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O Teatro e o Gênero Dramático
(Carlinda Fragale Pate Nuñez & Victor Hugo Adler Pereira) A abundância de formas presentes no gênero dramático integra um patrimônio histórico-cultural que fascina a todos quantos se iniciem neste estudo. Em seus longos dois mil e quinhentos anos de existência criativa, o teatro encerra uma variedade invejável de modos de realização, que vai desde os monumentais espetáculos realizados nos teatros gregos até as improvisações mais contemporâneas, que tomam o texto apenas como pretexto para o evento teatral. Neste amplo contexto, em que contracenam geniais autores, atores, encenadores e platéias, pouco espaço tem sido reservado para considerações especificamente ligadas ao texto dramático e a seu fruidor isolado, o leitor de textos teatrais. Sem renunciar à interação que liga o texto ao palco, o leitor ao espectador, a encenação à representação imaginária pelo ato da leitura, vamos aqui privilegiar as propriedades do texto dramático, com vistas a organizar alguns pressupostos teóricos do gênero que correspondem a ele. Para tanto, vale a pena lembrar qu e a literatura dramática constitui um caso limítrofe da criação literária, já que sua plena realização se obtém na representação cênica. Isto não quer dizer, todavia, que não se possam apontar alguns elementos com os quais se descreva a sua especificidade. A primeira parte deste capítulo, por isso, contém asserções teóricas sobre os marcadores do gênero; à segunda parte caberá iluminar esta descrição com a experiência viva do teatro, através de alguns de seus testemunhos históricos mais expressivos. 1 - Natureza híbrida do teatro: texto dramático e encenação
Se a história do teatro consigna modos diferenciados de realização – conforme as épocas, seus criadores e as ideologias por eles veiculadas – um elemento constante se mantém, depositário dos materiais responsáveis pela multiplicidade de leituras e pela enorme variabilidade dos tipos de espetáculo: o texto. Este contém referências fundamentais, sem as quais a dinâmica entre todos os fatores gerenciadores da encenação não se pode estabelecer. Duas questões se encontram aí envolvidas: a primeira delas é identificar o que peculiariza a escrita para o teatro; a segunda, o que faz do d o texto teatral uma obra literária. literária. Quanto ao primeiro ponto, uma nomenclatura específica pode auxiliar a estipular certas distinções iniciais. Três adjetivos que concernem à questão aqui focalizada – teatral; dramático e dramatúrgico – são muitas vezes utilizados como meros sinônimos. Mas, buscadas busca das as diferenças que através de cada um deles d eles se expressam, tornam-se excelentes subsídios na tentativa de demarcar as fronteiras deste território de trânsito, onde se dá o intercâmbio de elementos heterogêneos com que os estudos de teatro lidam. O texto teatral é aquele que se concretiza no ato da encenação. Considerado na sua dimensão material, ele funciona como a base para a concepção do espetáculo, para a atuação cênica de atores e dos profissionais que viabilizam o evento teatral. Pelo adjetivo teatral consideram-se, simultaneamente, as duas dimensões implicadas na dinâmica do teatro: a escrita (não necessariamente de qualidade literária) e a cênica. O texto dramático é aquele que se qualifica para a encenação. Isso se verifica quando, prescindindo do palco, o texto o evoca como instância complementar para a totalização de seus efeitos estéticos. Tal designação aponta especificamente para todas as informações que se inscrevem no conjunto escritural, incluindo-se aí o título e (quando há) a sugestão autoral de inserção da obra numa das espécies do g ênero; a distribuição dos discursos pelos intérpretes e as didascálias ou rubricas destinadas à direção cênica. O adjetivo dramático explicita a abordagem do texto co mo objeto literário, pelo critério da análise das estratégias discursivo-poéticas que lhe conferem qualidades artísticas. Endereçado à crítica, ele pode ou não alcançar o reconhecimento como ob ra literária. Quando se trata de considerar a interação do extrato lingüístico-literário com os demais códigos envolvidos na elaboração do produto artístico que é levado ao palco, para a leitura pública e coletivista por parte de espectadores, trata-se do texto dramatúrgico. Desta forma, a condição de texto genericamente teatral alcança estatuto dramatúrgico, porque determina a interação com o público, no ambiente específico de uma sala, como fator que o diferencia da dramatização espontânea e descomprometida com intencionalidades artísticas. Vale dizer que o texto dramatúrgico se alicerça nas qualidades literárias dos enunciados representados.
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NUÑEZ, C. F. P., PEREIRA, V. H. A. Teatro e gênero dramático. In: JOBIM, José Luís. Introdução aos termos literári os. os. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. pp. 69-99.
A bem da verdade, é praticamente impossível falar de texto dramático, sem considerar suas propriedades dramatúrgicas. Um aspecto leva ao outro. A diferi-los está a ênfase que se dê à análise textual (para o texto dramático), ou às propriedades da encenação (para o texto dramatúrgico). Esses três adjetivos subsumem, por conseguinte, uma relação de grau. Teatral remete à apreciação mais geral, abrangendo todo tipo de criação textual para teatro, sem priorizar o critério técnico-literário, mas, obviamente, admitindo-o. O texto dramático pode situar-se dentro ou fora de uma fatura literária, conforme atenda a exigências do leitor convencional (ingênuo) ou do leitor investido de critérios estéticos (ideal). De qualquer forma, trata-se sempre de uma redução ao leitor solitário, que privilegia o extrato verbal da comunicação teatral. Deste rol também participa o texto dramatúrgico, considerado sob perspectiva múltipla, literária e cênica. 1.1 - O texto dramatúrgico
Daí se depreendem dois traços exclusivos do texto dramatúrgico: a plurimidialidade e a multidimensionalidade de seus efeitos. Por plurimidialidade entenda-se o concurso de duas mídias, ao menos, para a consumação da obra teatral: o texto, que concita à encenação, e ela mesma, em consonância ou não com o que é determinado pelo texto. Através do traço da plurimidialidade se expressa a natureza híbrida do teatro, a dupla valência da obra dramatúrgica, que adquire uma primeira existência sob o formato textual e conquista seu estatuto fundamental no formato de espetáculo. A natureza multidimensional deste objeto estético se verifica por acumular estratégias de produção: incorpora procedimentos discursivos a priori concernentes a outros gêneros (a narratividade épica ou a expansão subjetiva do lírico, por exemplo), ao mesmo tempo que recicla formas artísticas ligadas a sistemas específicos (como a retórica e a cenografia), sem se desfigurar ou desfigurá-las. É próprio do dramático recrutar sistemas extra-verbais de significação, com vistas à obtenção dos efeitos pretendidos. Esses sistemas, envolvendo cenário, iluminação, acessórios cênicos, efeitos acústicos, música, cores, figurinos, bem como todos os códigos necessários para a caracterização dos atores (indumentária, maquilagem, adereços, gestualidade, mímica, proxêmica, trabalhos com a voz... ), se acoplam ao sistema lingüístico, integrando o universo de signos (verbais e não-verbais) que caracteriza a dramaturgia (etimologicamente drama, ação + érgon = operatória com todos os ingredientes envolvidos na obra dramática). O texto, por sua vez, vem sobrecodificado pela interação com uma tradição de espetáculos ligados à experiência cívico-religiosa das sociedades que vivenciaram a prática teatral, através de festas, cerimônias e rituais, em âmbito público ou privado. A economia de meios com que o teatro articula sua linguagem é tributária desta tradição altamente especializada em cumular enredos ficcionais com mensagens de conteúdo simbólico-ritualístico, remissivas a questões políticas ou filosóficas. Ambiguamente a obra dramatúrgica diz respeito a uma prática artística, a mais artificial e efêmera delas, já que muitas vezes se baseia no tácito acordo estipulado entre palco e platéia de que, afinal, "tudo não passa de ilusão teatral". Mas remete a questões da mais aguda praticidade. Sua matéria-prima se liga à vida pragmática, cotidiana, mesmo que utilizada como estratégia para a dissimulação de verdadeiros programas filosóficos ou visões-demundo surpreendentemente desfocadas, em relação ao senso comum. Por mais natural que o evento teatral se apresente, esta naturalidade não se confunde com banalidade – pode até manifestar posturas revolucionárias (como se tem identificado a dramaturgia de BertoIt Brecht, por exemplo, mas também, e bem antes dele, de Eurípides), seja na forma, seja nos temas com que lida. Aí se funda a dupla enunciação veiculada pelo teatro, constituída não só por enunciados polimorficamente verbais, acústicos, visuais, iconográficos, etc., mas também por enunciados cumulativos. Através destes, o presente da representação e as idades artísticas e antropológicas de todas as platéias, de todos os teatros do mundo se tornam contemporâneos, por artes da encenação. Desta maneira, o teatro se situa na interseção entre representações espetaculares com distribuição de papéis (a começar pela dicotomia espectadores/atores), baseadas numa dramaturgia prevista para acontecer de acordo com um calendário e em local planejado para tal fim, e a uma experiência que atravessa a memória histórica das coletividades. Isso para não mencionar o acionamento do imaginário individual, ele próprio remissivo a uma dramaturgia do inconsciente. Esta memória do teatro se dissipa e ao mesmo tempo comparece nas representações teatrais, em razão da existência de um texto, que lhes coordena o desenvolvimento. O texto teatral, por conseguinte, envolve mais que as palavras proferidas em cena. Integra uma constelação de discursos composta por elementos que pertencem a artes diferentes (literatura, artes plásticas, música, coreografia, proxêmica, cinemorfia, etc.) e saberes insuspeitáveis. No conjunto da experiência teatral, ele participa, seja como receptáculo deste universo sígnico, seja como a base que o provoca e lhe dá origem. Por outras palavras: o texto teatral ou dramatúrgico é o lugar onde se entrecruzam múltiplos discursos. Ele se define, metonimicamente, como o próprio teatro: arte do código, da convenção, onde tudo depende da sugestão eficiente. Desta feita, ao mencionarmos texto dramatúrgico ou dramaturgia, estamos nos referindo ao conjunto de
