Uma História de Amor
---------------- Carlos Heitor Cony ----------------
(Baseado no conto "O Amor, Outra Vez", do livro "Quinze Anos", publicado pela Ediouro.)
Ilustrações Teixeira Mendes 30ª Edição
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A nossa
cidade era muito diferente naquela época. Tudo era simples: desde a estação de trem - nosso único ponto de contato com o resto do mundo - às casas rústicas que se espalhavam sem ordem pelas ruas empoeiradas. A igreja, no alto do morro, com a praça de canteiros à frente, o clube, o ginásio e o palacete do teu pai formavam aparte nobre do nosso universo. Ali, as ruas eram pavimentadas e havia canteiros de bogaris floridos nas calçadas. Tudo pertencia aos Rezende. Deles eram os melhores terrenos, as melhores plantações de café e algodão. Tu eras uma Rezende e a distância que nos separava parecia maior do que os quarteirões que havia entre a tua casa de menina rica e o casebre onde eu vivia com minha mãe. Ela costurava para fora, pois meu pai morrera quando eu tinha 3 anos de idade. Fazia alguns vestidos para as freguesas menos exigentes do lugar. Nunca fez nada para os Rezende, que compravam tudo no Rio ou em São Paulo. Eu teria morrido se, um dia, tivesse ido bater à tua porta com um embrulho na mão e receber as reclamações que nunca faltavam: 5
- Este vestido está uma droga! Assim não é possível! Tu eras a rainha da cidade, a filha única do Comendador Rezende, o homem mais rico de toda aquela região. Teu reinado era total, tanto pela fortuna do teu pai quanto pela tua própria beleza. Impossível haver no mundo alguém mais bonita. Teus cabelos eram louros e me pareciam fantásticos, irreais. Eu sonhava com eles enquanto brincava no rio que cortava o meu bairro. Era quase uma vala. Contudo, se transformara no meu único brinquedo, pois era gratuito, tal como o Grupo Escolar onde eu fazia o curso primário. Certa manhã, eu estava brincando no rio quando o automóvel de teu pai parou perto. Um pneu dianteiro tinha furado e o motorista me pediu ajuda. Quando me aproximei, vi que estavas dentro, no banco de trás. Minhas pernas tremeram. Creio que ajudei muito mal. De repente, tu colocaste o rosto na janela e olhaste para mim. Eu vi teus olhos de perto. Pensei que todo o azul do céu havia se concentrado neles. Não falaste comigo. Eu era parte da margem da estrada, onde fiquei, quando o carro partiu levantando uma nuvem de pó. Quando cheguei em casa, minha mãe atendia a uma freguesa que viera reclamar de um serviço. - Este vestido está horroroso, Dona Clara. Se não tiver conserto, quero o meu dinheiro de volta e outro corte de tecido! Mamãe abaixou a cabeça. Eu ergui a minha, prometendo a mim mesmo que haveria de chegar o dia em que ninguém mais nos humilhasse. Minha mãe pediu desculpas. - A senhora me perdoe, Dona Zélia. Vou consertar direitinho. Depois mando o Henrique entregar na sua casa. Eu sofria vendo minha mãe curvada sobre a máquina, até de madrugada. Às vezes, quando 6
levantava para ir à escola, eu a encontrava dormindo em cima da costura. Tomava o meu café ralo e saía de mansinho, para não despertála. Terminei o curso primário como primeiro aluno do Grupo Escolar. Eu estudava muito para compensar minha mãe. Ela sorria quando eu chegava com a caderneta cheia de notas altas - e também porque adivinhava que esse era o único caminho para que eu vencesse a nossa pobreza. No dia que entregaram as notas finais, a professora me chamou a um canto: - Henrique, você foi o melhor aluno, todos esses anos. Será uma pena se não continuar os estudos. Sua mãe não pode matriculá-lo no ginásio? Engoli em seco, tentando achar voz para responder. Ela entendeu o meu silêncio. - Sei que a vida é difícil para vocês. Mas quem sabe se fizer um sacrifício? Quer que eu fale com ela? - Obrigado, Dona Iracema, pelo interesse. Eu mesmo falo. Mas acho que vai ser difícil. Depois, eu já tenho um emprego. Era quase uma mentira. Meu orgulho fez com que achasse aquela saída. Eu não queria que minha mãe sofresse mais por mim. Sabia qual seria a sua resposta: "Não, Dona Iracema, ando muito cansada, a costura não dá para tanto. Henrique terá que procurar trabalho. Estudo é para quem pode." Quanto ao emprego, bem, eu já vinha pensando nele. Volta e meia fazia entregas para o Seu Gomes, dono da única loja que consertava rádios e abajures. Ele puxava de uma perna e não podia caminhar muito. Por isso, me pedia para entregar os aparelhos consertados e eu ganhava umas moedas. Juntei um punhado delas e entreguei à minha mãe, num dia em que o dinheiro faltou em casa. 7
- Onde você arranjou isso? Contei como havia ganho o dinheiro. Ela ficou pensativa. Naquela noite, depois que jantamos e eu a ajudava com a louça, me aconselhou: - Meu filho, era bom que você se empregasse. Eu estou com pouca costura. O serviço aumenta perto do Natal. Mas janeiro e fevereiro quase não faço nada. O Gomes está velho. E com a perna doente não pode fazer entregas. Acho que ele aceitaria um ajudante. Pensei nisso quando a professora falou sobre a continuação dos meus estudos. Minhas possibilidades estavam naquele emprego. E eram bem pequenas. Mesmo assim, cheguei em casa agitado. Mamãe percebeu minha excitação mas nada perguntou. De noite, já deitado, falei baixinho: - Mamãe... Logo me arrependi. Torci para que não tivesse escutado. Mas ela ouviu e quis saber o que era. Contei então a conversa com a professora. - Mãe, eu gostaria de ir para o ginásio concluí. Ela não respondeu. O resto da noite virouse de um lado pra outro na cama estreita. Eu a ouvia mexer-se e procurava também pelo sono que não vinha. No dia seguinte, não se tocou no assunto. Mas ele pesava sobre nós. Não consegui comer na hora do almoço. Ela, então, ergueu para mim os olhos cansados e disse: - Meu filho eu não posso pagar o ginásio. Se você conseguir um emprego, e com ele pagar os estudos, está bem. Para mim, não preciso de nada. Então eu me ajoelhei a seu lado, coloquei a cabeça no seu colo e prometi que seria o melhor aluno do ginásio. E que trabalharia com tanta 8
vontade e firmeza que um dia ela não precisaria costurar. Acariciou o meu rosto. Sua voz era triste quando falou: - Prepare-se para sofrer, meu filho. Aqui no bairro somos todos pobres. No Grupo Escolar todos eram iguais. Mas no ginásio você estará no meio de gente rica, que tem tudo. Lá, a nossa pobreza será defeito. Eu estava decidido. Abracei-a. - Sei que será difícil. Acredite em mim. Nós venceremos. Abraçando minha mãe, eu mesmo acreditei no que dizia.
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Numa
cidade pequena, não só as paredes, mas até as ruas e o vento têm ouvidos. A notícia de que eu ia freqüentar o ginásio se espalhou rapidamente. Antes mesmo da matrícula, todos comentavam a novidade. Os bairros da cidade eram claramente separados, como as camadas sociais. E o fato do filho da costureira do bairro mais pobre subir para o quarteirão calçado e ajardinado foi considerado ofensivo. Nas conversas de porta de cinema ou na confeitaria, Oswaldo Matos, o coletor, chegou a comentar em voz alta, para que todos ouvissem: - Isso é um absurdo! É o que dá o ensino ser público! Nossos filhos vão ter que sentar no mesmo banco do filho da mulher mais pobre daqui! Precisamos convencer o padre a fundar um ginásio particular, para evitar essa promiscuidade! Odeio esse tipo de mistura! A "mistura" não era tão mistura assim, nem o ginásio tão democrático. Soube disso no dia da matrícula. Havia taxas a serem pagas por certas regalias. Tive que renunciar a todas. A principal, foi relativa à carteira individual. Seria colocado 10
um banco, no fundo da sala, para os que não pudessem pagar pela carteira. Fui depois à loja do Seu Gomes. Se ele não me desse o emprego, adeus ginásio! O velho me olhou por cima dos óculos, quando entrei.
- Chegou em boa hora. O rádio de Dona Olga está pronto. Você pode entregar? - Agora mesmo. Na volta preciso falar com o senhor. Entreguei a encomenda o mais rápido que minhas pernas puderam. O velho Gomes ficou surpreso com a minha eficiência. 11
- Já de volta? - Era perto. E não gosto de perder tempo. - Você é um menino esperto. - Seu Gomes, eu gostaria de trabalhar com o senhor. Tenho jeito para aprender as coisas. E preciso de um ordenado fixo para pagar os meus estudos. - Ouvi dizer que você matriculou-se no ginásio. Admiro a sua coragem. Estou mesmo precisando de um ajudante, não só para fazer as entregas, como aqui na loja também. Pode começar amanhã. Depois de uma semana, combinaremos o ordenado. Primeiro quero ver se é capaz de me ajudar no conserto dos rádios. Saí correndo, o coração aos pulos. Tinha conseguido a garantia do que precisava para continuar os estudos. Fui direto para casa, contei tudo a mamãe. Depois, desci a ribanceira do rio, deitei no capim macio da margem e fiquei sonhando com os teus olhos azuis.
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Cheguei cedo, no primeiro dia de aula. Aos
poucos, o pátio foi se enchendo. Quase todos se conheciam, freqüentavam os mesmos lugares. O único elemento estranho era eu. E fizeram questão de deixar bem claro que, além de estranho, eu era indesejável. Passavam pelo canto do muro, onde eu tinha me encostado, olhando de lado. Outros me apontavam e cochichavam. Foi preciso ser muito cara-de-pau para não sair correndo dali. Quando entrei na sala de aula vi logo o meu banco, lá no fundo. Parecia com o banco da cozinha de minha mãe. Para escrever, eu teria de usar as costas da cadeira da frente, como apoio. As carteiras envernizadas se enfileiravam até quase o estrado imponente, sobre o qual ficava a mesa do professor. E atrás, o quadro-negro, no qual haviam escrito: O Ginásio de Vila Rezende saúda o Comendador Rezende.
Teu pai viria àquele primeiro dia de aula para receber uma homenagem. Os outros alunos 13
entraram e foram ocupando as carteiras. Fiquei só no banco. Alguns me olhavam, como se eu tivesse invadido um território proibido. Baixei os olhos, e só os ergui quando todos haviam se acomodado. Então vi os teus cabelos louros e fiquei feliz por poder vê-los diariamente, lá do meu banco que, por ironia, ficava mais alto do que as carteiras. O diretor veio à aula inaugural para receber teu pai. Foi a primeira vez que o vi. O homem alto, corpulento e imponente pareceu um velho conhecido. Ainda que não o tivesse visto antes, eu sabia tudo sobre ele. Assim que eles entraram, houve silêncio na sala. O diretor iniciou o seu discurso: - Contamos hoje com a presença, entre nós, do Comendador Rezende, cuja família fundou esta cidade. Por suas relações de amizade no Rio e em São Paulo, ele poderia ter matriculado sua filha em qualquer colégio famoso. Entretanto, para prestigiar a sua terra, preferiu confiar-nos a tarefa de educar Helena. Isso nos traz grande prazer e responsabilidade. Sentimo-nos altamente honrados. Este humilde ginásio recebe entre seus alunos, Helena Rezende... O discurso foi por aí afora. Não escutei o resto. O brilho dos teus cabelos me queimava. Eu sentia o desafio da distância entre atua carteira e o meu banco. Naquele momento, eu tinha a determinação de vencer. Ocupava o último lugar da sala, o mais escuro. Mas seria o melhor aluno da turma e de todo o ginásio. E fui. E fui mais. Trabalhava e aprendia, na loja do Seu Gomes. Um dia encontrei, atrás de uma prateleira, um manual de eletricidade. Comecei a estudar, até aprender tudo. Quando recebi o primeiro ordenado, depois de pagar as taxas do ginásio e dar uma ajuda à minha mãe, usei o resto do dinheiro para mandar buscar, pelo Reembolso 14
Postal, outros livros sobre eletricidade. Eu sentia que, em breve, a eletricidade e a eletrônica seriam vitais para a humanidade. Varava noite adentro estudando. Tinha esperança no futuro. E me preparava para ele, ele , no silêncio das noites, cortado apenas pelo barulho da máquina de costura de minha mãe. Fui sempre o primeiro aluno do ginásio. E fui também o sujeito mais atormentado e tímido do mundo, quando, certa manhã, vieste ao meu banco, com o teu caderno aberto. E me pediste para copiar os meus exercícios. Fiquei atordoado. ator doado. Entreguei-te meu caderno, esperando que o levasses para tua carteira. Para meu espanto, tu sentaste ao meu lado e copiaste, ali, a matéria. Vi teu olhar azul muito de perto e guardei-lhe a expressão, quando disseste: - Obrigada, Henrique. Tu sabias o meu nome. E eu sabia que começava a te amar . Apesar das dificuldades que enfrentava, consegui manter o primeiro lugar da turma. Tu eras a segunda. Acostumaste a me procurar, quando tinhas dificuldades com a matéria. Logo, começaram os comentários a nosso respeito. Durante os recreios, cansei de ouvir alusões. - As notas de Helena não são vantagem. O pai dela tem dinheiro para subornar os professores e o diretor. E, além disso, ela comprou o Henrique, para fazer os deveres dela! Era mentira. Eu apenas te auxiliava, principalmente em matemática, tua maior deficiência e minha maior facilidade. Um dia, reparando que eu fazia cálculos de cabeça, perguntaste: - Como consegue fazer contas sem lápis e papel? Olhei teu rosto intensamente e respondi: - Fecho os olhos e me imagino contando os fios do teu cabelo. 15
Ficaste corada e séria. Eu logo me arrependi daquela besteira. Baixei os olhos para os cálculos.
