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Folha de rosto
© 2015 Marcos Piangers
ditor Gustavo Guertler Coordenação editorial Fernanda Fedrizzi evisão Mônica Ballej o Canto Capa e projeto gráfico Celso Orlandin Jr. Produção de ebook S2 Books
E-ISBN: 978-85-8174-244-1 Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. [2015] Todos os direitos desta e diçã o reservados à EDITORA BELAS-LETRAS LTDA. Rua Coronel Cam isão, 167 Cep: 95020-420 – Caxias do Sul – RS Fone: (54) 3025.3888 – www.belasletras.com.br
Prefácio
OPiangers é meio pa recido com o Jack Nich olson . Te m a s me s ma s s obran celha s em forma d e ga ivota voand o no h orizonte e o mes mo sorriso debochado de quem está sempre se divertindo com a es tup ide z alhe ia. Acho, inclus ive, o se gu inte: o Pian ge rs e s tá mes mo se mpre s e divertind o com a e s tup idez alhe ia. Sobre tud o a p ieg uice a lheia . Não s eja p ieg as pe rto do Pian ge rs. Ele vai gozar de você. Ou , no mínimo, levantará as a sa s d aq ue las sobrancelhas e os can tos dos lábios d e Jack e s eu s olhos relampe jarão u m olha r malicioso e você p en s ará: esse cara está se divertindo com a minha estupidez. E, sim, rapaz, s erá verda de . Não dá pa ra s er es túp ido pe rto do Piang ers. Um camarada assim, tão Bukowski, tão Fante, tão Vonnegut, qu e, a liás , é o e s critor preferido d o Pian ge rs, tan to qu e, a o en trar no texto de le, você s en te a man ha american a d o Vonn eg ut de es creve r, a man ha do coloquia lis mo s incero e d es concertan temen te direto, o coloqu ialis mo ge nu íno de qu em conta u ma h istória com as vís ceras , então, como eu dizia, um camarada assim tão... enfim, tão Jack Nichols on, um camarad a a s s im você acha qu e e le é u m reb elde . E mais uma vez você está certo. Ele é. Mas como Bukowski, como Fan te, como Vonn eg ut e como Jack, Pian ge rs n ão s e rebe la p or perversão, e sim contra a perversão. Ele não anseia pela justiça, anseia pela bondade. É a falta de bondade no mundo que deixa Pian ge rs revoltad o. Ou a bon da de falsa , a b onda de interes s eira, a bonda de ... piega s. E aí é que está! No belo livro que escreveu, O Pap ai é Pop ,
Piangers consegue exercitar sua bondade inata, sem jamais ser piegas. Papai Piangers é pop, sem dúvida que é, mas também é s urpreen de ntemen te doce, pa ra qu em o ouve blas femar n o Pretinho Bás ico, o programa d e maior su ces s o da his tória d a Rád io Atlân tida . O le itor ate n to d e Zero Ho ra conh e cerá u m ta n to do livro, qu e é uma coletân ea de crônicas qu e Pian ge rs e s creveu no jorna l s obre a vida qu e p artilha com s ua s d ua s filha s e , até, sob re o pa i qu e n ão pa rtilhou a vida com ele . Ma s ne m o mais aten to leitor conh ece rá d e an temão o qu e s ó se cons eg ue ver no conjun to. O Pap ai é Pop é u m livro d e te xto leve e d e e moçõe s p rofu n d a s . Como é o Pian g e rs. Você vai sorrir e rir ao ler este livro. E pode, também, chorar. Mas aí, cuida do, não o faça na fren te d o Piang ers, ele pod e a char piega s . Ning ué m pode se r piega s pe rto do Pian gers. Davi d Coimb ra, jo rnalist
Sumário Capa Mídias Sociais Folha de rosto Créditos Prefácio Introdução Então você vai ser pai Guarde os presentes
Ser pai é fa zer contas Período de adaptação Dando o troco nas cr iança s Os melhores pais do mundo Brincadeira de criança Um a tar de no Shopping Chocolate Doce pre sente Diamantes Excesso de c ulpa na bagagem Tá de babá? Os terríveis de dois anos Minha filha não tem nada contra gay s Anita e a éclair Quando eu for velho Máfia no divã As histórias que me contam Dicionário infantil da língua portuguesa - Edição revista e atualizada Situação c omplica díssima A revolta dos colchões Só isso? ossa m elhor vista A religião da minha filha Tarde dem ais Orgulho Nerd O preço do sorriso está inflacionado Avós
Um verão perigoso Meninos e meninas Que nunca acabe Pa ra saber m ais sobre nossos lança m entos, ac esse
Introdução
MINHA MÃE ESTAVA A CAMINHO DA CLÍNICA
Uma amiga estava dirigindo, chovia bastante naquela terçafeira. As duas estavam nervosas, a situação, o temporal, as ruas alagadas. E a ilegalidade do que faziam. As duas atravessaram a cida de , pe ga ram aq ue la a ven ida q ue pa ss a n a be ira d o mar, pa raram em um sinal vermelho na subida de um morro. Estavam há vários minu tos s e m conve rsa r, e m s ilê n cio tota l de n tro do ca rro. D e n tro do fus ca s ó o b arulh o da chu va forte ba ten do n a lataria. A minh a mãe es tava ind o me ab ortar. Acontece q ue meu pa i, qu ero dizer, o homem qu e e ng ravidou minh a mãe, nã o qu eria s er pa i. Tinh a ou tra vida , outras priorida de s . O homem tinha outros p lan os . Não era o homem pra s er meu pa i. Talvez nenhum homem seria. Talvez minha mãe não conseguisse me criar s ozinha . Talvez nã o era pra s er. Existem vários tipos de pai. Desatentos, inseguros, dedicados, ocupados, atrasados, estressados, agitados, brincalhões . Há pa is qu e fazem tud o, e h á p ais q ue nã o fazem na da . Há pais que ajudam no tema, dão banho, fazem aviãozinho com a colhe r, contam histórias an tes de as crian ças dormirem. Há p ais qu e en sina m a an da r de b icicleta, qu e levam no es tád io, que dormem no sofá e deixam os filhos dormir em cima. Pais que deixam os filhos fazer tud o. Dis tan tes , carinh os os , inconve nie ntes , mode rninh os . Há pa is de todos os tipos. E há pa is q ue de cide m nã o ser pais. Foi o cas o do h omem por que m minha mãe s e a pa ixonou . E é o caso d e vários pa is . Ess a nã o é ne nh uma história extraordinária, ne m nada. É uma história bastante comum, na verdade. Há homens que não querem ter filhos. E, por favor, me respondam como isso pode acontecer? Como um pa i pode nã o qu erer se r pai? Não s ab e tud o o qu e irá p erder! Uma vez uma senhora escreveu uma carta a Kurt Vonnegut,
meu es critor favorito. Ela q ue ria s ab er s e, n a opinião do s r. Vonn eg ut, que tanto tinha escrito sobre o terror da guerra e a má conduta crônica da raça h uman a, uma pe s s oa d eve ria ter filhos . Sr. Vonn eg ut respondeu: “Não faça isso! Era o que eu queria lhe dizer. (...). Mas res pon di qu e o q ue qu as e fazia valer a p en a o fato de es tar vivo pra mim, além da mús ica, eram todos os s an tos q ue eu en contrava, qu e podiam estar em qu alqu er lug ar”.[1] Este livro é dedicado às pessoas que acreditaram nesses santos. Não q u e ro pa recer cata s trófico ne m n a d a , ma s é u m a to de fé colocar filhos n o mu n d o h oje. A p revisã o é d e u m fu tu ro ca ótico, de mudanças climáticas, superpopulação, doenças epidêmicas e au men to d a violência u rba na . Ter filhos é acred itar n o contrário d iss o tu d o. Tod o p a i é u m otimis ta . Ter filhos é ter fé em um futuro melhor. Um mundo onde ne nh uma dificulda de é d es culpa pa ra fazer mal a outra p es s oa. Um futuro ond e a s p es s oas s e res pe itam mais e onde exis te g en te q ue faz o be m s em pe dir algo e m troca. Faz o be m porqu e é as s im qu e tem que ser. Não por medo do inferno ou promessa de ir ao céu. Não porque terão alguma vantagem com isso. Não porque outras pe ss oas e stão olha ndo. Mas p orque iss o é o qu e nos faz hu man os. Naquele fusca barulhento, naquela terça-feira chuvosa, naquele sinal vermelho na subida de um morro minha mãe achou melh or voltar p ra cas a. D ep ois e la liga va p ra remarcar. E de pois foi fican do p ra d ep ois , e ela foi da nd o um jeito, e e u a cho qu e cons eg uiu um empreg o, e a b arriga foi cres cend o, e a ba rriga e ra eu . E eu na s ci. E minh a mã e foi me u p a i. E te n h o certe za q u e n ão foi fá cil pra e la, ma s aq ui estou eu .
Não sei como é ter um pai. Mas sei como é ser um pai. E é a melhor coisa do mundo. Tenho certeza que você concorda, mãe.
Para Eloisa Piangers, por topar esse passeio. Para Ana Emília, Anita e Aurora, por serem anjos.
E para mães sol teiras, onde estiverem. Obrigado.
Então você vai s er p ai
ntãovocêe suacompanheiraestãográvidos. Você sabe que precisa comprar uma casa maior. Tem que ter mais espaço pra crian ça. Te m q u e te r ma is u m q u a rto n o a p a rta me n to. Te m q u e te r um berço novo, não pode ser aquele que a vizinha se dispôs a e mp res ta r. En tã o você s a b e q u e te m q u e troca r d e ca rro. Aq u e le carro nã o é confortáve l pra le var a família. Aqu ele carro n ão é s eg uro p ro seu filho. Tem que ter seis airb ags , no mínimo. Tem que vir com arcondiciona do d e fáb rica. Coitad o do b eb ê n o verão. Pai n ovo, fiz tu d o a q u ilo q u e me d iziam, d o a p a rta me n to maior ao carro quatro portas, depois dos quais precisei trabalhar mais para poder dar conta das prestações. Trabalhava mais pra poder pagar a melhor creche. No supermercado, apenas a melhor fralda. Comp rar a fralda ma is b a rata s ign ificava a ma r me n os me u filh o. Roup a do brechó, nem pensar. De brinquedos caros nosso armário está che io. D e culpa també m, por ter q ue pa s s ar muito tempo n o traba lho. O que aprendi é que não faz diferença alguma. Um apartamento grande não faz diferença, porque as crianças gostam mes mo é d e d ormir amontoad as na cama d os p ais . Um carro gran de nã o faz diferen ça, porque as crianças gos tam mes mo é de an da r de b icicleta . A me lhor crech e n ã o fa z dife ren ça , s e você é o ú ltimo p a i a bu scar se u filho. Os brinq ue dos mais caros e os jogos de vide oga me não fazem diferença: para crianças, não há nada mais divertido do que se equilibrar no meio--fio ou andar na calçada sem pisar nos ris cos. Joga r uma crian ça pro alto e a ga rrá-la a ntes de cair no ch ão, es tá a í a melhor brincade ira d o mun do p ara q ua lque r pe qu en o. E tem a vantag em de se r de graça. Adoro aq ue la tirinha do Ra fae l Sica s obre o s uje ito qu e es tá s empre n o trab alho p en s an do n o ba r. No ba r, o su jeito es tá s empre pensando na família. Em casa, com a família, o sujeito está sempre pensando no trabalho. O sujeito nunca está realmente onde ele es tá. Cria s empre a lgum tipo de ruído na relação d ele com as cois as . Es s e cara s ou e u, pe ns ei q ua nd o vi a tirinha pe la primeira vez. Então
você e sua companheira estão grávidos. Então você sabe que não precisa de uma cas a maior, de um carro melh or, ne m da melhor fralda , ne m da melhor creche . Você s ab e, no fun do, qu e s ó precis a es tar lá. D e v e rd a d e .