efeitos superpostos, a toda a fenomenologia instaurada pela dinâmica da encenação. Tal percepção se deve às contribuições da Semiologia e à Teoria da Recepção, com as quais se pode descrever a natureza híbrida (multidimensional) e plurimidial do gênero dramático. Associada aos estudos estruturalistas, a semiologia teatral analisa a funcionalidade dos elementos dramatúrgicos como signos do código dramático-teatral. Este conjunto sígnico permite vislumbrar subcódigos, que concorrem para a cristalização dos marcadores do gênero. Graças à teoria da recepção e à respectiva leitura dos termos que integram o circuito da comunicação teatral (autor, texto, encenação, fruidor), o tipo de interação proposto pelo palco se mostra coextensivo a formas de interação social, segundo o modelo cultural e o momento histórico. Vale dizer que se tornam perfeitamente relacionadas às formas de interação propostas no enquadramento dramático e no enquadramento das realidades históricas que lhes correspondem. A partir daí, pode-se igualmente questionar a relação entre realidade dramática e teatralidade extracênica. Como se vê, a noção de texto dramatúrgico, integrado a e responsável por uma encenação, remete a questões que transcendem a conversão de um objeto do medium impresso ao medium acústico-visual. Problemas não menos complexos e nem totalmente dissociados destes, mas enfatizando outros aspectos, se verificam, em relação àquilo que denominamos texto de l iteratura dramática. 1.2 - O texto literário-dramático ou O texto de literatura dramática
Para ser literário, não basta que o texto dramático contenha qualidades que lhe comprovem a literariedade, ou, por outras palavras, que se escreva por estratégias que lhe assegurem a artisticidade. O texto dramático lida com a literariedade, com aquilo que nele excede o seu funcionamento estrutural, fazendo jus às suas peculiaridades. Vale dizer que ele consigna às qualidades do texto como obra literária uma noção de mímesis plural, ou seja, como representação de uma realidade ficcional – verossímil e auto-referenciada - que prescinde de adaptação para gerar a representação cênica (a encenação). Quando se atribui a diferença entre o texto teatral e textos não-teatrais à viabilidade da leitura, parte-se do equívoco de que há textos para serem lidos, e outros para serem dramatizados. Na verdade, todos os textos podem ser lidos. O texto dramático requer do leitor apenas a habilidade de lidar com as rubricas, o código próprio da enunciação dramatúrgica, que o auxilia na montagem mental do mundo ali representado. Por outro lado, o texto para teatro tem uma pré-história exclusiva de leitura, enquanto aguarda as condições favoráveis para a realização do evento dramático. Mas ele naturalmente se presta à encenação. Já o texto não-teatral, para ser encenado, precisa ser adaptado. A dúplice possibilidade de representação a que o texto dramático se liga implica um dos traços de sua especificidade. Buscá-la no conjunto de produtos literários que integram o gênero mais confunde do que esclarece aquilo que se busca. Mas como não ler na confluência deste manancial a manifestação de outro traço por nós perseguido? Referimo-nos, especificamente, à dimensão supra-temporal da obra literária dramática, que sobrevive a todas as encenações que dela se façam. Inusitadamente, o texto dramático, que só atinge sua plenitude na encenação, supera-a muitas vezes por uma vitalidade que reside nas suas propriedades constitutivas e estáveis. Mas deve-o também à realimentação de seus méritos poético-literários, obtida através da multivariedade de transformações que lhe garantem a difusão. Vale dizer que o intercâmbio entre a obra dramática e a encenação é mesmo muito complexo e só pode ser equacionado nos termos do consórcio dramatúrgico. O gênero dramático lida de forma peculiar com tempo e espaço. Sempre atualizáveis a cada montagem, tempo e espaço asseguram a juventude do texto dramático. Tal propriedade do discurso dramático levou Goethe a defini-lo como a mais perfeita das "formas naturais de poesia". Para exaltar este ecletismo haurido de faculdades intrínsecas à escrita dramática, Schiller sentencia, no prólogo do Wallenstein (1966, p. 558): "Ao mimo a posteridade não tece coroas". Deduzimos perfeitamente a quem, a que gênero e até a que espécies literárias do gênero elas se destinavam .... Como o mimo é uma forma dramática representada apenas por gestos (tão graciosos quão ingênuo é o enredo veiculado), a chave continua sendo o texto dramático. Considerando a questão por outra perspectiva: se a encenação parte do texto, ela, individualmente, não é capaz de recobrir todas as possibilidades de realização cênica que o texto admite. O conjunto de montagens de um determinado texto é ainda insuficiente para esgotar o potencial dramatúrgico de que é depositário. Ademais, não há encenação que resolva os desvãos da escrita dramática. Sintética por excelência, a obra dramática lida preferencialmente com a sugestão e a incompletude. Sua palavra-de-ordem é, por isso, a tensão, na perspectiva do atrito, confronto, crispação entre fragmentos, com maior ou menor explicitude lançados à interpretação (por atores e espectadores/leitores). Daí se infere que o texto dramático está na raiz de uma outra realidade artística, particularizando-se e tendo alguns de seus sentidos resgatados através do consórcio com os outros elementos a que os dados textuais se associam. A complementaridade entre texto e representação, aliás, só existe porque trata-se de dois sistemas narrativos diferentes: o primeiro represa sentidos que ultrapassam a representação, em razão de sua natureza lacunar (literária) e autoreferencializada (teatral); o segundo, desobrigado de dar sentido ou de preencher o que o texto anuncia de sua
incompletude, preserva esse modus faciendi acidentado, constituindo uma versão provisória do mundo representado. Ao mesmo tempo, o destino do texto, no contexto da encenação, é perder sua identidade matricial, à medida em que permeia e é permeado pela operatória dos demais signos envolvidos na semiologia teatral. No atrito entre o que o texto teatral propõe e o que o conjunto dramático realiza, sobressaem, ainda assim, algumas propriedades que colocam o texto em posição vantajosa: por maiores que sejam as liberdades a que o diretor se permita, seu trabalho parte sempre das referências propostas pelo texto. Gerald Thomas, mesmo quan do ambienta o Navio Fantasma, de Wagner, numa fábrica, e se permite representar os tradicionais tripulantes como operários, substituindo-lhes a indumentária convencional de navegantes por macacões, está estabelecendo uma relação, ainda que de ruptura, com a obra, como foi originalmente concebida. O mesmo se aplica à elocução dos atores, cujos modos verbais, entonação e registros lingüísticos, entre outros elementos relacionados à fala das personagens, se estipulam em função das sugestões textuais. Vale dizer que a atuação cênica, sob a chancela de diretores, atores, cenógrafos, figurantes e tantos profissionais quantos as encenações demandem, mantém-se subordinada às determinações contidas no texto dramático. O staff intermediário, porém imprescindível, em que se situam os acionadores da "máquina" teatral, dá unidade e mantêm associados, numa comunicação irremediável, as duas dimensões contidas na dinâmica dramatúrgica: a exterioridade absoluta (materializada através dos atores) e a interioridade mais radical (dimensionada pelos sentidos textuais que emergem no regime do descortinamento teatral; por discursos que se organizam em função de tudo o que medra, na soturnidade dos bastidores; enfim, pelo jogo entre o tanto que é di to e o muito que permanece ocultado – na iminência de irromper palco a dentro). Não se garante o êxito de um espetáculo exclusivamente por seus expedientes cênicos. Ele tampouco se ancora em um texto dramático qualquer. Somente naquele cujo grau de artisticidade é capaz de torná-lo refratário à ação do tempo e das múltiplas leituras que tenha ensejado. Ainda aqui se recolhem traços que singularizam o texto literário teatral: ele é estável, no que diz respeito a sobreviver às representações (sempre efêmeras, por melhores que se comprovem) e aos encenadores (em muitos casos, co-criadores; em outros, de tratores da obra escrita). De fato, o texto dramático é muito mais durável que a memória das encenações por ele suscitadas. Por suas qualidades artístico-literárias, tem assegurada a permanência (a exemplo dos manuscritos das tragédias atenienses, que chegaram até os dias atuais em número reduzido, mas, certamente, incluindo aquelas que foram selecionadas pelo critério de preferência dos espectadores e do público leitor. Praticamente preservaram-se as peças mais requisitadas pelo gosto universal). Se as montagens variam, e os textos não, além de estáveis, estes se comprovam também imutáveis, a menos que se considerem os acidentes (do tipo paleográfico), à mercê dos quais os papiros, incunábulos e manuscritos (antigos) se encontravam. Mas este já não é mais o nosso caso. 1.3 - A cartilha aristotélica
O dramático é certamente um gênero que conta com amplo e diversificado repertório de espécies literárias, diversidade decorrente da longevidade e do estímulo à inventividade que se depreende de seu estatuto fundamental. Basta pensar na origem grega do teatro. Na Atenas do século V a. C., o teatro se instituiu nos moldes dos tribunais públicos. Os dramaturgos que concorriam a prêmios auferidos mediante votação sigilosa lidavam com o desafio de adotar de forma originai as rígidas estruturas da tragédia e da comédia. O problema era ainda maior para o tragediógrafo que para o comediógrafo, uma vez que a comédia já apresentava um modelo mais flexível e um temário incomparavelmente mais aberto que aqueles impostos ao poeta trágico. Daí para a posteridade, a invenção, através da celebração das soluções obtidas em termos dramatúrgicos para vencer a aparente inalterabilidade dominante na vida extra-teatral, parece orientar a realização da literatura dramática. A copiasidade de espécies – a começar pela tragédia e a comédia, mas já na Grécia antiga diferidas dos ditirambos, do drama satírico, do melodrama e da tragicomédia, e, em Roma, estipulando tipos diferentes de co média, a palliata e a togata; cada qual com suas prerrogativas – passa pelos mistérios, as moralidades, os autos, as farsas, as farsas burlescas, as sotias, as bufonarias e os mimos medievais, pela “comédie larmoyante”, ópera, pelo teatro do mundo espanhol, pelo drama burguês, a opereta, o teatro épico, o teatro do absurdo, a soap opera, as Rühstücke, as comédias de costumes, social, romântica, de tipos, etc., numa listagem sempre tão longa quanto incompleta. Mas não só as mudanças de "formato" determinam a dificuldade de se sistematizar um perfil do gênero. Há uma variedade de personagens, associadas às teorias dramáticas, priorizando a exemplaridade (herói trágico) ou o seu contrário (herói cômico), a hipertrofia de qualidades (cuja essência se encontra nas comédias de caracteres de Molière), a crítica social através de um caráter representando o meio (Gerhard Hauptmann), ou, inversamente, a mudança das relações sociais provocando uma intervenção das personagens (Shaw e Brecht). Além destas modalidades consagradas de se conceber as personagens dramáticas, há ainda as personificações (como os Vícios, nas Moralidades medievais), os tipos (papéis sociais, como o Cortesão, o Erudito, o Noviço) ou as personagens que encarnam aspectos de caráter (o Avarento, o Sedutor). A este leque se associa uma constelação de personagens consagradas. Servem-lhes de exemplo, na comédia antiga,
