FICÇÃO E REALIDADE A Construção do Cotidiano na Telenovela
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Maria Lourdes Motter
FICÇÃO E REALIDADE A Construção do Cotidiano na Telenovela
São Paulo - SP 2003 -3-
© by Alexa Cultural
Direção Geral Marcia Kling Editor e Projeto Gráfico Karel Langermans Capa K. Langer Editoração Eletrônica Alexa Cultural Coordenação Maria Lourdes Motter Maria Ataide Malcher Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M912f Motter, Maria Lourdes Ficção e Realidade: A construção do cotidiano na telenovela / Maria Lourdes Motter, São Paulo: Alexa Cultural, Comunicação & Cultura - Ficção Televisiva, 2003. 14x21 - 176p. Bibliografia 1.Televisão - Brasil - História e Crítica - 2.Novelas de radio e televisao -B - Brasil História e Crítica - 3. Televisão - Programas - Brasil - 4. Cotidiano - Construção 5. Sociologia - Cotidiano e Televisão - 6. Ficção e Realidade - 7. Comunicação de massa – Meios CDD 791.456 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil - Televisão - História e Crítica 2. Novelas de rádio e televisão - Brasil 3. Meios de comunicação de massa
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À minha mãe, Ignez Ao meu pai, Francisco Ao meu irmão Geraldo (in memoriam) Ao Ottone, meu outro lado, fonte de amor e esperança Ao Marcelo e à Juliana obras quase completas, razão de ser -5-
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Agradecimentos À FAPESP, que possibilitou a realização deste trabalho, À Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, que acreditou no nosso Projeto Integrado, Ao CNPq, que contribuiu com um bolsista de IC. À Baccega, pelo cruzamento de nossas vidas. Às sempre amigas e companheiras de reflexões, Solange, Mary. Ao professor Martín-Barbero, pela restauração de nossa confiança. Ao NPTN (Núcleo de Pesquisa de Telenovela), em especi- al às pesquisadoras do Projeto Integrado “Ficção e realida- de: a telenovela no Brasil; o Brasil na telenovela”: Renata, Fidelina, Immacolata, Cristina, Anamaria. Àquelas que, por amizade e amor à arte, compartilharam noites insones, na busca de dar forma acabada a este trabalho: Maria, Silvânia e Daniela, Aos bolsistas Marcelo e Daniela, que enfrentaram com entusiasmo e de modo árduo a iniciação à pesquisa. Aos funcionários que, pela habitual atenção e pela consi- deração, foram tão importantes nesta fase: Mírian, Lucy, Tatiana e Rose, do CCA e, em particular, Sandra, do Curso de Gestão. À Lourdes, da Assistência Acadêmica, por dotar de huma- nidade a burocracia. À Central Globo de Comunicação pela cessão das ima- gens ora publicadas. -7-
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Prefácio Maria Thereza Fraga Rocco* Este é um trabalho fundamental a todos os que estudam o gênero e também àqueles que querem aprender mais sobre o tema. E por quê? Raras vezes um texto acadêmico consegue discutir e articular questões tão complexas e sutis como as que transitam entre as dimensões internas e externas do vídeo, em especial entre aquelas veiculadas por um dos gêneros de maior sucesso nas televisões do mundo, a telenovela brasileira. Investigando as relações possíveis que podem ocorrer entre ficção e vida real, indagando pelo cotidiano específico de uma e de outra; questionando o que o vídeo mostra nas telenovelas e a repercussão desses produtos nas diferentes mídias, a autora procura abranger e enfeixar todas as interfaces desse fenômeno. Revendo trabalhos já realizados, salienta a importância, a supremacia do verbal na organização, transmissão e inter-relação de diferentes mundos: o real, o ficcional, especialmente quanto perpassados pela forte noção de cotidianeidade. Ao se demorar, especialmente, sobre a telenovela brasileira, Maria Lourdes Motter discute as características específicas de tal segmento e também os “destempos” que elidem, num produto de alto nível, a estruturação narrativa repetida do folhetim do século XIX, com temas contemporâneos diversos, tratados com requinte técnico e competência dramática, a ponto de tal produto nunca poder ser ignorado seja pelo telespectador individual comum, seja pelo conjunto de toda a mídia. Dentre os discursos que circulam no nosso dia-a-dia, na comunicação diária, a telenovela brasileira se revela como texto verbal-visual único, acabando até mesmo por pautar segmentos de rádio, de jornais impressos, de revistas, conversas diárias e também de teses e trabalhos acadêmicos. Bem dividido, o livro traz excelentes análises de novelas muito atraentes, veiculadas, entre 1995 e 1997, pela TV Globo – única emissora a conseguir manter uma produção regular, constante e de alto nível, por várias décadas. A obra não se constitui, porém, em mais um dos muitos trabalhos * Maria Thereza Fraga Rocco - Professora Titular FEUSP
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de análise geral da nossa telenovela. Explorando um eixo que tão bem domina, a autora articula Ficção e Realidade, alinhavadas pelo fio do Cotidiano, pedra de toque da sua investigação e que ainda nos mostra como esse produto tão atraente, a telenovela, conta, por partes, por pedaços, histórias de ontem e de hoje que conseguem manter vivas as práticas de narrar, de mostrar, comentar e relatar intrigas, por meio desse gesto tão rotineiro, de assistir novelas de TV – e que já se integrou inteiramente ao dia-a-dia das pessoas. Maria Lourdes Motter, ao esmiuçar a feitura e as feições da telenovela, evidencia o fato de que, mesmo seguindo determinados padrões narrativos e estruturas dramáticas constantes, a telenovela foge à padronização de tratamentos, o que a torna única dentre a pluralidade de grandes tramas e sub-tramas que se repetem. Explicitando e exemplificando as discussões que constrói sobre a origem da excelência técnica e inventiva desses produtos ficcionais, Maria Lourdes Motter chama a atenção do leitor para as bases fundadoras do gênero, pois mesmo mantendo a estrutura narrativa fixa do folhetim, como já observado, nossa telenovela atualiza-se todo o tempo, criando uma cotidianeidade flexível entre os produtos ficcionais produzidos que se entrelaçam à realidade diuturna de cada um. Esse contínuo intercâmbio entre ficção e realidade – permeado pelo cotidiano – reproduz desejos, sonhos e devaneios próprios à vida comum dos indivíduos, sentimentos que podem acontecer, todos eles, em compreensíveis “destempos”. Para demonstrar alguns desses caminhos, a autora realiza um estudo primoroso de várias telenovelas, a partir de suas fichas técnicas, chegando a análises refinadas dos vários planos que se entrecruzam na feitura do produto. Sempre pensando na organização de relações cotidianas da ficção, via TV, sem as quais seria impossível a adesão do público ao produto, nos faz ver que são muitos os cotidianos individuais e as tramas apresentadas. A telenovela, de certa maneira, reúne os aspectos sociais e econômicos, as diferenças características das personagens, tudo enfim, em um só momento estético, permitindo assim a confluência, o encontro, a intersecção de diversos mundos: daqueles que circulam por fora do vidro do vídeo e daqueles que, para nós, se revelam lá de dentro. Há, pois, adesão, há cumplicidade entre o fora e o dentro. E essa cumplicidade jamais corresponde à redução de um cotidiano a outro. Se ao anoitecer, geralmente, nos entregamos a necessários momentos de devaneio – tentando “corrigir” um pouco das asperezas do dia-a-dia – por meio das muitas tramas menos ou mais verossímeis que nos são passadas pelas telenovelas, após o final do capítulo, ou vamos para outro segmento ou desligamos o monitor, para retornar por inteiro ao cotidiano do lado de cá, sem contudo nos esquecermos de que amanhã, logo à noite, iremos de novo fundir nossos instantes de lazer, de fruição, de reação, de raiva, de identificação e de cumplicidade com tudo - 10 -
o que a telinha ficcional nos traz. Daí essa espécie de doação do telespectador que procura “reorganizar” (desbastando excessos e preenchendo vazios), boa parte da sua realidade difícil de todos os dias. É um cotidiano conversando com o outro. Prosseguindo com rigor sua investigação, Maria Lourdes Motter discute, entre outras, novelas como A Próxima Vítima, Explode Coração, O Rei do Gado, O Fim do Mundo. Para além dos próprios produtos, a autora vai costurando dimensões ficcionais do cotidiano dessas obras àquelas outras, da vida diária, da chamada “vida real”, sublinhando sempre os intercâmbios, as intersecções e correspondências que ocorrem entre as duas dimensões. Com a competência e segurança de quem conhece e domina o terreno onde pisa, Maria Lourdes Motter nos mostra a forma pela qual os conflitos diários da telinha, mesmo que em pequenas doses – ou talvez por isso – vão se misturando (sem nunca se fundirem) aos problemas diários das personagens de carne e osso; aos problemas cotidianos de mães que procuram desesperadamente por seus filhos, aos problemas de sem-terras, de políticos, de casais; de jovens insatisfeitos e desencontrados; enfim aos problemas momentâneos ou crônicos de todo um país e de seus indivíduos que também se enxergam pelos “feixes eletrônicos” da TV. E como tais relações se tornam possíveis? A resposta da autora é cristalina. Mostra-nos que “a vida que pulsa na obra ficcional (também na TV, acrescento) se constrói por força do movimento que organiza o mundo físico”, sempre em consonância com seres que simultaneamente se estruturam e vêm à luz por força da interação dos elementos do mundo humano e do ficcional. Em suas considerações finais, Maria Lourdes Motter realça as funções e papéis desempenhados pelos bons autores de telenovelas que, a partir de intenso questionamento entre vida interior real, vida exterior real e seus próprios textos ficcionais de alto teor dramático, vão clareando as incertezas de quem vê e se integra aos trabalhos que oferecem, trabalhos esses que, mesmo em diferentes tempos, jamais escapam da tão viva e antiga estrutura do folhetim, exigida pelo suporte TV que os veicula. Assim, pelo contínuo trânsito de mão-dupla estabelecido entre as tramas das telenovelas diárias e as muitas interfaces de nossas vidas, em seu dia-a-dia, abre-se um caminho verossímil de constantes trocas de cotidianos, mas que nunca se reduzem um ao outro e muito menos se confundem. Trabalho muito bem escrito, de rara abrangência e profundidade, este livro de Maria Lourdes Motter é de leitura obrigatória para muitos e já se projeta como um clássico em sua área. São Paulo, 20 de agosto de 2003. - 11 -
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Conversa com o leitor A publicação que ora se oferece ao público traz as marcas de seu momento de realização como pesquisa apresentada, em 1999, como tese de livre-docência no Departamento de Comunicações e Artes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. A intenção de preservar sua integridade original constitui aspecto de relevada importância, posto que a investigação, realizada no período de 1995-1998, guarda o caráter pioneiro e traduz as dificuldades próprias de um momento pouco favorável à obtenção de dados e desprovida de experiências metodológicas de pesquisa que pudessem iluminar caminhos a percorrer. Desta maneira, ela responde ao desafio de delinear um percurso, construir um trajeto para a penetração no universo da telenovela brasileira que pudesse sugerir modos de compreender os segredos da magia criadora dos fortes laços de afinidade com sua audiência. Propusemo-nos uma estratégia: assumir a posição do telespectador que se posta diante da TV munido de sua competência discursiva para assistir, como cidadão comum, capítulo a capítulo a telenovela que está no ar. Enfrentamos a compulsão obrigatória do controle remoto para gravar, durante intermináveis dois anos, as quatro telenovelas que se sucederam no período. No início, só conseguíamos prestar atenção aos desdobramentos da trama, mas, aos poucos, nosso olhar foi se adestrando e, aos poucos, os dados passaram a ser visíveis até tornarem-se concretas, as possibilidades de análise. Os dois temas presentes no título da pesquisa, e agora do livro, percorreram um caminho interessante. De um lado, a preocupação com o par ficção e realidade, de outro, o par “cotidiano ficcional” e “cotidiano concreto”. A primeira questão a merecer resposta e instigar a busca passou a ser: como se processa a construção do cotidiano no interior da telenovela? Esta foi a chave que conduziu o passo seguinte: qual é a relação entre o cotidiano ficcional e o cotidiano concreto? O caminho da investigação ganha luz com o liame que se estabelece entre o cotidiano construído e o cotidiano do telespectador, instaurador das articulações entre ficção e realidade. A avaliação das interações possíveis leva a que se pesquise na produção da mídia informativa - revistas e grandes jornais diários - as identidades temáticas sem qualquer vinculação ou referência explícita à telenovela. Os anos de pesquisa exaustiva permitiram demonstrar que a telenovela funciona como pauta para a mídia, da qual são extraídos os temas de sua agenda, que passam a merecer discussão - 13 -
no contexto da realidade cotidiana da sociedade, do país e até do mundo, quando a ficção pontua questões de interesse humano. Hoje, após quase uma década, tornou-se lugar comum afirmar que a telenovela e, por extensão, a televisão pautam a mídia. Também se tornou possível provar e demonstrar a afirmação como verdadeira. No mundo do senso comum, é o “óbvio”. O mesmo pode-se dizer sobre as temáticas sociais, que antes de nossas pesquisas estavam voltadas para buscas específicas, principalmente para a reprodutividade humana, além de temas adjacentes como as questões ligadas à sexualidade. Sem ser pioneiro, é inaugural enquanto formulação de proposta e diversidade de resultados. Desde 1996 produzimos trabalhos que foram apresentados em congressos, publicados e divulgados pela imprensa, apontando a importância das temáticas sociais que pontuavam telenovelas anteriores e se ampliavam gradualmente nas mais recentes, por iniciativa de autores que não produziam telenovela como mero entretenimento. Hoje, menos que uma proposta de engajamento político-social de autor, as telenovelas incorporam temas que mesclam responsabilidade social da emissora com respostas altamente compensadoras dos índices de audiência. Motivo de comemoração, a prática também gera apreensão, pois o equilíbrio entre ficção e realidade é posto em risco, assim como também a qualidade dramatúrgica da produção ficcional. Afinal, a telenovela pode muito. Só não se pode esquecer de que ela, antes de tudo, tem que ser uma história interessante, bem tramada e envolvente, um momento de fruição e enlevo em meio ao mundo permanentemente assolado pelo caos. Finalmente, manter a integridade de nossa pesquisa é um modo de preservá-la como fonte – agora impressa – geradora de muitas outras pesquisas e objeto de citação em muitos trabalhos, inclusive já publicados. Reformular o texto original seria uma perda, de vez que aos olhos de nosso hoje resultaria em uma obra com valor diferente daquela. A produção gerada diz respeito principalmente ao espaço mais restrito da universidade. Apesar de nossas considerações, só agora se poderá ter acesso ao trabalho integral graças à sua publicação sob a forma de livro, socializando o conhecimento produzido para o público em geral. A autora
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Sumário INTRODUÇÃO
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A VIDA COTIDIANA NO MUNDO MODERNO COTIDIANO E TV A GRADE DE PROGRAMAÇÃO Opções Contíguas e Contrastes
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CONSTRUÇÃO DO COTIDIANO NA TELENOVELA
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A TELENOVELA A PRÓXIMA VÍTIMA FICHA TÉCNICA APRESENTAÇÃO COMENTÁRIOS CRÍTICOS QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL
47 48 49 49 63
A TELENOVELA EXPLODE CORAÇÃO FICHA TÉCNICA APRESENTAÇÃO COMENTÁRIOS CRÍTICOS QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL
65 66 67 67 75
A TELENOVELA O REI DO GADO FICHA TÉCNICA APRESENTAÇÃO COMENTÁRIOS CRÍTICOS QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL
77 78 79 79 89
A TELENOVELA O FIM DO MUNDO FICHA TÉCNICA APRESENTAÇÃO COMENTÁRIOS CRÍTICOS O Tema Cotidiano Ficcional Geografia ficcional: a cidade A população e seus tipos Conflitos de rotina e interesses Irrupção do Imponderável Ruptura Loucura Carnavalização Rescaldo Reconstrução O Fim do Mundo QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL
93 94 95 95 95 96 97 97 99 102 104 105 107 109 110 111 112
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ESTRUTURAÇÃO DO COTIDIANO E VEROSSÍMIL NARRATIVO OS EMPREGADOS DOMÉSTICOS EMANAÇÕES DE DE RE REALIDADE E RECORRÊNCIAS
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RASTREANDO O HORÁRIO OUTRAS TELENOVELAS A INDOMADA POR AMOR Assuntos Tratados nas Tramas Secundárias Assuntos Tratados nos Diálogos TORRE DE BABEL Questões de Interesse Social
123 123 123 125 125 125 126 126
MÍDIA PAUTADA PELA TELENOVELA A PRÓXIMA VÍTIMA EXPLODE CORAÇÃO O FIM DO MUNDO Outras Mídias O REI DO GADO A INDOMADA POR AMOR TORRE DE BABEL
128 130 130 131 131 132 133 133 134
FICÇÃO E REALIDADE A PRÓXIMA VÍTIMA Homossexualidade EXPLODE CORAÇÃO O FIM DO MUNDO O REI DO GADO O Senador Caxias Como Reage o Congresso? A Questão Agrária, o MST Dados a considerar A Morte do Senador
135 135 137 138 139 141 141 144 148 157 158
CONSIDERAÇÕES FINAIS CENOGRAFIA, TEMÁTICAS E REALIDADE COTI COTIDI DIAN ANO O FIC FICCI CION ONAL AL E COT COTID IDIA IANO NO CONC CONCRE RETO TO Tipologia das Interações TELENOVELA E INDÚSTRIA CULTURAL
163 163 169 169 169 171
BIBLIOGRAFIA
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INTRODUÇÃO -1Neste trabalho, ficção e realidade ora se separam, ora se entrelaçam. Às vezes, por necessidade de clareza, imposição do percurso de investigação, da busca de segmentar nosso objeto para descobrir níveis da estrutura que permitam alcançar suas articulações, nos afastamo-nos ligeiramente da superfície onde se torna visível ora um, ora outro dos aspectos envolvidos. Quando nos propusemos a examinar o cotidiano da telenovela, tínhamos apenas uma vaga impressão de um paralelismo entre os cotidianos ficcional e concreto. Supúnhamos que um elemento forte de identificação e, por conseguinte, de sedução e de catalisação da audiência, passava pelo paralelismo, pela homologia entre ambos. Na finalização de nossa pesquisa, chegamos à certeza. Uma certeza que nasceu de uma busca por caminhos incertos e nebulosos, mas que enfim se aclara, a partir do que é simples e que já foi validado, embora para linguagens outras e com fins específicos, cinema, teatro e literatura. Foram necessários três anos de convivência com a telenovela em geral para descobrir a peculiaridade das telenovelas em estudo. Qual é a diferença afinal? O que faz dela alvo da preferência? Por que ela fala tão de perto ao telespectador? De onde vem o poder de influenciar a mídia, de ocupar tanto espaço em nosso cotidiano? Nosso, quer dizer, da população brasileira, que assiste ou não à telenovela, poucos ou muitos capítulos, não importa. Fizemos levantamentos exaustivos, pesquisas em jornais e revistas e durante esse período, assistimos aos principais programas de televisão. Para todas as telenovelas, mas em especial para O Rei do Gado , debruçamo-nos sobre dois jornais – Folha de S. Paulo e Paulo e O Estado de S. Paulo – e duas revistas semanais – Veja e IstoÉ – levantar todas as notícias referentes às telenovelas. Partir daquelas que comentam a telenovela seria um trabalho mais simples e ameno, pois bastaria tomar os cadernos e seções especializadas ou setorizadas. O grande desafio foi exatamente a ousadia ingênua de verificar, no noticiário geral, no jornal ou revistas inteiras (exceto nas seções e cadernos especializados especializado s de TV)1 a ocorrência de matérias relacionadas aos temas presentes nas telenovelas. 1 Esta observação é válida apenas para o capítulo “Mídia Pautada pela Telenovela”, pois eventualmente estaremos utilizando essas publicações para outros apoios.
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Para O Rei do Gado , a pesquisa começou três meses antes de sua entrada no ar e avança três meses após o seu término. Três meses antes coincidiu com o Massacre de Carajás, três meses depois com a Marcha a Brasília, perfazendo um ano. Deparamo-nos com uma questão: como poderia a novela enfrentar a potência desses dois magnos acontecimentos? Um massacre é um fato de extrema gravidade e uma marcha com milhares de pessoas, que dura cerca de um mês, também é mobilizadora, pois trata-se de um acontecimento extraordinário. Levantados os dados, a questão passou a ser a sua leitura. Como interpretá-los sem levar em conta os grandes acontecimentos nacionais e internacionais que tiveram lugar nesse período (por exemplo: Morte de P. C. Farias, Eleições, Carnaval, Olimpíadas de Atlanta)? As dúvidas não ficaram por aí, foram se somando. Outra questão seria atribuir valor para matérias de tamanhos e conteúdos diferentes. Descobrimos a impossibilidade de dar conta de tudo, tarefa somente realizável com uma pesquisa inteiramente dedicada a esse mister. Adequamo-nos à realidade. O bom senso sempre ajuda e a reflexão traz alguma luz. Partimos, então, para uma utilização menos abrangente dos dados: um gráfico com a quantificação linear. Quantas notícias por mês, por órgão pesquisado. Verificação das oscilações das notícias, para baixo, em relação aos grandes acontecimentos nacionais e internacionais. Em seguida, descobrimos que, no início, o massacre não foi visto como tal, mas como violência decorrente de conflito. Resolvemos rastrear as diferenças de tratamento com relação ao tema. Examinando jornais anteriores ao período dos levantamentos, quanto mais retornávamos no tempo, menos o tema aparecia. E o que havia em seu lugar? Avançando para além da marcha, o tema começava a se tornar rarefeito. Diminuía sua incidência, mudava também o tratamento. A cordialidade do período investigado cedia, em ambos os avanços (antes e depois) para uma maior agressividade no segundo caso e para uma hostilidade explícita no primeiro. O que aconteceu então? Que fatores poderiam ter determinado o período de trégua? Teria a telenovela algo a ver com a mudança? Os indícios encontrados e a ampla discussão desenvolvida no curso deste trabalho autorizam afirmar que sim. É o que esperamos poder conseguir demonstrar no curso de nosso relato. Sua leitura adequada requer a presença de dois pressupostos: • A opção pela emissora se deve ao reconhecido saber fazer teledramaturgia e também ao nível de audiência de uma rede de televisão que, por circunstâncias históricas, é a Rede Globo de Televisão (TV Globo, Globo). • A telenovela é vista, pensada e analisada dentro do campo “entrete- 18 -
nimento” e no contexto da programação oferecida sob essa rubrica na televisão comercial brasileira.
-2As interações entre ficção e realidade de há muito vêm sendo tratadas, sobretudo do ponto de vista da literatura e do cinema. Há estudos sobre o caráter de ficção que podem assumir as notícias 2 , telejornais ou programas do gênero. O que há de novo em nossa proposta é o objeto telenovela e sobretudo o enfoque do cotidiano, tendo em vista seus modos de apropriação enquanto um fazer ficcional que se insere como mais um elemento na composição do ambiente cultural em que estão imersos os telespectadores e a própria sociedade buscando estabelecer possíveis reiterações temáticas no confronto diário entre a novela e o noticiário geral da grande imprensa. A crítica teórica, considerada suficiente para dar conta da comunicação de massa em geral, da ficção televisiva e, em particular da telenovela e seus similares, não ofereceu estímulo para o exame do material empírico, do qual o pesquisador se manteve distante por zelo acadêmico e prudência, o que é compreensível dentro da tradição da universidade como um centro de estudo da cultura clássica. Disposta a abrigar estudos da cultura popular a uma distância segura e a exercer uma crítica tendente a não fazer concessões aos produtos de massa, a academia tenta resistir mesmo quando a indústria cultural se consolida e os produtos ficcionais televisivos assumem o lugar de honra na grade de programação das emissoras. No caso da ficção televisiva seriada 3 e da telenovela registra-se, uma defasagem de várias décadas entre a sua consolidação e as pesquisas acadêmicas: o rótulo de entretenimento alienante encobre uma realidade que se quer ignorar embora, de forma direta ou indireta, envolva a sociedade como um todo. Focalizando-a em suas tramas, propondo uma visão de mundo que entra em interação com a visão do telespectador, confirmando, negando ou instaurando o conflito entre essas visões, toda uma rede de temas e significados se articula, operando a superação da dicotomia emissão/recepção e indo se inserir no cotidiano social de todo cidadão, independentemente de sua vontade. Nossas pesquisas não registram trabalhos com esse tipo de preocupação. A própria telenovela começa a ser construída como objeto de investigação científica muito recentemente e o que existe são trabalhos esporádicos com caráter exploratório. É verdade que a telenovela esteve pressuposta no bojo de toda a discussão que se vem fazendo sobre os meios e sobre o caráter alienante da maioria dos produtos da indústria cultural. Essa discussão geral acabou por distanciar o pesquisador do 2 MOTTER, M. L. Ficção e História: imprensa e construção da realidade. São Paulo :Arte & Ciência Villipress, 2001. 3 Os formatos que constituem a Ficção Televisiva Seriada são: telenovela, minissérie, série e seriado.
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meio TV com seus produtos menores e, sobretudo, do mais desprezível deles: a telenovela. Estudos sobre programas de auditório como os de Hebe Camargo (Sérgio Micelli) e Sílvio Santos (Maria Tereza Fraga Rocco) constituem marcos importantes na ruptura do preconceito. Trabalhos sobre o Programa Gil Gomes, sobre telejornais e, mais recentemente, sobre campanhas eleitorais vêm avançando paulatinamente na legitimação da televisão como objeto de estudo científico. Nesse sentido, destacamos o importante trabalho de Roger Silverstone, que desenvolve um estudo abrangente sobre esse meio, focalizando a televisão como realidade ontológica e fenomenológica e sua inserção na vida cotidiana 4 . No que diz respeito à telenovela, a aproximação tem se dado por estudos gerais sobre teledramaturgia. Temos uma única obra de compilação das telenovelas brasileiras, produzida sob a forma de verbetes (Ismael Fernandes), com informações sucintas, lacunas, mas que, dentro da proposta de compilação e resgate do que foi ao ar, é um guia indispensável para orientar os que se atrevem a penetrar nesse universo nebuloso. Outras contribuições valiosas vêm de trabalhos como o de Renato Ortiz, Telenovela: história e produção, Marlyse Meyer, Folhetim: uma história, Renata Pallottini, Dramaturgia de televisão, Jesús MartínBarbero, com suas pesquisas sobre a telenovela na Colômbia e uma obra preocupada com a discussão da temática no espaço da América Latina. Existem teses sobre o assunto, mas desconhecemos qualquer iniciativa visando a um trabalho mais integrado sobre o tema 5 . Tampouco existia qualquer tentativa sistemática e permanente 6 de pesquisar e preservar a memória da telenovela antes da criação do Núcleo de Pesquisa de Telenovela no Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP, em 1992, cuja consolidação vai se dar efetivamente no curso dos anos de 1995-1998, com a constituição de um grupo de pesquisa sobre telenovela7 , e com o intenso intercâmbio que se estabelece entre autores, produtores, pesquisadores, atores. Ele vai se dar a partir da promoção de encontros formais em seminários nacionais e internacionais, com profissionais das diversas áreas e de encontros informais, inclusive com pesquisadores de outros países, para discutir o tema e buscar o seu delineamento enquanto objeto de pesquisa. O NPTN é hoje referência para universidades brasileiras e pesquisadores estrangeiros que buscam o Núcleo para desenvolver suas pesquisas, seja realizando ali suas consultas, seja solicitando trabalhos dos nossos pesquisadores, material ou dados armazenados naquele centro de memória que nós, pesquisadores, nos orgulhamos de ter ajudado a formar com nossas recolhas pessoais e com nossa produção. 4 e 5 As obras citadas constam da bibliografia. 6 Embora não faltassem tentativas, como a do Centro Cultural Vergueiro (São Paulo – SP), que na década de 90 iniciou a organização de um acervo dedicado ao tema, mas que não avançou por ter sido considerado como uma área não prioritária na configuração geral do acervo institucional. 7 Participamos do Grupo com a pesquisa Ficção e Realidade: a construção do cotidiano na telenovela e como Coordenadora de Cursos e Seminários.
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Nesse sentido, todos os pioneiros desses estudos devem ter relevada a sua coragem e disposição de valorizar o objeto a ponto de romper o cerceamento e não se intimidar diante do desafio de fazer avançar a investigação sobre a complexidade desses produtos, enquanto produção, veiculação e audiência, sobrepondo-se, ainda, ao desafio, o esforço despendido para vencer a resistência acadêmica.
-3Partimos do pressuposto de que a linguagem faz a mediação entre o homem e o mundo e entendemos ser a palavra constitutiva do pensamento conceitual8 , veiculadora de traços ideológicos que transitam do social para o individual, mediação entre homem e mundo, sujeito e objeto, das relações entre sujeitos e dos sujeitos consigo mesmos. Ela conserva e transmite a experiência acumulada e incorpora as mudanças, ao mesmo tempo em que oferece as categorias necessárias à constituição do pensamento conceitual. A palavra recorta a realidade dotando-a de sentido. Enquanto signo, é a arena onde se manifesta a luta de classes 9 . Trabalhando na linha de pesquisa ficção-realidade, nosso foco de atenção converge para os discursos sociais, sempre buscando verificar seu grau de aproximação com o real vivido a partir da investigação da subjetividade/objetividade10 manifesta em tais discursos. Duas pesquisas anteriores11 tiveram por objeto os discursos da grande imprensa diária e as conclusões apontaram o caráter manipulatório predominante e a conseqüente construção ficcional da realidade. Trabalhamos com a ficção buscando avaliar as relações entre o cotidiano vivido e o cotidiano construído pelo produto ficcional para compreender como se processa a inter-relação entre esses dois gêneros, claramente delimitados por modalidades discursivas consagradas como de “compromisso” e de “descompromisso” com a realidade social. Se nos anteriores se privilegiou o gênero discursivo “objetivo”, no presente trabalho o foco está centrado no discurso onde a subjetividade é livre para construir o sonho, a fantasia e um cotidiano em consonância com o pro jeto ficcional do autor, desobrigado que está de qualquer outro tipo de fidelidade ao real, que não o que garanta a coerência e o caráter verossímil de seu discurso dentro dos limites da própria obra. A opção pela telenovela decorre de seu prestígio crescente, da expressividade de sua audiência, abrangência dos vários segmentos sociais, seu maior grau de elaboração artística entre os produtos para consumo de massa, sua rentabilidade e sua aceitação internacional. A telenovela brasileira vem aumentando progressivamente suas possibilida8 SCHAFF, A. Linguagem e conhecimento . Coimbra: Almedina, 1974. 9 BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem . São Paulo: Hucitec, 1992. 10 SCHAFF. A. História e Verdade . São Paulo: Martins Fontes, 1978. 11 MOTTER, M. L. O press-release e o discurso jornalístico: aspectos de uma abordagem lingüistica e semiótica. São Paulo: ECA-USP, 1986, 292 p. (dissertação de Mestrado); e Idem, Ficção e história: imprensa e construção da realidade.
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des mercadológicas e tornou-se produto de exportação que atrai divisas e difunde a nossa cultura. Hoje é impossível ignorar sua presença na vida nacional como objeto de crítica ou de fruição. Essa convivência independe da disponibilidade para acompanhar diariamente seus capítulos: ela repercute nos jornais, nas revistas semanais, na programação das emissoras como um todo (rádio, TVs) – entrevistas com autores, atores, comentários, referências a personagens, a lugares, modas lingüísticas – assumindo uma quase onipresença. Ela está em todos os outros meios de comunicação e se impõe como tema nas conversas cotidianas, em particular dos segmentos menos escolarizados para os quais ela representa uma das poucas opções de lazer e mesmo de saber. Ignorar uma produção cultural capaz de controlar, dentro do seu horário, as emoções de milhões de brasileiros e de produzir a ressonância de que é capaz a telenovela, seria fechar os olhos à própria realidade cultural do país em que esse fenômeno se verifica. A telenovela ocupa um espaço tão ou mais importante que os telejornais na programação diária das emissoras, pois se os relatos sobre o mundo satisfazem a necessidade de orientação do telespectador para sua vida prática, o capítulo diário da ficção seriada satisfaz a sua curiosidade com relação ao desdobramento da narrativa que se tece diariamente durante meses num processo de produção/diluição da ansiedade. Se o início do capítulo acalma a ansiedade produzida no dia anterior, o final irá recuperá-la para satisfazê-la no dia seguinte como estratégia para integrar-se às rotinas, garantir a audiência e impor-se como hábito. Até aqui, nada de novo, posto que se trata de um aspecto sobre o qual se sustenta a indústria cultural e o próprio sistema capitalista, que é a criação de necessidades. Embora nem sempre visível, esse traço também é próprio da imprensa escrita e dos telejornais. Não só o ficcional, mas também o factual desenvolve uma narrativa que contém elementos do real e gera expectativa com relação a seus possíveis desdobramentos: a reforma da previdência, o fenômeno El Niño , o novo Código Brasileiro de Trânsito, a evolução das ameaças americanas a Saddam Hussein e o assédio sexual da Casa Branca (envolvendo o presidente Bill Clinton) servem de exemplo. Por outro lado, na ficção, as referências precisas ao mundo real são tão intimamente ligadas, que é comum, após longa convivência com a mistura de elementos ficcionais e factuais, o telespectador (leitor) não saber delimitar com clareza esses dois mundos. Nessa situação, tendese a projetar o modelo ficcional na realidade, ou seja, acredita-se, como sugere Umberto Eco12 , na existência de personagens e acontecimentos ficcionais. O autor cita como exemplos a crença na existência real de Sherlock Holmes e a dificuldade, para os fãs de Joyce, em separar a cidade de Dublin por ele descrita da cidade real, o que se complicou 12 ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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depois que os estudiosos do autor descobriram os indivíduos que Joyce utilizou como modelos 13 . Para Eco, (...) levar a sério os personagens de ficção também pode produzir um tipo incomum de intertextualidade: uma perso- nagem de determinada obra ficcional pode aparecer em ou- tra obra ficcional e, assim, atuar como um sinal de veracida- de (...). Quando se põem a migrar de um texto para outro, as personagens ficcionais já adquiriram cidadania no mundo real e se libertam da história que as criou 14 . Muitos motivos podem levar uma obra de ficção a ser projetada na realidade. Eco lembra que devemos considerar também um outro problema, para ele muito mais importante: nossa tendência a construir a vida como um romance 15 . Freud, em artigo de 1908, “El poeta y la fantasia”, citado por Marc Augé, faz uma analogia entre o comportamento criativo da criança e do poeta (no sentido de criador), considerando que ambos constróem um mundo próprio, distinto da realidade, sem contudo se separar completamente dela. Enquanto a criança brinca, o adolescente se entrega a sua fantasia. Deixa o apoio em objetos reais, que era próprio da brincadeira e se converte em um sonhador: o adolescente cria o que se pode chamar devaneios ou sonhos vespertinos. A fantasia é um corretivo da realidade ; a fantasia joga com a realidade. Se evade dela, encontra no presente uma ocasião de despertar desejos do invisível, de reanimar lembranças e de projetar no futuro uma situação sonhada. Se as fantasias chegam a ser preponderantes, criam-se as condições para a neurose e a psicose. Mas todo mundo se abandona de vez em quando em suas fantasias e devaneios, assim como os sonhos noturnos são, em primeiro lugar, reali- zações de desejos 16 . Com apoio na distinção estabelecida por Freud entre a fantasia (o devaneio ou o sonho diurno) e a criação literária, Augé se pergunta se não poderíamos acrescentar que esta conserva, sem anular a diferença, um laço com o real e especialmente com o social, laço que relativiza seu egoísmo . Se a literatura prolonga o jogo infantil, ela se ajusta menos que aquela à solidão. Em toda obra artística está a presença sensível de uma dimensão social mínima, uma apelação aos testemunhos que a distingue de toda fantasia irrevogavelmente insular 17 . Partimos da hipótese de que o universo da ficção televisiva guarda peculiaridades, como as que Freud considera, além de outras, específicas do nosso objeto, como o modo singular de interação com o real, que 13 ECO, U. Op. cit ., p.131. 14 Ibid., p.132. 15 Ibid ., p.134-5. 16 AUGÉ, M. La guerra de los suenõs: ejercicios de etnoficción . Barcelona, Editorial Gedisa, 1998, p. 7172 (tradução livre da autora). 17 Ibid ., p. 72.
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facilita sua inserção no cotidiano. Dado que o nosso objeto é a telenovela e o seu cotidiano relacionado ao cotidiano do telespectador, buscamos empreender um esforço com vistas à compreensão da telenovela, fenômeno recente enquanto gênero ficcional, que se consolida e tende a permanecer como produto cultural que reflete e refrata (Bakhtin) a realidade, intervindo no sentido de ratificar valores ou modificá-los, de diluir ou explicitar conflitos, de se aproximar da arte ou ser apenas mais um produto de consumo a serviço da alienação. Silverstone 18 destaca a importância que a televisão adquiriu na e para nossa vida cotidiana, o poder que exerce e sua significação, os quais não podem ser compreendidos se não se levam em consideração as inter-relações de sobre e subdeterminação pelas quais esse meio en- tra nos diferentes níveis de realidade onde intervém . E o que ele diz sobre a televisão, nós aplicamos à telenovela. Desse modo, mais que uma fonte de influência simplesmente benéfica ou maléfica, a telenovela deve ser entendida como mais um discurso inserido nos múltiplos discursos da vida cotidiana, tendo que se entender o que são esses discursos, como se determinam, como se entrelaçam e, o que é mais importante, como devem ser distinguidos em vista de sua mútua influência relativa, cuja descrição e análise exige tanto atenção teórica como empírica.19
18 SILVERSTONE, R. Televisión y vida cotidiana . Buenos Aires: Amarrotu Editores, 1996. (tradução livre do espanhol, de responsabilidade da autora). 19 Ibid ,. p.12.