Gua rde os p res en tes
ada pai é um colecionador de histórias. O d i a a d i a d a pa ternidad e, ape s ar de muitas vezes cans ativo, é u ma s uces s ão de surpresas, poucas delas registráveis. Cada primeiro sorriso, cada primeiro passo, cada primeira frase completa. Cada momento é desesperadamente registrado com uma câmera tremida, uma fotografia em baixa resolução que nenhum amigo vai achar grande coisa. Ma s s er pa i é ten tar reg is trar tud o iss o. Porqu e p ais s ab em que as crianças crescem e que esses momentos preciosos são únicos. As histórias da s minha s filha s eu an oto no b loco de notas do meu s martph one . Ten ho a pe na s fras es me lembrand o de momen tos que eu acho que valem virar textos. Coisas como “conto no livro da es cola” (sob re u ma vez qu e e la e s creveu uma h istória de uma men ina qu e s onh ava e m s er pa tinad ora d o BIG) e “ Anita qu er casa r” (uma vez qu e minh a filha diss e qu e q ue ria cas ar logo, se gun do e la, “p ara ter em que m man da r” ). Algu mas his tórias eu regis tro em de s en hos . Ou tras em textos . Que ro lembrar para s empre q ue a mais velha s empre me a corda com beijos, prepara meu café da manhã quando estou de aniversário, conversa por horas na s viage ns long as e toma s orvete d evag ar “p ra durar mais”. Quando chega à porta de casa, ela nunca aperta a campainha: sempre canta alguma música, cada vez mais alto, até algu ém ab rir. Adoro iss o.
A menorzinha me acorda aos gritos. Dorme tarde demais qu and o eu tô can sa do. Quer colo qua nd o minh as du as mãos e stão ocupadas. Grita se não faço exatamente o que ela quer, na hora exata qu e ela de s eja. Ela costuma fazer xixi na minh a roup a no men or sinal de desatenção e cocô nas camas de hotel, quando estamos saindo com pressa pra pegar um avião. Gosta de estar sempre segurando algo. As escovas de dente ora massageiam suas ge ng ivas , ora s ão e s freg ad as com força no chã o s ujo. Todo p ai é um coleciona dor d e his tórias . Cad a his tória é um presente que nossos filhos nos dão. Guarde bem os seus presentes.
Se r pa i é fa ze r con ta s
Nessecomeçodeano já foram a re matrícula , os n ovos ma te ria is, un iformes qu e caiba m na s crianças s em deixar a b arriga a pa recen do, como estava acontecendo no final do ano passado. Separei uma grana pro lanche, comprei uma mochila nova depois de um ano ouvind o lamúrias . Faltam o trans porte es colar, o livro d e ing lês qu e ainda não chegou à livraria e estou considerando cortar a Net, mesmo sabendo que uma viciada em Peppa Pig pode se tornar pe rigos a com a a bs tinên cia. Mas a verdad e é q ue es tá carís s imo se r pai. Multiplique esses gastos por doze meses, e esses doze mes es por cerca d e vinte e cinco an os e teremos calculad o o cus to de um filho, que de ve s er mais d e d ois milhões de rea is, e nã o es tou colocand o aí ne nh um cas amen to chiqu e n em os ga s tos com a lataria do meu carro nos primeiros an os de direção da s crianças. São d ois milhões de reais que estou investindo com a esperança de que sejam pessoas brilhantes, mudem o mundo, descubram a cura do
câncer. Estou investindo essa dinheirama para ser acordado de madrugada porque as meninas estão com medo do escuro. Estou pa ga nd o pra p eg ar trân s ito no primeiro dia d e a ula. Es tou p ag an do p ara ver ap res en tações de final de an o. Es tou pagando por desenhos feitos só com uma cor, onde apareço sem nariz. Estou pagando satisfeito por isso, preciso dizer. Estou pa gan do es sa dinheirama p ara s er cha mad o de h erói quan do mato uma b arata. Estou p ag an do es sa pe qu en a fortun a p ara pe ga r a bola que caiu no terreno do vizinho e ser aplaudido pelas pequenas. Estou pagando para saber tudo sobre todas as coisas e ter res pos tas pa ra toda s as pe rgu ntas . Es tou pa ga nd o até b arato por isso. Es tou p ag an do u ma p echincha por abraços . Cad a a braço de uma men ina d e dois a nos me economiza uma fortun a qu e eu ga s taria com psiquiatras. Cada beijo de boa noite me alivia a conta do cardiologis ta. Cad a “ eu te amo” me a fas ta do hos pital. É um acha do o qu e e s tou p ag an do p or tud o is s o. Que s orte g igan tes ca ter achad o es sa ba rba da . Que promoção maravilhosa es sa de se r pa i.
Período d e ad ap tação
á quem diga aqui em casa que eu não quero participar dos proces sos e scolares da s men ina s, mas a verda de é qu e qu ero, só que não consigo. Tudo começou muito cedo, quando depois de quatro meses de licença maternidade e um mês de férias, minha mulher precisou voltar a trabalhar. Sem babá ou avó por perto, tínha mos q ue ir à creche todos os dias jun to com a b eb ê, pa ra o qu e a e scola chama d e “ pe ríodo de ad ap tação”. Era um tormento abandonar minha filha recém-nascida nos braços d e q ua lqu er pes soa, qua nto mais u ma p es soa q ue precisa ria cuidar de outras crianças recém-nascidas. Suava frio e disparava o miocárdio s ó de ver aq ue le monte d e b ercinh os . E s e ch orarem toda s ao mes mo tempo? E s e minh a filha en ga s ga r e ning ué m pe rceb er? E se trocarem as crianças, que nesses primeiros meses são todas meio pa recida s ? Com o tempo, pe rceb i qu e o “ pe ríodo de ad ap tação” tem esse nome não por causa da adaptação necessária para a criança s e ambien tar na es cola. É um período d e ad ap tação pa ra os pais! Precis ei de uma temporada es ten dida de ad ap tação e a chei qu e conse gu iria d eixar a pe qu en a n a e scola s ozinh a com un s dois an os. Aí en tão ve m uma s eg un da fas e: a pa rtir do momen to em qu e começa a entender que está sendo deixada na creche, a criança
chora pra n ão ir à es cola. E aí, amigos, nã o há na da qu e corte mais o coração de um pai d o qu e en trega r se u filho choran do p ara ou tra pessoa cuidar. Cansei de levar minha filha na escola, de vê-la choran do e d izen do qu e n ão qu eria e ntrar na creche , uma men ininh a gordinha de dois an os imploran do “ só h oje, pap ai. Buááá áá á. Não qu ero ir pra es cola, pap ai”, e trazê-la d e volta pra cas a pra q ue a minha mulher faça o trabalho. Minha mulher é muito melhor em en treg á-la n a es cola. Os ins en síveis d izem que iss o é man ha da crian ça, que ela está querendo me manipular. Pois, então, parabéns, porque está ten do s uce s s o. Pra mim, pa rece u m choro de de cep ção, u m lamen to s incero de qu em esp erava mais de mim. Sou o p ior pai do mun do n o qu es ito en treg ar a filha na creche . Meu pe ríodo d e ad ap tação aind a não acabou.
D an do o troco na s crianças
inguei-me das meninas esses dias. Estávamos no carro e, a caminho de casa, passei a perguntar insistentemente: “Já cheg amos? Já che ga mos? Já che ga mos? ”. Pra verem o que é b om pra toss e. A cada dois minutos p ergu ntava “ Já cheg amos ? ”, e e las e ram obrigadas a me dizer que não, que ainda não, calma que já vai che g a r. Foi uma ótima ving a n ça. Aí então, confiante com o sucesso desse primeiro experimento, ampliei minha área de atuação. Passava a manhã gritando “Tô com fome! Tô com fome!”, e quando saía o almoço dizia que não queria comer. Pedia ajuda para fazer as tarefas mais s imples . Se n ing ué m me a juda va eu gritava: “M as eu nã o cons igo!”. E fingia um choro qua nd o que ria qu e e las a marras s em meu s cad arços, p or e xe mp lo. Passei a perguntar “Por quê?” pra tudo. Se contavam uma história do colégio, eu perguntava: “Por quê?”. E se uma explicava que era porque a professora de matemática passa muito tema de casa , eu mand ava ou tro: “Por qu ê? ”. E ela tinh a qu e e xplicar que era porque o pessoal da sala não era muito bom de matemática. “Por quê?”. Porque todo mundo não prestava atenção na aula. “Por qu ê? ”. Porqu e e ra u m as su nto que nã o interess ava. “Por quê? Por qu ê? Por qu ê? ” . E ela ficava irritad a a té g ritar qu e n ão s ab ia, que ela não tinha que saber de tudo, meu Deus pra que perguntar tanto assim? E e ra ótimo d ormir com a a lma lava d a . Até qu e u m dia s en ti um s orris o mala nd ro na ca ra de las , como s e tives s em de s cobe rto algo que eu nã o sa bia. Pas s amos o café d a manhã todo nos olhando, eu desconfiado e elas rindo de alguma coisa. Tomei banho e fui trabalhar. Quando cheguei em casa uma d e l a s d i s s e : “ Já p r o b a n h o ” . M a s o q u e é i s s o , q u e m ma n d a n e s s a casa aq ui s ou e u. “ Já p ro ba nh o!” , ela repe tiu. E a outra gritou: “Se não tomar banho agora, vai ficar sem o celular”. Na janta tive que come r tud o, até o b rócolis , ra s p a r o prato e colocar na p ia. Le vei ma is de uma hora arrumando o quarto. “E escova os dentes bem escovados!”.
Naquela noite fui pra cama antes das nove, sem direito a televisão.
Os melhores pa is do mun do
omosumageraçãodepaiscomculpa. Não sa be mos nu nca se estamos cuidando de nossos filhos direito. Não sabemos se es tamos alimen tan do n oss os filhos direito, ed uca nd o nos s os filhos direito, repreendendo as pirraças direito, abraçando e beijando direito, dormind o n a hora certa direito, larga es s e iPad direito, pelo amor de D eu s vem almoçar, já pe di cinco vezes direito. Somos uma ge ração de p ais q ue s empre a cha qu e e s tá fazend o tud o errad o. A es cola talvez nã o s eja a certa, a comida es tá muito ind us trializad a, ach o qu e o vide oga me d eixa e les muito ag itad os . Alguma cois a e s tá se mpre errad a e a culpa é noss a. Os piores pa is d o mun do. D igam o qu e q uise rem, acred ito qu e s omos os melhores pa is do mun do. Minh a mãe me e ntup ia d e b olacha e ki-s uco na d écad a d e 1980 e eu estou aqui, nem tão firme e nem tão forte, mas vivo. Percebam: somos a geração que frequenta feiras orgânicas! Que sa be p ra qu e s erve a q uinua e a s emen te de giras sol (eu n ão se i!). Somos a ge ração pró-ed uca ção cons trutivista, a ge ração qu e mais diss e e u te a mo para s eu s filhos. Por D eu s ! Somos a g eração que s e preocup a com a q ua ntida de de sódio na ág ua mineral! Noss os p ais nos da vam ág ua de torne ira p ra b eb er! Somos os melhores p ais d a h is tória, com ce rte za! E s obre e s s e a dve nto maravilhos o da tecn ologia, o que dizer? Esse aparelho celular que nos permite tirar centenas de fotos das crian ças fazen do as ativida de s mais triviais ? Es s e tele fone mag nífico que nos permite responder emails de casa, enquanto abraçamos nos s os filhos no s ofá? Há qu em diga qu e a tecnologia n os d istan cia dos filhos , pois n os s os p ais ficava m até tarde no e s critório e qu an do chegavam estávamos dormindo. De vez em quando nossos pais viajavam em férias e n ão n os levavam (hoje em dia e ss es pa is s eriam de tona dos no Face book, compa rtilhe es s a atrocida de você també m). Perdoe m-me vocês , mas iss o s im eram pa is d istan tes . E nã o esq ue çam qu e q ua nd o viajávamos, éramos levados n o ba nco de trás (qu an do n ão n o vão tras eiro do Fus ca), sempre s em cinto de s eg uran ça. Como pod e a ge ração d a cad eirinh a an ti-impa cto ter alguma culpa por qualquer coisa? A geração que quer abolir a
pa lmad a a través de uma lei? A ge ração q ue , por pa drão, coloca u ma televisã o no qu arto dos filhos ? Somos d isp arad amen te os melhores pa is do mun do. Somos leg ais , ge nte. Pode a cred itar. E ag ora larga o celular qu e a crian ça es tá chaman do.
