O Liso e O Estriado
Deleuze e Guattari propõem uma distinção entre dois tipos de espaço: o liso e o estriado. A partir das leituras da bibliografia do alto rio Negro me parece que essa discussão pode ter um bom rendimento rendimento para a compreensão compreensão da constituição constituição da paisagem entre esses povos, e da relação desta com a hierarquia, hierarquia, a partir dos mitos. Primeiramente Primeiramente vou apresentar um pequeno resumo do que os autores colocam, para em seguida relaciona-lo com o material etnográfico. Espaço Liso e Espaço Estriado não são da mesma natureza. Eles formam uma oposição oposição complexa, complexa, na qual os termos termos das oposiçõe oposiçõess não coincide coincidem m inteiram inteiramente ente.. Sua separação é uma construção abstrata: eles só existem de fato nas misturas entre si, e nas maneiras como passam de um ao outro. Os autores constituem as oposições entre eles em alguns modelos, como segue: Modelo Tecnológico Tecnológico – o tecido é o estriado por excelência: é formado por dois tipos
de elem element entos os parale paralelo loss (linha (linhass horizo horizonta ntais is e verti verticai cais) s) que não possue possuem m uma uma funçã função: o: enquanto um é fixo, o outro é móvel; enquanto uma linha fica estendida, a outra passa por cima e por baixo para compor a trama. O espaço do tecido é um espaço delimitado, delimitado, fechado, ao menos de um lado: por mais que a trama possa prosseguir indefinidamente em uma direção (digamos, comprimento), o ir-e-vir dos fios móveis compõe um limite fixo (digamos, largura). Por fim, o tecido sempre tem um avesso e um direito, mesmo que constituído pelo nó final das linhas. Por outro lado, o feltro é o liso: não há distinção entre os fios, nem entrecruzamento, mas apenas emaranhados de fibras. Ele é infinito, aberto ou ilimitado; pode se estender indefinidamente em todas as direções. Não tem direito nem avesso nem centro. Não estabelece estabelece fixos e móveis, móveis, mas mas variação contínua contínua de fibras fibras heterogêneas. heterogêneas. Espaço Espaço liso não implica homogeneidade. Modelo Musical – a partir da teoria musical de Pierre Boulez, temos a idéia de um
espaço liso, onde se ocupa sem contar, com cortes irregulares e indeterminados e uma distribuição intensiva/intervalar das freqüências sonoras. Por outro lado, no espaço estriado se conta para poder ocupar, a partir de um tipo de corte modulado e padronizado, com intervalos fixos e distinção entre harmonia e melodia.
Modelo Marítimo – é o modelo cuja discussão tem mais rendimento em relação com
os mitos tukano. Os dois tipos de espaço possuem pontos, linhas e superfícies; porém o que muda é a forma como eles são tratados: o espaço estriado subordina as linhas aos pontos, enquanto o liso faz o inverso. No espaço liso a linha funciona como vetor/direção, e não como dimensão/distância. O espaço liso é ocupado por acontecimentos, muito mais do que por coisas formadas e percebidas, é um espaço de afectos mais do que de propriedades; espaço intensivo mais do que extensivo; percepção feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. No espaço liso há corpos sem órgãos, no estriado há organismos e organização. “Enquanto no espaço estriado as formas organizam uma matéria, no liso os materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas”. A superfície em um espaço estriado “é repartida” segundo espaços determinados, fechada, conforme cortes assinalados; enquanto no liso ela “distribui-se” num espaço aberto, conforme freqüências e ao longo dos percursos. Modelo Matemático – as distâncias de um espaço liso não são indivisíveis, porém
mudam de natureza a cada vez que se dividem. O que povoa um espaço liso é uma multiplicidade que muda de natureza ao dividir-se. Ele é amorfo e heterogêneo, em variação contínua. Modelo Físico – a estriagem constitui duas séries de paralelas que se entrecruzam
perpendicularmente: variáveis horizontais, fixas verticais. Quanto mais regular o entrecruzamento, mais cerrada a estriagem, mais o espaço tende a homogeneidade, que é a forma-limite do espaço estriado. Há ali verticais paralelas de gravidade que formam um centro, ao mesmo tempo que horizontais paralelas de velocidade tendem a uma periferia e a uma relação com o fora. O espaço liso é constituído pelo ângulo mínimo que desvia da vertical, formando um turbilhão que desarranja as paralelas verticais e horizontais, é o transversal.