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A VIDA COTIDIANA NO MUNDO MODERNO As bases para a construção do nosso objeto de pesquisa foram se construindo paulatinamente em meio a grandes dificuldades. A superação de cada etapa propunha novos problemas a vencer e muitas descobertas tardias levaram a certas perdas do que ia se constituindo um passado de difícil e, às vezes, até impossível recuperação. Por exemplo, a demora em perceber que a relação da telenovela com a mídia se intensificava quando certas temáticas eram propostas, levou à perda de documentos relativos a publicações das mídias impressa e eletrônica, por não ter havido gravação, no caso da última e, no caso da primeira, por terem se perdido jornais e revistas, cujo resgate demandaria um tipo e um tempo de pesquisa não mais realizáveis nos limites do prazo estabelecido pela agência financiadora. Sua importância no estabelecimento de relações entre os cotidianos do mundo ficcional e do não-ficcional revela-se no processo de estudo dessas categorias, que inclui a distribuição do tempo na jornada diária e o avanço de um sobre o outro, confundindo os limites entre o tempo de trabalho, o tempo exterior a ele e condição para que ele se realize. Ele se expande no mundo moderno, reduzindo o tempo de lazer, confundindo limites. Tais considerações nos levam a uma reflexão sobre um modo de compreensão teórica da vida cotidiana. A expansão do tempo impõe-se aos diferentes segmentos sociais e às diversas categorias profissionais no espaço das chamadas classes médias. Algumas vivem a expansão do tempo obrigatório, e sobretudo do tempo imposto, com um pouco mais de conforto (melhor ambiente de trabalho, possibilidade de complementá-lo em casa, para um segmento; percurso de grandes distâncias e enfrentamento de grandes congestionamentos de trânsito no próprio carro, para outro; e, ainda, para um terceiro, uma maior liberdade com relação à distribuição dos compromissos de trabalho nas vinte e quatro horas do dia), o que não significa estar fora desses controles temporais e da pressão que eles exercem sobre os indivíduos. Os meios de comunicação, e a TV em particular, exercem o controle do nosso tempo com a imposição de hábitos de audiência e passam a - 25 -
reger nossos horários de modo a que estejamos a sua disposição quando ela exibe os programas que (se) moldaram (ao) nosso gosto ou necessidade. Assim, nosso tempo dito “livre” organiza-se do exterior, através das imposições advindas do meio social, tendo há muito deixado de ser livre. O emprego do tempo é uma das marcas mais evidentes da vida cotidiana moderna, visto ser a categoria que reflete mais intensamente as mudanças sociais e a que exerce maior pressão sobre a cotidianidade dos indivíduos. A burocracia prescreve o emprego do tempo e proscreve o que não se submete às suas prescrições , como assinala H. Lefebvre1. Se consideramos o cotidiano como organização do dia-a-dia da vida individual dos homens, repetição de suas ações vitais fixadas na repetição diária, na distribuição do tempo em cada dia, ela é divisão do tempo e é ritmo em que se escoa a história individual de cada um. Ela tem sua própria experiência, a própria sabedoria, o próprio horizonte, as próprias previsões. Atividade e modo de viver transformam-se em inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de vida. As coisas, os homens, os movimentos, as ações, os objetos circundantes, circundantes, o mundo, não são intuídos na sua originalida- de e autenticidade, não se examinam, nem manifestam-se: simplesmente são; e como inventário, como partes de um mundo conhecido são aceitos. A cotidianidade se manifesta como a noite da desatenção, da mecanicidade e da instintividade, ou então como mundo da familiaridade. A cotidianidade é ao mesmo tempo um mundo cujas dimen- sões e possibilidades são calculadas de modo não proporci- onal às faculdades individuais ou às forças de cada um. Na cotidianidade, cotidianidade , tudo está ao alcance das mãos e as intenções de cada um são realizáveis. Por esta razão ela é o mundo da intimidade, da familiaridade e das ações banais 2 . A vida cotidiana é aquela vida dos mesmos gestos, ritos e ritmos de todos os dias: é levantar nas horas certas, dar conta das atividades caseiras, ir para o trabalho, para a escola, para a igreja, cuidar das crianças, tomar café, almoçar, jantar, tomar cerveja, praticar o esporte de sempre, ler o jornal, sair para o papo habitual ou ver televisão, etc. Nessas atividades, é mais o gesto mecânico e automatizado que as dirige do que a consciência3. O processo de urbanização cada vez mais rápido acelera o ritmo da 1 LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno . moderno . São Paulo: Ática, 1991. p. 171. 2 KOSIK, K. A dialética do concreto . concreto . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 69-70. 3 NETTO, J. P. P. & FALCÃO, M. C. Cotidiano: conhecimento Cotidiano: conhecimento e crítica. São Paulo: Cortez, 1989. p. 22.
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vida cotidiana. Participando dela com todas as suas capacidades, o homem se dispersa, não pode realizar nenhuma delas com intensidade bastante para romper com o cotidiano, com a singularidade, com a particularidade. Para Agnes Heller, (...) a vida cotidiana é a vida do homem inteiro, ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos da sua individualidade, individualidade, de sua personalidade. Nela colocam- se em funcionamento todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias. O fato de que todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que nenhuma delas pos- sa realizar-se, nem de longe, em toda a sua intensidade 4 . A imediaticidade e o pensamento manipulador estão entre as características da vida cotidiana, o útil é o verdadeiro em razão do critério de eficácia: o critério de validez é o da funcionalidade. É uma esfera precisa, a do homem concreto. No cotidiano, a objetivação que se verifica é a que permite ao homem fazer do mundo o seu meio ambiente. A vida cotidiana é o conjunto de atividades que caracteriza a reprodução dos homens singulares que, por seu turno, criam a possibilidade da reprodu- ção social 5, ou seja, o indivíduo se reproduz enquanto indivíduo e reproduz o complexo social. Aprender a reproduzir relações sociais é atividade cotidiana do homem e instrumento indispensável à sua sobrevivência. Não sendo o homem só sobrevivência, a grande questão passa a ser a passagem do inteiro para inteiramente homem, o que requer a suspensão da cotidianidade, do singular, do imediato. Para Agnes Heller, as formas de elevação acima da vida cotidiana que produzem objetivações duradouras são a arte e a ciência 6 . A reapropriação do ser genérico é mais profunda e a percepção do cotidiano se enriquece à medida que tais suspensões se tornam mais freqüentes. A plenitude obtida na suspensão do cotidiano permite ganhos de consciência e possibilidade de transformação do cotidiano singular e coletivo. Se a suspensão do cotidiano é uma possibilidade real e podemos localizar nela o ponto de tensão entre conservação e mudança, é em torno dela que se travam os grandes embates e as disputas pelo seu controle por parte do Estado e da produção capitalista de bens de consumo. Trava-se uma verdadeira batalha entre os setores dominantes para administrar o cotidiano da sociedade. Entre esses poderes, o Estado e os 4 HELLER, A. O cotidiano e a história . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 17. 5 NETTO, J. P. P. & FALCÃO, M. C. Op. cit .,., p. 25. 6 HELLER, A. Op. cit .,., p. 26.
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meios de comunicação ora são aliados, ora são conjunturalmente oponentes. Para Lefebvre, o papel do Estado como gestor da sociedade repousa sobre o cotidiano, tem por base a cotidianidade que ele gere das mais diversas formas indireta ou diretamente através de leis, regulamentos, proibições, fiscalização, instituições jurídicas (aparelhos), orientação dos meios de comunicação, controle das informações, por exemplo7 . De um lado, o Estado, de outro, a produção capitalista de bens de consumo, aí incluída a dos bens simbólicos, ou a chamada indústria cultural; todos erigem como centro de atenção o cotidiano – uma base de rentabilidade econômica inesgotável particularmente nas classes médias, instituídas como ponto de apoio e mediação. No mundo moderno, são elas que catalisam o processo gerenciador e controlador do Estado e da produção capitalista sobre o cotidiano da sociedade. Elas são as propagadoras que promovem a expansão e homogeneização homogeneiza ção de um modo de vida cotidiano. Nesse sentido, para Netto, vista sob um certo ângulo, a vida cotidiana é em si um espaço modelado (...) para erigir o homem em robô: um robô capaz de um consumismo dócil e voraz, de eficiência produtiva e que abdicou de sua condição de sujeito, cidadão 8 . Heller ressalta a porosidade da vida cotidiana e a explica em sua dialética: (...) a vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta à alienação (...). Na cotidianidade, parece natural a desagregação, a separação de ser e es- sência. Na coexistência e sucessão heterogêneas das ativi- dades cotidianas, não há por que revelar-se nenhuma indivi- dualidade unitária; o homem devorado por e em seus papéis pode orientar-se na cotidianidade através do simples cum- primento adequado desses papéis. A assimilação espontâ- nea das normas consuetudinárias dominantes pode conver- ter-se por si mesma em conformismo, na medida em que aquele que as assimila é um indivíduo sem núcleo; e a parti- cularidade que aspira a uma vida boa “sem conflitos” reforça ainda mais o conformismo com a sua fé 9 . A autora faz questão de enfatizar que a vida cotidiana coti diana não é necessariamente alienada, embora se tenha de admitir que quanto maior for a alienação produzida pela estrutura econômica de uma sociedade dada, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação para as demais esferas. A alienação não está na estrutura do cotidiano mas em determinadas circunstâncias sociais. 7 LEFEBVRE, H. Op. cit., cit., p. 116-122. 8 NETTO, J. P. & FALCÃO, M. C. Op. cit., cit., p. 19. 9 HELLER, A. Op. cit .,., p. 37-38.
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Os sonhos e os desejos tampouco representam um ato de consciência no dia-a-dia das pessoas. Mas se o jogo dos sonhos e atividades rotineiras gera insatisfações, angústia e opressão, também oferece segurança. Raros são os que conseguem romper a teia do cotidiano, concentrando todas as suas forças em atividades que os libertem e lhes permitam experimentar (...)a sensação e a consciência de ser um homem total, em plena relação com o humano e a humanidade de seu tempo 10 . O imaginário propriamente dito faz parte do cotidiano. Para H. Lefebvre, (...) cada um pede a cada dia (ou cada semana) sua ração de cotidiano. No entanto, o imaginário, com relação à cotidianidade prática (pressão e apropriação), tem um pa- pel: mascarar a predominância das pressões, a fraca capa- cidade de apropriação, a acuidade dos conflitos e os proble- mas “reais”. E, às vezes, preparar uma apropriação, um in- vestimento prático 11. No contexto das rotinas que dão segurança e caracterizam a vida cotidiana, Marc Augé lembra que a ficção também constitui um vínculo de socialização, na medida em que ela pode ser para o imaginário e para a memória do indivíduo um momento de experimentar a existência de outras imaginações e de outros universos imaginários. Mas, considera o autor: (...) esta experiência se baseia na existência de uma ficção reconhecida como tal (de uma visão do real que não se con- funde com o real e que não se confunde tampouco com os mundos imaginários coletivos que o interpretam) e se baseia assim mesmo na existência de um autor reconhecido como tal, com suas características singulares, um autor que por isso estabelece com cada um dos que constituem seu públi- co um vínculo virtual de socialização 12 . Os dois autores supracitados destacam a importância do imaginário no contexto da vida cotidiana: o primeiro, para ressaltar seu papel quanto a um investimento prático, o segundo, pondo em relevo a interação que se processa entre diferentes imaginários, a relação que estabelece o vínculo de socialização entre autor e público e sua visão do real que não se confunde com a ficção. Concordamos quanto à clareza com que se reconhecem os mundos 10 HELLER, A. Op. cit. 11 LEFBVRE, H. Op. cit ., p. 99. 12 AUGÉ, M. Op. cit ., p. 131. (tradução livre da autora)
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do real e do ficcional. Consideramos, todavia, que no interior da ficção e nas suas diferentes formas de manifestar-se, por artifício da própria ficção, pode-se diluir a nitidez desses limites promovendo-se a interpenetração dos dois mundos no interior da obra.
COTIDIANO E TV A ficção televisiva participa do nosso cotidiano como espaço de lazer. Entre as formas de preenchimento desse espaço está a que se efetiva como ficção seriada. Esta tem, nas séries 13 brasileiras de longa duração, a telenovela, sua expressão maior. Movimentando astronômicas verbas de publicidade e atingindo os maiores índices de audiência dentro da programação das emissoras, insere-se no momento de descanso das pessoas que, por gosto ou simples inércia, deixam-se envolver nas tramas que as afastam momentaneamente das aflições do seu dia-a-dia, inclusive das que lhes acabaram de chegar do mundo pelo telejornal. Evidencia-se desse modo um espaço delimitado, que vai das 19 às 22 horas, onde telejornal e telenovela se alternam atendendo ou procurando atender às necessidades de informação e entretenimento do cidadão comum no mundo contemporâneo. A vida moderna com seus avanços tecnológicos e as transformações produzidas vão bloqueando aceleradamente as vias de acesso aos lazeres e à cultura tradicional: o cinema, sob a forma de vídeo, vem à nossa casa, como vem a pizza, o supermercado, as (tele)compras em geral. As possibilidades ampliadas de comunicação, por fax , ou pela Internet trazem, entre tantas outras possibilidades, as bibliotecas e museus do mundo para a tela do nosso computador doméstico. Essa tendência aprisiona gradual e progressivamente as pessoas em casa, substituindo as relações interpessoais diretas, face a face, pelas relações mediadas, do mesmo modo que tende a substituir vivências por experiências. Essas possibilidades de consumo, restritas a um pequeno segmento social nos primeiros momentos, estendem-se, avançando sobre camadas cada vez mais amplas da população. A TV e, em larga medida, o vídeo já constituem formas hegemônicas dessa tendência. Todavia, situados no presente, num país caracterizado pela extensão territorial, e por sua diversidade cultural, dividido em três faixas de desenvolvimento, convivemos com mundos diversos dentro do próprio país, estado, cidade, bairro. Coexistem sofisticação e miséria. Entre elas interpõe-se um segmento socioeconômico médio que tem seu tempo obrigatório (trabalho) e seu tempo imposto (ida para o trabalho e volta) expandido a ponto de, nos grandes centros urbanos (principalmente, porque temos de lembrar os grandes deslocamentos dos bóias frias, dos trabalhadores que vivem em cidades dormitórios, por exem13 A palavra “série” está sendo utilizada no sentido de seqüência e não como categoria que distingüe formatos de produtos ficcionais.
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plo), avançar sobre o tempo livre 14 de lazer e de descanso. Em muitos casos, o sentar-se diante da TV é apenas o intervalo entre o trabalho e o sono. Para as emissoras, este é o horário nobre. Aí estão inseridos os telejornais e as telenovelas: a informação e o entretenimento15. De um lado, a continuidade opressiva do cotidiano mobilizador de atenção, gerador de tensão, preenche sua necessidade de informação trazendo um saber sobre o mundo onde predominam a ameaça, o medo, a violência do dia com intensidade dramática proporcional à inexpressividade do acontecimento e à superficialidade do tratamento que lhe foi dado. Discurso autoritário, afirma-se como verdade e apresenta-se como disfórico. De outro, o entretenimento, o descompromisso, a desmobilização da atenção, o descanso e a recomposição restauradora do desgaste provocado pelos embates da vida cotidiana. A ficção não traz problemas, antes coloca cada telespectador diante de seres familiares vivendo conflitos, buscando soluções, reconciliandose, mostrando um modo de ver e reagir diante das possibilidades de escolha de respostas às questões que a cada passo propõe a complexidade do mundo no interagir social. Amigas, quase conselheiras, às vezes companheiras, quase interlocutoras privilegiadas rompendo a solidão e o isolamento, as personagens vivem uma existência em tudo semelhante à das pessoas mergulhadas na concretude de suas rotinas diárias. Umas e outras se habitam, trocam experiências e realimentam-se. Entre as diferentes formas de consumo que regulam nossa vida diária (a distribuição fragmentária de nosso tempo, como já observamos imposições que convergem das diferentes esferas e instâncias da organização social), os meios de comunicação ocupam um lugar central na definição e manutenção de rotinas. A televisão é em larga escala parte desse caráter seriado e espacial da vida cotidiana que se considera pressuposto. Os horários de emissão reproduzem (ou definem) a estrutura da jornada doméstica, por sua vez, significativamente determi- nada pelos horários de trabalho da sociedade industrial (Thompson e Horkheimer), sobretudo da dona de casa 16 . Ou, como diz Silverstone, retomando Scannell: 14 Tomamos as categorias de tempo de Henri Lefebvre (op. cit., p. 61), para quem “os empregos do tempo, analisados de forma comparativa, deixam também aparecer fenômenos novos. Classificando-se as horas (do dia, da semana, do mês, do ano) em três categorias, a saber: o tempo obrigatório (o do trabalho profissional), o tempo livre (o dos lazeres), o tempo imposto (o das exigências diversas fora do trabalho, como transporte, idas e vindas, formalidades etc.), verifica-se que o tempo imposto ganha terreno. Ele aumenta mais rápido que o tempo dos lazeres. O tempo imposto se inscreve na cotidianidade e tende a definir o cotidiano pela soma das imposições (pelo conjunto delas).” 15 Naturalmente permeados de inserções comerciais, chamadas para outros programas, configurandose um conjunto heterogêneo de linguagem. 16 SILVERSTONE, R. Televisión y vida cotidiana. Buenos Aires: Amarrotu Editores, 1992. p. 44-45.
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A televisão é um fenômeno cíclico. Seus programas se dis- põem em diversos horários seguindo a regularidade que dita o consumo. As telenovelas, os informes sobre o tempo e os noticiários talvez sejam os programas que mais participem desse planejamento das horas, dos dias e das semanas do ano 17 . Basta-nos, por ora, reter a intromissão do meio TV na organização do cotidiano individual e social através do velho recurso de contar histórias em pequenas doses diárias, que a televisão brasileira tão bem aprendeu a produzir sob a forma do que conhecemos como telenovela, cuja duração se assenta numa forma peculiar de cotidiano. Lembramos aqui a velha alegoria árabe que mostra o contador de histórias como um homem, de pé sobre uma pedra, falando para o oceano. Ele mal tem tempo de tomar um copo de água entre as histórias. Enfeitiçado, o mar escuta. Uma história após a outra. E a alegoria acrescenta: Se um dia o contador de histórias se calar, ou for calado por alguém, ninguém pode dizer o que fará o oceano 18 . O roteirista existe para transmitir emoções de uma para outra pessoa. É nosso contador de histórias usando instrumentos modernos para manter a tradição. E, como os habitantes de Marrakesh que ouvem suas histórias em praça pública e as consideram necessárias porque é agradá- vel e nos deixa melhores 19 , também nós temos na TV uma versão privada da praça e, no horário nobre da líder de audiência, a sucessão alternada de roteiristas contando histórias longas e complexas na pluralidade de tramas, personagens, situações, ambientes, em frações diárias. Para que se possa conviver com dezenas de personagens e ler suas trajetórias de vida, seus problemas e entender suas ações com algum interesse, é indispensável que eles nos pareçam reais. Um dos elementos fundamentais para que esse efeito se realize, está, a nosso ver, na estruturação da personagem a partir da instituição de um cotidiano que o prenda, que o ancore no espaço e no tempo. Tecido de reiterações e recorrências, o cotidiano participa na construção da personagem marcando-a por hábitos rotineiros, cuja sucessão demarca sua individualidade, sua existência enquanto ser e lhe garante similitude com o real. Seu cotidiano individual é organizado também em função do cotidiano que se articula na trama geral da narrativa e da qual todos os personagens participam como integrantes desse universo particular. Há, pois, o hábito cotidiano de assistir a telenovelas e um cotidiano dentro da telenovela, que simula um paralelismo entre rotinas: a da realidade concreta dos espectadores e a da realidade representada das personagens, no que diz respeito à sua atividade diária em cada capítulo da série, aos temas escolhidos pelos autores para suas histórias e aos te17 Op. cit ., p. 38. 18 CARRIÈRE, J.C. A linguagem secreta do cinema . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 180. 19 Ibidem.
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mas que circulam no curso do desenvolvimento da trama e sustentam as falas dessas personagens no cotidiano de suas vidas ficcionais. Essa presença simultânea de problemas e questões reflete o mundo real refratado pela visão do autor que seleciona, discute e encaminha a proposta de solução válida ao mesmo tempo para esses ess es dois universos e que pode oscilar entre a paráfrase e a paródia, entre a reprodução da ideologia dominante e permanência do status quo à subversão da ideologia da ordem vigente. Seja qual for a tendência, a sucessão de telenovelas faz parte do cotidiano da TV, que seleciona públicos de acordo com o horário, oferecendo em cada um o que poderíamos chamar de estilo, de modo a abranger diferentes cotidianos (como o dos jovens, por exemplo) e imprimir um hábito capaz de se manter, apesar de mudanças previsíveis (como a de interesse do jovem que se torna adulto), com uma simples migração para outro horário (das (da s 19 para as 20 horas, por exemplo). Seis meses mese s de convivência com as personagens e seus dramas tecidos diariamente criam uma espécie de intimidade que tende a integrá-los à vida dos telespectadores que, ao final, sofrem uma perda que a novela seguinte vai tentar repor. Daí, do ponto de vista dramatúrgico, a importância de se imprimir grande potência aos capítulos iniciais, quando se substitui o fa- miliar pelo novo, pelo desconhecido que deve conquistar o carinho e ami- zade do público 20 . Do ponto de vista temático, o início de uma telenovela representa uma mudança, uma ruptura no cotidiano do telespectador que deve se adaptar à nova proposta, como se, subitamente ele tivesse que mudar de assunto sem estar suficientemente preparado para fazê-lo. É nesse particular que a curiosidade e o hábito agem no sentido de manter o telespectador nesse espaço nebuloso e crucial da telenovela. Nesse processo de interação entre os cotidianos, teríamos que promover uma segmentação dos vários modos de interferência, tendo em vista as conseqüências de uns sobre os outros. Assim, a produção social interfere na produção do autor, cujo produto entrará em interação com a direção, que por sua vez entrará em interação com a produção (em toda sua extensão), que por sua vez entrará em interação com os atores, dos atores com a realidade cotidiana, do produto com a grade de programação, do produto com a realidade (sociopolítica), do produto com a realidade cotidiana, do produto com o consumo e do consumo com o produto, com o autor, com a produção, com ... Cada uma dessas instâncias recebe o influxo do cotidiano social concreto, reage a ele e, do resultado dessa interação, realidade e ficção se modificam. Para usar uma expressão cara a alguns semioticistas, poderíamos dizer que se trata de uma “máquina semiótica”, ou seja, de um mecanismo gerador/transformador de signos produzindo uma significação ininterrupta, e ver, no produto acabado, o fechamento de uma fase 20 PALLOTTINI, R. Dramaturga e poeta, enunciado em encontro do GT de Ficção Seriada, Intercom, Recife, 1998.
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do trabalho desta máquina. Máquina que, na verdade, vai processar novos signos no ambiente social, na memória discursiva da audiência e nas transformações por que irão passar no contexto de novos produtos culturais. Pode-se pensar, portanto, na semiose infinita de que falam os lingüistas e lembrar Bakhtin, quando se refere à interdiscursividade como responsável pelo intenso dialogismo que se processa na cadeia ininterrupta da fala21 . No caso da telenovela, esboçamos apenas um aceno frente à verdadeira complexidade do processo e diante do caráter macro da linguagem, preocupação maior do autor22 . Não temos intenção de mergulhar nos meandros das interações. Elas constituem para nós apenas um mapa complexo, pressuposto para o nosso modo de olhar e ouvir a telenovela da perspectiva de quem não conhece caminhos e tenta descobrir uma clareira nesse bosque cerrado. Nosso estudo apoia-se nas telenovelas exibidas no período de 03/95 a 02/97, no horário nobre da Rede Globo de Televisão: A Próxima Vítima (Silvio de Abreu), Explode Coração (Glória Coração (Glória Perez), O Fim do Mundo (Dias Mundo (Dias Gomes)23 e O Rei do Gado (Benedito Ruy Barbosa). Essa seleção foi aleatória do ponto de vista dos temas e autores, já que a segmentação da amostra se orientou pela emissora, pelo horário, em razão da expressividade da audiência, da melhor qualidade do produto, da maior seriedade no tocante à seleção e tratamento dos temas, maior vinculação com a realidade social e prestígio dos autores. O período de três anos permitiu a comparação entre quatro telenovelas, quatro autores, quatro temáticas e tratamentos diferentes para assuntos diferentes, guardando a unidade como gênero e apresentando soluções particulares para problemas dramatúrgicos comuns. Elas reúnem também uma diversidade de propostas de incorporação da realidade social e modos de intervenção no cotidiano de grande interesse para nosso objetivo. Diferentes autores, histórias, ambientes e temporalidades permitirão melhor apreender como se estruturam os cotidianos e os elementos que ancoram as personagens e suas ações, mantendo, em meio às transformações por que passam, uma permanência e um modo de existência verossímil e coerente que simula, durante o tempo de exibição, hábitos, rotinas, preocupações e conflitos do telespectador telespectado r. Partimos da hipótese de que a telenovela não é neutra, alienada ou engajada enquanto gênero. Ela será uma coisa ou outra, dependendo das propostas do autor, da emissora e do segmento de público considerado. Sua ação realiza-se de forma indireta, cumulativa e, embora não tendo por função educar, cada vez mais se cobra dela um rigor e uma 21 Entendida como enunciação que é sempre uma combinatória daquilo que é efetivamente verbalizado (exteriorizado) e do que é apenas pressuposto pelo locutor e pelo destinatário. 22 BAKHTIN, M. Op. cit . 23 O Fim do Mundo enquadra-se na categoria minissérie, por estar acabada ao ser exibida e estar contida em 35 capítulos. Essa especificidade formal não foi considerada pela emissora, que contornou a situação anunciando-a como “super telenovela”, o que o grande público ratificou, aceitando-a como tal. Para o nosso propósito, sendo o horário nobre um elemento determinante, não haveria porque excluí-la, sobretudo por estar localizada no período recortado.
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precisão no tratamento de detalhes pouco significativos do ponto de vista da ficção, mas que do ponto de vista da realidade podem disseminar modos de agir inadequados no tocante a técnicas e procedimentos científicos, por exemplo. Isso demonstra o seu potencial educativo e atesta seu reconhecimento como criadora e propagadora de um saber sobre o mundo, ao mesmo tempo que se atribui a ela aquela função. Se isto é válido para a telenovela em geral, também os autores tendem a considerar com maior ou menor seriedade esse papel da telenovela. No primeiro caso, podemos situar Benedito Ruy Barbosa que, em meio a considerações sobre o ato de escrever, o número de horas diárias consumidas e o longo tempo de atividade nesse regime de trabalho, declara: (...) E quando chega no final da novela, se não fica um resi- dual lançado, algo produtivo que tenha valido a pena seu esforço, é como contar um conto da carochinha, uma histó- ria de amor... Eu venho tentando fazer isso desde 1971, quan- do fiz a primeira novela educativa, usar a telenovela como instrumento de educação também. Porque eu percebo uma coisa: o telespectador quando está vendo uma novela na televisão, fica desarmado pela emoção, ele entra na emo- ção da trama e quando você encontra ele desarmado assim pode jogar elementos educativos dentro da trama porque ele assimila muito bem 24 . É interessante notar que as novelas da TV Globo vêm alargando progressivamente o espaço para atender essa necessidade latente do público. Um bom exemplo é a introdução do merchandising social, merchandising social, como campanhas de prevenção da gravidez, de doenças sexualmente transmissíveis, cuidados com a saúde, além de tantas outras, menos evidentes, disseminadas no cotidiano da telenovela. Neste trabalho, outras telenovelas estão sendo recuperadas como apoio ou contraponto para análise. Os problemas e temas de relevância social são levantados e confrontados com os temas em pauta na imprensa em geral e, em particular, nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo , e nas revistas semanais Veja e IstoÉ . No que se refere às temáticas que geraram matéria de capa de revistas, não houve preocupação com o tipo de publicação mas sim com o destaque dado ao assunto. Nesse caso, revistas destinadas a diferentes segmentos de público – tratando dos temas – foram importantes achados para confirmar a irradiação desencadeada pela telenovela, reafirmando sua capacidade de gerar pauta para a mídia. No que se refere aos quadros, onde procuramos demonstrar as prin24 Entrevista com Benedito Ruy Barbosa no Programa Roda Viva da Viva da TV Cultura, gravada em 17/02/97 e levada ao ar em 24/02/97, registrada e transcrita literalmente pela autora.
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cipais questões de interesse social focalizadas pelos autores, a não-padronização para as diversas telenovelas teve por objetivo pontuar nuances que individualizam as produções. Consideramos pertinente escolher categorias que contivessem, de certo modo, traços semânticos que denotassem o modo de tratamento das questões. Assim, tematizar, focalizar, discutir, criticar, denunciar, são opções lexicais que visam evitar o nivelamento de diferenças de atitudes dos autores frente a problemas, bem como a conseqüente variação da ênfase que possa merecer determinada questão. Colocar um tema na trama central, em tramas secundárias, com irradiações ou não daquela para estas ou vice-versa, implica valoração diferenciada que consideramos importante levar em conta. Do mesmo modo, a presença de um assunto em uma trama não é a mesma coisa que sua presença fugaz e casual em um diálogo sem conseqüências para a ação dramática. Embora com caráter exploratório, buscamos, pois, apreender essa hierarquia e formulá-la em quadros demonstrativos. Desse modo, pode-se avaliar qual obra se mostra mais ou menos interessada em contribuir para a instauração/continuidade de um debate, ou para uma tomada de posição sobre uma discussão em curso no cotidiano social. Como decorrência, diferentes compromissos com a realidade concreta estabelecem-se, assim como modos de repercussão variáveis. Assumimos neste trabalho a perspectitiva do telespectador, para quem a obra se constrói a cada capítulo. Esse ponto de vista orientou toda a análise, o que inclui também a dinâmica do cotidiano. O relato que ora apresentamos guarda as marcas desse percurso, caracterizando-se como um processo de construção simultâneo ao andamento das novelas. Podemos ter cometido erros na tentativa de descobrir um caminho que não fosse específico de um outro produto ficcional. Nessa tarefa, buscamos o auxílio de reflexões e comentários sobre aspectos da literatura, do cinema e da ficção em geral que ajudassem a pensar sobre as peculiaridades de nosso objeto. Se o olhar desarmado que sobre ele lançamos não tiver alcançado projetar alguma luz para o seu entendimento, reservamo-nos o mérito de ter preservado o desejo, empreendido o esforço e chegado a esse ponto com disposição para acatar a crítica e defender a isenção do pesquisador que mais ouviu e recebeu informações da telenovela do que levou modelos prontos para enformá-la.
A GRADE DE PROGRAMAÇÃO Opções Contíguas e Contrastes A delimitação dos espaços na TV define códigos de leitura demarcando fronteiras. Tal como está desenhada, funciona como um guia onde se busca opção para escolhas. O telespectador seleciona não só procurando satisfazer seu interesse de informação ou entretenimento, como também, dentro destes, aqueles programas que apontam para a realida- 36 -
de, ou, ao contrário, para os que abrem espaço para o devaneio e a fantasia. Para os acontecimentos que movem a realidade concreta ou, ao contrário, para aqueles que, livres desse compromisso, navegam à deriva, construindo um outro mundo, em que prevalece o ideal sobre o possível. A ficção seria uma espécie de repouso do guerreiro em sua luta diária pela sobrevivência, onde a perspectiva de dotar a existência de uma base estável e durável funda o espaço de sucessivas batalhas contra a adversidade que o desafia a cada passo. Na divisão que se verifica na programação das emissoras de televisão, prevalece um modelo de alternância entre produções voltadas para o relato dos acontecimentos da realidade imediata e produções ficcionais25 . Na televisão brasileira, a ênfase em um ou outro gênero varia periodicamente, sempre na tentativa de enfrentar a concorrência com outros canais, conquistar audiência e verbas publicitárias. Na TV aberta 26 , de maior alcance e penetração, essa distribuição de espaço está demarcada, variando apenas em grau de clareza: ficção e realidade coabitam, coexistem, mas não se confundem. Pode-se, todavia, operar uma grande divisão na própria grade a partir das categorias ficção e realidade e tomar, como representativos de cada um dos campos que elas recobrem, os gêneros notícia e dramaturgia, ou, mais especificamente, telejornal e telenovela pelo caráter de “pureza formal” que os caracterizam e pela contigüidade dos espaços que ocupam, em particular na Rede Globo de Televisão. Este movimento pendular contribui para a estratégia de carrear audiência de um para outro espaço, ao mesmo tempo que cria a oposição factual/ficcional delimitando o território. Do mesmo modo, ela põe em atividade o movimento de tensão e distensão, técnica responsável pela manutenção da audiência através do controle da emoção. Essa alternância se verifica também no interior do telejornal, cuja ordenação das notícias obedece a esse critério: a uma ou algumas más notícias, segue-se pelo menos uma boa notícia, uma curiosidade, ou uma notícia neutra, quanto ao seu conteúdo. Do ponto de vista do telespectador, cada gênero requisitará diferentes competências comunicativas e mobilizará diferentes níveis de atenção, que buscamos considerar em analogia com a divisão do tempo diário da vida cotidiana para criar os quadros que se seguem.
25 Convém lembrar que, na programação das emissoras, os espaços educativos, além de outros que também visam trabalhar conhecimentos específicos, diluem fronteiras ou associam informação e lazer/ entretenimento. 26 Segundo o jornal O Estado de S. Paulo de 18/10/98 dos 37 milhões de lares com TV, 2,6 milhões são assinantes de TV paga, ou seja, apenas 7% têm cabo.
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DOIS MODOS DE NARRAR TELEJORNAL TELENOVELA Tempo obrigatório Tempo livre Rapidez Lentidão Superficialidade Aprofundamento Tensão Relaxamento Mobilização Desmobilização Fragmentação Totalização Obrigação Descompromisso Opressão Liberação Concentração Dispersão Imposição Escolha Quadro 1
MODOS DE ATUAÇÃO SOBRE RECEPTOR TELEJORNAL TELENOVELA Disforico Eufórico Amedronta Acalma Preocupa Distrai Ameaça Deleita Angustia Comove Quadro 2
MARCAS OPOSITIVAS DOS GÊNEROS DISCURSIVOS
TELEJORNAL Discurso Autoritário Pontualidade Fragmentação Dramaticidade Tematização
TELENOVELA Discurso Lúdico Recorrência Articulação Drama Figurativização
Quadro 3
TELEJORNAL Campo das obrigações Imposições Realidade Trabalho Informação
TELENOVELA Campo das liberdades Escolhas Ficção Lazer Saber Quadro 4
Os quadros têm por objetivo destacar as oposições levando em conta sobretudo o caráter formal por que se apresenta cada um dos gêneros. Assim, sem ignorar as características próprias do telejornal como formato desenvolvido para o meio TV, com duração, tempo e ritmo específicos, associado à imagem, diferente do noticiário do rádio, do jornal impresso, da revista, ele ainda varia de estilo, conforme a emissora. A comparação nasce da observação do horário nobre dentro da mesma Rede, - 38 -
onde a linguagem polimórfica (novela/noticiário/comercial) se mostra com especial relevo, pondo em evidência o tratamento dramático da notícia, sobretudo do ponto de vista da montagem e apresentação. Notícias com valores diferenciados se homogeneizam num processo que atribui valor máximo ao telejornal como um todo, independentemente da real importância de cada acontecimento noticiado e do significado conjunto das informações veiculadas. A notícia de um acontecimento pitoresco na Martinica27 , uma perseguição policial “espetacular” (de carro) no Canadá – em que o perseguido ainda consegue fugir a pé – ou um assassinato em Los Angeles – envolvendo anônimos – que não repercutiram localmente, são anunciadas de modo tão enfático quanto a ocorrência de um terremoto com muitas vítimas, um ataque americano ao Líbano, a queda de um avião no Rio de Janeiro ou na cidade de São Paulo ou, ainda, a deflagração da crise nas Bolsas de Valores sejam da Ásia, de Nova York ou do Brasil. Assim, o que se destaca na comparação é o que transborda das marcas básicas do gênero telejornalismo e resvala para o preenchimento do vazio informativo pela ênfase retórica da apresentação, num processo de transferência de autoridade/credibilidade/confiança efetivado pela voz. A voz que enuncia é a voz da Globo e ela fala através do telejornal selecionando, recortando aquilo que ela considera seja de interesse do telespectador conhecer. Nessa embalagem ela vende artigos de camelôs e de shoppings pelo mesmo preço: o do último. Cortam-se verbas, faltam notícias na redação e o Jornal Nacional segue liderando a audiência, fraudando o telespectador como o impávido colosso de sempre: importante, indispensável e lindo. Denunciar a violência com a exibição de cenas em que aparecem enfileirados os corpos de presos assassinados (“jurados de morte”) fala sobre a situação dos presídios superlotados? Dos processos que ocupam no Judiciário parte do espaço físico que falta para os que estão empilhados e com o destino encerrado em montes de papel esquecidos entre outros tantos, nas prateleiras abarrotadas de processos intocados por anos e décadas? Envolve a situação penal indefinida, como é o caso mais freqüente? O que distingue o preso inocente do culpado? Estes seres podem ser considerados homens? Têm ainda algum traço de humanidade? Algum direito humano? Família? Essas perguntas não estão na pauta: são por demais perturbadoras para a boa consciência do cidadão comum. Este não pisou na fronteira da transgressão, não teve seu direito à liberdade posto em dúvida. Ele precisa ser poupado da realidade cruel que deve ser mantida na periferia de sua vida. Assim, a notícia fala para silenciar o real, chama para o espetáculo da morte dando-lhe o sentido de assepsia social: nenhum sentimento de comiseração ou solidariedade. Seria exagero dizer que essas mortes res27 Nesse caso, não se trata da “boa notícia” ou notícia pitoresca, como elemento de distensão, mas das notícias “importantes” ou “sérias”, senão pelo conteúdo, pela carga dramática da locução.
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gatam um pouco de ordem para a sociedade? Seria enaltecer o fato como uma violência boa, justa e até, por que não, divina? A satisfação produzida pela morte, estaria nesse caso justificada e o telespectador poderia senti-la sem culpa: escolhe-se o fato, pontua-se a informação, marca-se a cena. Desaparece o horror. Apaga-se a violência, transmuta-se em plácido céu estrelado o sangue que tinge a cena: o mundo virtual é azul. Não cabe aqui discutir o noticiário. O exemplo é apenas ilustrativo, uma lembrança teimosa da edição da semana 28 do referido telejornal. Nosso propósito é apenas questionar o modo de apresentação com seus exageros, nos limites da comparação que estabelecemos. O uso do adjetivo dramático se refere ao parecer (e não ao ser), que aflora como resultado de múltiplos recursos exteriores à notícia para lhe agregar significado: cenário, iluminação, montagem (articulação das imagens, cortes, etc.), a alternância de atores/apresentadores (rápida, enfática), trilha sonora, entonação, modulação de voz, ritmo, respiração, tempo. O quadro “Dois Modos de Narrar” demonstra nossa observação do teor dramático do telejornal em oposição ao drama que se desenrola na telenovela. É o caráter formal do Jornal Nacional, com seus elementos retóricos e seu modo de narrar, que o insere no campo TRABALHO, tempo obrigatório, no contexto da divisão diária do cotidiano. A telenovela, pelo contrário, pelas características que serão descritas, situa-se no campo do LAZER. Embora as duas possibilidades estejam no mesmo espaço (horário nobre) e no lugar considerado de entretenimento (meio TV), seus efeitos geram estados similares ao que existe na divisão do cotidiano. Todavia, do ponto de vista da ficção e da realidade, ou, do factual e do ficcional, a realidade migra para a ficção, enquanto a ficção habita o “espaço da realidade”, que é o telejornal. Portanto, ao caráter formal da superfície não corresponde o que efetivamente se produz em instâncias mais profundas. Nossa observação, ao mesmo tempo que confirma essa rígida separação formal, aponta para a interação entre Telenovela e Telejornal a partir de temas comuns, geradores de diálogos mais ou menos intensos, com maior ou menor freqüência, dependendo de variáveis conjunturais. Essas variáveis referem-se ao interesse de focalizar temas para serem postos na ordem do dia, se inserirem como preocupação na vida cotidiana, para delinear tendências ideológicas, criar um clima de empatia ou rejeição com relação a grupos, instituições, problemas sociais, políticos, religiosos, comportamentos e pessoas. Referem-se também aos interesses relacionados com a ficção, quando o objetivo é promovê-la no espaço jornalístico. A situação inversa também se verifica quando a ficção, ou mais precisamente a telenovela, insere em suas tramas e em seus diálogos a discussão, o relato casual dos acontecimentos que tecem o cotidiano do telespectador, com suas tragédias, seus problemas, medos, sustos, dúvidas, incertezas e até despreparo para entender situações, conviver com elas ou solucioná-las. 28 Jornal Nacional, semana de 10/02/99.
