O FEITIÇO E A MAGIA DO DINHEIRO NO RELATO DE TRÊS $UJEITO$ Marcia Ferreira
Se o sistema capitalista opera dentro de uma lógica perversa e o seu operador - o dinheiro - está inscrito num registro que cega e enfeitiça aqueles submetidos ao seu sistema, uma vez que é colocado no lugar daquilo que falta ao sujeito - à guisa do Fetiche -, poderíamos nos perguntar: seríamos todos nós suportes contumazes do fetiche que o capitalismo produz? O que faz com que o dinheiro possa adquirir o estatuto de um Fetiche? O Fetiche é o artifício utilizado pelos sujeitos que se constituem dentro da estrutura perversa para driblar os efeitos da castração. Determinado pelo primado fálico inaugurado por Freud e sustentado por Lacan, o sujeito perverso sabe da inexistência do falo no Outro primordial: a mãe, mas com a instauração do Fetiche, pode agir como se não soubesse. soubesse. Ele acredita que a mãe está completa completa e que ele próprio é o responsável responsável por esta completude. Nessa equação, sujeito e objeto não sofrem faltas e nem excessos. Haveria uma constante e inabalável relação de sustentável plenitude. Para o sujeito perverso nada falta no seu objeto primeiro quando ornamentado pelo Fetiche, e este modelo de objeto – inteiro – vai ser perseguido pelo sujeito ao longo de sua vida. Lacan (1956/1957), ao trabalhar o objeto, destaca a sua parcialidade, incompletude e inconsistência. É com esse estatuto que o objeto deve ser investigado e investido, isto é, o objeto sempre será faltoso. O Fetiche, como mecanismo de defesa nas perversões, pretende contrariar essa lógica do objeto. É o desmentido da castração – a Verleugnung, designada por Freud – que vai fazer com que o sujeito jogue-se no precipício de um gozo incontido, pois a sua crença é de que sempre vença a batalha contra a castração. Com o sujeito de qualquer estrutura – neurótico, psicótico, perverso - ancorado num sistema capitalista, parece acontecer algo análogo às vicissitudes do mecanismo perverso. O sistema sistema é falho, inconsistente, inconsistente, deficiente, mas mas faz com que o sujeito acredite que não seja. O dinheiro, em seus mais variados tecidos e texturas, promete ser o objeto por excelência – completo, infalível, potente e credenciado – e o sujeito do capitalismo deixa-se enfeitiçar por essas promessas, apesar de saber que a realidade não seja bem
essa. As bolsas de valores, o capital de juros, o mercado financeiro, a propriedade privada, etc, apresentam-se como objetos que poderiam restituir ao sujeito a sua experiência de satisfação primeira com o objeto, aquela plena, da qual o molde está para sempre perdido para Freud e será sempre faltoso para Lacan. Com o recorte de três casos clínicos procuro evidenciar as postulações de Freud e Lacan, no que versam a expressiva manifestação na clínica – lugar onde o sujeito procura dar corpo ao seu discurso – dos fenômenos sociais e das formas de sofrimento características de cada época. Lacan, em seu seminário Mais, Ainda (1972-1973), afirma que, no final, há apenas o liame social, ao qual dá o nome de discurso, enfatizando que o liame social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem situa-se e imprime-se sobre o ser falante. Considerando a relevância desta afirmação de Lacan, pude pensar em como incide sobre o sujeito os imperativos do discurso capitalista, cujo mediador da linguagem é quase sempre o dinheiro. VINHETA 1 A analisante, a quem chamarei de Sônia, é uma secretária aposentada de setenta anos. Busca a análise por se sentir muito deprimida desde a morte de seu marido há quatro anos. A partir de então, passou a ficar apática, prostrada e engordou mais de vinte quilos. Não sente prazer em quase nada, nem mesmo em comer, que refere ser um ato autômato. Pontuo o “quase nada” de prazer que sente e peço que
fale sobre o que ainda lhe dá
prazer. Sônia, sem titubear me diz: “dinheiro”. Começa a partir daí um segundo momento na análise. Sônia relata as dívidas que têm em cartões de crédito, bancos e financeiras. Na verdade, contrai uma dívida para pagar outra. Vive com a aposentadoria dela e a do marido, mas as duas somadas não são suficientes para saldar suas dívidas. Há uns dois anos, precisou empenhar as jóias que pertenceram a sua mãe. Até hoje não conseguiu resgatá-las. Pedi que falasse sobre este momento. E la diz: “me arrependo muito, pois o valor afetivo das joias era inestimável, porém quando peguei aquelas notas de cinquenta reais todas em minhas mãos me senti com poder ”. Assim, também ocorre com os empréstimos bancários que faz com regularidade. Falou que sabe que aquele dinheiro não existe na verdade para ela, que pertence ao banco – chama de dinheiro virtual – no entanto, toda a vez que vê as notas, engana-se por um
momento crendo que são dela. Usa alguns jargões quando menciona suas proezas financeiras como: “dinheiro na mão é vendaval”, “não cheguei nem a ver a cor do dinheiro”, “o dinheiro me enfeitiça”, “a gente sem dinheiro não é nada nesse mundo”.
Sônia perdeu as joias, um carro velho, mas que lhe servia bem e continua embrenhada em dívidas com bancos e financeiras e diz não haver mais saída para a vida, uma vez que os empréstimos são descontados diretamente da sua aposentadoria. Disse numa sessão: “quando é para a gente fazer o empréstimo o banco trata os velhos
bem, oferecem até cafezinho e biscoito, porém na hora de pedir para renegociar a dívida, tratam a gente que nem cachorro sarnento”.