Brincad eira d e crian ça
Não sei se a Janis Joplin agora é professora do ensino fundamental, mas minha filha mais velha e todos os amigos dela, aparentemente, viraram hippies. Passam horas reunidos em rodinha s , todos eles com s eu s eq uipa men tos, cada um produ zindo s ua varieda de de pu lseirinha s d e e lástico colorido. Pass am horas n a confecção e d ep ois ten tam ven de r o artes an ato pa ra pob res ad ultos qu e, des avisad os, pag am dois, até três rea is por uma pulse ira q ue muitas vezes ap erta o pu lso. A minh a já pe di n a cor roxa, q ue é p ra combina r com a g an gren a q ue vai caus ar. Não que ro se r sau dosista, mas na minh a ép oca se brincava de estilingue, zarabatana, brincadeiras saudáveis a todos, menos pro Otávio, que uma vez qua s e ficou ceg o. Mas s ub íamos em árvores , explorávamos construções abandonadas, tudo muito divertido, menos pro Otávio, que pisou num prego e teve que levar a an titetân ica. Bons tempos aq ue les em qu e jogáva mos futeb ol o dia tod o, me nos p ro Otá vio, qu e s e mp re torcia o p é . E não vamos muito longe. Até bem pouco tempo as crianças brincavam com jogos saudáveis, como o Banco Imobiliário, que en sina va valores como a ne cess idad e d e p oup ar o dinh eiro, comprar imóveis quando tiver oportunidade e humilhar os amigos mais pobres. Ou mes mo es se s jogos de vide ogame, onde a prendíamos a da r tiros e m pe s s oas no meio da rua e a roub ar carros e de s truí-los batendo no carro da polícia. Aquilo é que era um passatempo saudável. Mas essa nova geração está mesmo perdida, fazendo pu lse irinh a o dia todo e vende nd o para pobres a du ltos d es avisa dos. Em cad a res idê n cia a g ora te mos u m H.Ste rn d a b iju te ria infa n til, uma Tiffan y & Co da s borrach as colorida s . E ond e es tão os carrinhos de rolimã? Ond e es tão a s brincad eiras com ovos qu e s empre a certavam aquela senhora do 502, para a explosão de risadas de toda a criançada? Me nos pro Otávio, que s empre e ra pe go e ficava d e castigo.
Uma tarde no Sh opp ing
ssaaq iéprav cêq ees ápe sa d em erfIl s
A p a te rnida d e , e m long o p razo, é e xtremame n te g ratifican te , preenche um vazio existencial, permite que você se sinta eterno, desperta o orgulho de ter formado um cidadão que pode fazer diferença positiva no mundo. Mas em curto prazo, no dia a dia, existem peq ue na s cois as qu e colocam es s e p lan o maior à p rova, nos da nd o uma vontad inh a d e d es istir. Por exemplo, uma ida ao shopping com du as filha s . A filha mais velha normalmen te es tá falan do, p orqu e é iss o o qu e a s mulhe res fazem qu an do e s tão a corda da s – algu mas també m fazem quando estão dormindo –: falam. Ela vai falar sobre comprar uma mochila n ova, ou p uls eiras de zípe r, ou q ua lqu er outro ap etrecho colorido qu e você nã o vai enten de r muito be m o qu e é ou p ra qu e s erve, e terá nome e s qu isito como niddles , ou poppies , ou booblebis . A mais nova estará chorando, indignada por estar sentada em uma cad eirinh a p ara crian ças , pres a p or um cinto de s eg uran ça. Você terá muitas vezes vontad e de de ixá-la s em cinto, se m cad eirinh a, e talvez a té com a p orta me io a b e rta . Qu an do fina lmen te cons eg uir es taciona r, a mais velha es tará choran do porque você diss e q ue nã o vai comprar niddles ou poppies ou booblebis e a mais nova estará dando chutes no encosto para cabeça do banco do motorista. Agora você tirou a mais nova da cadeirinha, mas a mais velha se recusa a sair do carro. Depois de alguma conversa, a mais velha sairá, mas a mais nova estará chorando agora. Para acalmá-la, você permitirá que ela ande na es cad a rolan te 13 vezes, sub ind o e des cendo pe la e scada do lado, p a ra e n tão, fina lme n te , pod er e n trar de fato no shopping . D en tro do shopping, h a ve r á p a ra d a s n a s lo ja s d e d o ce s , d e ba lões , de s orvete, de celulares e , é claro, na s lojas de brinq ue dos . Em cada uma da s lojas , haverá u ma compra ou uma conversa long a s obre como nã o existe a p os s ibilida de de você comprar, por exemplo, um chiclete de de zes s eis rea is. Em cada pa rada , você pe rde rá uma filha , porqu e en qu an to uma pa ra a outra s eg ue tran qu ila pe lo meio da multidão. Ainda que o sentimento de perder uma filha seja
desesperador, o sentimento de perder as duas filhas é um pouco revigorante. A loja p a ra a q u a l você foi até o shopping n ã o te rá o p rodu to que você esperava encontrar, então é hora de pagar o es taciona men to. Aqu i temos u m momen to e s pe cial n a vida do cida dã o mode rno, momen to es te qu e merece u m pa rágrafo s ó pra ele . Antigamen te os qu ios qu es de pa ga men to d e es taciona men to eram localizados na saída do shopping , o que fazia toda lógica do mundo. Então os quiosques passaram para o meio do shopping , imagino que seja pras pessoas ficarem mais tempo circulando, au men tan do a s chan ces de você comprar algo ou d e pe rde r um filho. Mas agora os quiosques estão nos locais menos prováveis, es cond idos, embaralhad os, mud an do d e luga r o tempo todo. Imag ino que em breve teremos que perguntar para os seguranças a localização dos quiosques e receberemos uma senha secreta – e s ub indo a o terceiro an da r do shopping en contraremos u m s en hor de óculos, sobretudo e chapéu que ouvirá a senha e nos dará um pendrive com as coordenadas de latitude e longitude do quiosque para pagamento do estacionamento. Mas voltemos às minhas… filha s … cad ê minh as filha s ? !!? ! Ah, estão lá. Você então gritará para suas filhas que virão corren do e e s ba rrand o nas pe s s oas , toda s elas muito civilizad as e considerando você um péssimo pai. Você pagará o estacionamento com a mais nova no colo, a mais velha , feliz com s eu s niddles , te n ta rá e n trar no carro com o outro ca rro cola d o ao s e u , ouvirá os choros d e protesto da mais nova na cadeirinha, aguardará a cancela abrir e e s ta rá n ovamen te e m conta to com o ar p u ro, o s ol, os p á s s a ros. Você ab rirá o vidro e en trará uma brisa s ua ve. No rád io es tará tocan do u m a zz g os tos o, os motoris ta s d a rão p a s s a g e m e o trân s ito fluirá com calma, mas cons tân cia. Você olha rá p elo retrovisor e ve rá d ua s lind as crianças felizes , olha nd o a pa isag em. E, na qu ele momen to, você s erá a pe s s oa mais feliz do mund o.
Chocolate
stava empolgadocom acaça aos ovos de chocolate este an o, mas an un ciaram lá em cas a qu e n ão va i ter chocolate. Faremos uma caça aos ovos d e q uinu a. Ouvi dizer qu e é moda en tre os pa is mais mode rnos e n oss as filhas pod erão de vorar es te b elo reg ulad or intes tinal e nq ua nto tomam um de licios o s uco verde de couve. Será uma Pás coa divertida . As s istiremos os d es en hos da TVE qu e, eu nã o s ab ia, sã o os ún icos com ling ua ge m ap rovada e nã o infan tilizam as crian ças . Fiqu ei s urpres o ao d es cobrir que infan tilizar crian ças é u ma cois a ruim. Não sei quem fez a lei, mas também está abolida qualquer história sobre o coelhinho da páscoa. Não consigo mentir pras crian ças . Ao me p ergu ntarem “Q ue m trouxe os ovinh os, p ap ai? ” , direi solenemente que realizei a compra dos ingredientes pagos com
cartão e com CPF na nota, e eu mesmo que trouxe em uma sacola reciclável. Não será bem uma “caça” ao tesouro, porque o uso do te rmo pod e in cen tiva r violê n cia contra a n ima is. Nem pod e mos ch a ma r de “ tes ouro” a lgo qu e n ão é tão valioso qu an to a vida , a família. Será uma “ bu s ca aos ovos de qu inua ” . Uma b rincad eira d ivertidís s ima q ue as crianças vão ad orar. Minh as pá s coas era m um horror. Ten ho n ove primos e todos nos reu níamos n a s ala e nq ua nto os tios es pa lhavam chocolate p ela cas a do vô. Era tan to chocolate qu e ficava impos s ível n ão ach ar os ovos, tinh a s empre u m pa pe l brilhan te es capa nd o por algu ma porta do armário. Cad a primo d evorava u m ovo giga nte, e de ntro dos ovos de chocolate, naquela época, vinha ainda mais chocolate. E eram coelhos enormes feitos de chocolate e bengalas de chocolate e ba rras de chocolate. E minh a vó de rretia alg umas ba rras de chocolate para escrever nosso nome em cima de um bolo de chocolate com recheio de chocolate. Ficávamos sujos de chocolate na cara, nas mã os , na camis e ta e o s ofá d a cas a d o vô fica va u ma n ojeira. Até a TV, que naquela época passava desenhos violentos, ficava toda marcad a com impres s ões digitais marrons . Aquilo foi há mais de vinte anos. O crime já prescreveu. Hoje sabemos que diabetes é coisa séria e que desenhos violentos de se du cam. Me us avós n ão conhe ceram os b en efícios d o amaran to, da q uinua e da linh aça. Não sa be m o que pe rde ram.
D oce pres en te
stou tentando ensinar pra minha filha de dois anos conceitos básicos, como ontem, hoje e amanhã. Ela sabe mais ou men os o qu e é ontem, levan do e m conta qu e já e nten de qu e fazer xixi no chão d a s ala n ão é algo qu e d eixa o p ap ai muito feliz. Mas nã o s a b e o q u e é a ma n h ã . Q u a n d o d i g o q u e a ma n h ã c h e g a a v ovó , e l a corre pra p orta. Qu an do d igo qu e mês qu e vem vamos pra p raia, ela já pega o maiô no armário. Ela não sabe o que é paciência, o que é es pe rar pa ra fazer algo. Ela nã o s ab e o q ue é futuro, nã o cons idera mu ito o pa s s a d o. A Au rora vive s ó o ag ora. Nós, adultos, costumamos viver tudo, menos o agora. Sabe mos b em o qu e é o pas sa do, pas sa mos b oa pa rte d o tempo nos comparando com nós mesmos há alguns anos. Como éramos mais oven s , como éramos mais pob res , como nos s a vida melh orou, como eu tinha mais cabe lo. No meu tempo é qu e era b om! E qu an do n ão es tamos com a ca be ça n o pa s s ad o es tamos com a cab eça n o futuro. Será qu e vai chover? On de vai ser o jan tar? Se rá q ue ele vai liga r? Como se rá minh a a pos en tad oria? Pois be m, eu ten tei e ns ina r o qu e é o futuro p ra Aurora. D ei pra e la um doce e expliqu ei qu e s ó pode ria comer de pois d o almoço. Ela colocou o d oce n a boca imed iatamen te. Com a boca che ia d e doce ela s orria com os olhos , pra minh a ind ign ação. Expliqu ei claramen te que doce é só pra depois do almoço. Ela deveria entender. “Entendeu, Aurora?”. “Tedi”, que significa “entendi” em aurorês. Como p rova d e en ten dimen to, propus comprar mais um doce, q ue ela deveria conservar até “depois de fazer papá”. Ainda reforcei com mímica , le van d o a mã o até a b oca com u ma colhe r ima g iná ria . “ Te d i”, ela diss e, olha nd o nos meu s olhos. Agora, é claro qu e eu imag ine i qu e e la també m comeria e s te doce. Mas acred itava qu e e ste d uraria mais algun s s eg un dos do qu e o primeiro, e as s im eu teria e ns ina do algo com o expe rimen to, o qu e nã o acontece u. Ou e la men tiu de s carad amen te p ra mim, ou é p és s ima para entender mímica. Se eu explicasse mil vezes ela devoraria mil doces ali, an tes de comer q ua lqu er a rroz com feijão. A Aurora, com iss o, neg a a nos talgia d e viver no pa s s ad o e a
an s ied ad e d e a ntecipa r o futuro. Ela vive o doce p res en te, de vora a vida como se nã o houves s e a man hã . Ela es tá ond e e s tá, pres tan do aten ção n o qu e a contece com ela n aq ue le momen to, se m compa rar com o qu e já foi e n em es pe rar na da do futuro. Um dia irá ap rend er qu e es covar os d en tes evita dor, qu e gu arda r pra mais tarde evita sofrimento. Ma s s erá q ue cárie dói tan to as sim? Eu n un ca tive. Será q ue e con omiza r va i me g a ran tir u m fu tu ro prós p e ro? A Au rora, com a b oca cheia de doce, es tá ab s olutamen te rea lizad a. Enquanto isso, nós adultos muitas vezes guardamos os doces , pra muitas vezes jamais comê-los.
