Os Lusíadas (I).
Epopeia: Uma epopeia, forma literária da Antiguidade Clássica, define-se como uma narrativa, estruturada em verso, que narra, através de uma linguagem cuidada, os feitos grandiosos de um herói, com interesse para toda a Humanidade, à semelhança da Ilíada e da Odisseia de Homero ou da Eneida de Virgílio. O poema épico respeita uma série de convenções: A epopeia deve ter uma exposição sintética da matéria que depois desenvolverá, deve invocar as divindades para receber a sua inspiração, a narrativa não se iniciará no princípio da acção, mas in media res, isto é, no meio num momento susceptível de despertar imediatamente imediatamente o interesse dos leitores. Não é apenas a matéria que lhe confere a grandiosidade, está estabelecido, por exemplo, que deve ser feito um uso abundante da mitologia, de modo a obter-se um discurso culto, que impressiona pela erudição, pela soma de conhecimentos que envolve e que demonstra a competência do autor.
Elementos da epopeia: Herói: personagem principal Maravilhoso: inclusão de deuses Forma: estilo narrativo sublime e majestoso. Acção: facto histórico cantado pelo poeta Unidade: articulação harmoniosa dos episódios Variedade: conseguida através da inclusão de episódios reais e imaginários Integridade: a acção deve ter princípio, meio e fim Verdade: o assunto deve ser real ou verosímil
Modo Lírico: de lira, instrumento musical que acompanhava os cantos dos gregos. Por muito tempo, até o final da Idade Média, as poesias eram cantadas; separando-se o texto do acompanhamento musical, a poesia passou a apresentar uma estrutura mais rica. A partir daí, a métrica (a medida de um verso, definida pelo número de sílabas poéticas), o ritmo das palavras, a divisão em estrofes, a rima, a combinação das palavras foram elementos cultivados com mais intensidade pelos poetas. Subjacente ao conceito de intertextualidade está o princípio de que um texto é produzido numa relação de diálogo com outros textos, os quais incorpora, modula, adapta, cita ou parodia. O texto ou o corpus de textos com os quais um determinado texto mantém relações de intertextualidade denomina-se denomina-se de ―intertexto‖ (há autores que preferem a este
termo os termos de hipotexto, subtexto e palimpsesto, os quais se usam como equivalentes a intertexto). Quando se fala em intertextualidade intertextualidade sabe-se que os nexos intertextuais existentes entre os textos podem ser inconscientes por parte do autor posterior, embora possam igualmente ser conscientes conscientes e até voluntários. Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura, diz que a "intertextualidade "intertextualidade é entretecida pelo diálogo d iálogo de vários textos, de várias vozes e consciências. Este dialogismo, na sua dinâmica originária e essencial, é hetero-autoral (...)".
Os Lusíadas (II) Os Lusíadas
Génese, estrutura e classificação da obra: - Data de publicação: 1572 (Renascimento) - Período de elaboração: de 1545 a 1570 - A obra encontra-se estruturada em 4 partes: Proposição, Invocação, Dedicatória e Narração - Fontes literárias: Odisseia de Homero, Eneida de Virgílio (…) - Fontes históricas: crónicas de Fernão Lopes, de Rui Pina, de João de Barros, etc. - Género narrativo: epopeia - Protagonista: herói colectivo (o povo português)
Contexto histórico-cultural Situação económico-social: económico-social: - momento pós-descobrimentos pós-descobrimentos - esbanjamento das riquezas obtidas - crises económicas - surgimento do tribunal do Santo Ofício - ameaça do monopólio marítimo - corrupção dos costumes
Situação cultural: - desenvolvimento cultural florescente de influência clássica e renascentista - apologia do ideal humanista - desenvolvimento desenvolvimento científico
Os Lusíadas (III)
Estrutura interna: 1. Proposição: parte introdutória, introdutória, na qual o poeta anuncia o que vai cantar (Canto
termo os termos de hipotexto, subtexto e palimpsesto, os quais se usam como equivalentes a intertexto). Quando se fala em intertextualidade intertextualidade sabe-se que os nexos intertextuais existentes entre os textos podem ser inconscientes por parte do autor posterior, embora possam igualmente ser conscientes conscientes e até voluntários. Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura, diz que a "intertextualidade "intertextualidade é entretecida pelo diálogo d iálogo de vários textos, de várias vozes e consciências. Este dialogismo, na sua dinâmica originária e essencial, é hetero-autoral (...)".
Os Lusíadas (II) Os Lusíadas
Génese, estrutura e classificação da obra: - Data de publicação: 1572 (Renascimento) - Período de elaboração: de 1545 a 1570 - A obra encontra-se estruturada em 4 partes: Proposição, Invocação, Dedicatória e Narração - Fontes literárias: Odisseia de Homero, Eneida de Virgílio (…) - Fontes históricas: crónicas de Fernão Lopes, de Rui Pina, de João de Barros, etc. - Género narrativo: epopeia - Protagonista: herói colectivo (o povo português)
Contexto histórico-cultural Situação económico-social: económico-social: - momento pós-descobrimentos pós-descobrimentos - esbanjamento das riquezas obtidas - crises económicas - surgimento do tribunal do Santo Ofício - ameaça do monopólio marítimo - corrupção dos costumes
Situação cultural: - desenvolvimento cultural florescente de influência clássica e renascentista - apologia do ideal humanista - desenvolvimento desenvolvimento científico
Os Lusíadas (III)
Estrutura interna: 1. Proposição: parte introdutória, introdutória, na qual o poeta anuncia o que vai cantar (Canto
I, estrofes 1-3)): 1-3)): Na ―Proposição‖, o poeta apresenta aqueles que serão os protagonistas da sua epopeia, Assim, o herói individual de Os Lusíadas é Vasco da Gama, comandante da armada que realiza a viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia. Contudo, Vasco da Gama é paradigma de todo o povo português, já que Camões propõe elogiar todos os navegadores, reis que dilataram a fé, conquistando territórios em África e na Ásia e todos os que imortalizaram, imortalizaram, ficando na memória dos homens pelos seus feitos grandiosos. Também o título aponta para esta colectividade: canta-se um herói colectivo, colectivo, que é o povo português, o qual se destacou pelo esforço e pela coragem que superaram todos os heróis da antiguidade. 2. Invocação: pedido de ajuda às divindades inspiradoras inspiradoras (Canto I – Tágides; Canto III – Calíope; Canto VII – ninfas do Tejo e do Mondego, Canto x - Calíope ): 3. Dedicatória: oferecimento de um poema a uma personalidade importante. importante. (Canto I, estrofes 6-18) De acordo com os modelos estruturais das epopeias clássicas, a dedicatória não era um elemento obrigatório. Todavia, Camões opta por dedicar este canto ao jovem D. Sebastião, que reinava na época, tecendo-lhe um grande elogio e considerando-o a esperança da continuação do império português. A dedicatória, tratando-se de um discurso em louvor do rei, obedece a uma estrutura organizada de acordo com os moldes da oratória: Exórdio: parte introdutória, ou seja, de apresentação do assunto que irá ser cantado Exposição: exposição do assunto propriamente propriamente dito Confirmação: apresentação das provas de que realmente os feitos do povo português ultrapassam os da antiguidade Peroração: reforço da esperança esperança depositada no novo rei e nos feitos gloriosos que irá concretizar Epílogo: conclusão 4. Narração: parte que constitui o corpo da epopeia (in media res): (CI, estrofe 19 até ao fim do poema) Desenvolvimento Desenvolvimento do assunto da obra, relato da descoberta do caminho marítimo para a Índia pelos navegadores portugueses liderados por Vasco da Gama, História de Portugal, Intervenção dos Deuses.
2. Estrutura externa: Os Lusíadas dividem-se em 10 cantos, constituídos por um número variável de estâncias de oito versos (oitavas) – tendo cada verso 10 sílabas métricas, com o seguinte esquema rimático: a b a b a b c c. (rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos últimos).
Os Lusíadas (IV)
Planos Plano da Viagem A narração dos acontecimentos ocorridos durante a viagem realizada entre Lisboa e Calecut. A acção central do poema é a viagem de Vasco da Gama. Escrevendo mais de meio século depois, Luís de Camões tinha já o distanciamento suficiente para perceber a
importância histórica desse acontecimento, devido às alterações que provocou, tanto em Portugal, como na Europa. Por essa razão considerou a primeira viagem marítima à Índia como o episódio mais significativo da história de Portugal. No entanto, tratava-se de um acontecimento relativamente recente e historicamente documentado. Para manter a verosimilhança, o poeta estava obrigado a fazer um relato relativamente objectivo e potencialmente monótono, o que constituía um perigo fatal para o seu projecto épico. Daí que Camões tenha sentido a necessidade de introduzir um segundo nível narrativo.
Plano da História de Portugal Relato dos factos marcantes da História de Portugal
O objectivo de Camões era enaltecer o povo português e não apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. Não podia por isso limitar a matéria épica à viagem de Vasco da Gama. Tinha que introduzir na narrativa todas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos portugueses ao longo dos tempos. E fê-lo, recorrendo a duas narrativas secundárias, inseridas na narrativa da viagem, cujo narrador é o poeta. Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde: Ao chegar a este porto indiano, o rei
recebe-o e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem desde a saída de Lisboa até chegarem ao Oceano Índico, visto que a narrativa principal iniciara-se in media res, isto é quando a armada já se encontrava em frente às costas de Moçambique. Narrativa de Paulo da Gama ao Catual: Mais tarde surge outra narrativa secundária. Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O visitante pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que dá a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal. Profecias: Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como factos históricos. Para isso, Camões recorreu a profecias colocadas na boca de Júpiter, Adamastor e Thétis, principalmente.
Plano da Mitologia A mitologia permite e favorece a evolução da acção (os deuses assumem-se, uns como adjuvantes, outros como oponentes dos Portugueses) e constitui, por isso, a intriga da obra. Camões imaginou um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio seja colocado em segundo plano pela glória dos portugueses, enquanto Vénus, apoiada por Marte, os protege Pode parecer estranho que Camões incluísse num poema destinado a exaltar um povo cristão os deuses pagãos, mas algumas razões permitem compreender essa atitude: 1) A simples narrativa da viagem seria algo monótona, tanto mais que Vasco da Gama e os seus marinheiros têm um carácter rígido, quase inumano: são determinados e inflexíveis, imunes às hesitações, à dúvida, às angústias. Não há ao nível da viagem qualquer conflito. Para introduzir o necessário dramatismo na narrativa, Camões teve que imaginar um conflito externo, o conflito entre Vénus e Baco. 2) Os poemas épicos renascentistas são epopeias de imitação e como tal sujeitas a regras estritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introdução de episódios maravilhosos, envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, à semelhança do que acontecia nos poemas homéricos ou na Eneida. 3) Finalmente, o recurso aos deuses pagãos é mais uma forma de o poeta engrandecer os feitos dos portugueses. Nas suas intervenções, os deuses frequentemente referem-se-lhe de forma elogiosa. Além disso, o simples facto de a disputa entre os deuses ter como objecto os portugueses é já uma forma indirecta de os exaltar.
Plano do Poeta 4 Planos narrativos Narração Plano do Poeta – Reflexões, críticas, lamentações (normalmente no fim dos cantos) Plano da História de Portugal – Plano encaixado - Narração histórica - História de
Portugal: É narrada a História de Portugal desde Viriato a D. Manuel. Com excepção dos episódios líricos da Formosíssima Maria e de Inês de Castro (C. III), e dos preparativos para a viagem, que incluem a despedida de Belém e o episódio do velho do Restelo (C. IV), predominam nesta longa narrativa os feitos guerreiros. Plano da Viagem – Plano fulcral - Narração histórica - Acção fulcral: Acção nuclear da
epopeia – a Viagem da descoberta do caminho marítimo para a Índia Plano da Mitologia – Plano paralelo - Narração Mitológica - Acção mitológica: Centra-
se no conflito entre Vénus e Baco
Os Lusíadas (V) Inicio da Narração: A narração fulcral está numa fase adiantada, os navegadores encontram-se no Oceano Índico, próximo da costa moçambicana. A acção inicia-se ‗in media res‘, por isso, as peripécias da viagem de Portugal à Costa Oriental de África serão relatadas em analepse, por Vasco da Gama ao Rei de Melinde ( V).