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O
primeiro ano passou rápido. Fora os momentos que eu te ajudava nos deveres, continuávamos vivendo em mundos separados e distantes. Eu, trabalhando a tarde toda com Seu Gomes, estudando noite adentro, lendo tudo o que me caía nas mãos, ajudando minha mãe com a louça e com as entregas. Tu, passando férias em Santos, de onde voltavas queimada de sol e mais bonita, passeando de carro, freqüentando o clube, o cinema e a confeitaria, com teus pais e amigos. Por motivos diferentes, a turma toda nos invejava. A mim, o primeiro lugar do colégio. A ti, a posição de soberana da cidade. Tu eras o centro daquele universo, no qual nunca fui admitido. Estudar era o único direito que o ginásio me concedia. Excursões, jogos, reuniões sociais de tudo isso fui sempre excluído. Na metade do segundo ano, houve um incidente que revelou o quanto eu continuava intruso. Tinhas uma pulseira de ouro com teu nome gravado, nunca a tiravas do braço. Aquela manhã, quando voltei do recreio, um pouco atrasado, a classe estava excitada. Todos, do professor aos alunos, olhavam debaixo das carteiras, 17
vasculhavam o chão, mexiam na cesta de papéis. Tu choravas, com a cabeça sobre os braços cruzados na carteira. Do meu canto, eu via teus ombros cobertos pelos cabelos louros, sacudidos pelos soluços. Fui o único que nada fez, por não saber o que procuravam. E esse fato ajudou a criar o problema. A busca não teve sucesso. Depois de quase meia hora, todos voltaram para seus lugares. O professor foi até a tua carteira. - Sinto muito, Helena, não achamos a pulseira. Você tem certeza que a tirou do braço, durante a prova de desenho? Balançaste a cabeça. - Não me lembro. Hoje cedo eu estava com ela. Depois não sei mais. Foi presente de mamãe. Por isso eu gostava tanto dela. - Se estiver na sala, a zeladora encontra. A menos que... - o professor fez uma pausa ... que alguém tenha visto na sua carteira e apanhado... Nesse momento, todos os olhares se voltaram para mim. Custei um pouco aperceber o que aquilo significava. Eu era o mais pobre e, portanto, o mais suspeito. suspei to. Senti o sangue subindo no meu rosto. O professor acompanhou o olhar da classe e o pensamento da classe. Eu tinha chegado mais tarde do recreio. E fora o único a não procurar a pulseira. Ele olhou atentamente para mim. mi m. O silêncio me pesou como um insulto. Só tu não te voltaste. Continuaste a chorar com a cabeça sobre os braços. Teus soluços quebravam o silêncio. Então o professor falou: - Henrique, por que você não nos ajudou a procurar a pulseira de Helena? A pergunta doeu fundo. Meu orgulho firmou a voz para responder: - Não sabia o que procuravam. Entrei por último na sala. - E por que chegou atrasado? - Fui aqui perto entregar uma encomenda de minha mãe. 18
- Mesmo assim podia ter se informado sobre o que estava acontecendo e se oferecido para ajudar. Raiva, humilhação e vergonha explodiram dentro de mim. Lágrimas me subiram aos olhos, lágrimas que empurrei para dentro. Eu não permitiria que me vissem chorar. Respondi, erguendo a cabeça: - Não faço parte desta classe, já fizeram questão de deixar isso bem claro. Se me oferecesse para ajudar, teria sido recusado, pela mesma razão que agora suspeitam de mim. Se acham que fui capaz de roubar, pensariam, da mesma forma, que eu seria capaz de encontrar a pulseira e não devolvê-la. O professor não esperava pela resposta. Ficou embaraçado. Eu havia dito a minha verdade. E ela incomodava. Jorge, O teu primo, foi quem teve a idéia. - Reviste os bolsos dele, professor. - Boa idéia! Henrique, venha aqui! Vamos revistá-lo para que todos vejam. A brutalidade foi tão grande que não consegui me mover do lugar. O professor endureceu a voz. - Henrique, dei-lhe uma ordem! Obedeça! Então levantaste o rosto molhado e falaste: - Não faça isso, professor. O Henrique seria incapaz de uma coisa dessas. Por favor, deixe-o em paz! - Se ele não é culpado, não tem o que temer - observou o professor. - Eu sei que ele não pegou a minha pulseira. E se for para provar inocência, é melhor revistar todos, começando pelo Jorge, que teve essa idéia boba. Por um momento o professor pareceu indeciso. Depois: - Está bem. Afinal a pulseira é sua. Deixemos a revista para depois. E vamos à aula. 19
Não sei como consegui agüentar até o fim da manhã. Quando a classe terminou, os cochichos me perseguiram até fora do colégio. A história se espalhou pelos corredores. O ginásio inteiro me apontava. Cheguei em casa arrasado. Fiz o possível para esconder o fato de minha mãe. Porém 20
quando voltei do trabalho, no fim da tarde, encontrei-a de olhos vermelhos. Uma freguesa lhe contara o que acontecera. Ela me abraçou, chorando. - Eu bem avisei que íamos ter muito sofrimento. - Tenho a consciência tranqüila, mãe. E nada me fará desistir dos estudos. Na manhã seguinte, fui tentado a não ir à aula. Precisei juntar toda minha coragem. Uma fuga só aumentaria a suspeita geral. Cheguei em cima da hora, para evitar os comentários do pátio. Fui o último a entrar na classe. Helena se levantou, assim que me viu. Pediu licença ao professor e caminhou para mim. - Henrique, eu estava esperando você chegar. Quero que todos saibam que o chofer do papai achou minha pulseira atrás do banco do carro. O fecho estava quebrado. Peço desculpas por ter, sem querer, causado uma humilhação para você. Todos baixaram a cabeça. Tu eras a rainha. Deixaste isso bem claro àquela manhã. Eu caminhei, de cabeça erguida, para o meu banco, no fundo.
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Fizeste
15 anos. Estavas cada vez mais bonita. A cidade inteira preparou-se para a festa. Teu pai mandou vir orquestra de fora. Os convites foram impressos em São Paulo. Eras o único assunto da cidade. Até o velho Gomes comentava os preparativos, enquanto consertávamos os rádios. - O Comendador vai oferecer churrasco na praça para os pobres. O clube está ficando uma beleza, pintado de novo. E vem flor de São Paulo que não acaba mais. Você não estuda com ela? - Estamos na mesma classe. Mas não pertenço ao mundo dela. - Você tem coragem, rapaz. Deve ser duro enfrentar as feras. Levantei a cabeça e olhei longe, para a praça deserta àquela hora. - Tem sido muito duro. Mas vou vencer. Esta cidade ainda vai se orgulhar de mim. Na véspera do teu baile vieste a mim - eu agora ocupava uma carteira. Afinal, tinha conseguido pagar a taxa. Meu antigo banco fora retirado da sala. 22
- Henrique, aqui está o seu convite. Gostaria que você fosse à minha festa. Jorge escutou. Não perdeu a ocasião de me humilhar . - Ora, Helena, o filho da costureira no seu baile, era só o que faltava! Imagine a fúria do seu pai. Além disso, nem roupa ele tem. Só se a mãe der uma de alfaiate. Empalidecemos ao mesmo tempo. A indignação pelo insulto me fechou a garganta. Tu falaste por mim: - Você morre de inveja porque ele é o melhor aluno da classe e você só consegue passar em segunda época. Pois fique sabendo que pobreza não é defeito. Sem querer, tu me feriste fundo, mencionando minha pobreza. Voltaste para o teu lugar sem perceber o quanto aquele convite queimava as minhas mãos. Pouco almocei, àquele dia. Minha mãe me olhou preocupada, mas nada disse. A tarde se arrastou, pesada, triste. Ao consertar um rádio, machuquei a ponta do dedo. O corte foi profundo. Seu Gomes me mandou à farmácia fazer um curativo e tomar injeção anti-tetânica. Não pude jantar. O dedo latejava, eu remoía para dentro tuas palavras - "pobreza não é defeito!". Minha mãe não tirava os olhos de mim. Até que não agüentou mais : - Meu filho, o que foi desta vez? Contei a história do convite, omitindo a maldade de Jorge e tua inocente observação. - Eles não perdem ocasião de te magoar .E eu ainda pressinto muito sofrimento para nós dois. Tenha cuidado, meu filho. Não vá se apaixonar por essa moça. Seria sofrer em vão. Levei um choque. Teria minha mãe adivinhado o que eu mesmo não ousava me confessar? 23
O dia do teu aniversário amanheceu azul e quente. Era sábado, não havia aula nem trabalho. Vaguei pela beira do rio todo, evitando pensar na noite que se aproximava. Vi as luzes da cidade se acenderem. Iluminado, o palacete do teu pai anunciava a festa. O vento trazia as vozes do povo que se aglomerava aglom erava na praça, onde on de serviam o churrasco para aqueles que não tinham acesso ao clube. A música começou. Então voltei para casa e me enfiei na cama, na esperança de não ouvir nada nem pensar mais. Mas a música atravessava a noite, penetrava pelas paredes de madeira do nosso casebre e mordia os meus ouvidos. Eu te imaginava toda de branco, os cabelos louros soltos nos ombros, os olhos azuis refletindo as luzes do salão - e sofria. E me virava na cama, perseguindo o sono que não vinha. Velei, insone, atua festa. Só quando a música cessou, já com a primeira claridade da manhã, é que consegui adormecer, para sonhar com teus olhos, muito perto de mim, num salão florido e vazio. Te tomei nos braços e dançamos ao som da música invisível. Eu sentia o teu perfume, os teus cabelos macios que me acariciavam o rosto. Foi a primeira vez que sonhei contigo, de olhos fechados.
