ele desceu e assumiu sobre os ombros a nossa carne, a nós próprios. Assim o conhecimento de Deus tornou-se realidade, amizade, comunhão. Demos graças ao Senhor porque "abaixou os céus e desceu", carregou sobre os seus ombros a nossa carne e nos guia pelas estradas da nossa vida. O Salmo, tendo partido da nossa descoberta de sermos débeis e estarmos afastados do esplendor divino, chega no final a uma surpresa: ao nosso lado está o Deus-Emanuel, que para o cristão tem o rosto amoroso de Jesus Cristo, Deus que se fez homem, que se fez um de nós.
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Quarta-feira, 25 de Janeiro 2006 Salmo 143, 9-15: Oração do Rei
Amados irmãos e irmãs! 1. Concluiu-se hoje a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, durante a qual reflectimos sobre a necessidade de invocar constantemente do Senhor o grande dom da plena unidade entre todos os discípulos de Cristo. De facto, a oração contribui de maneira substancial para tornar mais sincero e rico de frutos o comum compromisso ecuménico das Igrejas e Comunidades eclesiais. Neste nosso encontro desejamos retomar a meditação sobre o Salmo 143, que a Liturgia das Vésperas nos propõe em dois tempos distintos (cf. vv. 1-8 e vv. 9-15). A tonalidade é sempre a hínica e no cenário, também neste segundo movimento do Salmo, encontra-se a figura do "Ungido", isto é, o "Consagrado" por excelência, Jesus, que atrai todos a si para fazer de todos "uma só coisa" (cf. Jo 17, 11.21). Não é por acaso que o cenário que dominará o cântico se distingue pelo bem-estar, pela prosperidade e pela paz, os típicos símbolos da era messiânica. 2. Por isso o cântico é definido "novo", palavra que na linguagem bíblica não evoca tanto a novidade exterior das palavras como a plenitude última que sela a esperança (cf. v. 9). Por conseguinte, canta-se a meta da história na qual finalmente será silenciada a voz do mal, que é descrita pelo Salmista na "mentira" e no "juramento falso", expressões destinadas a indicar a idolatria (cf. v. 11). Mas este aspecto negativo é substituído, com um espaço muito maior, pela dimensão positiva, a do novo mundo jubiloso que está para se afirmar. Este é o verdadeiro shalom, ou seja a "paz" messiânica, um horizonte luminoso que se desenvolve numa sucessão de aspectos de vida social: eles podem tornar-se também para nós um voto pelo nascimento de uma sociedade mais justa. 3. Eis antes de tudo a família (cf. v. 12), que se baseia na vitalidade da geração. Os filhos, esperança do futuro, são comparados a árvores vigorosas; as filhas são representadas como colunas sólidas que sustêm o edifício da casa, semelhantes às de um templo. Da família passa-se para a vida económica, para o campo com os seus frutos conservados depósitos agrários, com os rebanhos que pastoreiam, com os animais denos trabalho que procedem nos campos férteisespalhados (cf. vv. 13-14a). O olhar dirige-se depois para a cidade, isto é, para toda a comunidade civil que finalmente goza do dom precioso da paz e da tranquilidade pública. De facto, cessam para sempre as "brechas" que os invasores abrem nos muros urbanos durante os assaltos; terminam as "incursões", que trazem devastações e deportações e, por fim, não se ouve mais o "gemido" dos desesperados, dos feridos, das vítimas, dos órfãos, triste herança das guerras (cf. v. 14b). 153
4. Este retrato de um mundo diverso, mas possível, é confiado à obra do Messias e também à do seu povo. Todos juntos, sob a guia do Messias Cristo, devemos trabalhar para este projecto de harmonia e de paz, cessando a acção destruidora do ódio, da violência, da guerra. É preciso, contudo, fazer uma escolha declarando-se da parte do Deus do amor e da justiça. Por isso o Salmo conclui-se com as palavras: "Bem-aventurado o povo cujo Deus é o Senhor". Deus é o bem dos bens, a condição de todos os outros bens. Só um povo que conhece Deus e defende os valores espirituais e morais, pode realmente encaminhar-se rumo a uma paz profunda e tornar-se também uma força da paz para o mundo, para os outros povos. Por conseguinte, pode entoar com o Salmista o "cântico novo", cheio de confiança e de esperança. A referência espontânea é ao Pacto novo, à própria novidade que é Cristo e o seu Evangelho. É quanto nos recorda Santo Agostinho. Lendo este Salmo, ele interpreta também a palavra: "Tocarei para ti na harpa de dez cordas". A harpa de dez cordas é para ele a lei compendiada nos dez mandamentos. Mas destas dez cordas, destes dez mandamentos, devemos encontrar a chave justa. E estas dez cordas dos dez mandamentos só tocam bem diz Santo Agostinho se se fizerem vibrar pela caridade do coração. A caridade é a plenitude da lei. Quem vive os mandamentos como dimensão da única caridade, canta realmente o "cântico novo". A caridade que nos une aos sentimentos de Cristo é o verdadeiro "cântico novo" do "homem novo", capaz de criar também um "mundo novo". Este Salmo convida-nos a cantar "com a harpa de dez cordas", com um coração novo, a cantar com os sentimentos de Cristo, a viver os dez mandamentos na dimensão do amor, a contribuir assim para a paz e a harmonia do mundo (cf. Exposições sobre os Salmos, 143, 16: Nova Biblioteca Agostiniana, XXVIII, Roma 1977, pp). PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 1° de Fevereiro 2006 Salmo 144, 1-13: Louvor à Majestade divina
Queridos irmãos e irmãs! 1. Fizemos agora tornar-se nossa oração o Salmo 144, um louvor jubiloso ao Senhor que é exaltado como um soberano amoroso e terno, preocupado com todas as suas criaturas. também A Liturgia propõe-nos este hino em edois momentos distintos, que correspondem aos dois movimentos poéticos espirituais do próprio Salmo. Deter-nos-emos sobre a primeira parte, que corresponde aos vv.1-13. O Salmo é elevado ao Senhor invocado e descrito como "rei" (cf. Sl 144, 1), uma representação divina que domina outros hinos sálmicos (cf. Sl 46; 92; 95-98). Aliás, o centro espiritual do nosso cântico é constituído precisamente por uma celebração intensa e apaixonada da realeza divina. Nela repete-se quatro vezes quase
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para indicar os quatro pontos cardeais do ser e da históriaapalavrahebraica malkut, "reino"(cf.Sl144,11-13). Sabemos que esta simbologia real, que será central também na pregação de Cristo, é a expressão do projecto salvífico de Deus: ele não é indiferente à história humana, aliás tem em relação a ela o desejo de realizar connosco e para nós um desígnio de harmonia e de paz. Toda a humanidade está convocada para realizar este plano, para que adira à vontade salvífica divina, uma vontade que se estende a todos os "homens", a "cada geração" e a "todos os séculos". Uma acção universal, que arranca o mal do mundo e nele instaura a "glória" do Senhor, isto é, a sua presença pessoal eficaz e transcendente. 2. Rumo a este coração do Salmo, colocado precisamente no centro da composição, dirige-se o louvor orante do Salmista, que se faz voz de todos os fiéis. E deveria ser hoje a voz de todos nós. De facto, a oração bíblica mais alta é a celebração das obras de salvação que revelam o amor do Senhor em relação às suas criaturas. Continua-se a exaltar neste Salmo "o nome" divino, isto é, a sua pessoa (cf.vv. 1-2), que se manifesta no seu agir histórico: fala-se precisamente de "obras", "maravilhas", "proezas", "poder", "grandeza", "justiça", "paciência", "misericórdia", "graça", "bondade" e "ternura". É uma espécie de oração litânica que proclama a entrada de Deus nas vicissitudes humanas para levar toda a realidade criada a uma plenitude salvífica. Nós não estamos à mercê de forças obscuras, nem somos solitários com a nossa liberdade, mas estamos confiados à acção do Senhor poderoso e amoroso, que tem em relação a nós um desígnio, um "reino"para instaurar (cf. v.11). 3. Este "reino" não é feito de poder e de domínio, de triunfo e de opressão, como infelizmente muitas vezes acontece com os reinos terrenos, mas é a sede de uma manifestação de piedade, de ternura, de bondade, de graça, de justiça, como se recorda várias vezes no fluxo dos versículos que contêm o louvor. A síntese deste retrato divino encontra-se no v. 8: o Senhor é "lento para a ira e rico em misericórdia". São palavras que reevocam a auto-apresentação que o próprio Deus fizera de si no Sinai, onde tinha dito: "Senhor! Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade" (Êx 34, 6). Temos aqui uma preparação da profissão de fé de s. João, o Apóstolo, em relação a Deus, dizendo-nos simplesmente que Ele é amor: "Deus caritas est" (cf. 1 Jo 4, 8.16). 