Os Lusíadas (VI) - Proposição Como vimos nas aulas, a finalidade da proposição, em qualquer epopeia, é a enunciação do assunto que o poeta se propõe tratar. Assim é, também, em Os Lusíadas: o Poeta está decidido a tornar conhecido em todo o mundo o valor do povo português (―o peito ilustre lusitano‖). E para isso estrutura a sua proposição em duas partes: nas duas estâncias iniciais, enuncia os heróis que vai cantar; na segunda parte, constituída pela terceira estrofe, estabelece um confronto entre os portugueses e os grandes heróis da Antiguidade, afirmando a superioridade dos primeiros sobre os segundos. Que o herói desta epopeia é colectivo, é um facto incontestável. Quanto a isso, o próprio título é inequívoco: os ―lusíadas‖ são, afinal, os portugueses — todos, não apenas os passados, mas até os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes que caracterizam, no entendimento do poeta, o povo português e que ele sintetiza, na dedicatória a D. Sebastião - "amor da pátria, não movido/ De prémio vil, mas alto e quase eterno" O facto de o seu herói ser colectivo e a sua acção se estender por um intervalo de tempo muito vasto permite-lhe desdobrá-lo em subgrupos, conforme verificaremos a seguir. O plural utilizado para designar cada um deles confirma o carácter colectivo do herói: ―barões assinalados‖, ―Reis‖, ―aqueles‖. A inversão da ordem sintáctica nessa primeira frase, que engloba as duas estâncias iniciais, pode tornar difícil, à primeira leitura, a compreensão do texto. A ordem normal seria esta: Cantando, espalharei por toda a parte as armas e os barões... Pode esquematizar-se o conteúdo dessas duas estrofes da seguinte maneira:
Através da poesia, se tiver talento para isso, tornarei conhecidos em todo o mundo os homens ilustres que fundaram o império português do Oriente os reis, de D. João I a D. Manuel, que expandiram a fé cristã e o império português todos os portugueses dignos de admiração pelos seus feitos. Vemos que Camões apresenta três grupos de agentes (―agentes‖ e não heróis, porque herói é ―o peito ilustre lusitano‖). O primeiro é constituído pelos ―barões assinalados‖, responsáveis pela criação do império português na Ásia. É evidente que o poeta destaca principalmente a actividade marítima, a gesta dos descobrimentos (―Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana‖). O segundo grupo inclui os reis que contribuíram directamente para a expansão do cristianismo e do império português (―foram dilatando / A Fé o Império‖). Aqui é sobretudo o esforço militar que se evidencia (―andaram devastando‖). No terceiro grupo incluem-se todos os demais, todos os que se tornaram dignos de admiração pelos seus feitos, quaisquer que eles sejam. A enumeração é apresentada em gradação descendente: em primeiro lugar, os envolvidos na expansão marítima; depois, os reis envolvidos na expansão militar; finalmente, todos os outros. Essa valorização relativa é confirmada pelo espaço textual: oito versos, para o primeiro grupo; quatro, para o segundo; dois apenas, para o terceiro. No entanto, este terceiro aparece como um grupo aberto: nele se incluem não apenas heróis passados, mas todos aqueles que se venham a evidenciar no futuro. Note-se que, para os dois primeiros grupos, o poeta utiliza o pretérito perfeito, enquanto aqui recorre ao presente perifrástico — ―vão libertando‖. Ao contrário das epopeias antigas, aqui o herói é colectivo, o que o próprio título logo indica — Os Lusíadas. Por outro lado, na proposição, como vimos, a indicação dos heróis, além de ser desdobrada em grupos diferenciados, em cada um deles é utilizado o plural. A proposição não é uma simples indicação dos seus heróis, mas obedece já a uma estratégia de engrandecimento dos portugueses. A expressão ―por mares nunca dantes navegados‖ evidencia o carácter inédito das navegações portuguesas; observe-se o destaque dado à palavra ―nunca‖. A exaltação continua com a referência ao esforço desenvolvido, considerado sobre-humano (―esforçados / Mais do que prometia a força humana‖). Na segunda parte, esse esforço de engrandecimento continua, desta vez através de
um paralelo com os grandes heróis da Antiguidade. O confronto é estabelecido com marinheiros famosos (Ulisses e Eneias), eles próprios heróis de duas epopeias clássicas, e conquistadores ilustres (os imperadores Alexandre Magno e Trajano). A escolha de navegadores e guerreiros não é inocente, visto que é exactamente nessas duas áreas que os portugueses se destacam. E quase a concluir, uma nota final, na mesma linha: ―... eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram‖. A submissão do deus do mar e do deus da guerra aos portugueses (―o peito ilustre lusitano‖) é uma forma concisa e muito expressiva de exaltar o valor do seu herói.
Os Lusíadas (VII) - Invocação Invocar significa ―chamar em seu socorro ou auxílio, particularmente o poder divino ou sobrenatural‖. Na proposição, o poeta apresentou o assunto que vai tratar e, dado o carácter excepcional, a grandiosidade desse assunto, sente necessidade de pedir às entidades protectoras auxílio para a execução de tarefa tão grandiosa. Naturalmente, Camões, sendo um poeta cristão, não acreditava nas entidades míticas de que lançou mão. Utilizou-as sempre como um simples recurso poético. Isto é, a Invocação, para Camões, é mais um processo de engrandecimento do seu herói. De facto, é a grandiosidade do assunto que se propôs tratar que exige um estilo e uma eloquência superiores. Agora, precisa, não do ―verso humilde‖, por ele tantas vezes utilizado, mas de um ―um som alto e sublimado‖. O carácter sublime do assunto justifica, portanto, a Invocação e é afirmado ao longo do texto, em mais do que uma expressão: ―famosa gente vossa‖, digna de apreço pelos seus méritos guerreiros (―que a Marte tanto ajuda‖) é como o poeta se refere ao seu herói. E termina, insinuando que esses feitos são tão espantosos que, possivelmente, nem com o auxílio das Tágides poderão ser transpostos, com a devida dignidade, para a poesia (―Que se espalhe e se cante no Universo, / Se tão sublime preço cabe em verso.‖). Desde já, registe-se que o nosso poeta não se limitou a invocar as ninfas ou musas conhecidas dos antigos gregos e romanos. Embora as ―Tágides‖ não sejam criação sua, adoptou-as como forma de sublinhar o carácter nacional do seu poema. Independentemente do interesse universal que possam ter, todos os feitos cantados, todos os agentes, são portugueses. Isso tinha já ficado claro na Proposição, mas reforça-se essa ideia na Invocação. E, pela fórmula utilizada (―Tágides minhas‖), identifica-se pessoalmente com esse nacionalismo, estabelecendo, através do possessivo, uma espécie de relação afectiva com as ninfas do Tejo. A força
expressiva do possessivo é reforçada pela inversão e sua colocação em posição forte (coincidindo com a 6ª sílaba). Tratando-se de um pedido, a Invocação assume a forma de discurso persuasivo, onde predomina a função apelativa da linguagem e as marcas características desse tipo de discurso — o vocativo e os verbos no modo imperativo — determinam a estrutura do texto: E vós, Tágides minhas, (...) Dai-me (...) Dai-me (...) Dai-me (...) E este esquema revela imediatamente um dos recursos estilísticos utilizados pelo poeta: a repetição anafórica, que identifica claramente o pedido e evidencia o seu carácter reiterativo. Por outro lado, este tipo de discurso é sempre acompanhado de argumentos, implícitos ou explícitos, de forma a mais facilmente persuadir o receptor. O primeiro deles antecede o próprio pedido (―pois criado / Tendes em mi um novo engenho ardente‖) e a sua força é evidente: já que as ninfas lhe concederam essa nova inspiração, o desejo de cantar os feitos dos portugueses, então devem igualmente dar-lhe o estilo, a eloquência necessários. Este primeiro argumento tem como fundamento a obrigação moral: quem cria a necessidade, deve fornecer os meios. E logo após a primeira formulação do pedido, surge o segundo argumento: ―Por que de vossas águas Febo ordene / Que não tenham enveja às de Hipocrene.‖ Agora, o fundamento psicológico é outro: o poeta procura despertar o sentimento de emulação nas Tágides, sugerindo que, ao atender o seu pedido, as águas do Tejo poderão igualar ou até suplantar a fama da fonte de Hipocrene, como inspiradoras de grandes poetas. O terceiro argumento encerra o pedido: ―Que se espalhe e se cante no Universo‖. Para que os feitos dos portugueses possam ser admirados no mundo inteiro, é necessário que as ninfas atendam o seu pedido. Neste caso, recorre a uma argumentação finalística: pressupõe-se que esses feitos são dignos de serem apreciados, mas para o serem é necessário um estilo extremamente elevado. Aliás, o último verso sugere a ideia de que os feitos dos portugueses são tão grandiosos que dificilmente poderão ser traduzidos em verso de forma adequada. Como se vê, a estratégia de engrandecimento do povo português, iniciada na Proposição, é
retomada aqui, quase nos mesmos termos. Comparem-se estes dois últimos versos com aqueles com que encerra a primeira parte da Proposição: Cantando, espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Que se espalhe e se cante no Universo, Se tão sublime preço cabe em verso. Vimos já que o poeta pede às Tágides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade do assunto requerem; o ―som alto e sublimado‖, exigido pelo ―novo engenho ardente‖ que as ninfas colocaram nele. Como poeta experiente que é, sabe que a tarefa a que agora se propôs exige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo destas duas estâncias um confronto entre a poesia lírica, há muito por ele cultivada, e a poesia épica, a que agora se abalança. POESIA LÍRICA: verso humilde; agreste avena; frauta ruda POESIA ÉPICA: novo engenho ardente; som alto e sublimado; estilo grandíloco e corrente; fúria grande e sonorosa; tuba canora e belicosa Esse confronto serve-lhe para marcar a superioridade relativa da poesia épica sobre a lírica, o que uma análise medianamente atenta comprova facilmente. Nota-se, desde logo, a maior quantidade de expressões dedicadas à poesia épica. Igualmente significativa é a abundância da adjectivação e, mais ainda, o recurso à dupla adjectivação. Por outro lado, o valor semântico desses adjectivos merece também alguma atenção: alguns afirmam o carácter elevado dessa poesia e do estilo correspondente (alto, sublimado, grandíloco, grande); outros, a musicalidade e sonoridade que os deve distinguir (corrente, sonorosa, canora); alguns, ainda, sugerem a exaltação típica dos feitos épicos (ardente, belicosa). O efeito dessas expressões é, de certo modo, ampliado pelo recurso ao paralelismo sintáctico (substantivo + adjectivo + adjectivo), que conduz à imediata associação dessas expressões. Até os instrumentos musicais associados a cada um dos tipos de poesia são significativos: à simplicidade da flauta, que associa à lírica, contrapõe a sonoridade guerreira da tuba, própria da epopeia. E ao referir-se à ―tuba canora e belicosa‖, acrescenta: ―que o peito acende e a cor
ao gesto muda‖. Com esse verso pretende transmitir a ideia de que o estilo épico exerce sobre o leitor um intenso efeito emotivo, semelhante à exaltação sentida pelos próprios heróis que vai cantar. Note-se o recurso à metáfora ―o peito acende‖, que sugere uma espécie de fogo interior avassalador, reforçada pela inversão (colocação do complemento directo antes do verbo).