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CONSTRUÇÃO DO COTIDIANO NA TELENOVELA Beto Rockefeller inaugura uma mudança na telenovela brasileira que vai distanciá-la, sempre mais, do modelo melodramático 1 e maniqueísta da novela clássica. Embriões de problemas que hoje estão no primeiro plano das tramas vieram sendo disseminados e evoluindo paulatinamente, nas telenovelas que preencheram o espaço que vai de 1969 a 1998. Nesses trinta anos, no Brasil, a Rede Globo - que se dedicou ao aperfeiçoamento do gênero de ficção - acumulou experiência e aperfeiçoou um modo de fazer específico que distingue a nossa telenovela das outras experiências, sejam elas nacionais ou de outros países. Outras emissoras brasileiras de televisão, excetuados casos esporádicos e excepcionais, não lograram grande êxito no aproveitamento dessa experiência, talvez tentando explorar mais outros gêneros, como o esporte, jornalismo, filmes e seriados estrangeiros, ao invés de enfrentar, com desvantagem, a emissora líder. Sem concorrentes, que foram se perdendo no processo, tornou-se hegemônica acabando por ganhar esse caráter de escola, seja para algumas obras brasileiras de excepcional qualidade como Pantanal , ou como Dona Beija , além de outras adaptações literárias feitas com o talento de Walter George Durst2 , por exemplo. A verdade é que as criações mais 1 Marlyse Meyer fala sobre o melodrama: “os grandes gêneros populares do séc. XIX engendraram todo um campo semântico intercambiável e de carga altamente pejorativa. Melodrama, melodramático, folhetinesco conotando previsíveis e redundantes narrativas, sentimentalismo, pieguice, lágrimas, emoções baratas, suspense e reviravoltas, linguagem retórica e chapada, personagens e situações estereotipadas etc.” (Folhetim : uma história, São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 157). Silvia Oroz vai buscar os antecedentes do melodrama no séc. XII para chegar a sua conceituação moderna e diz “os antecedentesorigens do melodrama e suas sucessivas mutações históricas colocam-no como um macrogênero cujo eixo temático é o discurso sobre a desdita, ao passo que hipersensibilidade e o esquematismo são os traços formais que o definem” (p. 33). Para a autora, “certamente o melodrama atual está distante de sua própria gênese; mas seus princípios e sua relação com o público continuam estruturados através do sentimentalismo e das lágrimas” (p. 21). ( Melodrama : o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992). Ismail Xavier o conceitua como “organização de um mundo mais simples, em que os projetos humanos parecem ter a vocação de chegar a termo, onde o sucesso é o produto do mérito e da ajuda da Providência, ao passo que o fracasso resulta de uma conspiração exterior que isenta o sujeito de culpa e o transforma em vítima radical, (...) traria, portanto, as simplificações de quem não suporta ambigüidades, nem a carga da ironia contida na experiência social, alguém que demanda proteção ou precisa de uma fantasia de inocência diante de qualquer mal resultado. Associado a um maniqueísmo adolescente, o melodrama se desenha, neste esquema (o autor sugere um triângulo, onde o melodrama é um vértice, o realismo e a tragédia, os outros dois), como o vértice desautorizado do triângulo, sendo, no entanto, a modalidade mais popular na ficção moderna, aparentemente imbatível no mercado de sonhos e de experiências vicárias consoladoras” ( Folha de S. Paulo , 31/05/98, Mais! , p. 8). 2 Terras do Sem Fim, Anarquistas Graças a Deus, Grande Sertão: Veredas (Rede Globo). Os Ossos do Barão (SBT). DURST, Walter George (1922-1997)
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expressivas de nossa televisão, do ponto de vista artístico, nasceram ou pelo menos floresceram sob a luz projetada pela carreadora do processo de acumulação de conhecimento na produção de telenovela. Nesse percurso, dois elementos se associaram. De um lado, o recrutamento de profissionais de talento do cinema, do teatro: grandes autores, diretores, atores e técnicos. De outro, o investimento em modernas tecnologias e na ampliação do espaço cenográfico. Acrescidos de uma visão empreendedora, posta no futuro e apostando na teledramaturgia como um caminho promissor, tais aspectos encontraram nas circunstâncias históricas3 um importante aliado para o sucesso. A tal ponto que no domínio da produção se fez e se mantém paradigmática e única, servindo de modelo e sendo referência obrigatória aqui e no mundo. Se, do ponto de vista da produção, ela é incomparavelmente superior às suas congêneres, do ponto de vista da criação, sua proposta tem a marca da singularidade. Nascida do espaço de liberdade reservado aos autores, ela sustenta-se pela possibilidade de exercitarem o seu talento e colocá-lo a serviço de seu olhar crítico e de suas aspirações de mudança social. Visando a uma sociedade mais justa, menos desigual e mais humana, esses autores definem o rumo de suas histórias e com elas impulsionam mudanças que se manifestam na complexidade crescente das produções, das tramas e temas. Criam suas histórias olhando para o cotidiano das pessoas, da sociedade, do país. Fazem a crítica, a denúncia, discutem os problemas. Às vezes intervêm 4 . São cidadãos tecendo, com arte, histórias que seduzem pelos recursos ficcionais, alicerçadas, edificadas e sustentadas pelo real vivido nos embates diários do nosso mundo individual e social. É assim que a proposta de puro entretenimento que marca a telenovela – reprodutora e ratificadora das condições sociais, separando bons e maus, premiando e castigando para preservar a moral conservadora resistente à dinâmica das mudanças – se converte em lugar privilegiado para discussão e reavaliação do atual modelo de sociedade. Nesse propósito, a telenovela oscila entre avanços e recuos, mas os ganhos têm sido progressivos e sua acumulação deu origem à singularidade de que falamos. Sem abrir mão da estrutura básica do folhetim 5 – seriação, incompletude, sustentada por uma trama amorosa – que a caracteriza como novela, morfologicamente análoga ao conto maravilhoso, ela transforma-se e moderniza-se. Mudam os temas que perpassam a trama amorosa. As personagens ganham complexidade, interioridade e ambigüidades que se exteriorizam em conflitos, problematizando sujeitos, ações e 3 Lembramos aqui o acordo feito entre a TV Globo e o Time/Life, quando mais de cinco milhões de dólares foram aplicados num canal de televisão brasileiro por um grupo estrangeiro, quando a Constituição o proibia. Ver sobre o assunto: CAPARELLI, S. Televisão e capitalismo no Brasil . Porto Alegre, L&PM, 1982. Ver também ALMEIDA FILHO, A. et al . O ópio do povo: o sonho e a realidade. São Paulo: Símbolo, 1976. 4 Ver, por exemplo , O Rei do Gado e Explode Coração . 5 Longa história parcelada, desenrolando-se segundo vários entrelaçamentos dramáticos, apresentados aos poucos.
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situações. Suas personagens vão se afastando do mundo maravilhoso da pura fantasia rumo a um mergulho progressivo e gradual no mundo social concreto. Vivem num cotidiano tenso, perpassado de problemas, angústias, impotências. São vítimas de ciladas, de disputas entre agentes interessados no controle de sua percepção, opinião, gostos, preferências, necessidades. De sua liberdade e de sua vida. Os ambientes, as classes sociais perdem sua clara demarcação. Os diferentes se entrecruzam, misturam-se. Tendências se confrontam e esses conflitos passam para o primeiro plano. A trama ficcional discute o real sem perder seu poder de sedução narrativa. Ela não rompe o contrato, o protocolo de leitura 6 assumido com a audiência, mas trapaceia na medida em que devolve, no embalo suave da história, a realidade concreta reconstruída pelo autor. Essa característica da telenovela, que gostaríamos de denominar te- lenovela brasileira ou telenovela de autor, como preferem alguns (por analogia ao “cinema de autor”), eleva-a à condição de agendadora de pautas para a mídia, ampliando as possibilidades de repercussão de suas temáticas sociais, transferindo para os agentes sociais concretos a continuidade do debate, ou a manutenção/aproveitamento de sua lembrança para fins outros, como a promoção de serviços ou venda de produtos. Na publicidade, os eleitos para a transferência de prestígio aos produtos anunciados são os atores que encarnam personagens nas novelas, podendo aparecer tanto na condição profissional de ator como, o mais freqüente, na de personagens que representam no momento e de preferência nos intervalos comerciais dentro ou próximos ao horário da ficção. Nas campanhas institucionais e na propaganda eleitoral, essa prática já se tornou comum e o próprio distanciamento temporal entre o momento da exibição da novela e o momento em que se realiza a campanha não invalida seu aproveitamento. O que conta é a relação entre o perfil daquela personagem e os aspectos que se quer enfatizar nelas, para sugerir que pessoas com aquelas características, com aqueles princípios, propósitos e marcas de caráter, aprovam, usam, defendem tais produtos (candidatos, inclusive). Desse modo, identificados com os traços que compõem o perfil da personagem, transferem-se tais marcas para o produto, a partir da identificação positiva 7 produzida pela personagem. Por seu turno, a personagem e o ator trocam qualidades e preferências, que não guardam qualquer compromisso com a realidade, permanecendo como mais um desempenho dramático do profissional, aqui a serviço de uma ilusão8 . 6 Uma norma básica para se lidar com a ficção, segundo Umberto Eco, é aquela, em que “(...) o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional . (...) O leitor tem que saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o autor está contando mentiras. O autor simplesmente finge dizer a verdade (Searle). Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (Seis passeios pelos bosques da ficção . São Paulo, Companhia das Letras, 1994. p. 81). 7 A identificação positiva está sendo utilizada como indicadora da obtenção do efeito de identificação alcançado, sem qualquer conotação de valor.
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Joga-se, neste caso, com a lembrança 9 que de cada personagem fica em nossa memória. Mesmo que a recuperação, para alguns, seja lenta ou incerta, impedindo a nitidez da imagem, a memória coletiva 10 interfere e ajuda na reconstituição do todo, preenchendo lacunas e dando nitidez ao que se tornou vago e esfumado na memória individual. É assim, trabalhando com a interdiscursividade/intertextualidade, recuperando o já conhecido para propor o novo que se reelabora a cultura. No caso que estamos focalizando, a familiaridade e o processo de transferência de prestígio são recursos persuasivos a serviço de formação de opinião, imposição de gostos, vendas freqüentemente fraudulentas, etc. Desse modo, venderam-se a reforma da previdência social, presidenciáveis da situação e da oposição, ações da Boi Gordo , para citar apenas exemplos extremos. A disjunção temporal passado/presente, já referida, entre o momento em que a personagem circulou pela ficção e sua circulação atualizada na realidade da propaganda varia grandemente, pois a arte do marketing e da publicidade sabe como extrair dessa circunstância o aproveitamento máximo, sobretudo no jogo memória/lembrança, responsáveis pelo pronto reconhecimento do que é familiar, seja com o grau de precisão que possa ter. Assim, o uso dos efeitos da ficção pode ser simultâneo, como nos comerciais da Boi Gordo , exibidos no horário nobre, intercalado com a telenovela O Rei do Gado , ou pode ser posterior, retornando dois anos depois, no mesmo horário e emissora, trazendo a personagem Bruno Mezenga (vestindo o casaco que a marcou na história) interpretada pelo ator Antônio Fagundes, fundida com a realidade atual, pois é ele quem irá dizer que: Há dois anos investi na Boi Gordo e não me arrependi. Faça como eu , (...). A inserção no horário da telenovela (Suave Veneno )11 cria a proximidade que facilita as conexões da memória individual12 e sai daí para uma ampla difusão nas outras mídias, mais aptas a fixar e reafirmar socialmente a mensagem: jornais, revistas e outdoors . Não nos deteremos em análises para não fugir de nosso propósito, apenas retomaremos o exemplo, no contexto da discussão sobre O Rei do Gado . Se este exemplo é de simultaneidade e retorno, um outro, no domínio da cultura, ilustra uma venda menos comercial, não simultânea, mas em seqüência (imediatamente após o término da novela), não na televisão, mas no jornal. Ele se refere ao antagonista de Bruno Mezenga, na mesma telenovela, Geremias Berdinazzi (Raul Cortez) e à peça de teatro na qual o ator seria o protagonista. Na divulgação, junto com a foto do 8 Utilizamos o termo ilusão no sentido de falsa percepção do real, pois, nesse caso, o ator não fala a partir de suas convicções pessoais enquanto cidadão, mas apenas realiza um trabalho remunerado. 9 Próxima ou distante, dependendo do grau de afastamento temporal entre a exibição da telenovela e a inserção da propaganda, seja comercial ou institucional. 10 HALBWACHS, M. A memória coletiva . São Paulo: Vértice Editora, 1990. 11 Suave Veneno, de Aguinaldo Silva, TV Globo, horário das 20h30, 1999. 12 (...) A memória individual se apóia na memória do grupo social: “se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias.” HALBWACHS, M. Op. cit., p. 25.
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ator/personagem, lê-se: “Berdinazzi vai ao teatro”. Num primeiro momento, somos levados a imaginar que isso se dá na telenovela. Em seguida, dois reconhecimentos: o primeiro, que a novela já terminou; o segundo, que precisamos saber do que se trata e ir para o texto, onde deve estar a explicação de como isso acontece, ou seja, como pode uma personagem de uma telenovela ir ao teatro se a telenovela já não está no ar 13 ? Aí revela-se a brincadeira de se tomar a personagem pelo ator, num processo metonímico, posto que Berdinazzi é parte do universo de personagens que compõem Raul Cortez como profissional da representação (no cinema, no teatro, na TV). Pode-se avaliar pelos exemplos o processo de desenvolvimento da telenovela no curso dessas décadas e o crescimento de sua importância para a produção e circulação de sentidos no espaço da vida cotidiana. Sua abrangência sobre um público numericamente expressivo de telespectadores potencializa-se ao difundir um certo saber sobre o mundo que se irradia para muito além da audiência. Esse saber tornado comum constitui o substrato-matriz para a construção de outros significados nos diferentes domínios do simbólico. Um ganho que abre para a expansão do universo referencial individual, valida-se no ambiente cultural criando oportunidade para transferências de significados, transformações e produções de sentido que incorporam o novo e prepara para sempre renovadas aquisições. Buscam-se na telenovela os apoios referenciais para a produção de objetos culturais diversos. Quando estava no ar a telenovela O Rei do Gado , a grande maioria da produção textual de caráter jornalístico do tipo editorial, artigos assinados, crônicas, mencionavam necessariamente de algum modo o sem-terra, o MST, a questão agrária ou algum tema relacionado à telenovela. Houve momentos em que era possível encontrar essa reiteração, na mesma página (editorial), em três ou quatro artigos.
13 Assim, o plausível seria Berdinazzi ir ao teatro no contexto da telenovela, como um aspecto do desenvolvimento da trama. É com essa expectativa do “leitor” que se joga, para tomar o “leitor” de surpresa e criar uma certa perplexidade que se resolverá a partir da curiosidade, produzida para captar o interesse, proposta para alcançar o objetivo de fazer querer ler e fazer querer ir ao teatro.
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A TELENOVELA A PRÓXIMA VÍTIMA • FICHA TÉCNICA De: Sílvio de Abreu Escrita por: Alcides Nogueira, Maria Adelaide Amaral e Sílvio de Abreu Direção Geral: Jorge Fernando Horário: 20h30 Emissora: Rede Globo Início: 13 de março de 1995 Quadro 5 Término: 3 de novembro de 1995 • PERSONAGENS ADALBERTO VASCONCELOS: Cécil Thiré JEFFERSON NORONHA: Lui Mendes ADRIANO: Lugui Palhares JOSIAS DA SILVA: José Augusto Branco ALFREDO: Victor Branco JUCA MESTIERI: Tony Ramos ANA CARVALHO: Suzana Vieira JULIA BRAGA: Glória Menezes ANDREIA: Vera Gimenez LUCAS RIBEIRO: Pedro Vasconcelos ARIZINHO: Patrick de Oliveira MARCELO ROSSI: José Wilker BRUNO FERRETO BIONDI: Alexandre Borges MARCO: Nizo Netto CARLA: Mila Moreira MARIZETE: Catarina Abdala CARMELA F. VASCONCELOS: Yoná Magalhães NINA GIOVANI: Nicette Bruno CAROLINA ROSSI: Deborah Secco OLAVO RODRIGUES: Paulo Betti CLÁUDIO RAMOS: Roberto Battaglin PATRÍCIA NORONHA: Camila Pitanga CLEBER NORONHA: Antônio Pitanga PAULO SOARES: Reginaldo Faria DIEGO BUENO: Marcos Frota QUITÉRIA QUARTA-FEIRA: Vera Holtz DONA YVETE: Liana Duval ROMANA F. BIONDI: Rosamaria Murtinho DUDA: Huó Gonzales ROSANGELA DOS SANTOS: Isabel Fillardis ELISEO JARDIM: Gianfrancesco Guarnieri SANDRO ROSSI: André Gonçalves FÁTIMA NORONHA: Zezé Motta SIDNEY NORONHA: Northon Nacimento FILOMENA FERRETO: Aracy Balabanian SOLANGE: Patrícia Travassos FRANCESCA FERRETO ROSSI: Teresa Rachel TECA: Andreá Avancine GIULIO ROSSI: Eduardo Felipe TONICO MESTIERI: Selton Mello HELENA RIBEIRO: Natália do Vale ULISSES CARVALHO: Otávio Augusto HELIO RIBEIRO: Francisco Cuoco VITINHO GIOVANI: Flávio Migliaccio IRENE RIBEIRO: Viviane Pasmanter YARA MESTIERI: Georgiana Goes ISABELA F. VASCONCELOS: Cláudia Ohana ZÉ BOLACHA: Lima Duarte Quadro 6 * * Adotamos como critério apresentar os personagens em ordem alfabética
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APRESENTAÇÃO Estréia precedida de campanha de divulgação centrada no suspense. Cartaz de procurados pela polícia traz os atores em fotos 3x4, dispostas lado a lado, inseridos em jornais, exibidos na TV e em outdoors espalhados pela cidade. Na trama, um serial killer vai paulatinamente eliminando suas vítimas, enquanto segue a investigação dos assassinatos. Todos são suspeitos em potencial: como os ponteiros de um relógio, a ação segue se deslocando de um para outro, se detendo, se deslocando novamente, dentro dos núcleos e entre eles. Essa telenovela fez o Brasil parar no capítulo final, tal a expectativa provocada pela revelação do culpado, mantida em segredo pelo autor. Isso gerou uma grande ansiedade na mídia, que fez pesquisa de opinião para sondar tendências, entrevistou especialistas (delegados, investigadores, juristas) para analisar o caso, enfrentou o desafio de fazer uma investigação paralela para descobrir o final da história. Venceu o autor, que teve que ser tão hábil na realidade como na ficção para espalhar pistas falsas, ludibriar a imprensa e preservar seu segredo.
COMENTÁRIOS CRÍTICOS É igual a bolo, tem farinha, manteiga, ovos... tudo de boa qualidade. É o melhor da gente, o melhor do romance, o melhor da aventura, o melhor da comédia... o melhor de to- dos os gêneros. (Jorge Fernando)1 A telenovela articula uma trama amorosa complexa a partir de um núcleo que tem como centro quatro irmãs. Herdeiras da fortuna acumulada e dos negócios da família, que Filomena Ferreto administra com mãos de ferro, compõem um quadro pouco comum. A história, envolta em mistério, vai desenvolver-se tendo-as como responsáveis pela deflagração e controle dos acontecimentos, inclusive daqueles ligados aos outros núcleos e às tramas paralelas. Suspense e romance estão entrelaçados. Do mesmo modo que a vida dos descendentes de italianos que povoam a novela. Vindos do mesmo país, com os mesmos objetivos, em condições semelhantes, seguiram rumos diferentes: alguns foram para o interior do estado trabalhar nas lavouras de café, outros permaneceram nos centros urbanos trabalhando junto ao comércio. Com o processo de industrialização, os que tiveram algum êxito diversificaram suas atividades, enriqueceram e vieram a constituir a nova burguesia paulistana. Aqueles que se mantiveram como colonos ou como pequenos comerciantes vieram a integrar a classe média que hoje faz de São Paulo uma cidade marcadamente italiana: por sua gastronomia, seus costumes, seu gosto pelo trabalho, pela 1 Material de Divulgação da TV Globo como parte da campanha de lançamento de “A Próxima Vítima” .
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exuberância de seu modo de ser alegre, espontâneo, barulhento, solidário e amigo. Os que ascenderam econômica e socialmente guardam da Itália a austeridade, hábitos conservados pela tradição, realimentados por sucessivas viagens à Europa, onde recolhem elementos de nobreza e distinção. Tais traços estão presentes na personagem Filomena, espécie de matriarca que tenta controlar as irmãs como controla as empresas da família. Fria, insensível e impenetrável, parece não ter afetos além dos que dedica à única sobrinha, filha de sua irmã Carmela e herdeira única de todos os bens, uma exceção no destino dessas irmãs, onde a esterilidade pesa como um estigma. Apenas Carmela escapou dessa herança trágica. O preço do privilégio é merecer o ódio de Filomena que a despreza e se julga a única qualificada para exercer, de fato, o papel de mãe para a sobrinha dileta, Isabela. Romana vive na Itália, envolta em certo mistério e Francesca está morta. Bem mais jovem que ela, seu viúvo de segundas núpcias, Marcelo, continua vivendo na mansão, ao lado de outras personagens, como Eliseu, marido de Filomena, Carmela e a filha. Em torno dessas mulheres os homens circulam e se revezam na ocupação e manutenção de espaço, como é o caso de Adalberto, ex-amante de Francesca e marido de Carmela, de quem vive separado após dilapidar o que ela levou de herança para o casamento. Paira também uma certa ambigüidade no relacionamento sobre um possível caso com Filomena: num passado que desconhecemos, no presente, ou como uma promessa de futuro?2 . Marcelo traía Francesca com Isabela, sua “Lolita ”3 , desde que ela tinha cerca de doze anos. Explica-se, pois, por outras razões além dos negócios (gerente geral do Frigorífico Ferreto) ou amizade, sua permanência naquela casa. Eliseu, submetido a Filomena e objeto de sistemáticas admoestações, mantém uma amante que, sem saber, compartilha com o mordomo/motorista da família, seu cúmplice e articulador de álibis para suas relações extra-conjugais. Posteriormente sabemos mais sobre Romana. Ela traz para o Brasil seu jovem namorado e, ao apresentá-lo, diz tê-lo adotado como filho, o que se afirma quando ele a mata para herdar seus bens. Ele logo se aproxima da jovem Isabela. Entregam-se a uma frenética paixão e planejam juntos a morte de Romana. Adalberto, como se revelará depois, era ameaçado (em cartas anônimas que recebia) por Eliseu, por ciúme de Filomena. Adalberto supunha que as cartas vinham de alguma testemunha do assassinato que cometeu: ele matou, com a cumplicidade de Francesca, o marido desta, na 2 Nossa perspectiva é a do telespectador. Não seguimos as sinopses da Emissora, onde consta, por exemplo, que Filomena se casou com Eliseu por pirraça, ao perder Adalberto, de quem gostava, para Carmela, a irmã mais nova. 3 Lolita , denominação da obra de Wladimir Nabokov e nome da personagem feminina, menina ainda, que desenvolve com o protagonista, que tem idade para ser seu pai, uma relação obsessiva de paixão. A obra deu origem ao filme homônimo, recentemente exibido nos cinemas de São Paulo. Leitura obrigatória para adolescentes na década de 60, Lolita passou a ser, para aquela geração, nome comum usado como sinônimo de ninfeta.
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expectativa de que ela se casaria com ele, seu amante. E assim, um a um, vai matando aqueles que poderiam denunciá-lo. Esse parágrafo exaustivo (muito longo), mas sintético (diz pouco sobre esse núcleo), tem por finalidade demonstrar como o autor se afasta da linha tradicional do melodrama. Para reproduzir apenas um fragmento da intrincada trama amorosa articulada pelo autor, temos que remontar o quebra-cabeças que a história propõe e fazer dois reconhecimentos: o primeiro, a seriedade com que ele encara seu ofício; segundo, o talento com que executa sua arte. Afinal, os índices de audiência não exigem tanto, sobretudo no que se refere à dimensão da telenovela que corresponde ao melodrama propriamente dito. Basta mexer com a emoção, conforme se apregoa. Provocar algum enternecimento, alguma lágrima, um pouco de compaixão ou um vago sentimento de indignação com a vilania. A expectativa da recompensa final anima o percurso cotidiano de desencontros e sofrimento. À telenovela não se pede que fale à inteligência. O sucesso das novelas mexicanas comprova a existência de um amplo mercado para histórias que não pretendem mais que tocar a emoção e entreter segmentos de público cujo gosto e possibilidades de escolha se encontram nos limites de suas possibilidades socioeconômico-culturais. Num mundo de pronunciadas diferenças, os grandes contingentes de população vivendo na fronteira da exclusão compõem um mercado que uma indústria, voltada exclusivamente para o lucro, pode explorar com êxito e ser, inclusive, altamente competitiva, vencer a concorrência e impor, por seu baixo custo, seu baixo padrão de qualidade4 . Durst fala sobre o processo de produção da Televisa: Eles não entendem a novela brasileira. Já vi mexicano dizer: “vocês são doidos, novela não é para ser boa não, novela é um produto industrial”. É como eles fazem: tem um estúdio muito grande e quando eles chegam de manhã já está divido o cenário um, dois, três, quatro, cinco e a câmera vai lá, liquida logo e acabou. O produto sai ruim como a gente vê: lineares, estúpidas. “Novela é isso, um produto industrial. Para que fazer bem feito, fazer o tal de padrão global de beleza, isso é loucura de vocês!” Eles não entendem isso. 4 Pesquisadores nacionais e internacionais são unânimes quanto à falta de qualidade das telenovelas da Televisa . É dela que falamos quando nos referimos a “novelas mexicanas”, pois são elas que chegam aos diversos países, principalmente os que tentam emergir economicamente na América Latina. Um exemplo, extraído da novela Maria do Bairro , pode ilustrar nossa posição crítica. Sem considerar a ingenuidade quase infantil das temáticas e a qualidade da interpretação de seus atores, detemo-nos apenas no aspecto técnico observado em uma cena, onde um casal (pais adotivos da heroína?) discute na sala, de pé, próximo ao hall de entrada da casa. A câmera focaliza o casal no calor da discussão, desvia-se, atravessa a parede, mostra um pouco da fachada da residência, onde um cachorro dorme; volta, atravessando a parede e focaliza novamente o casal “ainda discutindo”. A edição completa o trabalho, deixando visível um tarja preta vertical, cortando a tela. Na verdade, a divisão das cenas. O propósito de sugerir a passagem do tempo é evidente, mas o modo descuidado como foi feito evidencia o que significa produção industrial para essa Rede de Televisão e os segmentos de público que visa atingir.
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Assim, eu acho que fazer um pouco mais caprichado é real- mente uma coisa só brasileira.” 5 Um outro comentário sobre a novela mexicana vem de Benedito Ruy Barbosa, quando perguntado sobre a concorrência com a telenovela brasileira: Eu acho que depende da telenovela brasileira. Uma novela como essa Marimar chegar a vinte pontos de audiência é porque ela atinge um determinado público (...) Por curiosida- de eu sempre vejo tudo, pelo menos um capítulo ou dois para saber do que se trata, o que é. Eu fiquei espantado porque para os nossos padrões a novela é muito ruim.” 6 Outro aspecto que interessa destacar, com relação à complexidade amorosa, liga-se ao suspense, ao poder e às disputas que em torno dele se travam. Uma família como essa, aumentada e diminuída no curso da história, tem um cotidiano de rotinas em que a traição, já sublinhada, é uma entre outras atividades rotineiras como as tentativas de golpe que são armadas, desarmadas ou consumadas. Sob o teto das Ferreto só há uma personagem ingênua: Carmela. Se as relações da família constituem uma espécie de jogo em que cada jogada é calculada e os adversários buscam se superar a cada lance, fazem-no com a tensão contida, com a frieza e a fleugma de profissionais. Tudo se passa num clima de inimizade cordial com vencedores comemorando às escondidas e derrotados preparando novas jogadas ou revidando em outros campos. A nobreza cultivada nos espaços sociais da casa, de estilo renascentista italiano, veste de austeridade digna essas personagens. Máscaras que aí permanecem quando se recolhem e vão ser eles mesmos. Elas interagem com o cenário perfeito, impecável, de decoração pesada, suntuosa. Falamos da sala de estar onde a família toma seu café após as refeições e sorve o licor de todas as noites, sempre com destaque para o amplo sofá anteposto ao aparador que exibe insistentemente um vaso com dúzias de rosas vermelhas, sempre iguais como se fossem as mesmas. O café servido na sala é o processo metonímico (o café e o licor pelo jantar) que leva o espectador a inferir que acabaram de jantar. Um recurso usado para criar a impressão de que ele foi antecedido pela refeição, dispensando o acréscimo de cenas ou referência verbal7 . Acompanhando a telenovela, só temos na memória o registro de um único 5 Entrevista transcrita, pela autora, do vídeo “Administrando a Ficção” , TCC apresentado como requisito de conclusão do Curso de Cinema do CTR-ECA-USP pelo aluno Alexandre Klem Perer, em 1998. 6 Entrevista com Benedito Ruy Barbosa no Programa Roda Viva da TV Cultura, gravada em 17/02/97 e levada ao ar em 24/02/97, registrada e transcrita literalmente pela autora. 7 O recurso implica economia: os vazios de expressão são preenchidos com os signos do “leitor”. Trabalhase aqui com a pressuposição, com o implícito ou com o não-dito.
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jantar (explícito) nessa casa: o do noivado de Isabela com Diego. A casa não se abre para receber convidados, não tem trânsito de pessoas a não ser o de seus moradores. Duas festas e dois desacertos é o contabilizado: o traumático casamento de Isabela (com Diego), que não se consumou, e a festa promovida pelo “adotado” de Romana para convidados de seu meio, pouco convencionais e com a intenção evidente de escandalizar Filomena. Alguns criados cuidam da ordem e mantêm a mansão com ar de museu bem conservado. Tudo limpo, arrumado, no lugar. Um mordomo, também servindo como motorista (bonito, elegante, charmoso, talvez um pouco jovem para o que entendemos por mordomo), a quem já nos referimos. A cozinheira, senhora de meia idade, tia de uma das vítimas mortas na história, permanece nos limites de sua asséptica cozinha e uma arrumadeira cuida da ordem da casa. Nessa casa, é habito o criado servir água em cada quarto e preparar a cama antes que os moradores subam para dormir8 . Do ponto de vista do uso que dela se faz, é uma casa sem afetividade, sem marcas de calor humano. Tudo parece posto como cenário: frio e impessoal, por isso a idéia de museu, com seu tom de mistério, onde a vida é marcada cenicamente pelas flores sempre novas, frescas e apenas ligeiramente entreabertas. A cor vermelha das rosas envolve significados numa variação que vai da vida à morte (sangue), da paixão ao amor (que Filomena revela ter pelo marido depois que ele morre? De Carmela por seu jovem namorado?). Elas reúnem o paradoxo de conter a um só tempo a intensidade da vida e a permanente ameaça da morte. Filomena passa a maior parte do tempo em sua biblioteca – o que chamamos de sala de estar funciona mais como área de circulação. É de lá que ela administra bens e pessoas. É onde recebe para resolver questões das diversas áreas de seu comando, na posição sempre de autoridade, de quem, sentada em sua pomposa mesa de despachos, concede audiência aos subordinados, súditos e vassalos, entre os quais o próprio marido Eliseu. Não nos deteremos na análise de cada personagem. Estaríamos fugindo à proposta de apenas selecionar aspectos para uma visão de como se articulam diferentes cotidianos ficcionais dentro de uma mesma telenovela para estabelecermos possíveis homologias com outras. Podemos dizer que os elementos acima arrolados constituem uma síntese, na qual uma estrutura física (elementos de cenário, arquitetura, decoração, iluminação) constitui o espaço, onde alguns equipamentos mostrados (utilizados ou não) representam de tal forma o real que os silenciados ou ausentes ficam pressupostos para o receptor, a quem cabe o preenchimentos dos vazios de significado com os seus próprios. A tal ponto que uma saída da personagem por uma porta e a entrada por outra são sufi8 Um requinte que acrescenta um traço na composição do modo de viver da família, conferindo-lhe um modo de habitar em que o serviço de hotelaria ganha um toque imperial.
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cientemente indicativas para que se estabeleçam, a partir daí, noções de tempo decorrido e espaço percorrido. Umberto Eco oferece-nos apoio, quando utiliza a fábula para demonstrar as convenções que medeiam a relação autor-leitor do texto ficcional, ao enunciar: Para ler uma obra de ficção, é preciso ter alguma noção dos critérios econômicos que norteiam o mundo ficcional. Os cri- térios não estão lá – ou melhor, como em todo círculo hermenêutico, têm de ser pressupostos mesmo quando se tenta inferi-los a partir das evidências do texto. Por essa ra- zão, ler é como uma aposta. Apostamos que seremos fiéis às sugestões de uma voz que não diz explicitamente o que está sugerindo.9 Suficientes pelo conhecimento dos códigos que regem a representação ou, mais que isto, um modo de funcionamento da linguagem, entendida como processo de enunciação (Bakhtin) 10 que se verifica a partir da interação entre dois sujeitos sociais. É neste processo que emerge a linguagem, cuja apropriação se desenvolve no curso da vida, numa sucessão de aquisições envolvendo diferentes sistemas dos mais simples aos mais altamente complexos. O meio social e a prática interativa com os meios constituem, em si, um sistema pedagógico informal e expontâneo, conforme tentamos demonstrar na conclusão do capítulo anterior. Lembramos aqui os conceitos de interdiscursividade e de intertextualidade. Esses conceitos dizem respeito à questão das vozes de que fala Bakhtin. Com efeito, sob um texto ou um discurso ressoa outro texto ou outro discurso. De acordo com Fiorin: (...) a intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto. A interdiscursividade, ao contrá- rio, é inerente à constituição do discurso. “Dizer que a interdiscursividade é constitutiva é também dizer que um dis- curso não nasce, como em geral ele o pretende, de algum retorno às coisas mesmas, (...) mas de um trabalho sobre outros discursos”. (Maingueneau, 1987:88).11 Do mesmo modo que os discursos se interpenetram e produzem a competência discursiva, assim também com os sistemas complexos de comunicação, a compreensão de um discurso se dá a partir de outros discursos. No caso da telenovela, aprende-se a compreender esse produto ficcional a partir de outros discursos ficcionais e de outras telenove9 ECO, U. Op. cit ., p.118. 10 BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da linguagem . São Paulo, Hucitec, 1992. 11 FIORIN, J. L. (org.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade . São Paulo, Edusp, 1994. p. 35.
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Essas convenções do gênero dramático sempre existiram. Todavia o modo como elas se realizam em algumas telenovelas chamam à atenção pelo rigor com que buscam a verossimilhança e pela proposta de cada vez mais aproximar o cotidiano da telenovela do cotidiano comum do telespectador, diminuindo progressivamente o espaço a ser preenchido por ele, de modo a reduzir a consciência de que se está diante de uma representação. Consideramos a ausência de aparelhos de TV nas telenovelas como uma espécie de norma, cuja função pode ser a de evitar que o telespectador, ao ver o aparelho na tela, possa se lembrar de que também ele está olhando para o objeto e não participando diretamente da realidade narrada. Entendemos que a manutenção do esquecimento seja um recurso para evitar a quebra do envolvimento, do enlevo que o transpõe para o espaço ficcional. Ela só aparece raramente e em circunstâncias controladas: para uma notícia, para participação de uma personagem em algum programa – quando promove ao mesmo tempo a personagem candidata a estrela, o programa de que ela participa e a própria telenovela, que mostra a ascensão de um super-star , caso em que se promove o próprio meio TV. Tudo é tão perfeito, tão pleno de detalhes12 que o mundo da tela e o mundo diante da tela são duas realidades co-presentes, uma não sendo mais real ou ficcional que a outra. Quem visita a cidade cenográfica de Jacarepaguá – Projac – descobre um pouco da arte de produzir uma realidade análoga à que vivemos. O requinte e a sofisticação marcam cada grande ou pequeno detalhe, que vão da construção de cidades cenográficas à manutenção de viveiros com várias plantas idênticas entre si para serem substituídas nos cenários, mantendo-se a mesma aparência sempre fresca (que sugere os cuidados das personagens empregados/moradores daquele espaço). Segundo o “prefeito” da cidade cenográfica, a iniciativa de instalar o viveiro veio em resposta às reclamações de um telespectador que ligava protestando sempre que alguma planta, ligeiramente afetada no seu vigor pela ação do calor do ambiente de gravação, aparecia em cena. Voltaremos a falar sobre este assunto no tópico Ficção e Realidade. Hitchcock, falando sobre a realização do filme, faz comentários que se adequam perfeitamente à telenovela. Para o roteirista, diretor e ator: Com o aumento do custo dos materiais e da mão-de-obra, os cenários se tornam uma questão orçamentária muito sé- ria. Sua construção requer máquinas, carpintaria, alvenaria, pintura, em suma, tudo o que é necessário para a constru- 12 Sobre essa questão, lembramos a atenção vigilante do telespectador que reclama quando surpreende algum descuido ou erro de detalhe. Em O Rei do Gado a Associação dos Produtores de Couro protestou contra o uso da marca RG, no gado de Bruno Mezenga, porque na abertura da telenovela aparecia na parte central do corpo dos animais. Segundo aquela entidade, o produto ficcional poderia induzir a uma prática errada, de vez que a marca deve ser sempre colocada em extremidades do corpo do boi para não causar perda no couro, quando de seu processamento industrial.
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ção de uma casa, de forma que a platéia obtenha a realida- de que deseja. Um dos resultados disso foi a descoberta, ao longo dos anos, de uma fantástica variedade de modos de contornar esse problema pelo uso de modelos de todos os tipos, de truques e de uma variedade de efeitos especiais ou macetes de filmagem, todos substitutos realistas de uma realidade que se encontra além dos recursos (financeiros ou não) de qualquer estúdio.13 Na verdade, o que vemos na telenovela existe nela e para ela. É o caso da Pizzaria da Ana, tão convincente com sua bela fornalha flame jante, suas massas, mesa de antepastos e sobremesas, que Cuba, em séria crise de abastecimento, exibiu a telenovela com cortes das cenas gastronômicas com o objetivo de poupar sua população da exposição a tanta abundância. A uma ausência no espaço doméstico da mansão Ferreto, corresponde uma exuberância de alimentos e refeições do lado popular do mundo italiano da Mooca. Não só na Pizzaria da Mama, mas também na casa de Juca predominam cenas à mesa com a indefectível presença do pão e da comida caprichada da tia Nina. Como boa italiana, vive advertindo a sobrinha adolescente por comer pouco. Interessante observar a presença/ausência de cozinha: aparece algumas vezes na casa das Ferreto. Sua importância aí não é como espaço para preparo de refeições, mas como cenário para os encontros furtivos de Marcelo e Isabela 14 . Na casa de Juca, onde a mesa farta é uma constante, raras vezes vemos alguma pequena parte da cozinha. Na pizzaria, ela aparece algumas vezes como cozinha industrial e em meio a grande movimentação dos cozinheiros e funcionários. É bem maior a freqüência deste espaço na casa de Quitéria, o que é compreensível pela condição econômica dessa personagem. O que se supõe ser a cozinha (presença de geladeira, por exemplo), ou sala (presença de mesa, cadeiras), ou as duas coisas ao mesmo tempo, funciona como lugar onde ela recebe visitas (amigos, vizinhos), onde alimenta a mãe inválida, onde conversa com as outras personagens, faz, toma ou oferece café (no copo) às pessoas. Não registramos cozinhas nos núcleos de Helena, dos Noronha ou de Carla, embora nos dois primeiros elas sejam sugeridas e no último pressuposta. Um detalhe aparentemente sem importância e prosaico como ter ou não cozinha nas casas-cenário diz muito sobre as suas personagens moradoras e relaciona-se com um aspecto da cultura italiana, foco de atenção do autor. O gosto pelo comer, pelo oferecer comida, pelo cuidado no seu preparo, é traço importante dessa cultura. Ela é uma fonte de 13 GOTTLIEB, S. (org.) Hitchcock por Hitchcock: coletânea de textos e entrevistas. Rio de Janeiro: Imago, 1998. p. 249-250. 14 Numa cena cinematográfica, de grande ousadia, eles usam a ampla mesa da cozinha para consumar em ato sua incontrolável paixão.