o Parasita e o Miles gloriosus; na Commedia dell'Arte, Arlequim e Golondrina; no teatro popular, Hanswurst; na Comedy of Humours, o Melancólico, o Sanguinário e o Cândido..., dentre outros exemplos que sobrevivem no leque de papéis até o teatro de Boulevard . A este amplo rol juntam-se as personagens mistas da tragédia burguesa, representando indivíduos capazes de mudança, até que, no século XIX, a personagem adquire uma psicologia multifacetada. Ela está a caminho de exercer a crítica de caracteres que lhe é reservada no teatro do século XX. Inúmeras espécies dramáticas e uma variada galeria de personagens estandartizadas fazem-se compaginar por múltiplas formas de organização da narrativa, de acordo com as escrituras autoral, temática e de época. Não é difícil entender por que nunca se conseguiu uma descrição normativa do gênero dramático que abrangesse a heterogeneidade de formas angariada ao longo de seus 2.500 anos de existência histórica. Também não foi por falta de alternativa que Aristóteles conquistou lugar proeminente na discussão sobre o gênero dramático, mas pelo caráter sistemático de suas considerações. O inegável mérito do Filósofo decorre da perspectiva adotada: considerar o texto literário em si, sem se deixar levar pela tentação de explicá-lo a partir das encenações. Ao contrário, já se percebe, na Poética, a preocupação de considerar o texto como instância que define a realidade cênica, o palco. Apesar do mérito inquestionável de suas apreciações, impõem-se algumas reservas, para que o texto aristotélico seja utilizado, tanto quanto possível, consoante as intenções do autor e o alcance plausível de suas asserções. Vale a pena lembrar que Aristóteles, na Poética: (1) foi muito mais crítico do que teórico (o que se constata pela preocupação judicativa que predomina às explicitações conceituais, algumas das quais básicas, porém lacunares); (2) colocou a tragédia grega no patamar de modelo de realização artística, levando em conta textos que não viu encenados e sem ter acesso a toda a dramaturgia produzida no século anterior àquele em que viveu; (3) fixou uma nomenclatura e ponderou critérios para a descrição do trágico, mas desconsiderou a comédia e todas as demais espécies dramáticas. Em nome da justiça, estes "defeitos" não podem ser integralmente tributados ao Filósofo, tendo em vista as condições que deram nascimento a apontamentos para aulas no Liceu e garantiram-lhes uma sobrevivência acidentada, nos manuscritos que a posteriori se denominaram Poética. Historicamente, a reflexão crítica sobre o teatro irrompe com a guinada humanística para a Antigüidade. A literatura greco-latina e especialmente a tragédia latina de Sêneca e a comédia de Plauto e Terêncio se tornam canônicas, nos comentários das Poéticas italianas (de Robortello, Scaliger, A. Minturno, Castelvetro) e espanholas (de Pinciano, Salas). A partir destes, assumem caráter normativo a Poética, de Aristóteles, relativamente ao teatro, e a Carta aos pisões, de Horácio, quanto à exemplaridade dos Antigos. De fato, Aristóteles abala o sistema tradicional. Ocorre, entretanto, que, ao impulsionar a pesquisa crítico-literária com uma conceptualística eficiente quanto à valorização dos processos estéticos, acaba imobilizando a investigação, que tem reverenciado ao método e se limitado a reproduzir a aplicação dos quesitos aristotélicos. Acrescente-se a isso o fato de que os teorizadores do dramático, fixando-se na cartilha aristotélica, não chegam a propor os elos entre a origem do processo dramatúrgico e as novas concepções geradas pela tradição pós-clássica. Esses elos não se apreendem facilmente, seja porque a quantidade e a variedade de elementos importantes contidos na Poética retém os pesquisadores na fase inicial do trabalho, seja porque a aferição de categorias extraídas do corpus dramático grego se prova insuficiente para a análise da literatura não-helênica. Tal impasse não se deve à inco mpetência de uma crítica com quase dois mil e quinhentos anos de experiência. Certamente tem-se buscado a solução para a aferição do nível de artisticidade das obras dramáticas no lugar onde ela não se encontra. Ou, por outra, deixando de fora o que lhes é intrínseco – as categorias ficcionais mesmas. Passemos, mesmo que brevemente, a elas. 1.4 - Categorias ficcionais na obra literária dramática
Quando Aristóteles identifica a mímesis poética por seus objetos, meios e modos, indica a diferenciação inicial do dramático em relação aos demais gêneros, a partir da ação e do caráter (objetos da mímesis dramática); da língua e música (meios) e da encenação (modo). 1.4.1 - Ação dramática
Dos elementos selecionados pelo Filósofo, ação e caráter concentram sua atenção. O primeiro liga-se ao enredo; o segundo, à personagem. Mas entendamos o que se quer dizer com ação. Não se trata exclusivamente da série de acontecimentos com que se constrói o enredo. No texto original, consta a palavra práxis, que remete a um tipo de ação como a que se encontra nos mitos – dinâmica, exemplar, associada a uma rede de histórias e gerenciada por tantas implicações quantas puderem ser cogitadas. Não se trata, absolutamente, de uma ação inconseqüente. Tanto é que o próprio Filósofo faz questão de adjetiva-la: “ação importante e completa, de certa extensão...”, Para definir conceitualmente a especificidade da ação dramática, Aristóteles ressemantiza a palavra mito, que deixa de significar narrativa fabulosa protagonizada por entes sobrenaturais, para significar, como termo do vocabulário técnico da literatura, ação mimética, cuja lógica se apreende na ordenação adotada em sua exposição.
À ação correspondem, por conseguinte, os acontecimentos seletivamente ordenados e apresentados, na sucessão das cenas. Isto a faz tecnicamente diferente do enredo (ou fábula), já que este se apreende na sucessão temporal dos fatos, como abstração. O enredo se situa no texto, aderido ao jogo teatral e inteiramente ligado à ação. Mas esta, objetivamente materializada nos discursos das personagens e nos gestos previstos nas didascálias, corresponde à história seletivamente concebida e plasmada. O arranjo estratégico dos acontecimentos funciona como o recurso através do qual a história apreendida no plano da representação (estrutura superficial) se reveste da lei da necessidade (a anánke aristotélica), que funda a lógica interna do drama (remissiva à sua estrutura profunda). O texto dramático reorganiza o acontecimento por associações lógicas, a partir das quais ele propõe elos causais, procede a relações semânticas (por elisão e concentração, por exemplo) e deslocamentos, na seqüência temporal. Segundo Aristóteles, o mito se gera juntamente a esta ordenação lógica, apenas aparentemente tortuosa, da narrativa dramática. Se, por um lado, é quase impossível estabelecer de forma totalmente objetiva a distinção entre ação e enredo, por outro, é no destrinçamento do enredo que se apreendem o sistema de estruturas narrativas e seu processo de organização. A forma pela qual se obtém a transformação da história em representação cênica enuncia as suas leis. A primeira delas, a tensão, decorrente da desigual distribuição de informação entre personagens; entre estas e o público; ou ainda entre o conhecimento de saída por parte dos espectadores e a consciência limitada das personagens à mercê da ironia dramática. A partir dos conselhos de Aristóteles para a realização de uma boa tragédia, depreendeu-se também o que passou a se chamar de "lei das três unidades": de tempo, de espaço e de ação. As duas primeiras referiam-se ao fato de que o Filósofo, a partir da observação do que ele considerava as melhores tragédias, aconselhava aos dramaturgos a fazer com que a ação que representassem diante do público tivesse a duração de um dia e transcorresse num mesmo local. Lembrava ele que assim procederam os grandes autores trágicos, colocando em cena apenas o dia em que os acontecimentos transformariam a vida do herói, em geral fazendo alguém bem afortunado passar ao infortúnio, devido a situações que não conhecia até então completamente. A unidade de ação referia-se ao fato de que apenas um acontecimento representado como um todo, ou seja, constituído de começo, meio e fim, deveria ser apresentado como uma peça teatral. E nisto ele distinguia esse gênero artístico das epopéias, em que podia ser apresentado um conjunto de acontecimentos simultâneos. Um enredo bem feito, de acordo com as normas vigentes nesta tradição, deve-se constituir da apresentação de um conflito, de sua complicação e de sua resolução. Aristóteles considerava a transformação que ocorria n o destino de uma personagem como uma das conseqüências do desenvolvimento do conflito, e chamava de peripécia a essa mudança súbita que ocorria num determinado momento da ação, devendo provocar o impacto no público. Na peça Édipo-Tirano (às vezes traduzida em português como Édipo-Rei ), de Sófocles, a ação se desenrola totalmente num só dia, aquele em que o soberano Édipo atende aos pedidos do povo de sua cidade, assolada por uma violenta peste, e resolve investigar que culpa humana teria ocasionado a ira do cosmos contra aquela população. O resultado dessa investigação, que constitui a ação da peça, é a descoberta de que ele mesmo maculara aquele povo ao matar o seu pai e casar com a própria mãe. A peripécia é, neste caso, a passagem de Édipo de soberano semideus a infrator digno de expulsão da cidade. Aristóteles considerava a maior mestria demonstrada por Sófocles o fato de fazer coincidir na apresentação dos fatos a peripécia com o reconhecimento pelo herói de seu próprio destino. Segundo o Filósofo, esse era um fator que provocava o impacto máximo no público, e por isso denominava Édipo-Tirano a mais bela das tragédias. Ligada à construção dos acontecimentos, encontra-se a intriga, ou seja, o processo que estipula as relações de causalidade da ação. Depreender as etapas da intriga corresponde a levantar a arte de composição de uma peça. São elas a exposição (apresenta a pré-história da ação que se vai desenrolar) e o nó (ou anabolé, o que causa a reviravolta), que conduzem o conflito das forças contrapostas (protagonista e antagonista) ao clímax (ponto alto da ação). Esta se desdobra em crise e peripécias (mudança do que deve ser alcançado em seu contrário), remetendo ao desfecho (catástrofe , na tragédia, e dénouement, na cornédia). Neste conjunto sobressaem a anagnórisis (mudança de situação, a partir do momento que passa da ignorância ao conhecimento de um fato) e o páthos (emoção profunda). O objetivo final da representação é a kátharsis (mudança violenta de estado emocional), originalmente associado aos efeitos médicos de alívio de incômodos físicos, mas adaptado por Aristóteles à teoria poética, associando-a ao prazer decorrente da excitação afetiva. A ação dramática é tão mais eficiente quanto mais investe na regra de superposição de funções, explora a construção do todo dramático sobre o duplo patamar da intriga e da ação associada a óticas discrepantes e, simultaneamente, a uma organização conflitiva dos papéis. É inegável que Aristóteles acerta em cheio, quando pontua que o caráter ( éthos encarnado na personagem dramática) é funcional para a ação. Não se verifica a mesma precisão, quando a tradição aristotélica ensina que a obra dramática imita pessoas fazendo alguma coisa, por oposição à epopéia (que imita ações por meio da narrativa). Esta distinção se baseia na falsa associação do dramático a um "fazer", e do narrativo ao "dizer". Desde o teatro grego, esta