Diamantes DIAMANTES
Num casamento que eu fui esses tempos, o mestre de cerimônias era daqueles modernos, sem religião, que fazem o casamento ficar bem descontraído e, às vezes, por causa disso, constrangedoro. A gente se sente meio que numa palestra motivaciona l (qu em é cas ad o cons eg ue en ten de r a ironia n iss o). Em d e te rmina d o mome n to, o me s tre d e cerimôn ias mod e rninh o pe diu p ra todo mun do d ar as mãos e, na contag em do três , gritar be m alto algu ma coisa qu e de s ejávamos pa ra os noivos. Todos contaram
“um… dois… três… e” e berraram ao mesmo tempo coisas do tipo “ ale gria!” , ou “ amor!” , ou “ felicida de !” . E no meio disso uma criança de sete anos gritou: “Diamantes!”. O qu e p oderia s er melhor do qu e g an ha r diaman tes no dia d o casamento? Alegria é passageira, felicidade plena é inalcançável, amor o cas al de noivos já e s tá che io. De s ejem aos noivos d iamantes ! Eles s ão eternos , e em um momen to de n eces s ida de pod erão vend er algu ns pa ra fazer um cruzeiro pelo mun do ou comple tar o tan qu e d e combu s tível com ga s olina (não ad itivad a qu e es tá muito cara). Dizem qu e vend en do alguns diaman tes se cons eg ue p ag ar uma refeição no ae roporto, mas nã o acredito qu e s eja rea lmen te p os s ível. Chamou-me a atenção que ninguém gritou “meias!”. Meias, portanto, não são um bom presente pra se desejar aos outros. Nin g u é m ta mp ou co gritou “ vale -p res e n te d a S a raiva!”. Eu g os to muito da Saraiva, mas abomino vale-presentes, praticamente um cartão escrito “não perdi tempo pensando em um presente melhor”. Nin g u é m g ritou “ co mp act disc s !” , nem “a coleção completa do s eriado Friends em DVD !” . Seriam pres en tes intere s s an tes , mas fora d e moda. Eu gritei “amor”, meio constrangido com a situação e com med o de pa recer um des ejo ridículo pa ra os outros na fes ta. Gritei “ amor” p orqu e s ei qu e n o fina l da s contas é a cois a mais importan te em uma relação (tirando o iate, quando houver). Mas desejei ter gritad o “ diaman tes ” de pois qu e o mes tre de cerimônia mode rninh o falou no microfone : “Q ue vocês receb am o q ue gritaram em dob ro!” .
Excess o de culpa n a ba ga ge m
iajamos sem as crianças por vinte dias pela Europa. (Quão irritante é essa frase? Consegui com menos de dez palavras irritar qu em nu nca viajou pra Europa, qu em nu nca cons eg uiu viajar se m os filhos e q ue m já foi pra Europa s em os filhos , mas ach ava qu e e ra o único no mundo a fazer isso. Calma, tenho outras frases irritantes para compor este texto). Deixamos as meninas com as avós e levamos n a ba ga ge m muito cas aco e culpa p or aba nd onar noss as men inas por vinte dias . Como ela s es tarão q ua nd o a ge nte voltar? A mais velha es tará malcriada , res pon de nd o a tud o com raiva e de s dé m? Terá a dq uirido o hábito do fumo? A de dois anos não irá nos reconhecer quando voltarmos? Elas não vão mais nos amar? Estarão cheias de tatua ge ns ? Es tarão toda s bê ba da s qu an do e ntrarmos e m casa ? As pa red es picha das “Fora pa pa i” e “ Ma mãe te odeio”? Desembarcamos no aeroporto ansiosos, furando a fila da imigração, com licença, cuidado a mala, o senhor não entende, nos s as filha s e s tão e m pe rigo, meu D eu s . O taxista p uxou convers a, adoro seus textos, sou seu fã, ok, ok, meu amigo, vamos logo com is s o, minha s filha s es tão me odian do, eu nã o de via ne m ter viajad o. Como fa z p ra tirar ta tu a g e m? Chegamos em casa, a sogra estava sorridente e aparentemente sóbria. As meninas correram pra nos abraçar. Che iran do s ua s roup as nã o se nti che iro algu m de nicotina. Nenh uma parede riscada. Descobrimos que a de dois anos não usava mais fralda. Fazia xixi e cocô no penico, pedindo educadamente em todo momen to de ne cess idad e. As du as es tavam dormindo ced o, se mpre de banho tomado e deveres feitos. A mais nova estava comendo brócolis, a mais velha interes s ad a por poes ia e jazz. Aparentemente, eu e minha mulher não somos pais irres pons áveis porqu e a ba nd onamos a casa por vinte d ias . Mas por nã o fazermos iss o com mais frequ ên cia.
Tá d e b a b á ?
Sempre tive essa cara de maluco, barba mal feita, cabelo desregrado, mas jamais usufruí de substâncias proibidas por lei, exceção d o pe ríodo de faculda de , qua nd o na morei uma menina qu e curs ava Biologia. Vocês s ab em como é o pe s s oal de biológicas ... Ma s , du rante toda a minh a vida , por cau s a do meu je ito, se ap roximava m pe ss oas qu erendo e ncarar uma n oite longa demais ou pe rgun tand o se eu tinha seda (demorei pra descobrir que não se tratava do te cid o). Era d ifícil exp licar q u e minh a n oite ide a l en volve o mín imo d e agito, o mínimo de barulho, o mínimo de fumaça e o mínimo de pe ss oas me p erguntan do: “O qu e mes mo eu tava falando? ”. Tive filho cedo e algumas pessoas achavam estranho eu estar sempre com um bebê no colo. Pra mim, aquilo sempre foi uma boa compa nh ia. Eu ad orava a ideia de s er pai. Ma s a s p es soas não es pe ravam iss o de mim. Olha vam-me feio na rua. Eu e ra um cas o de patrulhamento inverso: as pessoas esperavam de mim um comportamento PIOR! Ficavam confusas de me ver cuidando de crianças . Nunca e s qu eço de uma man hã pa s s ea nd o com minha filha na be ira d a Lagoa, quan do dois joven s virad os d a n oite p as sa ram
por mim e d iss eram: “ Pian ge rs? !? ! Qu e b aita ca retão!”. Ser pa i jovem es tá n a moda porqu e a s fotos ficam linda s na s redes sociais. Mas quando você está num evento rodeado de mochilas , fralda s, p an os pra limpa r o nariz e chup etas , as pe s s oas te olham com pena. Elas não entendem que é uma parte do negócio. Chato ou divertido, isso é ser pai. Ser pai é estar com os filhos. Qua nd o vee m a minh a cara, as pe ss oas e sp eram qu e e u s eja muito louco, de ixe a s men inas em cas a e volte s ó de man hã ; um pa i que leva as filha s pa ra a loja d e tatua ge ns e q ue pa ss eia com elas d e moto. Long e d iss o. Noss o pa s s eio mais radical foi no Parqu e Tup ã. Toda vez qu e e u levo minh as filha s pra q ua lqu er eve nto fica aq ue le clima: “ Puxa vida , cara. Hoje tu tá d e b ab á? ” . E eu ad oro res pond er: “ Não. Tô de pa i”.
Os terríveis de dois a nos
enhoumameninadedoisanos e u ma d e oito. Exis te u m te rmo mundialmente famoso para se referir às crianças de dois anos: terrib le two (terríveis de dois). Es s as pob res crianças s ão cha mad as de terríveis talvez porque adoram riscar paredes com lápis de cor, talvez porque costumam fazer xixi no chão da sala, talvez porque au tomaticamen te b erram e e s pe rneia m ao ou vir a pa lavra “ nã o” , ou talvez porque estão agora mesmo em cima do laptop do pai impedindo-o de escreverpeo ]v-rmwew vd ‘wea;DL, 2L3LDDVXFGDGDF\WT; Qu an do você nã o tem filho, costuma s ub es timar os terr ib le two . Você a cha qu e a qu ela mãe no shopping nã o de u a ed ucação correta pa ra aq ue la crian ça q ue e s tá d eitad a choran do no meio da Renn er. Você cons idera a qu ele p ai qu e colocou a Galinh a Pintad inha no iPad pro filho assistir no restaurante um ser humano desprezível. Você ing en ua men te acred ita qu e, com um pouco de diálogo e carinho, as crian ças cres cerão s em birra e s em ran ho. Você es tá e rrad o. Aqu ela mãe no meio da Ren ne r, des es pe rada e cons tran gida com a cena qu e a crian ça es tá fazend o, de u todo diálogo e carinho qu e u ma mãe pode da r. O coitad o do pa i s ó cons eg ue s e a limen tar com ajuda da galinácea anil – e ele provavelmente não dorme de cen temen te h á s eman as . Quand o você cheg a n a cas a d e a migos e vê as paredes pintadas, pasta de dente espalhada pelo chão e fraldas usadas nos lugares mais sinistros, não é culpa dos seus a migos . A culp a é d a criatu ra mais fofinh a d o recinto. É como d ividir s ua cas a com o p ior tipo d e inqu ilino p os s ível. D o tipo que nã o gu arda na da no lug ar. D o tipo qu e fica acorda do a té às três da man hã qu eren do ver televis ão. Do tipo que qu er se mpre dormir na s ua cama, s ep aran do você e s ua mulhe r. Do tipo qu e te acorda com tap as na cara e m um s áb ad o de manh ã. Do tipo que nã o p a g a a lu g u e l . Ma s n ão qu ero pa recer injus to. Fa lar ma l de criatu ras tã o fofa s s ó va i colocar o p ú b lico contra mim. Os terrib le two não são apenas ruins, eles são ótimos para algumas coisa s, a s ab er:
Tes tar produ tos q ue você a cab ou d e comprar, de s cobrind o formas de destruir mesmo aqueles aprovados pelos testes do INMETRO (que não tem nenhum terrib le two n o s e u q u a d r o d e fun cioná rios , uma falha grave ); 1.
Rasgar/desenhar em livros favoritos, incentivando a migração dig ital d e s ua biblioteca ; 2.
Conven cer aqu ele a migo qu e es tá pe ns an do e m ter filho a ab an don ar a ide ia comple tamen te ao ficar com s eu filho p or qu inze minu tos no shopping . 3.
A boa notícia é que a experiência com um terrib le two dura apenas um ano. A má notícia é que existe um outro termo mu n d ialme n te fa mos o: terrib le th ree .
Minh a filha nã o tem nad a contra ga ys
uandoumacriançanosbrindacomsua visã o de mun do é uma d elícia tão gran de qu e de vemos ficar b em qu ietos . É como olhar unicórnios se alimentando. Você quer ficar vendo aquilo sem espantar a magia do ambiente. Estávamos no carro, eu dirigindo, minh a mulher no b an co do carona e minh a pe que na no b an co de trás , sentada no meio. A de dois anos dormia. Lá fora as pessoas de sres pe itavam outras pe s s oas no trân s ito. O q ue pod emos cha mar de um dia n ormal. “O qu e e u n ão en ten do é qu e u ma mulher pode s e ves tir com calça jeans e até com camisas masculinas. Isso é aceito pela s ocieda de ,” ela tem oito an os e es tá falan do s obre a s ocieda de . “E um homem não pode se vestir com roupas de mulheres que todo mun do fala mal. Não q ue eu ten ha alg uma cois a contra traves tis.” Eu explodi e m ris os . “O qu ê, p ai? !” , protes tou a Anita. A Anita sempre diz que não tem nada contra determinada minoria, sempre que fala delas. “Por que as pessoas tratam os pobres mal, pa i? Não que eu ten ha algu ma cois a contra os pob res .” Ela sempre parece preocupada com a possibilidade de ser considerada racista, elitista, sexista, machista ou preconceituosa. D eve s er uma p reocup ação muito atua l en tre as crian ças . Porqu e o mu n d o es tá p olitica me n te corre to. E ima g ino q u e is s o s e ja u ma cois a boa. Mas quando eu tinha oito anos, nossa principal preocupação era conse gu ir a maior qu an tidad e d e d oces en tre a hora de acorda r e
a h ora de dormir. “Eu s ó acho qu e os homen s de veriam pod er se vestir com s aia e s alto alto s e qu ises s em. As mulhe res pod em fazer is s o. Os homen s nã o, porque sã o considerados ga ys . Nada contra os g ay s,” e la d iz novamente, antes que seja mal interpretada. Estávamos no carro ouvindo a Anita falar sobre a sociedade. Lá fora as pessoas de sres pe itavam outras pe s s oas no trân s ito. O q ue pod emos cha mar de um dia n ormal.