VINHETA 2 O analisante, com nome fictício de Mauro, procurou fazer análise para tentar resgatar seu casamento que há uns cinco anos sobrevive à míngua em função dos muitos conflitos entre ele, a esposa e a filha. Mauro tem cinquenta e cinco anos e casou-se aos quarenta e sete. Sua esposa tem cinquenta anos e eles têm uma filha de sete anos. Conta que desde o começo sabia que a relação não daria certo, pois a mãe de sua esposa esperava para a filha um homem “endinheirado”, segundo suas palavras. Acredita que sua esposa casou-se tarde, na expectativa de encontrar um homem com bastante dinheiro, mas como não conseguiu, acabou ficando com ele mesmo. Os conflitos ocorrem por desacertos financeiros. Ele reclama que a esposa gasta muito . Diz: “ela acha que „dinheiro dá em árvores‟, ela pensa que eu „tô cagando dinheiro‟ ,
mas só eu sei o quanto me custa cada centavo para ganhar. Para ela, eu faço magia, o dinheiro aparece num passe de mágica. Ela não entende que passar cheque, comprar no cartão, é gastar. Explico que até parece que não estamos gastando quando não vemos o dinheiro saindo do bolso, mas é irreal, o banco vai cobrar depois ”. VINHETA 3 O analisante, de setenta e seis anos, o qual dou o nome de Alberto, é um piloto comercial aposentado. Sua queixa é o abandono da família e sua precária situação financeira, após ter vivido um longo período de abundância. Alberto separou-se há dez anos de um casamento que durou vinte e oito e gerou três filhos. Nem sua ex-mulher nem seus filhos falam com ele desde então. Relata que na separação, deixou para a sua mulher todos os imóveis que tinha, ficando apenas com
uma extensa propriedade no interior do estado de São Paulo, rica em água mineral. Estas terras foram alugadas para uma empresa que faria a extração da água mineral e sua comercialização, tendo ele participação nos lucros. Durante estes dez anos após sua separação, contou somente com os proventos dessas terras. Nos dois primeiros anos ganhou algum dinheiro, mas depois sua situação financeira despencou. Os inquilinos pararam de lhe pagar tanto os alugueis quanto sua porcentagem nos rendimentos e hoje em dia ele vive apenas com sua parca aposentadoria. Enquanto isso, sua ex-esposa deslanchou financeiramente. Segundo ele, ela ganha uns “vinte paus” por mês, tem um carro importado e não sabe o que fazer com o dinheiro.
Acredita que tanto ela quanto seus filhos não querem mais vê-lo por que ele não tem mais dinheiro. Constantemente faz ameaças ao inquilino devedor com uma arma de fogo que possui desde os tempos em que foi brigadeiro e atirador de elite. Por conta disso está com mais de uma passagem pela polícia. Entende que as relações só se estabelecem na base do dinheiro. Lembra que na época em que tinha bastante dinheiro, tinha também muitos amigos e sua família e parentes o respeitavam. Nesta época, costumava presentear não raramente os filhos e a mulher com dólares. Diz: “minha mulher quis se separar de mim quando a companhia aérea onde eu
trabalhava faliu e eu fiquei sem receber meu salário. Minha família nunca fez nada para ganhar dinheiro, eles acham que eu fazia mágica e o dinheiro aparecia. Meus filhos ficaram ao lado da mãe porque foi ela quem ficou o dinheiro. Eu não sou ninguém sem dinheiro, não valho nada ”. Como é possível observar, nos três casos apresentados, os discursos dos analisandos trazem um mesmo repertório, o valor tributado ao dinheiro e sua alienação em relação ao seu poder. Importante salientar que o termo fetiche tem sua origem em facticio, isto é feito artificial, feitiço, ocultação. Curiosamente, os três analisandos ligam o dinheiro a certa forma de magia quando se referem a sua aparição ou ao seu uso. Nas perversões, cujo paradigma é o Fetiche, este serve para ocultar aquilo que falta, prestando-se a renegar aquilo que não se vê. Não há nada lá, ao mesmo tempo em que há. Podemos aqui arriscar uma analogia do artifício do Fetiche com o discurso dos analisandos sobre o dinheiro. A primeira diz saber que o dinheiro não lhe pertence, mas
age como se sua proprietária fosse, já o segundo constata que quando sua mulher faz uso dos cartões de crédito e dos cheques, acredita que não está gastando dinheiro, enganando-se desta maneira, e o último destaca a magia exercida pelo dinheiro e o quanto isso pode afetar suas relações sociais e afetivas. Em suma, nos três casos o dinheiro aparece tangenciando os laços sociais, porque na fantasia desses sujeitos as trocas oferecidas pelo dinheiro estão imiscuídas nas práticas sociais de forma soberana. Tributar ao dinheiro um valor de Fetiche é entender que o papel desempenhado pelo significante fálico no discurso social sofre variações de acordo com o sistema operante e isto acaba tendo reflexos na forma como o sujeito vai se posicionar diante do desejo do Outro, possibilitando leituras diferentes do sintoma social, bem como os efeitos deste na clínica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. Obras Completas. RJ: Imago, 1995. _________ (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. __________ (1919) “Bate -se numa criança”. __________ (1927) “Fetichismo”.
JULIEN, P. Psicose, perversão e neurose. RJ: Companhia de Freud, 2002. LACAN, J. (1953/1954) Seminário I – Os escritos técnicos de Freud . RJ: Zahar, 1986. __________ (1956/1957) Seminário IV – A relação de objeto . RJ: Zahar, 1994. __________ (1972-1973). Seminário XX – Mais, ainda. RJ: Zahar, 1985. Vladimir Safatle, O fetichismo: colonizar o Outro. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2010.