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Não se falou de outra coisa em toda cidade,
durante uma semana. Teus quinze anos te fizeram mais bela. Era como se, de repente, tomasses consciência de que eras mulher. Os rapazes sentiram a mudança. Começaram a te cercar. E havia ameaças e olhares quando vinhas até a minha recém-conquistada carteira pedir auxílio para os teus deveres de matemática. Ficávamos muito próximos, resolvendo problemas. Eu sentia o teu cheiro e me perdia no teu olhar azul. Não sei como acertava os cálculos. Um dia, deste comigo embatucado com uma versão para o inglês. - Alguma dificuldade? - Estou apanhando para fazer o trabalho que o professor pediu. Teu rosto se iluminou. O sorriso clareou teus olhos. - Eu posso quebrar o teu galho ! E me ajudaste, feliz por poder fazê-lo. Eras boa aluna na matéria, tinhas professor particular. Dali em diante, virou ritual fazermos juntos os deveres de inglês. E mesmo quando superei as dificuldades e fui capaz de seguir sozinho, 25
continuei fingindo que não sabia nada para merecer o teu auxílio. Teu primo Jorge continuava a me perseguir. Apesar dos três anos de convivência diária, eu continuava segregado, excluído da turma. Minha presença era tolerada de má vontade. Diariamente, encontrava bilhetes debaixo da carteira. Até uma gilete colocaram na minha cadeira. Não me cortei por sorte. Acho que foi o instinto que me fez olhar a cadeira, àquela manhã, antes de sentar. A revolta cresceu dentro de mim. Eu vinha suportando, em silêncio, toda espécie de humilhação. Chegara ao limite. Permaneci de pé, mesmo quando o professor mandou sentar. Ele me olhou, com estranheza, quase que com raiva. - Henrique, por que ainda está de pé? - Não posso sentar , professor. Ele franziu atesta. - E o que o impede? - Gostaria que o senhor mesmo verificasse. Ele se irritou com a minha ousadia. - Afinal, por que você está querendo armar confusão? - Será fácil o senhor ver, se vier até aqui. Ele ficou furioso, tomando minha obstinação por desrespeito. - Sente, imediatamente, ou se retire da sala. Vou comunicar ao diretor sua insubordinação. - Mas comunique também que colocaram uma gilete na minha cadeira e, por isso, recusei sentar . - O que você está dizendo? - A verdade. Por isso insisti para que o senhor mesmo visse. A lâmina ainda está aqui. Ele veio até o meu lugar. Depois voltou para o seu estrado, sacudindo pesadamente a cabeça. Ficou de pé, na frente da mesa, com os braços cruzados, enquanto eu retirava a gilete e me sentava. O silêncio era pesado. Então ele falou: 26
- Desta vez vocês se excederam. Percebi que hostilizaram este rapaz, desde o 1º ano, por motivos que não vou discutir. Mas para tudo há limites. Não tolerarei abusos aqui dentro. Espero que o culpado se apresente até o fim das aulas. Do contrário, toda a turma pagará por ele. O ambiente permaneceu tenso durante a manhã. Os alunos se entreolhavam, cabreiros. As aulas terminaram sem que ninguém se manifestasse. Quando bateu o último sinal, o professor tirou tir ou os óculos e aguardou. Ninguém se mexeu para sair . - Estou esperando que o culpado se apresente. Ficaremos aqui até que ele se decida. O silêncio continuou. Os minutos se arrastavam. Estava claro que ninguém se acusaria. O professor tornou a insistir: - Se alguém teve coragem para fazer uma brincadeira tão maldosa, devia ter para responder por ela... E continuou com o sermão sobre dignidade, hombridade e responsabilidade. Que foi de todo inútil. Eu estava cansado daquilo. Todos estavam. Então, uma das moças pediu licença e se levantou. - Professor, acho que sei quem foi. E já que ele ficou mudo, penso que é meu dever acusá-lo. Quando entramos na classe, ouvi Jorge dizer para o Marcos que o Henrique ia ter uma surpresa. Estou certa que foi ele. Jorge ficou roxo. Ainda tentou negar. Mas vendo o outro descoberto e não querendo ter culpa no cartório, Marcos confirmou a acusação da colega. O professor ficou indignado: - Jorge, você está suspenso por uma semana. Levarei o caso ao conhecimento do diretor e pedirei que fale com o seu pai. Para você, Marcos, três dias de suspensão por não ter impedido a brincadeira ou me avisado. O Henrique podia ter se machucado seriamente. 27
Foi um rebuliço: um parente dos Rezende punido por causa do filho da costureira! Eu estava quebrando tabus. O pai de Jorge não aceitou o castigo do filho. Falou alto por toda a cidade: "Esta aldeia não vai para frente por causa de coisas assim. Onde já se viu deixarem o filho da costureira matricular-se no mesmo ginásio onde estudam os filhos das melhores famílias?" Minha mãe perdeu algumas freguesas, que acharam melhor deixar bem claro de que lado estavam. Jorge me deixou em paz o resto do ano. E a turma seguiu seu exemplo. Ser ignorado incomodava menos.
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O ano
terminou. Vieram as férias. Mais uma vez, foste para Santos com a família. Eu dobrei meu horário de trabalho na loja do velho Gomes. Já entendia mais de eletricidade que ele. Gastava todo o dinheiro que me sobrava em livros. Descobri que o inglês era importante para a profissão que eu pretendia seguir. Estudei aquelas férias todas, suprindo com obstinação as dificuldades de aprender uma língua sem professor. Consegui dominar o inglês o suficiente para ler qualquer texto. Pude, então, ampliar meus conhecimentos de eletricidade. Com 18 anos eu lutava pelo meu futuro, compensando com duplo esforço a desvantagem da pobreza. As férias acabaram. Tu ficaste mais tempo em Santos, perdeste o começo das aulas. Era o último ano. A turma reuniu-se logo na primeira semana para programar a festa de formatura. Escolheram uma comissão. E mesmo sem a tua presença, te elegeram Presidente das Festas. Ganhaste assim o teu primeiro título. Quanto a mim, apesar de ser o melhor aluno da turma, foi como se eu não existisse. Na hora de dividir despesas, fizeram os cálculos. 29
- Somos 27. Mas o Henrique não entra nessa. Ele não tem dinheiro para pagar a sua cota. - Também - aparteou Marcos - o coitado dá duro a tarde toda, na loja do Gomes, e estuda até de madrugada! Jorge aproveitou a chance: - Ele deve se contentar com o curso. Já fomos obrigados a aturá-lo nesses quatro anos. Fiquei calado, como se não tivesse escutado. Uma coisa era verdade: eu não podia ir ao baile. Chegaste na segunda semana de aulas. Logo te comunicaram a eleição para a Presidente das Festas e os planos iniciais para a festa. - Tudo bem. Mas por que 26 cotas, se somos 27 alunos? - O Henrique não entra nisso. - E por que não? - Não tem dinheiro para pagar a cota dele. - Pois se querem que eu seja Presidente, tratem de aceitar o Henrique também. Ou ele entra ou arranjem outra Presidente. Se ele não puder pagar, eu pago. Vinda de ti, esta esmola doeu mais. Querendo me incluir na festa, me feriste fundo. Procurei um canto isolado do pátio, para evitar que me encontrasses. E lá fiquei, sozinho, chutando as pedras miúdas do chão. Estava tão concentrado na minha humilhação que nem te vi chegar. - Desculpe, Henrique, eu não quis te ofender... Eu me voltei e vi teus olhos. O azul ardeu em mim. Senti que estava marcado para sempre. Eu te amava. O sinal chamou-nos para a aula. Andaste na frente, os cabelos louros jogados pelo vento fresco de março. Eu tinha agora a minha missão: te amar. A rotina das aulas nos afastou. Tu seguias a tua vida de menina rica. eu o meu trabalho de 30
rapaz pobre, que lutava para pagar os estudos e ajudar a mãe. Descobria, aos poucos, que só existia para ti na hora dos problemas de matemática. Eu te observava de longe. A menina que vi um dia, na janela do carro, era agora a moça mais bonita do mundo, dona do meu coração e do coração de quase todos os rapazes da cidade. Eles te cercavam por todos os lados. No recreio, no clube, no cinema. Se derrubavas um
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lápis, todos se atropelavam para apanhar. Eu sabia que tinhas dois pretendentes sérios: Roberto e Alceu. O primeiro terminara o ginásio um ano antes e fazia os preparatórios, com professores particulares. Era o teu companheiro nas festas. O outro estudava Direito em São Paulo. Raramente aparecia em nossa cidade. Diziam que vocês passavam juntos a temporada de praia, em Santos. Tornara-se o favorito de teu pai, pois o rapaz era filho de outro fazendeiro rico da região. Em abril, mamãe adoeceu. Fui obrigado a perder uma semana de aula para cuidar dela. Quando voltei à escola, tive que pegar a matéria dada com a turma. Eu não tinha amigos a quem recorrer . Fosse a quem fosse que pedisse, levaria um não como resposta. Pensava no que fazer, quando te aproximaste de mim. - Por que faltou a semana toda ? - Minha mãe ficou doente. Tive que cuidar dela. - Temos prova de inglês amanhã. Se quiser, posso mostrar a matéria que foi dada, durante o recreio. Respondi que sim, um pouco engasgado. passaste o recreio me explicando o que os professores haviam ensinado, durante a minha ausência. O tempo correu rápido. Quando nos demos conta, os outros voltavam para a classe. - Leve os meus cadernos para copiar os pontos. - E a prova de amanhã? - Já estudei. E tenho aula particular hoje. O caderno não me fará falta. - Obrigado, Helena - foi tudo o que consegui murmurar. Tu me olhaste bem de perto. - Quero que você continue sendo o melhor. Merece isso mais do que ninguém... Durante o resto da manhã, não pude tirar os olhos da tua nuca dourada. 32
Minha mãe ainda estava doente. Corri para casa, encontrei-a sentada na máquina. - A senhora ainda não está boa para trabalhar. - Dona Esmeralda viaja amanhã e precisa do vestido. Tirei-lhe a costura da mão. E a obriguei a se deitar .
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- Meu filho, tenho que aprontar ... - Dona Esmeralda vai viajar sem o vestido. A senhora precisa descansar .Não se preocupe pelo dinheiro. Ganhei um extra consertando a radiola do Seu Domingos. Ela viu teus cadernos sobre a minha cama. - De quem são esses cadernos tão bonitos? - Helena me emprestou para copiar alguns pontos. Fitou-me dentro dos olhos: - Tenha cuidado, meu filho, tenha cuidado... Ela desconfiava do meu amor por ti. E adivinhava o quanto eu teria que sofrer.
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Ali
pela metade do ano, a turma planejou uma excursão, numa cachoeira próxima da cidade. Pela primeira vez vieram me convidar para um programa. A tua ostensiva oste nsiva proteção proteçã o foi a causa do convite. Recusei. - Não posso ir. Preciso trabalhar. - Mas é feriado. O comércio estará fechado. - O serviço está um pouco atrasado. Vou aproveitar a folga para colocar tudo em dia. Ninguém ligou para a desculpa. No fundo, a minha recusa representou um alívio para eles. Não fui ao passeio. Mas naquela manhã levantei bem cedo. Saí para fora de casa e fiquei vendo ven do as luzes se acendendo nas casas onde moravam os rapazes e moças de minha turma. Não agüentei ficar ali. Caminhei até a praça e me escondi atrás de uma árvore. O palacete de teu pai estava todo iluminado. Criados iam e vinham, carregando caixas e embrulhos. Os Rezende patrocinavam o piquenique e davam a condução. O ronco do ônibus reluzente, vindo de São Paulo especialmente para levar a turma, quebrou o silêncio das ruas adormecidas. 35
Eu te vi no ônibus. Escondido, vi o monstro
arrancar , desaparecer na curva, levantando poeira nas ruas. Amanhecia. Vi o sol clarear a praça. Apagaram-se as luzes das casas. Empurrei como pude o resto do dia. Mas na hora do almoço não consegui engolir a comida. Minha mãe também pouco comeu. Enquanto lavava a louça nada disse. Depois, com uma voz distante, falou sem fitar meus olhos. - Eu não queria que você sofresse. Apertei suas mãos : - Um dia isso vai terminar. A senhora vai ver. Não sei se era a ela ou a mim mesmo que eu tentava convencer. Ela murmurou: - O problema não são os estudos. É o resto... Ela sabia. Minha marca era visível a seus olhos. E se entristecia porque não podia fazer nada para me ajudar . Ao cair da tarde, fui ver a turma chegar. O mesmo ônibus, coberto de pó, apareceu na mesma curva que o engolira pela manhã. E dele desceram todos, de cabelos escorridos e faces coradas pelo sol da montanha. Guardei na lembrança tua figurinha descendo do ônibus, a blusa vermelha amarrada na cintura, os cabelos molhados pela água da cachoeira. Tu me viste, encolhido no banco da praça e fizeste um gesto. Tive a impressão que vinhas para onde eu estava. Mas logo tua governanta segurou teu braço e ambas caminharam para o portão da tua casa. Sozinho na praça, esperei a noite como havia esperado a manhã. As luzes se acenderam, quase ao mesmo tempo, nas casas que rodeavam o quarteirão da igreja. Eu ali fiquei pensando que talvez fosse melhor deixar o ginásio, a loja do velho Gomes, e partir para a capital. Lá havia cursos de eletricidade na Politécnica, e eu seria 36
estudante como os demais. Quem sabe eu venceria mais rápido e com menos sofrimento? Quando entrei em casa, vi minha mãe dormindo sobre a costura, os cabelos grisalhos e opacos, iluminados pela lâmpada. Com muito cuidado para que não despertasse, carreguei-a para a cama - eu havia ficado mais forte e ela mais frágil. Tive pena de nós dois. Senti-me preso a um destino mesquinho, feito de coisas pequenas, que, apesar de tudo eu amava terrivelmente com a obstinação resignada que só a pobreza tem.