correlação é desmentida pelas amplas narrativas que levam a ações muitas vezes diminutas, mesmo nas mais bemsucedidas tragédias. No Agamemnon, de Ésquilo, a ação propriamente dita se resume a uma única cena, que não abrange mais que quarenta versos, quando o protagonista, sem dizer uma única palavra, desamarra as sandálias e pisa sobre um tapete vermelho – e com este gesto consuma a falha trágica (hamartía) de outorgar-se uma honraria exclusivamente dedicada aos deuses. Tudo o mais, nesta tragédia, são discursos narrando o passado ou o futuro (os infortúnios reservados ao rei sacrílego e à sua escrava, Cassandra). Na Antígona, de Sófocles, fora a cena em que a filha de Édipo comparece com as mãos sujas de terra – prova de transgressão ao édito que impedia o sepultamento de seu irmão –, todos os episódios remetem a discussões em torno das leis escritas e não-escritas, dos direitos natural e consuetudinário, sobre quem seria mais justo, se Antígona ou Creonte. Ação propriamente dita, em cena... nenhuma! A despeito da necessária relativização das lições aristotélicas, a chamada "lei das três unidades" foi um dos temas de acaloradas discussões no teatro ocidental, depois da tradução de Aristóteles, no século XVI, tornando-se fonte de acesas polêmicas ainda na França do século XVII, diante do desejo da corte e dos acadêmicos de preservar as tradições clássicas. 1.4.2 - Personagem dramática
A personagem dramática constitui o ente através do qual as estéticas teatrais se externalizam claramente. Apesar disso, apenas algumas formas dramáticas elaboraram personagens invariáveis. Este é o caso do herói trágico, que vem modalizado pela hamartía (a falta trágica) ou a hýbris (excedência, desmesura) de caráter; o herói cômico, pela hýbris de ação; o Coro, constitutivo cênico imprescindível do teatro antigo, pode representar o pensamento coletivo ou a opinião do poeta, de acordo com o encaminhamento que este dá à ação. Na Commedia dell'Arte, colocam-se em cena tipos fixos, aos quais se atribuem clichês, que facilitam a identificação da personagem pelas platéias. Uma tipologia da personagem teatral não é tão rentável quanto entendê-la como o mais exterior lugar da representação onde o texto se dá a conhecer. Da mesma forma que ela se constrói no texto e a partir dele, todos os processos de disseminação de sentidos passam necessariamente por ela, que é o ingrediente cênico por excelência com que o leitor/espectador se identifica e com o qual se relaciona preferencial e mais diretamente. Como agente da representação, a personagem dramática é um campo de imantação capaz de catalisar sentidos que se distribuem pelo texto sob a forma de múltiplos discursos. Investida de uma identidade fictícia, a personagem é um sujeito operativo, que se instala na encruzilhada de todos os signos em concurso, na simultaneidade da dramatização. Ser de papel, adquire sua complexidade, na condição de eixo em torno do qual se cristalizam os símbolos, desejos e tudo o que há de imaterial, no jogo dramático. A personagem dramática é, na verdade, tão mais complexa, quanto mais se define pelas ações. A maneira como se insere no enredo, construindo-se a partir dos eventos representados, torna-a um lugar textual imprescindível para a sustentação do todo ficcional. Ela funciona, assim, como a fronteira onde identidade e ação se revezam e se completam. Ótimo exemplo de personagem dramática é, de novo, Antígona: como uma adolescente de uns dezesseis anos, fora do desafiante impasse proposto por Creonte, a figura não teria como sobressair. À medida em que a jovem vai tendo a oportunidade de descortinar a importância do irmão, para ela, e se vai configurando a forma pela qual poderia prestarlhe uma homenagem exclusiva, que a colocaria em sintonia direta e fina com desejos incestuosos muito perversivamente sugeridos, suas opiniões passam a ameaçar éditos; por sua morte, matam-se um príncipe e uma rainha; o tirano todo-poderoso cai em desgraça. Tudo tão estranho quanto eficiente. Antígona prescinde da ação externa. Até mesmo ausente, tudo continua girando em torno dela, que é a personagem em torno da qual se enroscam o enredo e o discurso de todas as demais personagens. Trata-se a personagem dramática de um dos mais complexos artefatos do sistema dramático, exatamente porque ela dá feição antropomórfica a um discurso através do qual o público é capaz de entrar na ficção. Sua importância está diretamente ligada à função de sujeito que ocupa, na sintaxe das ações dramáticas. Orientado pelas teorias estruturalistas, o teatro ganhou dos modelos formais da Lingüística os fundamentos para uma gramática das constelações dramáticas, nas quais personagens se subordinam a actantes (E. Souriau) e funções (A. J. Greimas), no sentido de subsumirem um número restrito de funções actanciais combináveis. Investidas semanticamente por ações, idéias, falas, vontade e desejo, tanto quanto pela forma como se inserem no enredo e pelo que, de fato, executam, as personagens atuam como forças, das quais se distinguem o protagonista, o antagonista, o(s) adjuvante (s), o(s) opositores (s) e o(s) figurante(s) . Lê-las através de um modelo de análise auxilia a controlar a identificação psicológica com que se pode pôr a perder a estética que elas ajudam a veicular.
1.4.3 - Tempo e espaço
Ao afirmar que as "marcas espaço-temporais de um texto são o signo de sua estética", Ryngaert (1996, p. 75) situa a
importância destas duas categorias ficcionais, como pólos fundamentais para a constituição desse microcosmo que é o texto dramático. No trabalho de organizar um mundo e propor os modos pelos quais ele deve ser percebido – tempo e espaço indicando lugares e cronologia, mas também todo o campo metafórico por eles aberto –, funcionam como referências indispensáveis, sem as quais não se constitui a armadura que determina as escolhas artísticas levadas à cena, seja do ponto de vista intratextual (escolhas que garantem a verossimilhança), seja do ponto de vista extratextual (escolhas que testemunham prerrogativas estéticas). Acrescente-se a isso o fato de que é sempre das imagens espaciais e temporais que saem os indicadores da filosofia que organiza o microcosmo cenicamente representado. Estas duas categorias interativas habilitam-se à complexificação do universo criado, por constituírem instâncias exteriores onde se cristalizam processos, vivências interiores. Tudo o que é da ordem do oculto ou se encontra fora da cena pode ser recuperado/rememorado pelo que se mostra claramente nela. Não é preciso expandir muito esta noção, para se concluir das relações de implicação entre espaço e tempo interiores e personagens dimensionadas por desdobramentos fantasmáticos, na dramaturgia de todos os tempos. A melhor dramaturgia internacional tem sido pródiga em exemplos de que os espaços metafóricos comunicam o sistema estético-filosófico atuante nas obras, de forma bem mais contundente que as indicações cenográficas. Por seu turno, o tempo da representação constitui uma das instâncias fundamentais no processo de produção de sentidos textuais, por determinar o ritmo, a continuidade e as rupturas (através de encadeamentos, elipses, recorrências... ) do fio narrativo. As duas percepções do tempo que transcorrem simultaneamente à dramatização – tempo da ficção e tempo da encenação – remetem à multidimensionalidade do dramático, mas também à articulação de dados que, cotejados com os do extrato espacial, dão visibilidade à poética da obra. 1.4.4 - Enunciação dramática
Ingarden (1971) descreve a obra dramática como aquela que se compõe de um texto principal (contendo o discurso das personagens) e um texto secundário (remissivo às indicações cênicas dadas pelo autor). O texto dramático, envolvendo o discurso ficcional e o metatexto que o organiza, é funcional em não apenas uma perspectiva. O sistema de cortes, os encadeamentos propostos, assim como a distribuição do discurso pelas personagens indiciam já o programa estético adotado na concepção da obra. Não é exagerado dizer que a leitura do texto dramático pode principiar pela interpretação da decupagem, ou seja, pelo critério de divisão textual. A opção por dividir a obra em atos e cenas, quadros, seqüências, fragmentos, movimentos, jornadas ou simplesmente partes, entre tantas outras possibilidades, traduz já uma forma de apreender o real. A continuidade ou descontinuidade podem ancorar a identificação de uma estética, tanto quanto funcionar subsidiariamente na urdidura ficcional (basta pensar no corte como marcador de tempo ou recurso para a mudança de espaço). No dramático, as didascálias se introduzem no texto principal, de modo a explicitar a direcionalidade das falas enunciadas pelas personagens. Essas falas, prioritariamente organizadas em diálogos, impõem, todavia, a revisão do que a tradição entende, de forma simplificada – "teatro é diálogo"; "diálogo é ação". As evidências o desmentem. Em muitos textos, as didascálias contêm elementos poéticos, apesar de terem sido escritas para atuar de forma silente. Além disso, diálogo e monólogo se articulam com outras formas tidas como variações de paradigma. O que dizer dos freqüentes diálogos interiores, com interlocutor ausente ou com o público? Do diálogo que, pelo tom lírico, mais parece monólogo? Dos monólogos que simulam interlocuções? O tipo de comunicação veiculada pelo texto dramático impõe a identificação de emissores e destinatários, já que todos os enunciados se endereçam, explícita ou implicitamente, ao leitor. Por sua vez, atrás da personagem está indiretamente configurado o autor. A associá-los, encontram-se as estratégias de informação, relativas a do que e como o público toma conhecimento e vem a saber de algo. Importantíssimo é também ressaltar que todas as situações de fala concorrem para a interação das personagens. Respeitando ou infringindo as convenções da comunicação dramática tradicional, as falas integram um jogo peculiar (por cruzamento, sobreposição, entrelaçamento, entre outras possibilidades), onde se projetam efeitos dos sentidos textuais. As escolhas vocabulares, as assonâncias, o sistema de repetições, o ritmo, os registros da fala constituem os elementos materiais do discurso que corroboram a lógica textual. Trata-se da regra da necessidade ( anánke) aristotélica, manifestando-se ao nível dos enunciados e da enunciação. Engenhosa e de forma pertinente, a obra dramática persegue a comunicação eficiente. É o que veremos a seguir. 2 - Tratamentos da forma e do enredo influentes na história do teatro ocidental
Na Grécia, o termo drama se referia, originalmente, às manifestações culturais em que se representava a ação de