Os Lusíadas (IX) - A Mitificação do Herói Os Lusíadas celebram os Portugueses enquanto nação, colectividade. Para isso, o poeta desenvolve uma história de Portugal como epopeia, seleccionando os episódios e as figuras, de modo a fazer avultar o lado heróico e exemplar da História, cantando-a. Por outro lado, o poema tende à universalidade, louva não só os Portugueses mas o homem em geral: a sua capacidade realizadora, descobridora. A empresa das descobertas é a grande prova dessas capacidades: a de se impor à natureza adversa, de desvendar o desconhecido, de ultrapassar os limites traçados pela cultura antiga e pelo conceito tradicional do homem e do mundo, que estavam dogmatizados e eram difíceis de superar. Os Lusíadas celebram a capacidade de alargar e aprofundar o saber; a realização do homem no que respeita ao amor e, por fim, talvez o mais importante, o poder de edificar a vida face ao destino. De não ser vítima da fatalidade. De se libertar e de ser sujeito do seu próprio destino. Por isso, um dos temas épicos consiste na comparação sistemática com os modelos antigos, com o apogeu na divinização dos heróis. Maria Vitalina leal de Matos, Tópicos para Uma Leitura de Os lusíadas, Editorial Verbo, Lisboa, 2003 O Homem, «bicho da terra» tão pequeno, conseguiu conquistar o mar que o transcendia - espaço de transgressão -, vencendo as forças, personificadas pelos Deuses. Conseguiu isso pela ousadia, pelo estudo, pelo sacrifício, por querer superarse a si próprio e ser «mais alto» e ir «mais longe». Os homens tornam-se deuses, fazendo cair do pedestal as antigas divindades. A recepção dos nautas pelas ninfas significa a confirmação dos receios de Baco: de facto, os navegantes cometeram actos tão grandiosos que se tornam amados pelos deuses; e, de certo modo, divinizam-se também. Temos aqui um mito construído com elementos da cultura greco-latina, mas elaborado para o efeito específico que o autor visa. Que diz esse mito? Reconhece a importância excepcional do acontecimento nuclear do poema - a Viagem de Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. A viagem é física, humanista, geográfica e poética. A euforia leva à epopeia como forma elevada de imortalizar os heróis da aventura.
Mais do que explorar os mares, a viagem traduz em si mesma a contínua procura de verdade, pois é sempre mais belo viajar do que chegar. Desta viagem resulta a passagem do conhecido para o desconhecido, das trevas para a luz, de uma ideologia confinada para outras e diversas realidades. Os olhos dos eleitos que viram o raiar da aurora e a água pura das fontes ou que tiveram o privilégio de contemplar a «máquina do Mundo» exprimem a metáfora da luz numa nova época do conhecimento. O deslumbramento dos nautas pelo erotismo da «ilha» simbolizará também a necessidade de uma comunhão dos homens com o divino na procura da suprema harmonia. Assim se consubstancia a narrativa que na Ilha dos Amores revelará ao mundo que a única via para o Futuro é o Amor e o Conhecimento. A superação advém dessa interiorização, dos perigos e contrariedades. «Vede» -depois de tantos e tantos perigos, chegámos aqui para voltar com o conhecimento. A descoberta verdadeira foi que o caminho marítimo (ou terreno) é através do Amor e do Conhecimento. O desconhecido torna-se conhecido e o mistério é desvendado, os nautas divinizados.
Os Lusíadas (XI) - O Velho do Restelo Este episódio insere-se na narrativa feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde. No momento em que a armada do Gama está prestes a largar de Lisboa para a grande viagem, uma figura destaca-se da multidão e levanta a voz, para condenar a expedição. O texto é constituído por duas partes: a apresentação da personagem feita pelo narrador (est. 94) e o discurso do Velho do Restelo (est. 95 a 104). A caracterização destaca a idade (―velho‖), o aspecto respeitável (―aspeito venerando‖), a atitude de descontentamento (―meneando / Três vezes a cabeça, descontente‖), a voz solene e audível (―A voz pesada um pouco alevantando‖), e a sabedoria resultante da experiência de vida (―Cum saber só de experiências feito‖; ―experto peito‖). Não foi certamente por acaso que Camões optou por esta figura e não outra. A figura do Velho do Restelo ressuma uma autoridade, uma respeitabilidade, que lhe permitem falar e ser ouvido sem contestação. As suas palavras têm o peso da idade e da experiência que daí resulta. E a autoridade provém exactamente dessa vivida e longa experiência. No seu discurso é possível identificar três partes. Na primeira (est. 95-97), condena o envolvimento do país na aventura dos descobrimentos, a que se refere de forma claramente negativa (―vã cobiça‖,
―vaidade‖, ―fraudulento gosto‖, ―dina de infames vitupérios‖). Denuncia de forma inequívoca o carácter ilusório das justificações de carácter heróico que eram apresentadas para esse empreendimento (―Fama‖, ―honra‖, ―Chamam-te ilustre, chamam-te subida‖, ―Chamam-te Fama e Glória soberana‖), sendo certo que tudo isso são apenas ―nomes com quem se o povo néscio engana‖. E apresenta um rol extenso de consequências negativas dessa aventura: mortes, perigos tormentas, crueldades, desamparo das famílias, adultérios, empobrecimento material e destruição. Esta primeira parte é introduzida por uma série de apóstrofes (―Ó glória de mandar‖, ―ó vã cobiça‖. ―Ó fraudulento gosto‖), com as quais revela que o que ele condena é de facto a ambição desmedida do ser humano, neste caso materializada na expansão ultramarina. O sentimento de exaltada indignação manifesta-se, sobretudo, pela utilização insistente de exclamações e interrogações retóricas. A segunda parte abrande as estrofes 98 a 101. É introduzida por uma nova apóstrofe, desta vez dirigida, não a um sentimento, mas aos próprios seres humanos (―ó tu, gèração daquele insano‖). Se na primeira parte manifestou a sua oposição às aventuras insensatas que lançam o ser humano na inquietação e no sofrimento, agora propõe uma alternativa menos má, sugerindo que a ambição seja canalizada para um objectivo mais próximo — o Norte de África. A estância 99 é toda ela preenchida com orações subordinadas concessivas, anaforicamente introduzidas por ―já que‖, antecedendo a sua proposta de forma reiterada e cobrindo todas as variantes dessa ambição: religiosa (―Se tu pola [Lei] de Cristo só pelejas?‖), material (―Se terras e riquezas mais desejas?‖), militar (―Se queres por vitórias ser louvado?‖). E aproveita para apresentar novas consequências maléficas da expansão marítima: fortalecimento do inimigo tradicional (―Deixas criar às portas o inimigo‖), despovoamento e enfraquecimento do reino. E mais uma vez recorre às interrogações retóricas como recurso estilístico dominante. Vem depois a terceira parte (est. 102-104). O poeta recorda figuras míticas do passado, que, de certo modo, representam casos paradigmáticos de ambição, com consequências dramáticas. Começa por condenar o inventor da navegação à vela — ―o primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho!‖. Faz depois referência a Prometeu, que, segundo a mitologia grega, teria criado a espécie humana, dando assim origem a todas as desgraças consequentes — ―Fogo que o mundo em armas acendeu, / Em mortes, em desonras (grande engano!‖. Logo a seguir, narra os casos de Faetonte e Ícaro, que, pela sua ambição, foram punidos. E os quatro versos finais da fala do Velho do Restelo sintetizam bem esse desejo
desmedido de ultrapassar os limites: Nenhum cometimento alto e nefando Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado a humana gèração. Mísera sorte! Estranha condição! Simbologia do episódio do ―Velho do Restelo‖ Naturalmente, o ―Velho do Restelo‖ não é uma personagem histórica, mas uma criação de Camões com um profundo significado simbólico. Por um lado, representa aquela corrente de opinião que via com desagrado o envolvimento de Portugal nos Descobrimentos, considerando que a tentativa de criação de um império colonial no Oriente era demasiado custosa e de resultados duvidosos. Preferiam que a expansão do país se fizesse pela ampliação das conquistas militares no Norte de África. Essa ideia era, sobretudo, defendida pela nobreza, que assim encontravam possibilidades de mostrarem o seu valor no combate com os mouros e, ao mesmo tempo, encontravam nele justificação para as benesses que a Coroa lhes concedia. A burguesia, por seu lado, inclinava-se mais para a expansão marítima, vendo aí maiores oportunidades de comércio frutuoso. Por outro lado, se ignorarmos o contexto histórico em que o episódio é situado, podemos ver na figura do Velho o símbolo daqueles que, em nome do bom senso, recusam as aventuras incertas, defendendo que é preferível a tranquilidade duma vida mediana à promessa de riquezas que, geralmente, se traduzem em desgraças. Encontramos aqui um eco de uma ideia cara aos humanistas: a nostalgia da idade de ouro, tempo de paz e tranquilidade, de que o homem se viu afastado e a que pode voltar, reduzindo as suas ambições a uma sábia mediania (―aurea mediocritas‖, na expressão dos latinos), já que foi a desmedida ambição que lançou o ser humano na idade de ferro, em que agora vive (cf. est. 98). Neste sentido o episódio pode ser entendido como a manifestação do espírito humanista, favorável à paz e tranquilidade, contrário ao espírito guerreiro da Idade Média. Assim, o episódio do ―Velho do Restelo‖ está de certo modo em contradição com aquilo mesmo que Os Lusíadas, no seu conjunto, procuram exaltar — o esforço guerreiro e expansionista dos portugueses. Essa contradição é real e traduz, de forma talvez inconsciente, as contradições da sociedade portuguesa da época e do próprio
poeta. De facto, Camões soube interpretar, melhor que ninguém, o sentimento de orgulho nacional resultante da consciência de que durante algum tempo Portugal foi capaz de se destacar das demais nações europeias. Mas Camões era também um homem de sólida formação cultural, atento aos valores estéticos do classicismo literário e imbuído de ideais humanistas. Se, ao cantar os feitos dos portugueses, ele dá voz a esse orgulho nacional, que sentia também como seu, na fala do ―Velho do Restelo‖ e em outras intervenções disseminadas ao longo do poema, exprime as suas ideias de humanista.
O Plano da Viagem 1. A armada gloriosa na "costa etiópica" (I, 42-45) 2. Encontro dos portugueses com povos ao largo de Moçambique (I, 44-55) 3. Visita do régulo à armada (I, 59-68) e a acção guerreira necessária (I, 69-99) 4. Da narração de Vasco da Gama(II, 30-32) à visita do rei de Melinde à armada (II, 92-113) 5. A praia das lágrimas (IV, 87-93) 6. A ultrapassagem da condição humana e seu castigo no episódio do 'Velho do Restelo' (IV, 94-104) e a sugestão do norte de África (IV, 100-101) 7. Viagem até a baía de Santa Helena (V, 4-36) 8. O cabo das Tormentas e o Adamastor (V, 37-48) 9. N rio dos Bons Sinais(V, 78-83) 10. A caminho da Índia (VI, 1-6) e a tempestade (VI, 70-79) 11. Preces de Vasco da Gama (VI, 80-83) 12. Chegada à Índia (VII, 1, 7, 17-41, 44-50, 57-63; IX, 13-14) 13. Regresso a Portugal (IX, 16-17; X, 144).
O Plano Mitológico (dos Deuses) 1. Consílio dos deuses no Olimpo (I, 20-41)Júpiter, Vénus, Marte, Baco. 2.Vénus pede a Júpiter pelos portugueses (II, 33-41) 3. Sonho de D. Manuel (IV, 67-76) 4. Vénus abrabda os ventos (VI, 85-91) 5. Adamastor (vítima do amor) (V, 50-59) 6. Consílio dos deuses do mar. Neptuno, Baco (VI, 8-34) 7. A ilha dos amores (IX, 18-92)
O Plano das Reflexões do Poeta (excursos do poeta) 1. Na Proposição, na Invocação e na Dedicatória - exaltação dos feitos portugueses 2. Narração 2.1. o homem, "bicho da terra" (I, 105-106) 2.2. invocação a Calíope (amor à poesia épica) (III, 1-2) 2.3. louvor e justa glória dos portugueses (V, 92-100) 2.4. o caminho para a glória dos heróis (VI, 95-99) 2.5. exaltação dos portugueses em detrimento os outros povos da cristandade 2.6. lamentações do poeta: o cansaço e o peso da vida, a ingratidão daqueles que são celebrados na epopeia, invocação às ninfas (VII, 78-87) 2.7 o "vil metal"(VIII, 96-99) 2.8 nova invocação a Calíope (X, 8-9) 2.9. lamentações e exortações do poeta a D.Sebastião (X, 145-156)
Os Lusíadas (VIII) - Notas avulsas 1. Analepses: narração da história de Portugal e da viagem para a Índia feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde (III, IV, V); narração de feitos da história de Portugal por Paulo da gama ao Catual (VIII) 2. Prolepses - profecias: feitas por Júpiter a Vénus (III); sonho de D.Manuel (IV); feitas por Adamastor a Vasco da Gama (V); pela ninfa a Gama e as navegadores (X); por Tétis a Gama (X). 3. Espaço: geográfico (Oceano Índico, África Oriental (I), Europa (III), Portugal (IV), Lisboa-Oceano Atlântico - Cabo da Boa Esperança-Melinde (V); Oceano Índico-Índia (IX); Ásia-África-América-Universo em representação - Portugal (X); mitológico (Olimpo (I), palácio de Neptuno (VI); ilha dos Amores (IX). 4. Tempo: passado (tempos dos factos históricos e da viagem antes do discurso de Gama ao rei de Melinde (III-V) e narrados por analepse; dos factos históricos narrados por Paulo da Gama ao Catual, também por analepse (VIII); presente da acção (descrição da viagem e chegada à Índia (I, II, VI, VII, VIII, IX); futuro: tempo das acções posteriores à viagem e até à data da escrita, narradas em profecia ou prolepse (ver prolepses).