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Na
semana seguinte, o colégio inteiro comentava que Roberto era agora o teu namorado oficial. Um rapaz bonito, de família influente. Alceu, o rival, andava longe, estudando em São Paulo - o que lhe deixava o campo livre. Eras disputada como uma presa de guerra. A luta valia a pena, acredito eu. Roberto aproveitava a ausência do outro e ia consolidando a sua vantagem. Era teu par nos bailes e, aos poucos, ia forçando a porta da tua casa, conquistando teu pai e tua família. Sofri com os comentários que ouvia. Foi duro te ver entrar no cinema, ao lado dele. Certa manhã, alguém escreveu num papel: - "Helena estava beijando o Roberto no bambual". Antes que o professor chegasse, o bilhete passou de mão em mão, por toda classe, entre risinhos abafados. Finalmente, jogaram-no sobre a minha carteira. A raiva me subiu à garganta. Amassei com ódio a folha de papel. Foi quando percebeste tudo. Decidida, vieste até onde eu estava. - Quero ler o que escreveram aí. 38
- É melhor ignorar , Helena. - Henrique, me dê esse papel! Entreguei-te a folha. Desamassaste e leste o que todos haviam lido. Teus lábios tremeram. Foste para teu lugar e choraste em cima dos braços cruzados. Fui incapaz de ir até lá, como era meu desejo. Fiquei imóvel, vendo teus ombros tremerem com os soluços. E, de repente, vieste para mim. Perguntaste em voz alta, para que todos ouvissem: - Henrique, você acreditou nisso? - Não. - Os outros pouco me importam. Mas você não podia acreditar . Dizendo isto, sentaste na minha carteira e choraste com o rosto escondido no meu ombro. Eu te abracei, acariciei o teu cabelo. - Eu te amo, Helena. - Eu também, Henrique! Eu também te amo! O professor nos encontrou assim abraçados. O escândalo abalou a cidade. A notícia que o filho da costureira e a filha dos Rezende haviam se abraçado, em plena aula, correu as ruas de ponta a ponta. Os alicerces da sociedade tremeram. A repressão veio rápida e violenta. Falou-se que teu pai ia te tirar do colégio. Realmente deixaste de freqüentar as aulas por mais de uma semana. Parece que a proximidade dos exames finais o fizeram pensar noutra solução. Ele veio até o colégio e se trancou por muito tempo com o diretor. As conseqüências não tardaram. Pouco depois, fui chamado à Secretaria. O diretor foi objetivo e solene: - Você passou dos limites, rapaz. Sua atitude é ofensiva aos padrões não só do colégio, como desta cidade. Devia ter se mantido no seu lugar. Nós o ensinamos e educamos esses anos todos. Precisava ter mais consideração pelos favores recebidos. 39
Eu estava farto de ser humilhado. Minha revolta, acumulada em todos aqueles anos de silêncio e resignação, estourou. Enfrentei o homem de cabeça erguida: - Nunca recebi nenhum favor! Este é um colégio público. Pago as taxas em dia. No entanto, deram-me um banco de cozinha, no fundo da sala, enquanto não tive dinheiro para pagar pela carteira. Sou o melhor aluno deste colégio, graças ao meu próprio esforço. Nunca contei com a boa vontade de ninguém. Só com Helena. - Você está sendo insolente! - Estou dizendo a verdade. Ela chorou no meu ombro. Eu a abracei. Nós nos amamos. - Não admito que fale nesses termos de uma colega! Sua atitude é um insulto à família Rezende. Vejo-me obrigado a pedir-lhe que deixe o colégio. - Tenho intenções de terminar o curso. - Serei forçado a expulsá-lo! - Terá que expulsar Helena Rezende também. Eu recorrerei até aos tribunais, se for necessário. Este curso me custou muito para que eu o perca assim. Ele viu que não conseguiria me intimidar. E tudo que fizesse contra mim atingiria Helena. - Está bem. O fim do ano está perto. Termine o curso. Mas não pense que a família Rezende o deixará em paz. Repito: você devia ter ficado no seu lugar. Agora pode ir. Voltei para a sala. Eu tinha perdido o medo. E isso me dava forças. Na saída, Jorge me esperava, rodeado pelos outros rapazes. Interceptou meu caminho. Cuspiu de lado, com as mãos nos quadris e provocou: - Hoje foi seu último dia de aula! Se aparecer amanhã, quebro sua cara! - Por que não quebra agora? - Viram? Ele resolveu cantar de galo. Precisa apanhar para aprender. 40
Dizendo isto, ele me atacou. Rolamos no pó da calçada. Jorge era forte e ágil.
Mas eu carregava anos e anos de raiva acumulada. Bati com fúria, até que o venci. Ele entregou os pontos. Então levantei e fui para casa, deixando-o atordoado no meio da turma. Minha mãe se assustou quando me viu chegar sujo e amarrotado. - Que aconteceu? 41
- Tive de acertar umas contas... - Tenho medo do que podem fazer com você. Primeiro, o escândalo no colégio. Agora, esta briga... - Não se preocupe, mãe. Ultimamente aprendi que os ataques diminuem quando a gente reage. - O que vai ser de nós? Quase todas minhas freguesas estão me abandonando. Vamos ficar na miséria. - Elas voltarão. E se não voltarem, daremos um jeito. - Você ainda é um garoto. - Agora sou um homem.
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A repressão foi longe. Além da tentativa do
Jorge, tentaram me punir de outra maneira. Àquela tarde, quando cheguei na loja dos rádios, o velho Gomes me chamou para uma conversa: - Henrique, acho que vou ter que vender o negócio. Estou ficando muito velho e o serviço não está compensando manter um ajudante. - Compreendo. Ele baixou a cabeça: - Você é um bom rapaz. Mas quer ir muito alto. Aqui está o seu ordenado, mais um mês de gratificação. Você merece. Sempre trabalhou bem. Não esqueça de levar as suas ferramentas. Na hora que eu ia saindo, não sei que bicho o mordeu. Ele veio fiscalizar a caixa de ferramentas, para ver se eu não levava nada de sua loja. Não cheguei a ficar preocupado. Eu já tinha alguma independência profissional. Muitos clientes procuravam a loja por minha causa. E havia quem me levasse rádios para consertar em minha casa. Por lealdade ao velho, sempre encaminhei o serviço para a loja. Agora, não tinha mais essa obrigação. Não havia em toda a região quem entendesse de eletricidade como eu. 43
E esse fato, que todos reconheciam, valeu-me muito. Certa noite, pouco depois de ter sido despedido, um dos sinais da estação ferroviária deu um curto-circuito. Esperava-se um trem às 10 horas e o socorro só chegaria no dia seguinte. O superintendente mandou me chamar . - É uma emergência, rapaz. Sem sinalização, pode haver um acidente. Além do trem das 10, que pára aqui, outros passam direto. Espero que possa nos ajudar. O velho Gomes não foi capaz de fazer nada. Trabalhei com vontade. Antes do horário do trem, eu tinha consertado não só o sinal defeituoso, como descoberto outros pontos que necessitavam de imediato reparo. A pedido do superintendente, fiz um relatório para a diretoria da Estrada, com sugestões sobre o sistema elétrico das linhas. Eles acataram minhas idéias e me ofereceram um pequeno emprego. Aceitei. Com isso pude fazer face às despesas até o fim do ano. Agora, raramente tu vinhas às aulas. E quando aparecias, eras sempre acompanhada pela governanta que não mais te largava: até às aulas assistia, sentada numa cadeira que arranjaram especialmente para ela. A mulher controlava todos os teus passos. Assim, tudo o que nos restou foi a troca de olhares, à distância. Difíceis, para nós, os últimos dias de aula. Ao mesmo tempo, nos agarrávamos aos breves instantes que passávamos na mesma sala, sabendo que em breve, até isso terminaria. Afinal, chegou a época dos exames. Não sei como consegui manter as minhas notas. Depois veio um período terrível, melancólico. Os dias se arrastavam. Eu rondava a tua casa, na esperança de te ver de longe. Mas estavas bem guardada. Chegou a noite da formatura. Vesti meu terno escuro e fomos, mamãe e eu, a pé, até o 44
ginásio, em cujo salão nobre se realizaria a solenidade. O céu estava escuro. Subimos devagar a ladeira que levava à praça. Para mim, aquela festa não representava nada. O que contava era que ia te ver. Fomos recebidos friamente. Deixei mamãe e fui para o meu lugar na turma que se formava. A solenidade nada teve de especial. Discursos de praxe e circunstância. Quando o diretor citou o meu nome, como o primeiro aluno, houve silêncio. Fui receber o diploma. Minha mãe começou a bater palmas com força. Aquele aplauso, solitário e forte, acompanhou os meus primeiros passos para o palco. Então outras palmas se juntaram às dela, vindas do meio da turma. Eram as tuas. Daí todos se juntaram ao aplauso. E, para meu espanto, quando voltava para o meu lugar, vi que teu pai também me aplaudia. Terminada a solenidade, mamãe e eu nos levantamos para sair . Tu vieste até onde eu estava. - Henrique, você será meu par no baile, amanhã. Papai concordou. E antes que eu me recuperasse da surpresa, veio a explicação. - Depois do baile viajarei para São Paulo. Vamos de mudança. É possível que eu termine casando com o Alceu. Supliquei a papai que me deixasse dançar com você. Ele resolveu me fazer a vontade. Vamos ter uma noite para sermos felizes. Eu te espero amanhã. - Estarei lá - prometi, com a boca seca, a alma em pedaços. Teu casamento já definido: uma só noite para ser feliz. Minha impotência me humilhava enquanto eu seguia pelas ruas escuras e poeirentas. Quando cheguei em casa, minha mãe perguntou : - Você vai ao baile com a moça? - Vou. Os olhos dela estavam ansiosos. Foi para a 45
máquina - haviam aparecido dois vestidos de última hora: - Eu sabia que você ia sofrer muito. Eu sabia... Dei um murro na mesa. Ela me olhou assustada - Meu filho! - Não vou deixar que ela se case com outro! Ela me ama! Trabalharei e estudarei como louco. Se dinheiro é tão importante, vou ganhar o dobro do que tem o pai dela. E vou vencer, mamãe. Ninguém me tomará o que me pertence! - Henrique, não fale assim! Se ela gosta de você, haverá um jeito... - Mãe, esta noite foi a primeira vez que vesti uma roupa decente. Tenho 19 anos. Até hoje só trabalhei. E vivemos de cabeça baixa por aí, como se devêssemos desculpas pela nossa pobreza. Em parte a culpa foi nossa porque sempre nos deixamos pisar. - E o que a gente podia fazer? - Reagir, mãe! Nessas últimas semanas, aprendi que a gente só tem o respeito que impõe. Se eu não tivesse ficado firme, até do colégio teriam me expulsado! - E agora o que você vai fazer? - Juntar dinheiro para fazer um curso de eletricidade, em São Paulo. - E eu? - A senhora vai comigo. Ela sacudiu a cabeça. - Não se incomode comigo. Você foi sempre um bom filho. Está na hora de cuidar de sua vida. Eu não tenho mais importância. Abracei-a. Beijei com carinho os seus cabelos grisalhos. - Para mim, a senhora é a primeira pessoa do mundo! E vou levá-la comigo. Ela riu, um riso cansado. - Está bem. Mas vá dormir. Amanhã será um dia importante para você. 46
Foi
um dia comprido. As horas se espichavam sobre os ponteiros. Eu aguardava e temia a noite. Caminhei até a beira do rio, deitei no capim, com a cabeça sobre os braços cruzados, e fiquei olhando o céu. Um pouco adiante, o lugar onde o carro do teu pai parou, àquela manhã. O tempo que passara, desde então, não podia ser medido em anos. Lembrei o teu rostinho de menina, os olhos azuis que me haviam fitado, indiferentes. E te vi na plenitude dos teus 16 anos. Lembrei o amor e a tristeza nos olhos azuis. "Vamos ser felizes ao menos uma noite." Eu queria a vida inteira para ser feliz contigo. E me recusava a aceitar que me fosses roubada. Eu ansiava, pela noite. Mas já sentia dolorosamente - o vazio da manhã seguinte. E de tudo mais. Voltei tarde para casa. Então me dei conta de que não tinha roupa para o baile. Larguei o corpo na cadeira desanimado. Não bastasse tudo, ainda havia o nada. Mamãe percebeu o meu aborrecimento. - O que há, meu filho? - Não tenho roupa para a festa. 47
- Não pensamos nisso. - Eu não pretendia ir ao baile. - E agora, como vai ser? - Vou com a mesma roupa da formatura. Acho que Helena não se importará. Quando chegou a hora, tive vontade de desanimar. Apesar de nova, a roupa apenas me embrulhava. Eu estava ridículo e feio. Fui te buscar a pé. Naquele tempo, tudo era mais perto. Eu sabia que os rapazes tinham carros para levarem suas namoradas. Eu não podia me dar ao luxo de alugar um automóvel.