4. Além destas bonitas palavras, que nos mostram um Deus "lento para a ira e rico em misericórdia", sempre disposto a perdoar e a ajudar, a nossa atenção fixa-se também versículo 9: "O Senhor é bom uma para palavra com todos, a sua ternura todas as no suasbonito obras". Uma palavra para meditar, de conforto, uma repassa certeza que Ele dá à nossa vida. Em relação a isto, s. Pedro Crisólogo (380 450 ca.) exprime-se assim no Segundo discurso sobre o jejum: ""Grandiosas são as obras do Senhor": mas esta grandeza que vemos na grandeza da criação, este poder é superado pela grandeza da misericórdia. De facto, tendo dito o profeta: "São grandes as obras de Deus", noutra passagem acrescentou: "A sua misericórdia é superior a todas as suas obras". A misericórdia, irmãos, enche o céu, enche a terra... Eis por que a grande, generosa, única, misericórdia de Cristo, que reservou qualquer julgamento para um só dia, designou todo 155
o tempo do homem à trégua da penitência... Eis por que se precipita totalmente para a misericórdia o profeta que não tinha confiança na própria justiça: "Tende piedade de mim, ó Deus diz pela tua grande misericórdia" (Sl 50, 3)" (42, 4-5: Sermões 1-62 bis, Escritores da Área Santambrosiana, 1, Milão-Roma 1996, pp. 299.301). E assim dizemos também nós ao Senhor: "Tem piedade de mim, ó Deus, tu que és rico em misericórdia". PAPA BENTO XVI AUDI ÊNCIA GER AL
Quarta-feira, 8 de Fevereiro 2006 Salmo 144, 14-21: O teu reino é um reino eterno 1. No seguimento da Liturgia que o divide em duas partes, voltamos a falar sobre o Salmo 144, um admirável cântico em honra do Senhor, rei amoroso e atento às suas criaturas. Queremos agora meditar a segunda parte na qual o Salmo foi dividido: são os versículos 14-21 que retomam o tema fundamental do primeiro movimento do hino. Nela eram exaltadas a piedade, a ternura, a fidelidade e a bondade divina que se alargam a toda a humanidade, envolvendo todas as criaturas. Agora o Salmista orienta a sua atenção para o amor que o Senhor dedica de modo particular ao pobre e frágil. Por conseguinte, a realeza divina não é indiferente nem altiva como por vezes pode acontecer na prática do poder humano. Deus exprime a sua realeza ao inclinar-se sobre as criaturas mais frágeis e indefesas. 2. De facto Ele é antes de tudo um pai que "ergue todos os que caem" e eleva todos os que caíram na poeira da humilhação (cf. v. 14). Por conseguinte, os seres vivos tendem para o Senhor quase como mendigos famintos e Ele oferece, como um pai amoroso, o alimento que lhes é necessário para viver (cf. v. 15). Floresce a este ponto nos lábios do orante a profissão de fé nas duas qualidades divinas por excelência: a justiça e a santidade. "O Senhor é justo em todos os seus caminhos, e misericordioso em todas as suas obras" (v. 17). Temos em hebraico dois adjectivos típicos para ilustrar a aliança que existe entre Deus e o seu povo: saddiq e hasid. Eles expressam a justiça que quer salvar e libertar do mal e a fidelidade que é sinal da grandeza amorosa do Senhor. 3. O Salmista coloca-se da parte dos beneficiados que são definidos com várias expressões: são palavras que constituem, na prática, uma representação do verdadeiro crente. Ele "invoca" o Senhor na oração confiante, "procura-o" na vida "sinceramente" (cf. v. 18), "teme" o seu Deus, respeitando a sua vontade e obedecendo à sua palavra (cf. v. 19), mas sobretudo "ama-o", com a certeza de ser ouvido sob o manto da sua protecção e da sua intimidade (cf.v. 20).
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A última palavra do Salmista é, então, a mesma com a qual tinha aberto o seu hino: é um convite a louvar e a bendizer ao Senhor e ao seu "nome", isto é, à sua pessoa vivente e santa que age e salva o mundo e a história. Aliás, o seu é um apelo a fazer com que ao louvor orante do fiel se associe qualquer criatura marcada pelo dom da vida: "todo o ser vivo bendiga o seu santo nome para sempre" (n. 21). É uma espécie de cântico perene que se deve elevar da terra ao céu, é a celebração comunitária do amor universal de Deus, fonte de paz, de alegria e de salvação. 