Os Lusíadas (XII) - A Ilha dos Amores Terminada a viagem do Gama e antes de regressarem a Portugal, os nautas são conduzidos, por acção de Vénus e Cupido, para a Ilha dos Amores onde receberão o
prémio do seu esforço. Trata-se de uma ilha paradisíaca, de uma beleza deslumbrante. A descrição do consórcio entre os portugueses e as ninfas está repassada de sensualidade. Os prazeres que lhes são oferecidos são o justo prémio por terem perseguido o seu objectivo sem hesitações, pela sua coragem e força. Todo o episódio tem um carácter simbólico. Em primeiro lugar, serve para desmitificar o recurso à mitologia pagã, apresentada aqui como simples ficção, útil para "fazer versos deleitosos". Em segundo lugar, representa a glorificação do povo português, a quem é reconhecido um estatuto de excepcionalidade. Pelo seu esforço continuado, pela sua persistência, pela sua fidelidade à tarefa de expansão da fé cristã, os portugueses como que se divinizam. Tornam-se assim dignos de ombrear com os deuses, adquirindo um estatuto de imortalidade que é afinal o prémio máximo a que pode aspirar o ser humano. De certo modo, podemos dizer que é o amor que conduz os portugueses à imortalidade. Não o amor no sentido vulgar da palavra, mas o amor num sentido mais amplo: o amor desinteressado, o amor da pátria, o amor ao dever, o empenhamento total nas tarefas colectivas, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse amor que manifestam Gama e os seus homens; é ele que permite a tantos libertar-se da "lei da morte". É também esse amor que conduz o Poeta a "espalhar" os feitos dos seus compatriotas por toda a parte e tornar-se, também ele, imortal. É esse amor, comum a si próprio e aos seus heróis, que o leva a dizer, na Dedicatória a D. Sebastião: «Vereis amor da pátria, não movido/ De prémio vil, mas alto e quase eterno;/ Que não é prémio vil ser conhecido /Por um pregão do ninho meu paterno.» O mesmo amor que leva Vasco da Gama a dizer, logo no início da narração que faz ao rei de Melinde: «Esta é a ditosa pátria minha amada,/ À qual se o Céu me dá, que eu sem perigo/ Torne, com esta empresa já acabada, /Acabe-se esta luz ali comigo.» A Ilha dos Amores(IX e X). É no canto IX que se gera a controvérsia quanto ao carácter utópico do texto. A ilha surge como um local ideal, porto prazenteiro de marinheiros valentes que neste locus amoenus geram a descendência semi-divina da raça lusa, da qual uma ninfa profetiza os feitos futuros. É ainda do topo de uma montanha desta ilha que Tétis mostra a Gama a "Grande Máquina do Mundo", ao estilo de Dante. Não havendo um projecto social, uma organização comunitária na Ilha dos Amores não podemos falar de utopia em sentido estrito, mas o significado simbólico e a complexa divisão de tempo e espaço no que se refere a este episódio
são claras marcas utópicas.Em Os Lusíadas o Poeta exalta as realizações dos navegadores lusitanos e descreve os transtornos impostos a eles pelos mouros. Depois de muitas peripécias, seguem para o sul afrontando os perigos do mar, em direção ao Cabo da Boa Esperança, mas desejosos de voltar à pátria para relatar as ocorrências da viagem. Ao mesmo tempo, Vénus imagina um meio de recompensá-los por todas as dificuldades enfrentadas com um prémio. Auxiliada por Cupido, prepara-lhes uma ilha maravilhosa onde as mais belas ninfas esperarão por eles. O Poeta mostra o local como um verdadeiro paraíso: «Nesta frescura tal desembarcaram/ Já das naus os segundos argonautas,/ Onde pela floresta se deixavam/ Andar as belas deusas, como incautas/ Algüas doces cítaras tocavam,/ Algüas harpas e sonoras flautas;/Outras, cos arcos de ouro, se fingiam/Seguir os animais que não seguiam.(...)/Duma os cabelos de ouro o vento leva /Correndo, e de outra as flaldas delicadas./Acende-se o desejo, que se cava/ Nas alvas carnes, súbito mostradas.» Os marinheiros divisam por entre os ramos das árvores as cores dos tecidos das vestes das ninfas, as quais deliberadamente se vão deixando alcançar. Outras são surpreendidas no banho e correm nuas por entre o mato, enquanto alguns navegadores entram vestidos na água. Elas não fogem e deixam-se cair aos pés de seus perseguidores. A leitura do poema indica o quanto Camões se inclina à forma plástica. A alegoria da Conquista dá-se na Ilha dos Amores e nela toda a tensão configurada nas duas anteriores se desfaz em harmonia, uma vez que, cumprida a Provação e suprida a Carência, o épico e o dramático cedem lugar ao lírico. Na alegoria da Ilha novamente se ratifica a ideologia dominante, já que os prazeres recebidos de Tétis representam a fama pela conquista sobre o mar desconhecido. Estes prazeres vêm atender aos dois planos da Carência: o material, figurado no amor sensual e no banquete, e o espiritual que se retrata na demonstração da Grande Máquina do Mundo. Estes três conjuntos alegóricos organizam-se e complementam-se, pois o da Carência e o da Conquista apresentam-se como discursos que disfarçam a ideologia de dominação, enquanto que o da Provação explicita, pelo seu processo de alegorização, o questionamento dessa mesma ideologia. A Ilha dos Amores é a síntese espaço-temporal e histórica da trajectória portuguesa. Sendo ilha, compreende os elementos espaciais terra, mar e céu, enquanto elevação. Levando-se em conta que ela é o resultado presente da história de um povo e, ainda, que nela acontece a profecia da ninfa, temos também na ilha a ocorrência dos três planos temporais: o presente, o passado e o futuro. Estes espaços e estes planos temporais correspondem-se: a terra é o espaço de realização do passado português, o da consolidação do Reino; o mar é o lugar do presente em que se dá a ação expansionista; e na ilha prediz-se o futuro de outras
conquistas que consumarão a grandeza e a fama. E a ilha configura-se como o espaço do interstício e da comunhão entre o mundo concreto e da horizontalidade em que se dá a acção heróica do homem e o universo abstracto e da verticalidade em que actuam os deuses. É o que se verifica logo na preparação da ilha, quando Vénus convoca o seu filho Cupido: «Parece-lhe razão que conta desse/ A seu filho, por cuja potestade/ Os deuses faz decer ao vil terreno/ E os humanos subir ao Céu sereno.» Desta síntese do mítico com o real, do céu com a terra, também participa a natureza cósmica que é configurada de modo paradisíaco: «Pera julgar difícil cousa fora,/ No céu vendo e na terra as mesmas cores,/ Se dava às flores cor a bela Aurora,/ Ou se lha dão a ela as belas flores.» A recompensa do herói e do povo que ele representa é, pois, o alcance do paraíso, seja terrestre, seja transcendente. Esta recompensa inclui a transposição do herói para os umbrais da fama cantada pela ―Deusa Gigantéia‖, 5 e, no canto X, estrofe 74, pela própria Tétis seguida pelo coro de suas ninfas. E ela inclui a dimensão humana da fruição dos prazeres mundanos do amor sensual, da beleza sensorial e do regalo do banquete, assim como também a dimensão intelectiva do conhecimento profético do futuro e da cosmovisão da máquina do mundo. A Ilha dos Amores simboliza o porto e o prémio aos navegadores portugueses, bem como a glorificação destes pelos feitos heróicos, a imortalidade dos seus nomes, para sempre gravados na História. E o Amor representa a vitória sobre o desconcerto do mundo, afinal travara ―u'a famosa expedição / contra o mundo rebelde‖. A Ilha é, assim, o reestabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis, que na ilha e pela ilha se opera, são, também e sobretudo, a recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia e do Mundo. A Ilha é uma catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias da própria História, e das misérias da vida no tempo de Camões e fora dele. É a reconciliação, a transcendência. Portanto, a concretização amorosa é uma das maiores conquistas de Os Lusíadas em toda a empreitada marítima. É a celebração da vitória do povo que ousou desafiar os mares. É, afinal, um prémio àqueles que bravamente navegaram para além ―do que prometia a força humana.‖Andavam pelas florestas ―as belas deusas, como incautas‖. Algumas tocavam cítaras, outras harpas e doces flautas e simulavam ―cos arcos de ouro‖ ―seguir os animais‖, como em uma caçada. Já tendo os argonautas desembarcado, às ninfas «[...]aconselhara a mestra experta: /Que andassem pelos campos espalhadas;/ Que, vista dos barões a presa incerta,/ Se fizessem primeiro desejadas./ Alguas, que na forma descoberta/ Do belo corpo estavam confiadas,/ Posta a artificiosa formosura,/ Nuas lavar se deixam na água pura.«(Canto IX, 65).