An ita e a é clair
Oprocedimentoésempreomesmo, de ixa mos a irmã men or na escola e damos um jeito de passar na confeitaria, porque a Anita ad ora o ap p le strudel , o mil folhas de doce de leite, as carolinas de creme. Mas acima de tud o, acima de todos os doces do mund o, a éclair de chocolate. No meu tempo cha mava -s e bomba de chocolate. M as éclair fica ma is b on ito. Pre firo a s s im. Ela p e d e u ma éclair , eu p eço um café. E eu viro es pe ctad or des s e momen to lind o, qu e é uma crian ça comen do u m doce . A Anita recebe a éclair em um pratinho. Não usa guardanapo, porque gos ta d e lambe r os d ed inhos de pois. Segu ra com o ind icad or e o d ed o méd io a p arte de cima da éclair , aqu ela p arte q ue tem uma camad a de cobe rtura d e chocolate. O p oleg ar a pe rta o doce e mba ixo. Nesse momento o recheio cremoso dá a impressão de que vai tran s bordar, mas é rapida men te levado a té a boca pe qu en a, e pos s o ouvir o pes s oal da mes a ao meu lad o comen tan do “ qu e coisa fofa es sa men ina” , à b oca p eq ue na . Anita, en tão, morde com cuidad o as camadas de massa superior e inferior, deixando o recheio cremoso de chocolate repousar em sua língua. É a primeira mordida, a s eg un da mais importan te d a refeição. Percebe-se, nesse momento, o recheio da éclair e s c a p a n d o pe lo lad o opos to ao da mordid a. Qu alq ue r cida dã o mais ine xpe rien te
ficaria desesperado, não saberia o que fazer. Não a Anita. Ela re p o u s a a éclair n o pratinho. Não é hora p ara vãs preocupa ções . É o momen to de lambe r a p onta dos de dos indicad or e méd io, que es tão pretos de tan to chocolate. D ua s impres s ões dig itais marcam a p arte superior da éclair , um lado mordido e o outro com recheio transbordante. D e u m p rofiss iona lis mo treme n d o, Anita g ira o p ratinh o e m 180 grau s , fican do d e frente p ara a pa rte n ão mordida da éclair . A p róxima mordida não encostará nas camadas de massa: é uma dentada precisa que abocanha apenas os milímetros de recheio cremoso. Dessa forma, a éclair está novamente apta para continuar a ser de vorad a através do lad o já mordid o. Alterna m-s e, a gora, mordid as , lambidas nos dedos, giros de 180 graus no pratinho, dentadas precisa s no reche io qu e a mbiciona cair do d oce. E as s im Anita ch eg a até o último pedacinho da éclair : uma camada superior que ainda mantém um resto de cobertura, o recheio remanescente e uma camad a de mas s a inferior de un s dois cen tímetros no máximo. Agora, Anita p eg a o primeiro gu arda na po d o dia. Limpa a b oca e os dedos. Cuidadosamente, pega a última mordida, o melhor pedaço, pela parte inferior do doce, aquela de massa pura, e sem sujar nem os dedos nem a boca, abocanha o que restou da éclair . Ap rove ita os ú ltimos mome n tos d o chocolate n a s p a p ila s g u s ta tivas . Não há ves tígios d o doce. Então e la me olha e d iz: “Vamos? ” .
Qua nd o eu for velho
Aurora está cuidando de mim. Eu peguei um resfriado violento e quem me traz xarope é a pequena, com um cuidado emocionante, olhando concentradamente para o copinho cheio de líquido rosa qu e p inga n o chã o a cada p as s inho. É uma e volução. Na primeira vez que recebeu essa missão, Aurora tomou todo o meu xarope. A Aurora também penteia o meu cabelo. Antes de cada escovada ela lambe a mão e passa na minha cabeça, porque provavelmente é como as professoras penteiam o cabelo das crianças na es colinh a. Ela vê a qu ela técnica de ba ba -ge l e a cred ita qu e é a ú nica forma d e p en tea r o cab elo de algu ém. A Aurora també m tenta escovar meus dentes, pedindo pra que eu abra a boca, e de pois diz “Cup e!”, qu e é pra me a visa r que es tá n a h ora d e cus pir. Ela fica fe liz q u a n d o de ixo ela me d a r comida n a b oca, e o fa to de a maioria do meu almoço cair na minha roupa não me deixa menos ag rade cido. A Aurora cuida d e mim, mes mo eu nã o precisa nd o qu e e la cuide . Ma s q ua nd o eu e s tiver velho e cans ad o e ran zinza e magro e
ba ng ue la? Você vai cuida r de mim, Aurora? Qu an do e u for velh o s erei rico ou p obre? Tere i errad o muito, decepcionado muitos, tomado decisões estúpidas? Terei pedido de miss ão e m um momen to d e raiva, colocad o todo o meu din he iro e m u m n eg ócio a rrisca d o? Te rei te fe ito chorar, Au rora ? Q u a nta s ve ze s ? E qu antas de ss as vezes vão nos s ep arar um pouqu inh o? E qu an tas vezes você ainda vai querer escovar o resto dos meus dentes? D aq ui a qu aren ta, cinq ue nta an os. Você aind a vai cuida r de mim? Eu parei esses dias na frente do corredor de fraldas do supermercado. Tocava um sonzinho ambiente muito agradável no alto-falante, acho que era uma bossa, e eu fiquei ali olhando as fraldas por un s q uinze, vinte s eg un dos. Mais q ue iss o as p es soas iam me acha r es qu isito. Mas na qu ele momen to olha nd o as fralda s eu á s e n ti s a u d a d e d e h o je . Se n ti s a u d a d e d e s s a fa s e , d e s s a id a d e es pe cífica em qu e tud o é pres tatividad e e amor. Eu s en ti sa ud ad e de ter q ue comprar fraldas pra Aurora. Se nti s au da de de ter e s crito e s te texto. Sen ti sa ud ad e d es ta fras e. Ela a cab ou d e fazer dois an os . Ela não consegue falar direito, se limpar direito, não consegue andar direito e precis a de ajud a pra fazer a maioria da s coisas . Mais ou men os como eu , daqu i a cinq ue nta an os.
Má fia n o divã
Provavelmentedeveriaestarfalando is s o a p e n a s p a ra o meu psiquiatra, mas me lembro até hoje do dia em que o meu profes s or na facu lda de explicou p or qu e nã o tinh a filhos . Ele olhou pa ra a sa la lotad a e pe rgu ntou: “Qua ntos d e vocês acham se us pa is uns bananas?”. A sala ficou muda, mas aos poucos dezenas de mãos s e leva ntara m. “Pois en tão. É por is s o qu e e u n ão ten ho filhos . Não quero ser um ba na na pra ningué m.” Não é preciso olhar nossos óculos de aro grosso e nossa fixação por bandas indies do Canadá pra perceber que somos uma ge ração de jovens pa is ins eg uros e p erdidos, ten tan do s er amigos de nossos filhos enquanto eles estão muito mais pro clima “acho qu e cons igo algo melh or” . Algo acontece u com a n os s a g eração. Eu olha va aq ueles filmes do John Hughe s no meio dos an os 1980 e os pa is de família eram se nh ores de res pe ito, nã o es se s branqu elos ran he ntos q ue a minha ge ração se tornou . Lembro-me d e b rinca r na ca s a d o meu amigo Gus tavo. O pa i do Gus tavo era um pai típico da ép oca: ba rriga gran de , ded os g ross os na mão e pouca paciência para brincadeiras. Ele entrava em casa, estávamos jogando Atari, dava um beijo no filho e desaparecia. A pa rtir da li precisá vamos ab aixar o volume d a TV e d as conversa s , ou a mãe do Gus tavo vinh a gritan do: “ Silên cio! Teu pa i tá em cas a! Teu pa i tá cansado!”. Ser pai naquela época era como ser um mafioso. As pe ss oas te res pe itavam. Hoje em dia minhas filhas me acordam pulando na minha ba rriga. “Ta mimindo p ap ai?” , pergu nta a men or, en qu an to ab re meu olho a força. A mais velha exige que eu pare tudo o que eu estou fa ze n d o p ra a rru ma r alg u m p roblema n o Netflix. O ú n ico mome n to q u e me s into um ma fioso com u m trab a lho s u jo é q u a n d o troco as fralda s da pe qu en a. Eu a chava que minh a vida de pa i se ria como a do pa i do Gustavo, mas estou mais para a mãe dele. Sempre com medo e arruman do tud o. As mafios as de verda de lá de cas a têm dois e oito anos.
As h istória s qu e me conta m
ma das coisas oisas mais maisinc incríve ríveis is de de escrever escreve r sobre crianças é poder ouvir histórias de outros pais. Recebi a história da Gabriela, cinco cinco an os, s obrinh obrinh a do Al Al f, que qu an do viu vi u a imag imag em de uma s an ta no painel do carro da avó, perguntou: “Vó, pra que serve aquele s an ti nh o?” , ao qu e a vó r es pon de u: “Pra “Pr a n os p r oteg oteg er. Se a vó ba ter o carro a santinha evita que a gente se machuque”. A Gabriela pe ns ou u m pou co e pon de rou: rou: “ Ah, o carro c arro do p ap ai també també m tem um de ss e. Só que no carro carro dele é um ba lão que s ai do pa inel”. Ent Entrr e fé fé e ai rb ag , eu e a Gab riela riela fic ficamos amos com o se gu nd o. A Letícia tinha sete anos quando estava começando a aprender a ler. Num domingo de tarde, carro cheio, parado em um semáforo, Letícia solta: “VA-CHI-LES-KI PN-EUS”. Todos no carro se olharam! A primeira frase completa lida pela Letícia. Estacionaram o carro carro a li mes mo n a frente rente da ofic oficina ina e s aíram pu lan do, rea liz liz ad os com a conquista da menina. Agora, não me perguntem como se soletra “ Vach iles iles ki”. Além Além de gê nia , a Let Letíc ícia ia de ve s er rus r us s a. A Helena é a filha do Marcos. Ela é morena e tem olhos en orm or mes . Fazer Fazer a Helen a dormir dormir nã o é fácil (ne (ne nh uma crian crian ç a dorme dorme fácil áci l de pois de dois an os, a nã o se r qu e você você e s teja atr atr as ad o para uma festa de aniversário infantil e PRECISA que ela não durma. Aí então ela dorme extremamente fácil). A Helena, sempre quando vai dormir dormir,, que s tiona io na o Ma rcos rcos s e todas as outr outr as pe s s oas j á dormir dormiram am também. E quando eu digo todas as outras pessoas quero dizer TODAS as pessoas que a Helena sabe que existe. “A vovó?”, pe rgun ta a Helen a. “ Já foi foi dorm dor mir” ir” , res res pon de o pa i. “ A profe? profe? ” . “Sim, “Sim, a profe profe també m” . E as s im por dia nte, nte, p as s an do p ela tia, vó, v ó, amigu amigu inhos d a e s c o l a e t o d o s o s p e r s o n a g e n s d e t o d o s o s d e s e n ho s d o D iscover isco veryy Kids. Algum Algumas as vezes vezes , o Ma r cos co s dorme dorme an tes da Helena . D e u ma h ora or a p ra outra outra o Guilhe Guilhe rme, rme, d ois oi s an os , com começou eçou a falar n ome ome fe io. “ Ca iaio! Ca iaio!” iaio!” , e a mã e ficou icou a p a vora vora d a . Te Te lefon lefon ou p ra escola. “Quem está ensinando meu filho a falar palavrão?” E o G uilhe uil he r me lá, soltan soltan do “caiaio” na s s itua itua ções mais cons co ns tr an ge doras , no elevad or, or , no a lmoç lmoçoo de d omingo. omingo. Um Um dia, pas s ea nd o no pa rque , começou a gritar: “CAIAIO!”. E a mãe corada de vergonha. Guilherme
apontava e gritava “CAIAIO!”. A mãe olhou pra onde Guilherme a p onta onta va. Era Era u m cava lo. A Sofia, Sofia, se te an os , foi foi pas s ar u m mês de férias com os pa is n a casa do amiguinho Arthur, no Rio de Janeiro. Praia todo dia, muito passeio de bicicleta, e um dia Sofia notou que o garoto nunca assistia televisão. O pai dela explicou: “Eles nem têm televisão em c as a. Os pa i s d ele não qu erem qu e e l e fi fi qu e vend o des en ho o dia di a tod o” . E, E, re re a lme lme nte nte , o ga roto roto era mais ca lmo lmo qu e a s ou tras crian crian ça s e pa s s ava o dia todo b rinca rinca nd o com leg o, pipa e bicicl biciclet eta. a. Um dia , Art Arthu hu r perguntou pra Sofia que tipo de castigo ela levava se não se comportava direito. A Sofia respondeu: “Ficou uma semana sem ver te levisã o” . Art Arthh u r receb e u a imp imp a cta cta n te in forma orma çã o, en che u os olhos de l ág rim rima e vir vir an do p ara os pa is p ergu ntou: ntou: “Ent “E ntão ão e u tô tô se mpre d e castigo?”.