uma personagem principal, de início em diálogo com um coro, posteriormente com outras personagens. Drama significa "ação", no sentido de caracterizar a representação teatral – uso que se faz até hoje. Este conceito englobava já a tragédia e a comédia, e formas mistas que existiam desde o século V a.C, tempo em que surgiram e cresceram os grandes festivais de teatro, inseridos no calendário das festas públicas, principalmente em Atenas. Argumenta-se que o surgimento do teatro, na Grécia, deveu-se à gradativa individualização de uma personagem, nos rituais religiosos em que um coro recitava versos em honra de Dioniso. Tratava-se dos ditirambos, cantos tumultuosos, que deram origem à tragédia. A comédia teria nascido de ritos agrários de f ertilização, as falofórias. Destas festas dionisíacas, isto é, altamente orgíacas e populares, sai a marca burlesca (divertida) e a liberalidade de ações da comédia. Essa memória religiosa do teatro se secularizou, mas deixou como vestígio a importância do coro na concepção da dramaturgia grega. Os impasses entre uma personagem individualizada, falando de forma prosaica e no dialeto de Atenas, agindo de modo quase tão natural quanto os espectadores agiam, mas representando um passado de reis e nobreza que foi necessário destruir, para que se pudesse implantar a nova ordem democrática, maximizavam-se no contraste com o coro – personagem coletiva, representando o pensamento social, conforme manifestava-se nas assembléias públicas, na praça do mercado, nos ginásios... Mas exatamente este ente cênico, que pensa como os espectadores, fala uma língua que é estranha aos cidadãos atenienses: o dialeto dórico, utilizado em Esparta, inimiga, aliás, de Atenas! Canta, dança e se expressa de um modo alheio à comunicação objetiva (por metros e figuras poéticas). Está posto o problema. Desde o seu ambiente grego de origem, o teatro surge como gênero problemático, baseado na contradição e na ambigüidade, e fraturado em duas espécies principais: a tragédia e a comédia. 2.1 - O Teatro greco-latino
Segundo Aristóteles, a tragédia pinta os homens melhores do que são, focalizando os atos heróicos e exemplares; a comédia os apresenta piores do que são, confirmando a moral do ditado latino: ridendo castigai mores (rindo castigamse os costumes). Esse aspecto didático e corretivo do teatro praticamente motivou os procedimentos estilísticos do gênero, que se apreendem das tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides (imitadas em Roma, com relativo mérito, por Ênio, Névio e Sêneca), e das comédias de Aristófanes e Menandro, genialmente desenvolvidas por Plauto e Terêncio, no teatro latino. A presença do coro era obrigatória, constituindo-se inicialmente, nas tragédias, de doze figurantes (os coreutas), número que foi ampliado por Sófocles para quinze. Na comédia, Aristófanes fixou o coro constituído de vinte e quatro coreutas. Desde os mais antigos testemunhos, estabeleceu-se que seria formado por cidadãos representativos da coletividade, escolhidos anualmente entre os indivíduos que se haviam destacado por algum motivo na pólis. Cabia a esta personagem coletiva cantar e dançar, apresentando em seus cantos a interpretação sobre os eventos ocorridos em cena. Em contraste com o coro, que aparecia em cena apenas disfarçado, os atores (gr. hypokrités), encarnando personagens, apresentavam-se com o rosto coberto por máscaras e vivenciavam o conflito entre obedecer ao impulso das paixões, muitas vezes fomentadas pela Fatalidade (a Moira grega), ou respeitar os valores político-religiosos da coletividade. Nas tragédias que se destacaram entre seus contemporâneos e ficaram para sempre como referência para a história do teatro, os protagonistas experenciavam a contradição entre os valores religiosos da tradição helênica e as novas concepções de vida surgidas na pólis. Na comédia, o mote principal eram os disparates da vida cotidiana. Os grandes tragediógrafos do teatro grego, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, contribuíram, cada qual a seu modo, para o aperfeiçoamento e a evolução do que se pode denominar "modelo trágico". Atribui-se a Ésquilo a inserção da máscara, dos coturnos e de acessórios adicionais, para a caracterização das personagens. A ele se deve também a modalização da cena trágica como um agón, que em grego significa "combate". Nesta perspectiva, a criação de um protagonista (gr. próton = primeiro), assim chamado por assumir em primeiro plano o combate, na defesa de algum interesse, e pela relação deste com um segundo ator, o deuteragonista (do gr. deúteros, segundo). Com a adição de um antagonista, materializava-se a contraposição de interesses, visões-de-mundo e valores adversários em relação à personagem principal. Sófocles, o tragediógrafo que sucede a Ésquilo na cronologia do teatro grego, amplia o número de atores em cena para três, inventando o tritagonista (gr. tritôs, terceiro), tão necessário para atender as exigências de sua dramaturgia. Este número foi mantido por Eurípides, que se especializou na exploração de recursos cenográticos e invenção das chamadas "máquinas teatrais". A comédia, diferindo da tragédia pelo prestígio de que esta gozou, na discussão de temas e conceitos imprescindíveis para o esclarecimento das instituições e do pensamento democrático, só foi admitida na agenda dos espetáculos públicos, quando a democracia se encontrava plenamente implantada em Atenas, ou seja, cinqüenta anos após a inauguração dos festivais (a princípio exclusivamente trágicos). Este descompasso temporal não é, entretanto, suficiente para desfigurar os procedimentos que tornam tragédia e comédia interfaces de um mesmo fenômeno artístico. Assim é que, do ponto de vista temático, elas abordam as mesma questões (amor, morte, abuso de poder, liberdade, direito divino... ), diferenciando-se apenas pelo tratamento dado à
matéria. Se esses temas são abordados de forma solene e veiculam uma ideologia de seriedade, enseja-se a tragédia; se o tratamento é irreverente e calcado numa ideologia carnavalesca, nasce a comédia. Quanto aos integrantes da cena, em ambas as propostas dramáticas comparecem atores (encarnando o protagonista, o deuteragonista e o tritagonista) e coro, aos quais cabe, respectivamente, a elocução ou o canto e a dança. A estrutura do texto dramático, por sua vez, é previamente estipulada, seja para o tragediógrafo, seja para o comediógrafo, cabendo-lhes criar e inovar dentro dos limites das convenções poéticas predeterminadas. Em menos de um século, essas convenções se impuseram e estimularam a inventividade dos poetas dramáticos, tanto no que diz respeito à composição das peças, como na alternância dos gêneros, que integravam as sessões diárias dos festivais gregos. De fato, a tragédia e a comédia eram regidas por fórmulas tão rígidas que motivaram os dramaturgos a conceberem variações para elas. Por isso chegaram-nos tragédias com final catastrófico (como Prometeu acorrentado, de Ésquilo) e com happy end ( Alceste), tragicomédias (Ifigênia em Táuride), melodramas (Electra), um drama satírico (O Ciclope; de Eurípides, como os três últimos títulos) e os três tipos de comédias (antiga, intermediária e nova), de Aristófanes e Menandro. Se os especialistas se digladiam quanto à distinção entre estas categorias, traços estruturais e estilísticos determinam as diferenças entre os dois modelos fundamentais. A começar pela divisão estrutural das obras, a tragédia se compõe, invariavelmente, de partes dialogadas que se fazem intercalar de partes corais. A primeira delas é sempre o prólogo, onde atores mascarados, em frente a um cenário que pouco varia de uma tragédia para outra (geralmente a fachada de um palácio), apresentam o argumento, ao mesmo tempo em que já lhe providenciam um desenvolvimento. Ao prólogo, representado na skenê (espécie de plataforma, três a quatro degraus acima do nível da orquestra), segue-se o párodo, primeira intervenção completa do coro, realizada na orquestra, pista circular do teatro grego ocupada pelos coreutas. Após esta soleníssima o de coral, seguem-se os episódios intercalados por estásimos (partes cantadas). Os episódios são partes destinadas ao desenvolvimento da ação encenada pelos atores na skené; os estásimos, partes em que o coro volta à cena, para interagir com os atores, cantando e evoluindo, sempre na orquestra, até o desfecho, tecnicamente denominado êxodo, em que coro e atores atuam juntos, há o entrelaçamento de elocução e canto, e todos os integrantes cênicos se retiram juntos da cena. A estrutura da comédia é mais simples. Ela se compõe basicamente de duas partes. A primeira consta de um prólogo, que é seguido pelo párodo e pelo agón ou debate entre dois adversários acerca do tema principal da peça. Divisor de águas entre esta primeira e a segunda parte que lhe segue, encontra-se a parábase, momento por que todas as platéias aguardavam, já que o coro se dirigia aos espectadores em nome do poeta, para criticar a política vigente e promover tantos ataques aos desafetos quantos fossem possíveis. A segunda parte se compunha de episódios que se precipitavam entremeados por cantos corais curtos, desenvolvendo a trama principal, e o êxodo, etapa de culminância da alegria, geralmente contando com um deus ex-machina, personagem alheia à trama que entra em cena apenas para finalizar o espetáculo. Além destas diferenças estruturais, há os tipos de versos empregados na composição trágica. Em todos os demais aspectos, estas duas espécies do dramático propõem uma correspondência simetricamente inversa de suas propriedades comuns: às personagens majestáticas da tragédia corresponderá a presença de figuras socialmente excluídas da comédia; à indumentária nobre de uma, as vestimentas andrajosas da outra; à gestualidade e ao linguajar elegantes de uma, o coprológico e os gestos obscenos da outra; em contraste com o comportamento circunspecto da platéia, no teatro trágico, o descontraimento, nas encenações cômicas. 2.2 - Definição de tragédia e comédia
A comprovação de que tragédia e comédia se correspondem pela inversão de suas peculiaridades pode ficar muito clara, se repassarmos os termos com os quais Aristóteles definiu a primeira (Poética, Capítulo VI). Se ele diz que "a tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão", poderíamos adaptar esta informação introdutória e dizer que a comédia é também a imitação de uma ação, só que ação irrelevante, aparentemente inconclusa, mas estatutariamente de certa extensão. Prosseguindo com a definição aristotélica: "num estilo tornado agradável pelo emprego em separado de suas formas, segundo as partes": de fato, a tragédia se tornava agradável pela sucessão de partes onde se intercalavam as formas da elocução e do canto. A comédia igualmente se expressa numa linguagem que conta com recursos métricos e lingüísticos engenhosos, de acordo com suas partes respectivas, mas que são, todavia, descontínuas. Aristóteles continua: "ação representada por atores que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções". A comédia, tal a tragédia, dispensa a presença de um narrador, mas, em lugar da kátharsis trágica (traduzível como eliminação das afecções morais dos espectadores), lida com a catástasis, a retenção ou manutenção da perspectiva crítica, perante os absurdos dramatizados. Dito por outras palavras: se a catarse é o resultado de convulsão afetiva provocada, na tragédia, pelas emoções paradoxais de compaixão e terror, essas mesmas emoções são responsáveis pela inversamente correspondente catástase cômica. Poderíamos mesmo dizer que a catarse, na comédia, melhor se define como catástase, porque a especifica.