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Bati na porta do teu palacete, com mão firme. A governanta atendeu. - Entre, por favor. Helena não demora. Conduziu-me até o imenso hall e deixou-me só. A escada de mármore branco prendeu minha atenção. Por ali tu descerias. Fixei meus olhos nela - e o resto perdeu o sentido. O relógio bateu 11 horas. Não percebi que teu pai entrara na sala. Dirigiu-se a mim. Trocamos um "boa-noite" seco, hostil. Ele me olhava sobre a minha cabeça, quando falou: - Traga Helena cedo. Amanhã, viajamos às 9 horas. Ela não deve ir dormir muito tarde. Não cheguei a responder. Apareceste no alto da escada e não enxerguei nem ouvi mais nada. Estavas linda. O vestido azul parecia escorrer dos teus olhos. Uma tiara de águasmarinhas coroava teus cabelos louros. "Parece mesmo uma rainha", - pensei. Tu paraste no meio da escada para que eu te admirasse. Depois, desceste devagar, com os olhos presos nos meus. Tua mãe veio contigo. - Não esqueça de pôr o xale na volta. À noite, sempre faz frio. E para mim: - Você trouxe carro? Respondeste por mim: - Nós combinamos ir a pé. - O chofer pode levá-los e... - Não, mamãe. Nós preferimos ir andando. Tua mãe ia insistir. Mas teu pai a interrompeu. - Deixe. Hoje será como ela quer. Fomos andando de mãos dadas. Os bogaris perfumavam as calçadas e nossa felicidade ficou suspensa na noite. A cauda do teu vestido arrastava um pouco no chão. Caminhávamos devagar, para encompridar o trajeto. Fiz uma coisa tola: - Desculpe a minha roupa. Não tive tempo de ... 49
Apertaste minha mão. - Você está muito bem assim. Continuamos andando de mãos dadas, sem pressa, até aquela esquina onde, hoje, há uma garagem. Então ouvimos o som de uma valsa. O baile começava. A música nos chegava filtrada pela distância e pelo perfume dos bogaris. Tu abriste os braços para mim. - Vamos dançar aqui! Eu então apertei-te nos braços. Ergueste o rosto para mim. Tua pele estava luminosa à luz da lua. Senti lágrimas nos teus olhos e, antes de dançar, beijei teus lábios. Foi um beijo de orgulho, humildade e pranto. O pranto do homem que se fortalecia em mim, prometendo à sua carne, à sua ambição, conquistar o direito de te amar. Não sei quanto tempo dançamos na esquina. Perceberam tua ausência no baile. Foi quando viram que dançávamos na esquina, em plena rua. Vieram todos ver de perto a afronta: os dois loucos que se abraçavam e se beijavam, entre os bogaris, ao som da música que cortava a noite fria, como deuses enjaulados, mas livres. De repente, o carro de teu pai freou, bruscamente, quase em cima da calçada. Ele saltou como um tigre. A voz dele cortou a música. - Seu vagabundo! - Papai, nós nos amamos... - Cale a boca! Chega de me envergonhar. Entre já no carro. - Papai... Ele te arrastou pelo braço e jogou-me o último insulto. - O filho da costureira! Permaneci parado onde estava. Aos poucos, as pessoas foram se afastando, retomando ao baile. Fiquei sozinho na esquina, com o perfume dos bogaris e a lembrança da valsa que acabava. Caminhei lentamente pela praça. Sentei num banco, e lá vi o dia nascer. 50
As luzes do teu palacete não se apagaram. Creio que ali ninguém dormiu, apressando os preparativos para a viagem. Mal o dia clareou, os criados começaram a se mexer. Vi quando saíste da casa e entraste no automóvel. Então me aproximei. Por instantes nos olhamos nos olhos. O carro partiu, ainda estava escuro no mundo. Fui para casa, chutando as pedras do meu desespero manso e doído.
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O
palacete dos Rezende foi fechado. A família decididamente não pretendia voltar mais, abandonara tudo. O escândalo abalou a cidade. Minha mãe perdeu as últimas freguesas. Não fosse meu emprego na Estrada de Ferro, teríamos passado fome. Era muita audácia, um garoto da beira do rio, amar a moça mais rica do lugar. O velho Gomes havia fechado a loja. Aos poucos, fui sendo procurado para consertar os aparelhos elétricos. Não havia outro que pudesse fazer isso. Eles não tinham escolha. O tempo foi passando. Intensifiquei meus estudos sobre a eletricidade. A guerra terminava. Novos horizontes se abriam para os que tinham ambição e determinação. Um mundo com maiores possibilidades começava a surgir. Eu me preparava para construir, nele, o meu lugar. Foi duro suportar atua ausência. Dominava a vontade de largar tudo e correr até onde estavas. Mas não podia ir de mãos vazias. Tinha que lutar. A noite do baile foi ficando esquecida. Eu já não era "o filho da costureira". Sabiam meu 52
nome, procuravam meus serviços. Nem por isso me aceitavam como igual. Por mais de uma vez, fizeram-me saber que ias casar .Eu me desesperava. Certa noite, cheguei tarde em casa. A velha sinalização da Estrada entrara em pane. Ultimamente, eu vinha insistindo junto à direção para que fosse substituída por outra, mais moderna. Estava tão absorvido no problema que, a princípio, não reparei que a casa estava às escuras. Só quando abri a porta e um silêncio pesado veio ao meu encontro é que me dei conta de que alguma coisa acontecera ali.
Mamãe estava caída sobre os braços, na mesma posição em que tantas vezes a encontrava dormindo em cima da costura. Toquei seu ombro para despertá-la. Inutilmente. Estava morta. 53
Não sei como tive forças para providenciar tudo. Alguns vizinhos me ajudaram. Atravessei a noite chorando sobre o seu corpo. Quando joguei o primeiro punhado de terra sobre o seu caixão, decidi que, agora mais do que nunca, eu devia vencer por mim e por ela. Voltei a pé do cemitério. O céu azul, enorme, ampliava a minha solidão. Dali para a frente, eu contava apenas comigo. Nos dias seguintes, tratei de me desfazer das coisas que não ia levar. Decidi ir embora de Vila Rezende. Dei os trastes para os vizinhos, encaixotei meus livros e ferramentas, fiz a mala. Não havia muito o que pôr nela. Pedi demissão do emprego. A cidade ficou sabendo que eu partia. Na véspera da viagem, encontrei o velho Gomes, na praça. Fazia tempo que não nos víamos. Seu cabelo estava todo branco e ele andava meio curvado. Abriu o rosto num sorriso: - Então vai nos deixar, Henrique? - Viajo amanhã cedo. - E quando volta? - Não sei. Talvez nunca mais. - Bobagem! Quem bebeu água do rio, termina sempre voltando. Até os Rezende vão acabar aqui de novo. Ouvi falar que a filha deles não casou até agora. É de estranhar. Uma moça tão bonita! Meu coração disparou. Era bom ouvir de alguém o que eu me repetia todos os dias. O velho continuou: - O Comendador era uma fera. Homem acostumado a mandar. Mas os tempos estão mudando. A guerra virou tudo de pernas para o ar. Quando você subiu lá da beira do rio para ir estudar no ginásio, foi um escândalo. Eu devia favores aos Rezende, como toda cidade devia. Não tive outro jeito... Percebi que, à sua maneira, ele pedia desculpas. 54
- Não se preocupe, Seu Gomes. O senhor foi bom para mim. - Se não fosse você, eu teria fechado aquela biboca bem antes. Três meses depois que começou a trabalhar , você já entendia da coisa muito mais do que eu. Fui um moleirão dizendo amém ao Comendador, quando ele me mandou despedir você. - Não pense nisso agora. - Tá certo... Ele piscou um olho. - Vou andando. Boa sorte, rapaz. Se existe alguém que merece tudo de bom, é você!
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Vila
Rezende ainda dormia quando atravessei suas ruas, rumo à estação. Parei um momento, em frente ao palacete do teu pai. Súbito, tive consciência de que realmente um mundo novo começava. Eu, o menino pobre e órfão, tinha forçado uma abertura. Era por minha causa que o imenso casarão havia cerrado as portas. A família mais rica e influente do lugar fugira para não enfrentar o rapazinho da beira do rio. Eu era forte. Senti isso naquele instante. Peguei a minha maleta e andei para a estação. O trem apitou e partiu. Vila Rezende foi ficando para trás e, logo, desapareceu, engolida pelas curvas dos morros. São Paulo. A estação, gente, vozes, sons. Fiquei atordoado. Meu terno de formatura me pareceu desajeitado. Me senti um caipira a mais na grande cidade. A verdade é que ninguém reparava em mim. A tarde estava quente, em breve, escureceria. Tinha que encontrar onde passar a noite. Um pouco de pânico quando deixei a estação e enfrentei o movimento das ruas. As luzes se acenderam. Eu não sabia para onde ir. 56
Letreiros anunciavam hotéis e pensões "familiares". Eu me dei conta do quanto era só e inexperiente. Tive medo da cidade imensa e desconhecida. Meus propósitos - tão firmes e adultos na minha cidadezinha - pareciam agora tolos e ridículos. Parei, na frente da estação, pensando no que fazer. - Precisa de carregador? Um velhinho simpático sorria para mim. Tinha um rosto franco, aberto.
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- Não, senhor. Preciso é de uma informação. O senhor conhece alguma pensão barata onde eu possa alugar um quarto? Ele me olhou, em silêncio. Depois: - É a primeira vez que vem a São Paulo? Disse que sim com a cabeça. - De onde você é? - De Vila Rezende. Ele franziu a testa. - Nunca ouvi falar. - É uma cidade pequena e sem importância. - Por que não se hospeda com algum amigo? - Não conheço ninguém. - Parentes? - Não tenho ninguém. Minha mãe morreu. Ele coçou a cabeça. - Acho que posso ajudá-lo. Perto daqui tem uma viúva que aluga quartos para estudantes. Ela não aceita qualquer um. Pede referências. Mas você tem uma cara tão inocente que talvez a convença. Vamos até lá. Fomos andando pelas ruas apinhadas. As pessoas caminhavam apressadas, sem olhar para os lados, fisionomias cansadas e tensas, vincos na testa e nos cantos da boca. Meu guia contava a sua vida, viera do Nordeste, quarenta anos atrás, também perseguindo seus sonhos. - Cheguei de pau-de-arara. Tinha 20 anos e muita fome no lombo. São Paulo era a terra da promissão. Tive um primo que veio e voltou rico. Isso me decidiu. O máximo que consegui foi ser motorista da Prefeitura. Vivi modestamente. Me aposentei e hoje carrego malas, para melhorar o feijão com arroz. Chegamos. É no segundo andar. O edifício era cinzento e triste. Subimos a estreita escada de cimento. Ele tocou a campainha. Uma senhora miudinha, de óculos e cabelos grisalhos presos num coque, olhou pela portinhola. Só depois é que abriu a porta. 58
- Como vai, Seu João? Trouxe a roupa mais cedo esta semana? - Não, senhora. Trouxe pensionista para a senhora. Ela me examinou detidamente. - De onde ele vem? - perguntou. - De Vila Rezende. - Tem carta de recomendação? Antes que eu abrisse a boca, Seu João respondeu: - Não, senhora. Mas ele é filho de uma prima da minha mulher. Só não vai lá para casa porque não temos lugar. Ela pensou uns momentos. - Bem, se é um parente de Dona Joana, o caso muda de figura. Tenho uma cama vaga, num quarto com mais dois rapazes. O primeiro pagamento é adiantado. - Está bem. E estava mesmo. O que eu mais desejava era tomar um banho e dormir. A viagem tinha me deixado exausto. Levei Seu João até a porta. Agradeci a ajuda e quis dar-lhe uma gorjeta. Ele recusou. - Guarde o dinheiro, rapaz. Vai precisar dele. Vejo você daqui a dois dias, quando trouxer a roupa para Dona Maria. Boa sorte. E tenha cuidado. - Obrigado por tudo. O senhor foi muito bacana. Subi. Dona Maria tinha arrumado minha cama. - Você está com cara de fome e de sono. Jantamos às 7 e meia. Mas vou lhe preparar um lanche enquanto toma banho. Sorri, agradecido. - A senhora adivinhou. - Seus companheiros de quarto ainda não chegaram do trabalho. Pedirei que não façam barulho. Meu cansaço me salvou das explicações quanto ao parentesco com a tal de Dona Joana. E 59
foi bom. Sempre fui um desastre na hora de mentir. Tomei um café com leite reforçado, me joguei na cama, e não vi mais nada até amanhã seguinte.