4. Concluindo a nossa reflexão, voltemos àquele doce versículo que diz: "O Senhor está perto de todos os que o invocam, dos que o invocam sinceramente" (v. 18). Esta frase era particularmente querida a Barsanúfio de Gaza, um asceta falecido nos meados do século VI, interpelado com frequência pelos monges, eclesiásticos e leigos devido à sabedoria do seu discernimento. Assim, por exemplo, um discípulo que lhe expressava o desejo "de procurar as causas das diversas tentações que o tinham invadido", Barsanúfio respondia: "Irmão João, nada temas das tentações que surgiram contra ti para te provar, porque o Senhor não te deixa cair nelas. Portanto, quando tiveres uma destas tentações, não te preocupes a perscrutar de que se trata, mas grita o nome de Jesus: "Jesus, ajuda-me". E Ele ouvirte-á porque "está perto de todos os que o invocam". Não desanimes, mas corre com ardor e alcançarás a meta, em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Barsanúfio e João de Gaza, Epistolário, 39: Colecção de Textos Patrísticos, XCIII, Roma 1991, p. 109). E estas palavras do antigo Padre são válidas também para nós. Nas nossas dificuldades, problemas, tentações, não devemos fazer apenas uma reflexão teórica de onde provêm? mas devemos reagir positivamente: invocar o Senhor, manter um contacto vivo com o Senhor. Aliás, devemos gritar o nome de Jesus: "Jesus, ajuda-me!". E temos a certeza de que Ele nos ouve, porque está próximo de quem o procura. Não desanimemos, mas corramos com fervor como diz este Padre e alcançaremos também nós a meta da vida, Jesus, o Senhor. PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 2 de julho de 2003
Salmo 145: Feliz quem espera no Senhor 1. O Salmo 145, que acabámos de escutar, é um "aleluia", o primeiro dos cinco, que encerram a colecção do Saltério. Já aotradição hebraica utilizava este hino como cântico detoda louvor para a manhã: ele tem seu vértice na proclamação da soberania de Deus sobre a história humana. Com efeito, no final do Salmo declara-se, "que o Senhor reina para sempre" (v. 10). Daqui segue uma verdade consoladora: não estamos abandonados a nós mesmos, as vicissitudes dos nossos dias não são dominadas pelo caos ou pelo acaso, os acontecimentos não representam uma mera sucessão de actos desprovidos de qualquer sentido e meta. É a partir desta convicção que se desenvolve uma verdadeira e própria 157
profissão de fé em Deus, celebrado com uma espécie de ladainha, em que se proclamam os atributos de amor e de bondade que lhe são próprios (cf. vv. 6-9). 2. Deus é Criador do céu e da terra, é guarda fiel do pacto que o liga ao seu povo, é Aquele que age com justiça em relação aos oprimidos, dá o pão que sustém os famintos e liberta os prisioneiros. É Ele que abre os olhos aos cegos, ergue quem caiu, ama os justos, protege o estrangeiro e ajuda o órfão e a viúva. É Ele que transforma o caminho dos ímpios e reina soberano sobre todos os seres e em todas as épocas. Trata-se de doze afirmações teológicas que, com o seu número perfeito, querem exprimir a plenitude e a perfeição da acção divina. O Senhor não é um soberano distante das suas criaturas, mas faz parte da sua história, como Aquele que fomenta a justiça, pondo-se da parte dos últimos, das vítimas, dos oprimidos e dos infelizes. 3. Então, o homem encontra-se diante de uma opção radical, entre duas possibilidades opostas: por um lado, há a tentação de "confiar nos poderosos" (cf. v. 3), adoptando os seus critérios inspirados no mal, no egoísmo e no orgulho. Na realidade, este é um caminho ameaçador e traiçoeiro, é "uma senda tortuosa e uma via oblíqua" (cf. Pr 2, 15), que tem como meta o desespero. Com efeito, o Salmista recorda-nos que o homem é um ser frágil e mortal, como diz o próprio vocábulo 'adam que, em hebraico, remete para a terra, a matéria e o pó. O homem repete com frequência a Bíblia é semelhante a um edifício que se desfaz (cf. Co 12, 1-7), a uma teia de aranha que o vento pode despedaçar (cf. Job 8, 14), a um fio de relva, verdejante na aurora e seco no crepúsculo (cf. Sl 89, 5-6; 102, 15-16). Quando a morte se lhe apresenta, todos os seus projectos se dissipam e ele volta a ser pó: "Exalam o espírito e voltam ao pó, e no mesmo dia perecem os seus planos" (Sl 145, 4). 