Como se vê, efeitos díspares decorrem de procedimentos afins. 2.3 - O teatro na transição do feudalismo ao mercantilismo
A partir da constatação de que as divergências que davam origem ao debate, às desavenças, à luta e ao sofrimento ou à hilaridade entre os personagens constituíam o fio condutor da maior parte dos enredos dramáticos, concluiu-se que era uma característica fundamental do drama a apresentação de um conflito em cena. O chamado "conflito dramático" continua a ser considerado um elemento indispensável para caracterizar a existência de um enredo teatralmente bem construído, nas concepções de teatro mais ligadas à tradição. Na Europa, segundo muitos pensadores e historiadores, foi durante o século XVI que ocorreram muitas transformações que afetam até hoje a relação que os diferentes grupos sociais têm com a vida cultural. Fatores decisivos, nesse sentido, foram a força do crescimento das cidades e do desenvolvimento mercantil, e os diferentes interesses que levaram a projetos para organizar as relações entre os indivíduos nesse espaço mais restrito e sujeito a doenças e atitudes rebeldes. Desde fins do século XVI, essas tendências a um maior controle das formas de convivência, junto ao aumento da população urbana, fizeram diminuir a quantidade e a diversidade das festas públicas, especialmente ligadas ao calendário religioso, que constituíam-se em ocasiões de congraçamento social e baseadas em tradições populares. Nessa época, sintomaticamente, começam a declinar ou se tornar mais restritas as formas de encenação teatral em praça pública, que aconteciam durante toda a Idade Média. O teatro passa a ser representado nos salões do palácio, substituindo os hábitos e convenções anteriores. Os espaços cênicos transformaram-se continuamente na história do teatro ocidental. Na Antigüidade, o teatro grego, com a platéia distribuída em forma de arena, oferece até hoje um exemplo de perícia arquitetônica a serviço do espetáculo, impressionando os técnicos atuais pelas excepcionais condições acústicas que oferecia, possibilitando aos espectadores a audição perfeita em qualquer dos lugares de sua imensa arquibancada. Além das apresentações nas praças, principalmente diante das Igrejas, ou em intervalos durante as procissões religiosas, uma das modalidades de palco que se desenvolveu durante a Idade Média foram as mansões. Era uma série de tablados justapostos com alguma distância, em cada um dos quais desenrolava-se um trecho da ação, e diante dos quais os espectadores/transeuntes deslocavam-se. Imagine-se, por exemplo, a encenação das passagens relativas ao Nascimento de Jesus Cristo. A Anunciação de Maria poderia constituir uma cena separada; a aparição da estrela para os Reis Magos, outra; e a visita destes à gruta com o menino e seus pais, uma outra. Esta concepção cênica implicava uma atitude dinâmica do espectador e uma interação quase física com a encenação, que, segundo s e relata, era realizada com elementos de forte apelo popular: música, efeitos visuais de impacto, um texto recheado de referências ao cotidiano e alusões a tradições culturais locais. 2.3.1 - Teatro renascentista
A tendência da nobreza de estimular e desenvolver o teatro nos salões do palácio teve repercussões ainda atuais na história das artes cênicas. Uma forma de palco específica surgiu desta transformação, o chamado palco italiano. Este tipo de espaço cênico, predominante até hoje, faz com que ele pareça ser a forma mais "natural" ou mais adequada para a apresentação de um espetáculo; por isso, é necessário nos distanciarmos um pouco de nossos hábitos e repensarmos essa convenção e suas conseqüências. O palco italiano constitui-se de uma caixa em que a abertura da quarta parede possibilita à platéia observar o que ocorre em seu interior. Essa disposição espacial possibilita a criação de uma espécie de amostra da realidade ou do mundo da fantasia, naquela caixa que pode ser dotada de uma série de aparatos técnicos destinados a provocar efeitos cada vez mais adequados às finalidades da representação. Assim, as histórias de teatro relatam que, no século XVII europeu, em plena vigência da estética barroca, os espetáculos contavam com efeitos fantásticos de impacto no público, utilizando inclusive a iluminação por meio de reações químicas. Atentando para as relações íntimas entre o conjunto de manifestações artísticas e culturais de uma época, observamos que o surgimento do palco italiano, no século XVI, corresponde à expansão da forma do quadro como suporte da pintura. Uma observação que parece óbvia é que as pinturas eram anteriormente realizadas sobre as paredes de igrejas, monastérios e palácios, ou então, ainda durante o Renascimento, em painéis que eram transportados nas procissões (Francastel, 1993, p. 215 ss.). A diferença na expansão da forma do quadro é que a pintura, assim como o teatro, assinala a tendência de deslocamento das artes de espaços de circulação mais amplos, assim como de sua função nos rituais religiosos e da vida comunitária, para se tornar um bem privado. Também, em ambos os casos, delimita-se um espaço em que se realiza a representação artística (o quadro com a sua moldura, o palco limitado à caixa) e submete-se o receptor da obra à condição de espectador passivo. É também digna de nota a transformação dos valores estéticos e técnicas artísticas, a partir dessas mudanças de destinação e de relação com o receptor.
2.3.2 - Commedia
dell 'Art e
Se situamos no Renascimento esse impulso de uma cultura da nobreza, que preserva valores considerados universais e se mantém alheia às tradições populares e locais, há simultaneamente outras forças atuando na Europa. No caso do teatro, uma experiência marcante e também de grandes conseqüências futuras ocorreu na Itália. Foi a Commedia dell'Arte. Esta forma de teatro, surgida durante o século XVI, desenvolveu convenções particulares de encenação bastante diferentes daquelas observadas no teatro clássico. As apresentações dos grupos d este tipo de teatro eram feitas por artistas itinerantes que viajavam pelas cidades de todos os tamanhos da Itália. Seus espetáculos eram cômicos e giravam em torno de alguns núcleos narrativos fixos – pequenas histórias de traição entre conhecidos, e de adultério. Os personagens eram sempre os mesmos, constituindose em tipos populares relacionados a situações da época. Por exemplo, havia sempre o sabichão, que falava empolado e, na verdade, não tinha nenhum conhecimento consistente; a mocinha apaixonada e perseguida pelos pais ou tutores; parentes ou representantes legais dos pais encarregados de tomar conta de órfãos eram um outro tipo constante, bem como o enamorado jovem, que desejava lutar para conseguir o casamento com a mocinha. Esses tipos sofriam variações com o decorrer do tempo e com a expansão dessas convenções para outras regiões. Os atores representavam com máscaras bizarras que, no entanto, comunicavam imediatamente a sua função, nesse jogo de posições previamente marcadas. Havia um tipo de improvisação na fala e na atuação dos atores a partir das referências gerais do espetáculo e das convenções conhecidas do público. Muitas formas teatrais consideradas intelectualmente elevadas e reconhecidas até hoje originaram-se na Commedia dell'Arte, ou se beneficiaram de suas influências. O famoso dramaturgo Molière, que escreveu para a nobreza francesa do século XVII e serviu de modelo para as gerações subseqüentes, adaptou várias convenções e enredos daquela tradição originada na Itália. Beaumarchais, outro grande criador de comédias na França do século XVIII, demonstra a herança desse tipo de teatro. 2.3.3 - Teatro elizabetano
Uma outra força um tanto particular na tradição clássica ocorreu na Inglaterra, na virada do século XVI para o XVII. Foi o teatro elizabetano, assim chamado porque floresceu durante o longo reinado da Rainha Elizabeth I. Vale destacar que o teatro tinha grande popularidade nesse período, na Inglaterra, e era representado em grandes espaços. A disposição da caixa cênica possibitava um maior envolvimento da platéia. Como esta pagava ingresso, influenciava grandemente nos rumos da criação. Além do importante dramaturgo Marlowe, o teatro elizabetano brindou o mundo com o desenvolvimento do trabalho de William Shakespeare. No teatro shakespeariano, observa-se, por exemplo, que não se respeitavam as três unidades. Cada ato representava um espaço e um tempo cronológico diferentes. A contenção emocional, tradicionalmente considerada um valor artístico, não era de todo observada. A explosão de grandes paixões e a apresentação de estados irracionais, como o delírio, o sonho, a loucura, criam grandes rupturas na organização lógica das falas e interferem até mesmo na organização do espaço – tomado pela representação do fantástico, como as bruxas da floresta, em Macbeth, ou o fantasma do pai, junto às muralhas, de Hamlet . Além disso, a introdução de elementos do gosto e da cultura populares, como personagens característicos e certo tipo de comicidade, alterava qualquer rigidez na estrutura trágica. Tornava-se possível, por exemplo, que o dramaturgo jogasse com a alternância de momentos de intensa emoção que beiram ao pavor, diante do desconhecido ou da violência, com cenas amenas de franca comicidade. Através destas, cria-se muitas vezes mesmo o anticlímax para o desencadear das situações mais pesadas, como ocorre em Macbeth, em que um porteiro ridículo domina a cena que prepara a realização dos crimes mais hediondos, no palácio do protagonista. 2.3.4 - Drama burguês
A mistura de tons era considerada, na França do século XVII, um desrespeito às convenções de gênero por parte de Shakespeare. No entanto, a partir do século XIX, surge na França, através do famoso romancista, poeta e dramaturgo Victor Hugo, uma defesa apaixonada dessa flexibilidade na composição dramática, julgada mais fiel às variações na vida cotidiana. Era o estopim para grandes transformações na dramaturgia e nas formas de encenação que iriam se concretizar na criação do drama burguês. (Figura 7) No famoso Prefácio à sua peça Cromwell ; Victor Hugo (s.d.) deixou uma série de indagações que permaneceriam atuais nas décadas seguintes. Entretanto, junto a vigorosos ataques contra a maior parte das convenções teatrais em vigor até o início do século XIX, defende, neste texto, a manutenção dos versos no diálogo dramático, uma tradição que cairia em desuso ainda entre seus contemporâneos. Dentre as influências importantes de sua obra para o teatro moderno está a incorporação do melodrama, considerado até então uma forma dramática inferior ao chamado teatro sério.