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Acordei
cedo com o movimento dos dois rapazes no quarto. Assim que me viram desperto, foram se sentando. - Eu sou Antônio, gaúcho, arribado há dois anos da capital. O outro é Carlos, mineiro caladão, mas boa-praça. - Meu nome é Henrique. Cheguei ontem do interior. - Veio estudar ou trabalhar? - As duas coisas. Só não sei por onde começar... - Que é que você sabe fazer? Perguntou Carlos. - Conserto aparelhos elétricos. Estudei tudo o que pude sobre o assunto. - Comece comprando jornal. E apronte as pernas! - falou fa lou Antônio. Antôni o. - A gente se vê de noite. noit e. Nós dois trabalhamos num banco. Estamos criando coragem para fazer um curso, à noite. Eles se foram. Segui o conselho de Antônio. Comprei um jornal, recortei os anúncios que me pareceram possíveis, tomei informações de ruas e itinerários e saí. 61
Foi uma semana dura. A resposta era sempre a mesma: não. As razões variavam: eu era muito jovem, não tinha carta de recomendação, o serviço era de muita responsabilidade. Começava a desesperar. Minhas economias davam para dois meses de pensão. E o começo das aulas estava próximo. Se não conseguisse trabalho, teria de desistir dos estudos. Os rapazes me animavam. Antônio era brincalhão e extrovertido. Carlos, quieto e acomodado. Era a primeira vez que eu tinha amigos, gente para quem eu era Henrique. A segunda semana passou. Nada de emprego.
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Uma tarde, eu vinha voltando cansado, de mais uma tentativa. Peguei o ônibus errado. Quando percebi que ia em direção contrária, puxei a campainha. Desci numa zona totalmente desconhecida. Nas ruas estreitas, alinhavam-se diversas lojas. Procurei o ponto de ônibus que me levasse para o centro. Então vi a placa Consertam-se rádios e aparelhos elétricos. Foi como reencontrar um rosto amigo. A loja era pequena e apertada. Um garoto me atendeu de má vontade. - Quero falar com o dono. - Ele está lá dentro. É cobrança? - Não. Quero falar com ele. - Passe por trás do balcão. O velho está furioso. A oficina não era muito maior que a loja. Não havia janelas e a iluminação vinha de uma única lâmpada, colocada no centro da peça. O homem, inclinado sobre um rádio desmontado, resmungava sozinho. Alguma coisa me lembrou o velho Gomes. E isso me fez sentir em casa. Ele levantou a cabeça quando entrei. - Se é conta para pagar , pode ir dando o fora. Só faço pagamento às segundas-feiras. - Estou procurando trabalho. Entendo bastante de eletricidade. - Entrou no lugar errado. Todo mundo acha que sabe endireitar estas drogas elétricas. Como se fosse fácil! Não preciso de ajudante para ter que ensinar o que é uma válvula e para o que serve! - Tenho prática. Estudei muito. Consertei os sinais da Estrada de Ferro e... - Chega de conversa! Se sabe mesmo consertar um rádio, comece por este aqui. Faz dois dias que trabalho nele e está cada vez pior. - Deixe ver. O defeito era simples. Deu mais trabalho remontar o que o velho havia desmontado, que consertá-lo. Ele me observava, por cima do ombro. Quando terminei: 63
- Está pronto? - Agora é só ligar. - E vai funcionar? - Experimente. O homem ligou o aparelho e sintonizou numa estação. O som de um chorinho invadiu a loja. Ele tirou os óculos: - Abro a loja às 8. Amanhã esteja na porta 15 minutos antes. Depois combinamos o seu ordenado. Como é seu nome? - Henrique Silva. Eu tinha um emprego. O resto viria com o tempo. Cheguei tarde na pensão. Dona Maria fechou a cara. - O jantar é às 7 e meia, Seu Henrique! - Desculpe o atraso. Tive que fazer teste numa loja de eletricidade. Consegui trabalho. O rosto dela desanuviou. - Que bom! Tome seu banho, enquanto esquento a janta. Os meus companheiros ficaram felizes com a novidade. Eram bons amigos. Antônio foi logo dizendo: - Precisamos comemorar. Que tal um cinema e depois um chope? Enquanto bebíamos, num barzinho da Av. São João, a conversa girava em torno dos meus planos. - E você pretende entrar na faculdade? perguntou Carlos. - Primeiro preciso me firmar no emprego, o suficiente para trabalhar à tarde e à noite, deixando a manhã livre para estudar. - E você vai agüentar o rojão? - Estou acostumado. - Você parece que sofre de alguma coisa recolhida. Olhei a espuma do copo. Contei-lhes minha história. Ouviram calmamente. Quando terminei, Carlos comentou: 64
- Você tem que se apressar, companheiro. A paciência das mulheres é curta. - Ela esperará por mim - respondi. - E agora vamos dormir. Amanhã tenho que chegar cedo no emprego. Seu Tomás tinha um gênio miserável. Tive ocasião de verificar isso na primeira semana. Ele despediu o garoto que cuidava do balcão, aos gritos, porque não varrera direito a loja. Por mais que eu me esforçasse, tinha sempre uma reclamação na ponta da língua. Fora disso, era um homem honesto e decente. Descobri, com o tempo, que vivia só. Esse fato me levou a ter mais paciência com ele. No trabalho, tinha um defeito grave: era muito desorganizado. A oficina vivia de pernas para o ar e se perdia muito tempo procurando as ferramentas que ele nunca sabia onde havia guardado. Decidi fazer-lhe uma proposta. - Seu Tomás, eu gostaria de trabalhar este fim de semana. Ele me olhou surpreso: - Por quê? Não temos tanto serviço assim. - Eu queria pôr em ordem a oficina. E se o senhor permitisse, pintar as paredes de branco. Fica mais claro para agente trabalhar. Ele coçou o alto da cabeça, sinal de que estava pensando. Demorou um pouco para responder: - Está bem. Você entende do riscado. Mas não pense que vou lhe pagar mais por isso. Para mim, não vejo necessidade de tanta ordem. Mas na segunda-feira, quando deu com a sala pintada de branco, o material limpo e arrumado nas prateleiras, seu rosto se abriu. Bateu no meu ombro e falou: - Gosto de você. rapaz. Tem cabeça e não tem preguiça. Isto aqui mudou de cara! Esta segunda-feira começou bem, apesar de ser dia de pagar contas. 65
E não parei aí. Convenci-o a pintar e reformular a frente da loja, fazer uma vitrina, encomendar novo letreiro, e ter um pequeno estoque de aparelhos elétricos e lustres. O negócio cresceu, os lucros subiram, meu ordenado dobrou e antes do fim do segundo ano eu era sócio na loja. Continuei morando na pensão de Dona Maria e dividindo o quarto com Carlos e Antônio. Perdi minha timidez. Aprendi a rir, a brincar com as pessoas. Freqüentava cinemas, teatro, lia tudo o que podia. Apesar do horário apertado, dei jeito de fazer um curso regular de inglês. Vila Rezende se esfumava na minha memória. A tua lembrança, porém, permanecia viva, a me empurrar para a frente.