4. Porém, há também outra possibilidade diante do homem, exaltada pelo Salmista com uma bem-aventurança: "Feliz aquele que recebe a ajuda do Deus de Jacob, feliz aquele que espera no Senhor seu Deus" (v. 5). Este é o caminho da confiança no Deus eterno e fiel. O amen, que é a palavra hebraica da fé, significa precisamente um fundamentar-se na solidez inabalável do Senhor, na sua eternidade e no seu poder infinito. Mas significa, sobretudo, compartilhar as suas opções, realçadas pela profissão de fé e de louvor, como antes descrevemos. É necessário viver na adesão à vontade divina, oferecer o pão aos famintos, visitar os prisioneiros, ajudar e confortar os doentes, defender e acolher os estrangeiros, dedicar-se aos pobres e aos miseráveis. A nível concreto, é o próprio espírito das bem-aventuranças; é aderir à proposta de amor que nos salva já nesta vida e, além disso, será o objecto do nosso exame no juízo final, que selará a história. Então, seremos julgados a partir da opção de servir Cristo no faminto, no sedento, no forasteiro, na pessoados nua, no enfermo e no prisioneiro. "Todas as vezes que fizestes isto a um dos menores meus irmãos, foi a mim que o fizestes" (Mt 25, 40): então, é isto que o Senhor dirá. 5. Concluímos a nossa meditação do Salmo 145, com um ponto de reflexão, que nos é oferecido pela tradição cristã seguinte. Quando Orígenes, o grande escritor do século III, chegou ao v. 7 deste Salmo, que diz: "O Senhor dá o pão aos famintos e liberta os prisioneiros", viu nisto uma SERGIOGLEISTON.BLOGSPOT.COM
referência implícita à Eucaristia: "Temos fome de Cristo, e é Ele mesmo que nos dará o pão do céu: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje". Aqueles que falam assim, são os famintos; quem sente necessidade do pão, é o faminto". E esta fome é plenamente saciada pelo Sacramento eucarístico, em que o homem se nutre do Corpo e do Sangue de Cristo (cf. Orígenes Jerónimo, 74 omelie sul libro dei Salmi, Milão 1993, pp. 526527). PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 20 de agosto de 2003
Salmo 146: A Jerusalém reconstruída 1. O Salmo que agora foi proposto à nossa meditação constitui a segunda parte do precedente Salmo 146. As antigas traduções grega e latina, seguidas pela Liturgia, consideraram-no, ao contrário, como um cântico separado, porque o seu começo se distingue totalmente da parte anterior. Este começo tornou-se célebre também porque com frequência é usado na música latina: Lauda, Jerusalem, Dominum. Estas palavras iniciais constituem o típico convite dos hinos sálmicos para celebrar e louvar o Senhor: agora Jerusalém, personificação do povo, é interpelada para que exalte e glorifique o seu Deus (cf. 147, 12). Imediatamente se menciona o motivo pelo qual a comunidade orante deve elevar ao Senhor o seu louvor. Este é de índole histórica: foi Ele, o Libertador de Israel do exílio na Babilónia, que deu segurança ao seu povo, fortificando "os ferrolhos das portas" da cidade (cf. v. 13). Quando Jerusalém tinha sucumbido sob o assalto do exército do rei Nabucodonosor, em 586 a.C., o livro das Lamentações apresentou o próprio Senhor como juiz do pecado de Israel, enquanto demolia "os muros da filha de Sião... Jazem sob os escombros as suas portas; quebrou-as, partindo as trancas" (Lm 2, 8.9). Agora, ao contrário, o Senhor volta a ser o construtor da cidade santa; no templo reconstruído Ele abençoa de novo os seus filhos. Desta forma, é mencionada a obra realizada por Neemias (cf. Ne 3, 1-38), que tinha restabelecido os muros de Jerusalém, para que voltasse a ser um oásis de serenidade e de paz. 2. A paz, salum, de facto é imediatamente evocada, também porque está contida de modo simbólico no próprio nome Jerusalém. Já o profeta Isaias prometia à cidade: "porei por teu governador a paz, por teu magistrado a justiça" (60, 17). Mas, além de fazer reconstruir os muros da cidade, de a abençoar e de a pacificar na segurança, Deus oferece a Israel outros dons fundamentais: é o que se descreve no fim do Salmo. De facto, ali sao recordados os dons da Revelaçao, da Lei e das prescrições divinas: "Ele revela os Seus planos a Jacob, os Seus preceitos e leis a Israel" (Sl 147, 19).