D ic icionário ionário inf i nfan an til da lílíng ng ua port portug ug ue s a - Ediç dição ão revi reviss ta e at atua ua lilizz ad a
uroraest uro raestác ácome omeçan çando doafalar. afalar. Ela Ela já en ten de tud o o qu e a ge nte nte fala , com c omoo por e xemplo, “ Aurora, uror a, p eg a uma cerveja g ela da pro pa i ”, mas mas ainda nã o for form mava fr fr as es até até s eman em an a p as sa da , quan do me me viu viu fa ze r um víde o em câme câme ra len ta n o iPhone e s oltou oltou u m “ QUE LEGA LEGAL! L!”” , pra d elíri elí rioo dos don os de la, a s ab er, eu e a minha mulhe r . A Aurora urora é uma um a d as coisas co isas mais leg ais q ue a g en te já fez, fez, s em dú vida vida . Ela então começou a juntar as palavras e ontem já estava dizen diz en do “ Pap ai, vem vem tom tomaa cacaco com co migo” , qu e s ign ific ificaa “ Pap ai, vem v em tomar omar um su co com comigo” igo” . Sei diss o porqu e e la es tava toman oman do s uco, mas a frase seria a mesma para água, piscina ou banho. Tudo é cacaco. Um Umaa s util util diferen diferen ça p ara “ pa pa to” , qu e s ign ific ificaa “ s ap ato” ato” e vale p ara s ap atos atos , tên tên is, chin c hin elo, botas botas e a té crocs crocs , mes mes mo qu e e s te seja um item proibido aqui em casa (minhas filhas consomem escondidas, incentivadas pela minha mulher. Alô, juizado de menores!). Todos os animais de quatro patas são “auau” e todos os an i mais q ue voam vo am s ão “ cocó co có”. ”. Toda Toda s a s crian crian ç as s ão “ ne nê ” , mes mo qu e s ejam maiores aiores qu e a Aurora. urora. As As ún icas icas pe s s oas qu e têm têm a h onra
de terem palavras exclusivas são “Papai”, “Mamãe” e a Galinha Pintadinha, que é a terceira “pessoa” que a Aurora mais vê e, portan to, tem a alcun ha exclus iva “ pop ó”. A Galinh a Pintad inh a é a melhor babá que já tivemos, aliás. Acalma a Aurora como ninguém e nã o cobra d écimo terceiro. A Sup er Nan ny pe rdeu o empreg o de pois do a dven to da Galinh a Pintad inha . É uma fas e d es lumbrante p ara os pa is, es sa dos qu as e d ois anos. Se ela tivesse dez anos e falasse desse jeito ia ser meio preocupa nte, mas como ela pa rece uma a nã falan te de pijama pe la casa, qualquer grunhido emociona. Isso até você descobrir que a filha do vizinho já fala “eu te amo, papai”. Estamos precisando a tu a liza r o dicion á rio, Au rora.
Situa Sit ua ção complicad complicad íss im imaa
egundo eg undo minha minha f ilha, ilha, ela
está em uma situação “complicadíssima”. Palavras dela. O fato é que ela tem um namoro não declarado com um menino do prédio (aparentemente ele não s ab e d iss o) e a gora começou começou a gos tar de um outro outro ga rot ro to no colég col ég io. “Não qu ero machucar machucar nenh um dos dois,” doi s,” e l a me diss e, apreen siva. siv a. Ela n ão s ab e qu e em situa situa ção compli complicadíss cadíss ima ima es tou e u, iss o s im. im. Quer dizer: espero que com bastante conversa eu possa protela protela r um na moro or o s ério por pe lo men men os mais de z an os (não riam), riam), mas uma hora eu sei que um garoto suado e de boné, com uma bermuda larga demais e uma tatuagem de dragão no ombro vai me chamar cham ar de sog ro. ro . E eu já qu ero estr estr an gu lar es s e rapa z . Me s mo que ele e xista ista ap en as ne s te text exto eu qu ero es tr an gu l ar es s e rapa z . Por P or favor, meu filho, ilho, pra q ue es s a tat tatua ua ge m de drag ão? ! Ponh a-s a-s e já p ra fora or a da minha cas a. E minh a fil filha ha , pa re d e chorar! Por Por qu e eu nã o conhe c onhe ç o ne nh uma um a mulher que tenh a es col co l hido u m h ome ome m corret corretoo (e (e xceção d a min min h a mulh e r) e a razão é s imp imp les : as mulheres costumam escolher mal porque as más escolhas são a maior aio r i a. A peq ue na porcent por centag ag em de h omen omen s edu cados ne ss e mund o é terriv errivelm elmen en te ignorada pe l as mulhe r es , qu e nã o qu erem namor nam orar ar o que elas chamam de “caras chatos”. Homens educados demais, corretos demais, gentis demais, limpos demais ou sóbrios demais s ão cons co ns i de rados cha tos p ela mulhe mulhe r mode r na .
Imagino que isso fará com que os homens corretos se tran s forme orme m cad a vez ma ma is e m h ome ome n s incorre incorre tos , com com ta tu a g e n s d e drag ão n o ombro. ombro. Que s tão d e s obrevivênci obrevivência. a. As As s im, im, daq ui a de z anos minh a fil filha ha terá p ouq uís s ima ima op ç ão. Portanto, estamos eu e a minha filha em uma situação complic complicad ad íss ima, ima, como como ela gos ta de fris ris ar. Ela Ela p orque nã o vai qu erer machu car ningu ém. ém . E eu porque vou vo u q ue rer machu car a todos. todos.
A revolt revoltaa d os colc colchh õe s
stamosem stamos em guerra gu erra láem lá em casa. E eu não vou medir esforços pa r a vencê-l vencê-l a. Quando coloquei televisão, móveis novos e ar-condicionado no q ua r to da s men inas , não foi foi pen s an do n elas , mas mas em mim mim mes mo. Esse é um dos meus planos de guerra. A única razão de deixar o qu arto arto de las mais mai s bon ito ito e h ab itável itável é q ue eu nã o ag ue nto nto mais mais q ue elas du r mam na mi nh a cama. cama. Ten ho convicç convicção d e q ue é u ma revolta revolta combin combin ad a. Para cad a vez qu e as obrigo obrigo a tomar omar ba nh o ou a com co mer brócol brócolis, is, elas prep aram a vingança para o meio da noite. Perto da meia-noite elas entram s orra orra te ira ira s n o q u a rto rto e come come ça m a tort tortuu rar. Na revoltosa mais nova, percebo o padrão de dormir atr atr aves s ad a na cama, cama, com um de nos s os traves rav es s eiros eir os emba em ba ixo ixo de la. D es s a for form ma, e la cons eg ue da r chu chu tes em mim mim ao mes mo tempo tempo em que dá cabeçadas na minha mulher. A mais velha gosta muito de dormir abraçada na gente. Então, enquanto levo chutes na cara de uma, a outra está me imobilizando. É, sem dúvida, um trabalho em e q u ipe mu ito ito b e m-fe ito. ito. Minha primeira estratégia de resistência depois das
sistemáticas invasões ao meu colchão foi comprar uma cama maior. Encomendamos uma sob medida que ocupa praticamente o quarto todo. “Iss o deve resolver,” eu pe ns ei, ing ên uo. Mas as invasoras d e colchão não se contentam em apenas dormir na sua cama. Elas também querem dormir do seu lado da cama. Então não importa o tamanho da cama, inevitavelmente no meio da madrugada elas vão es tar com um pé na s ua cara e um cotovelo no s eu es tômag o. Já ten tei a e s tratég ia “ dormir na cama d elas pa ra q ue pe ns em qu e a cama d elas é a minh a cama e pa s s em a d ormir s empre lá” . Não funcionou porque elas me espancavam na cama delas E na minha cama, seguindo-me no meio da noite. Já tentei a “trincheira de travesseiros” me separando delas durante a noite, mas elas romp iam a b a rre ira . Já te n te i a e s traté g ia d os móveis n ovos e TV n o qu arto de las. Nad a p arece e s tar da nd o certo. Estou pensando em liberá-las do banho e do brócolis. Será minh a b an de ira d e p az.
Só is s o?
ocêsvãodizer``talpai,talFIlha``, ma s a v e rd a d e é q u e eu queria que minha filha mais velha acreditasse em algo que não fos s e a s imples matéria. Ma s ela nã o acredita. Ela nu nca acred itou em Papai Noel, por exemplo. Nunca teve medo de Papai Noel, como algumas crianças. Simplesmente olhava impassível para o cara ves tido de Pap ai Noel porqu e p ra ela era e xatamen te is s o: um su jeito ves tido com uma roup a e s qu isita. Eu dizia: “O lha filha , o Pap ai Noel!” . E ela me olhava como s e eu fosse algum idiota. “Pai, é um cara vestido de Papai Noel.” Isso qu an do ela tinha três an os . Com o pa s s ar d o tempo, o ceticismo de la foi me deixando constrangido de sugerir qualquer entidade fantasiosa. Eu ia me sentir ridículo tentando apresentar, como algo veross ímil, o coelho da pá s coa, por exemplo. — É u m coelh o q u e traz ovos d e chocolate, filh a . — Sério, pa i. Iss o nã o faz se ntido ne nh um! — Errrr… ok, filh a . Eu s e i. Qu an do caiu o p rimeiro de nte da Anita a ge nte ten tou fazer algu ma cois a mais lúdica, p ra ela acred itar na fad a do d en te. Sab e? Aqu ela q ue pe ga o den te d a crian ça? Ok, eu s ei que nã o faz se ntido. Tô s ó conta n d o uma h istória . En fim. Fa lamos p ra q u e e la colocas s e o de nte emba ixo d o traves s eiro, es pe ramos ela dormir, colocamos uma moed a d e u m real no lug ar do de nte, e es pe ramos p elo dia se gu inte. Ela acordou gritando: “PAI!”. Naquela manhã eu realmente achei que veria aqueles olhos brilhando, aquele sorriso largo e a q u e la a leg ria d o tipo : “ É REAL! FAD AS EXISTEM !” . Ela e ntrou no q ua rto mos trand o a moed a d e um rea l. E diss e: — Só is s o?!
Nos s a melhor vis ta
aúnicavezqueeuvisiteioCaribe, e as pa rcelas nã o estão pagas até hoje, o hotel tinha nos dado o quarto com a pior vista pos s ível. A jane la n ão d ava p ra u ma p aisa ge m tosca, ne m pra u ma pa rede de um prédio, como o conce ito de “ pior vis ta p os s ível” pod e pres s up or, mas pa ra a pa rte d e d en tro do centro de conven ções do próprio hotel. Não s e via o dia, ne m o sol, ap en as as luzes frias e a decoração mais fria ainda. Os dias eram ótimos nas praias, mas voltar praquele quarto com vista pra dentro do próprio hotel, era triste. Da nossa janela só podíamos ver outras janelas, todas viradas para o centro de convenções, e no centro de convenções rolavam aquelas festas deprimentes – festas de quinze anos de men inas maq uiad as de mais e confraternizações d e e mpres as onde todo mun do u s a ternos dois nú meros acima d o taman ho ce rto, es s e tipo de coisa. Nas janelas viradas para o centro de convenção, ap en as outros cas ais, d e olha r vidrad o e melan cólico. O mes mo olha r qu e tínha mos, eu , minha mulhe r e nos s as filhas . Faltando dois dias para irmos embora resolvi abrir mão de meia d úzia de lamba ris verdes e mud ar de qu arto. Não a gu en távamos
mais dormir ao s om de lamba da e acorda r se m s ab er s e fazia s ol ou chu va. Qu eríamos o melhor q ua rto a gora, com a melh or vista, p elas próximas duas noites. Queríamos dormir com o barulho das ondas, acordar com os pássaros caribenhos cantando em papiamento. “ Então va mos colocar vocês no 80 9, se nh or. É a nos s a melh or vista,” disse a atendente. Passado o cartão de crédito (o sistema de pontos s empre me consola n es sa hora, ape sa r de eu até h oje n ão te r pon tos n e m p ra comp rar uma b a te d e ira ), fomos a rru ma r as ma las pra mud an ça d e q ua rto. Calções de ba nh o e maiôs e m s acos plás ticos , a ú ltima coisa que precisava fazer antes de sair daquele quarto deprimente era trocar a fralda da Aurora (minha filha mais nova). Deitei-a na cama, tire i a fralda com xixi de ixa n d o a me n ina p e lad a e m cima d os len çóis brancos. Olhei o lenço umedecido em cima do balcão e, nos dois s eg un dos qu e me e s tique i pra p eg á-lo, minh a filha fez o maior cocô que eu já havia presenciado. Era meio verde, e meio preto, e tinha uma consistência pastosa, que não só manchava os lençóis e impregnava o quarto com um cheiro insuportável, como também amea çava es correga r da cama e m direção a o carpe te d o qu arto. Olhei para aquele estrago e por alguns segundos me de s es pe rei. A ge nte nã o tinh a como limpa r aq uilo, s eria u m s erviço pa ra a mais brava d as camareiras . Olhe i pela maldita jane la com a p ior vista d o mun d o. Vi o ma ldito cen tro de conve n ções . Vi ta mb é m um outro hóspede, que de outra melancólica janela via a minha complicad a s itua ção. Ele mexeu os lá bios e p ud e ler o qu e e le dizia. “Deixa assim”. Ele tinha um sorriso de vingança na boca. “Deixa as s im,” ele fala va s orrindo. Peg ue i a crian ça e pa rti rumo ao 809.