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vitalidade, um prazer gustativo, visual e estético. A abundância de alimentos fala, talvez, do tempo de privação guardado na lembrança das guerras que as fizeram sonhar com a América e migrarem para o Brasil. Nosso italianismo não é da Itália de hoje. É da Itália que ficou perdida nos anos de sofrimento na Europa e que se conserva pela tradição cultivada por descendentes daqueles que se arriscaram na aventura do desconhecido e vieram plantar no Brasil suas sementes de esperança. Esses pioneiros só conseguiram colher outras esperanças. E tanto plantaram que hoje muitos frutos se colhem. Nossa cultura híbrida deve-lhes inúmeros traços e nosso gosto alimentar é muito sensível às finas ervas que aromatizam seus pratos: dos que aprendemos a fazer e dos que saboreamos nas cantinas italianas do Bixiga e nas “Pizzaria da Mama” que povoam os bairros de São Paulo 15 . A cozinha, pois, adquire importância no contexto dessas personagens, na medida em que falam de sua história, de seus hábitos e preferências, de sua personalidade, de seu nível social. Nesse contexto, também as atividades empresariais da família Ferreto ligam-se ao universo da alimentação, indo de um frigorífico a restaurantes e pizzarias. Do frigorífico predominam cenas dos setores administrativos, por onde transitam as personagens. As cenas do setor de armazenamento de carne bovina são estrategicamente distribuídas no decorrer da história. Elas retomam metaforicamente o elemento morte que perpassa a trama. Este recurso à recorrência temática via metáfora é um processo de produção endereçado a telespectadores atentos ao fio que conduz, no tecido do melodrama, o enredo policial dos assassinatos serializados que pontuam a narrativa, alertando para a ameaça que paira o tempo todo sobre a vida das personagens. Menos que cenas do frigorífico como um todo, mostradas a uma distância atenuadora, as cenas enfatizam a exibição dos animais mortos e o sangue. Transferem-se, desse modo, os signos visuais para outro campo de significados. Do ponto de vista semântico, eles passam do domínio alimentação para o domínio violência . Essa observação encontra apoio no fato de não aparecer na telenovela cenas onde se efetive o consumo de carne. Antes são as massas, os antepastos e sobremesas da pizzaria, os alimentos predominantes, ao lado das frutas, verduras e legumes vendidos por Juca na banca do Mercado Municipal. Também essa personagem dedica-se ao ramo de alimentos, de cujo comércio vive e sustenta a família. Com ela trabalham como seus funcionários outras personagens como o tio Vitinho, Marco (representa o trabalhador da favela que não se envolve no tráfico de drogas) e outro que faz entregas, trabalho que virá a ser realizado por seu filho Tonico. A carga e descarga de produtos horti-fruti, o serviço de entregas, os fregueses examinando os produtos e comprando, a personagem fazendo paga15 Como exemplo, no bairro onde resido, numa região praticamente sem comércio, são 26 pizzarias concorrendo na entrega de pizzas a domicílio.
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mento aos empregados, são atividades que compõem o cotidiano do mercado e o das personagens em suas rotinas de trabalho. Toma-se, assim, o mercado Municipal de São Paulo como cenário natural e ambiente cultural mostrado na ficção não só como um centro de comércio, mas como um elemento estético: na beleza de sua arquitetura, na arte de seus vitrais. Como elemento histórico-cultural praticamente ignorado pela população paulistana: o prédio antigo fala de nosso passado, guarda traços de ontem enquanto participamos do intenso dinamismo que hoje o caracteriza. Um traço da cultura italiana de forte presença na telenovela é o trabalho. Os núcleos da Moóca se marcam por intensa atividade, como é o caso de Ana e sua família. Ela trabalha muito. Acumula diversas funções na pizzaria. De gerente, garçonete, passando pela de chefe de cozinha e caixa. Acumula também a função de dona de casa e desempenha com zelo seu papel de mãe. Os filhos, por sua vez, estudam e sempre que necessário ajudam em tarefas diversas, substituem garçons ou colaboram como funcionários extras, em momentos de grande movimento na pizzaria. Juca passa seus dias envolvido com as atividades de seu pequeno comércio. Divide-se entre a administração, compras, controle do recebimento e entrega de mercadorias, atendimento a clientes e repreensões ao tio Vitinho, que gosta de gazetear no bar do mercado. Periodicamente abastece sua casa levando caixas com os produtos que vende. Parece satisfeito com seu trabalho e quer o filho trabalhando também. Chega a transferir seu período de aula na escola (que o rapaz parece não levar muito a sério) para dedicar o período diurno ao trabalho. Após uma tentativa de ajustar-se a um emprego no Frigorífico Ferreto, do qual acabou desistindo, Juca leva-o para trabalhar com ele. Assim, adquirem uma caminhoneta que ele passa a dirigir no serviço de entregas. O filho, antes motivo de grande apreensão, passa a ser parceiro do pai no negócio. Outra preocupação dessa personagem é com a filha que se recusa a estudar. Juca resolve arrumar-lhe um emprego. Sem qualquer exigência que não seja tornar seu tempo útil e motivá-la para a importância de ser produtiva, ele consegue uma vaga de copeira numa agência bancária. Servindo cafezinhos e tendo que interagir com funcionários e clientes, percebe-se diferente por seus problemas de linguagem. Sidney, o gerente (amigo de seu pai) vai lhe oferecer o grande apoio para melhorar sua competência lingüística. Sua fala, de quem freqüentou pouco a escola, é fortemente influenciada pelo contato com a tia – dona de uma linguagem híbrida ítalo-brasileira – onde a norma é a constante transgressão à norma padrão da linguagem oral. Essa característica, percebida pela personagem neste novo ambiente, vai levá-la a perder gradualmente a resistência à aprendizagem. Desencadeia-se assim um processo de mudança que começa pela incorporação de novos hábitos lingüísticos. - 58 -
Também será Juca quem aconselhará sua namorada Helena a arrumar emprego para o filho, em recuperação de dependência química, como complementação e apoio da terapia. Sua convicção de que o trabalho é condição essencial para uma vida saudável, manifesta em suas falas, irá convencer Helena e se confirmar com a melhora progressiva do rapaz e final recuperação completa. O trabalho, pois, na concepção da personagem Juca, ultrapassa largamente os estreitos limites em que é colocado no mundo do senso comum. Menos do que uma força a ser vendida por um salário, ele é um dos elementos que constituem o homem como tal: como agente de transformação da natureza, de produção de bens e de relações sociais, a base sobre a qual se edifica o mundo social humano. A consciência da importância do trabalho responderá por uma reavaliação do indivíduo, dotando-o de identidade, dignidade, auto-estima e de valor em si mesmo como ser capaz de criar, transformar e transformar-se. Outra personagem desse núcleo que valoriza o trabalho é Zé Bolacha, irmão de Juca. Caminhoneiro, gosta do que faz, ama a vida, celebrando-a em suas viagens. O vazio das estradas que percorre ele preenche com poesia. Amante de Guimarães Rosa, de García Lorca 16 e de Carlos Drummond de Andrade, entre outros, proclama-os e declama-os com solenidade inflada, oratória, num sentimento melodramático de expressão teatral. Como pudemos ouvir de Sílvio de Abreu: Mais que a história é o personagem que ensina. Zé Bolacha também vai passar algo mais para o público. O excessivo da personagem foi por culpa do ator Lima Duarte, mais que do autor.17 Se Zé Bolacha tem gosto pela literatura, Juca identifica-se com a música. Ouve óperas e quando pode vai a concertos. Personagens simples e rudes demonstrando que a sensibilidade não é incompatível com a situação social. Vemos aqui a pena do autor sinalizando para duas questões. A primeira referente à tênue linha que separa os gêneros considerados clássicos e os considerados populares18 . A segunda, trazendo implícita a crença na potencialidade humana de desenvolvimento e na sua possibilidade de alcançar níveis superiores de exigência, vindo a apreci16 Autores como Guimarães Rosa, poetas como Carlos Drummond de Andrade e García Lorca freqüentam as falas da personagem. O prosador, ao focalizar o Brasil regional, traz a poesia do falar caboclo do interior do país, enquanto os outros tecem seus poemas numa linguagem compreensível pelo povo. Em comum, o trabalho com os elementos sonoros da linguagem. Sobre García Lorca, Francisco Ivan lembra que ele é um poeta popular na Espanha: dramático, teatral, transmitindo a palavra pela audição. Poeta, dramaturgo de imensa percepção do plástico, joga com as possibilidades sonoras da palavra na sua luta que une liberdade e disciplina, poesia e realidade, os dois lados da mesma luta. “É o poeta que levanta o grande véu que encobre as coisas do mundo visível; que alimenta nossa alma e torna nossa vida menos feia e menos triste, cantando nossas alegrias e chorando nossas dores com seu sublime ofício da palavra”. (IVAN, F. A poesia barroca de Frederico García Lorca. Odisséia , Rio Grande do Norte: UFRN-CCHLA, n. 6, jul-dez/1998). 17 ABREU, S. Colóquio FEUSP , 30/10/96. (anotações da autora) 18 A música italiana (Verdi, Puccini, Mascagni etc.) é popular tanto na Europa como na Itália, observa Gramsci, “a música, em certa medida, substitui – na cultura popular – a expressão artística que, em outros países, se dá através do romance popular, [...] os gênios musicais obtiveram uma popularidade que inexiste no caso dos literatos [...] GRAMSCI, A. Literatura e vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 75-76.
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ar produtos culturais com maior nível de elaboração e complexidade. Poderíamos sintetizar dizendo que o pão sacia a fome, enquanto a manteiga fala ao paladar. Daí poderíamos extrair uma série de considerações sobre a concepção que o autor tem de cultura, de comunicação, de arte e da própria indústria cultural da qual participa como produtor. Mas não é o lugar nem a hora: paramos por aqui. Júlia Braga também fala muito das preocupações do autor. Pena que sua trajetória como personagem não tenha alcançado a plenitude19 . Ainda assim muito fez para aumentar a densidade da história e dar algumas lições de cidadania responsável. Ela entra na telenovela para representar a artista plástica que desenvolvia um trabalho social com os meninos da Candelária, no Rio de Janeiro, parte dos quais foi vítima da chacina que ela não conseguiu evitar e ficou conhecida como Chacina da Candelária (1993). Com um currículo de trabalho social no exterior, Júlia, a personagem, vai interessar-se pela vida na favela (do Morumbi – São Paulo) a partir da experiência de ser abordada por um “trombadinha”. Na perseguição que empreende para recuperar sua bolsa roubada, o garoto acaba sendo atropelado. Ela o socorre. Vai com ele ao pronto socorro mais próximo, que está lotado e sem condições de atender a urgência. O problema só se resolve com a explosão de indignação, exigências e ameaças feitas pela personagem, numa demonstração clara do desamparo do cidadão frente à falência das instituições que foram concebidas para ampará-lo nas vicissitudes. Com a recuperação do garoto, Arizinho, estabelece-se entre eles uma grande amizade. Interessada em interferir na sorte que lhe está reservada, Júlia inicia uma militância na favela que a coloca cara a cara com os traficantes, entre os quais o temido Duda Maluco, que fornece droga para seu sobrinho. A ação da personagem dura pouco. Ela é obrigada a se retirar da favela e da história. Aqui interfere a realidade, que é assunto para outro tópico deste trabalho. Júlia consegue salvar Arizinho. Quem não se salva é ela, vítima de uma arma assassina. Numa breve digressão, introduzimos um aspecto da violência que integra o cotidiano das personagens. Roubos (como o de Júlia), assaltos a banco (à agência bancária gerenciada pela personagem Sidney) ou de rua (sofrido e relatado por Jefferson) são rotineiros, como os assassinatos que vão eliminando personagens. O tráfico de drogas e a história do dependente completam o quadro de violência urbana que caracteriza a vida cotidiana da grande metrópole ficcional onde a diversidade socioeconômico-cultural funde num mesmo bloco vícios e virtudes, miséria e opulência, amor e ódio, vida e morte. Estes extremos compartilham o mesmo espaço como a favela cerca os prédios de luxo no bairro paulistano do Morumbi. A diversidade co-habi19 Segundo declaração de Sílvio de Abreu, houve censura nessa novela com relação aos meninos de rua e à droga. “Droga é tabu, não dá certo. Cena de meninos cheirando cola, inspirada no livro de Adélia Bezerra, foi cortada. Não podia ter criança perto de cena de droga. Trabalhar com menor é complicado: o juizado de menores interfere” (ABREU, S., colóquio FEUSP, 30/11/96).
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ta: os serviçais que tornam perfeito o mundo doméstico dos ricos são os moradores da periferia e das favelas. São eles que constituem a mão de obra responsável pela ordem que reina no mundo da abundância. Na própria casa, nas empresas, no lazer ou na rua, todos acabam se cruzando. Entre o medo e a ameaça vivem a insegurança integrada no cotidiano da casa, do bairro, da cidade. Na telenovela, a cozinheira (Diva) da família Ferreto é tia de uma das vítimas (Josias) que, por sua vez é o pai de Duda Maluco e trabalha como caixa na Pizzaria da Mama. A empregada de Helena mora na favela, como também Marco, empregado de Juca. Entende-se, portanto, que morar na favela não diz da marginalidade mas da pobreza, da desigualdade e da inviabibilidade de ter-se a dignidade preservada e de se chegar à cidadania plena vivendo como reféns de agentes do tráfico. Em meio às injunções desse cotidiano e à sombra das relações de conflito, viceja sutil e discreta uma relação amorosa terna e mansa entre dois jovens: Sandro e Jefferson, explicitada e realizada completamente no final da telenovela. Personagens construídas solidamente na sua individualidade, como seres dignos, íntegros, fortes, amados e admirados por suas famílias, vencem os preconceitos, as resistências e legitimam sua decisão de assumirem uma vida em comum. Ruptura do cotidiano? Não, reafirmação. Ficção? Não, realidade. Com a diferença de que os conflitos decorrentes de orientação sexual são absorvidos, disfarçados e escondidos na realidade concreta e na ficção estão sendo explicitados. A diferença está na demonstração e não na excepcionalidade da situação vivida pelas personagens. Tocar neste assunto é lembrar um componente da violência, quase sempre esquecido, que é o preconceito, a intolerância com suas conseqüências: a rejeição, a perseguição e, por que não, o extermínio? Outras questões envolvendo preconceito, como o racismo e a prostituição, focalizadas pelo autor, ampliam a densidade dramática da telenovela, reduzindo, ao mínimo indispensável, o fio do melodrama. Voltaremos ao assunto em outro tópico. Pretendemos ter demonstrado a estruturação do cotidiano ficcional a partir de uma base material (cenários, produção, etc.), sobre a qual se constrói o cotidiano das personagens, marcando-as por hábitos, preferências, um modo de ser e de viver, em interação com as relações sociais e com os projetos de cada uma. Por aí se manifestam seus valores e se estabelece a coerência que lhes confere uma espécie de humanidade ficcional. É da interação da personagem com o seu ambiente doméstico (casa, família, empregados) e de trabalho (relações de produção) que as relações de amizade, amor e ódio ganham sentido. Os pequenos e grandes conflitos serão possíveis e ocorrerão pelas diferenças que se estabelecem sobre uma base comum. Variam os cotidianos individuais, mas o cotidiano social em sentido amplo os coloca sob um mesmo teto. No caso, o do projeto do autor: o universo social da grande metrópole antropofágica, que tem a cidade de São Paulo como referência. - 61 -
A telenovela começa com 45 pontos de audiência e termina com mais de 54, alcançando, no capítulo final, 54 pontos no início, 60 dois minutos depois, atingindo o pico de 64 pontos (6,4 milhões de telespectadores)20 .
Gráfico 1
Observação: os asteriscos (*) neste e em outros gráficos indicam a audiência média calculada sobre as semanas que antecedem e sucedem o capítulo para o qual não consta, na imprensa, o dado correspondente. O gráfico demonstra que a telenovela manteve, em quase todas as semanas, o primeiro lugar não só do horário como de toda a grade de programação e, ainda, em relação às demais emissoras. Ele apresenta as curvas de audiência do primeiro e segundo lugares, sendo este último incluído como par de referência, variando o gênero de programa a que se refere. Em apenas duas semanas a audiência da telenovela registrou baixa de índice em relação ao seu par de referência e em outras cinco semanas registrou índice igual. 20 Folha de S. Paulo , 04/11/95.
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QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL O autor, ao focalizar a violência, armou uma trama complexa, fazendo girar em torno do eixo policial tramas amorosas e subtramas que articulam assuntos polêmicos, denúncias ou sinalizam problemas sociais. Tematiza
Denuncia a falência e inoperância das instituições
Critica
Quadro 7
Quadro 8
Quadro 9
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Ressalta
Quadro 10
Os problemas sociais focalizados colocam a ficção como um cotidiano em paralelo, onde os conflitos representados falam do e ao universo cotidiano concreto do telespectador. As questões lá suscitadas e as aqui vividas estabelecem identidade e fundem no mesmo diálogo os sentimentos gerados pelas tensões, dúvidas, angústias, medo. As pequenas alegrias acenam com a dialética. Os dois mundos vivem as mesmas alternâncias de tensão e distensão, tristezas e alegrias, guerra e paz. As soluções servem de inspiração. Chamam a atenção para os pequenos desencontros, humilhações dissimuladas, manifestações de intolerância. No tempo livre, a reflexão do telespectador é convocada a rever o seu dia de hoje, preparar-se para o de amanhã e considerar o modo de encaminhamento que lhe sugere a ficção para questões similares.
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A TELENOVELA EXPLODE CORAÇÃO • FICHA TÉCNICA De: Escrita por: Direção Geral: Horário: Emissora: INÍCIO: TÉRMINO:
Glória Perez Glória Perez Denis Carvalho 20h30 Rede Globo 6 de novembro de 1995 3 de maio de 1996
Quadro 11
• PERSONAGENS
ADILSON GAIVOTA: Eri Johnson ALÍCIA: Nívea Maria AUGUSTO: Elias Gleiser BEBETO: Guilherme Karan BETTY: Renée de Vielmond CATTY: Roberta Índio do Brasil CÉSAR: Reginaldo Farias DARA: Tereza Seiblitz DONA LUCINEIDE: Regina Dourado EDU: Cássio Gabus Mendes EUGÊNIA: Françoise Forton GUGU: Luiz Cláudio Júnior HEBINHA: Sônia de Paula IANCA: Leandra Leal Braz IGOR: Ricardo Macchi IVAN: Herson Capri JAIRO: Paulo José JÚLIO FALCÃO: Edson Celulari LARISSA: Helena Ranaldi LAURA: Karina Perez LEANDRO AVELAR: Odilon Wagner LOLA: Eliane Giardini
LUIZA: Ester Góes. MARCOS: André Luiz MARISA: Débora Duarte MILA: Zezé Polessa MIO: Ivan de Albuquerque MIRTES: Carla Tausz NATASHA: Cássia Linhares ODAÍSA: Isadora Ribeiro PATIA: Stela Freitas. PEPE: Stênio Garcia RIQUE: Patrick Alencar ROSE: Paula Burlamaqui SARITA VITTI: Floriano Peixoto SERGINHO: Rodrigo Santoro SALGADINHO: Rogério Cardoso SONINHA: Paula Lavigne SORAYA: Laura Cardoso TADEU: Daniel Dantas TOLENTINO: Cláudio Cavalcanti VERA: Maria Luiza Mendonça VLADIMIR: Felipe Folgosi Quadro 12 YONE: Débora Evelyn
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APRESENTAÇÃO Tradição e modernidade se confrontam numa história de amor entre um grande empresário e uma cigana. O encontro, mediado pelo computador, dá-se no espaço da Internet. Põe em relação duas culturas: a cultura brasileira do grande centro urbano (Rio de Janeiro) e a cultura dos ciganos1 , com seus usos, costumes, tradições, defendendo a preservação da coesão do grupo e de sua identidade. A principal diferença entre ambos é de ordem cultural e não econômica, dado que os ciganos são prósperos comerciantes. A relação com os pobres estabelece-se pela mediação da antiga babá da cigana e dos funcionários que trabalham para o empresário e não entre o par amoroso, o que aponta para um pequeno desvio com relação às “cinderelas” que desfilam pelas novelas em geral e tão ao gosto da crítica de TV.
COMENTÁRIOS CRÍTICOS Toda obra quer desvendar a emoção humana. (Glória Perez)2 Ambientada no Rio de Janeiro, a telenovela vai desenvolver uma trama amorosa articulada pela Internet. A cidade é um lugar, um espaço, um cenário, uma referência, mais que a cidade do Rio de Janeiro. A geografia do Rio de Janeiro não parece ter sido espaço para locações. As tomadas aéreas, menos que um percurso, sinalizam um local onde se desenvolve a história e serve para marcar a noite e o dia. O computador é co-protagonista da história, imprimindo-lhe uma marca de modernidade. Ele é um modo de datar a história, na qual inaugura uma relação amorosa que vai ser o cerne da trama, aproximando um jovem professor de informática e uma jornalista, que se escondem sob falsas identidades e permite a corrupção que a ação pirata de outro computador vai descobrir. A Internet, ainda pouco conhecida, estabelece a via que põe em contato dois mundos estranhos. Dificilmente se daria a aproximação e um romance entre um grande empresário e uma jovem cigana pelos meios convencionais, ou, mais exatamente, pelo acaso. Este age sempre criando estranhas circunstâncias na realidade, mas não é a regra ou uma convenção como acontece ser na criação ficcional. A autora da telenovela desvia-se dessa solução, buscando e extraindo do real o que ele tem de mais moderno, a tecnologia que começa a abrir para os usuários domésticos de computador o novo mapa da comunicação que apaga as fronteiras e supera as distâncias, sejam elas geográficas ou sociais. A ficção dá um passo a mais em direção ao realismo e potencializa-se o verossímil narrativo. A modernidade do mundo desenvolvido, rico e charmoso, trafegando 1 Ver JAKUBASKO, D. O tratamento das questões sobre religiosidade/misticismo da cultura cigana dentro da telenovela Explode Coração . 1998-1999. (Projeto de Iniciação Científica, em desenvolvimento, apoiado pela Fapesp e sob orientação desta autora) 2 Material de divulgação da telenovela, preparado pela TV Globo para o lançamento de Explode Coração .
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pelas infovias, encontra o mundo arcaico e conservador da cultura cigana. Hábitos, valores e tradições confrontam-se criando o ambiente em que a trama se desenrola em meio a conflitos e obstáculos. O par amoroso que daí se forma vem carregado de oposições. Júlio Falcão é um homem poderoso, influente, grande empresário, bonito, em plena maturidade, cogitado para concorrer a uma vaga no Senado, casado e pai de um garoto de dez anos aproximadamente. Não mantém boas relações com a mulher com quem sustenta um casamento desgastado e convencional. Tem a seu redor a prima da esposa, que exerce uma espécie de governança na mansão da família, cuida do filho daquele que é o grande amor de sua vida com o objetivo único de estar perto dele. Sabendo que o casamento vai mal, vê crescer a sua possibilidade de ocupar o lugar da prima. Júlio busca preencher um pouco do vazio de sua vida navegando pela Internet à procura de amigos aos quais possa falar de suas mágoas e descontentamentos. Dara é uma jovem que encontra no estudo o caminho para o conhecimento de uma outra cultura, onde vigem valores em desacordo com os de sua comunidade de origem, sobretudo no que diz respeito à condição da mulher e às suas liberdades de escolha, entre as quais as relacionadas à vida profissional e amorosa, principalmente 3 . Embora preze os valores básicos de sua cultura, reluta em aceitar o casamento contratado por seus pais – em vias de se consumar – e o destino de submissão e trabalhos domésticos a que está sujeita a mulher cigana. Bonita, forte, determinada e sonhando com outra vida, apóia-se nos amigos de faculdade para vencer resistências e libertar-se do rigor das normas impostas pela tradição que governa seu povo. Divide-se entre dois universos. Em sua casa, refugia-se no computador onde busca fortalecer seu contato com o mundo lá fora. Transita pela Internet, procurando amigos, soluções, um caminho de fuga. Neste espaço sem barreiras, encontra a oportunidade de ser ela própria, com suas dúvidas e conflitos. Aí pode pedir ajuda, protegida pelo anonimato. As muitas diferenças entre eles serão responsáveis pelos obstáculos que impedirão que se consume a união do par, enquanto as afinidades, representadas pela identidade dos conflitos pessoais e da busca na qual estão empenhados, respondem pela motivação que os manterá lutando um pelo outro. Do ponto de vista do melodrama, aí estão dados os elementos deflagradores. O percurso para a realização efetiva da relação amorosa vai ser longo e árduo pelos obstáculos que se colocarão e se removerão do caminho dos protagonistas no decorrer dos meses de duração da telenovela. 3 As mulheres ciganas só estudam o suficiente para aprenderem a ler, escrever, fazer contas; as famílias mais tradicionais contratam professora particular, a fim de que as meninas não sejam assediadas (Boletim de Divulgação da TV Globo n. 1191) ver também SANT’ANA. M. L. B. Os Ciganos (a obra consta da bibliografia). No caso, Dara teve permissão para fazer o colegial, mas só freqüentou, às escondidas, as aulas do cursinho e conseguiu passar no vestibular graças ao auxílio da babá (Odaísa), “com quem fazia longos passeios diários”.
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O modo como se desenrolarão os acontecimentos e os fatores envolvidos são, a nosso ver, os merecedores de atenção quando se tem por objetivo a análise da telenovela. Se, de certo modo, conhecemos ou julgamos conhecer um pouco da nossa cultura com a diversidade que lhe é própria e as peculiaridades que marcam os diferentes segmentos econômicos que a compõem, não é difícil compreender os valores que regem a esfera de circulação do protagonista, aí incluídos os de sua própria classe e os das classes mais baixas que constituem o conjunto dos que colaboram com sua força de trabalho para o êxito da empresa, do empresário e de seus empreendimentos, entre os quais sua incursão no campo político partidário. O elemento novo, quase estranho ou apenas vagamente conhecido, é a cultura cigana, com seus usos, costumes e tradições. Deles chegamnos, via de regra, informações imprecisas, permeadas de estereótipos articuladores de rejeição e instauradores do preconceito. Aqui, não se trata de um privilégio recente, de classe ou do nosso país. Eles nos chegam por séculos de tradição. Perseguidos, sem território, espalhados pelo mundo, sobrevivem como excluídos. Não se integram às sociedades que os “acolhem”, preservando o grupo e sua identidade pela conservação de seus costumes ancestrais e suas tradições. Na data memorativa dos cinqüenta anos do Holocausto, os ciganos são sistematicamente mencionados junto com os judeus e os negros quando se tematiza essa página hedionda da história. Todavia, nunca passam do terceiro termo, entre os grupos objeto da referência. O horror do nazismo nos chega associado ao extermínio de judeus. Pouco sabemos sobre a perseguição aos negros, nada sobre o acontecido aos ciganos. Focalizar essa cultura, opção da autora, foi, de certo modo, romper um pouco esse silêncio. Mesmo sem a contextualização no âmbito de sua história na condição de povo4 , focalizar o tema já assinala o olhar da autora em direção a um conhecimento que se pode promover dentro dos limites da ficção. De um lado, o descortinamento de um saber específico sobre o grupo e a conseqüente tentativa de desconstrução de estereótipos a partir de raciocínios de uma lógica simples do tipo: se são comerciantes do setor de automóveis, de material de construção, arquiteto, no caso de Igor, por exemplo, como pode ser qualquer cidadão; se são prósperos e até mesmo ricos5 , têm princípios rígidos, vivem com muito conforto, como podem – como crê o senso comum – ser ladrões que ameaçam nossas casas, nossa boa fé, nossas crianças? De outro, a comparação entre duas culturas: a nossa e a deles. 4 Os poucos registros históricos indicam que os ciganos existem há pelo menos quatro mil anos. Mas hoje, espalhados pelo mundo e confundidos com a sociedade moderna, eles ainda preservam os mesmos costumes de seus antepassados nômades. (Boletim, Ibidem ) 5 A novela de Glória Perez focaliza ciganos ricos, moradores de bairro de classe alta que não se vestem como ciganos no seu dia-a-dia, de maneira que não podem ser identificados na rua. Levam uma espécie de vida dupla: os jovens freqüentam colégios, têm contato com pessoas fora do círculo cigano, mas são cercados por um regime de tradições e princípios que não lhes permitem viver como os adolescentes atuais. (Ibidem )
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Nesse ponto, coloca-se em destaque um aspecto que a autora não sublinha. De novo, é a lógica elementar que provoca inferências sobre a diferença a partir do contraste. Estamos nos referindo ao tratamento dispensado aos representantes da terceira idade presentes no núcleo cigano e no núcleo da família do melhor amigo de Dara, Serginho. Aqui é o sogro (Augusto) da mãe (que constituiu nova família) que será discriminado, insistentemente desqualificado por não assumir o papel do idoso (ausente, incapaz) que se quer que ele seja. Pelo contrário, ele irrita permanentemente a nova nora com sua energia, vitalidade e gosto pela vida. Cheio de projetos, entre os quais o que realiza ingressando em uma faculdade, ele é doce, terno, bem humorado, de bem com a vida. Sensível, administra seus imóveis (nos quais ele parece ter especial interesse) e acalenta romanticamente o sonho de encontrar uma companheira. Chega a fazer a corte à avó de Igor, a matriarca dos ciganos. Infelizmente sem sucesso devido à velha paixão que ela alimenta desde a juventude pelo “patriarca” de seu grupo (Mio, avô de Dara). Esta, ao contrário, venerada pela comunidade dos ciganos como pessoa sábia, atua como conselheira sendo sempre sua a última palavra nas decisões dos mais jovens. Dona de invejável autoridade, cobra a obediência aos princípios da tradição e faz cumprir as normas da comunidade. Vive cercada de cuidados, respeito e carinho. Para esse grupo, a afirmação da dignidade é proporcional ao tempo de vida: quanto mais velho o indivíduo mais sábio e merecedor de respeito. Para o outro grupo, credita-se ao idoso apenas o valor de excesso. A diferença natural de idade não é diferença, nem natural: se ele já cumpriu sua jornada de produtividade social, insere-se como excrescência, mesmo que esteja, do ponto de vista da acumulação da experiência, no apogeu da sua capacidade. No caso de nossa personagem, sua vida ativa constitui objeto de crítica e o que deveria ser considerado saudável configura-se, na ótica da insensível crítica, que é sua nora, como ridículo. Nossa leitura do contraste6 aponta para duas atitudes diversas nas duas culturas em confronto, resultando numa pontuação da autora sobre a situação de exclusão desse segmento social na nossa sociedade. Poderíamos dizer muito de nossa indignação sobre esse fato, que vai da desatenção do poder público à sociedade como um todo, vindo se alojar na família, sobre a qual a pressão se exerce. Mas, estaríamos ultrapassando a telenovela e avançando sobre o que a autora não avançou. O destino, como uma força supra individual que governa o mundo e as pessoas, traço forte da cultura cigana, perpassa toda a história e se torna insistente reiteração. Pelas observações que fizemos durante sua exibição e por algumas sondagens que não chegaram a se configurar como pesquisa, a questão passou a ser discutida por telespectadores e 6 Glória Perez, comentando as duas culturas, diz que o que é antigo nem sempre é velho e ultrapassado; a gente mistura muito essas noções. Os ciganos têm um respeito absoluto aos mais velhos, o que considero muito revolucionário para os dias de hoje. ( Boletim, Ibidem )
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considerada como uma verdade comprovada, inclusive entre um número significativo de pessoas com nível superior de escolaridade. A crença num destino inexorável deve ser vista com respeito no contexto de outras convicções dentro da cultura cigana. Para nós, a aceitação de outras forças que não a do indivíduo e da sociedade delineando o percurso de cada um equivale à negação do papel ativo do sujeito e de sua influência na escrita, seja de sua história individual, seja da história da sociedade em que ele vive. Essa negação – consubstanciada na crença no destino – recoloca-o diante da inutilidade de lutar contra forças superiores a ele para operar mudanças e o projetam na inercial tendência ao conformismo, o que em termos da realidade brasileira é a situação predominante. Extrai-se, nesse caso, da cultura cigana, o que fala ao comodismo de cada um para ser incorporado como elemento de verdade, num raciocínio falso e distorcido de que aquela “verdade provada” no mundo da ficção, funcionando no contexto particular da outra cultura, tem validade universal e se aplica às diferentes culturas. Colabora para essa lógica a idéia implícita no encontro virtual de Júlio e Dara que instaura o melodrama. Júlio está em Tóquio, é brasileiro e mora no Rio de Janeiro, onde também está e mora Dara. A distância vencida e o encontro em tais circunstâncias aponta o “destino” como responsável por esse insólito e romântico acaso. Neste sentido, o excesso de ênfase parece ter transbordado indo contaminar a audiência da telenovela e a vontade daqueles que esperavam um argumento para superar o conflito entre a ação e a omissão. Isso cria a oportunidade de fazer retroceder um processo incipiente e ainda frágil de afirmação da autonomia do sujeito, a quem cabe a responsabilidade de produzir duas histórias: a sua própria e a do grupo a que pertence. Em um país ainda semi-anestesiado pela ditadura e mal desperto de anos de tutela do cidadão, por longos anos de opressão, de adversidade, desigualdade social e incertezas, o destino afigura-se como o caminho mais curto para explicar a realidade fantástica que tomou conta do nosso mundo econômico, social e político. Vivemos no país do absurdo. Para Dias Gomes, o absurdo faz parte do nosso cotidiano. Nesse sentido, longe de ser um privilégio da ficção, ele nela penetra como elemento da realidade. Não é o caso do destino, de que falávamos, mas da complexidade e do insólito que o tornam uma saída mágica e, por isso mesmo, alienadora. O desaparecimento de uma criança do núcleo de personagens do subúrbio de Maria da Graça, cuja busca se desenvolve na trama paralela, é o grande achado da autora. Ela chega a renunciar ao seu papel de articuladora da ficção para dar voz à realidade de mães desesperadas pela perda efetiva de seus filhos, trazendo-as para amplificação de seus apelos no interior do espaço ficcional da telenovela do horário nobre. Se as mães ganharam a maior tribuna do país, a telenovela ganhou audiência, admiração e potencializou o efeito de verossimilhança, incorporando - 71 -
o que talvez pudesse ser denominado docudrama, uma espécie de documentário dramatizado, numa comprovação explícita da potencialidade de sincretismo do gênero. Na ficção, Gugu, a personagem (seis anos de idade) desaparecida, após ter sido seqüestrada e vendida a um casal de estrangeiros - fugido e sobrevivido algum tempo perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo - experimenta situações dramáticas e comoventes, vividas por nossas crianças. Situações comuns nas ruas das grandes cidades brasileiras: a exploração do trabalho infantil como as vendedoras de chicletes nos sinais de trânsito, tendo que entregar todo o dinheiro para um adulto tirânico7 , sendo repelidas pelas pessoas que não deixam seus filhos se aproximarem delas. Gugu sofreu o desalento de estar perdido, dormir na rua tendo como companheiro um cão tão desamparado quanto ele próprio. A oportunidade foi bem aproveitada para demonstrar as motivações capazes de produzir menores em situação de rua, e a condição de reféns em que são colocados pelos adultos que os exploram. À preocupação da autora com crianças em condições de perigo e exclusão acrescenta-se um olhar de simpatia para a drag-queen Sarita. Ela mostra, através de seu trabalho humanitário junto às crianças nascidas de pais aidéticos, seu lado sensível e solidário, dedicando parte de seu tempo e seu lado artístico, para divertir crianças em instituição administrada por Lucinha Araújo, mãe de Cazuza8 . Essa articulação possibilita também divulgar e promover o trabalho social por ela desenvolvido, além de trazê-la para a ficção representando a si própria e lembrando a dolorosa realidade da causa a que se dedica. A telenovela promove valores humanos fundamentais ao abrir-se para um drama real, convocar cidadãos e instituições a se unirem em torno de uma bandeira, que é a recuperação e atenção geral para com a criança em situação de risco, problema que cresce em ritmo proporcional ao ritmo do empobrecimento, da violência e do descaso do poder público com as questões sociais. Roubar crianças deixa, pela ótica da autora, de ser uma ameaça posta por um grupo étnico (no caso, os ciganos) a partir de um mito cultivado pelo mundo do senso comum para ser obra de indivíduos ligados a grupos com ramificações internacionais, verdadeira rede que negocia e obtém grandes lucros com o comércio de crianças para fins que variam da adoção por casais estrangeiros, à prostituição, pedofilia, uso de órgãos para transplante, conforme também aponta o filme Central do Brasil, de Walter Salles 9 . Na tele7 Segundo Hollo, a triste história de Gugu é a mesma que poderia ser contada por 3,5 milhões de menores que trabalham praticamente sem remuneração. Na lavoura, na indústria e no comércio, eles são submetidos a longas jornadas de trabalho e recebem migalhas como salário, quando recebem. (HOLLO, K. Contigo! , n. 1074, de 16/ 04/96). 8 Agenor de Miranda Araújo Neto (RJ 1958-1990). Cantor e compositor, consagrado por sucessos como “Brasil” e “O Tempo não pára”. Após a morte do filho aidético, Lucinha fundou a instituição “Viva Cazuza”, para atender crianças portadoras do vírus HIV. 9 O filme mostra, no seu início, Josué (Vinícius de Oliveira) sendo entregue, mediante pagamento, por Dora (Fernanda Montenegro) a um receptador para comercialização, no submundo do tráfico, de órgãos humanos. Na trama, ela se arrepende, rouba o garoto e foge com ele para Bom Jesus do Norte em busca do pai do menino.