Estavam os navegantes desejosos de encontrar caça selvagem. Lançavam-se com determinação, empunhando espingardas e bestas, ―pelos sombrios matos e florestas‖. Não esperavam, porém, «enxergar/Por entre verdes ramos, várias cores,/ Cores de quem a vista julga e sente/ Que não eram das rosas ou das flores, /Mas da lã fina e seda diferente, /Que mais incita a força dos amores, /De que se vestem as humanas rosas, /Fazendo-se por arte mais fermosas.» (Canto IX, 68, v.2-8). O encontro entre as nereidas e os navegantes estava selado. Num jogo amoroso, ―fugindo as ninfas vão por entre os ramos‖, fogem manhosas, mais que ligeiras e, ―pouco a pouco, sorrindo e gritos dando, / se deixam ir dos galgos alcançando‖. Uma ―os cabelos de ouro o vento leva‖, outra ―as fraldas delicadas‖ e ―alvas carnes‖ mostra. Uma se deixa apanhar pelo seu perseguidor e outras, despidas, nas águas se ―lançam / nuas por entre o mato, aos olhos dando / o que às mãos cobiçosas vão negando‖. Um mancebo, desejoso de amor, ―a matar na água o fogo que nele arde‖, toma a sua presa. Estava consumada a perseguição e simulada fuga.Vencedores e vencidas, estavam todos entregues ao puro amor. O sentimento é tão intenso, o afago é tamanho, que os enamorados ―se prometem eterna companhia, / em vida e morte, de honra e alegria‖. Nos versos seguintes, inundados de lascívia, o relacionamento amoroso entre as ninfas e os portugueses não representa uma orgia desenfreada e desmedida: «Oh, que famintos beijos na floresta,/E que mimoso choro que soava!/Que afagos tão suaves! Que ira honesta,/ Que em risinhos alegres se tornava!/O que mais passam na manhã e na sesta, /Que Vénus com prazeres inflamava, /Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;/Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.» (Canto IX, 83)É, sim, a realização do amor, do desejo de amar e ser amado. É o momento de glória. O momento em que o Amor, através do desejo, se manifesta de forma que, mesmo que por um momento, o mundo recupera sua harmonia, estando livre de toda sorte de desconcerto. Evidentemente há uma entrega aos prazeres da carne, mas é um prazer fruto do Amor, que preenche a alma e purifica. O Amor que deifica homens e humaniza deuses, unindo-os num só ser, fazendo com que entre eles não haja mais distinção, deixando criaturas humanas e divinas num mesmo patamar, numa mesma existência.O Paraíso é a Ilha dos Amores, episódio final que desvenda todo o significado do Poema. Vénus concedeu-a para que ali nascesse uma ‗progénie forte e bela‘ e para que o ‗mundo vil e maligno‘, caracterizado pela ‗triste hipocrisia‘, que tenta separar os amantes por um muro intransponível como o diamante (‗muro adamantino‘), soubesse que nada resiste à força do Amor. A Ilha é um pomar onde a natureza produz todos os frutos necessários à vida, ‗sem ter necessidade de cultura‘. Em Os Lusíadas a revelação súbita da nudez
desperta o instinto para o qual o pecado não existe. É em plena inocência, como se o tabu bíblico nunca tivesse existido, que se realiza e consuma o conúbio geral, sem restrições. Depois desta recuperação da inocência e desta abolição da consciência do Bem e do Mal, os homens recuperam também a imortalidade. Como amantes das ninfas imortais, tornam-se eles próprios divinos. A mulher, intermediária à serpente maléfica, fizera Adão ser sujeito à morte. Na Ilha dos Amores é também a mulher (agora no plural) que liberta os homens da lei da morte. A concretização sexual entre os lusos e as nereidas, a concretização do amor e do desejo, ultrapassando quaisquer convenções da ars amatoria clássica é o único momento da epopeia em que há a plenitude amorosa. E aqui nos recordamos da trágica história de D. Inês de Castro, a bela de ―colo de garça‖, feita Rainha depois de morta, e do triste lamento do Gigante Adamastor, subjugado pelo poder avassalador do Amor. Em ambas as histórias, além do aspecto trágico, não há a realização plena do amor.Camões faz ―voar o pensamento, libertando-o de quaisquer grilhetas conceptuais (neoplatónicas ou outras) graças ao poder das emoções e à força sempre misteriosa do desejo e do amor que o eleva e legitima‖. É o amor concreto, realizado, mas que não apaga ou oblitera o desejo, e sim ultrapassa os modelos clássicos petrarquistas. Encerrada a celebração amorosa entre as ninfas e os heróis portugueses, «Tethys[...]a quem se humilha/Todo o coro das Ninfas e obedece,/ Que dizem ser de Celo e Vesta filha,/ O que no gesto belo se parece, /Enchendo a terra e o mar de maravilha, /O capitão ilustre, que o merece,/ Recebe ali com pompa honesta e régia, /Mostrando-se senhora grande e egrégia./Que, despois de lhe ter dito quem era, /Cum alto exórdio, de alta graça ornado, /Dando-lhe a entender que ali viera/ Por alta influïção do imóbil fado,/ Pera lhe descobrir da unida esfera/ Da terra imensa e mar não navegado/ Os segredos, por alta profecia, /O que esta sua nação só merecia,/Tomando-o pela mão, o leva e guia/ Pera o cume dum monte alto e divino, /No qual ua rica fábrica se erguia, /De cristal toda e de ouro puro e fino./ A maior parte aqui passam do dia, /Em doces jogos e em prazer contino./ Ela nos paços logra seus amores, /As outras pelas sombras, entre as flores.»(Canto IX, 85-87). A leitura do Canto IX deixa aberta e livre a possibilidade de fazer várias abordagens textuais, permitindo interrogar os vários sentidos propostos pela palavra. No contexto da viagem, acção central do poema épico Os Lusíadas inscrevem-se os percursos reflexivos decorrentes da dimensão da viagem pessoal e interpessoal desejada. Os navegadores portugueses passaram ainda além da «Taporbana / em perigos e guerras esforçados / mais do que prometia a força humana / e entre gente remota edificaram / novo reino que tanto sublimaram» (Canto I, estrofe 1). Os navegadores
portugueses cumpriram a viagem de conhecimento e descoberta do caminho marítimo para a Índia, aproximando gentes, culturas e memórias. Os navegadores portugueses por «obras valerosas / pelo trabalho imenso que se chama / caminho da virtude, alto e fragoso / foram compensados na Ilha dos Amores ―doce, alegre e deleitosa»(Canto IX, estrofe 90) a qual constitui a promessa de uma compensação absoluta do esforço e mérito humanos, por proposta de Vénus. A divinização dos heróis é a conclusão para que aponta a intriga mitológica: os portugueses, ao longo da aventura que constitui o núcleo narrativo, são favorecidos por Vénus e hostilizados por Baco. Os homens tornam-se deuses e descem do pedestal as antigas divindades. No Canto IX, o recebimento dos nautas pelas ninfas significa, entre outras coisas, a confirmação dos receios de Baco: de facto, os navegantes cometeram actos tão grandiosos que se tornam amados por deusas; e, de certo modo, divinizamse eles também. Aqui temos um mito construído com elementos da cultura grecolatina, mas elaborado para o efeito específico que Camões visa. Este efeito desejado pelo poeta é o de imortalizar os heróis através de um acontecimento nuclear, a viagem de Vasco da Gama à Índia. Como já citado, os navegantes portugueses são recebidos e homenageados num ambiente paradisíaco, idealizado pelos deuses à mercê dos humanos, divinizados e imortalizados por via do Amor. Assim aparece um quadro idílico, formado por uma Natureza belíssima e cheia de atractivos: o doce murmúrio das águas, o cantar dos pássaros, os variados sabores dos frutos, o perfume das flores, a amenidade, a frescura e o recolhimento de um bosque, a verdura repousante de um porto seguro. E neste ambiente, sem metáfora, paradisíaco, o amor torna-se de repente possível, um amor total feito de sensualidade e galanteria, de desejo e de paixão pela beleza. Nada o ensombra: decepções, receios, insatisfação, pecado, remorsos foram, de repente, banidos no glorioso presente de um instante que se furta ao fluxo temporal. Mais ainda: para que os nautas sejam cumulados em todos os aspectos, depois de uma banquete magnífico é-lhes facultado o conhecimento da história futura, a contemplação do sistema cosmológico e uma visão geográfica do globo. Este mito opõe-se simétrica e compensatoriamente ao cortejo de dores, frustrações e desespero que a vida historicamente acarreta, em particular a vida cheia de privações que os navegantes suportaram durante vários meses. Exprime a ânsia por uma felicidade absoluta, com a imaginação à idade do ouro ao paraíso perdido. Aliás, essa é um dos componentes do espírito humanista, voltado para a utopia: conceber o homem realizado em plenitude e harmonia, sem as limitações e contradições que a condição e natureza humanas a cada passo impõem; a conciliação dos contrários constitui justamente um dos traços dessa visão de
beatitude: a harmonia do amor físico e do amor espiritual; dos gozos sensuais e intelectuais; o feliz encontro do homem e da natureza; a realização dos desejos sem que ressaibos de culpa venham ensombrar a felicidade inocente. Parece expressamente intencional este desejado e merecido encontro de Homens e Deuses, numa ilha recriada que se faz ao caminho dos navegadores e se prepara para os seduzir e retribuir na ideia de que o Amor só com Amor(es) vence e se propaga (Canto IX, estrofe 51, 52, 53). Nota-se que é expressamente intencional o discurso amoroso assumido, cuja dimensão é valorizada pela adequada procura de uma estética textual. As palavras e a sua organização no texto transmitem uma mensagem envolvente e portadora de sentido(s) provocador(es) de renovadas sensações e reflexões por parte de atentos leitores.O recurso estratégico a uma adjetivação rica, abundante, repetida e antitética favorece uma pintura descritiva ao pormenor de quadros idealizados, mas reais, porque se inscrevem nas nossas referências culturais, apelando à melhor compreensão e entendimento do que se pretende captar, o Amor nas suas manifestações mais comuns, mais visíveis e inteligíveis.Os recursos estilísticos recorrentes e selecionados com o mesmo objetivo de clarear a mensagem mostram para que se veja e se sinta, nomeadamente, através de sucessivas e eloquentes comparações, imagens, personificações, antíteses, repetições, jogos de palavras (trocadilhos), paralelismos, enumerações e gradação das representações. Servem, igualmente, as intenções de (re)dimensionar e complexar o discurso, a utilização da plasticidade do tempo traduzido pelo gerúndio e conjugação perifrástica, traduzindo um movimento de perpétua sedução, permitindo olhar o que merece ser sentido e vivido. O discurso está também possuído de sensações múltiplas, remetendo para a visão, a audição, o olfacto, o tacto, o paladar, sentidos naturais e humanos que podem ser sensibilizados, aprofundados e harmonizados para o desafio existencial, para a construção da felicidade, enquanto processo de transformação susceptível de ser potencializado pelo Homem. A Ilha dos Amores sublima a competência do Homem na sua própria superação e na busca permanente dos seus ideais, merecendo, pela sua acção, o natural reconhecimento. O gozo da experiência amorosa e felicidade na Ilha mitológica representam a fama grande e nome alto e subido, que o mundo está guardando, isto é, a glorificação pela memória da história. E que as Ninfas do Oceano... Tétis e a Ilha angélica nada mais são do que as honras que imortalizam a vida. Os «deleites desta ilha» são os triunfos, a coroação pela vitória, a admiração e glorificação dos navegantes. Afinal também os deuses da Antiguidade eram deuses porque os homens os tinham transposto a esse estado glorioso, pelas grandes façanhas que tinham realizado, enquanto homens. E segue-se
o conselho: se os humanos quiserem alcançar a glória e a fama, lancem-se em acções valorosas, fugindo duma indolência deprimente, que torna as almas escravas. Assim as Ninfas... Tétis e a ilha... os deleites representam o prémio que os navegantes receberão pelos altos feitos realizados, prémios que, podemos interpretá-lo polissemicamente, são por um lado nitidamente uma imortalização pela glória, por outro, e sobretudo a partir das expressões «preminências gloriosas.»,«triunfos», «fronte coroada de palma e louro» poderão ser prémios a doar pelo Rei e pela nação. Estes últimos prémios, e sobretudo se tivermos em conta os membros da nobreza participantes nas Descobertas, poderiam vir a ser pagos em dinheiro ou doação de terras, honra, poderes jurisdicionais, títulos de nobreza, ou cargos na administração ultramarina como os de donatários, governadores, vice-reis, capitães de fortalezas ou outros. De qualquer modo, só na época do Renascimento com uma visão humanista aberta, que no tempo de elaboração e publicação de Os Lusíadas, estava já claramente a fechar-se, um poeta como Camões poderia lembrar-se de simbolizar todos esses prémios pelo conúbio amoroso e erótico entre os navegantes e as deusas.
Os Lusíadas (XIII) - Inês de Castro Inês de Castro é um episódio lírico-amoroso que simboliza a força e a veemência do amor em Portugal. O episódio ocupa as estâncias 118 a 135 do Canto III de Os Lusíadas e relata o assassinato de Inês de Castro, em 1355, pelos ministros do rei D. Afonso IV de Borgonha, pai de D. Pedro, seu amante. É narrado, em sua maior parte, por Vasco da Gama, que conta a história de Portugal ao rei de Melinde. Considerado um dos mais belos momentos do poema, é a um só tempo um episódio histórico e lírico: por trás da voz do narrador, e da própria Inês, percebe-se a voz e a expressão pessoal do poeta. Camões, através da fala de Vasco da Gama, destaca do episódio a sua carga romântica e dramática, deixando em segundo plano as questões políticas que o marcam.Fernão Lopes, Garcia de Resende e António Ferreira já haviam explorado, em prosa, em verso e no teatro, respectivamente, a figura histórica de Inês Pires de Castro: Dom Pedro, Príncipe de Portugal, filho do Rei Afonso IV, era casado com D. Constança, mas apaixonara-se por Inês de Castro, dama de companhia de D. Constança e filha ilegítima de um nobre português. Com a morte de D. Constança, Inês foi morar em Coimbra às margens do Rio Mondego e D. Pedro, futuro Rei de Portugal, viúvo, queria selar seu amor com Inês fazendo dela sua rainha. O Rei Afonso IV, temendo pela sucessão do trono que seria seu neto, filho de Constança e pela influência dos nobres que temiam uma influência castelhana, tenta resgatar o filho e conduzi-lo a um casamento que obedecesse não aos caprichos de cupido, mas
às conveniências políticas de Portugal. Para isso, vendo como única saída, o Rei manda vir Inês para que seja executada. Os terríveis verdugos trouxeram Inês e seus filhos perante o Rei. Depois de ouvir a sentença, Inês ergueu os olhos aos céus e disse:"Até mesmo as feras, cruéis de nascença, e as aves de rapina já demonstraram piedade com as crianças pequenas. O senhor, que tem o rosto e o coração humanos, deveria ao menos compadecer-se destas criancinhas, seus netos, já que não se comove com a morte de uma mulher fraca e sem força, condenada somente por ter entregue o coração a quem soube conquistá-lo. E se o senhor sabe espalhar a morte com fogo e ferro, vencendo a resistência dos mouros, deve saber também dar a vida, com clemência, a quem nenhum crime cometeu para perdê-la. Mas se devo ser punida, mesmo inocente, mande-me para o exílio perpétuo e mísero na gelada Cítia ou na ardente Líbia onde eu viva eternamente em lágrimas. Ponha-me entre os leões e tigres, onde só exista crueldade. E verei se neles posso achar a piedade que não achei entre corações humanos. E lá, com o amor e o pensamento naquele por quem fui condenada a morrer, criarei os seus filhos, que o senhor acaba de ver, e qu e serão o consolo de sua triste mãe."Comovido com essas palavras, o Rei já pensava em absolver Inês, quando os verdugos, que defendiam a execução, sacaram de suas espadas e degolaram Inês. Isso aconteceu em 1355 e diz a lenda que D. Pedro, inconformado, mandou vestir a noiva com roupas nupciais, sentou o cadáver no trono e fez os nobres beijarem -lhe a mão, daí falar-se que "a infeliz foi rainha depois de morta". Na verdade, D. Pedro manda transladar o corpo de Inês do mosteiro com pompas de rainha para o mosteiro de Alcobaça em 1361, quando já era rei. Portanto, seis anos após o assassinato. Ao subir ao trono D. Pedro conseguiu que outro Pedro, o Cruel, rei de Castela, lhe entregasse os homicidas, que para lá fugiram, pois os dois monarcas tinham um pacto de devolver um ao outro os respectivos inimigos. Para imortalizar o seu amor por Inês, D. Pedro jurou em presença de sua corte que se havia casado clandestinamente com ela, transformando-a, dessa maneira, em rainha após a morte. Episódio de Dona Inês de Castro(Os Lusíadas, Canto III, 118 a 135).