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Entrei
na Faculdade de Engenharia. Eu fazia mágica com o tempo. Trabalhava de tarde e, às vezes, de noite. Estudava, aprendia inglês. Passava os fins de semana fincado nos livros, pondo em dia a matéria ou trabalhando na loja, quando o serviço acumulava. Consegui entusiasmar Carlos e Antônio para estudarem também. Eles faziam Direito. Eram amigos leais e simples. Durante aqueles anos todos, nunca deixei de pensar em ti. Vivíamos na mesma cidade. Nossos mundos, porém, continuavam distantes. Impossíveis. Impossíveis . A guerra havia terminado. E as coisas aconteciam muito depressa. Os meios de comunicação foram se expandindo, diminuindo o tamanho dos problemas mas criando outros, maiores e, talvez, piores. Como eu previra, a eletricidade que já desempenhava importante papel na vida do homem moderno, era agora um deus que alimentava as indústrias, dava conforto à vida. Uma nova era começava. Começou-se a falar em eletrônica. Poucos sabiam o que isso representava. Fui dos primeiros a pensar em construir uma televisão experimental, com os 67
recursos dos laboratórios da Faculdade. A engenhoca não funcionou cem por cento mas deu para provar pr ovar que era possível transmitir imagens à distância. Mais tarde voltaria a trabalhar nisso, mas em outras bases, e com mais sucesso. Seu Tomás continuava ranzinza, mais por hábito do que por necessidade. Tínhamos dois balconistas e um ajudante na oficina. Estávamos pensando em alugar a loja ao lado, para aumentar a nossa. Eu sabia que não se podia pensar em coisas pequenas. Era importante para o meu futuro pensar grande. Eu pensava em ti. Chegou o Natal. O terceiro que eu passava em São Paulo. Carlos e Antônio viajaram para suas casas, no interior do Estado. A pensão ficou vazia. Eu fiquei. Não tinha família. Pela primeira vez, percebi que estava realmente sozinho no mundo. Antes, quando era pobre, mal tinha tempo para pensar nisso. Mas agora que as coisas melhoraram, eu começava a sentir com nitidez a minha verdadeira situação. E mais do que nunca necessitava de ti. Pois não imaginava minha vida sem o teu amor. Por causa disso, decidi fazer um Natal para os outros. Combinei tudo com Dona Maria. Convidamos os amigos e conhecidos que sabíamos sozinhos no mundo, tal como eu. E mais Seu Tomás, Dona Joana, seus filhos e netos. Armamos uma enorme árvore de Natal na sala principal da pensão. Comprei presentes, frutas, flores. Na grande noite tivemos 20 pessoas para a ceia. Dona Maria estava feliz. Eu também. Tinha descoberto que se pode ser feliz dando alegria aos outros. Mas nem tudo tinha acontecido, então. Eu teria de passar por uma prova amarga para o meu orgulho. E decisiva para o meu futuro. Foi no 4.º ano de Engenharia. Hospedou-se na pensão de Dona Maria um novo rapaz, Belmiro, de uns 22 anos de idade, vindo de Goiás. Era um rapaz calado, triste, que fazia 68
questão de se isolar de todos. Eu respeitava a sua maneira de ser, mas Dona Maria não gostava dos modos dele: - Cuidado com esse Belmiro. Alguma coisa me diz que ele está escondendo alguma coisa! Eu achava graça. No fundo, apreciava Belmiro, era diferente de nós mas mantinha a sua dignidade. Pagava pontualmente seus compromissos e trabalhava num banco, como caixa. Mais tarde - dizia ele - iria reiniciar os estudos, pois queria ser contador. Tudo aconteceu de repente. Foi no mês de abril, havia uma garoa insistente caindo sobre a cidade e eu fui para a Faculdade bem cedinho, pois tinha uma prova importante. Quando saí da pensão, notei que Belmiro também saía de seu quarto, levando uma enorme mala nova. -Vai viajar? - perguntei, interessado. - Sim... recebi uma carta, minha mãe está doente em Morrinhos e eu preciso ir vê-la. Lamentei sinceramente a aflição do colega de pensão e não me passou pela cabeça que teria problemas por causa disso. Nem sequer dei importância ao fato de que ele levava uma mala absolutamente nova. Geralmente, as malas dos fregueses de uma pensão são velhas, herdadas dos pais e avós, caindo aos pedaços. Aquela mala nova era sinal de uma súbita abastança. Fui para a Faculdade, fiz a prova, almocei por lá mesmo. Depois passei pela loja do Seu Tomás, da qual já era o sócio mais importante. Não acreditei acredit ei quando vi o rosto dele, me olhando severamente: - Henrique, o que houve com você? - Nada - respondi, tranqüilamente. - Nada? Mas a polícia esteve aqui, procurando por você... - A polícia? Nem por um momento suspeitei de coisa grave. Fiz um ligeiro exame da situação, para ver se lembrava de alguma exigência burocrática que precisava cumprir. Há 69
tempos, tinha tido a necessidade de um atestado de residência, fora ao distrito mais próximo da
pensão, fizera o requerimento e recebera o documento. Fora disso, não tinha nada a ver com a polícia e acreditava que a polícia nada tinha a ver comigo. Antes mesmo que pudesse explicar qualquer coisa a Seu Tomás, dois homens surgiram à minha frente. Estavam do outro lado da rua, espreitando a loja. Mal me viram chegar, me cercaram. 70
- Você é que é o Henrique? - Sou. Algum problema? - Muitos problemas, rapaz. Você mora na pensão da Dona Maria? - Moro. Os senhores sabem disso, por que perguntam? - Bem, essa cara de anjinho não nos tapeia. - Não tenho nem faço cara de anjinho. Essa é a minha cara. Nasci com ela e não tenho outra para a ocasião. - Tá bem. Além do mais, é petulante. Mas vamos apurar tudo direitinho. Entre no carro. Eu nem tinha reparado, mas um carro policial havia parado na rua e nos esperava. Antes que me empurrassem para dentro, perguntei com energia: - O que está havendo? Não fiz nada, não podem me levar preso! - Quem falou que você está sendo preso? respondeu um dos homens. - Isso é a consciência culpada - comentou o outro. Eu estava perplexo. Espremido entre os dois policiais, no banco traseiro do carro, procurei manter a cabeça fria. - Para onde me levam? - Não se preocupe. Você está indo para um lugar bem conhecido. Na verdade, eles estavam me levando para a pensão onde morava. Quis saber de mais detalhes mas eles desconversavam. Pouco depois chegamos. Havia mais policiais na porta da pensão. Realmente, fiquei assustado. Quando entrei, vi a cara aflita de Dona Maria. Ela não agüentou: - Henrique... uma desgraça... uma desgraça... Eu continuava aturdido. Abracei-me a ela. Suas lágrimas me molharam o rosto. - Mas o que houve, Dona Maria? 71
Um dos policiais me segurou pelo braço e me afastou dali. Levou-me ao meu quarto. Parou à porta e me perguntou: - Conhece este quarto? - Conheço, sim senhor. É o meu quarto. - Muito bem. Faça o favor de entrar. Entrei, acompanhado pelo policial. Minha surpresa foi grande. Dentro do quarto havia outro homem, armado com um baita revólver. - Mas... não estou entendendo nada... - foi tudo o que consegui falar. - Daqui a pouco começa a entender. O policial que me acompanhava tomou posição ao lado da minha cama. Estava solene, parecia um ator no palco. - Quer dizer que você não está entendendo nada, hem? - disse ele. E com um rápido puxão, arrancou o lençol que cobria a minha cama. Abri os olhos, com espanto: o colchão estava rasgado, na beira. E pela abertura, abert ura, que parecia ter sido s ido feita fe ita há pouco, o enchimento de capim seco estava todo revirado. Isso não era tudo: no meio daquele enchimento, havia vários pacotes de notas, com o rótulo do papel timbrado pelo banco. - Sabe o que é isso? Dinheiro, meu caro, dinheiro do bom! Eu sabia que era dinheiro. Mas como aquilo fora parar dentro do meu colchão? - Como é? - continuava o policial, que parecia extremamente satisfeito com a mágica que acabara de realizar. - Compreende agora? Essas notas saíram quentinhas do Banco Central, foram para a Agência da Praça da República e de lá vieram para o seu colchão. Podia explicar como isso foi feito? Eu estava aturdido mas consegui falar: - Honestamente, não sei de nada. Sou estudante, faço Engenharia, sou sócio numa pequena loja de eletricidade, nunca precisei 72
roubar nada... Dona Maria me conhece há muitos anos... eu... eu... Apesar de tudo, precisei de controle para não chorar. O policial percebeu isso: - Então? Não vai confessar? Está bem, contar tudo vai ser mesmo difícil. Mas vamos levá-lo para a Delegacia de Roubos e Furtos... lá a coisa é mais dura e você se lembrará de tudo... nós temos meios para ajudá-lo! Um clarão passou pela minha cabeça: o novo hóspede da pensão que saíra naquela manhã com uma mala nova! A mãe doente... ia para Morrinhos, uma cidade do interior goiano... a essa hora estaria longe, era caixa do banco, justo de uma agência na Praça da República! Tudo fazia sentido mas como provar a minha suspeita? Se falasse em Belmiro, talvez estivesse acusando um inocente que seria incomodado. Mas como explicar aquela fortuna no meu colchão? Para meu espanto, Dona Maria entrou no quarto, aos prantos. Ela parecia ter tido a mesma suspeita: - Eu bem que desconfiava daquele sujeito, Henrique! – disse-me ela, no intervalo dos soluços. - Sei que você é inocente, já disse isso para esses homens, mas eles não me escutaram. O Belmiro saiu hoje cedo, resolveu viajar de uma hora para outra... levou tudo o que tinha... evidente que não volta mais... Aquela era uma hora de surpresas. Quando pensava que tudo havia acabado, o policial que parecia o chefe dos homens tranqüilizou Dona Maria: - O rapaz que saiu daqui esta manhã não precisa voltar mais. Ele El e já voltou, ou melhor, nem chegou a sair da capital. Está preso na delegacia. Foi ele quem nos indicou onde estava o resto do dinheiro que havia roubado. Na mala dele, havia uma fortuna, mas ele roubou mais do que podia carregar. E deixou muita coisa aqui. Não foi preciso apelar para métodos mais fortes, 73
o rapaz confessou tudo. E disse que Henrique fora seu cúmplice... - O quê? - perguntei eu, pela primeira vez perdendo a paciência. - Ele El e não podia me acusar! É um absurdo!
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- Palavra contra palavra! - rematou o policial. - E agora vamos! Lá na delegacia vocês dois se entendem! Eu não sabia mais o que pensar. Meu trunfo, minha maior prova de inocência, era justamente aquela: Belmiro roubara o banco e escondera parte do dinheiro no meu colchão. Não podia imaginar que ele já me acusara, sem qualquer motivo para isso. Se ele não mudasse de tática e continuasse me acusando, como eu poderia provar que nada tinha a ver com aquele roubo? Dona Maria me olhou espantada. Para ela, aquela revelação fora um choque maior do que a sua resistência. Parara de chorar e me fitava, como se, no fundo, começasse a duvidar de minha inocência. Eu percebi isso. - Dona Maria, eu estou inocente. Mais cedo ou mais tarde a verdade será revelada e a senhora verá que... Dona Maria não deixou que eu terminasse. Me abraçou e, surpreendentemente, disse baixinho no meu ouvido uma coisa cois a que há muitos mu itos anos não ouvia: - Meu filho!...
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Eu
pensava sinceramente que o pior já tinha passado. Iria à delegacia e lá, diante de Belmiro, provaria a minha inocência. Impossível que ele insistisse naquele absurdo. Seria fácil desmascará-lo. Mas alguma coisa de sobrenatural parecia tramar contra mim. Quando cheguei na Delegacia de Roubos e Furtos, pensei que seria colocado imediatamente à frente do ladrão. E que em meia hora sairia dali, para a minha vida normal. No fundo, começava a ter a sensação de estar vivendo um pesadelo. Ao invés de ser levado à presença do Belmiro, os policiais .me conduziram a uma sala atapetada, que parecia ser a mais nobre da delegacia. Era o gabinete do delegado. Estava vazio. O policial me informou: - O doutor delegado só chega mais tarde. Mas você será atendido pelo secretário dele, o Dr. Jorge... Bem, há muito Jorge no mundo. Eu não tinha outra coisa a fazer senão esperar e confiar que a verdade, afinal, se esclarecesse. Mas tudo conspirava contra mim. Uma porta dos fundos do gabinete se abriu e entrou um homem. Era um 76
jovem, muito bem vestido, uma cara vagamente conhecida. Não precisei forçar a memória e lá estava, Jorge Rezende, o teu primo, meu antigo colega de ginásio, o mesmo que me acusara de ter roubado a tua pulseira, lembra-te? Ele ficou tão espantado quanto eu. Olhamo-nos demoradamente, olhos nos olhos, em silêncio. Minha posição era desvantajosa, eu estava sob a suspeita de ter cometido um crime. Ele, como sempre, por cima da carne-seca: era o secretário do delegado. Não sabia como Jorge me trataria e minha dignidade me impediu que forçasse uma intimidade. Esperei que ele falasse e desse o tom de nossa conversa. Jorge ficou em silêncio um bocado de tempo. Depois de me examinar detidamente (deve ter percebido que eu já não tinha o aspecto miserável dos meus tempos de garoto) dirigiu-se ao policial que me escoltava: - Então, é esse o homem ? - É, sim senhor. Revistamos o quarto dele, as notas do banco estavam lá, aquele ladrão não mentiu, deu o nome e o endereço legais... estava tudo lá... Jorge fingiu que tirava um cisco imaginário da testa: - Bem, deixa esse rapaz aqui, vou conversar com ele. O policial se retirou e ficamos no gabinete, eu e teu primo. - Eu sabia que você ia terminar mal começou ele. - Eu não terminei ainda - respondi. - Tenho muito caminho pela frente. E não estou nada mal. Trabalho numa loja, sou sócio do negócio. E estou no 4.º ano de Engenharia. Daqui a pouco se- rei doutor como você... Ele teve um rasgo de honestidade: - Ainda não me formei. Também estou no 4.º ano de Direito mas me arranjaram um bom 77
emprego na polícia. Quando me formar , já tenho um lugar de delegado me esperando. Foi a primeira vez, em toda a vida, que ele conseguira conversar realmente comigo. Mas logo aquela franqueza passou. Ele voltou a seu tom habitual. Naquele momento, era uma autoridade. E eu, um réu. - Muito bem, Henrique, a nossa família nunca conseguiu esquecer o mal que você nos fez... - Eu não fiz mal nenhum. Não tenho culpa de... - Não falemos sobre isso. Seria idiota imaginar que discutisse aqui na delegacia, com um ladrão de banco, um problema de família... - Foi você quem puxou o assunto. - Está bem. Esqueça. E de agora em diante não me chame de você. Sou doutor. - Você ainda não se formou. Não pode abusar de um título que não lhe foi dado. Ele titubeou. Mas corrigiu: - Me chame de senhor. - Está bem. O que o senhor quer saber? - Como foi o assalto? - Que assalto? - Não se faça de bobo. Você e seu cúmplice estão presos. Ele já confessou tudo. O dinheiro que faltava na mala dele foi encontrado no seu colchão, tal como ele nos disse. Como você explica isso? - Honestamente, não posso explicar nada. Contei o que sabia. Que vira, pela manhã, Belmiro se retirando da pensão, com a mala nova. Que fora fazer uma prova na Faculdade. Que fora depois para a loja, onde os policiais me detiveram. Que na pensão, o meu quarto havia sido revistado e que lá estavam as notas. E que eu podia explicar o resto que faltava fal tava naquela história hi stória tão bem quanto explicaria um círculo quadrado.