Segundo o Oxford Companion to the Theatre (Hartnoll, 1983, p. 539), o termo melodrama originou-se nas peças de teatro alemãs que, no século XVIII, utilizavam música incidental (melodias), para criar o clima psicológico adequado a enredos baseados em histórias góticas de terror e mistério. A música passou a ter cada vez menos importância no tipo de espetáculo teatral que, derivado deste, desenvolveu-se durante o século XIX, principalmente na França e na Inglaterra, e que cada vez mais explorava o horror da vida real, voltando-se para as camadas urbanas mais baixas e suas difíceis condições de sobrevivência. No Brasil, impulsionado pelas estreitas relações da capital do Império – a cidade do Rio de Janeiro – com a França, chega, em meados do século XIX, a moda do chamado "teatro realista", que transpunha para nosso meio cultural especialmente o modelo das peças de Alexandre Dumas Filho, preocupado com as questões morais suscitadas pela mercantilização da sociedade. Um confronto entre a peça de José de Alencar, As asas de um anjo, que produziu grandes polêmicas por sua alegada ousadia, com a peça A dama das camélias, daquele autor francês, traduz muito claramente os limites rígidos que se impunham no Brasil à discussão em cena dos problemas morais. Na Europa, também no início do século XIX, um sintoma do desenvolvimento do teatro comercial é a circulação do padrão da "peça bem-feita", um tipo de drama organizado na medida considerada adequada para agradar ao público, explorando uma estruturação do enredo convencional constituída de uma exposição, nó e desenlace com uma série de anticlímaxes, para garantir o suspense. Os grandes dramaturgos do final do século XIX rebelam-se contra essa estrutura convencional, identificada com um teatro comercial destinado a uma audiência média. Nas últimas décadas daquele século, o teatro passava por profundas transformações em vários âm¬bitos. A abordagem de temas controversos ligados ao cotidiano, por exemplo nas obras de Ibsen, faz dos palcos um espaço para as polêmicas que agitavam a sociedade européia, tanto sobre as relações do indivíduo tentando conciliar os grandes valores morais com os violentos jogos de interesses na vida pública, como sobre as transformações na estrutura familiar e, em especial, a mudança do papel da mulher nesta. A estruturação dos enredos dos dramas torna-se também menos previsível, por força de novas idéias sobre o psiquismo e a percepção da realidade que o teatro incorporava, a partir dos desenvolvimentos da psicologia. A nascente psicanálise complexifica os enredos. A iluminação elétrica irá colaborar para as transformações radicais na cenografia, oferecendo novas possibilidades de exploração do espaço cênico. 2.3.5 - Teatro total
Esse conjunto de mudanças coloca em crise as convenções vigentes quanto ao desempenho dos atores. Um outro Prefácio ficou famoso, na história do teatro, o da peça Senhorita Júlia, em que o dramaturgo August Strindberg (1970) relaciona as transformações técnicas com o advento das novas idéias psicológicas e a necessidade de se desenvolverem novas atitudes dos atores no palco, para dar mais credibilidade à encenação. Buscava-se, em diferentes centros artísticos, conferir uma aparente naturalidade ao que ocorria na cena teatral. No bojo dessa proposta, surge na Rússia um novo método de encenação, desenvolvido pelo ator Stanislavsky, estreitamente ligado às inovações na criação de textos dramatúrgicos, realizadas por Anton Tchécov. O método de Stanislavsky baseava-se no aprofundamento psicológico do ator na exploração dos personagens, fornecendo um parâmetro para a atuação cênica. Pressupunha-se que esse solo tivesse algum vínculo, pelo menos em potencial, com as vivências do espectador, o que daria consistência à experiência teatral. Curiosamente, as idéias desse pesquisador russo foram divulgadas nos Estados Unidos, tendo sido criado um importante centro de treinamento de atores, dirigido por Lee Strasberg (1990), que acabou formando muitos dos grandes astros do cinema dos anos cinqüenta, portanto, influindo definitivamente nos padrões aceitos pelo público e dominantes na atuação cênica daquele país. Uma transformação importante ocorrida no teatro, a partir do fim do século XIX, foi também o destaque alcançado pelo diretor de cena. A partir desse período, essa função começa a se especializar e se tornar cada vez mais influente, uma vez que os espetáculos passam a ser vistos como um todo, constituído pelo texto dramatúrgico, o trabalho dos atores, os recursos cênicos. A importância dos grupos teatrais a que estiveram ligados grandes dramaturgos desde então justifica historicamente essa interação necessária ao desabrochar da nova concepção de espetáculo, que substitui o antigo privilégio absoluto da palavra no palco. Devido ao crescimento da importância concedida a esse conjunto de fatores e à figura do diretor como responsável por sua boa articulação em cena, o espetáculo passa a ser encarado cada vez mais, no decorrer do século XX, como uma "leitura", ou seja, uma adaptação de um texto dramático, realizada por um diretor específico. Interessa, por isso, cada vez mais a um público afinado com essas novas convenções, assistir a novas versões de um mesmo drama, seja de uma tragédia clássica, de uma peça de Shakespeare ou de um consagrado autor moderno. O texto original passa, portanto, a ter tanto apelo para esse tipo de platéia quanto o modo como fo i adaptado por um diretor específico. Com essas transformações, que foram consideradas a modernização do teatro, o palco tende a se tornar espaço de encenação das imagens de uma consciência determinada. O mesmo ocorre com a literatura, que mergulha nas dimensões da memória e do tempo subjetivos. Esse processo no teatro, de modo aparentemente contraditório, parece ter recebido grande estímulo da pesquisa que as estéticas identificadas como realistas e naturalistas levaram a cabo
sobre a percepção da realidade, no fim do século passado. É exemplar, nesse sentido, a dramaturgia de Strindberg, autor nórdico que fez grande sucesso em toda a Europa, e que, como vimos, preconizava, no início de sua carreira, uma mudança nas formas de encenação que possibilitasse reproduzir fielmente as experiências cotidianas no palco. Com a continuidade de sua carreira, depois de experiências peculiares, ao criar o chamado teatro "de câmera", com salas pequenas, propícias à exibição de peças que analisassem cuidadosamente o comportamento humano, realiza um conjunto de dramas em que o conflito dramático é substituído por uma série de painéis onde se colocam em discussão dimensões existenciais e até mesmo transcendentais da vida. Alguns desses são dramas religiosos que, em certo sentido, parecem uma r 'tomada das preocupações medievais ou se comunicam com perspectivas filosóficas e artísticas de povos orientais. A busca desesperada de um sentido oculto na vida moderna, o questionamento das formas de representação convencionais no teatro europeu, além de profundas crises psíquicas, levaram-no a implodir as formas dramatúrgicas e de encenação dominantes nos palcos europeus, na sua contemporaneidade. Processo semelhante aconteceu com outros dramaturgos modernos: a sua preocupação em reproduzir com fidelidade a experiência vivida no cotidiano levou-os a abandonar as convenções teatrais. No caso do Brasil, o processo de modernizaçao das convenções teatrais só se afirma definitivamente nos anos quarenta, com a primeira obra reconhecidamente moderna a ser representada nos palcos de prestígio no país, e a primeira de sucesso do dramaturgo Nelson Rodrigues (Magaldi, 1987). Tratava-se de Vestido de noiva, estreada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 28 de dezembro de 1943, na qual se traduzem exemplarmente algumas dessas transformações ocorridas na Europa. A peça transformava o palco no espaço mental da protagonista Alaíde, dividindo-o nos planos da memória e da alucinação, em contraste com o plano da realidade. O desenvolvimento do enredo, que abarca os últimos momentos de uma mulher atropelada e os desejos e as memórias de conflitos familiares, dá-se de modo não linear, num ziguezague entre esses três planos, iluminados alternadamente, como se fosse a l uz da mente da protagonista Alaíde a visitá-los, sem uma ordem deter-minada. O enredo e o espaço cênico reproduzem, portanto, concepções do psiquismo identificadas com os saberes modernos, correspondendo' ao crescente interesse pela psicanálise, numa parcela da população intelectualizada no Brasil. Uma tendência semelhante ocorria nos grandes centros mundiais e, de modo especial, nos Estados Unidos, desde as primeiras décadas do século, vinha se consolidando um tipo de teatro identificado com o realismo psicológico, caracterizado pela análise minuciosa, às vezes até mesmo cruel, dos conflitos e contradições entre os desejos individuais e as pressões sociais. O interesse de amplos setores do público por conhecer a intimidade dos indivíduos transformou muitas obras desse tipo de teatro numa verdadeira sessão de psicoterapia ou psicodrama, como acontece, desde as primeiras décadas deste século, com Eugene O'Neill, considerado um dos precursores dessa espécie de tradição moderna. Além de se constituir como um ponto de convergência na obra de alguns dos grandes dramaturgos norteamericanos, como Tennessee Williams e Henry Miller, o realismo psicológico influenciou grandemente o cinema daquele país e, conseqüentemente, deixou as suas marcas no restante do mundo. Um dos traços de identificação do drama que se desenvolveu sob essa linha de influência é o interesse central concedido, na construção do enredo, a um conflito psicológico do(s) protagonista(s). O "conflito dramático", retomado nas condições teatrais, passa a ser então um conflito individual, muitas vezes localizado em algum lugar do passado, em que o personagem ficou marcado por conflitos familiares. As teorias sobre os "complexos" são freqüentemente transpostos da psicanálise, ou de sua divulgação acelerada, especialmente nos Estados Unidos (Bigsby, 1990, p. 66). Observe-se, por exemplo, a freqüência com que se estruturam enredos de peças teatrais e de narrativas cinematográficas a partir da exposição de um conflito íntimo de uma personagem, originado pelos traumas infantis. O indivíduo precisa suplantá-los, ao menos tomando consciência da origem do fenômeno, para poder recuperar a felicidade ou uma estabilidade idealizada, cuja quebra é explorada como conflito, na obra. Uma outra conseqüência dessa aproximação entre a criação teatral e a psicologia é o já comentado interesse pelos métodos dominantes de interpretação, inspirados especialmente nas idéias e práticas de Stanislavsky, que proporcionaram o desenvolvimento de técnicas interpretativas cada vez mais sutis e instituíram o hábito do estudo minucioso da psicologia das personagens. Seria uma extrema simplificação se reduzíssemos o teatro moderno a essa tendência que ainda tem grande prestigio e muitos canais de divulgação através da hegemonia cultural norte-americana. Paralelamente a ela, desenvolveram-se experiências teatrais muito importantes durante este século, que abalaram profundamente até mesmo as tentativas de definição do fato teatral. Descrevemos brevemente, neste trabalho, algumas dessas experiências mais influentes. 2.3.6 - Teatro épico