Os Lusíadas (XIV) - O gigante Adamastor Inspirado em Homero e Ovídio, o episódio do Gigante Adamastor é o mais rico e complexo do poema, de natureza simbólica, mitológica e lírica. Compõe-se de vinte e quatro estrofes (canto V, 37 - 60),numa distribuição muito equilibrada das partes: das vinte e quatro estrofes, quatro compõem a introdução, transição e epílogo; as vinte restantes, divididas ao meio, apresentam o herói da sequência. Tanto Vasco da Gama como o Adamastor aparecem como narradores e como personagens. No plano
histórico, este episódio simboliza a superação pelos portugueses do medo do ―Mar Tenebroso‖, das superstições medievais que povoavam o Atlântico e o Índico de monstros e abismos. Adamastor é uma visão, um espectro, uma alucinação que existe só nas crendices dos portugueses. É contra os seus próprios medos que os navegadores triunfam. No plano lírico é um dos pontos altos do poema, retomando dois temas constantes da lírica camoniana: o do amor impossível e o do amante rejeitado. Adamastor, um dos gigantes filhos da Terra, apaixonou-se pela nereida Tétis. Não correspondido, tenta tomá-la à força, provocando a cólera de Júpiter, que o transforma no Cabo das Tormentas, personificado numa figura monstruosa, lançada nos confins do Atlântico. Neste episódio concentram-se as grandes linhas da epopeia: 1. O real maravilhoso (dificuldade na passagem do Cabo).2. A existência de profecias (História de Portugal).3. Lirismo (história de amor, que irá ligar-se mais tarde, à narração do maravilhoso da Ilha dos Amores);4. É também um episódio trágico, de amor e morte;5. É um episódio épico, em que se consolida a vitória do homem sobre os elementos (água, fogo, terra, ar); est. 37 - A viagem da esquadra é rápida e próspera até uma nuvem que escurece os ares surgir sobre as cabeças dos navegantes. Porém já cinco sóis eram passados/Que dali nos partíramos, cortando/Os mares nunca doutrem navegados,/Prosperamente os ventos assoprando,/Quando uma noite, estando descuidados/Na cortadora proa vigiando,/Uma nuvem, que os ares escurece,/Sobre nossas cabeças aparece. 38 - A nuvem escura que surgiu vinha tão carregada que encheu de medo os navegantes. O mar, ao longe, fazia grande ruído ao bater contra os rochedos. Vasco da Gama, atemorizado, lança voz à tempestade perguntando o que era ela, que ela lhe parecia mais que uma simples tormenta marinha. Repare que o cenário aterrador fará a imagem do Gigante ainda mais terrível e assustadora. Tão temerosa vinha e carregada,/Que pôs nos corações um grande medo;/Bramindo, o negro mar de longe brada,/Como se desse em vão nalgum rochedo./"Ó Potestade (disse) sublimada:/Que ameaço divino ou que segredo/Este clima e este mar nos apresenta,/Que mor cousa parece que tormenta?" 39 - Vasco da Gama não havia terminado de falar quando surgiu uma figura enorme, de rosto fechado, de olhos encovados, de postura má, de cabelos crespos e cheios de terra, de boca negra e de dentes amarelos. Esta passagem é meramente descritiva. Não acabava, quando uma figura/Se nos mostra no ar, robusta e válida,/De disforme e grandíssima estatura;/O rosto carregado, a barba esquálida,/Os olhos encovados, e
a postura/Medonha e má e a cor terrena e pálida;/Cheios de terra e crespos os cabelos,/A boca negra, os dentes amarelos. 40 - A figura era tão enorme que poder-se-ia jurar ser ela o segundo Colosso de Rodes. Surge no quarto verso a introdução da fala do Gigante, cuja voz fazia arrepiar os cabelos e a carne dos navegantes. Tão grande era de membros, que bem posso/Certificar-te que este era o segundo/De Rodes estranhíssimo Colosso,/Que um dos sete milagres foi do mundo./Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/Que pareceu sair do mar profundo./Arrepiam-se as carnes e o cabelo,/A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo! 41 - O gigante chama os portugueses de ousados e afirma que nunca repousam e que tem por meta a glória particular, pois chegaram aos confins do mundo. Repare na ênfase que se dá ao fato de aquelas águas nunca terem sido navegadas por outros: o gigante diz que aquele mar que há tanto ele guarda nunca foi conhecido por outros. E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas/No mundo cometeram grandes cousas,/Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,/E por trabalhos vãos nunca repousas,/Pois os vedados términos quebrantas/E navegar nos longos mares ousas,/Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,/Nunca arados d‘estranho ou próprio lenho. 42 - Já que os portugueses descobriram os segredos do mar, o gigante lhes ordena que ouçam os os sofrimentos futuros, conseqüências do atrevimento de cruzar os mares. Pois vens ver os segredos escondidos~/Da natureza e do úmido elemento,/A nenhum grande humano concedidos/De nobre ou de imortal merecimento,/Ouve os danos de mi que apercebidos/Estão a teu sobejo atrevimento,/Por todo largo mar e pola terra/Que inda hás de sojugar com dura guerra. 43 - O gigante afirma que os navios que fizerem a viagem que Vasco da Gama está a fazer terão aquele cabo como inimigo. A primeira armada a que se refere Adamastor é a de Pedro Álvares Cabral, que perdeu ali quatro de suas naus: o dano - o naufrágio – foi maior que o perigo, pois os navegantes foram surpreendidos. Sabe que quantas naus esta viagem/Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,/Inimiga terão esta paragem,/Com ventos e tormentas desmedidas!/E da primeira armada, que passagem/Fizer por estas ondas insufridas,/Eu farei d‘improviso tal castigo,/Que seja mor o dano que o perigo!
44 - O gigante afirma que se vingará ali mesmo de seu descobridor, Bartolomeu Dias, e que outras embarcações portuguesas serão destruídas por ele. As afirmações são ameaçadoras, como se verá: o menor mal será a morte.
Aqui espero tomar, se não me engano,/De quem me descobriu suma vingança./E não se acabará só nisto o dano/De vossa pertinace confiança:/Antes, em vossas naus verei, cada ano,/Se é verdade o que meu juízo alcança,/Naufrágios, perdições de toda sorte,/Que o menor mal de todos seja a morte! 45 - É citado D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia, e sua vitória sobre os turcos. O gigante continua ameaçador: junto a ele continua a haver perigo. E do primeiro ilustre, que a ventura/Com fama alta fizer tocar os céus,/Serei eterna e nova sepultura,/Por juízos incógnitos de Deus./Aqui porá a turca armada dura/Os soberbos e prósperos troféus;/Comigo de seus danos o ameaça/A destruída Quíloa com Mombaça. 46 - Nesta estrofe o gigante cita a desgraça da família de Manuel de Sousa Sepúlveda, cujo destino será tenebroso: depois de um naufrágio, sofrerão muito. Outro também virá, de honrada fama,/Liberal, cavaleiro, enamorado,/E consigo trará a fermosa dama/Que Amor por grão mercê lhe terá dado./Triste ventura e negro fado os chama/Neste terreno meu, que, duro e irado,/Os deixará dum cru naufrágio vivos,/Pera verem trabalhos excessivos. 47 - O gigante diz que os filhos queridos de Manuel de Sousa Sepúlveda morrerão de fome e sua esposa será violentada pelos habitantes da África, depois de caminhar pela areia do deserto. Verão morrer com fome os filhos caros,/Em tanto amor gerados e nascidos;/Verão os Cafres, ásperos e avaros,/Tirar à linda dama seus vestidos;/Os cristalinos membros e preclaros/À calma, ao frio, ao ar verão despidos,/Despois de ter pisada longamente/Cos delicados pés a areia ardente; 48 - Os sobreviventes do naufrágio verão Manuel de Sousa Sepúlveda e sua esposa, que morrerão juntos, ficarem no mato quente e inóspito. E verão mais os olhos que escaparem/De tanto mal, de tanta desventura,/Os dous amantes míseros ficarem/Na férvida e implacábil espessura./Ali, despois que as pedras abrandarem/Com lágrimas de dor, de mágoa pura,/Abraçados, as almas soltarão/Da fermosa e misérrima prisão. 49 - O gigante continuaria fazendo as previsões se Vasco da Gama não o interrompesse perguntando quem era aquela figura maravilhosa. O monstro responderá com voz pesada porque relembraria seu triste passado.
Mais ia por diante o monstro horrendo/Dizendo nossos fados, quando, alçado,/Lhe disse eu: - Que és tu? Que esse estupendo/Corpo certo me tem maravilhado!/A boca e os olhos negros retorcendo/E dando um espantoso e grande brado,/Me respondeu, com voz pesada e amara,/Como quem da pergunta lhe pesara 50 - O gigante se apresenta: ele é o Cabo Tormentoso, nunca conhecido pelos geógrafos da Antiguidade, última porção de terra do continente africano, que se alonga para o Pólo Sul, extremamente ofendido com a ousadia dos portugueses. Eu sou aquele oculto e grande Cabo/A quem chamais vós outros Tormentório,/Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,/Plínio e quantos passaram fui notório./Aqui toda a africana costa acabo/Neste meu nunca visto promontório,/Que pera o Pólo Antártico se estende,/A quem vossa ousadia tanto ofende. 51 - Adamastor diz que era um dos Titãs, gigantes que lutavam contra Júpiter e que sobrepunham montes para alcançar o Olimpo. Ele, no entanto, buscava a armada de Neptuno, nos mares. Fui dos filhos aspérrimos da Terra,/Qual Encélado, Egeu e Centimano;/Chamei-me Adamastor e fui na guerra/Contra o que vibra os raios de Vulcano;/Não que pusesse serra sobre serra,/Mas conquistando as ondas do Oceano,/Fui capitão do mar, por onde andava/A armada de Neptuno, que eu buscava. 52 - Adamastor cometeu a loucura de lutar contra neptuno por amor a Tétis, por quem desprezou todas as Deusas. Um dia a viu nua na praia e apaixonou-se por ela, e ainda não há algo que deseje mais do que ela. Amores da alta esposa de Peleu/Me fizeram tomar tamanha empresa;/Todas as Deusas desprezei do Céu,/Só por amar das águas a princesa;/Um dia a vi, coas filhas de Nereu,/Sair nua na praia e logo presa/A vontade senti de tal maneira,/Que inda não sinto cousa que mais queira. Mas o seu amor não é retribuído. 58 - Os Titãs já foram vencidos e soterrados para maior segurança dos deuses, contra quem não é possível lutar. Adamastor anuncia, então, seu triste destino. Eram já neste tempo meus Irmãos/Vencidos e em miséria extrema postos,/E, por mais segurar-se Deuses vãos,/Alguns a vários montes sotopostos./E, como contra o Céu não valem mãos,/Eu, que chorando andava meus desgostos,/Comecei a sentir do fado imigo,/Por meus atrevimentos, o castigo: 59 - A carne do gigante se transformou em terra e os ossos em pedra; seus membros e sua figura alongaram-se pelo mar; os Deus fizeram dele um Cabo. Para que sofra em dobro, Tétis costuma banhar-se nas águas próximas.