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Para terminar, levantei a única possibilidade que me restava: - Gostaria de ser acareado com o Belmiro. Duvido que ele mantenha a acusação diante de mim, olhando nos meus olhos. Jorge fez uma cara de aborrecimento mas admitiu: - Você continua orgulhoso e cheio de si. contudo, tem razão. Vamos fazer a acareação. Mas não hoje... - Por que não hoje? De repente, senti que ele tinha um plano macabro: poderia me manter preso vários dias, prolongando à vontade o meu tempo de prisão. Afinal, a acareação poderia ser favorável para o meu caso e quanto mais ele adiasse o meu 79
encontro com Belmiro, mais tempo me teria sob suas garras. - Isso é assunto nosso. Você será acareado quando eu quiser. Por ora, considere-se preso e trate de não estrilar. Temos celas aqui na delegacia. O conforto é muito relativo mas você já está habituado... Ele apertou um botão. Uma campainha tocou lá fora. O policial reapareceu, com um riso mau na boca: - Posso levar o cara, doutor? - Pode. Amanhã ou depois nós faremos a acareação... Eu me senti perdido. Já sofrera humilhações em minha infância e mocidade, mas de há muito me afirmara num padrão que não suportava aquela indignidade. Tudo desabara como um raio sobre a minha cabeça. Mas o que fazer. Se reagisse, seria espancado? Pioraria a minha situação. Aceitar tudo aquilo submissamente, porém, era superior às minhas forças. Eu tinha de fazer alguma coisa. O quê? O policial me agarrou pelo braço e me conduziu para fora do gabinete. Depois, sempre me segurando com força, me levou por um corredor. Descemos uma escada, mais outra, mais outra. Evidente que estávamos indo para os porões da delegacia, onde ficam as celas sombrias. Senti uma tonteira. Acredito que a minha fortaleza se desmoronou. Eu fraquejava. Um suor frio molhou a minha fronte. Estranhamente, senti vontade de vomitar. Mofaria ali por quanto tempo? Uma porta gradeada foi aberta. O chão era úmido, de cimento ralo e áspero. Nenhuma luz. O destino caprichara nas tramas e, justamente quando eu me aprumava na vida, jogava-me aquela provação injusta mas da qual eu não sabia como sair. 80
Tropecei num obstáculo invisível, que na verdade não existia: era o início de um desmaio. Aquilo foi um sinal: eu estava me entregando. Precisava reagir. Era inocente, não podia fraquejar como um covarde. Reuni toda a minha força de vontade e me mantive em pé. Entrei na cela. Havia dois homens caídos no chão, imundos e tristes. Se passasse naquele lugar alguns dias, eu ficaria assim: imundo e triste. O policial se preparou para fechar a porta novamente. Nisso, ouvi uma voz que vinha do corredor: - Ananias! Ananias! O policial respondeu: - Que é? - O delegado chegou e mandou chamar esse rapaz! O policial fez uma cara azeda mas tinha de cumprir a ordem recebida. Com a má vontade que foi possível arranjar, rosnou entre os dentes: - Me acompanhe. Fiz o mesmo caminho, desta vez subindo as escadas. Não podia imaginar o que me aconteceria. Mas qualquer coisa, agora, seria melhor do que a realidade. A dura, a incerta realidade que estava vivendo.
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No
gabinete do delegado, estavam agora vários homens. Um deles parecia mais importante do que os outros. E era: Quando me viu entrar, adiantou-se: - O senhor é o Henrique? - Sim. - Ainda bem que cheguei a tempo. Sou o Diretor de Relações Públicas do banco e vim aqui para esclarecer uma terrível confusão que foi armada. Eu senti que chegara a minha vez. Afinal, alguma coisa de bom começava a surgir. - Demos pelo desfalque na manhã de hoje continuou ele. - Avisamos a polícia. Foi fácil prender o Belmiro, que ainda estava na Rodoviária, esperando o ônibus para Goiás. Na mala, havia parte do dinheiro roubado. A outra parte, segundo nos confessou, havia ficado com o sócio dele. Deu o seu nome. Disse que vocês haviam escondido o dinheiro no colchão. Ele dava o fora, ia começar a vida em Goiás com o dinheiro roubado. Você preferira continuar em São Paulo e por isso guardara o dinheiro no colchão. Bem, a palavra dele, até prova em contrário, valia tanto quanto a sua. 82
- Eu pedi que me fizessem uma acareação com ele - esclareci. - Mas o Doutor Jorge Rezende, aqui presente, disse que só poderia realizar esta medida preliminar daqui a dias... Eu acentuara propositadamente a palavra doutor . Notei que Jorge ficara vermelho. - Não será preciso acareação nenhuma. Conseguimos uma prova melhor. E dizendo isso, o diretor fez sinal para um policial que guardava uma das portas de acesso
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do gabinete. Por ela, entrou uma moça magrinha, com uniforme de bancária. - Esta é Sulema - continuou ele. - É caixa em nosso banco e teve um namoro com Belmiro. Ontem... bem, é melhor que ela mesma conte tudo o que sabe. E a moça contou. Belmiro gostava dela e insistira pelo namoro. No início, aceitara a companhia dele, mas logo notou que o rapaz não era exatamente o que ela pretendia. Deu-lhe o fora. Belmiro entrou em depressão. Prometeu-lhe mundos e fundos. Disse que um dia seria rico e que poderiam viver muito bem, como fazendeiros em Goiás. Ela cometeu a imprudência de zombar dele, "você nunca será nada na vida" - dissera ela. Belmiro passou a evitá-la. Vivia pelos cantos, não falava com ninguém. Na véspera do roubo, repentinamente a abordara: - Você disse que eu nunca seria nada na vida. Pois está enganada. Vou ficar rico agorinha mesmo, tenho um plano genial! - Que plano? - perguntara ela. - Vou levar um dinheirão aqui do banco e fujo para Goiás. Sulema pensara numa brincadeira. Evidente que Belmiro não faria aquilo. Mas naquela manhã, estava indo para o banco quando encontrou o rapaz no ponto de ônibus que ela tomava todos os dias para ir ao trabalho. Trazia na mão uma mala nova. - Belmiro, você por aqui? - Vim me despedir. Olha, aqui dentro da mala tenho uma fortuna. Dei um desfalque no banco e agora vou para Goiás. Lá eu conheço todas as tocas, vou me esconder num lugar onde ninguém me encontrará. Em breve a polícia me esquecerá e aí aproveitarei o dinheiro. Virei buscar você, para nos casarmos. - Mas Belmiro, isso é uma loucura! Eu não amo você mas, sinceramente, acho que está fazendo besteira, não gostaria que nada de mal 84
lhe acontecesse. E a polícia vai pegar facilmente um ladrão tão boboca... - Boboca, não! Parte do dinheiro que roubei eu escondi no colchão de um colega de pensão. Ele chegou muito tarde ontem à noite. É estudante de Engenharia. A polícia vai achar o dinheiro com ele e pensará que demos o golpe juntos. Enquanto Enquant o perder tempo com ele, eu fujo e me escondo para valer. A moça contou a sua história. Todos me olhavam agora, com certa pena. Eu estava em frangalhos. E o que não tinha feito ainda, acabei fazendo: levei as mãos ao rosto e comecei a chorar.
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Muita
coisa podia relembrar ainda. Boas e más, as emoções se foram. Não me queixo, não me glorifico com este sofrimento que, afinal, eu cumpri durante tantos anos, para te merecer. Uma coisa é certa: o tempo custou a passar naqueles dias. Não sei por quê, a pensão de Dona Maria não me pareceu a mesma. Ela tentou ser quase uma segunda mãe para mim, principalmente depois daquele incidente que tanto nos maltratou, a mim e a ela. Mas tudo soava falso naquela casa que me abrigara. Eu não podia continuar ali. Muitas noites acordei, banhado em suor, vendo em sonhos os policiais que me buscavam para pagar crimes absurdos. Depois de algum tempo, senti que ali estava a mão do destino: eu devia mudar de casa. Foi difícil arranjar uma boa desculpa para convencer Dona Maria a me deixar partir. Ela achava que eu não saberia tomar conta de mim. - Viver sozinho é muito perigoso - disseme ela. - Aqui, você tem uma pessoa que luta por sua felicidade. Era verdade, mas não era tudo. Eu precisava me libertar daquele mundo, ganhar independência. Procurei um pequeno apartamento para mim, num bairro afastado. Financeiramente, 86
melhorava cada vez mais, pois a loja continuava progredindo. Uma tarde, fiz minhas malas e deixei a pensão. Beijei Dona Maria com carinho e prometi que sempre a visitaria, o que foi uma verdade. Até que, pouco mais tarde, ela decidiu fechar a pensão e vir morar comigo, como governanta, amiga e - por que omitir? - como segunda mãe mesmo. Formei-me em Engenharia. Tal como acontecera anos antes, quando me formara no nosso ginásio, ela foi a primeira a bater palmas quando me chamaram para receber o diploma. Por um momento, senti que minha verdadeira mãe nunca me abandonara. Não posso me queixar da vida - creio que disse isso há pouco, mas é bom repetir. Profissionalmente, eu estava bem escorado pela minha prática. No início da década de 50, chegaram as primeiras televisões ao Brasil. Vieram técnicos de fora para montar os transmissores. Mas eu já tinha algum relacionamento no setor e me chamaram. O primeiro programa transmitido no Brasil teve um diretor-técnico: eu. Recebi um convite para viajar ao exterior. Aprendi muito nos Estados Unidos. Voltei de lá como um especialista. Publiquei uma tese sobre eletrônica e ingressei em academias. Estava me aproximando dos 30 anos e já era um profissional respeitado. Mas me sentia infeliz. Perdi o contato com a minha própria felicidade. Eu lutara desvairadamente durante tanto tempo, perseguindo a possibilidade de nos amarmos. E depois de muitos descaminhos, muitas quedas e espinhos, eu me armara cavaleiro mas não tinha a quem oferecer o meu amor. Numa de minhas viagens ao Brasil, soube que atua família estava em extinção. E que tu estavas quase noiva de um banqueiro. Moravas agora no Rio. Provavelmente, alguém já tinha 87
comentado no seio da tua família o meu sucesso profissional. Imagine, aquele rapaz r apaz pobre da beira do rio, o filho da costureirinha! O que ninguém podia saber é que tudo aquilo fora feito perseguindo um objetivo: o teu amor. Mas num certo sentido, tudo ficou mais fácil. Nem vale a pena recordar mais nada. *** Os anos se passaram. Hoje, tens medo que a nossa Maria Clara esteja apaixonada por um rapaz pobre. Por um jovem que estuda e trabalha naquela garagem, ali na esquina da praça - a mesma em que dançamos entre os bogaris suspensos na noite. Tudo mudou, Helena. Já não temos canteiros floridos nas calçadas. O nosso ginásio fica fora do centro e Vila Rezende até mudou o nome: hoje se chama Rio Azul. Sim, nós voltamos e criamos esta grande cidade. Minha mãe tem um túmulo de mármore, quase igual ao do teu pai - embora para eles isso não faça diferença. O palacete dos Rezende eu mesmo o destruí para construir esta casa que é a nossa fortaleza, o nosso mundo. Nossa filha é parecida contigo: tem teus olhos azuis e teus cabelos louros. Por isso mesmo, talvez, tens medo que ela sofra. Temes em vão. Tudo foi incorporado na grande cidade que conquistamos. Somos os mesmos, mas nada mais é o mesmo. Temes por Maria Clara mas te esqueces que um dia amaste um rapaz que trabalhava obstinadamente numa pequena loja de eletricidade. Hoje - sejamos generosos, ou melhor, sejamos justos - daremos uma oportunidade a esse rapaz e a Maria Clara. Amanhã é o nosso aniversário de casamento. Convidemos o rapaz para jantar conosco. Será um jantar simples, só nós quatro. 88
Talvez ele se sinta embaraçado ao sentar na mesa de um presidente de usinas, de um professor de eletrônica, de um catedrático de universidade, autor de livros. Nada disso importa. Deixarei este bilhete tão comprido que parece uma novela mal escrita e mal-acabada - junto de tua cama. Quando despertares, saberás toda a fragilidade de um homem que conseguiu ser na vida somente aquilo que o amor obteve dele e nele gerou esta felicidade, esta fortaleza e - agora sim - esta humildade feita de vitória e sofrimento. Com a ternura de sempre, e mais uma vez o amor de sempre, o teu Henrique
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