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novela, o agente responsável pelo rapto de Gugu é o próprio namorado da mãe, que se fazia passar por empresário e colaborador da polícia. Os valores mais genuinamente humanos situam-se, na telenovela, nos núcleos dos estratos sociais mais baixos, no subúrbio de Maria da Graça. Aí os conflitos se mostram, as pessoas se estimam, brigam, se desentendem e se entendem. Entre os representantes da classe dominante prevalece a desagregação familiar, as disputas pelo poder, o individualismo, o artificialismo das relações sustentadas pelo interesse. O filho de Júlio Falcão constitui exemplo de solidão e abandono. Ele pouco representa para a família em dissolução, onde cada membro luta contra o outro de forma velada ou explícita. A imensa mesa de jantar, sempre arrumada e vazia, denuncia a ausência de vida da mansão e o isolamento da criança perdida no luxo daquele espaço frio e impessoal. Sua mãe é uma pessoa infeliz, meio neurótica, egocêntrica, em busca desesperada de se encontrar, resolver-se emocionalmente, ser feliz. O desaparecimento de Gugu parece ter sido o clímax da história. Provocou uma mudança significativa no cotidiano de Maria da Graça. Solidária e participante, o conjunto das personagens que vive nesse espaço se comove e envolve na procura do garoto. Sem pai na história, desperta em todos um sentimento de proteção e carinho. Seu amigo preferido é o roqueiro Bebeto, cover de Elvis Presley e famoso pelo enorme topete, a quem imita com muita graça. Ele centraliza atenções, se diverte e diverte os moradores do bairro com sua simpatia, esperteza e graça. Odaísa, sua mãe, trabalha, enquanto amigos e vizinhos se alternam na atenção a ele. Se o cotidiano sempre conflituoso, barulhento e alegre desse grupo agrega a preocupação, a tristeza e a busca, o de Odaísa se transforma numa peregrinação por instituições de menores, delegacias de polícia, procura de pistas e pedidos de ajuda a amigos, entre os quais a cigana Lola, a quem pede para ver nas cartas se Gugu está vivo. Ao recorrer à Associação de Mães de Crianças Desaparecidas, junta-se a elas. Atrai os meios de comunicação e os envolve na intensificação da campanha para recuperação de crianças desaparecidas, da personagem e das reais. Este núcleo, que se aproxima do perfil de classe média-média, alterna-se entre as rotinas de trabalho – marcado principalmente pelas atividades da lanchonete de Salgadinho, um foco de atrito da família entre si e com empregados, além de ponto de encontro dos membros desse grupo – e as atividades de entretenimento na Gafieira Estudantina (onde Odaísa dança tango, Bebeto dá seus shows de rock , Sarita se apresenta). Alguns acontecimentos na Estudantina fazem-se preceder de grande preparação, antecipando, com a ansiedade, a “festa”, cuja expectativa colore o cotidiano e o preenche com uma espera cheia de vitalidade e alegria. Lembra o carnaval, como um momento de liberação a projetar sobre a opacidade de seus cotidianos sem perspectivas um pouco de luz, brilho e charme. - 73 -
No núcleo dos ricos e poderosos, as relações pessoais processam-se como relações de interesse e a alegria de viver é um horizonte distante difícil de ser alcançado. O próprio cotidiano ficcional, sem nitidez, aponta para o vazio ao restringir o espaço do protagonista, Júlio Falcão, ao ambiente de trabalho. Esse núcleo é constituído por personagens com vínculos familiares fracos: Leandro Avelar (sogro de Júlio e dono das empresas Avelar), Júlio, Vera (mulher de Júlio) e Eugênia (a prima) compõem um conjunto familiar, onde cada qual vive sozinho, fechado em sua própria solidão, embora compartilhando o mesmo teto. Os ciganos, ao contrário, extraem mais prazer da vida. Vivem em permanente estado de festa. Suas rotinas desenvolvem-se em pequenos coletivos, seja para as tarefas menores do dia-a-dia, seja para a preparação e realização de rituais, dos pequenos ou grandes acontecimentos. Quando o grupo é uma família pouco numerosa, como a de Dara (mais parecida com a nossa), as relações de amizade se irradiam para a vizinhança e para os amigos e são marcadas pela intensidade que é própria de sua cultura, presentes no amor, no ciúme, na indignação. Pode-se considerar a paixão como a mola propulsora de seu comportamento. A autora põe assim em confronto dois mundos fascinantes. De um lado, a modernidade que avança sem limites para o novo, supera o tempo e o espaço: transformando tudo, causando êxtase e perplexidade. De outro, a tradição que paralisa o tempo pela conservação de valores milenares, sustentada na oralidade, na família e na comunidade. Dois projetos de sociedade dos quais se pode extrair um projeto novo, uma síntese das duas, onde o avanço não faça retroceder a humanidade tão duramente conquistada no processo histórico de formação do homem. A telenovela começa com 43 pontos de audiência e termina com 54. Ela passa a manter esse índice, com pequena oscilação para baixo, a partir da Campanha das Crianças Desaparecidas . Termina com 55 pontos de audiência deixando para a sociedade a continuidade da Campanha da Mães da Cinelândia, da Sé, e do Brasil, que ainda hoje dá mostras de sua vitalidade nas listas de premiação da Loteria Federal, por exemplo, onde parte do espaço é ocupado por fotos de crianças procuradas. Preocupação retomada pela TV Globo, três anos depois (maio de 1996 maio de 1999), ao introduzir chamadas exibindo fotos e identificação de crianças desaparecidas. Em junho (1999) também passou a veicular propaganda institucional com apoio na campanha desenvolvida na telenovela (Explode Coração ) para ressaltar sua função social e justificar o slogan “Rede Globo: um caso de amor com você”.
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Gráfico 2 O gráfico apresenta uma falha de cinco semanas, no meio do período de exibição da telenovela, por falta de fornecimento, para a imprensa, dos índices medidos pelo órgão de pesquisa. A telenovela mantém-se em primeiro lugar, exceto em uma semana que é superada por um especial da Xuxa. Por prudência, não elaboramos nenhuma média para preencher os vazios por serem longos os espaços e a manipulação não pareceu ser uma prática adequada. Ainda assim, o gráfico permitiu-nos observar o aumento de audiência das últimas semanas em relação ao período inicial, que variava entre 40 e 46, subindo com oscilação entre 48 e 54. Essa elevação coincide com a deflagração da Campanha das Crianças Desaparecidas e deixa bem abaixo (10 pontos em média) o segundo colocado.
QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL Tematiza
Quadro 13
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Efeitos
Contribui
Quadro 14
Quadro 15
O que percebemos nessa telenovela é que as questões aparecem sem estarem acentuadas. Chegamos a algumas delas, conforme dissemos, por inferência. Assim, não percebemos um modo muito claro de trabalhar essas questões, a não ser a que se refere às crianças desaparecidas. Esta sim, apresentada com clareza, coragem e intensidade dramática. Contudo, trata-se de um acontecimento lateral e não central da história. Sugere um acréscimo mais que um projeto da obra. O próprio cotidiano da história não apresenta uma marcação, uma regularidade, deixando as personagens meio soltas e à mercê dos acontecimentos. Do ponto de vista do cotidiano doméstico, as refeições, marcadores das mudanças de período do dia, não são freqüentes, nem muito regulares. Quando aparecem, aproveita-se a oportunidade para mostrar, um após outro, vários núcleos à mesa. De um modo geral, os laços frouxos que prendem a telenovela ao cotidiano parecem contribuir para distanciá-la da realidade concreta e dar-lhe um acento ficcional. O que denominamos contribuições, no quadro acima, pode não chegar a sê-lo para boa parte da audiência pelas razões já enunciadas, ou seja, por não ter merecido um tratamento que chamasse a atenção para as questões dispersas na história. - 76 -
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A TELENOVELA O REI DO GADO • FICHA TÉCNICA De: Escrita por: Direção Geral: Horário: Emissora: INÍCIO: TÉRMINO: • PERSONAGENS
Benedito Ruy Barbosa Benedito Ruy Barbosa Luiz Fernando Carvalho 20h30 Rede Globo 17 de junho de 1996 14 de fevereiro de 1997
Quadro 16
PRIMEIRA FASE BEPO: Osmar Di Pieri BERDINAZI PATRIARCA: Tarcísio Meira BRUNO MEZENGA CRIANÇA: Antônio Castiglioni MEZENGA PATRIARCA: Antônio Fagundes DONO DA VENDA: Cláudio Corrêa e Castro GEREMIAS: Caco Ciocler GIÁCOMO GULHERME: Manoel Boucinhas
GIOVANA: Letícia Spiller HENRIQUE: Leonardo Brício BRUNO: Marcelo Antony NENA: Vera Fischer MARIETA: Eva Wilma TETSUO: Yamay Keniche E OUTROS Quadro 17
SEGUNDA FASE APARÍCIO: Almir Satter BRUNO BERDINAZI MEZENGA: Antônio Fagundes CHIQUITA: Arietha Corrêa DELEGADO JOCIMAR: José Augusto Branco DIMAS: Paulo Coronato DONANA: Beth Mendes DR. BORDON: Renato Master DR. FAUSTO: Jairo Mattos DR. WALDIR: Tadeu de Pietro GERALDINO: Marcelo Galdino GEREMIAS BERDINAZI: Raul Cortez INVESTIGADOR Clóvis: Amilton Monteiro JACIRA: Ana Beatriz Nogueira JUDITE: Walderez de Barros JÚLIA: Maria Helena Pader LÉA: Sílvia Pfeiffer ZÉ DO ARAGUAIA: Stênio Garcia
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LILIANA: Mariana Lima LUANA: Patrícia Pillar LURDINHA: Yara Janra MARCOS: Fábio Assunção MARIETA: Glória Pires MARITA: Luciana Vendramini OLEGARIO: Rogério Márcico ORESTES: Luís Parreira RALF: Oscar Magrini REGINO: Jackson Antunes ROSA: Ana Rosa SARACURA: Sérgio Reis SEN. CAXIAS: Carlos Vereza SUZANE: Leila Lopes TAVINHO: Guilherme Fontes LIA: Lavínia Vlasakl Quadro 18
APRESENTAÇÃO Essa telenovela elegeu como tema central o Movimento do Trabalhador Rural Sem-Terra – MST. Uma personagem Senador da República mediou a relação do MST com o Congresso Nacional, e deu oportunidade para que duras críticas se fizessem àquela Casa, à omissão dos políticos e seu desinteresse pela discussão da questão da terra, suas implicações sociais e as conseqüências do recrudecimento dos confrontos no campo.
COMENTÁRIOS CRÍTICOS Quem arma é responsável pelo tiro que essa arma vai dar. (Barbosa, B. R)1 . Uma semana da trajetória dos imigrantes italianos contextualiza a história que será contada sobre as gerações seguintes dessas famílias, nos aproximadamente seis meses de duração da telenovela. Os Mezenga e os Berdinazzi são pequenos proprietários rurais que começaram, em meio a tantos outros, como colonos nas fazendas de café do interior paulista. Enfrentando um dia-a-dia de agruras e dificuldades, sofrem com a guerra, temem por seu país, onde deixaram plantadas suas raízes, consomem-se na luta contra as pragas que atacam as plantações de café da região enquanto vão sendo contaminados pelos pesticidas que os envenenam e serão os responsáveis diretos pela morte de um deles, Bruno Mezenga. Uma discordância sobre os limites de suas terras, vizinhas, torna as famílias inimigas. A posse da terra anima a briga entre Mezenga e Bedinazzi, que querem ampliar seu território avançando sobre o do outro. Uma disputa permanente que os põe em vigília para empurrar cercas que recuarão no dia seguinte, entrando na propriedade do vizinho. Afinal, não ficamos sabendo quem tinha razão: se um, se nenhum ou se ambos. De qualquer modo, o que importa extrair daí é o processo de expansão de propriedades e o princípio comum de formação dos latifúndios: a apropriação de terras alheias (privadas), por invasão, ou pertencentes ao estado (públicas), por ocupação. O clima de antagonismo e hostilidade vai pesar sobre os filhos não interessados no ódio que cresce entre os pais. O amor, que desconhece cercas e fronteiras, sejam físicas ou do domínio dos afetos, aproxima o filho único de Mezenga da única filha de Berdinazzi. Desenha-se uma tragédia shakespeariana que não se consuma pela fuga de ambos. Eles já estavam casados, o que ocorreu num momento de trégua entre os pais, mas foram separados no dia mesmo do casamento, porque se rompeu o acordo de paz. Berdinazzi seqüestrou a noiva, sua filha Giovana, que mais tarde fugiu com o marido. Da união desses jovens nasce aquele que será o protagonista da 1 BARBOSA, B. R. Programa Roda Viva daTV Cultura, Op. cit.
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segunda fase da história: Bruno, que aplicará a herança recebida dos pais na criação de bois. O êxito nessa atividade será progressivo. Chega à maturidade como o maior criador e ganha o título de Rei do Gado. Ainda nessa primeira fase vamos ver a morte do “velho” Berdinazzi, inconformado com a perda de um dos filhos na guerra, de cujo heroísmo restou uma medalha. Medalha que ele enterra no cafezal, já que não tem o corpo do filho para sepultar. Também, a partir daí se inicia a trajetória de traições de seu filho Geremias, que convence o irmão de que devem vender a propriedade sem o conhecimento da mãe ou da irmã e a fugirem para comprar outra no Paraná. O irmão, conforme se saberá depois, também foi vítima da esperteza de Geremias, para quem é obrigado a entregar a sua parte. Sem dinheiro ou emprego, vai ser bóia-fria. Morre com a família e outros trabalhadores num acidente com o caminhão que os transportava: nele estava também a filha Marieta. Geremias prospera dedicando-se à criação de gado, principal atividade, e à produção de café, que está na sua tradição. Enriquece e vai se transformar no Rei do Café e do Leite. Apenas a primeira fase da telenovela já seria suficiente para um extraordinário argumento, mas o autor não quis economizar talento. Esse período, de grande densidade dramática e beleza plástica, que poderíamos denominar italiano, recupera um momento importante da nossa formação cultural. Nós, como boa parte dos paulistas, pudemos ver nela um pouco da história de nossos avós e bisavós. A telenovela comove com as agruras e ambigüidade da situação desses expatriados: gratos ao país que os acolhe, que ajudam a construir com seu denodo e sua incansável força para o trabalho; ao mesmo tempo, saudosos do mundo familiar deixado para trás, parentes, amigos e apreensivos com a sorte de sua terra sofrendo os devastadores efeitos da guerra. Quando as famílias Mezenga e Berdinazzi voltam a se cruzar, são dois gigantes com a mesma estatura que se enfrentam. Com o antigo ódio conservado, mas já um pouco esmaecido pelo tempo. Geremias vive só em uma de suas propriedades. Nela, a atividade mais evidente parece ser a de produção de leite e derivados. Essa usina de laticínios usa tecnologia de ponta e está entre as melhores equipadas do mundo. Da qualidade do gado aos produtos, tudo se faz em consonância com as últimas descobertas dos mais avançados centros de pesquisa do setor. Instalações cientificamente planejadas, equipamentos importados e controle total de qualidade garantem sua hegemonia no mercado e legitimam seu título de rei. Bruno Mezenga faz jus a igual título pelo tamanho e qualidade de seu rebanho, cujo número de cabeças se contam aos milhares, mas que nem ele é capaz de precisar quantas são. Seus bois, destinados ao abate, são comercializados em pé e também transformados industrialmente em seu frigorífico. Frigorífico que não passa, durante toda a telenovela, de referência verbal (nas falas das personagens e em conversas telefônicas), - 80 -
diferentemente da usina de seu tio Geremias, que é uma presença constante, sempre que se focaliza aquele núcleo. Berdinazzi processa industrialmente o leite. Bruno Mezenga, a carne. Duas atividades derivadas da pecuária bovina. Ambos criadores que erigiram suas fortunas a partir do boi. Dois reis2 com direito ao título pela diversificação de fins: cada um é o melhor e o maior naquilo que escolheu fazer. Na base dessas atividades estão, pois, grandes rebanhos que exigem grandes extensões de terra. Desse ponto de vista, ambos são grandes latifundiários. Está posta a questão da terra. Por aí passa o fio condutor da reaproximação desses velhos antagonistas. As terras de Bruno Mezenga foram consideradas improdutivas porque foram vistoriadas quando o gado estava confinado. O equívoco permite a “invasão” da propriedade por um grupo de sem-terra vinculado ao Movimento do Trabalhador Rural Sem-Terra. Até que a situação se esclareça, eles permanecem acampados na fazenda. Tratados sem hostilidade, recebem, num gesto de paz, alimentos e um prazo para se retirarem. Essa situação permite o encontro da bóia-fria, Luana – que havia se juntado ao grupo dos sem-terra – e do grande latifundiário, Bruno Mezenga3 . Como a jovem perdeu a memória em um acidente, apresenta-se a oportunidade para que nasça daí um romance e uma longa história tecida de conflitos que crescem na medida em que sua identidade vai-se revelando. Bruno tem mulher e filhos. As relações familiares vão mal. A mãe ausente, os filhos entre a insubordinação e as experiências com drogas. O casamento, de fato, já acabou. Bruno vive uma fase de insatisfação e desalento. Luana carrega a pureza, a simplicidade e a força da natureza que ele sempre amou. A vida que lhe deu fortuna e poder lhe oferece, agora, também, a possibilidade de ser feliz. Na luta que se trava entre as resistências de Luana e da família de Bruno, um outro componente se agrega: a amizade, a admiração e a adesão à causa que vincula definitivamente Luana aos sem-terra. Sua forte identificação com esse grupo demonstra claramente sua incompatibilidade com o ambiente familiar e urbano do parceiro. A partir de agora é possível verificar como se estruturam os cotidianos dos núcleos em diferentes espaços físicos e como tais espaços funcionam como suportes para a estruturação do cotidiano das personagens e das relações que se estabelecem entre elas. Os ambientes em que circulam as personagens são urbanos e rurais. Entre os últimos, a região de Guaxupé (MG) e do Araguaia (TO), onde 2 Jornais e revistas, entre elas as especializadas em TV, fizeram amplas matérias para descobrir e trazer para os seus leitores os verdadeiros reis do Gado e do Café e do Leite. A revista semanal Veja também dedicou uma matéria de capa para o tema, bem como para identificar quem foram as pessoas que inspiraram ou emprestaram seus nomes para a ficção. 3 O gesto da personagem Bruno Mezenga foi reproduzido na realidade poucos dias depois por um fazendeiro do estado do Paraná que distribuiu alimentos e matou um boi para doar aos sem-terra que ocuparam suas terras.
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estão situadas, respectivamente, as fazendas de Geremias e Bruno. Entre os urbanos, está Ribeirão Preto (SP), onde reside oficialmente a família Mezenga. A grande metrópole paulistana, maior centro econômico da América Latina, ó o lugar onde a mulher de Bruno, Léa, vai morar após o divórcio e se casar com Ralf, seu namorado já antes da separação. A princípio, vivendo sozinha, ocupa um flat – um item entre os muitos dos imóveis que fazem parte do patrimônio da família. O Guarujá (SP), cidade litorânea, de veraneio, preferida pela burguesia interiorana, é onde os Mezenga têm apartamento, barcos, etc. e vai se desenrolar uma subtrama policial da história. Ralf é assassinado e a culpa recai sobre Marcos, o filho indignado com as violências a que a mãe é submetida pelo amante/ marido. Ele será preso, irá a julgamento, mas não terá comprovada sua culpa. A família também mantém um apartamento/casa com empregada no Rio de Janeiro, que será emprestado(a) à Liliana, quando engravida de Marcos. Outros espaços referenciais são Brasília, capital do país e centro político nacional, base de trabalho para os congressistas, onde atua e reside a personagem senador Roberto Caxias, pai de Liliana e amigo de Bruno Mezenga, num pequeno apartamento funcional, sob os cuidados de Chiquita, responsável pelos serviços domésticos. Se, por um lado, os imóveis de Bruno falam de seu poder e fortuna – e é bom lembrar que o apartamento de Ribeirão Preto, onde vai morar a dupla Pirilampo e Saracura, também é de sua propriedade e, sem ser grande, tem características (a porta, por exemplo) de construção de alto padrão, o tipo, tamanho e função falam muito de seus ocupantes/proprietários. O apartamento em que vive a família do senador Caxias em Ribeirão Preto é sóbrio, pesado, antigo e conservado como foi montado no momento de sua aquisição (há muitos anos). Ele fala da falta de dinheiro do senador, de seu desapego com relação ao mundo dos objetos, das aparências, assim como de seu estilo franciscano de vida, atestado pelo modestíssimo apartamento de Brasília. Conforme sabemos, os imóveis funcionais em Brasília variam de padrão e são distribuídos segundo uma escala hierárquica. Deputados, senadores e funcionários de alto escalão ocupam apartamentos de superquadras com melhor localização, melhor infra-estrutura, são maiores e melhor decorados e equipados. O apartamento do senador Caxias é típico de superquadras como a 414, destinada a apartamentos modestos, com o mínimo de equipamentos e infra-estrutura, para moradia de servidores de mais baixo escalão da administração federal 4 . A casa de Bruno Mezenga, em Ribeirão Preto, fala mais de sua mulher e filhos do que dele próprio. O espaço que aprecia e onde se sente bem é a fazenda do Araguaia. A casa é de estilo rústico rural, cozinha espaçosa com fogão a lenha disposto no centro, a mesa retangular talha4 Apesar das mudanças que possam ter ocorrido nas últimas décadas, consideramos válido o parâmetro, sobretudo levando em conta a filosofia que subjaz a este sistema.
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da em madeira maciça, o fogo sempre crepitante e as panelas de Donana fumegando com sua comida caseira, brasileira, quase cabocla. Aí consome-se cachaça no aperitivo, enquanto a rede e pequenos bancos sustentam os corpos cansados das lides do dia. Eles ficam numa varanda formada por uma espécie de pátio interno, com árvores e canto de passarinhos. Do lado oposto, para onde dá a porta da cozinha, o quintal, com o galinheiro cheio do ruído alegre das galinhas d’angola5 , completa esse cenário rural, bucólico, perfumado pela comida, pelo café de coador e pelo aroma da terra. É este o ambiente que fala de sua origem, do mundo perdido no tempo das agruras e dificuldades da família de seus pais, de um passado de bravura e heroísmo, de valores fundamentais, de honra e paixão: pela terra, pela vida6 . Submerso nos porões da memória, o passado que o mundo moderno e a prosperidade de Bruno superaram pela contingência permanece impregnado na essência da personagem e na pele do Bruno, que habita o mundo do poder sem render-se a seus encantos. Sob as roupas do fazendeiro assumido, de estilo country , aparência bem cuidada, insinua-se o homem simples, que guarda traços da origem. Veste sempre o mesmo casaco de couro que se tornará sua marca como personagem7 . Suas relações de amizade sinalizam na mesma direção. Seu melhor amigo é o senador Caxias; seu verdadeiro amigo é Zé do Araguaia, o único a quem faz confidências, com quem troca idéias, lembra façanhas da juventude, de quem ouve conselhos, com quem sempre contou e pode contar em todas as horas. Ele e Donana parecem ser sua verdadeira família, de opção, de afeto, de identificação. Ali só existem sentimentos verdadeiros e genuíno interesse humano. Por isso, é onde se refugia quando o mundo urbano e suas interferências no âmbito da família se tornam insuportáveis. O que pensar quando colocamos a diferença de classe social desses bons amigos? A condição de subalternidade de Zé do Araguaia é que o qualifica, por fatores como interesse, submissão, subserviência? Ou, pelo contrário, um respeito mútuo, companheirismo, camaradagem? A dignidade do casal Zé/Donana, no curso da história, aponta para a segunda hipótese. Parece mais apropriado considerar que a amizade vem do tempo em que Bruno começa a criar gado e encontra em Zé a habilidade de 5 Quando estivemos no Projac , entramos na casa-cenário da fazenda e pudemos ver todas as suas dependências, examinar móveis e objetos. Apesar de abandonada em razão do término da novela, lá estavam as garrafas de pimenta e as de cachaça com frutas (cheias de formigas). No quarto de Donana, estava a cômoda-altar toda coberta de restos das 40 velas que ela queimou, pedindo a absolvição de Marcos. A sala ainda estava mobiliada, o fogão no meio da cozinha, a rede no mesmo lugar. Examinamos cada quarto. No quintal encontramos o galinheiro, com todas as galinhas, vivas, saudáveis, cacarejando. A razão da permanência das aves naquele cenário abandonado estava no contrato com o criador: com duração superior à telenovela. Por isso continuavam lá e todos os dias vinha alguém para alimentá-las. 6 Não se trata aqui de qualquer tipo de saudosismo, ou de retorno às origens, mas simplesmente de elementos de cultura presentes na constituição da personagem: ele não quer voltar no tempo ou recuperálo. Ele tem em si, introjetados, os valores de sua formação social. 7 Inclusive para uso publicitário, quando o ator participa da campanha promocional das empresas Boi Gordo : durante a exibição da telenovela e, agora, dois anos depois.
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homem do mato que lhe faltava. Há mais que companheirismo, há um sentimento de gratidão e um pacto de lealdade entre esses dois homens. Bruno gosta do ambiente da fazenda e da convivência com o casal, porque aí não é visto como rei ou patrão, mas como amigo. Entre eles pode também ser um Zé, pode ser ele mesmo, apenas um homem que trabalha, ama e vive da terra que sustenta e alimenta seus bois. Ironicamente, sua mulher o trai. O que era troféu, motivo de orgulho e marca do sucesso – um par de chifres – transforma-se em símbolo do opróbrio e do fracasso. E, ao contrário do que esperavam os herdeiros da cultura machista, ele não vai resgatar a honra matando os traidores. Tal atitude não condiz com sua índole e nem sequer ela era a mulher amada. A solução é racional: o divórcio. Para os que esperavam ver sangue escorrendo na tela do televisor, deve ter sido uma grande decepção e motivo de escárnio da personagem: pobre vingança 8 . Afinal, se a personagem tem defeitos, são poucos. Todavia, ser um rico latifundiário é o maior deles, o que a própria personagem reconhece e tentará corrigir entregando bens e negócios à família e recomeçando com Luana no ponto em que a história da primeira fase da telenovela termina. As condições naturalmente não podem ser as mesmas, mas fica implícito que o importante não é a riqueza (para si/individual), mas a produção de riquezas (para nós/social). É o que se pode inferir de alguém que deixa a fortuna para iniciar um novo ciclo produtivo a partir da terra bruta. Aqui se dá uma mudança radical no cotidiano de Bruno pela renúncia ao capital acumulado. Não é Luana que se transforma em princesa, mas Bruno que passa de latifundiário a pequeno agricultor. Todavia, a entrega dos negócios à administração de Marcos só foi possível graças ao episódio do desaparecimento de Bruno, que ficou durante semanas perdido na mata. Marcos, sem nenhum conhecimento dos negócios, vê-se, de repente, obrigado a tomar decisões. É o momento de sua transformação pelo choque emocional que a perda produziu. O garoto desinteressado, ausente, embrenhado no mundo do consumo, tem que assumir-se adulto e executar, sem tempo para preparação, as funções do pai. Bruno quase morreu, mas valeu a pena: com isso recuperou o filho, que quase perde novamente quando este é preso como suspeito do assassinato de Ralf, situação a que já nos referimos. O desaparecimento de Bruno provoca uma mudança no cotidiano da fazenda: o que era placidez, rotina de trabalho e rituais de lazer transforma-se em ansiedade, buscas e angústias. Ele só retomará o ritmo habitual com a volta de Bruno. Na casa de Ribeirão Preto estão presentes os valores de modernidade de Léa: na arquitetura, na decoração, nos hábitos. Ela constitui a moldura perfeita para a personagem, alta, esguia, roupas modernas, ombros 8 Estamos nos atendo ao contexto da telenovela. A transferência da situação para a realidade e a transformação da personagem em representante de uma classe pode justificar uma espécie de vingança simbólica, sobretudo considerando o caráter machista predominante no mundo agrário.
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sempre descobertos, altiva, superficial, voluntariosa, independente e superior. Pouco fica em casa. Ocupada com atividades sociais, viagens, consigo mesma e com o namorado, ignora os filhos e trata com rispidez e desdém as empregadas. Não é sem razão que Luana não se adaptará a esse ambiente de modernidade impessoal. Marcos e Lia vivem como podem. São amigos e não aprovam o comportamento da mãe. É uma casa onde se põe muita comida à mesa e se tira, com freqüência, intocada. É comum saírem quando a refeição está sendo servida. Quando comem (principalmente Marcos e Lia, que ficam mais em casa), o que se vê na mesa são frutas, doces, sorvetes, numa demonstração de que a família está desintegrada e as rotinas perderam sua força, mantendo-se para os empregados, que as cumprem por obrigação, à espera de que um dia a família possa sentar-se à mesa e apreciar o produto de seu esforço. Também, nunca se sabe quando Lia vai aparecer com alguém para almoçar ou jantar. Na cozinha bonita e bem equipada, que aparece muitas vezes, os empregados comem, tomam vinho e conversam, afinal são eles os moradores fixos da casa. A comida desta casa não apresenta nenhum traço que lembre a origem italiana de Bruno Mezenga. No flat de Léa, a comida habitual é a japonesa, servida por garçons. Essa preferência é absolutamente adequada ao perfil da personagem e seu culto à imagem, que deve incluir um rigoroso controle das calorias que consome. Esse cardápio também atende a dois outros itens: beleza e sofisticação. Este, que poderia ser considerado o núcleo de Léa em São Paulo, às vezes passa muito tempo sem aparecer, mesmo porque seu interesse não é constante. Léa está sempre pronta para sair de casa e as outras personagens, sem uma base territorial fixa, só contam por suas relações com Léa e Ralf. Aqui prevalecem as situações de conflito e são poucas as marcas de estabilidade do ponto de vista do cotidiano. Quando mencionamos o modo de se vestir de Léa, sua preferência por modelos que deixavam sempre descobertos os ombros, estávamos no ambiente de Ribeirão Preto, uma das cidades mais quentes do estado. Com a vinda da personagem para São Paulo, seu guarda-roupa permaneceu o mesmo e, por isso, absolutamente inadequado para o nosso clima tão instável. Chegava a incomodar vê-la tão pouco vestida “em São Paulo”, quando nós, paulistanos, não podíamos dispensar alguma proteção contra o frio. Naquele ano, infelizmente para a produção do figurino, tivemos um verão excepcionalmente ameno. A fazenda Berdinazzi e a casa, em particular, constitui um nicho da cultura italiana: hábitos, costumes, alimentação. O temperamento de Geremias, sua linguagem, o culto ao trabalho, fazem deste núcleo um nexo com a primeira fase da telenovela, da qual se resgatam, se conservam e se buscam ampliar elementos, aspectos, detalhes do passado que possam preencher o vazio da vida da personagem e atenuar sua grande solidão. Viúvo por duas vezes, não teve filhos e da antiga família só - 85 -
restaria uma sobrinha, a quem ele busca encontrar. A arquitetura da casa, móveis, objetos, tudo remete ao tempo já vivido. O presente está fora dela, na parte industrial da fazenda, nas instalações, máquinas e processos, enquanto ele retorna do trabalho diário com um singelo lenço protegendo a cabeça. Exatamente como era hábito entre os carregadores de café. Um simples lenço branco, como os usados para a higiene do nariz, um pequeno nó em cada uma das quatro pontas e ele adquire a forma que permite o ajuste à cabeça. Sua volta para casa está marcada por este detalhe: o lenço só é retirado quando ele já está na sala. Se o trabalho é a concretude do presente, as horas de descanso marcam-se pela fluidez esgarçada das lembranças, pelo vinho sorvido no afã de diluir as culpas que o atormentam. O jantar é constituído basicamente pela sopa que consome – recoberta por queijo ralado – que Judite, a fiel empregada, lhe prepara e serve na cozinha. Um espaço gastronômico tão estimulante como o de uma cantina: salames, queijos enormes, presunto parma, grandes pães italianos redondos, sem contar as massas, verduras etc. Geremias é frugal: come pão (como acompanhamento da sopa), uma ou outra fatia de queijo ou salame; o consumo maior é de vinho e licor enquanto se distrai à noite conversando com Judite, sentado sempre na mesma cadeira. Quando se excede no vinho, aventura-se a assediar a fiel, dedicada e também solitária companheira. Por esse núcleo passam dois assassinatos. O de seu braço direito na administração dos negócios e amigo, que será substituído pelo filho, e o do advogado que procurava localizar sua sobrinha e forja documentos para uma estranha assumir-se como tal. Tanto Marieta (a falsa sobrinha) como Geremias são suspeitos desses crimes. A verdadeira identidade dessa Marieta será questionada quando Luana, a verdadeira sobrinha, começar a recuperar a memória. Também se criarão problemas para Bruno por ela ser uma Berdinazzi. Nas crises que se instalam, Luana fugirá: primeiro da casa de Bruno, depois da fazenda, onde se identificou com o ambiente e estabeleceu sólidas relações de amizade com Donana e Zé do Araguaia. Nessas fugas, vai ao encontro do grupo de sem-terra liderado pelos amigos Jacira e Regino. Como todos trabalham, Luana vai integrar-se às rotinas e temos oportunidade de conhecer outro cotidiano: o do acampamento em seu funcionamento. O primeiro aspecto que chama a atenção é a precariedade. Recém instalados, homens, mulheres e crianças ocupam-se em tornar habitável o que era mato, pasto... As barracas pretas de lona confundem-se na nossa memória com taperas, em uma das quais mora Regino. Na “varanda” do que seria uma outra, uma sem-terra ensina as crianças: é a escola do acampamento. Em uma aula a que temos oportunidade de assistir, ela fala sobre os direitos da criança e do adolescente, buscando ressaltar a importância de viver no acampamento e a diferença entre sua situação de filhos de trabalhadores rurais que defendem o direito de ter um peda- 86 -
ço de chão para plantar e das crianças que vivem nas ruas das grandes cidades, condenadas à convivência com o roubo, a droga e toda sorte de violência. Transcrevemos, abaixo, a fala da professora: 9 – Aprender a ler e a escrever é um direito que toda criança deve ter, inclusive vocês. Direito à saúde, direito à escola, direito à comida. Tudo isso está escrito na lei, que é o poder maior de um país: a lei. Apesar dos pesares, vocês não po- dem se queixar, porque, aqui, bem ou mal, vocês estão es- tudando, aprendendo a ser gente. Nas cidades grandes, cri- anças, assim como vocês, estão cheirando cola, estão apa- nhando nas ruas, estão sendo massacradas. Existe uma coisa chamada estatuto da criança, mas...só existe no pa- pel. Alguns de vocês nasceram aqui neste acampamento ou em outros iguais a este. Vocês não podem nunca se enver- gonhar disso. Vocês nasceram aqui porque o pai de vocês está lutando para conseguir um pedaço de chão onde plan- tar. Mas, eles não estão nas cidades assaltando ninguém, eles não estão roubando, eles não estão matando. Estão lutando há anos pelo direito legítimo de ter onde trabalhar, para poder sustentar vocês. Eu tenho um orgulho muito gran- de de ter vocês aqui comigo. Acabou a aula. Vocês estão dispensados. Esta cena em que a professora fala às crianças representa o cotidiano de trabalho do acampamento: as crianças estudam, brincam e ajudam os pais, há alguém que ensina. Todas as tarefas são divididas. O trabalho é árduo: transformar a terra, nem sempre fértil e adequada, em fonte de alimentos e sustento para o grupo, em meio às ameaças constantes das balas dos fazendeiros, dos jagunços, da polícia, em meio à incerteza de colherem o que plantam, de permanecerem onde estão. A permanência, mais que uma regra é uma exceção. Daí falarmos em precariedade, pois faltam as condições mínimas para o repouso nas camas improvisadas, e às vezes falta alimento. Numa cena comovente, a família de Regino está sentada à mesa (improvisada), uns três pratos de alumínio, velhos e amassados, umas poucas colheres. Neste dia, talvez tenha apenas uma sopa rala: ele divide o único pãozinho em pequenas partes iguais e entrega a cada um, numa versão atualizada e comovente da Santa Ceia. Apesar das críticas que possam ser feitas, a situação é emblemática. Dá a medida das dificuldades de sobreviver em meio à adversidade, dá também a medida da coragem, da força que os move na busca de legitimação e defesa de seus direitos fundamentais como pessoa humana. 9 Transcrição feita a partir de gravação em vídeo, pela pesquisadora, durante a exibição da telenovela.
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O cotidiano do sem-terra que a telenovela mostra é, sobretudo, marcado pelos traços da organização e da disciplina que garantem integração e equilíbrio em meio à improvisação e ao imponderável. Estes, os elementos duráveis face ao efêmero da estabilidade, da provisão e da base territorial fixa. A determinação e as convicções que os animam têm a força dos que, não tendo nada a perder, põem na causa que defendem a vida e seus valores de honra e bravura. O movimento é recente, as causas têm a idade de nossa história. O Brasil do latifúndio e da desigualdade não age e não quer pressões reivindicatórias. Não se assume como responsável e responde com a repressão. Se o cotidiano do acampamento é de privações e ameaças, o do movimento é da marcha, de ocupações, de falsas gentilezas e de traições, de confrontos, de sangue, de mortes. Regino é assassinado, Jacira é presa com o filho nos braços, o senador Caxias, único porta-voz dos sem-terra no Congresso, morre – no acampamento conclamando a ordem, pedindo aos trabalhadores que não se armem para a defesa para não serem massacrados – como Regino, vítima de uma bala assassina. Trazendo os trabalhadores sem-terra para a ficção, o autor conseguiu dar-lhes realidade, na construção paulatina de seu cotidiano de luta por um lugar físico: num país imenso e de vastas áreas despovoadas; e social: num país democrático e cordial. Assim construídas, essas personagens ganharam identidade e cidadania, reconhecimento e simpatia aos olhos da sociedade brasileira. Seguramente terá sido uma grande intervenção da ficção na realidade, moderando ânimos, legitimando posições, refreando a escalada de violência, assassinatos e chacinas, atenuados e justificados sob a denominação eufemística de conflitos. Na história, os políticos representados pelo senado federal foram mostrados no seu alheamento com relação à questão agrária, bem como a prevalência total de interesses particulares ou de grupos sobre assuntos de grande interesse nacional. O senador Roberto Caxias acreditou que poderia fazer a mediação entre o sem-terra e o governo e congregar forças para uma verdadeira reforma agrária: sequer foi ouvido, mas conseguiu ao menos a aprovação de dois projetos, o do aumento do ITR (imposto territorial rural) e o do Rito Sumário (para maior rapidez nas desapropriações), segundo ele, passos importantes em direção à reforma agrária. A falta de ressonância das falas do Senador no Congresso, seu esforço solitário para mediar uma solução, a dura situação do sem-terra no dia-a-dia de suas marchas em busca de um espaço para viver com suas famílias, as tentativas de ocupação de terras ociosas e a luta diuturna para sobreviver nos poucos acampamentos provisórios acabaram comovendo o país e virando assunto nacional.
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Gráfico 3 A telenovela resgatou índices que a líder de audiência havia perdido. A telenovela começa com 49 pontos, vai a 58 e termina com 52. Deixa sempre o segundo colocado bem abaixo, chegando a manter uma distância de 20 pontos. O menor índice registrado é de 43 pontos e coincide com as festas de fim de ano. A semana de pico corresponde ao desaparecimento de Bruno Mezenga e com a revelação da gravidez, para o público, de Luana.
QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL 1ª FASE TEMATIZA
Quadro 19
2ª FASE TEMATIZA
Quadro 20
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Lembra
Quadro 21
Critica
Quadro 22
Evidencia
Valoriza
Quadro 20
Quadro 23
Defende
Quadro 24
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Conforme buscamos demonstrar, os diversos cotidianos são bem marcados: os cotidianos rurais, com sua diversidade de caracterização e atividades, o da cidade centro de região, Ribeirão Preto, onde três núcleos têm suas bases e o do grande centro urbano, São Paulo. O cotidiano no acampamento mostra a regularidade do trabalho, do ensino para as crianças, as permanentes tensões das ocupações, das marchas, da vida doméstica partilhada, das ameaças que rondam o acampamento e das notícias de violência contra os companheiros, de mortes e prisões de sem-terra em diversos pontos do território nacional. O cenário amplia-se e o cotidiano social brasileiro entra com suas mazelas na história, vestindo de realidade a ficção.