Converte-se-me a carne em terra dura;/Em penedos os ossos se fizeram;/Estes membros que vês e esta figura/Por estas longas águas se estenderam;/Enfim, minha grandíssima estatura/Neste remoto Cabo converteram/Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,/Me anda Tétis cercando destas águas. 60 - O gigante desapareceu chorando e o mar soou longínquo. Vasco da Gama ergue os braços ao céu e pede aos anjos que os casos futuros contados por Adamastor não se realizem. Assi contava; e, cum medonho choro,/Súbito d‘ante os olhos se apartou./Desfez-se a nuvem negra e cum sonoro/Bramido muito longe o mar soou./Eu, levantando as mãos ao santo coro/Dos Anjos, que tão longe nos guiou,/A Deus pedi que removesse os duros/Casos que Adamastor contou futuros.
Os Lusíadas (XV) - resumos dos cantos Canto I: O poeta inicia a obra indicando o assunto e expondo o seu grande objectivo, que é o de cantar e exortar os inigualáveis feitos do povo Lusitano. De seguida pede inspiração às Tágides (ou ninfas do Tejo), para que nunca lhe falta o engenho necessário, e faz uma dedicatória ao monarca português, D. Sebastião. Logo depois começa a narração da viagem, numa altura em que os navegadores portugueses já circulam em pleno oceano Índico. Entretanto, os deuses reúnem-se no monte Olimpo para discutir o destino dos ousados aventureiros e para decidir ―sobre as cousas futuras do Oriente‖. É este o famoso episódio do consílio dos deuses, que irá ocupar uma parte significativa deste Canto I (são 22 estrofes, para ser mais preciso). O consílio havia sido convocado pelo pai dos deuses, Júpiter, que demonstrou logo à partida estar solidário com os portugueses. Ele salienta a enorme vontade e o espírito de sacrifício que até aqui têm demonstrado na sua difícil viagem, e chega mesmo a afirmar que tamanha coragem fará esquecer rapidamente aqueles que eram tidos como grandes povos (―Assírios, Persas, Gregos e Romanos‖). Depois da intervenção de Júpiter seguem-se as outras opiniões, sendo desde logo evidente que a unanimidade não seria alcançada. De um lado aparecia o deus Baco que, receoso de perder a sua influência e prestígio, não queria admitir sequer a possibilidade da viagem marítima à Índia ser concretizada. Do outro, tínhamos a bela Vénus e o guerreiro Marte, que por vários motivos apoiavam os portugueses. Vénus via neles e na sua língua grandes semelhanças com o povo latino (que ela tão havia amado); Marte admirava a valentia da ―gente Lusitana‖, e mesmo que assim não
fosse, a sua paixão a Vénus certamente não o deixaria tomar qualquer outra posição. O consílio termina com uma decisão favorável aos portugueses (que entretanto haviam chegado a Moçambique), e logo cada um dos deuses regressa ao seu domínio. Baco, porém, não satisfeito com aquilo que ouviu e decidido a não ficar com os braços cruzados, começa desde logo a preparar uma série de armadilhas e ciladas. O culminar desse estratagema seria o fornecimento de um piloto traidor, que os levaria até ao perigoso porto de Quíola. Apenas a intervenção de Vénus evitou que algo de pior acontecesse, e a armada retomou assim o caminho certo até Mombaça. Antes de terminar o primeiro Canto, o poeta têm ainda tempo para fazer algumas reflexões sobre a fragilidade do homem, a insegurança que marca as nossas vidas, e os perigos que por todo o lado espreitam.
Canto II: Chegados a Mombaça, os portugueses vão enfrentar uma nova situação de perigo. De facto, e sob a influência do deus Baco, o rei de Mombaça decide preparar uma armadilha, convidando a armada a entrar no porto, onde seria imediatamente destruída. Para evitar quaisquer suspeitas, Baco disfarça-se de sacerdote e alicia os marinheiros que haviam sido enviados a terra. Sem suspeitar de nada, Vasco da Gama aceita o convite, e não fosse novamente o auxílio de Vénus, e a viagem teria ali o seu fim. Vénus e as Nereidas impedem com o peito que as naus entrem na barra, e logo se põem em fuga os emissários do rei e o falso piloto. Apercebendo-se do perigo que havia corrido, mas sempre determinado a cumprir a sua viagem, Vasco da Gama faz uma súplica à ―Divina Guarda‖. Quanto à formosa Vénus, esta vai pedir a Júpiter que ajude os portugueses, pedido a que ele prontamente acede: para além de enviar Mercúrio à Terra (no sentido de preparar uma amigável e calorosa recepção em Melinde), Júpiter profetiza ainda uma série de glórias que eles haveriam de alcançar. A armada parte finalmente de Mombaça em direcção a Melinde, onde vai chegar algum tempo depois e no meio de grande festividade. O rei da cidade faz questão de visitar a embarcação de Vasco da Gama, pedindo-lhe em seguida que narre a história de Portugal.
Canto III: O terceiro Canto começa com uma invocação a Calíope, a que se segue o discurso de Vasco da Gama sobre a história do nosso País. Num primeiro momento, assiste-se à localização geográfica da Europa e de Portugal. Em seguida, faz-se referência à lendária história de Luso (de quem derivam os termos Lusitânia e Lusíadas) e de Viriato (o impetuoso guerreiro que tantas derrotas infligiu aos romanos). Depois, é-
nos apresentado o conde D. Henrique, e a partir dele toda a galeria dos reis da primeira dinastia (desde o conquistador D. Afonso Henriques até ao monarca D. Fernando). Por entre o rol das descrições ganham destaque os episódios de Egas Moniz, da batalha de Ourique, da conquista de Lisboa, da formosíssima Maria, do confronto em Salado, da morte de Inês de Castro… Vejamos apenas alguns deles. A batalha de Ourique é um daqueles momentos gloriosos que para sempre ficam na memória de um povo. Foi travada pelo primeiro monarca de Portugal que, com a suposta aparição de Jesus Cristo, ganhou forças para derrotar todos os cinco reis mouros que compunham a hoste adversária. Daí resultaram as cinco quinas que compõem o escudo nacional. Quanto ao episódio da fermosíssima Maria, este começa com uma descrição física e psicológica da filha de D. Afonso IV. Depois, assistimos às suas múltiplas tentativas no sentido de convencer o pai a auxiliar o rei de Castela, que se via na eminência de um combate contra o poderoso exército muçulmano. D. Maria chega a utilizar argumentos de ordem pessoal para o convencer, mas juntando logo em seguida razões políticas e militares. Ela diz, por exemplo: ―E, se não for contigo socorrido, / Ver-me-ás (…) / Viúva e triste e posta em vida escura‖. Atendendo às súplicas de D. Maria, e percebendo que a seguir a Castela os mouros virariam as armas para o seu Reino, D. Afonso IV decide avançar com o seu exército, participando na batalha que para sempre ficaria conhecida com o nome de Salado. O último episódio que neste Canto falta salientar é, indiscutivelmente, o da morte de Inês de Castro. Repleta de dramatismo e emotividade, a história é-nos pormenorizadamente apresentada pelo narrador, que não consegue ficar indiferente e exprime abertamente a sua opinião: ―Que furor consentiu que a espada fina / (…) fosse alevantada / Contra hua fraca dama delicada?‖ ; ―Contra hua dama, ó peitos carniceiros‖. A ―linda Inês‖ vivia tranquila e alegre nas terras do Mondego, sem imaginar o destino trágico que lhe estava a ser traçado. Tudo por culpa do amor, diz Camões, que acusa de ser o grande culpado da ―molesta morte sua‖. Em desespero, Inês suplica a D. Afonso IV que a deixe viver, apresentando como alternativa o ―perpétuo e mísero desterro‖. Alega em sua defesa que nada daquela situação podia ser culpa sua, e sublinha o facto de ser mãe, precisando por isso de estar junto dos seus filhos. Comovido, o rei ainda vacilou na sua decisão, mas o destino de Inês acabaria mesmo por ser a morte. O episódio termina com a vingança de D. Pedro.
Canto IV:
A narração de Vasco da Gama prossegue, abarcando agora as personagens e os episódios referentes à segunda dinastia da monarquia portuguesa. Tudo começa com a crise de 1383-1385, que acaba por ter como ponto fulcral a batalha de Aljubarrota e a aclamação de D. João, o Mestre de Avis. Ao descrever a batalha que tomou lugar no dia 14 de Agosto, confere-se uma particular atenção à actuação de Nuno Álvares Pereira, cujo valor só podia ser equiparado ao de um ―fortíssimo leão‖. Nada seria capaz de o desmotivar, nem a inferioridade numérica das suas tropas, nem sequer o facto dos seus dois irmãos lutarem pelo exército adversário (eram eles D. Diogo e D. Pedro Pereira, que no final haverão de pagar com a vida a traição que infligiram à pátria). A batalha termina com o desânimo e a fuga dos castelhanos, que mais uma vez não foram capazes de derrotar os lusitanos (a independência de Portugal deixava finalmente de estar ameaçada). Após a narração deste episódio bélico segue-se a descrição da conquista de Ceuta (pela mão de D. João I em 1415) e a apresentação dos reinados de D. Duarte, D. Afonso V, D. João II, e D. Manuel. No que se refere a este último monarca há a destacar o sonho profético que teve (nesse sonho deu-se a aparição de dois velhos, que simbolizavam os rios Indo e Ganges, e que lhe anunciaram o domínio da Í ndia pelos Portugueses). Destaca-se também a preparação da armada, que havia de ser confiada a Vasco da Gama, e que havia de partir de Belém no mês de Julho de 1497. Antes de terminar, o quarto Canto é-nos apresentado um último episódio. Estavam já as embarcações no momento da largada quando, do meio da multidão, se ouve uma voz discordante. É a voz do Velho do Restelo, que num tom pessimista e carregado de simbolismo, critica a viagem e avisa dos inúmeros perigos que podiam acontecer. Embora o desalento pela viagem fosse compartilhado pela generalidade das ―mães, esposas, irmãs‖ dos navegadores, estas apenas conseguem exprimir uma reacção emocional e espontânea, ao passo que o discurso do velho já demonstra uma grande clareza e racionalismo; é um discurso elaborado a partir de um saber ―de experiências feito‖, e retirado bem do fundo do seu ―experto peito‖. Como alternativa à viagem, o Velho apresentava a guerra no norte de África. De facto, ele pergunta na estrofe 100: ―Não tens junto contigo o Ismaelita, / Com quem sempre terás guerras sobejas?‖ E reforça na estrofe seguinte: ―Deixas criar às portas o inimigo, / Por ires buscar outro de tão longe‖. Simultaneamente, percebe-se a sua preocupação em relação ao despovoamento do País, e ao facto de muitos preferirem embarcar em loucas aventuras do que cultivar as terras e fazer o seu pão. A análise do conteúdo e da função deste episódio tem gerado alguma controvérsia entre os estudiosos, existindo algumas versões diferentes. Uns, defendem que a
personagem do Velho foi apenas incluída para representar a facção desafecta à expansão marítima. Outros, vêem-no como um símbolo do humanismo, nomeadamente com o uso irrepreensível do espírito crítico. Outros ainda, apontam que um tal episódio só poderia servir para evidenciar (de forma ainda mais vincada) o heroísmo dos marinheiros, pois fica esclarecido que eles estavam perfeitamente conscientes dos perigos iam enfrentar, e ainda assim não recuaram.