A religião d a minh a filh a
AnitanãoacreditaemDeus. Ou melhor, nas pa lavras de la, ela “acha que Deus não existe de verdade”. Olha eu sendo ten de ncioso. “Como é qu e D eu s existe s e n un ca ning ué m viu e le?,” ela me perguntou. Eu devia ter simplesmente concordado, porque reducionisticamente é nisso que eu acredito também. Mas resolvi es ten de r um pa po p orqu e p ai gos ta mes mo é d e complicar as coisas . Um pa i que nã o complica as coisas nã o é p ai, é uma vis ita. Es táva mos de ntro do carro nu m dia de chu va, voltan do d a a ula d e reforço. — Olh a , An ita, te m g e n te q ue a cre d ita q u e Ele e xiste s im. E, em teoria, jude us e cris tãos acred itam que Moisé s viu D eu s no M onte Sinai. O que levou à próxima pergunta. Toda resposta para uma criança é um convite a uma próxima pergunta. “E como é Deus então?” — Na Bíblia, diz qu e ele e ra uma plan ta qu e pe ga va fogo. Ela fez uma careta. Eu vi pelo retrovisor, meio orgulhoso de notar que os a bs urdos bíblicos nã o convenciam ne m uma men ina d e oito an os . — Então D eu s é u m fogu inh o? — Não, ele, teoricamente-veja-bem, é uma planta que pega fogo eterna men te e fala com as pe s s oas qu e e le es colhe, no caso Moisé s , que libe rtou o povo jud eu . Um taxista me ultrapa s s ou p ela direita, n o meio d as obras da Protás io. Deu s o ab en çoe. — Q u e q u e é ju d e u ? — Judeus são os caras que acreditam em tudo que está na Bíblia, menos na parte de Jesus. Pra eles o bam-bam-bam, filho de Deus, ainda não voltou pra Terra pra falar com as pessoas. Eles acreditam em Deus, mas não em Jesus. Quem acredita em Jesus é cristão. — E da í as pe ss oas têm es sa s d ua s religiões ? — Vixi, as pessoas têm mil religiões. Tem gente que acredita qu e D eu s na verda de s e cha ma Alá, tem ge nte q ue acred ita q ue tem
um men ininho qu e n as ce na Ásia q ue é o rep res en tan te d e D eu s n a Terra, tem gen te qu e a cred ita q ue D eu s na verda de nã o é u m, mas vários de us es ; tem até un s caras da cien tologia q ue acred itam que na verda de vieram alien ígen as de outros p lane tas qu e p ovoaram a Terra há muito tempo e a g en te é filho d es s es alien ígen as … E antes que eu pudesse acabar a minha lista informal de religiões a An ita fa lou, como q u e m te m a ma ior certe za d o mun d o d o qu e q ue r ser: “Eu q ue ro se r cientologista” . As s im, como qu em diz “e u qu ero se r ps icóloga ”. Ou “e u q ue ro torcer pro Corinthian s ” . Um de s gos to tremen do. M inha filha qu er s er cientologista. Minha filha quer acreditar que somos fruto de uma reencarnação de almas alienígenas. Confesso que, se pudesse voltar atrás, teria respondido “Como é que Deus existe se nunca ningué m viu e le? ” da se gu inte man eira: — Ta lvez e le s e ja meio tímido .
Tarde de mais
uando meu vô precisou de transfusão d e s a n g u e n o s últimos três mes es de vida (aq ue la ép oca em que fazemos de tud o sabendo que não adianta de nada), fiquei com ele no quarto de hos pital por algumas man hã s . Quan do che gou o almoço do h osp ital, meu vô não q uis comer. “Qu an to cus ta? ” Expliqu ei qu e es tava inclus o no p acote. “ A s obremes a també m? ” Res pon di q ue s im. “Então tomar banho aqui também não é cobrado?” E entendi porque havia dois dias ele nã o ia a o chu veiro. Passei por uma situação parecida com a minha mãe. Na primeira vez dela numa churrascaria de espeto corrido estranhei a elegância, pouco habitual, de dizer não para quase tudo e pegar apenas algumas carnes mais baratas. Basicamente ela almoçou frang o e arroz. Expliqu ei qu e e s tava tud o inclus o e qu e e la pa ga ria o mesmo preço, comendo picanha ou linguiça, filé mignon ou abacaxi com cane la. Ma s a velha já es tava e s tufad a d e g alinh a com ba con. Na hora do garçom oferecer a bandeja de sobremesas, a louca não hesitou em agarrar dois mousses, três trufas e um qu indim. Ten tei d izer “ nã o q ue ro” pra ouvir um en fático “ qu er s im!” en qu an to ela d istribuía s obremes as no meu p rato. Expliqu ei q ue as sobremesas, essas sim, eram pagas (e por unidade!) e ela quis d e volver u m q u ind im me io mordido. Ju ro. História rea l.
Noss a família s empre acred itou q ue s ó o muq uiran ismo sa lva. Nenhum gasto acima de trinta reais é justificável. Os itens do supermercado são revistos ponto a ponto, como se estivéssemos lidando com gangsters do outro lado da caixa registradora. Um carro de ve d urar mais de de z anos , de preferên cia s em trocar o óleo d o motor. Um chuveiro só precisa ser trocado se sair fumaça. “Fumaça p reta , é claro” , d iria me u tio Vitor. Essa semana minha filha mais velha fez um trabalho de mode lo e e mbolsou a qu an tia de 100 rea is. Jun tou mais 10 0 de uma vó, mais 10 0 de umas venda s de revistinh as , e voilá: tinha dinheiro s uficien te pra comprar u m Furby . Eu me recus o a explicar o q ue é um Furby, ten ho pouco es pa ço aqui pra ess as coisa s. Mas é um de ss es brinqu ed os qu e trazem muito ab orrecimen to pa ra p ais e filhos . Ma s ela foi ver o Furby. Olhou o Furby, testou o Furby na loja. Pensou. D ep ois foi ver um tamag ochi. Tes tou o b rinq ue dinh o. De pois um leg o. De pois q uis ver umas roupa s. “Pai, por qu e os brinq ue dos pa recem tão leg ais n a loja, mas tão chatos q ua nd o es tão em cas a? ” Eu expliqu ei que as pe ss oas s ão as s im, s ó des ejam o que nã o têm. Ela resolveu guardar o dinheiro dela. Minha mulher falou: “Anita, o dinheiro é teu. Tens que gastar com alguma coisa que tu gostes. Não vai virar uma ‘piangers’”, no tom pejorativo que só a minha mulhe r sa be en toar. E a Anita res pon de u: “Tard e d emais, mãe ” .
Orgu lho Nerd
stou apresentando pra minha filha mais velha todos os gran de s filmes da minha infân cia. A An ita n ã o cu rtiu ta n to Goonies , mas ad orou E.T . Achou médios os filmes da trilogia De Volta Para o Futuro , gostou de Curtindo a Vid Adoidado e a chou os filme s d o Tim Burton mu ito tris te s (ela s e refe re a Edward Mãos de Teso ura e Os Fantasmas se Divertem). An ita a ch ou o rote iro de Karatê Kid (o antigo, com o Ralph Macchio) muito previsível – “Ele vai ga nh ar n o fina l”, arriscou a os 34 minu tos – e virou fã d o Ma cau lay Culkin d ep ois de Esqueceram de Mim (evite i conta r pra e la o q u e o g a roto s e tornou hoje em dia). E ela ad ora, rea lmen te ad ora, todos os filmes d o Ch a p lin . Acha o Bus te r Ke a ton me io cha to. Sa b e mu ito. Nossa nova febre é Star Wars . Eu sempre fui fã do Luke Skywalker. A Anita quer ser a princesa Leah. Estamos assistindo o épico O Imp ério Contra-Ataca. Onte m à n oite a s s istimos Uma Nova Esp erança. A Anita está empolgada com esse segundo filme. Ela ri das cafaje s tices do Ha ns Solo. Ten ho q ue ba ixar Indiana Jones pra e la ver. Com u ma h ora e q u a ren ta d e filme , na luta en tre Luke e D a rth Vad er, ela ab raça u m traves s eiro. D iz qu e n ão q ue r as s istir. “O Luke
vai morrer,” diz ela e cobre a cara com as mãos . “Se o Luke morrer nã o tem próximo filme. Ele não vai morrer,” garanto. É minha técnica pra que ela esteja olhando o filme quando acontecer uma das cenas mais incríveis da his tória d o cine ma. Ela está olhando pra TV, Luke perdeu um braço. Ele está pe nd ura do n uma a nten a. Ven ta muito no p lan eta Be s pin . “Você matou meu pai,” fala Skywalker para Lorde Vader. “Não, Luke”, responde Va d e r. A An ita e s tá olha n d o fixo p ra te la. Eu olh a n d o fixo p ros olho s de la. “ Luke,” d iz Darth Vad er. “ Eu s ou s eu pa i.” Um segundo. Olhos vidrados na tela. Dois segundos. Três segundos de silêncio. Ela abraça o travesseiro com força. “Pai...” A boca a inda en trea be rta, ela n ão a cred ita n o qu e e s tá a contecen do. Eu olho fixo pra ela . Ela olha pra mim e pe rgun ta: “ Pai... é verda de ? ” . É o maior plot twist da história do cinema. Eu digo que é verdade. Ela volta a olhar pra televisão. Mais alguns segundos de boca aberta. Nem ela, nem Luke Skywalker acreditam no que acabaram de ouvir. Luke g rita “ Nãã ãã ão” e a Anita arrega la os olhos . A Milen ium Falcon res ga ta Luke. O filme aca ba . Corta pa ra du as se man as dep ois. Estamos no shopping conversa nd o sobre o d ia dos pais. Eu digo que nã o precisa comprar pres en te, ela ga ran te qu e já s ab e o qu e vai me d ar. “ Só existe u m pa i que nã o merece g an ha r pres en te no dia dos pais, pai.” Eu pergunto qual. E ela responde: “O Darth Vad er, pa i”.