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Celebra-se, assim, a eleiçao de Israel e a sua missao ùnica entre os povos: proclamar ao mundo a Palavra de Deus. É uma missao profética e sacerdotal, porque "qual é o grande povo, que possui mandamentos e preceitos tao justos como esta Lei que hoje vos apresento?" (Dt 4, 8). Através de Israel e, por conseguinte, também através da comunidade crista, ou seja, da Igreja, a Palavra de Deus pode ressoar no mundo e tornar-se norma e luz de vida para todos os povos (cf. Sl 147, 20). 3. Até agora descrevemos a primeira razao do louvor que devemos elevar ao Senhor: é uma motivaçao histórica, isto é, relacionada à acçao libertadora e reveladora a respeito do seu povo. Mas existe outra fonte de exultaçao e de louvor: ela é de indole cósmica, ou seja, relacionada à acçao criadora de Deus. A Palavra divina irrompe para dar vida ao ser. Semelhante a um mensageiro, ela corre pelos espaços imensos da terra (cf. Sl 147, 15). E imediatamente se dá um florescimento de maravilhas. Eis que chega o Inverno que é descrito nos seus fenómenos atmosféricos com uma tonalidade poética: a neve é semelhante à la devido ao seucandor, a geada com os seus pingos subtis é como a poeira do deserto (cf. v. 16), o granizo assemelha-se às migalhas de pao que caem no chao, o gelo coalha a terra e impede a vegetaçao (cf. v. 17). É um quadro invernal que convida a descobrir as maravilhas da criaçao e que será retomado numa página muito pitoresca também por um livro biblico, o de Sirácide (cf. 43, 18-20). 4. Mas eis que, sempre pela acçao da Palavra divina, volta a Primavera: o gelo derrete-se, o vento quente sopra e faz fluir a água (cf. Sl 147, 18), repetindo assim o ciclo perene e, por conseguinte, a própria possibilidade de vida para homens e mulheres. Naturalmente nao faltaram leituras metafóricas destes dons divinos. O "grao de mostarda" fez pensar no grande dom do pao eucaristico. Aliás, o importante escritor cristao do terceiro século, Origenes, identificou aquela mostarda como o sinal do próprio Cristo e, em particular, da Sagrada Escritura. Eis o seu comentário: "Nosso Senhor é o grao de mostarda que cai na terra, e que se multiplica para nós. Mas este grao de mostarda é superlativamente abundante... A palavra de Deus é superlativamente abundante, contém em si todas as delicias. Tudo o que desejas, provém da Palavra de Deus, da mesma forma que os Judeus narram: quando comiam o maná, ele, na sua boca, adquiria o gosto daquilo que cada um desejava... Assim, também na carne de Cristo, que é a palavra do ensinamento, ou seja, a compreensao das Sagradas Escrituras, quanto maior for o desejo que dela tivermos, tanto maior será o alimento que dela receberemos. Se és santo, encontras refrigério; se és pecador, encontras o tormento" Salmos, Milao 1993, págs. 543-544).(Origenes Jerónimo, 74 homilias sobre o livro dos 5. Por conseguinte, o Senhor age com a sua Palavra nao só na criaçao, mas também na história. Ele revela-se com uma linguagem muda (cf. Sl 18, 2-7), mas exprime-se de modo explicito através da Biblia e da sua comunicaçao pessoal nos profetas e em plenitude no Filho (cf. Hb 1, 1-2). Sao dois dons diferentes, mas convergentes, do seu amor.
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Por isso, o nosso louvor deve elevar-se ao céu todos os dias. É a nossa acçao de graças, que floresce no alvorecer na oraçao das Laudes para bendizer o Senhor da vida e da liberdade, da existencia e da fé, da criaçao e da redençao. PAPA JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-Feira 23 de julho de 2003
Salmo 146: O poder e a bondade do Senhor 1. O Salmo que acabamos de cantar é a primeira parte de uma composição que inclui também o Salmo seguinte, 147, e que o srcinal hebraico conservou na sua unidade. Foram as antigas versões grega e latina que dividiram o cântico em dois Salmos diferentes. O Salmo começa com um convite a louvar a Deus e depois enumera uma longa série de motivos de louvor, todos expressos no presente. Trata-se de actividades de Deus, consideradas características e sempre actuais; mas são de géneros muito diferentes: algumas referem-se às intervenções de Deus na existência humana (cf. Sl 146, 3.6.11) e sobretudo em favor de Jerusalém e de Israel (cf. v. 2); outras referem-se ao universo criado (cf. v. 4) e mais especialmente à terra com a sua vegetação e com os animais (cf. vv. 8-9). Por fim, dizendo de quem o Senhor se apraz, o Salmo convida-nos a ter uma dúplice atitude: de temor religioso e de confiança (cf. v. 11). Nós não estamos abandonados a nós mesmos ou às energias cósmicas, mas estamos sempre nas mãos do Senhor, devido ao seu projecto de salvação. 