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A TELENOVELA O FIM DO MUNDO • FICHA TÉCNICA De: Escrita por: Direção Geral: Horário: Emissora: Início: Término: 35 capítulos
Dias Gomes Dias Gomes com a colaboração de Ferreira Gullar Paulo Ubiratan 20h40 Rede Globo 6 de maio de 1996 14 de junho de 1996
Quadro 25
• PERSONAGENS ADV. DE NADO: Cristina Prochaska ADV. DE JOSIAS: José Augusto Branco CHICO VELOSO: Tonico Pereira CLOTILDE: Tamara Taxman CREUZA: Cleyde Blota DALVA: Renata Lima DELEGADO GALVÃO: Oswaldo Loureiro DR. JOSÉ OTÁVIO: Eduardo Galvão DR. PESTANA: Carlos Vereza DRA. CACILDA: Totia Meirelles ELIZA: Bernadete Lys EMILIANO: Ricardo Blat FABIANA: Renata Dutra FAFÁ BADARÓ: Lúcia Alves FLORISBELA MENDONÇA: Vera Holtz FREI EUZÉBIO: Norton Nascimento FREI LUIZ: Mário Lago GARDÊNIA: Bruna Lombardi HELONEIDA: Fernanda Lobo ILDÁSIO JUNQUEIRA: Lima Duarte JACIARA: Luciana Coutinho JOÃZINHO DE DAGMAR: Paulo Betti JOCA MENDONÇA: Mário Borges JOSIAS JUNQUEIRA: Guilherme Fontes
JUANITO: Cláudio Tovar JUIZ: Milton Gonçalves JUVENAL: Valter Santos LETÍCIA: Paloma Duarte LINDALVA: Isabel Fillardis LUCILENE: Patrícia França MÃE DAGMAR: Marilu Bueno MANINHO: Marcelo Faria MARGARIDA: Ângela Viera MARIA CHUPETA: Estelita Bell MARIA DO SOCORRO: Tatiana Issa MARIETA: Fátima Freire MICHEL RENAULT: Carlos Gregório MUDINHO: Pedro Paulo Rangel NADO MACEDO: Marcos Winter PROMOTOR: Rodolvo Bottino ROSALVO: Maurício Mattar SEBASTIÃO SOCÓ: José Wilker TONICO LARANJ.: Otávio Augusto VADECO: Tato Gabus Mendes VALDETE: Alexia Deschamps VALÉRIA: Mariene Vicentini ZIZI BADARÓ: Cininha de Paula
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Quadro 26
APRESENTAÇÃO O Fim do Mundo , com seus trinta e cinco capítulos, pode ser classificada como minissérie, destinada ao horário das 22 horas, conforme grade horária da TV Globo. Sem qualquer tipo de co-autoria do público, fechada portanto, ela foi exibida no horário da telenovela (20h40). A opção da emissora, de experimentar a minissérie neste horário, levou-a a anunciá-la como uma super telenovela em 35 capítulos. Como esse horário tem interesse para nossas pesquisas, ela foi incluída como uma telenovela que tem a particularidade acima especificada, estando completamente acabada no momento que entrou no ar 1 . Reservamos essa discussão para o final deste capítulo. Vamos centrar a atenção na construção, ruptura e reconstrução do cotidiano desse produto ficcional específico, começando por algumas considerações sobre a escolha temática do autor.
COMENTÁRIOS CRÍTICOS O Brasil é e sempre será o país que banaliza o absurdo. (Dias Gomes)2 Um cenário moderno permanente: o apocalipse assoma e não ocorre. E ele ainda assoma...O apocalipse é agora um seriado de longa metragem: não “Apocalipse Agora”, mas “Apocalipse de Agora Em Diante’.” (Susan Sontag)3 O tema Ao escolher o tema, Dias Gomes retoma uma preocupação que extrapola o domínio religioso e se insere como inquietação que acompanha desde sempre o homem. A telenovela vem trazer uma visão do autor sobre o final dos tempos. Sempre anunciado, tantas vezes esperado e insinuado no mundo moderno em seu permanente equilíbrio instável. Por guerras (Guerra Fria, Vietnã, do Golfo Pérsico, Bósnia, Iugoslávia), pelas grandes catástrofes (terremotos, furacões, inundações), pela ação da interferência irresponsável do homem no meio ambiente (vazamentos de usinas nucleares, de efeito estufa à devastação de florestas e incêndios que desertificam grandes áreas de equilíbrio ambiental). Ou ainda por ameaças mais próximas de cada um de nós, como as enchentes, incêndios, explosões, acidentes de grandes proporções, que disseminam o pânico e presentificam a ameaça de um fim último e irremediável ora para o mundo, ora para populações, reafirmando a crença em profecias que pontificam o apocalipse, apontam circunstâncias, apresentam sinais 1 Ver discussão sobre o assunto em PALLOTTINI, R. Minissérie ou telenovela. São Paulo: CCA-ECAUSP-Moderna, Revista Comunicação e Educação , n. 7, set./dez. de 1996. 2 GOMES, D. Apenas um subversivo . Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 262. 3 SONTAG, S. Aids and Its Metaphors (Harmondsworth: Penguin, 1989), apud GIDDENS (1991).
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indicativos e localizações espaço-temporais de quando, onde e como deve acontecer, balizando o momento do temido e sempre adiado grande final. Angústia para uns, motivo de descrédito para outros, fonte de prestígio e lucro para outros tantos, o tema acompanha a história do homem e atualiza-se constantemente. Justifica-se como assunto palpitante e tema para minissérie ou telenovela, pois contém em si forte poder de catalisar a atenção do telespectador, independentemente da duração em capítulos. Afinal, uma visão do problema que pode ser lida como uma possibilidade, entre outras tantas, como mais uma previsão, centrada no como . A capacidade criadora do autor, aliada aos efeitos especiais propiciados pelos recursos técnicos da emissora, constrói ficcionalmente um possível fim real. Na habilidosa articulação do autor, temos uma proposta bem humorada de uma visão do inferno e do caos prometido pelos profetas do apocalipse. A esse achado do ponto de vista temático corresponde outro do ponto de vista dos trinta e cinco capítulos, posto que o começo – anunciado no título – já resolve o problema do final da história: ela termina no lugar onde o autor resolve que é hora de o mundo acabar, sem grandes amarrações, sem ter que dar saltos no tempo, sem casamentos ou nascimentos, sem se preocupar em agradar expectativas criadas no percurso. É verdade que muitas situações se resolvem e muita concessão se faz antes que tudo se acabe. Cotidiano ficcional A cidade, que poderia se situar em qualquer lugar do Brasil, sem prejuízo para a verossimilhança, apresenta referências geográficas que a situam no interior do estado de São Paulo, nas adjacências de Ribeirão Preto, numa região próxima a Minas Gerais. Tais indicações nos são fornecidas no começo da história, quando um casal de pesquisadores – um espeleólogo e uma sexóloga – trafegando de jipe por uma grande estrada, avista uma placa indicando: em frente, Ribeirão Preto; à direita, Tabacópolis. Segue-se um comentário da mulher de que estão chegando: Tabacópolis existe . Desse modo, a placa é elemento bastante para localizar a cidade, cujo nome se inscreve entre tantos outros existentes na região com o sufixo comum “-polis”: Jardinópolis, Salesópolis, Miguelópolis, Junqueirópolis, Fernandópolis, Altinópolis. Nesta última, localiza-se uma gruta ou caverna, em busca do que está o espeleólogo, Michel. Em Tabacópolis existe uma gruta com estranhas formações: “estalagmites”, além de circularem crenças de que ela teria sido visitada por seres extraterrestres, produziria vibrações, emanações afrodisíacas responsáveis por um clima de erotismo estimulante para os jogos do amor. Todavia, se o sufixo “-polis” e a sinalização na estrada apontam sua localização no - 96 -
interior de São Paulo, criando um efeito de verossímil, a produção fumageira, atividade principal da região, presente na denominação da cidade, (“Tabaco-”) torna a referência contraditória na medida em que não consta que se produza aí fumo e muito menos charutos, um concentrando-se nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul e o outro na Bahia. A referência sugere um apoio na realidade que se confirma na alimentação sem características regionais e na linguagem sem marcas de baianidade das personagens. Geografia ficcional: a cidade A contradição resulta numa geografia ficcional que pode ser estratégica para justificar a fala marcadamente paulista das personagens em conflito com a produção de fumo, não compatível com a realidade local. O resultado dessa licença da criação ficcional não nasce da opção do autor, antes mostra-se como um recurso utilizado pela produção da telenovela, motivado mais por circunstâncias práticas do que por razões artísticas. Nessa direção aponta a sinopse, onde o autor concebe a ambientação da história na Bahia. De qualquer modo, o produto acabado incorpora a ambigüidade e assim chega ao telespectador. A ele é repassada uma falsa pista enquanto “leitor modelo” instaurado pela obra, só percebido pelo leitor de segundo nível. Ao de primeiro nível escapam certos detalhes, seja pelo baixo nível de atenção, seja por considerar que à ficção não se deve cobrar rigor de coerência 4 . Essas duas hipóteses não são excludentes, podendo manter entre si uma relação de causa. Ou seja, ele pode não perceber por falta de atenção ou por não ter a percepção suficientemente desenvolvida para captar certos detalhes. O ambiente de Tabacópolis – denominação relacionada com o cultivo do fumo na região (destinado às multinacionais do tabaco) e com a indústria de charutos – é de uma pequena cidade interiorana, vivendo da monocultura fumageira e do turismo, atraído pela Gruta do Amor. Feira na praça, apresentação de escola de samba, descerramento de busto de um cidadão emérito, com discursos inflamados, etc., inauguram a cidade-cenário. Como tantas cidades, tem suas instituições em funcionamento: administração municipal, poder judiciário, delegacia de polícia, hospitais (psiquiátrico e hospital de pronto-socorro), banco, farmácia, pensão, hotel, boate, prostíbulo, igreja católica, jornal e, como já foi dito, a indústria de charutos – Socó S/A. Não faltam à cidade alguns confortos da vida moderna, como o telefone e a televisão, além de estarem presentes a droga e o crime. A população e seus tipos Tipos peculiares como Mudinho, que perambula pelas ruas e presta pequenos serviços como guia turístico, os loucos, os presidiários e os esquizofrênicos fazem parte da população. Entre as personagens que 4 ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção . São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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habitam a cidade e região destacam-se a austera prefeita, Florisbela, o velho coronel viúvo e grande produtor de fumo, Ildásio Junqueira, prepotente, senil, que abriga em sua casa a nora, viúva de seu filho, três netos (dois rapazes jovens – Josias e Maninho – e uma moça – Dalva) e o filho adotivo, médico (José Otávio), que trabalha no Pronto-Socorro local. O dono do jornal Tribuna de Tabacópolis , Tonico Laranjeira, tem por objetivo o lucro, seja com o comércio da notícia sensacionalista, com especulações oportunistas na Bolsa de Valores, ou com trapaças no jogo propriamente dito. Seu desejo de poder inclui o casamento como elemento de prestígio: sua mulher, Gardênia, ex-miss Tabacópolis, é motivo de cobiça dos homens da cidade. O casal tem um relacionamento superficial, freqüentes crises de ciúme do marido, capaz de violência física quando se excede na bebida ou quando exacerba sua insegurança com relação à mulher, que é mais um de seus objetos. O empresário (Socó S/A) e suplente de deputado federal, Sebastião Socó (Tião), é casado com a irmã de Gardênia, Margarida, e tem duas filhas: Letícia, uma jovem altiva e com idéias próprias, namorada de Josias; e Maria do Socorro, mais jovem que Letícia, se veste e se comporta de modo estranho (usa roupas antigas, longas e esvoaçantes, um chapeuzinho excêntrico, luvas e fica dias no telhado com seu pássaro negro), compondo uma figura etérea, misto de esquizofrenia, esquisitice com aura de santidade a que se junta o insistente hábito de freqüentar a Igreja. O relacionamento de Tião com a família é superficial: não tem qualquer autoridade sobre as filhas e teria uma coexistência apenas pacífica com a mulher, não fossem as constantes cobranças que recebe pelas prolongadas ausências e pela prioridade dos negócios sobre os interesses da família. O pároco da igreja local, frei Eusébio, divide-se na luta contra a falta de dinheiro (a igreja reformada não tem ainda um sino) e as beatas que exigem rezas e ofícios o tempo todo. Jovem, bonito e negro, luta ainda contra as tentações da vida mundana e pela reafirmação de sua vocação religiosa. O delegado, Galvão, homem de prole numerosa, esforça-se por dar conta de manter a ordem na cidade, investigar crimes, agüentar as ordens da prefeita e as manipulações a que é submetido pelos poderosos da cidade, em particular pelo velho coronel. É trabalhador, responsável, pobre e íntegro, dentro dos limites do possível, dada a falta de condições para se impor como autoridade face à indigência da polícia. Típica pequena cidade interiorana, Tabacópolis tem suas conservadoras solteironas que se dedicam a zelar pela moral e os bons costumes. As irmãs Badaró, como são conhecidas – um exemplo de decência – se dizem representantes da “Liga de Decência de Tabacópolis” e levam a sério a função, bisbilhotando a vida de todos. Vivem juntas, vestem-se com roupas iguais – mudando apenas a cor – não dispensam um chapeuzinho e ficam escandalizadas com qualquer coisa. - 98 -
Conflitos de rotina e interesses No hospital psiquiátrico conflitam duas tendências entre os diretores: Dr. Yan segue a linha tradicional que entende o paciente como louco, agressivo, incapaz, que deve ser excluído do convívio social e tem por procedimento terapêutico o uso da camisa de força e a reclusão. O Dr. Pestana – pouco considerado – encara a questão como diferença, ou seja, louco seria o indivíduo que não comunga com os valores em vigor na sociedade. As instituições funcionam como podem, a produção de tabaco e charutos gera empregos, o empresário Tião Socó derruba uma mata para ampliar sua plantação provocando manifestações de protesto do movimento ecológico, recebe ameaças e intimidações concretas por parte dos antitabagistas: um incêndio nas dependências da indústria é atribuído a eles, quando pode ser uma reação dos compradores de fumo estrangeiros (gringos ) que não admitem concorrência na transformação da matéria prima. Deve-se lembrar, Tião mantém uma plantação de fumo para uso próprio na sua fábrica, o que contraria frontalmente os interesses desses compradores que detêm o monopólio da produção de cigarros. Tião compraz-se em enganar os gringos fabricando uma cigarrilha (Gardênia ), que pretende distribuir para todo o país, enquanto se empenha no casamento de sua filha Letícia com Josias (neto do coronel Ildásio), para ampliar suas terras, sua produção de fumo, sua fortuna e seu poder. No âmbito de suas atividades políticas, trama contra o deputado federal do qual é suplente, enviando ao Congresso cartas anônimas denunciando-o por corrupção. Seu objetivo é que o deputado seja cassado para ocupar a sua vaga. Outra preocupação de Tião é vencer as resistências da cunhada Gardênia, por quem nutre antiga atração e que, sem muita convicção (parece também se sentir atraída por ele) recusa-se a trair o marido e a irmã. Abrimos aqui um parêntese para registrar dois episódios ligados a essa personagem (Gardênia). No mesmo capítulo, encontram-se, respectivamente, dois aspectos a destacar. O primeiro diz respeito ao caráter interdiscursivo da telenovela e ao diálogo que se instaura com o cinema. O segundo concretiza uma denúncia do autor. Numa cena cinematográfica, Tião e Gardênia passeiam pela plantação de fumo. Ele se refere às sementes conseguidas em Cuba, à excelência do fumo e do charuto cubanos, sugerindo que as plantas bonitas que os cercam nasceram dessas sementes. Gardênia vê-se persuadida a admitir que Tião entende do assunto e que é um bom presidente da Socó S/A5 . Já na fábrica, assistimos à cena em que eles se beijam. Um beijo meio dissimulado pelo chapéu de abas largas que Gardênia usa, mas insuficiente para impedir seja percebido pelas operárias, que parali5 Capítulo levado ao ar em 07/06/96.
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sam o trabalho e contemplam, sorrindo, a cena que recria outra cena, a de um clássico do cinema, manifestação de interdiscursividade, do jogo dialógico entre os dois meios, hábil e artisticamente produzida pela encenação, pelo figurino, pelo clima. Em outra cena, o marido de Gardênia (Tonico) e dono do jornal Tribu- na de Tabacópolis faz um longo discurso expressando sua visão da imprensa como empresário do ramo. Para ele, publicar uma notícia sem apurá-la é duplamente lucrativo , pois se não for verdade, ele tem duas notícias: a falsa e o desmentido . Essa declaração cínica da personagem fala com eloqüência do caráter de mercadoria assumido pela notícia no âmbito das empresas que a tomam como produto de consumo altamente rentável, sem qualquer pudor quanto a suas possíveis conseqüências para a coletividade que as recebe confiando na instituição que diz existir a seu serviço. Retomando o andamento da apresentação de personagens, o coronel Ildásio, como Tião, vê com simpatia o possível casamento entre as duas famílias, pelos mesmos motivos, inclusive por suas dúvidas com relação à capacidade de seu neto Josias, a quem passa a administração dos bens da família, de gerenciar competentemente os negócios. O filho adotivo, a neta e o neto Maninho estão excluídos por razões diversas, este último inclusive por ser um bon vivant irresponsável e inconseqüente. A nora, Clotilde, apenas administra a casa e cultiva soturnamente a dor não superada da perda do marido. A prefeita concentra suas energias na administração municipal, sem conseguir separar muito seus papéis sociais. No âmbito da casa e da família reproduz seu papel de executiva, dando pouco ou quase nenhum espaço para o marido (que ocupa uma secretaria na prefeitura – um traço evidente de nepotismo), para os filhos, Fabiana e Nado, e para a irmã, Elisa, com distúrbio de comportamento (calada, não sai de casa, vê as pessoas sob nuvem de poeira, tem mania de limpeza e consome seu tempo diante da TV). Florisbela considera o marido um incapaz, tenta uma aproximação mal sucedida com o filho dependente de droga, ar de rebeldia (um dos músicos da boate) e namorado de Lucilene, operária da fábrica de charutos e cantora da boate. Ela se relaciona melhor com a filha, fotógrafa da Tribuna de Tabacópolis , sensível e de temperamento dócil, que é capaz de compreender os problemas da família. Na prefeitura, Florisbela luta com os problemas de verbas (para o hospital, limpeza pública, segurança) decorrentes inclusive da falta de pagamento de impostos (o jornal, A Tribuna de Tabacópolis , de Tonico, tem um grande débito com a prefeitura). O turismo parece ser a principal fonte de renda e a divulgação de Tabacópolis pela imprensa é bem vista, já que propicia aumento do turismo e da receita. A vinda do pesquisador, Dr. Michel Renault, apresenta grande interesse: valorização da cidade, possível notoriedade para a Gruta do Amor e, se comprovada a passa- 100 -
gem de seres alienígenas pela caverna, projeção internacional para a cidade, incremento do turismo e muito dinheiro para os cofres públicos. Essa preocupação leva a prefeita a convocar a seu gabinete o espeleólogo para propor a confirmação da história dos extra-terrestres, o que provoca espanto e indignação do cientista. Se, do ponto de vista administrativo e das relações familiares dos protagonistas, a história se delineia a partir de um cotidiano similar ao cotidiano concreto de tantas cidades do estado e do país, do ponto de vista da relação com os jovens também reproduz-se uma certa predominância de relações conflitivas onde são comuns manifestações de rebeldia em relação aos pais e atitudes de independência no tocante às normas sociais e à vida amorosa em particular. Josias, noivo de Letícia, gasta seu tempo em assediá-la: quer antecipar o que ela reserva para o casamento – pois está determinada a casarse virgem – ou promovendo grandes farras no prostíbulo ou na boate com o irmão Maninho. Este assedia sexualmente a cantora Lucilene, provocando atritos com Nado, seu namorado. Menos duro e cínico que Josias, vive, como aquele, confiante na impunidade que lhe garante o poder e a fortuna do avô. Maria do Socorro, de cujo comportamento estranho já falamos, alimenta uma paixão obsessiva e transgressora, na medida em que o objeto de seu desejo é o pároco da cidade: padre e negro. Isso explica de certo modo seu comportamento de beata casta, pouco compatível com a naturalidade com que a jovem independente encara os problemas do amor e da vida. Filhas de pai abastado, de quem conhecem o caráter e a quem não respeitam e de uma mãe que é pouco mais do que simples administradora da casa, nem ela nem Letícia tem qualquer preocupação além das restritas à sua vida sentimental. A situação dos jovens que trabalham é outra. Lucilene, moça pobre, sem família, vive num quarto de pensão. Desdobra-se acumulando o trabalho de operária na Socó S/A durante o dia e à noite de cantora da boate local. Altiva, veste-se como um garoto. Usa uma boina que lhe dá um certo ar de guerrilheira. Na boate, transforma-se numa loura provocante de voz aveludada. Fiel ao namorado, desaprova sua falta de vontade para vencer a dependência química, mas lhe é solidária a ponto de levar droga para Nado quando está foragido para escapar à prisão. Além de perseguida por Maninho, Lucilene também tem em Mudinho um apaixonado que a segue e a protege enquanto não vê uma possibilidade real de tê-la para si. A filha da prefeita, Fabiana, exerce com seriedade suas atividades no jornal, sabe se impor a insinuações do patrão e manifesta bom senso diante dos problemas. É carinhosa com a tia doente, busca aproximar-se sempre, tenta conversar e levá-la à igreja. Nutre grande admiração por José Otávio, único médico do Pronto Socorro. Ele, por sua vez, está - 101 -
preso – pelas circunstâncias – à neta do coronel, com quem esperam (até por uma questão de gratidão, pois ele lhe custeou os estudos) que se case. Entre os jovens, há também um peão da fazenda do coronel Ildásio, Rosalvo, que se sente atraído e procura atrair a namorada de Josias. Sério, altivo e corajoso, não se intimida diante do poder do patrão, nem do adversário. Entre os poucos funcionários do jornal há um repórter, raramente sóbrio, que falta ao trabalho em razão dos freqüentes “porres e ressacas”. Não se inclui entre os jovens, mas entre os tipos que compõem o cotidiano de Tabacópolis. Também se inclui nessa categoria o paranormal Joãozinho de Dagmar vivendo às voltas com suas três mulheres, com a mãe Dagmar (casada com um impostor), com o atendimento diferenciado aos poderosos da cidade (principalmente quando se trata de mulheres bonitas e atraentes, que cortam as imensas filas de pessoas que vêm em consulta) e com suas visões e previsões. Irrupção do Imponderável Sucedem-se os dias em Tabacópolis. Até o momento em que Joãzinho de Dagmar tem uma visão prenunciadora do fim do mundo. A notícia espalha-se rapidamente. Entre o crédito de muitos e o descrédito de alguns, a inquietação instituiu-se. Os primeiros a se aproveitarem da confusão e estimulá-la são a imprensa, representada pelo jornal Tribuna de Tabacópolis , que aumenta suas tiragens com as notícias sobre o assunto, e o marido de mãe Dagmar, que se assume como o intermediário na venda de terrenos no céu. Os lucros de ambos aumentam com os primeiros sinais indicadores da aproximação do fim, previsto para o final do ano. A história não está explicitamente datada, mas a caracterização de personagens e ambientação sugerem a contemporaneidade, podendose inferir um ano qualquer, impreciso e ficcional ou, o que parece mais adequado, o presente em que está situado o “leitor”, momento em que se deu a produção e/ou a primeira “leitura” da obra6 , quando o ano real é 1996. Como não se concretizou ainda nenhum fim de mundo (mesmo que parcial), fica sempre uma “leitura” com projeção de futuro, um presente ainda não completamente realizado, excluindo-se a idéia de passado. Nessa perspectiva, que envolve autor-leitor, a obra tende a manter por longo tempo sua atualidade. Entre os prenúncios, uma chuva de bosta , raios, trovões, sinos tocando, fenômenos estranhos acontecendo. O aumento progressivo das evidências reafirmam as premonições de Joãozinho. As pessoas, convencidas do conteúdo de verdade da predição do paranormal, começam a se preocupar com seus desejos reprimidos e com a impossibilida6 Nesse caso da produção, com alguma pequena antecedência com relação à “leitura”, ambos capazes de reiterar o ano de 1996. De qualquer modo, a escolha será sempre do leitor, uma vez que as referências são vagas e rarefeitas, dispersas que estão em indicadores pouco evidentes. O tempo real, seguramente, acabará por datá-la mas, no presente, essas marcas só serão visíveis para um leitor de segundo nível, distinto daquele para quem só interessa a história. ECO, U. Op. cit .
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de de realizá-los em face de um fim iminente e inexorável. Com o início da chuva, o inexistente sino da igreja tocando sem parar, sua torre inclinada voltando para a posição vertical, a certeza toma conta de todos. As beatas vão para a igreja em vigília permanente, Letícia resolve que não morrerá virgem e Socorro decide que deve seduzir o padre. Enquanto a chuva prossegue inundando as plantações de fumo de Tião, Tonico compra ações da Socó S/A que estão em baixa, as irmãs Badaró lamentamse pela inutilidade de terem se conservado virgens. Mas, aos poucos, o inusitado, o desconforto e a própria chuva acabam de certo modo sendo incorporados ao cotidiano e a população continua ou pelo menos tenta continuar suas atividades, inclusive quando as comunicações da cidade são interrompidas e os telefones emudecem. Tião considera-se na miséria já que Tonico é detentor da maioria das ações de sua indústria e a plantação de fumo foi destruída. Resta apenas a expectativa de ser deputado enquanto se entrega ao sonho de ter a cunhada Gardênia – solução proposta por Joãzinho de Dagmar para acabar com a impotência que o acometeu. Aliás, um problema não apenas seu, mas que acabou atingindo outros homens de Tabacópolis, como o próprio Joãozinho. Cacilda, a sexóloga, inspirada nos efeitos da Gruta do Amor, vinha trabalhando numa pesquisa sobre o comportamento sexual dos habitantes da cidade. Mas parece ter se envolvido demais com a cultura local a ponto de passar de observadora a experimentadora empírica dos super poderes de Joãozinho. Encanta-se por ele, deixa-se seduzir. No primeiro encontro amoroso, revela-se que ele é mais uma vítima de impotência. Nasce daí sua hipótese de que poderia haver relação entre o hábito de fumar as cigarrilhas Gardênia e a impotência masculina. Enviou amostras do produto para um laboratório na capital. A análise comprovou um agente inibidor da potência masculina no fumo usado na produção das cigarrilhas. Sua hipótese estava confirmada. Este episódio brinca com a cientista e com o espírito investigativo da pesquisadora ao fazê-la ceder aos apelos do senso comum aderindo ao comportamento de seus observados. Todavia a objetividade sacrificada faz aflorar a subjetividade que a coloca em situação de promover uma nova descoberta. É por essa via que surge a oportunidade de formular a hipótese de que o fumo “especial” é o agente desencadeador da impotência e chegar à solução do problema. Podem-se inferir daí duas observações. A primeira, refere-se ao espírito investigativo de Cacilda, que não submerge totalmente nem quando o domínio da cena é da emoção, do desejo, da subjetividade plena. A segunda, remete para uma questão de ordem social e tem sua base plenamente científica: fumar é prejudicial à saúde e pode causar impotência . O episódio traz implícita a advertência do Ministério da Saúde sobre os males provocados pelo hábito de fumar, presentes nas embalagens e nos comerciais de cigarro. De forma alusiva, a ficção incorpora e reforça uma campanha institucional de preven- 103 -
ção de doenças, presente no cotidiano social concreto. Ruptura A chuva continua na sua faina destruidora afetando física e moralmente a população. No sétimo dia de dilúvio, transformada numa fossa a céu aberto, a cidade chega ao caos completo: inundações, trovões, relâmpagos, tremores de terra, desabamentos, barulho ensurdecedor de incessante repicar de sinos. As pessoas entram em pânico enquanto estranhos fenômenos se verificam: Mudinho, ao ver o que supõe uma mula sem cabeça, vive instantes de pânico que lhe devolvem a fala, o coronel, subitamente revitalizado, põe-se a andar e ordena que o levem para o bordel, onde quer passar seus últimos momentos. Letícia, decidida a não morrer virgem, sai à procura de Josias, que não está em casa. Vai encontrálo, levada por Rosalvo, embriagado e cercado de mulheres na boate. Decepção e determinação associam-se para que ela se ofereça ao peão, por quem, afinal, sentia-se fortemente atraída. Maria do Socorro sai de casa para viver o seu final na igreja, sob a proteção de frei Eusébio, disposta a realizar seu sonho de amor. Enquanto as beatas prosseguem em sua vigília de orações, ele vai levá-la para dormir na casa paroquial onde acaba vencido nas suas resistências – já minadas pelos acontecimentos dos últimos dias – e vive com ela intensos momentos de amor. Tonico, impulsionado por seu ceticismo pragmático, resolve passar a noite jogando e bebendo em busca de lucro fácil, visto que a confusão instaurada não favoreceria a atenção dos parceiros. Gardênia, sentindose sozinha, vai buscar proteção na casa da irmã Margarida e do cunhado, oferecendo desse modo a oportunidade que Tião tanto esperava: ele põe a mulher para dormir e vai para o quarto de Gardênia com jogos sedutores, aos quais ela resiste ou simula resistir. Esse jogo ambíguo torna-se violento tendo como desfecho o estupro. Na boate, Maninho (neto do coronel) intensifica o seu assédio a Lucilene. Diante da insistência e do caos reinante em toda a cidade, ela aceita que ele a leve para casa pensando poder mantê-lo à distância, como de hábito. Mas, desta vez, ele resolve usar a força para entrar em seu quarto e é surpreendido por Nado, que está armado. Segue-se uma luta corporal e um disparo da arma atinge Maninho. Lucilene e Nado escondem o corpo sob a cama e se amam, certos de que o mundo vai se acabar e com ele os problemas. Essa situação absurda, que encerra no mesmo espaço físico o amor e a morte seria intolerável para o telespectador e apontaria para o inverossímil narrativo não fosse mais um indício do estilhaçamento dos últimos valores daquela sociedade em decomposição, quando os contrários se fundem, sem distinção entre começo (amor) e fim (morte). A morte, nessas circunstâncias, é o destino comum e imediato de todos, razão porque não prevalece o macabro, mas a amoralidade trazida pelo inevitável: o morto foi poupado do último horror, enquanto a espera dos vivos é preenchida pela junção dos corpos, na união dos medos e angústias - 104 -
em sua celebração final da vida. A frágil Elisa (irmã da prefeita) não suporta a pressão dos acontecimentos. Tenta o suicídio. Socorrida pela sobrinha vai encontrar o Pronto Socorro lotado e o médico sozinho tentando, desesperadamente, sem material, sem leitos, sem equipamentos, sem auxiliares e sem medicamentos, socorrer os pacientes que não param de afluir. Sensibilizada e preocupada com o estado da tia, Fabiana passa a noite auxiliando o médico. Elisa recupera-se e da solidariedade surge a descoberta de um mútuo interesse entre Fabiana e José Otávio. Na delegacia inundada não há mais condições de permanência e o delegado Galvão resolve libertar todos os presos. O mesmo ocorre no hospital psiquiátrico. Loucura Conflitam no hospital psiquiátrico, como dissemos, duas linhas da psiquiatria. De um lado, a visão tradicional da loucura como perda do senso de realidade, que incapacita o paciente a viver em liberdade, linha seguida pelo Dr. Yan. De outro, a visão da diferença e da dissidência do indivíduo com relação ao sistema social, a antipsiquiatria criada, na Inglaterra, por Ronald Laing. Considerada não uma doença mental, mas uma simples variação cultural de uma minoria “diferente” – excluída da sociedade pela maioria e confinada em hospitais pelo discurso “competente” da psiquiatria e da psicologia. Nesse sentido, trata-se apenas do diferente, teoria defendida pelo Dr. Pestana. Duas personagens apresentam distúrbio mental. Uma vivendo em reclusão hospitalar, com seu permanente sorriso infantil e suas perguntas incômodas, a outra, vivendo em reclusão domiciliar, fechada no seu silêncio, perseguindo nuvens de poeira que vê sobre as pessoas, ou postada diante de um aparelho de TV – mero ritual ou, quem sabe, o espaço ideal para a projeção de suas próprias imagens traumáticas, guardadas no recôndito de sua alma torturada. A outra personagem, Emiliano, vamos conhecer melhor quando o fim do mundo parece iminente e definitivo e os internos são todos liberados pela direção do hospital, que não vê sentido em mantê-los presos em meio à tempestade que começa a inundar o prédio e frente à inutilidade de não lhes conceder o benefício da morte em liberdade. O conceito de loucura volta como argumento usado pelo Dr. Pestana para a alta coletiva dos pacientes diante da resistência do Dr. Yan: (Dr. Pestana) – A partir de hoje não vamos internar mais ninguém. E mais, vamos dar alta para todos os pacientes da casa. O senhor quer loucura maior do que está acontecendo aqui nesta cidade? Um maluco anuncia o fim do mundo, as pessoas acreditam e começam a fazer loucuras, estripulias, inventam até que estão ouvindo sinos. Agora, me diga, qual - 105 -
a diferença entre ouvir, ouvir sinos e ouvir vozes? Até eu ouvi. O senhor também não ouviu? É o que eu lhe digo sem- pre, Dr. Yan, não existem loucos. Existem, sim, dissidentes, pessoas que não agem, não pensam, não se comportam como as normas ditadas pela maioria. Então, no momento em que a cidade toda está delirando, fazendo loucuras, estripulias, ouvindo sinos, não tem o menor cabimento man- ter esses pobres coitados internados. Numa cena grandiosa, de todos os lados surgem internos. Forma-se uma pequena multidão que se detém no limiar dos portões da clínica se abrindo para deixá-los passar. Emiliano põe-se à frente do grupo insistindo que todos podiam sair. Afinal, ele também duvidara do que ouvira do médico e chegou a perguntar: O senhor está no seu juízo perfeito, Dr. Pestana ? (Música7 começa). Sob o clarão de relâmpagos e o estremecimento da terra pelo impacto dos trovões, Emiliano, sem esboçar qualquer reação de susto ou medo, parece integrar-se no cenário. A trilha sonora mistura-se à força da natureza (efeitos especiais) numa sinfonia esplendorosa de liberdade/loucura/espanto e lucidez iluminada pelos raios que recortam o espaço unindo o céu e a terra, selando a igualdade, proclamando o fim do arbítrio e da diferença instaurados pela ânsia humana de ordenar o mundo. Um poder, que se esvai junto com a chuva fétida, escorre pelas gretas profundas, abertas pela convulsão da terra em espasmos que lhe dilaceram as entranhas. Se a psiquiatria diverge, só nos resta a dúvida. É o que nos lembra o autor. As certezas são perigosas. Elas roubam nossa humanidade: discriminam em categorias loucos e lúcidos, humanos e inumanos. Na cena em análise, essa lembrança vem do discurso musical, quando Emiliano, como que percebendo o caráter solidário da fúria da natureza destruidora, zomba do medo ao lembrar aos médicos a “real” dimensão do perigo: – Se a terra continuar sacolejando, vai cair a bunda de todo mundo no chão! Enquanto estão parados, a câmera percorre o rosto de cada um 8 , ao tempo em que o comentário vem da canção: Se eles são bonitos, sou Alain Delon, Se eles são famosos, eu sou Napoleão, Mais louco é quem me diz, que não é feliz, não é feliz. 7 “Balada do louco”, de Arnaldo Batista, do grupo Mutantes. 8 Nesta parte registramos uma distorção entre a concepção da obra, pelo autor Dias Gomes, e a direção. O grande efeito da cena foi reduzido quando a câmera percorre o rosto dos internos, um a um, enquanto a frase musical, por coerência de sentido (ideologia do autor), deveria ter coincidido com a última fala dos médicos (se eles são bonitos...se eles são famosos.. .), para que o questionamento recaísse sobre os detentores do poder e não sobre os a ele submetidos.
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Emiliano tenta fazer entender a seus companheiros o que ocorre: – O doutor Pestana deu alta geral porque o mundo vai aca- bar hoje. É o juízo final. Ele sabe que o juízo final quer dizer o fim do juízo. O que eu quero dizer é que quem tem juízo tá ferrado! Os últimos serão os primeiros. Entenderam? Todos os internos vêem-se, de repente, na rua sem saber para onde ir. Emiliano vai parar na casa da primas, as irmãs Badaró que, indecisas a princípio, resolvem abrigá-lo. Sua esquizofrenia manifesta-se sob a forma de profunda carência afetiva traduzida num comportamento tão ingênuo e infantil que elas chegam a dividir com ele a própria cama. Estas, por sua vez, também afetivamente carentes, acabam cedendo às “puerilidades” do primo, de que se terá como resultado uma dupla gravidez. Enquanto isso, Florisbela, a prefeita, ouve o marido confessar, numa crise de consciência, os casos amorosos que teve com todas as amigas da mulher. Reage à revelação espancando-o e expulsando-o de casa. Seu mundo de confiança se acaba simultaneamente com o final do mundo que se insinua lá fora. Nesta parte que é, do ponto de vista da narrativa, o ápice, vemos o caos do meio ambiente contaminar progressivamente o ambiente social. O individualismo, apenas disfarçado na vida cotidiana da cidade, irrompe com força ao se romperem os fios que atam cada indivíduo ao grupo. Livres da coerção explodem as paixões, liberando os desejos represados que serão plenamente satisfeitos na festa instaurada pelo caos. O espaço entre a espera e o fim é o da subversão, da quebra de normas, regras e protocolos. Cada um busca tirar o máximo de proveito da situação e o que predomina é a liberação. De um modo geral, o que prevalece é a supressão da repressão sexual e a festa é a festa do corpo, uma grande orgia, uma busca desesperada de prazer, mais prazeroso porque subvertendo, transgredindo: “brincadeira”, briga, morte e violência têm o sexo como causa ou conseqüência. Ele é a motivação que rege os comportamentos individuais e homogeneiza as diferenças apontando para um comportamento que se torna coletivo. Carnavalização Dias Gomes, guardadas as diferenças, imprimiu à sua obra algumas características que se aproximam das identificadas por Bakhtin 9 na obra de Rabelais e presentes no conceito de carnavalização aplicado no seu estudo sobre o autor. Entre elas destacamos a questão da exploração do baixo ventre (sexo e chuva de bosta ), da dessacralização (padre, igreja), da subversão de valores (conceito de loucura, libertação de presos e 9 BAKHTIN, M. O mundo de Rabelais : a cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 8-9.