O p reço do s orris o es tá inflaciona do
Aurora vai desenvolvendo uma confiança, daquelas confianças irritantes de crianças, em que finge nem ligar pro meu olha r de ternu ra, pros meus be ijos n a cab eça, pros s opros q ue dou no p es coço de la. Cad a d ia, por sa be r que é a mad a e proteg ida, fica mais difícil s urpree nd ê-la com um carinh o e , de s s a forma, d es colar u m sorrisinho. Aquelas risadas altas estão cada vez mais caras, passando da cotação “mero barulhinho com a boca” para “arremesso de criança o mais alto possível”. O preço da risada pa ss a por um pe ríodo d e inflação d es controlad a. Eu ten tei un s be ijos n a b arriga, umas cos qu inha s emba ixo do braço, e meu pa ga men to era um sorriso cad a vez mais amarelo. Então descobri que ela adora correr pelada ao sair do banho. É uma descoberta maravilhosa, ela dá gargalhadas altíssimas quando eu g rito: “Vou p e g a r”. A vizinh a d o 110 4, qu e nã o te m filh os , re cla ma muito na reu nião d e cond omínio da s “ risad as altíss imas pe rto da s oito da noite”. Só qu e, obviamen te, o preço da risa da foi s ub indo e o tempo sem fralda correndo pela casa teve que ir aumentando pra man termos um nível bá s ico de ga rgalh ad a. Um nível ace itáve l de RIB (Risada Interna Bruta). E a Aurora, eventualmente, começou a fazer xixi no meio da sala depois de correr e gargalhar por dezenas de minutos. E aí eu fico brabo e ponho fralda nela, sob protestos e choros. Os choros anulam boa parte do RIB aqui de casa. (Jamais teremos u m RIB de p aís de s en volvido.) Ma s ag ora che ga mos e m um momen to em qu e e u s ei qu e e la vai fa ze r xixi no meio da s a la, e la s a b e q u e vai fa zer xixi no meio da s ala, mas a g en te fing e u m pro outro qu e n ão. Eu p ra ouvir ris ad as de licios as , ela p orque de ve s er muito ag radá vel fazer xixi no chã o da s ala (nã o preten do e xpe rimen tar). Minh a mulhe r que r aca ba r com a fa rra , ma s s omos e u e a Au rora contra e la. Limp a r xixi no chã o d a s a la é d ep lorável. Ma s mais d ep lorável aind a é uma cas a s em risa da s de criança.
Avós
inhavóserviapãodetrigoabertocom as mãos , se m faca , lambuzado d e g eleia d e pe ra, qu e e la mes ma fazia n o qu intal de trás da casa. Por trás dos óculos enormes, com aqueles quadradinhos estranhos na parte de baixo provavelmente pra ajudar a ler, ela olha va e mpolgad a os nove p rimos s en tad os, misturan do farelos e res tos d e lama e mba ixo das un ha s e ge leia d e p era por toda a cara. Ela perguntava: “Está boa a chimia?”. Todos os primos respondiam ao mesmo tempo: “Sim!”, menos o Timóteo, meu primo gordo, que quando estava comendo parecia estar numa missão sagrada de se agarrar no alimento e empurrá-lo goela abaixo. A matriarca fazia outra pergunta retórica: “Então, a ‘chimia da fó ’ é melhor que a chimia Fritz e Frida?”. Todos em uníssono (menos Timóte o): “ Sim!”. En tã o e la con cluía : “Entã o, a ch imia d a fó é a melhor chimia d o mu n d o. Porqu e d ize m q u e a Fritz e Frida é a me lhor chimia d o mun do e a chimia da fó é me lhor qu e a Fritz e Frid a ” . A man ipu lação p s icológica dos meu s avós nos levava a outras s itua ções s emelha ntes . Me u vô s empre de fen de u q ue a pipoca doce que ele fazia era a melhor pipoca doce do mundo. Anos depois eu ainda lembrava d o che iro e d o sa bor daqu ela pipoca s ua ve. Me u vô també m ab omina va cervejas muito ge lad as . D eixava a ge lad eira com potência bem baixinha (dava a desculpa das cervejas, mas p rova velme n te e ra p ra e conomizar dinh e iro na conta d e lu z). O fato é que tomei uma Kaiser da geladeira dele, num domingo infernal, e es tava s urpreen de ntemen te de liciosa . Ele g os tava de repe tir o tempo todo a s s eg uintes his tórias : como cons truiu d ua s cas as e u ma ga rage m com as próprias mãos ; como eram edificações tão bem construídas que estão de pé até hoje; como foi astuto nas negociações para comprar os terrenos; como era h one s to na ép oca qu e cortava cab elos n o centro da cida de (se nã o ap areciam clien tes ele colocava cinco pila d o próprio bolso pro che fe n ão pe ns ar que ele e s tava rouba nd o). Na ép oca e m qu e foi caminh one iro, ele d irigia o melh or caminh ão d o mun do e conhe ceu o Brasil todo com o barulho do motor de trilha sonora. Por isso, explicava ele, tinha um zumbido constante no ouvido e fazia concha
com a mão d o lado d a cabe ça na hora d e as s istir o “n oticios o do 12” . Me u vô, Hugo Pian ge rs, morreu dia 15 de ab ril de 20 12, às 19h, de de s istên cia múltipla d e pla nos . Ele comple taria 93 a nos qu atorze dias depois. Velório padrão, com discurso proselitista do pastor evangélico presente e um enterrinho bem deprimente numa gaveta logo abaixo de um outro morto chamado Romário. Número 664 do cemité rio d e Novo Hamb u rgo. Voltamos pra casa dele, paredes incrivelmente bem cons truída s , se ntamos ao red or da velha mes a p ra be be r as últimas cervejas quentes do vô, comer as últimas laranjas do quintal, estourar os últimos milhos para pipoca. Minha mãe trouxe uns bis coitos de man teiga feitos na cas a de la. Tirou d a bols a, oferece u p ros p rimos , ótimo a comp a n h a me n to p ro ch ima rrã o. Tod os come mos . O Timóte o com o vig or h a b itu a l. Então minh a mãe pe rgun tou: — Es tão bon s os bis coitos ?
Um verão p erigos o
Noprimeiroverãoquepasseiem Porto Aleg re, d e p ois d e te r me mud ad o de Florian ópolis (trajeto opos to a o s en s o comum), a cap a do ornal Zero Ho ra a nu nciava “ O verão mais q ue nte em quarenta an os” . Eu não tinha ar-condicionado, nem em casa e nem no carro, e a s olução p ra refres car minha filha pe qu en a foi comprar uma p iscina d e mil litros, da qu ela s de plás tico, e colocar no meio da nos s a s ala . O ch ã o e r a d e p a r q u ê . As vis itas ach ava m meio e s tranh o, mas meio e ng raçad o, vez ou ou tra u ma mais bê ba da en trava n a pis cina també m, normalmen te molhando o chão do oitavo andar. Não tinha nem um ventinho na cida de , não tính amos na da além de alguns cubos d e g elo qu e iam direto da geladeira para a água da nossa piscina proletária, única forma de refresco, além da cerveja e da caipira (minha filha tomava s uco de laran ja). Pois o verão não passava e nossa piscina precisava ter a ág ua trocada . Es s as piscinas têm aq ue la p eq ue na ab ertura no fun do de las , mas nã o podíamos u s á-la n o chã o de pa rquê . Começamos a es vaziar a piscina com ba lde s , mas cheg ou u ma h ora q ue , pra tirar
tod a a á g u a , tive mos q u e le van ta r o p lás tico tod o, pra joga r o res to de líqu ido no tan qu e d a á rea de s erviço. E aí vimos q ue , semana s de us o, tính amos d es truído u m pe da ço do pis o. Agora s im ia ferver pro noss o lad o. Volta a fita seis meses. Quando cheguei na cidade, em a g os to, fa zia p e rto de cin co grau s . Es tá vamos fe lizes por a rru ma r um a p arta me n to p ra a lug a r pe rto d o trab a lho, com vista p ro rio, p or 850 reais ao mês . Nos q ua rtos e ntrava s ol à tarde e minh a filha , às vezes , passava desenhando em folhas de papel de rascunho, no chão. A dona do imóvel morava logo abaixo da gente, no 704. E é aí que es tava o p roble ma. D e volta ao verão, a ág ua da nos s a jacuzi improvis ad a já tinha molhad o tan to o pa rqu ê q ue o ne gócio es tava mole. A ág ua já tinha cheg ad o à laje, e provavelmen te e ra qu es tão d e d ias p ra locad ora pe rcebe r noss a imprud ên cia, da pior man eira pos s ível: com man chas d e in filtração n o te to da cas a d e la. No dia s eg uinte, a Ana fez um bolo de cenoura e de s cemos para explicar a situação. Tocamos a campainha e a Sra. Não Posso Dizer o Nome gritou “só um minuto!” lá de dentro, vindo atender a porta e nrolad a n uma toalha. D e canto a g en te cons eg uiu p erceb er, no meio da sala dela, uma piscina colorida, daquelas de criança, che ia e no meio da s ala d ela . O chão comple tamen te molha do. E ela diss e: “ D an e-s e o vizinho, es s e calor tá insu portável”. Era d oming o e comemos o b olo den tro da p iscina.
Men inos e men inas
incrívelquehojeemdia, com tantas inovações tecnológicas, do b otox à uva itália s em caroço, nã o e s teja mos ap tos a es colhe r o s exo dos nos s os filhos . Pode mos de cidir sobre cois as ba na is, como o sabor da pasta de dente e shampoos para cabelos lisos ou cres pos , mas alg o importan te como o s exo dos nos s os filhos é a lgo que nem a natureza nem a ciência nos concedeu escolher. Só de scobrimos n o qu arto ou q uinto mês da ge s tação, na qu ela imag em péssima da televisão da ecografia (outra coisa que precisa ser ap rimorad a pe la tecn ologia). Faz diferença se é menino ou menina? Sou pai de duas meninas. Elas são meigas e carinhosas e se eu tivesse mais mil filhos gos taria q ue fos s em mil ga rotas . Ma s ten ho a migos qu e têm men inos incríveis, ed uca dos e criativos . Me nin os s ão mais p ráticos , exploram lug ares e fazem expe riên cias . Garotos gos tam de qu eb rar coisas, chutar bola em coisas, sujar coisas, pisar em coisas. Acho que eu me divertiria muito com filhos homens. Porém, dizem que men inos s ão mais liga dos à mãe . Meninas sã o mais liga da s ao pa i. Não se i se é verda de , mas gos to de s er o preferido. Vocês , mãe s de ga rotos , sa be m como é . Se pudesse escolher, porém, acredito que a maioria das pessoas escolheria ter filhos homens. O mundo é melhor para os homens. Meninos são tratados com mais liberdades, têm menos med o de s air na rua , sofrem men os p reconceito e q ua nd o começam a trabalhar ganham salários melhores. Seria loucura se pudéssemos es colher o se xo dos filhos e mes mo as s im es colhês s emos menina s . Olho pras minha s filha s todos os d ias e lembro que um dia irão crescer. Ganharão salários menores? Serão assediadas pelo chefe? Serão tratadas como pessoas frágeis e incapazes? Terão suas intimidades vazadas na internet? Ou teremos evoluído? O mun do s erá mais s eg uro para elas? O mun do s erá mais jus to? Acho que seria uma evolução tecnológica incrível poder es colhe r o se xo do s eu futuro filho. M as uma ou tra e volução p recis a acontecer a ntes diss o.
Q u e n u n ca a c a b e
omingo a gente foi andar de bicicleta. O dia estava aca ba nd o, tinha um monte de outros pa is e outras filha s na ciclovia. O sol ainda ba tia d e lado e u ma b ris a b oa s oprava, en qu an to minha filha falava . Era um de s s es dias de calor no meio de outros dias de frio. Um desses dias que a gente esquece que existe qualquer problema. Era um desses dias que, enquanto você aproveita, vai se ntind o uma nostalgia p orque sa be qu e vai acaba r. Ela diss e q ue nã o tinha med o da morte. Ma s ten ho med o do futuro, pa i. Ten ho med o d e cres cer. Ten ho med o d e você e a mamãe envelhecerem. Tenho medo de virar adulta, de ter que arrumar um empreg o. Ten ho medo d e ter contas pra p ag ar. Não ten ho medo d a morte, pra mim a morte não é a pior coisa que pode acontecer a a lgu é m. A morte é como d ormir p ra s e mp re, s ó is s o. É mu ito p ior sofrer um acide nte, nã o pod er mais correr, nu nca mais an da r de b icicleta. É muito pior ver os p ais en velhe cer, s ab er qu e vã o morrer. Eu s ó dizia qu e “ s im” , “pois é ”. Qu e e u també m s en tia as s im. A brisa ba tia no meu olho e era u ma b oa d es culpa pro choro. Ela dizia qu e q ue ria cong elar o tempo. Que ria ficar p ra s empre com oito an os , a irmã com dois. Os pais congelados com essa idade, com esse traba lho. Eu gos to do meu colég io, pa i. D as minh as amiga s . Gos to da nossa vida, da nossa casa. A gente andando de bicicleta e ela falando e ss as coisa s se m sa be r que eram bonitas . Falava tud o is s o s em sa be r que eu s en tia a mes ma coisa. Era lindo e doído ao mesmo tempo. Como uma música triste em um cas a me n to. Como um jovem qu e a d oe ce n o verão. Como um dia q u e n te no meio dos dias frios. Um dia q ue você s ab e q ue vai acaba r.
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