Uma delas é o chamado "teatro épico", de Bertolt Brecht. Este dramaturgo e homem de teatro alemão, baseado na constatação de que as formas mais corriqueiras de espetáculo no século XX estavam comprometidas com a alienação política do público, decide ir além da denúncia dos problemas sociais e humanos no Capitalismo, que o teatro engajado politicamente vinha fazendo, e intervir no modo pelo qual o público se relacionava com as peças. Nesse sentido, Bertolt Brecht realiza pesquisas de criação de novas técnicas teatrais, visando estimular a participação intelectual do público,
torná-lo consciente dos próprios mecanismos de ilusão na cena e pronto a raciocinar sobre a ação que se apresenta nesta. Contesta, por isso, a tradição aristotélica que considera a catarse como alvo da relação com o público, procurando substituir o processo de identificação da platéia com os personagens e acontecimentos representados no palco, que ele considera um meio de eliminar a capacidade crítica da mesma, pela recepção crítica da ação. Para esse fim, elabora a técnica do "distanciamento" (em alemão, Verfremdung), que consiste em criar uma série de mecanismos que provoquem o público à análise crítica diante do que vê na cena. As propostas de Brecht levaram-no a incorporar às peças que escrevia e que dirigia uma série de elementos identificados com formas menos prestigiadas de teatro, como os espetáculos de cabaré ou de revista. Estes dois tipos de espetáculo entremeavam números de dança e de canto a piadas e, especialmente no último, pequenas encenações de situações cotidianas, enfocadas seja de um modo melodramático, seja de um modo satírico e crítico. Nas peças de Brecht, esses elementos comparecem sempre como um modo de provocar a reflexão que levasse à desconstrução das formas de ilusão construídas pelos interesses dos poderosos política ou financeiramente. A contestação às estruturas dramáticas tradicionais fez com que o teatrólogo considerasse que, com suas peças, não se estava no âmbito exclusivo do drama, denominando-as "teatro épico", porque se propunham a apresentar ao público uma narrativa (tradicionalmente caracterizada como definidora do gênero épico) e provocar nele a reflexão, através das técnicas do "distanciamento". Ao mesmo tempo, sem renunciar ao palco e aos recursos e técnicas dramatúrgicos, seu teatro renunciava à catarse. Os escritos de Brecht sobre teatro e suas peças tiveram grande importância no teatro brasileiro du¬rante os anos sessenta. O dramaturgo brasileiro Augusto Boal, à frente do Teatro de Arena, desenvolveu também pesquisas de encenação, que visavam tirar o público da posição passiva a que é submetido tradicionalmente no espetáculo, estimulando-o a responder criticamente, tanto diante deste, quanto da vida cotidiana. A contestação à ditadura militar e a crise de nosso teatro, que se questionava sobre o público, reduzido praticamente a uma elite financeira e cultural, fez com que várias idéias e procedimentos estéticos, desses e de outros pensadores extremamente críticos quanto às tradições teatrais, fossem experimentados com grande sucesso e provocando polêmicas, assim como tornando-se alvo de medidas repressivas. O teatro brasileiro passou a ter, neste período, um papel de destaque na apresentação e discussão dos problemas nacionais, em diferentes âmbitos, e certamente o pensamento e as experiências realizadas por Brecht, na Alemanha, e em seu exílio nos Estados Unidos durante o nazismo, contribuíram muito nesse sentido. Devido a essa função de destaque, foi o teatro brasileiro duramente reprimido e, portanto, prejudicado, no fim dos nos anos sessenta, antes mesmo que se abatessem sobre o conjunto da vida cultural as medidas de censura e controle absoluto impostas pelo Ato Institucional n. 5, em dezembro de 1968. 2.3.7 - Teatro de tese
Outra tendência de destaque no teatro europeu, que não se identificava com os interesses mais específicos das peças do "realismo psicológico", foi o chamado "teatro de tese". Este tipo de teatro desenvolveu-se especialmente na França, impulsionado pelas discussões filosóficas, no período que vai do encerramento da Primeira Guerra Mundial e se estende um pouco além do fim da Segunda. O filósofo francês Jean-Paul Sartre e o argelino radicado na França, Albert Camus, foram os principais dramaturgos a impulsionarem este tipo de teatro. Vale lembrar que ambos dedicaram-se também à prosa de ficção. Este dado, ligado ao fato de terem uma obra filosófica destacada, assim como a temática e os recursos estéticos apresentados em suas peças, contos e romances, permitem-nos concluir que esta parte de sua produção intelectual, baseada na criação ficcional, funcionava como laboratório ou veículo de comprovação ou divulgação de suas teses. Como dramaturgos, ambos utilizaram-se de referências míticas ou de obras consagradas da tradição teatral grega para a construção de seus textos. Tanto o Existencialismo de Sartre como as idéias filosóficas de Camus estimulavam o questionamento das tradições do pensamento ocidental e apelavam implicitamente para novas atitudes diante das opções que a vida oferece no cotidiano – tópicos que encontravam na literatura e no teatro um campo fértil de problematização. O propósito de fazer da cena um espaço de discussão filosófica foi criticado como um modo de submeter o teatro a outros discursos, em detrimento das funções específicas a serem desempenhadas por este gênero artístico e da renovação e desenvolvimento de suas formas. 2.3.8 - Teatro do absurdo
Uma outra tendência que se detectou nas artes cênicas posteriormente à Segunda Guerra Mundial foi chamada de "teatro do absurdo". Esta denominação foi atribuída por um importante crítico europeu, Martin Esslin (1968), à obra de alguns dramaturgos de vanguarda, surgidos no fim dos anos quarenta e durante os anos cinqüenta. Baseava-se ele, principalmente, no fato de que esses dramaturgos renovavam a estrutura dramática, a partir da perspectiva de que a comunicação é impossível no mundo moderno, e a vida não tem sentido num momento em que entrou em crise a
crença nos grandes projetos político-ideológicos e religiosos no Ocidente. Alguns dos dramaturgos mais característicos dessa tendência seriam o romeno radicado na França, Eugène Ionesco, o irlandês Samuel Beckett e o inglês Harold Pinter. Alguns críticos e estudiosos contestam a atribuição do que consideram um rótulo comum à obra desses três dramaturgos, que apresentam características particulares. São marcantes, entretanto, alguns pontos coincidentes entre" Ionesco, Beckett e Pinter, e outros dramaturgos que parecem tomados de preocupações e propostas semelhantes, embora menos prestigiados nos grandes centros. Pode-se constatar nessa linhagem do teatro contemporâneo, por exemplo, a desconstrução das convenções realistas dominantes no teatro comercial, a preocupação com a efetividade comunicacional da linguagem, que implica um exercício de levar o uso da língua, assim como o dos recursos de expressão teatral, a seus limites. Freqüente também é a adoção dos sketches curtos, como forma dramática em que se evidenciam os curtos-circuitos das formas convencionais de comunicação e a solidão a que está submetido o homem diante dessa circunstância. Essa desconfiança, generalizada às diversas formas de comunicação, traz consigo a necessidade de testar também a eficácia da linguagem teatral, traços que serão uma constante nas manifestações teatrais consideradas como da vanguarda teatral até à contemporaneidade; ou seja, o teatro que não se molda inteiramente pelo propósito de agradar a um público mais amplo, nem a funcionar como a televisão, impulsionado pela perspectiva da aceitação garantida ou do lucro imediato. 2.3.9 - Teatro de crueldade
Ainda uma outra perspectiva de renovação da linguagem teatral foram os escritos de um homem de teatro, ligado ao movimento surrealista francês, Antonin Artaud. Observe-se que o denominamos "homem de teatro", porque suas idéias sobre este foram mais importantes do que suas experiências concretas, limitadas, em sua repercussão, aos círculos intelectuais franceses. No entanto, a sua proposta de "teatro da crueldade" acabou por afetar especialmente o teatro identificado como de vanguarda nos anos sessenta. Antonin Artaud enlouqueceu e foi internado, legando-nos meditações sobre os limites impostos à representação teatral no Ocidente, especialmente após o Renascimento. Acreditava ele que o regime de festas e rituais que impulsionava a vida comunitária, em períodos anteriores da história, sobrevivia apenas nas culturas periféricas. Esperava renovar o teatro pela reincorporação de idéias e práticas que estimulassem a realização de espetáculos mais intensos, em que o corpo, através da dança, superasse o poder da fala na cultura européia. E colocava em questão o interesse constante das massas, por exemplo, pelo circo, em detrimento de um teatro amarrado por convenções que levavam a um psicologismo empobrecedor. Este tipo de análise crítica serviu de fundamento a muitas propostas que tiveram o seu apogeu nos anos sessenta e setenta, em todo o mundo. Colocando em primeiro plano o trabalho do ator, este tipo de dramaturgia levava ao desenvolvimento de métodos de interpretação teatral baseados no desenvolvimento do corpo, como as exp eriências do polonês Grotowsky. A performance teatral passou a ser uma das modalidades de apresentação característica dessa linhagem, constituindo-se de uma representação que abandonava os espaços cênicos mais usuais e poderia ser realizada nas ruas ou em qualquer outro espaço público. Junto à utilização política dessas práticas teatrais, na intensa militância política dos anos sessenta (por exemplo, na contestação à participação norte-americana na Guerra do Vietnam), alguns grupos e indivíduos afinados com essa tendência misturaram-na a idéias místicas, muitas vezes originadas de religiões orientais. Foi o caso do ator, diretor e teórico Grotowsky, que se isolou cada vez mais, continuando de um modo místico o caminho de aperfeiçoamento do ator que preconizava com finalidades teatrais (Bigsby, 1985, p. 34). Além de incorporar e dar novo vulto às discussões correntes no teatro de pós-guerra, idéias de vanguarda aparentadas às de Grotowsky levaram círculos l igados ao teatro a um questionamento generalizado acerca do papel do texto dramático na construção do espetáculo. Este passou a ser visto como apenas um dos elementos constitutivos do espetáculo. O teatro contemporâneo pode ser considerado herdeiro dessas perguntas colocadas pelas vanguardas teatrais. Em termos teóricos, a estética da recepção teatral, preocupada com os mecanismos envolvidos na apreensão do espetáculo, caracteriza-o como um texto constituído de elementos ligados a diferentes linguagens visuais e auditivas, sendo a fala apenas um dos suportes da significação geral. Na construção dos espetáculos, a harmonização desses diferentes sistemas de significação e a liberdade de "leitura" do texto original f azem do diretor uma figura com enormes poderes. As polêmicas quanto a esse ponto somam-se àquelas quanto a um destaque, considerado por muitos excessivo, aos recursos visuais em cena. Alega-se que o teatro transformou-se em espaço para a saturação dos sentidos do espectador, em prejuízo de sua capacidade crítica e de sua função como alternativa aos meios de comunicação, como era a tônica em projetos como o de Brecht, o de Augusto Boal e de algumas das manifestações de vanguarda dos anos setenta e sessenta. Segundo alguns críticos e homens de teatro, o desenvolvimento dessas tendências acabou por isolar o teatro do grande público e preservá-lo como um espaço para o cultivo do narcisismo de alguns diretores, interessados apenas em concretizar as suas fantasias. Seria este um prenúncio de uma perda de função do teatro na sociedade contemporânea?
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