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loucos), da quebra de tabus (como o da virgindade, da proibição do adultério), por exemplo. A ordem suspensa temporariamente libera para o gozo e a irreverência. Por brincadeira ou por recalque, o repórter da Tri- buna de Tabacópolis vai divertir-se na boate travestido de mulher, o que aponta, a nosso ver, para mais uma característica implícita no conceito de carnavalização que pode ser o disfarce e a fantasia ou a liberação de um desejo homossexual reprimido. Poderíamos entender também como quebra de hierarquia a relação (sexual inclusive) entre o branco (louro e rico) e o negro (padre e pobre), o pobre (de classe subalterna – empregado) e o rico (filha do patrão), do excluído (louco) e do incluído (irmãs Badaró). Bakhtin distingue a festa oficial da festa popular na Idade Média: A festa oficial, às vezes mesmo contra suas intenções, ten- dia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenida- de das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade, da verdade pré-fabricada, vi- toriosa, dominante que assumia o tom de uma verdade eter- na, imutável e peremptória (...). Ao contrário, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante, e do regime vigente, de abolição temporária de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perturbação, a todo aper- feiçoamento, regulamentação, apontava para um futuro ain- da incompleto.10 No carnaval, ao contrário da festa oficial que consagrava a desigualdade, todos eram iguais, reinando uma forma especial de contato livre e familiar entre os indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar. Embora não se trate do conceito de festa do povo na praça (e nem seria possível, com a cidade desabando) e, no caso específico da obra de Dias Gomes, prevaleça o individualismo burguês, há um substrato universalizante unindo indivíduos, mesmo separados fisicamente. Esse substrato é a precariedade universal da humanidade comum diante da ameaça de sua extinção. Um medo que os iguala e que, diferentemente das grandes manifestações públicas coletivas da Idade Média, vai se manifestar nas condições históricas do mundo contemporâneo dentro dos limites das possibilidades deixadas ao indivíduo no contexto do sistema capitalista: um coro composto pelo conjunto de vozes isoladas comemo10 BAKHTIN, M. Op. cit., p. 8-9.
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rando a vida que ainda pulsa forte e que pode fecundar o futuro do que sobrar do fim. O que entrevemos em O Fim do Mundo é o desafio e o escárnio dos que respondem com a festa ao pânico e ao terror apostando num possível renascimento. Nas palavras de Dias Gomes: Negar a morte é afirmar a vida 11 , sentido que perpassa a história e se intensifica com a proximidade do que se supõe o final certo e irremediável de tudo. Rescaldo Para espanto de todos, cessa a chuva e amanhece um lindo dia de sol. O mundo não terminou e todos terão que resolver os problemas criados na expectativa de não ter de responder por eles. A cidade deve ser reconstruída. As conseqüências dos desvarios devem ser assumidas. Ficam como saldo um morto, cujo corpo tem que ser eliminado, presos para serem recapturados, loucos para serem reinternados, um noivo traído que vai, com jagunços, lavar sua honra, castrando o suposto responsável pela traição, duas celibatárias constrangidas com sintomáticos en jôos, um padre a se debater no conflito de não poder conciliar sua vocação religiosa com o seu amor por uma mulher, ainda filha do empresário e quase deputado Tião Socó. Ela, por sua vez, tem que lutar em duas frentes: numa para que o pai aceite seu casamento com um homem que é ao mesmo tempo negro e padre; noutra para convencer o homem amado de que a melhor escolha é abandonar a igreja e casar-se com ela. Junta-se a isso a gravidez 12 colhida no irrealizado fim do mundo. Letícia, sua irmã, também tem que enfrentar o pai, ainda ressentido com o noivado desfeito, porque quer se casar com o peão Rosalvo, por quem está apaixonada e de quem está grávida. A mulher de Tião, Margarida, descobre a traição do marido com a irmã e vai se vingar tentando conquistar o cunhado Tonico. Gardênia, para punir Tião, assume a direção da Socó S/A e proíbe a fabricação da cigarrilha enquanto ele aceita todas as imposições e humilhações para estar perto dela e continuar nas suas investidas. O sogro de Joãozinho tem que fugir da cidade para não devolver o dinheiro aos compradores de lotes no céu que querem linchá-lo. O coronel volta para a cadeira de rodas e sua saúde piora consideravelmente. O filho da prefeita, Nado, é denunciado por Mudinho como o autor do assassinato de Maninho e é preso enquanto aguarda julgamento. Quanto ao marido, expulso de casa e demitido do seu cargo de secretário de obras, denuncia-a por corrupção no acordo com colombianos (Projeto El Ratón ) para a construção de um motel na Gruta do Amor, com ampla divulgação na Tribuna de Tabacópolis . Em represália, ela ameaça o jornal com a cobrança de todos os impostos atrasados, mas Tonico já dis11 GOMES, D. Op. cit., p. 311. 12 Que tanto pode ser mais um problema como um argumento para resolver os problemas anteriores.
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põe do dinheiro (ganho no jogo) para saldar o débito. Joãozinho, para não ser preso pelos danos causados à população, refugia-se em uma das propriedades de Tião Socó. Contra ele pesa também a ira de suas três mulheres que descobriram o seu caso com a sexóloga – cujo marido concluiu suas pesquisas e foi embora sozinho. Emiliano vê-se responsabilizado pela gravidez das irmãs Badaró. Não pode entender porque teria de se casar com as duas ou com uma delas e atribui a culpa da situação aos homenzinhos verdes que não param de persegui-lo. Sem compreender o que se passa, prefere voltar para a Clínica Psiquiátrica, um mundo menor, de regras mais claras, onde se sente mais seguro. Elisa, em tratamento com Dr. Pestana (não existem loucos, mas apenas dissidentes), começa a sair com ele e aos poucos vai readquirindo interesse pela vida. Curiosamente, o carinho, a doçura e a poesia que habitam o médico é que transpõem a barreira do isolamento da personagem e resgatam seu desejo de viver, fazendo-a despertar de um longo sono. Essa relação, benéfica para os dois, é construída em cenas de grande beleza e poesia. José Otávio termina o namoro com a neta do coronel, conseguindo com isso desagradar toda a família e provocar a indignação de seu protetor. Reconstrução Aos poucos uma nova ordem impõe-se ao cotidiano da cidade. Os abalos por que passou sua população vão gradualmente sendo assimilado e as normas anteriores retornam sem mudanças substanciais. Como todos foram envolvidos sem que ninguém saísse ileso para denunciar as violações, o consenso tácito decidiu passar por cima de tudo, reparar da melhor forma os estragos e esquecer. O clima é de cumplicidade e conciliação. As irmãs Badaró disfarçam como podem suas barrigas proeminentes. Tião e Tonico com as respectivas mulheres resolvem manter as aparências e curtir com discrição o adultério. Florisbela reconcilia-se com o marido e o reconduz ao cargo de secretário, Nado vai a julgamento e é absolvido da acusação de homicídio por falta de provas, após a desqualificação de Mudinho como testemunha de acusação, por não ter residência fixa 13 . Rosalvo, salvo por José Otávio e pelos poderes de Joãozinho de Dagmar, recupera-se totalmente da quase mutilação de que foi vítima e tem o consentimento de Tião para casar-se com Letícia. Morre o velho coronel, tendo antes confessado ser o responsável pelo suicídio do filho a quem mentiu ao dizer que ela, Florisbela, paixão de sua vida, tinha se casado com outro. José Otávio, 13 Em princípio, pelas normas jurídicas, a justificativa não se sustenta. O fato de ser pobre e não morar em endereço fixo não pode levar ao pressuposto de que ele é um mentiroso. Nem é o caso de ser difícil sua localização, vez que ele está sempre andando pelo centro da cidade ou trabalhando como guia turístico. Trata-se mais exatamente de um comportamento preconceituoso e discriminatório da Justiça. Um modo ético de descriminalizar o suspeito (Nado) seria pelo caráter acidental do disparo ou pela comprovação de legítima defesa. Assim, fica implícita uma crítica ao sistema judiciário, o que se confirma com a absolvição de Joãozinho de Dagmar, dos danos causados por suas previsões, obtida através de chantagem.
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liberto dos compromissos com o coronel, pode finalmente namorar Fabiana. Joãozinho de Dagmar consegue livrar-se das acusações que recaem sobre ele – provando ao juiz seus poderes de paranormal – e obtém o perdão das mulheres, que concordam em dividi-lo com uma quarta, Dra. Cacilda, a sexóloga. Frei Eusébio está de partida, sendo transferido para uma distante paróquia, quando Socorro, abandonando a família, vai ao seu encontro e segue com ele. O Fim do Mundo Informado da cassação do deputado por ele denunciado, Tião Socó organiza uma grande festa para comemorar sua investidura como deputado federal, oportunidade em que também anuncia o noivado da filha Letícia com Rosalvo e comunica sua intenção de transformar o peão em seu secretário em Brasília14 . Nado, recuperado das últimas loucuras, é um dos músicos da orquestra, cuja cantora é Lucilene. Toda a sociedade tabacopolense está presente. É também uma espécie de comemoração por terem sobrevivido a mais uma previsão não cumprida do fim do mundo. A festa vai alta. Celebra-se a reconciliação, o esquecimento e o restabelecimento da ordem anterior, quando uma chuva de meteoritos, que a princípio parecia mais um requinte preparado para surpreender os convidados, se amplia provocando explosões que acabam destruindo o planeta. É o fim do mundo. Era só uma questão de tempo. A previsão cumpriu-se. Agora, sem o terror e o pânico do ensaio geral. Do ponto de vista da história como um todo, não há uma verdadeira ruptura no sentido de uma revolução, de mudanças substanciais: há apenas um abalo que modifica temporariamente os comportamentos e uma reacomodação para que a antiga ordem volte a reinar soberana. O mundo carnavalizado irrompeu no cotidiano de Tabacópolis para subvertê-lo fazendo aflorar a verdadeira natureza de uma sociedade desprovida das máscaras sociais, convertendo esse desnudamento na máscara bakhitiniana. O que no mundo de Rabelais se manifestava com o disfarce da máscara (subversão), no mundo de Dias Gomes se dá pela perda das máscaras ou representações de papéis regulados pelas normas da sociedade. Cessados os agentes provocadores da ruptura no cotidiano de Tabacópolis, retomam-se as máscaras sociais e absorvemse os prejuízos na ordem restaurada.
14 A prática do nepotismo aponta a exclusão do critério de competência e revela o poder de transformar, por um simples ato de designação (nomeação), o status do peão, dignificando-o para ser um genro à altura do sogro. Aqui ironiza-se uma prática comum entre os políticos brasileiros.
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Gráfico 4
A telenovela começa com 43 pontos de audiência, sobe para 48 e termina com 47 pontos. Tendo em vista a menor duração não há oscilações significativas a registrar. Mantém-se, em todas as semanas, como líder de audiência com relação à programação geral de televisão.
QUESTÕES DE INTERESSE SOCIAL Tematiza
Quadro 27
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Critica e denuncia
Questiona
Quadro 28
Opõe
Quadro 29
Quadro 30
A telenovela, por sua característica de minissérie, traz, como conseqüência para o cotidiano, menos as marcas de rotinas domésticas e mais a sua fusão (ou confusão) com a vida cotidiana da cidade onde os domínios do público e do privado se misturam, bem como os das relações familiares com as relações sociais que ultrapassam o âmbito doméstico. Essa fusão resume o propósito de demonstrar como esses diferentes universos se atravessam em razão de interesses ligados ao poder econômico e político e às disputas em torno do maior prestígio social e da hegemonia. Nesse quadro, o que poderíamos denominar povo, não conta. Contam as elites (administrativas, econômicas e políticas) que manobram as “bases” através da manipulação. A população constitui apenas um pano de fundo difuso, uma espécie de auditório acrítico. Ela não participa da arena onde se digladiam as forças em combate. Ela tem pouco a perder com o fim do mundo que, como diria o poeta João Cabral, “varre o podre a zero ”15. Se as velhas engrenagens não servem mais, é preciso destruí-las. Com o fim do mundo, pode-se começar uma nova era, um novo mundo onde haja lugar para a igualdade, a justiça e a ética. 15 MELO NETO, João Cabral de. Para a feira do livro. In: A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editotra do autor, 1966, p.108 (no texto original do autor: “ varrendo o podre a zero ”).
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ESTRUTURAÇÃO DO COTIDIANO E VEROSSÍMIL NARRATIVO Até agora estivemos empenhados na percepção de detalhes ligados ao que poderíamos denominar de base de estruturação do cotidiano ficcional. A preocupação com levantamentos da constituição cenográfica tem por objetivo exatamente decupar aspectos de um conjunto unitário, distinguindo elementos fixos, porém com níveis de mobilidade. Isto quer dizer que, enquanto o cenário permanece o mesmo, uma noção de tempo e movimento vai sendo extraída das pequenas mudanças que ocorrem estrategicamente para indicar a ação do ser que interage com esse ambiente. Se a casa-cenário é sempre a mesma para uma personagem, ou para várias, e irradia sobre elas um modo de habitar relacionado ao seu modo de ser, também o que consomem e como consomem tem igual função, sobretudo quando a variação vai marcar sua atividade, seus horários, seus hábitos, suas preferências e ao mesmo tempo funcionar como um relógio que irá nos situar sobre os horários, rotinas, etc. Parece-nos que esta é, do ponto de vista do cotidiano, a base de realidade da personagem e que sua energia vital depende da interação que se estabelece entre ela e esse ambiente. A insistência com que a cozinha e a alimentação marcam as telenovelas aponta para a cotidianidade da personagem e para a movimentação que em torno dela se cria para mantê-la “viva e saudável”. A brincadeira faz sentido se levamos em conta o que diz Hitchcock: (...) meus atores têm que se compor- tar como seres humanos (...), não peço muito a uma atriz, não desejo que seja capaz de representar uma enorme variedade de personagens carac- terísticos, mas tem que ser uma pessoa humana real 1 . Se é assim para a personagem de cinema, com muito mais razão deve-se cobrar isso dos atores de telenovela, dada a peculiaridade do gênero e tempo de vida das personagens. Elas têm que se sustentar por seis meses de vida ficcional marcadas por traços de humanidade, para convencer que vivem uma cotidianidade senão igual, pelo menos identificável à nossa. Para isso não é suficiente uma “casa”, móveis, decoração, equipamentos. Ter “casas” vizinhas, ruas, praças, bares, lanchonetes, lojas, bancos, etc. Tudo deve funcionar. Como convencer da realidade do entorno cenográfico se não houver sujeitos que lhe imprimam dinamismo? 1 GOTTLIEB, S. Op. cit ., p. 278.
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Voltando aos nossos levantamentos, e considerando que o modo de vida tem estreita relação com os espaços, eles devem ser povoados por sujeitos que façam funcionar os referidos equipamentos. São eles que imprimirão a dinâmica que fará funcionar essa máquina inerte e andar o relógio do tempo: minutos, horas, períodos do dia, dias da semana, um mês, dois... seis. Neste esforço para demonstrar o óbvio, focalizamos o tempo de duração da telenovela, entre tantos outros aspectos, pela sua relação com o cotidiano concreto do telespectador e o paralelismo que se estabelece entre eles. O que distingue a telenovela do cinema e do teatro, entre outras características, é a duração. Esta, a nosso ver, é responsável pela necessidade de construção de um cotidiano ficcional capaz de ancorar a personagem e fazer dela o análogo de um cidadão comum. No âmbito doméstico, a casa não pode funcionar, ainda, por controle remoto. Alguém tem que limpar, cozinhar, servir, atender porta, telefone, dar recados, fazer compras, cuidar das crianças, etc. Nesse ponto entra em ação, no contexto da vida brasileira, uma categoria de personagem fundamental que são os empregados domésticos.
OS EMPREGADOS DOMÉSTICOS Os empregados domésticos têm uma importante participação nas telenovelas, em particular nas da TV Globo, na medida em que constituem pontos de articulação do cotidiano doméstico. Assim, são eles que respondem pela organização do espaço doméstico por onde circularão as personagens. Cada núcleo ganha realidade cotidiana a partir do funcionamento de casas estruturadas para estarem aparelhadas e funcionarem como ponto de aglutinação familiar. Ele está presente nas casas de classe média e nas mansões da classe A. Quando se trata de personagens de classe média média ou média baixa, temos uma tia que responde pela ordem, pelas compras, pelas refeições (dona Nina, tia de Juca e cunhada de Zé Bolacha, em A Próxima Vítima, e Quitéria, que cuida da mãe e aparece fazendo serviços domésticos). Na casa de Helena, “a bonitona do Morumbi” (classe B/A), a empregada tem sua presença marcada por pequenas aparições: abrindo a porta, servindo café, o mesmo acontecendo na casa das Ferreto (classe A), onde a empregada é apenas uma profissional, sem grande participação na vida da família, aliás, nesse caso, o destaque fica pela relação de parentesco dela com uma das vítimas. No caso dos mordomos, motoristas e governantas (A Próxima Víti- ma , O Rei do Gado ) temos comportamentos mais profissionais por força da maior qualificação exigida em vista da classe social dos patrões. Talvez essa diminuição da distância social seja a responsável por transgressões, do tipo da que se verifica em O Rei do Gado , quando a governanta e o motorista – que parecem manter um caso amoroso – resolvem ter - 115 -
uma noite de patrões, ou quando tomam vinho sozinhos, como se fossem eles os donos da casa. Essa subversão da ordem mostra a fantasia que acalentam de experimentar o outro lado da relação com o capital, deixando momentaneamente a posição de subalternos. É um modo de resgatar a auto-estima enfraquecida por humilhações, por sua própria condição social e pelos conflitos próprios da condição de classe. 2 Já nas famílias de classe média, como dos Noronha (núcleo de personagens negras) de A Próxima Vítima ou naquelas classes altas oriundas da tradição rural, como os Mezenga e os Berdinazzi de O Rei do Gado , as empregadas têm uma maior participação na vida da família, dão palpites, opiniões, cobram explicações, como membros da casa. Quando mais idosas, são verdadeiras mães dedicadas, abnegadas e tolerantes. Tornam-se agregadas e incorporam-se à família dos patrões pois, em geral, não se percebem nelas vínculos familiares próprios. A convivência, por longos anos, acaba por dotá-las de hábitos mais próprios da família a que servem, como os padrões de alimentação, de higiene, de conforto no morar, assim como incorporam os padrões lingüísticos. A assimilação de um modo de viver de outro estrato social também enfraquece os vínculos com sua cultura de origem. São situações desse tipo que reduzem o distanciamento entre os dois níveis a ponto de virem a resultar em casamentos 3 . Judite faz perguntas incômodas para Geremias, ao mesmo tempo que guarda segredo das visitas furtivas de Marcos Mezenga ao quarto de Rafaela, assim como da gravidez da moça. Isso sem prejuízo da lealdade a Geremias, de quem é a grande companheira nas horas de solidão, sempre atenta às manifestações de sofrimento do velho a quem faz companhia – inclusive no vinho – dando oportunidade para que ele fale de suas aflições. Quando mais jovens, com forte presença das marcas de sua própria cultura, e menos preparadas, chegam a ser desconcertantes na sua franqueza e acabam, como Lourdinha (cozinheira dos Mezenga), dizendo verdades que poucos ousariam dizer aos próprios patrões. Nesse caso, a espontaneidade da personagem não resulta em punições. Pelo contrário, pode levar à aceitação das observações críticas e até à concordância e reflexão, pelo modo natural e direto como são enunciadas. Do ponto de vista da dramaturgia, os empregados funcionam como peões, como articulações importantes, já que as pessoas circulam em diversos ambientes, em universos diferentes e eles estão sempre presentes, garantindo a ordem do espaço-base da personagem e servindo de interlocutor na passagem deles por ali. Mesmo que a família se en2 É o caso também da telenovela Meu Bem, Meu Mal (de Cassiano Gabus Mendes, exibida no período de 29/10/90 a 14/05/91, TV Globo, no horário das 20h30), na qual Porfírio (Guilherme Karan) agüenta todos os maus tratos do patrão doente, com fleugma profissional, para não abrir mão das regalias que a própria condição lhe oferece, entre as quais a de perseguir e assediar sexualmente a “divina Magda” (Vera Zimmerman), amiga da neta de D. Lázaro (Lima Duarte). 3 Lembramos que isso aconteceu em Pantanal e O Rei do Gado , ambas do mesmo autor Benedito Ruy Barbosa.
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contre pouco, como no caso dos Mezenga, os empregados sempre funcionam como ponto de interlocução para o que chega. Assim ficamos sabendo quem telefonou, ouvimos recados, perguntas que irão esclarecer, por força de suas respostas, pontos não explicitados, cujas notícias chegam apenas pela via da palavra que circula entre o empregado e o eventual interlocutor. Desse modo, também funcionam Judite e Chiquita. Quando alguém está sozinho no seu núcleo, o empregado é sempre o segundo que permite a instalação do diálogo. Como seria possível dar a conhecer tão profundamente os pensamentos, a seriedade e as angústias do senador Roberto Caxias, se não fosse sua empregada Chiquita, companheira em sua solidão, ouvinte atenta de seus lamentos, de seus discursos que não alcançam seus pares do Senado, a sociedade e nem sequer tocam a própria família? Assim, se Chiquita é a grande e verdadeira amiga do senador, Zé do Araguaia é o único amigo de Bruno Mezenga, assim como Judite o é de Geremias Berdinazzi. O deslocamento de Lourdinha, da casa dos Mezenga para o apartamento que Lia oferece à dupla Pirilampo e Saracura, atende a uma necessidade de se estruturar o cotidiano doméstico desse núcleo, onde ela vai responder não só pelo funcionamento da casa (limpeza, preparo de refeições, compras, etc.), como vai ser o ponto de apoio e de interlocução das personagens que entram e saem e deles entre si, quando ausentes. Mais que um interesse da trama parece prevalecer a necessidade dramatúrgica de dar consistência ao núcleo recém criado, estabelecendo a coesão narrativa e o verossímil necessário. Essa observação tem seu contraponto no núcleo de São Paulo, onde Léa é o centro. Morando num flat , o andamento do cotidiano doméstico está justificado pelos serviços que esse tipo de moradia oferece. Falta, todavia, o apoio para a interlocução, restrita ao telefone e a visitas esporádicas. Léa ou está vestida para sair ou para dormir, mesmo quando, após a morte de Ralf, ficou absolutamente só. Se a falta de uma dinâmica doméstica teve a intenção de acentuar o caráter da personagem e daquelas com as quais se relacionava, fez também esse núcleo parecer o menos verdadeiro e o mais fraco da telenovela. Os empregados domésticos assumem, nas telenovelas destacadas e em outras das quais não falamos, uma função tão ou mais importante do a que têm na nossa vida real cotidiana, posto contribuírem significativamente para compor o caráter de seus patrões personagens, pois, sendo hierárquica a relação, ela prescinde da mediação da máscara social. Léa mostra-se impaciente, irônica, exigente e autoritária, só se dirigindo a seus empregados para dar-lhes ordens ou repreendê-los, enquanto todos os demais membros da família mantêm com eles uma relação de camaradagem e amizade. A cena em que Júlia (governanta) e Dimas (motorista) vivem uma noite de patrões no quarto de Léa, vestindo suas roupas e imitando o casal Mezenga, é sintoma da antipatia pela patroa e uma - 117 -
resposta crítica ao seu comportamento fútil e esnobe. Também Rafaela não parece nutrir por Judite qualquer sentimento de amizade, antes simula cumplicidade para manipulá-la de acordo com seu interesse do momento, demonstrando sua flacidez de caráter. Esta é, pois, a categoria de personagens que estabelece a mediação entre cenário, equipamentos (base material) e personagens que circulam neste espaço, instaurando e mantendo suas rotinas domésticas, ao mesmo tempo que, por esse processo, estabelecem-se relações sociais de produção. O modo de ser dessas relações indica aspectos importantes do caráter das personagens ou, pelo menos, acrescenta alguma informação sobre elas, como por exemplo sua classe social, seu estilo de vida, etc. Consideramos importante ressaltar a função estrutural da categoria das personagens domésticas na telenovela, uma vez que, no processo de seleção dos elementos que vão construir o cotidiano, ela cumpre a tarefa de articular diferentes níveis da realidade ficcional. Para o telespectador distraído, os representantes dessa categoria podem ser vistos como detalhe que transborda, servindo apenas para preencher vazios discursivos com conversas fortuitas e banais, enquanto as personagens circulam no espaço doméstico. Esta é também, em alguns casos, a visão da crítica de telenovela.
EMANAÇÕES DE REALIDADE E RECORRÊNCIAS Na telenovela, outra fonte de emanação de realidade vem das recorrências temáticas e, sobretudo, das temáticas sociais que vão impregnar o cotidiano ficcional de problemas, conflitos e levar as inquietações que afetarão o espaço social aí desenhado, irradiando as atribulações presentes no cotidiano concreto para a vida que ali se constrói. Por exemplo, a questão da terra, preocupação de Benedito Ruy Barbosa, pontuada em Pantanal 4 . O pai de Juma chega ao Pantanal por ter perdido suas terras no Paraná, é, pois, um sem-terra; em Renascer , Zé Galinha é o sem-terra embrionário que será desenvolvido e colocado como categoria protagonista em O Rei do Gado . Essa personagem acalenta e persegue o sonho de ter alguns palmos de terra onde viver e pisar, livre da degradação moral a que é submetido pelo coronel de quem depende para trabalhar e viver com a mulher – permanentemente assediada por aquele. Ainda na telenovela Pantanal , a questão da terra faz parte da história do marido de Maria Bruaca. Ele narra, para a filha Guta, um acidente com um caminhão de bóias-frias, no qual morreu seu pai. Essa experiência justifica, para ele, os recursos escusos que usa para ter a posse da terra, tornando-se proprietário, furtando-se ao destino familiar de sem-terra. Em O Rei do Gado , o elemento desencadeador da história de Luana é um acidente semelhante, onde também ela estava quando o 4 Exibida pela TV Manchete no período de 27/03/90 a 10/12/90, às 21 horas.
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caminhão de bóias-frias desgovernou-se. Ali perdeu o pai e a memória. A cena do acidente é reiterada pelo retorno freqüente em flash back . Concretiza-se agora, em discurso visual, e num primeiro plano, o que foi apenas relato verbal, uma referência fugaz na telenovela Pantanal . Aí também, conforme já dissemos, a exclusão e a morte decorrente da falta de terra e os conflitos provocados em torno dela fazem parte dos antecedentes de Juma, também sozinha como Luana. O tema do menor abandonado ou de crianças em situação de rua está presente em Renascer , onde uma menina grávida vai ser recolhida e ter importante papel na trama. Por essa via, entram na história dois outros adolescentes, seus companheiros de rua. Também Sílvio de Abreu focaliza esse tema, além de outros como a homossexualidade que, timidamente abordado por diversas telenovelas, vai para o plano central em A Próxima Vítima, onde será olhado de frente e tratado com grande dignidade. O mesmo assunto foi proposto em Torre de Babel , de modo ainda mais frontal e relacionado à homossexualidade feminina. A Próxima Vítima põe ênfase na questão do trabalho, mostrando que sua concepção é, em Sílvio de Abreu, estreitamente relacionada à dignidade humana. Quem fala pelo autor, neste caso, é a personagem Juca. Igual preocupação perpassa a trama de O Rei do Gado , onde o sofrimento, os conflitos, a luta pela posse da terra visam ao trabalho, à produção. A acumulação de riqueza, bem como as conquistas duradouras recorrem do trabalho, freqüentemente duro e árduo na transformação da matéria prima em bens para distribuição social. Também será a mensagem final, quando se ressalta como valor maior a terra concebida como bem de produção e o trabalho como produtor de riqueza para a coletividade. Glória Perez tem por marca uma preocupação permanente com temas sociais emergentes: transplante de coração, mãe de aluguel, Internet, crianças desaparecidas, por exemplo, onde os valores universais humanos são priorizados contra o individualismo e o egoísmo que se afirmam como valores da modernidade. Dias Gomes trabalha menos as questões que afloram e mais as que fazem parte da estrutura do Brasil arcaico e subdesenvolvido que criam a circunstância para toda sorte de exploração e manipulação do grande contigente de excluídos que fazem a festa das elites. O misticismo, ao lado do coronelismo e das manipulações do poder político e religioso (corrompido e corruptor), é instrumento de manipulação por excelência e tema recorrente em sua obra, na qual expõe as misérias de uma sociedade aética e amoral. Estes são alguns dos exemplos de recorrências das temáticas sociais que permeiam o cotidiano ficcional reveladoras das inquietações que cada autor carrega. Elas definem valores que se repetem em suas produções como promoção ou objeto de crítica e denúncia. Assim atribuímos a Benedito Ruy Barbosa o valor terra, a Sílvio de Abreu o valor dignidade (estreitamente relacionado com o valor trabalho), a Glória Perez o valor humanidade e a Dias Gomes o valor ética. - 119 -
Naturalmente, não podemos restringi-los a esses valores. Estes são apenas os que emergem com mais força no contexto das obras analisadas. Não estamos reduzindo, apenas segmentando. Essas recorrências se dão também em relação a personagens, particularmente no tocante a certos traços, como se pode verificar comparando Juma e Luana. Como aquela, Luana vive sozinha no ambiente rural e defende com seu instrumento de trabalho, o facão – que usa no corte da cana – sua honra, enquanto Juma Marruá vira onça. É a metáfora de sua força selvagem, assim como é selvagem a reação de Luana às ameaças a que está sujeita como jovem atraente, vivendo sozinha e trabalhando entre homens rústicos. São mulheres de caráter, seguras de si e determinadas. Donas de seu corpo e de sua vontade. Defendem valores humanos como a dignidade, a integridade física e moral, com uma força que parece extraída das forças naturais preservadas na comunhão permanente com a água (Juma), com a terra (Luana), enfim com a natureza. Essas personagens, frágeis na aparência física, analfabetas, de fala acaboclada, vivendo do que produzem com sua força de trabalho, guardam traços das lendárias guerreiras amazonas. O encontro dessas personagens com seus pares amorosos provenientes de estratos socioeconômico-culturais com marcada diferença (excluídas x classe dominante) resolve-se com a obtenção de valores médios. Elas não se tornam “princesas”. Elas abrem mão da vida no seu ambiente próprio, natural, onde conhecem os seus inimigos, seus predadores e sabem se defender, para enfrentar o mundo da cultura urbana, aí sim, indefesas e à mercê de um Outro diferente, frio, hostil. Fazem-no por amor. Nessa troca, sofrem perdas e, o que se supõe ser ganho – no imaginário dos que em tudo vêem exercício de alpinismo social, nos apologistas da ascensão social capitalista buscada a todo custo – é na verdade o enfrentamento do estranho e desconfortável mundo urbano com sua cultura do consumo. Nenhuma das personagens chega a ver qualquer encanto nesse mundo, nem renunciam ao seu modo de ser e parecer (não aceitam mudar o seu visual – tão caro aos cultores da imagem), nem aos limites do próprio corpo – aceitando extensões como, por exemplo, o automóvel. Não desempenham nem poderiam desempenhar na lógica imanente a cada uma das obras, “papéis de cinderela ”, como é a regra geral nas telenovelas que se limitam ao melodrama. Esse processo de inclusão social, via relação amorosa, nas duas telenovelas de Benedito Ruy Barbosa, ao contrário do que proclama o senso comum, mostra o esforço e a coragem dessas mulheres que desafiam as próprias limitações e constroem, pela reafirmação de suas identidades, um espaço próprio, fazendo-se respeitar na diferença. A preservação da autenticidade e o esforço de adaptação são forças antagônicas. Neste embate, tiram sua motiva- 120 -
ção de uma energia com potência similar à que move os elementos na natureza, com a qual se adestraram na superação das forças hostis. Do outro lado, personagens masculinas como José Leôncio e Bruno Mezenga revêem seus valores, num quadro comparativo no qual as experiências amorosas anteriores falharam, sobretudo pela superficialidade de relações onde estiveram ausentes o companheirismo e o respeito (tal diferença é o fundamento da relação que acaba se estabelecendo entre José Leôncio e sua serviçal e dedicada Filó, ex-prostituta, em Pantanal). No duplo processo de mudança, preservam-se neles os valores humanos essenciais. No caso dessas personagens, não há vencedores nem vencidos. Estabelecem-se pactos, articulam-se parcerias com perdas e ganhos para os dois implicados na relação. O equilíbrio decorre da mudança que se opera ao se estabelecer, pela negociação, a anulação das oposições. Pares antagônicos tornam-se parceiros que comungam valores, se amam, se respeitam e preservam suas identidades. O recurso à chamada “síndrome de cinderela ” tem sido aplicado como verdade inquestionável e universal para todas as telenovelas que envolvam personagens femininas que ascendem de suas condições sociais de origem pelo casamento. De fato, dentro do amplo universo das novelas, ela ocorre com intensa freqüência, o que não autoriza sua aplicação indiscriminada, sob pena de erro de simplificação, como nos exemplos citados. Ela se justifica quando o valor “ascensão” está na cultura de origem e foi introjetado por quem aspira à mudança social e não quando ela não faz parte do universo mental, dos desejos e aspirações de mudança da personagem. No caso de Luana, por exemplo, ela só queria um companheiro, um homem que a amasse (convém ter presente tratar-se, afinal, da herdeira de uma grande fortuna, que, afinal, não tinha interesse em obter). Quanto a ele ser um homem rico e poderoso, é questão que discutiremos quando focalizarmos a telenovela como fenômeno de comunicação no contexto da indústria cultural. Mulheres fortes e ao mesmo tempo modelos de abnegação perpassam as novelas de Benedito, contradição que acentua seus traços de feminilidade e as elevam a parceiras, companheiras lutando em condições de igualdade com os homens, completando-se numa luta, onde o trabalho é o grande arquiteto do mundo desejado. Mas, uma outra mulher também aparece para se contrapor a esse modelo: são as mulheres que não deram certo. Em O Rei do Gado , Léa é a mulher frívola, autoritária, esnobe. Como mulher, nunca participou da vida de Bruno Mezenga, nem demonstrou qualquer interesse pelos negócios do marido. Cultora da própria imagem de mulher “fina” e elegante, distrai-se mantendo um amante com quem mais tarde se casa. Interesseiro, infiel e violento, irá submetêla a toda sorte de humilhações e maus tratos, um tipo de sanção ao seu desrespeito aos filhos e ao marido. Os primeiros, pelo não-exercício de seu papel de mãe e o último, pela infidelidade conjugal. - 121 -
Em relação ao homem, a afirmação da virilidade assume importância e os filhos varões devem herdá-la. Em Pantanal , o mordomo do núcleo carioca é efeminado. Paira também grande dúvida sobre a masculinidade do filho de José Leôncio. Tanto este como Bruno Mezenga se afirmam como garanhões notórios, motivo de admiração e retomada constante do período de suas vidas que consolidou essa reputação. A timidez e recato do jovem não se coadunam com o padrão masculino paterno, do macho alardeado que ganhou fama nas andanças pelo sertão, por onde deixou lembranças de amores e rastro de dores de acalentadas paixões. Difícil para esse homem rude do mundo rural aceitar com tranqüilidade a contenção do filho, educado no ambiente urbano, que não porta entre seus valores o culto da virilidade. No curso da história, ele será o herói apaixonado exatamente por uma mulher selvagem, Juma, “meio onça, meio mulher”, comprovação prática, pela via metafórica, de que a masculinidade é o domínio no qual a virilidade é apenas um aspecto. Se o pai foi um grande conquistador, a ele coube a “sorte” de conquistar a mais difícil e arredia das mulheres. A vida que pulsa na obra se constrói no movimento que estrutura um mundo físico em consonância com seres que também se constroem como mundo humano ficcional. No processo de criar, o autor vai, paulatinamente, avançando no conhecimento de seu próprio mundo interior, ampliando sua clareza ideológica e trazendo para sua ficção, sempre mais definidas e centralizadas, as inquietações do sujeito da criação.
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RASTREANDO O HORÁRIO OUTRAS TELENOVELAS1 A introdução das últimas telenovelas exibidas pela Emissora tem o propósito de demonstrar a variação de estilo que preenche o horário. Nossa preocupação em observá-las decorreu da necessidade de estar avaliando a perspectiva assumida pela pesquisa, confrontar nossos achados e ratificar ou retificar certas observações.
A INDOMADA De: Início: Término:
Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares 17/02/97 11/10/97
Colada ao modelo do folhetim, elegendo como tema principal o preconceito, A Indomada traz para o horário nobre a comédia de costumes. A telenovela apresenta como característica a recuperação de elementos de outras obras do mesmo autor, referências que pontuam a telenovela e lhe acrescentam um toque humorístico. A insistência com que a crítica considerou “repetição” certos aspectos, levou Aguinaldo Silva a admitir a A Indomada como um mix de outras novelas, assumir o recurso como estilo e acentuar o caráter de intertextualidade que marcou a obra como paródia. A tal ponto que Coronel Murilo Pontes (Lima Duarte), personagem de Pedra sobre Pedra (da cidade de Resplendor), freqüentemente mencionado como o grande e rico jogador que periodicamente visitava a cidade para grandes apostas no jogo de cartas, realmente entra em Greenville como personagem saído de outra telenovela. Na cidade, acaba ainda por se defrontar com a antiga inimiga, Pilar Batista (Renata Sorrah), agora Zenilda, dona da Casa de Campo (interpretada pela mesma atriz). Os dois se reconhecem e fazem uma reticente referência ao passado (a outra telenovela onde viveram uma contida e grande paixão). O autor trabalha a discriminação (social, racial, etc.) com os traços exagerados da caricatura para provocar o riso mais do que para denunci1 Estas telenovelas não integram a amostra. Elas, no entanto, incluem-se no período de desenvolvimento da pesquisa. Permitem repensar o caminho percorrido e o mapa que desenhamos.
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ar preconceitos2 . O sentido mais crítico se manifesta na esfera da política local. O prefeito é permanentemente exposto ao ridículo na prática da megalomania administrativa. Decorrente de uma visão da política como o exercício do poder absoluto, Ypiranga Pitiguary (Paulo Betti) ora aponta para o estilo de políticos brasileiros (mortos, vivos, ou em atividade) ora para modelos históricos como Luiz XIV, o Rei Sol da França, que se considerava o próprio Estado (L’‘Etait c’est moi ). Seu sogro, Pitágoras (Ary Fontoura), garante seus desmandos com o poder do mandato de deputado federal potencializado pelo da corrupção. Corrupto e corruptor, despreza o genro, mas suporta seus destemperos, dá conselhos que não são ouvidos e o resultado é uma sucessão de medidas disparatadas que deixam o prefeito em crises permanentes, enquanto o sogro se diverte e procura contornar como pode. São duas personagens caricatas e cômicas. A crítica aos políticos faz-se pela paródia. Do ponto de vista da crítica do cotidiano brasileiro, o autor consegue melhor resultado no trabalho com a linguagem híbrida – fusão da linguagem regional do Nordeste, língua inglesa e norma padrão do português. Orgulhosos de seguirem a tradição britânica que está na origem da cidade, os herdeiros cuidam de preservar a antiga cultura, sobretudo através da linguagem oral, sem perceber que o próprio uso a transformou 3 . O resultado dessa mescla traduz o esnobismo caipira e denuncia a vocação do país para imitar o colonizador, negando sua própria cultura e elegendo aquela do dominador como a de prestígio, pois é a linguagem do poder. A nossa história mostra a sucessão de influências culturais hegemônicas, entre elas a norte-americana. O Brasil real também fala uma língua eivada de americanismos, cujas marcas se inscrevem em lojas, danceterias, academias, hotéis, centros de estética, bares, cafés, restaurantes, comidas, para não falar em produtos, modos e hábitos de vida. Na telenovela, essa intenção de ridicularizar a importação de cultura evidencia-se na fala da personagem Lúcia Helena (Adriana Esteves) que, tendo passado longos anos estudando na Inglaterra, não utiliza uma só palavra ou expressão da língua inglesa. A ficção explora o ridículo e provoca o riso de uma situação em tudo análoga à realidade lingüística do Brasil “pós-moderno e globalizado”. 2 Mesmo reconhecendo que através do riso se alcança a crítica mais mordaz, colocando-se o preconceito como manifestação de uma personagem insana, ele se torna divertido diluindo-se no contexto da telenovela qualquer intenção crítica que possa ter partido do autor. No caso, propicia mais a catarse dos que escondem seus preconceitos, do que desperta a consciência da discriminação que ele encerra. Seria difícil, julgamos nós, para a média dos telespectadores entender que quem tem preconceito é louco, quando a loucura é que permitia à personagem (Altiva), e até mesmo justificava, as manifestações ostensivas de seu sentimento de desprezo e rejeição pelo outro. 3 Pesquisa divulgada pela revista Veja (27/08/97, p. 23) revela a opinião da população do Ceará sobre a fala das personagens nordestinas de A Indomada: para 46% é pouco parecida, para 41%, totalmente diferente. A maneira como nordestinos são representadas desperta reações como: 36% divertem-se, 22% acham que são ridicularizados.