Podemos fazer aqui um paralelo entre o espaço liso e o espaço-tempo do mito tukano: mundo de potenciais heterogêneos,
corpos
formados por
objetos
não-físicos
"forças/sintomas", acontecimentos em um percurso. Durante a viagem da Cobra-Canoa ocorre um estriamento progressivo do espaço-tempo, que passa a ser cada vez mais marcado
por matérias organizadas em dimensões. As forças verticais e horizontais que constituem o estriamento do espaço-tempo na passagem do mundo mítico para o mundo atual são as relações de parentesco: verticais de consangïnidade/descendência, que estabelecem centros de nexos regionais (Cabalzar, 2009), horizontais de afinidade/aliança. A superfície da terra "é repartida" em territórios, as relações se atualizam sempre segundo as duas linhas. A hierarquia se constitui no próprio estriamento (para Deleuze e Guattari, o espaço estriado é o espaço do Estado por excelência, enquanto o liso é o protótipo da "sociedade contra o estado"), colocando-se em um vetor vertical de descendência que fixa um centro territorial (Iauaretê para os Koivathe/Tariano; São Pedro para os Opaya/Tuyuka), onde prevalece uma relação de consangüinidade, e vetores horizontais de alianças que tendem a uma periferia (caso dos povoados agnáticos da periferia na discussão de Nexo Regional em Cabalzar). Porém isto não é estável, pois o espaço liso nunca está suficientemente bloqueado: este pode surgir a qualquer momento, pelo ataque da gente-peixe (que gera um alisamento do espaço por seu potencial de indiferenciação que lhes permite "capturar" humanos para o fundo das águas), pelas doenças, etc. Cada novo nascimento exige um novo estriamento para constituir a identidade/singularidade/corporeidade da criança, evitando sua indiferenciação potencial (captura pela gente-peixe) e também para fixar sua posição no esquema hierárquico; deste modo é necessário refazer a viagem da Cobra-Canoa desde o lago de leite, carregando consigo o nome-alma do recém-nascido, estriando os potenciais de humanidade naquele indivíduo específico. Hipótese: Comensalidade e Cohabitação geram, como discutido em algumas etnografias (Viveiros de Castro, Seeger, etc), cosubstanciação. Porém co-substanciação em situações de hierarquia, entre grupos que se espera que sejam distintos, pode ser perigoso (pode levar à indistinção, a uma reversão do processo de individuação). Nos dabucuris há tanto cohabitação quanto comensalidade, durante os dias que dura o ritual, entre grupos distintos (muitas vezes em posições hierárquicas distintas bastante marcadas, como nos dabucuris que os Hupda oferecem aos Opaya/Tuyuka, Cabalzar). É necessário estriar constantemente o espaço para evitar seu alisamento repentino e a volta a uma situação de indiferenciação: é necessário remarcar a ascendência e a afinidade (entrecruzar as linhas), o que ocorre pelas narrativas de origem dos sibs envolvidos e a encenação de ataque. São estratégias utilizadas para que a mistura eventual dos sibs envolvidos no dabucuri não rompa
com a metaestabilidade estabelecida. Hipótese 2: A relação tensa entre espaço liso e espaço estriado, no alto rio Negro, leva por um lado à afirmação da hierarquia e por outro evita que esta caminhe até uma formaestado (forma-plena do estriamento na organização social, segundo D&G). Por um lado temse que evitar perpetuamente o alisamento excessivo (conforme colocado acima), porém por outro ele é necessário: a convivialidade, a conjugalidade, são formas de alisamento do espaço.