Canto V: Vasco da Gama continua a sua narração ao rei de Melinde. Descreve cuidadosamente a viagem que o levou de Lisboa até aquele lugar, dando uma particular importância aos seguintes episódios: ao fogo-de-santelmo e à tromba marítima; ao episódio de Veloso; à passagem do Cabo das Tormentas (personificado na figura do Adamastor); e finalmente ao escorbuto. Quanto ao fogo-de-santelmo e à tromba marítima, são ambos episódios naturalistas e que descrevem ―cousas do mar que os homens não entendem‖. Nestas estrofes é visível a importância crescente que a experiência e a observação têm para a formação do conhecimento: os marinheiros presenciavam fenómenos que nunca os sábios haviam sequer imaginado, e que segundo os seus livros dogmáticos só podiam ser catalogados de ―falsos ou mal entendidos‖. Sobre o episódio de Fernão Veloso, um marinheiro fanfarrão mas pouco dado a feitos heróicos, podemos dizer que é particularmente interessante pela carga humorística e irónica que possui. Por outro lado, é também importante na medida que expõe a hostilidade com que alguns povos nativos receberam os viajantes. Começando na estrofe 37 e arrastando-se até à 60, temos aquele que é um dos episódios mais conhecidos e certamente mais retratados de toda a obra Os Lusíadas: o Adamastor. Cinco dias depois de partirem de Santa Helena, as naus de Vasco da Gama chegam ao Cabo da Tormentas, onde uma nuvem assustadora e terrível ―pôs nos corações um grande medo‖. O próprio capitão da armada faz um apelo a Deus, mas antes mesmo de terminar já uma figura enorme se vislumbrava no horizonte. Uma figura ―robusta e válida, / De disforme e grandíssima estatura; / O rosto carregado, a barba esquálida‖. A caracterização física não termina por aqui, seguindo-se uma série de outras assustadoras características; mas também a vertente psicológica acaba por se revelar aos poucos, sobretudo quando o monstro decide relatar o seu passado e o amor (nunca correspondido) que sempre sentiu por Thetis. O gigante Adamastor é uma entidade mitológica criada por Camões, e pretende representar todos os perigos e ameaças que os marinheiros portugueses tiveram de enfrentar na sua viagem. Este é um episódio onde se conjuga habilmente o real e o
fantástico, tendo sempre em vista realçar a vitória do ser humano contra os elementos da natureza. Relativamente ao escorbuto, ―doença crua e feia‖ para a qual ainda não se conheciam as causas ou a cura, Vasco da Gama realça os efeitos devastadores que ela teve entre os seus companheiros. Ficava assim concluída a narrativa do Gama, não sem antes porém elogiar abertamente a coragem dos portugueses. Nas últimas estrofes o poeta tece algumas considerações finais, acabando por criticar e censurar os seus contemporâneos pelo desprezo com que insistem em olhar a poesia e as artes.
Canto VI: À semelhança do que havia acontecido no momento da chegada, os portugueses despedem-se de Melinde no meio de grande festividade, e rumam em direcção a Calecute. Com eles segue um piloto conhecedor daquelas paragens, que o rei de Melinde fez questão de fornecer. Sentindo-se cada vez mais ameaçado, Baco desce ao palácio de Neptuno e convoca os deuses marinhos para um novo consílio. No seu discurso fica patente (uma vez mais) o ódio com que encara os portugueses, e conseguindo convencer a assembleia dos seus intentos, fica acordado que Éolo solte os ventos. Os navegadores, por sua vez, seguem tranquilamente a sua viagem, contando histórias e aventuras para passar o tempo e cortar a monotonia. Uma dessas histórias é narrada por Fernão Veloso, e ficou conhecida com o nome de ―Os Doze de Inglaterra‖. Tudo teria acontecido no reinado de D. João I, quando doze damas inglesas haviam sido insultadas por doze nobres sem escrúpulos, que desafiavam quem quer que ousasse defendê-las. As referidas damas pediram auxílio a todos quanto conheciam, mas sempre sem êxito, até que decidiram falar com o Duque de Lencastre. Este indicou-lhes o nome de doze cavaleiros portugueses, que imbuídos do espírito cavaleiresco (típico da Idade Média) logo se aprontaram a aceitar o desafio. Chegando a Inglaterra, os cavaleiros defrontaram-se corajosamente em ardente batalha, acabando por derrotar os adversários e sair vencedores. Abruptamente, porém, forma-se uma terrível tempestade e o cenário muda completamente de figura. Ventos, trovões e ondas gigantes fazem Vasco da Gama acreditar que o fim está próximo, e é então que ele dirige uma nova prece à ―Divina Guarda‖. Mais uma vez também é a presença da deusa Vénus, que engendra um plano para salvar os seus protegidos: prepara e envia as ―Ninfas amorosas‖, diante de cuja beleza e sedução os ventos se dão por vencidos. Este episódio é descrito por
Camões com grande realismo, sendo de prever que tenha usado toda a sua experiência pessoal (enquanto marinheiro e enquanto náufrago) para a elaboração dos versos. Quando a tempestade termina, os portugueses avistam a Índia, mais precisamente Calecute. Vasco da Gama, de ―geolhos no chão‖ e ―mãos ao Céu‖, agradece a Deus o cumprimento da sua missão. O Canto VI termina com o poeta meditando sobre o verdadeiro significado e valor da glória.
Canto VII: Estando a armada já em Calecute, o poeta aproveita para elogiar o espírito de cruzada dos portugueses, e para fazer um apelo a todos os povos cristãos, que deviam seguir o exemplo. Ficou célebre o verso: ―Vós, Portugueses, poucos quanto fortes‖. Em seguida, assiste-se à descrição da Índia, aos primeiros contactos entre navegadores e asiáticos, e à descrição do Malabar pelo mouro Monçaide. Vasco da Gama e a sua comitiva irão desembarcar em terra firma, sendo recebidos primeiro pelo Catual, depois pelo Samorim. Mais tarde será a vez do Catual visitar as naus e, nesse mesmo momento, pedir a Paulo da Gama que lhe descreva as bandeiras do seu País e o significado das figuras que elas ostentam. Bem vistas as coisas, este pedido é sobretudo uma artimanha do poeta para introduzir mais alguns episódios da história de Portugal. Nas últimas estrofes, assiste-se à invocação das Ninfas do Tejo e do Mondego, ao mesmo tempo que o poeta se lamenta das agruras da vida, e se esforça por distinguir quem merece e quem não merece ser alvo de elogios.
Canto VIII: No sentido de satisfazer a curiosidade do Catual, Paula da Gama relata os factos históricos relacionados com as bandeiras existentes a bordo. Luso, Ulisses, Viriato, Sertório, D. Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira, infante D. Pedro, D. Duarte de Meneses… são algumas das personalidades citadas neste relato. Regressando o Catual a terra, vai-se assistir a uma última intervenção de Baco, que ainda não se havia dado por vencido, e que tenta agora instigar os Indianos contra os visitantes. Os seus esforços são em parte recompensados quando Vasco da Gama é feito prisioneiro pelo Catual, que apenas deixa partir os portugueses depois destes lhe entregarem as mercadorias que traziam a bordo. Toda esta situação vai levar o poeta, nas últimas quatro estrofes do Canto, a reflectir sobre o poder do ouro. Um poder que torna as gentes cobiçosas, que ―mil vezes
tiranos torna os Reis‖, e que ―faz tredores e falsos os amigos‖. Ainda sobre os esforços constantes de Baco, seria de todo pertinente fazer um pequeno aparte para apresentar a opinião de Hernâni Cidade, para quem esta divindade mitológica representava o orgulho ferido de muçulmanos e italianos. De facto, estes seriam os mais prejudicados com a viagem em causa, pois estava em risco o monopólio (que desde longo tempo já controlavam) das lucrativas especiarias Orientais. O esquema era simples e altamente rentável: os primeiros transportavam as mercadorias em caravanas desde o Oriente até ao Mediterrâneo; os segundos, em particular genoveses e venezianos, redistribuíam esses produtos pela Europa. Tudo isso, porém, estava prestes a mudar com a criação da Rota do Cabo.
Canto IX: Após resgatarem os dois feitores aprisionados (Álvaro de Braga e Diogo Dias), os portugueses saem de Calecute e empreendem a viagem de regresso a Lisboa. É então que Vénus decide preparar uma recompensa, no sentido de premiar os corajosos nautas por todo o trabalho e sofrimento que até ali haviam tido. A recompensa seria uma ilha repleta de prazeres. Uma ilha ―fresca e bela‖, ―alegre e deleitosa‖, onde um grupo de Ninfas apaixonadas os esperavam impacientemente. Vénus teve a preocupação de mover a ilha de forma que não passasse despercebida aos portugueses. O seu plano correu como previsto, e eles efectivamente avistaram a ―ínsula divina‖, acabando por lá desembarcar, e descobrindo com agradável surpresa a presença das Ninfas, que sem grande dificuldade se deixaram seduzir. Chega-se mesmo a celebrar a união entre os homens e aqueles seres divinos, fazendo-se juras de ―eterna companhia, em vida e morte, de honra e alegria‖. Segundo a opinião de alguns estudiosos de Camões, não será errado afirmar que a Ilha dos Amores é a representação de um mundo ideal: um mundo onde todos os merecedores são compensados pelo seu esforço; um mundo onde o amor corre livre e não é alvo de censuras; um mundo onde, lado a lado, se conjuga o terreno e o divino, o carnal e o espiritual. Da mesma maneira, é difícil ignorar a grande carga erótica que marca os versos deste episódio, e que certamente suscitou o espanto de todos quanto leram a obra. Especialmente se tivermos em conta a mentalidade do séc. XVI, ainda predominantemente religiosa e vigiada de perto pela Inquisição. O poeta, contudo, antecipando alguma reacção desse género, decide logo à partida avançar com uma resposta: ―Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo‖. Após a explicação da simbologia e do significado da Ilha, o poeta tece algumas considerações sobre o modo de alcançar a glória.
Canto X: Ainda na Ilha dos Amores, os nautas da Lusitânia vão são brindados com um banquete, oferecido pela deusa Thétis. Simultaneamente, uma Ninfa vai profetizando as conquistas futuras dos portugueses no Oriente. Após uma interrupção nas estrofes 8 e 9, onde o poeta faz uma última invocação a Calíope, a Ninfa prossegue com a sua profecia. Quanto a Vasco da Gama, este é encaminhado por Thétis ao cume de um monte, onde lhe será mostrada a ―máquina do mundo‖, e onde é possível observar os lugares onde os portugueses se hão-de celebrizar. Numa tentativa de resumir o âmago deste episódio, diríamos que retrata a divinização dos heróis lusitanos, que simultaneamente são admitidos à visão do cosmos. O mesmo nos disse Jorge da Sena, na sua intervenção referente ao Dia de Portugal em 1977: ―Aqueles marinheiros, como o próprio Vasco, são deificados ou transfigurados epicamente na Ilha dos Amores, em condições sem dúvida moralmente impróprias…‖. Em seguida dá-se o embarque dos marinheiros e a viagem de regresso à Pátria, que havia de decorrer de forma tranquila (―Assi foram cortando o mar sereno, / Com vento sempre manso e nunca irado‖). A obra termina quando o poeta tem já a ―voz enrouquecida‖ de ―cantar a gente surda‖. A este desabafo segue-se um apelo final ao monarca D. Sebastião, para que pratique novos feitos ilustres e nunca deixe esmorecer a glória dos portugueses.
Os Lusíadas - Canto X Canto X A profecia Depois de saciados apetites, os marinheiros chegam ao palácio de Tétis, onde lhes é servido um fausto banquete. Neste, a Sirena profetiza os feitos dos portugueses no Oriente (estrofes 10 a 73). Mais uma vez Camões usa o artifício da profecia para contar o que se passou entre 1498, o ano da descoberta do caminho marítimo para a Índia, e o tempo em que o poema foi escrito. São então cantados os heróis e governadores da Índia, que da mesma forma vão merecer a presença na Ilha dos Amores: Duarte Pacheco Pereira (estrofes 12 a 23), Francisco de Almeida e o seu filho Lourenço de Almeida (26 a 38), Tristão da Cunha (39), Afonso de Albuquerque (40 a 49), Lopo Soares de Albergaria (50 e 51), Diogo Lopes de Sequeira (52), Duarte de Menezes e o próprio Vasco da Gama (53), Henrique de Menezes (54 e 55), Pêro Mascarenhas (56 a 58), Lopo Vaz de Sampaio (59), Heitor