2. Depois do convite festivo ao louvor (cf. v. 1), o Salmo desenvolve-se em dois movimentos poéticos e espirituais. No primeiro (cf. vv. 2-6) introduz-se antes de mais a acção histórica de Deus, sob a imagem de um construtor que está a edificar novamente Jerusalém, que recuperou a vida depois do exílio na Babilónia (cf. v. 2). Mas este grande artífice, que é o Senhor, revela-se também como um pai que se inclina sobre as feridas interiores e físicas, presentes no seu povo humilhado e oprimido (cf. v. 3). Demos espaço a Santo Agostinho que, naExortação do Salmo 146, feita em Cartagena em 412, comentava do seguinte modo a frase: "O Senhor cura todos os que têm o coração "Quem não tem o coração atribulado não é curado... Quem são aqueles de atribulado": coração atribulado? Os humildes. E os que não atribulam o coração? Os soberbos. Contudo, o coração atribulado é curado, o coração repleto de orgulho é derrubado. Aliás, provavelmente, se é derrubado é precisamente para que, depois da atribulação, possa ser restabelecido, curado... "Ele cura os que têm o coração atribulado, e cura as suas rupturas"... Por outras palavras, cura os humildes de coração, os que confessam, que se punem, que julgam com severidade para poder experimentar a sua misericórdia. Eis quem cura. Mas a saúde perfeita será alcançada no fim do presente estado mortal, quando o nosso ser corruptível for revestido de incorruptibilidade e o 161
nosso ser mortal estiver revestido de imortalidade" (5-8: Exposições sobre os Salmos, IV, Roma 1977, pp. 772-779). 3. Mas a obra de Deus não se manifesta apenas através da cura dos sofrimentos do seu povo. Ele, que circunda os pobres de ternura e cuidados, eleva-se como juiz severo em relação aos soberbos (cf. v. 6). O Senhor da história não permanece indiferente perante a fúria dos prepotentes, que se julgam os únicos árbitros das vicissitudes humanas: Deus reduz ao pó da terra todos aqueles que desafiam océu com a sua soberba (cf. 1 Sm 2, 7-8; Lc 1, 51-53). Mas a acção de Deus não se esgota no seu senhorio sobre a história; ele é também o rei da criação, todo o universo responde à sua chamada de Criador. Ele não só pode contar a grande quantidade das estrelas, mas é capaz também de chamar cada uma pelo nome, definindo, por conseguinte, a sua natureza e as suas características (cf. Sl 146, 4). Já o profeta Isaías cantava: "Levantai os olhos ao céu e olhai: quem criou todos estes astros? Aquele que os conta e os faz marchar como um exército, e a todos chama pelos seus nomes" (40, 26). Por conseguinte, os "exércitos" do Senhor são as estrelas. O profeta Baruc continuava assim: "As estrelas brilham nos seus postos e alegram-se. Ele chama-as e elas respondem: "Aqui estamos". E, jubilosas, dão luz ao seu Senhor" (3, 34-35). 4. Depois de um novo convite jubiloso ao louvor (cf. Sl 146, 7), eis que se abre o segundo movimento do Salmo 146 (cf. vv. 7-11). Continua em primeiro plano ainda a acção criadora de Deus na criação. Numa paisagem muitas vezes árida, como a oriental, o primeiro sinal do amor divino é a chuva que fecunda a terra (cf. v. 8). Neste seguimento, o Criador prepara uma mesa para os animais. Aliás, ele preocupa-se em dar alimento também aos seres vivos mais pequeninos, como os filhinhos dos corvos que bradam devido à fome (cf. v. 9). Jesus convida-nos a olhar "para as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as" (Mt 6, 26; cf. também Lc 12, 24 com a referência explícita aos "corvos"). Mas, uma vez mais, a atenção vai da criação para a existência humana. E assim o Salmo conclui-se mostrando o Senhor que se inclina sobre quem é justo e humilde (cf Sl 146, 10-11), como já se tinha declarado na primeira parte do hino (cf. v. 6). Através de dois símbolos de poder, o cavalo e as pernas do homem quando corre, delineia-se a atitude divina que não se deixa conquistar ou atemorizar pela força. Mais uma vez, a lógica do Senhor ignora o orgulho e a arrogância do poder, mas defende quem é fiel e "espera na sua graça" (v. 11), ou seja, deixa-se orientar por Deus no seu agir e no seu pensar, nos seus projectos e na própria vivência quotidiana. É entre eles que se deve colocar também quem reza, baseando a sua esperança na graça do Senhor, com a certeza de ser envolvido pelo manto do amor divino: "O Senhor é quem vigia sobre os Seus fiéis, sobre aqueles que esperam na sua bondade, libertando-os da morte e fazendo-os viver no tempo da fome... n'Ele se alegra o nosso coração e em Seu santo nome confiamos" (Sl 32, 18-19.21).
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JOÃO PAULO II
AUDIÊNCIA Quarta-feira 23 de maio de 2001
Salmo 149: Festa dos amigos de Deus
Queridos irmãos e irmãs, 1. "Regozijem-se os justos na glória e cantem jubilosos em seus leitos". Este apelo do Salmo 149 (v. 5), que acaba de ser proclamado, remete para uma aurora que está prestes a despontar e vê os fiéis prontos a entoar os seus louvores matutinos. Com uma expressão significativa, este louvor é definido como "um cântico novo" (v. 1), ou seja, um hino solene e perfeito, propício para os últimos dias, quando o Senhor reunir os justos num mundo renovado. Todo o Salmo está impregnado de uma atmosfera festiva, inaugurada já pelo aleluia inicial e depois cadenciada com cânticos, louvores, alegria, danças e sons de tímpanos e de cítaras. A oração que este Salmo inspira é a acção de graças de um coração repleto de exultação religiosa. 2. Os protagonistas deste Salmo são chamados, no srcinal hebraico do hino, com dois termos característicos da espiritualidade do Antigo Testamento. Por três vezes são definidos como "hasidim" (vv. 1.5 e 9), ou seja, "os piedosos, os fiéis", aqueles que respondem com fidelidade e amor ( hesed) ao amor paternal do Senhor. A segunda parte deste Salmo surpreende, porque está repleta de expressões bélicas. Parece-nos estranho que no mesmo versículo o Salmo fale dos "louvores de Deus a plena voz" e da "espada de dois gumes nas suas mãos" (v. 6). Reflectindo, podemos compreender o motivo: o Salmo foi composto para os "fiéis" que estavam empenhados numa luta de libertação; combatiam para libertar o seu povo oprimido e para lhe dar a possibilidade de servir a Deus. Durante a época dos Macabeus, no século II a.C., os combatentes pela liberdade e pela fé, submetidos a uma dura repressão por parte do poder helenista, chamavam-se precisamente hasidim, "os fiéis" à Palavra de Deus e às tradições dos Padres. 3. Na perspectiva actual da nossa oração, esta simbologia bélica torna-se uma imagem do nosso compromisso de crentes e, depois de termos cantado a Deus os louvores matutinos, podemos partir pelas estradas do mundo, no meio do mal e da injustiça. Infelizmente, as forças que se opõem ao Reino de Deus são imponentes: o Salmista fala "de povos, de nações, de chefes e de nobres". Todavia, está confiante porque sabe ao seu lado se encontra o Senhor, é oeverdadeiro Reido daamor. história (cf. v. 2). Porque conseguinte, a sua vitória sobre o mal que é certa será o triunfo É neste combate que participam todos os hasidim, todos os fiéis e os justos que, com o poder do Espírito, completam a obra admirável que tem o nome do Reino de Deus. 4. Partindo das referências do Salmo ao "coro" e aos "tímpanos e cítaras", Santo Agostinho comenta: "O que é que representa um coro? [...] O coro é um grupo de cantores que cantam em conjunto. Se cantarmos num coro, devemos cantar em 163
harmonia. Quando se canta em coro, uma única voz desafinada fere o ouvinte e semeia confusão no próprio coro" (Enarr. in Ps., 149: CCL 40, 7, 1-4). Depois, referindo-se aos instrumentos utilizados pelo Salmista, pergunta-se: "Por que motivo o Salmista pega no tímpano e no saltério?". Em seguida, responde: "A fim de que não só a voz louve ao Senhor, mas também as suas obras. Quando se tocam o tímpano e o saltério, as mãos harmonizam-se com a voz. Assim deve ser também para ti. Quando cantares o aleluia, deves oferecer o pão ao faminto, vestir aquele que está nu e hospedar o peregrino. Se fizeres isto, não só a voz cantará, mas com voz se hão-de harmonizar as mãos, enquanto com as palavras concordarão as obras" (Ibid., 8, 1-4). 5. Há outro vocábulo, com que os orantes deste Salmo são definidos: trata-se dos "anawim", isto é, "os pobres, os humildes" (v. 4) Esta expressão é muito frequente no Saltério e indica não só os oprimidos, os miseráveis e os que são perseguidos por causa da justiça, mas inclusivamente aqueles que, sendo fiéis aos compromissos morais da Aliança com Deus, são marginalizados por quantos escolhem a violência, a riqueza e a prepotência. É nesta luz que se compreende que a classe dos "pobres" não é apenas uma categoria social, mas uma opção espiritual. Este é o sentido da primeira, célebre, Bem-Aventurança: "Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mt 5, 3). Já o profeta Sofonias se dirigia com a seguinte expressão aos anawim: "Procurai o Senhor, vós todos, os humildes da terra, que cumpris a sua lei. Procurai a justiça, buscai a humildade: talvez assim acheis abrigo no dia da cólera do Senhor" (2, 3). 6. Pois bem, o "dia da cólera do Senhor" é precisamente aquele que se descreve na segunda parte do Salmo, quando os "pobres" se põem ao lado de Deus a fim de lutar contra o mal. Sozinhos, eles não têm a força suficiente, nem os instrumentos, nem as estratégias necessárias para se opor à irrupção do mal. Contudo, a frase do Salmista não admite hesitações: "O Senhor, de verdade, ama o seu povo e adorna os humildes (anawim) com a vitória" (v. 4). Representa-se espiritualmente aquilo que o Apóstolo Paulo declara aos Coríntios: "O que é vil e desprezível no mundo é que Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são" ( 1 Cor 1, 28). É com esta confiança que "os filhos de Sião" (v. 2), os hasidim e os anawim, ou seja os fiéis e os pobres, se preparam para viver o seu testemunho no mundo e na história. O cântico de Maria, contido no Evangelho de Lucas o canto do Magnificat constitui o eco dos melhores sentimentos presentes nos "filhos de Sião": o louvor de exultação a Deus Salvador, a acção de graças pelas grandes coisas que lhe fez o Omnipotente, o combate contra as forças do mal, a solidariedade para com os pobres e a fidelidade ao Deus da Aliança (cf. Lc 1, 46-55).
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