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De: Início: Término:
Manoel Carlos 13/10/97 22/05/98
POR AMOR
A telenovela mantém-se bem mais próxima do melodrama. Mesmo assim, não se reduz a ele, pois o autor trata da questão do alcoolismo numa trama secundária e dispersa nos diálogos os temas do nosso cotidiano real como se as personagens da história assistissem aos mesmos telejornais e lessem os mesmos jornais e revistas que nós. Assuntos Tratados nas Tramas Secundárias Tematiza Alcoolismo: problema central de um dos núcleos (tratado com realismo, seriedade e respeito).
Discute
Quadro 31
Aborto: tema ligado ao mesmo núcleo do alcoolismo. Tratado sob uma ótica conservadora, mas formulando clara advertência sobre as condições perigosas em que ele se realiza, enquanto prática ilegal da medicina. Bissexualidade: resolvida com a opção pela homossexualidade; a mulher aceita com dignidade a separação, pede ao filho que respeite o pai e se declara aliviada com o fim do casamento que não ia bem: é como o fim de um longo velório: finalmente vou poder descansar. Questão racial: pouco desenvolvida (negra casada com branco que teme ter filho negro e nasce um filho branco).
Mostra
Quadro 32
Discriminação: a filha não quer o pai alcoólatra na cerimônia de seu casamento; a personagem Branca discrimina a filha e um dos filhos, hostilizandoos e agredindo-os, enquanto manifesta ostensiva preferência pelo terceiro. Esta personagem se opõe à outra, Helena (Regina Duarte), que é só bondade, compreensão e tolerância. Traços evidentes de maniqueísmo característico do melodrama. Quadro 33
Assuntos Tratados nos Diálogos Lembra Desabamento do edifício Palace II (no Rio de Janeiro) : comentário da personagem Helena, quando o irmão vai se mudar para apartamento no Rio de Janeiro e em reunião de trabalho na empresa construtora do marido de Branca (Suzana Vieira). Repatriamento: da advogada Jorgina de Freitas, das fraudes da Previdência (fala da personagem Branca). Epidemia de dengue (no Rio de Janeiro e no país): referida nas conver-
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Quadro 34
sas do núcleo pobre. Prevenção da AIDS4 Reforma da Previdência: conversas do núcleo pobre.
Corrige
Quadro 35
A telenovela corrigiu um descuido da teleficção em geral, com a higiene da boca. Personagens saem da mesa para rua, às vezes até comendo, demonstrando, implicitamente, que não cultivam o hábito de escovar os dentes. Por Amor colocou uma personagem no banheiro escovando os dentes diante do namorado e de milhões de telespectadores. Louvamos a iniciativa, que nem precisaria ser tão explicita. Uma insinuação, alusão, ou uma referência verbal já seriam de grande alcance educativo. Ao dar um bom exemplo, a mensagem educativa inserida na telenovela ganha um acréscimo de verossimilhança ao reproduzir um elemento do cotidiano vivido do telespectador. Quadro 36
De: Início: Término:
Sílvio de Abreu 25/05/98 15/01/99
TORRE DE BABEL
A telenovela inovou ao iniciar com dramas exacerbados, em lugar da apresentação gradual das personagens e dos conflitos: mostrou um duplo assassinato, a crise de um toxicômano, o relacionamento homossexual feminino, pôs lado a lado a miséria e a riqueza. Questões de interesse social Tematiza
Quadro 37 4 Como as telenovelas ora em observação não constituem a parte central de nossa pesquisa, alguns aspectos para localização e descrição detalhada dos assuntos tratados ficaram sem registro. Por exemplo, temos certeza de que a prevenção da AIDS foi objeto de alguma consideração do autor, pois constam de nossas anotações, todavia, sem a informação de quando ocorreu na história. Lembramos que muitas observações foram fruto de muita atenção. Sendo as inserções extremamente rápidas, como num fragmento de diálogo, fica difícil confrontar nossas notas pessoais com as fontes disponíveis (por exemplo, imprensa em geral, boletins de divulgação, etc.).
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A telenovela inaugurou-se com uma explosão de violência generalizada prendendo no mesmo universo o fausto e a miséria e expondo desnudada uma sociedade que o cultivo e a exacerbação da desigualdade transformaram num barril de pólvora prestes a explodir, como explodiu o Shopping Tropical Tower – A Torre de Babel . Não há como ficar indiferente a essa provocação do autor: foi unânime o mal-estar do público, particularmente pela ausência, nessa fase, de um núcleo mais tranqüilo para permitir um pouco de relaxamento ao telespectador. Essa falta tornou tensa a telenovela e afastou a audiência, que não reconheceu nela a receita tradicional, particularmente depois da açucarada Por Amor . Ousadia do autor como ponto de partida da história, mas também uma possibilidade real de tratamento direto dessas temáticas. A pedagogia dos meios, e em particular do gênero, vem preparando gradualmente para discussões mais claras, francas e corajosas. Trazê-las para o primeiro plano, para a trama central da história é um passo a mais no processo de mudança da telenovela brasileira interessada em interferir diretamente nos mecanismos de compreensão do homem, da sociedade que produz a violência urbana, buscando despertar em cada um de nós o desejo de transformá-la. Telenovelas como Por Amor , permanecem ainda muito presas ao modelo tradicional do melodrama. Dramas sentimentais, comoventes envolvendo questões amorosas e de família, numa perspectiva intimista e individual. Mas, mesmo assim apresentam alguma diferença com relação a produções de outras emissoras por incluir numa trama secundária o tema do alcoolismo e passar por temas como aborto, bissexualidade e questão racial. O que ocorre com maior freqüência é a introdução de mensagens educativas, mais como merchandising social . Ou seja, elas são circunstanciais como no caso da escovação de dentes (Por Amor ), que consideramos educativa, ou se restringem a comentários meramente informativos e pontuais sobre questões exteriores à ficção, como a “ Queda do edifício Palace II ”, que aparece em conversa fortuita entre as personagens (indicadas no levantamento – quadro – que antecede esses comentários), como assunto focalizado nos diálogos. Na verdade, o que estamos chamando de temáticas sociais ou questões de interesse social, são problemas sociais que aparecem nas próprias tramas e vão sendo tratadas ao longo do seu desenrolar. Envolve a instauração dos problemas no seu interior e traz conseqüências para essa parte da história podendo se irradiar, ou não, para a trama central. Ou, o que tem sido menos usual, e confere um maior valor diferencial à telenovela, estão na trama central com conseqüências para toda a história. Podemos exemplificar com A Próxima Vítima , O Rei do Gado e Torre de Babel . No caso de A Indomada , temos uma paródia, uma crítica de costumes que faz dela uma comédia e estabelece com a realidade uma relação de comparação indireta pela caricatura das personagens e dos acontecimentos. Por isso, inserimos na classificação de melodrama Por Amor e, A Indomada , consideramos um folhetim cômico. - 127 -
MÍDIA PAUTADA PELA TELENOVELA A hipótese do agenda-setting 1 inspirou nosso trabalho, na medida em que ela oferece a idéia de pauta e de agenda dos meios. Esta hipótese defende, segundo Shaw, citado por Mauro Wolf, que: ... em conseqüência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público sabe ou ignora, pres- ta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos es- pecíficos dos cenários públicos. As pessoas têm a tendên- cia para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os “mass media’” incluem ou excluem do seu pró- prio conteúdo. Além disso o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos “mass media’”aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas 2 . Assim formulada, a hipótese filia-se a uma linha teórica que retoma Lippmann e chega a Noelle Neumann, segundo os quais a hipótese não defende que os meios pretendem persuadir, mas ao descrever e precisar detalhes da realidade exterior, eles fornecem a lista daquilo sobre o que é preciso ter uma opinião e discutir. O agenda-setting pressupõe que a compreensão que as pessoas têm de boa parte da realidade social vem através dos meios. Se é certo, como afirma Choen, que a imprensa pode, na maior parte das vezes, não conseguir dizer às pessoas como pensar, tem, no entanto, uma capacidade espantosa para dizer aos seus próprios leitores sobre que temas devem pensar qualquer coisa 3 . As evidências apontam nessa direção e nosso próprio cotidiano é tecido com os comentários sobre os temas que a imprensa selecionou e a respeito dos quais somos instados a nos pronunciar ou, pelo menos, a demonstrar que não os ignoramos. 1 WOLF, M. Op. cit,. e MATTELART, M. & MATTELART, A. História das Teorias da Comunicação. Porto: Campo das Letras Editores, 1997. e BARROS FILHO, C. de. Ética na comunicação: da informação ao receptor. São Paulo: Moderna, 1995. 2 SHAW, 1979, 96, apud WOLF, M. Teorias da comunicação . Lisboa: Editorial Presença, 1995. p. 130. 3 Ibidem (CHOEN, 1963,13).
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Embora tendendo a concordar com alguns pressupostos da hipótese, devemos esclarecer que ela não está sendo considerada por nós do ponto de vista de sua influência sobre o público, especificamente. Para nós, o que importa é a pauta que uma mídia elabora e difunde para outras mídias. No caso particular de nossa pesquisa, trata-se de ver como a ficção televisiva pode gerar temas para os meios em geral e em especial para a grande imprensa informativa (jornais diários e revistas semanais), não como comentários sobre a ficção, mas como temas sociais, pautas sérias, assuntos de real interesse para discussão, como tentamos demonstrar neste trabalho. Tendemos a concordar também, em termos, com os efeitos a longo prazo, todavia sem qualquer veleidade de mensuração, sobretudo por entendermos que as emanações da mídia, sejam oriundas da ficção ou de outros gêneros, impregnam a cultura e passam a ser mais um traço na sua composição, entendida a cultura como um processo em permanente movimento, no qual se dá a acumulação histórica. Assim, delineia-se uma afinidade entre nossa formação teórica e as pesquisas ligadas à sociologia do conhecimento, quando o centro da questão passa a ser a importância e o papel dos processos simbólicos e comunicativos como pressupostos da sociabilidade, na perspectiva dos processos de construção da realidade. As noções de pauta e agenda entram em nossa esfera de preocupação na medida em que se harmonizam com nossa visão e contribuem para o objetivo de estudar a telenovela. A idéia de agenda transpõe-se do domínio das campanhas eleitorais para outros domínios, o que nos permite ensaiar aplicá-la à telenovela. Outra transposição tem como causa o propósito da hipótese de, originariamente, avaliar os efeitos da agenda nas audiências. Nossa intenção é verificar seus efeitos na mídia, que são mediações. Esse é o modo de apropriação que fazemos desses conceitos. Como os termos agenda e pauta estão presentes na linguagem jornalística e ficamos a meio termo entre uma filiação indireta à teoria e um vocabulário de domínio comum no âmbito da comunicação, optamos por utilizá-los de acordo com a segunda hipótese. Assim, do ponto de vista do que denominamos acumulação histórica da telenovela agendando o noticiário da mídia, com temas que ela elege para discussão, identificamos múltiplas formas de irradiação. Todavia, nosso propósito é destacar apenas aquelas formas que constituem um modo de presença-interferência na realidade, como os noticiários eletrônicos, revistas informativas, grandes jornais impressos e programas televisivos sérios, de cunho informativo, de entrevistas, etc. Estamos excluindo todos os cadernos especializados em TV e telenovela, pois os consideramos subprodutos 4 . 4 Como subproduto queremos dizer que as publicações têm por finalidade tratar exclusivamente de assuntos ligados à TV e à telenovela. Em conseqüência, sendo temáticas, não apresentam interesse do ponto de vista da repercussão indireta (grande imprensa) que buscamos. Elas poderão servir de apoio para outras finalidades.
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No que se refere às revistas informativas, grandes matérias de capa são pautadas pela telenovela, principalmente na primeira semana de exibição. Exemplos:
A PRÓXIMA VÍTIMA
Quadro 39
EXPLODE CORAÇÃO
Quadro 40
Ilustração 1 - Mídia alternativa: Sé Supermercados 5 Chamada para a grande matéria da Revista: “A Internet na terra do sol” sob a qual se enuncia: Neste ano a Internet entrou na vida dos brasileiros. Se não está conectada no computador de casa, chega pela TV como personagem de novela. A retrospectiva 1995 da Revista da Folha começa pelo futuro. 6 Com CD ROM de brinde, apontando, entre os quatro computadores mais vendidos no Brasil, o Itautec- Infoway , que foi a marca usada na trama central da telenovela: permitiu o encontro virtual de dois casais, desvio de grandes somas de dinheiro, a descoberta e denúncia do esquema de corrupção em torno da campanha política do protagonista Júlio Falcão (Édson Celulari). Neste caso, a pesquisa avalia os efeitos da telenovela (sem se referir a ela) como agente difusor e reforçador de comportamentos favorecendo hábitos e promovendo vendas.
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O FIM DO MUNDO
Quadro 41
Ilustração 2 - ISTO É - nº 1388 8 de maio de 1996
O FIM DO MUNDO - outras mídias
Quadro 42
7 Por falta de uma avaliação adequada dessa matéria em relação a um dos assuntos tema da telenovela (produção de fumo, efeitos nocivos para a saúde), não registramos os dados nem foi possível localizar a revista, no contexto de outras prioridades. 8 Traz atores para opinar sobre a questão, entre os quais Northon Nascimento, que interpreta o padre atormentado. Também se exibe uma série de entrevistas gravadas com familiares de padres que quebraram o celibato, com suas mulheres e filhos para avaliar seu desempenho como chefe de família além de focalizar o “Movimento dos Padres em Favor do Celibato”. Ao final, o apresentador formula a pergunta “você assistiria a uma missa ministrada por um padre casado? ”, para ser respondida pelos telespectadores. O resultado: 91% SIM e 8% (“aproximadamente”) NÃO, provocou manifestação de surpresa do apresentador, por expressar consenso sobre uma questão polêmica.
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O REI DO GADO
Quadro 43
Ilustração 4 - Playboy - Outu- bro de 1997
Ilustração 3 - Revista Sem Ter- ra - nº 1 - Jul /Ago /Set - 1997
9 Matéria de cinco páginas falando sobre as temáticas sociais na telenovela brasileira, com destaque para O Rei do Gado e foto de cena com Luana. 10 Com Outdoor (mídia de divulgação da revista Playboy – não documentado por nós). A essa nem o senador Caxias resiste (sem aspas, pois não sabemos se o texto tem correspondência exata com a frase inscrita no cartaz). 11 Com Outdoor (mídia de divulgação da revista Playboy ) “Não é mulher, é um latifúndio.” – “Débora Rodrigues, a sem-terra, nua na Playboy .” (documentado)
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A INDOMADA
Quadro 44
Ilustração 4 - ISTO É - nº 1430 26 de fevereiro de 1997
POR AMOR
Quadro 45
Ilustração 5 - Drinque errado Veja - 6 de maio de 1998
Ilustração 6 - ISTO É - nº 1471 10 de dezembro de 1997 12 O título escolhido pela revista, tema recorrente na telenovela, é desenvolvido na grande matéria que deu como capa foto de Vera Loyola com um cachorrinho nos braços, numa clara relação de identidade com a personagem Meg (Françoise Furton). Vera inspirou a criação da personagem e participou, como figurante de um almoço, representando a si mesma na ficção. 13 A matéria considera a telenovela Por Amor como fator capaz de explicar o aumento de 75,6% no consumo da bebida naquela região, no período da telenovela com relação ao mesmo período do ano anterior. Nela, a personagem Branca (Suzana Vieira) cultivava o hábito de tomar o drinque dry martini . Sem relação com o vermute, cujas vendas dispararam, a empresa Bacardi, detentora da marca, Martini, agradece à feliz confusão produzida pela ficção.
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TORRE DE BABEL
Quadro 46
Ilustração 7 - Revista da Folha nº 302 - 8 de fevereiro de 1998
Ilustração 8 - Veja São Paulo 17 de junho de 1998
14 Garantem que não têm nada contra os homens, mas acham que a relação homossexual é mais romântica. Inclui um quadro para responder à pergunta “Como elas fazem sexo?” 15 Sobre o tráfico de drogas. O tema aparece no contexto em que Torre de Babel está completando um mês no ar e a sociedade brasileira permanece sob o impacto da morte da personagem Guilherme. 16 Uma das personagens de Torre de Babel é Edmundo Falcão (Vítor Fasano), empresário no ramo de padarias. Num dos capítulos da semana, em cujo final saiu a revista com essa matéria de capa, Edmundo pôs literalmente a mão na massa para melhorar a qualidade de seus pães, enfurecido com os padeiros, responsáveis pelo rebaixamento do nível do produto, razão por que não foi incluído na lista dos melhores de São Paulo. Como as gravações da telenovela são feitas com antecedência, e também porque a imprensa sempre sabe muito antes o que vai acontecer na história, não parece se tratar de mera coincidência, embora não descartemos a possibilidade, ainda que pouco provável, da relação de pauta ter sido invertida.
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FICÇÃO E REALIDADE Nesta parte, discutiremos as interações entre ficção e realidade, tendo como pressuposto o cenário da realidade atual brasileira, suas disparidades, seus problemas e seus impasses. Abordaremos as telenovelas focalizadas de maneira sintética, nos detendo um pouco mais no que consideramos a situação mais exemplar de simbiose do real com o ficcional, configurada pela telenovela O Rei do Gado .
A PRÓXIMA VÍTIMA Em outubro de 1998, São Paulo contabilizava a 77ª chacina. A Folha de S. Paulo , 21/02/99, traz resultado de pesquisa Márcio Pochman (Unicamp) sobre a participação do Brasil no total de desempregados no mundo. O país ocupa o quarto lugar em número absoluto de desempregados, perdendo apenas para a Índia, Indonésia e Rússia. O aumento da participação brasileira começou em 95, quando a abertura econômica se acentuou. O levantamento indica que a globalização promove a “exportação” de empregos dos países pobres para os ricos. No mês de janeiro, o IBGE aponta um índice de 9,18%, um recorde na taxa de desemprego na região metropolitana de São Paulo. Também, segundo o mesmo órgão, como conseqüência, cai a renda. Caso a expectativa de redução da renda em 99 se confirme, os anos 90 vão terminar como começaram quanto ao rendimento do trabalho: em queda. De 90 a 92, ele teve queda de 37,73%, sendo o pior resultado o de 91 (-17% sobre 90)1 . A telenovela procura trazer para a ficção as principais questões que constituem elementos de inquietação social das grandes cidades e de São Paulo, em especial. Não incorreríamos em erro se abrigássemos todas sob a denominação comum de “violência”. Isto porque os problemas sociais focalizados se apresentam ou como causa, como meio ou como sua conseqüência direta ou indireta. Por outro lado, a violência se manifesta sob variadas formas, das mais sutis como o medo ou nem sempre visíveis como a fome, até as mais ostensivas e cruéis: a violência física e sua versão limite, a morte. Assassinatos, assaltos, ação de trombadinhas, tráfico de drogas, preconceito, intolerância, fraudes, traições, corrupção, atropelamento, difi1 Dados publicados pela Folha de S. Paulo , em 03/03/99.
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culdade de recuperação de dependência química entram no tecido de violência cotidiana da grande metrópole ficcional numa apropriação do cotidiano da cidade-referência em que se desenrola a história. Trazendo a diversidade cultural da nossa “Paulicéia Desvairada”, ressaltando aspectos da cidade de São Paulo (Mercado Central, ruas, avenidas, bairros) “com referências precisas à realidade” 2 (Centro, Morumbi, Moóca, Aclimação, etc.), constrói-se o “cenário” para a história, incorporando-se as marcas do seu cotidiano trepidante, violento, em meio a nichos de tranqüilidade. Afinal, a nossa cidade não é só violência, tal qual na telenovela ela é paradoxal na sua relação de ordem e caos, de amor e ódio, de vida e morte. Assim, em meio aos problemas, a telenovela mostra a vida, a amizade, a solidariedade, a sensibilidade e sobretudo o trabalho sem charme que põe essa máquina desumana para funcionar. Os contrastes são sublinhados: o mundo dos ricos, da classe média, da favela, o submundo. As personagens más são poucas em relação à maioria, que é humana e ética. O mundo dos jovens é um mundo bonito, de rotinas de estudo, de trabalho, de namoro, de lazer. Na vila dos descendentes italianos, as relações de amizade, o clima de ordem e a alegria têm marcada presença. Desse modo compõe-se a sociedade ficcional onde também estão presentes o negro, a prostituta, o homossexual. Eles constituem, como os favelados, grupos expostos ao preconceito, à discriminação e à intolerância. São alvos naturais de hostilidade, das armas dos justiceiros, da polícia e de moralistas fanáticos. Os indicadores de criminalidade registram essa preferência e as denúncias de manifestações de racismo são constantes no noticiário da imprensa em geral. São estes os temas que o autor discute para mostrar por meio de uma construção sensível, cuidadosa e bem elaborada de personagens, a não-correspondência entre o ser dessas personagens e o parecer estereotipado que a sociedade lhes imprimiu. O final feliz constitui apenas o resultado da superação, no âmbito da história, das dificuldades vividas no interior daquele grupo de seres preocupados mais em amar e ver as pessoas por dentro do que entregarem-se à simplificação dos estereótipos e das aparências. Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como se fosse uma obra de ficção? Ou, se os mundos ficcionais são tão pequenos e ilusoria- mente confortáveis, por que não tentar criar mundos ficcionais tão complexos, contraditórios e provocantes quanto o mun- do real? 3 . 2 ECO, U. Op. cit. 3 ECO, U. Op. cit ., p. 123.
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Essa indagação de Eco parece constituir um desafio para a criação em geral e em particular, achamos nós, para os criadores de ficção. Consideramos ser esta uma tentativa das telenovelas das quais nos ocupamos e que denominamos “telenovela brasileira”. Homossexualidade (...) eu tenho certeza de que muitas mães passaram a tratar seus filhos de uma maneira melhor depois daquela novela. (Elias Lilikan) 4 A questão da homossexualidade há muito é assunto para revistas especializadas e sua inserção na grande imprensa limitava-se ao noticiário policial, conforme demonstram os levantamentos feitos em jornais de 19945 . O campo de significação é o da ‘violência’, evidenciando que só interessavam à sociedade os conflitos e confrontos gerados pelo assunto. Essa redução do campo, apesar de sinalizar a intolerância, não contribuía em nada para alterar a situação de exclusão, ou para a visibilidade da questão como assunto de interesse humano, social e cultural. No decorrer do levantamento, gradualmente a temática passa a ocupar outros espaços dentro do veículo pesquisado (Folha ( Folha de S. Paulo ), ), que vão do cultural (Ilustrada (Ilustrada ) ao político e até mesmo a cadernos especiais (10/08/97), onde, por exemplo, matéria sobre o dia dos pais dedica meia página aos pais homossexuais. No período abrangido pela pesquisa (1994–98), é clara a mudança de tratamento da questão. Em 1995, o Movimento de Homossexuais, que se inicia em 1992, se fortalece e tem na telenovela um poderoso aliado. Matéria de 04/06/95 no caderno TV Folha com Folha com o título “Militantes Gays comentam a novela” traz duas páginas de depoimentos que apontam a aceitação da personagem gay , por exemplo: Sinto-me dignamente representado por Sandro e Jefferson . A novela os apresenta como cida- dãos (Toni dãos (Toni Reis – Secretário geral da A.B.G.L.T). O ator, homossexual e negro Eduardo de Oliveira, lembrando o estereótipo diz: “Preto na TV ou é bandido ou é empregada doméstica” . E o psicanalista Arnaldo Domingues diz que a abordagem do tema em uma novela ajuda a reflexão sobre o preconceito, o povo vai poder elaborar melhor a questão do preconceito. Acho que o público normal de telenovela está se transformando. Tendo que trabalhar com tipos, o mais freqüente é resvalar para o estereótipo. A telenovela conseguiu não só evitar isto como construiu personagens dotados de plena humanidade. Ao dar centralidade ao assunto, provocou atenção, interesse e reflexão sobre o tema. Para conse4 Fragmento retirado de entrevista concedida à autora em 02/99 pelo coordenador da A.B.G.L.T. (Associação Brasileira de Gays , Lésbicas e Travestis), quando se referia à telenovela A Próxima Vítima . 5 Ver SOLLER, M. M. A construção das personagens homossexuais Sandro e Jefferson na novela A Próxima Vítima: preconceitos e/ou rupturas . rupturas . São Paulo, 1998-99. (projeto apoiado pela Fapesp e sob orientação desta autora) mimeo
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guir superar as barreiras, o autor teve que esconder da imprensa detalhes sobre essas personagens e omitir sua condição homossexual. Foi o modo de construir suas personagens sem uma prévia rejeição do público. Afinal se a sociedade é preconceituosa, cabe às artimanhas da criação descobrir modos de esquivar-se. esquivar-se. Se é certo que o movimento da Associação Brasileira de Gays , Lésbicas e Travestis – A.B.G.L.T – alcançou com suas ações um certo reconhecimento e visibilidade social, não ampliou significativamente seu espaço além dos reservados a esse grupo. A telenovela trouxe como contribuição permitir que a sociedade brasileira reconhecesse nessas pessoas, não o direito à opção de esconder-se ou integrar-se ao grupo de homossexuais, mas o direito de assumir sua orientação no âmbito da sociedade e sobretudo da família. É no campo da compreensão e da afetividade que ela exerceu o seu papel de levar os telespectadores a conviver com a diferença e experienciar, pela via ficcional, uma situação que irá conquistar, na realidade, foro e espaço para existir.
EXPLODE CORAÇÃO Glória Perez, ao trazer para a telenovela a Campanha das Crianças Desaparecidas, presta um inestimável serviço às mães que tinham seus filhos desaparecidos e não encontravam canal para amplificar seus apelos de forma que eles chegassem a toda a sociedade e pudessem recuperá-los. A telenovela provou ser a maior tribuna do país, p aís, como muitos a consideram, ao sensibilizar a população, a imprensa e até os envolvidos no “roubo” de crianças (quando estes eram pessoas amigas da família e deram notícia delas). A campanha, iniciada na telenovela, encontrou ressonância nos mais diversos setores da sociedade que a tomaram para si e ampliaram seu alcance. Conforme já dissemos, indústrias, supermercados, Caixa Econômica Federal passaram a estampar em embalagens, folhetos de divulgação e nas listas de prêmio da Loteria Federal, fotos dos desaparecidos. A imprensa apressou-se a investigar o destino das crianças e, como resultado, a maior parte delas foi localizada. Esclareceram-se algumas razões relacionadas com a própria família e a sociedade pôde tranqüilizarse um pouco.Também o Movimento das Mães da Cinelândia serviu de modelo para movimentos como o de São Paulo e de outras cidades do país. Nesse caso, talvez se possa até relativizar alguma perda do talento criativo stricto sensu em sensu em favor da vontade política e da sensibilidade social do autor e da Emissora. Esse tipo de campanha de divulgação, com inserção em produtos da mídia em geral, uma prática comum em países como os Estados Unidos, em vídeoclipe, cenas de filmes, seriados, etc., não era usada no Brasil até sua introdução na telenovela. Ela fez escola e hoje é uma tendência - 138 -
a se consolidar com o tempo. Comprova-se que a telenovela, mesmo inserida predominantemente no modelo do melodrama, pode desempenhar uma função social importante. Registramos, com relação à campanha, um prejuízo para a ficção na medida em que a incorporação direta da realidade e, sobretudo, a insistência na exposição das mães reais quebrou a sensibilização e o envolvimento emocional que a ficção estava produzindo. Lamentavelmente, as mães não atrizes não puderam convencer de sua dor verdadeira, pela incapacidade de representar na telenovela a si mesmas6 . Talvez, por ser a primeira experiência, ela tenha ficado entre o que denominamos temática social e o merchandising 7 , no primeiro caso, por estar dentro de uma trama secundária e no segundo, por ter resvalado para insistência que transformou a campanha num apêndice que incorporou a realidade diretamente, sem conseguir transformá-la adequadamente em elemento artístico.
O FIM DO MUNDO A sociedade construída ficcionalmente por Dias Gomes é a mesma em que vivemos, em cujo cotidiano estão os problemas experimentados no nosso dia-a-dia de perplexidade e indignação, povoado de coerções e opressões, que a cada passo nos nega direitos, nos rouba a cidadania, proclama o individualismo. Regida pelas manipulações do poder, oscila entre a falta (para a maioria) e o excesso (para uma minoria). Dentro dos limites da própria ficção, estão aspectos da realidade recriados parodicamente como forma de denúncia e crítica. As instituições e seu funcionamento precário: administração pública, segurança, justiça, saúde, imprensa, manipulação e corrupção política são elementos postos em destaque. Como eles existem na realidade do nosso cotidiano social e constituem temas permanentes dos telejornais e, por extensão, do noticiário nacional em suas diversas manifestações, estabelece-se um intenso diálogo implícito envolvendo esses espaços aparentemente disjuntos. Aparentemente, em razão do tratamento peculiar (universo ficcional) e das coerções de cada um, mas não dos temas postos em circulação, do debate suscitado e das denúncias. O fim do mundo, afinal, é, na obra de Dias Gomes, a nossa sociedade que ele nos mostra metaforicamente no espelho ficcional. Na telenovela, os problemas constroem-se no cotidiano das personagens e da cidade ficcional, no trânsito pelos aparelhos de que ela está equipada: farmácia, hospital psiquiátrico, pronto-socorro municipal, prefeitura, casa noturna, fábrica de charutos, igreja, gruta do amor, etc. Tais problemas vão do descaso com a saúde à inoperância das instituições 6 Outras críticas às telenovelas podem ser vistas em MOTTER, M. L. Telenovela: arte do cotidiano . Revista Comunicação & Educação, São Paulo, USP/Moderna, n. 13, p. 89-102, set/dez.1998. 7 Entendemos o merchandising social como social como uma mensagem ou um apelo de cunho social, sem vinculação estrutural com a trama ou subtramas.
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submetidas ao poder econômico dos coronéis locais, passando pela droga, pelo crime, pelo preconceito, pela delação, pela impunidade, pela imprensa sensacionalista e corrupta, pelas negociatas, pela subserviência aos norte-americanos, pela luxúria, castração e pelo estupro, entre outros, em meio à ignorância e à crença em profecias de iluminados, enquanto os aproveitadores de plantão saqueiam o bolso dos pobres ou se apropriam dos bens dos parceiros sociais. As denúncias da semana e o noticiário do dia atestam a analogia e a relação de proximidade entre esses dois mundos que se superpõem, se confundem e se interpenetram na simultaneidade do escorrer paralelo de ambos na sucessão dos dias, através do cruzamento de todas as noites, onde fica difícil distinguir o que é reflexo e o que é refração e qual dos pólos determina o outro. A ficção, nesse caso, trata de problemas da nossa realidade cotidiana, propiciando uma visão ampla de um real nem sempre percebido no seu conjunto, de um país desgovernado e submetido aos desmandos dos grupos que detêm o poder econômico e político, definem a ética e a moral conforme a circunstância e expropriam de seus direitos o cidadão comum. O fim do mundo não é o fim dos tempos, mas o fim da ética, da solidariedade e de todos os princípios indispensáveis à saúde moral do homem. A proximidade do segundo milênio reaviva a ameaça e o temor de que o mundo se acabe. O ano 2000 constitui para muitas profecias um tempo limite para a humanidade. Para ele convergem previsões das mais variadas tendências religiosas que têm no apocalipse seu ponto de maior concordância. A variação está nos detalhes: nos sinais que o indicam, no modo e no momento exato em que se dará. Por todas as profecias estarem sujeitas a interpretações, sobreleva o consenso quanto à sua inevitabilidade e sua proximidade, além do marco (ano 2000), discutível do ponto de vista dos cálculos, mas nem por isso menos temido. Em matéria da Folha de S. Paulo de 18/08/98, sob o título “Ignorância científica é ameaça”, o físico Marcelo Gleiser fala sobre o fim do mundo. O cientista declara que “a ignorância científica” pode ser uma ameaça para a sociedade. Ele citou como exemplo o caso de membros de uma seita nos EUA que acreditaram poder pegar carona, para o céu, em uma nave espacial, quando da passagem do cometa Hale-Bopp nas proximidades da Terra – e por isso se mataram. Para o físico, a proximidade do milênio tem provocado “medos an- cestrais” nos seres humanos. Ele lembrou que a passagem para o ano 1000 levantou questões parecidas – o mundo mudou muito, mas os anseios continuam presentes . Gleiser afirmou que a ciência e a religião têm uma origem comum: a necessidade humana de “controle do medo ”, que pode ser feito pela razão ou por rituais. Mas a cosmologia já consegue explicar como era o Universo um bilhonésimo de segundo depois do Big Bang , a - 140 -
grande “explosão ” que teria dado origem ao Universo. Quanto ao final, também não há certeza. O Universo poderá se contrair ou continuar se expandindo indefinidamente. O mais certo é que o Sistema Solar em que está a Terra deverá acabar em cerca de 5 bilhões de anos, com a explosão do Sol. Mas, bem antes disso, um asteróide gigante poderá já ter arrebentado a Terra, ou provocado extinções em massa, como fez aquele que caiu há cerca de 65 milhões de anos, extinguindo os dinossauros.8 A memória coletiva guarda reminiscências de um fim do mundo sempre anunciado9 no curso de sua existência e uma vaga certeza de que um dia ele acontecerá: pela mão de Deus, do homem ou do acaso, na maioria das vezes como castigo, em algumas até como prêmio. Dias Gomes brinca com essa realidade, ao criar com sua ficção sua versão do fenômeno. Qual final será mais adequado? O do ensaio geral ou o último? Qual a leitura de superfície de um telespectador médio? Talvez do primeiro como sinal, como aviso e do segundo como o fim propriamente dito, vindo sob a forma de um choque entre corpos celestes? Se é possível essa leitura quando isolamos o tema, ela se mantém no contexto da história desenvolvida durante pouco mais de um mês? Há muito mais o que ver e pensar para além da proposta explicitada no título O Fim do Mundo e aquém de sua concretização na telenovela. Ela constrói um micro universo social de uma população que nada tem a ver como uma sociedade ideal: justa, ética e moral.
O REI DO GADO O Senador Caxias “Incomoda muita gente se você vai fundo no que faz. Inco- moda um ser humano diferente, incomoda um ser humano singular.” (Guilherme Arantes)10 Na telenovela, uma presença forte é a da personagem do senador Roberto Caxias, que vai conferir uma dimensão importante à história: a política no sentido estrito. Dentro das possibilidades dramatúrgicas que teriam permitido uma outra construção da personagem – representante do Congresso na telenovela, como senador em exercício – o autor optou por mostrar um político completamente fora do padrão, tanto da atualidade, como da tradição brasileira. 8 Folha de S. Paulo , Mundo, 18/09/98, p. 7. 9 O Jornal Nacional (Rede Globo, 20 horas) em sua edição de 03/07/99, lembrava que uma das 1141 previsões existentes anunciava para o dia seguinte, 04/07/99, o fim do mundo. As seitas, ligadas a esta profecia, preparavam-se para o desfecho fatal. O apresentador, apoiado no fato de que as previsões de Nostradamus chegam até perto do ano 4000, aconselhava largar o emprego, cair na farra ou usar o cartão de crédito e deixar para os Quatro Cavaleiros do Apocalípse (a tarefa de) acabar com os problemas. Superada esta data, passou-se a esperar o dia 11/08/99 com grande apreensão. Pauta da mídia, capa de revistas informativas semanais, grande expectativa na véspera da sexta-feira treze. O mundo viveu uma certa desordem mas não acabou. 10 Da música Saco de Pancada de Guilherme Arantes.
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Na verdade, construiu um Jó bíblico. Um Jó capaz de vencer, com resistência estóica, duras provas. Das seduções e armadilhas do poder à tentação da própria carne a que foi reiteradamente submetido. Como os predestinados, caminhou solitário, paciente e firme, lutando em defesa de suas crenças e de seu ideal humano de usar o mandato como representação legítima do povo e de um segmento expressivo de excluídos sociais. A posição de mediador entre o trabalhador sem-terra e o Congresso Nacional não garantiu, para os primeiros, o sonhado pedaço de chão e trouxe, para ele, o descrédito que provocou o afastamento de seus pares, minando-lhe o prestígio a ponto de tornar-se um excluído no seu próprio meio, sem direito de ser ouvido na tribuna do Senado da República – uma forma cruel de silenciamento, por recusa da audiência. Quando sua fala levou gradualmente ao esvaziamento do plenário, o senador permaneceu impassível, digno. Leu, até o final, o seu discurso. Garantia, ao menos, o seu registro nos anais do Congresso. Uma forma de deixar documentados para a história seu empenho, suas intenções, sua proposta, o testemunho de sua preocupação em alertar sobre o perigo da situação explosiva no campo, intensificada a cada dia em confrontos sempre mais freqüentes e mais sangrentos. Ele advertiu, no Senado, o Congresso Nacional e o Governo11, sobre a urgência de uma política agrária capaz de pôr fim aos confrontos pela terra. Um recado do mundo do “faz de conta” para o mundo real. Seu discurso, em favor de uma reforma agrária de fato, tenta sensibilizar lideranças, políticos e a Nação sobre a situação de perigo representada pelo desamparo total dos trabalhadores rurais sem-terra, pondo em jogo a vida, como valor único e último na luta pela conquista de um espaço de sobrevivência. Como interlocutor entre o grupo e o poder constituído, o senador ficcional teve mais êxito na contenção das ações dos sem-terra do que na defesa dos interesses destes diante do poder. Ou seja, ele foi mais feliz na interlocução com os sem-terra do que com o governo. Essa situação está claramente representada no discurso solitário do senador Caxias, pela indiferença, descaso e inconveniência de sua postura de seriedade e pelo rigor com que pretendeu cumprir um papel que deveria ser apenas encenado, manipulador e político, no pior sentido da palavra, conforme a prática dominante no Congresso. Suas palavras, reverberando no espaço vazio, soaram tristemente trágicas, fazendo ecoar a desilusão do herói melancólico diante da constatação de que o seu mandato, legitimado pelo povo, acabava de ser cassado com o esvaziamento do plenário. Sequer se manteve a representação teatral: a corte se retira porque se rompeu a ficção. O senador deixou seu papel de ator no espetáculo, onde seria o protagonista, para assumir, aos olhos do elen11 Ou seja, o governo brasileiro presidido por um intelectual, cuja trajetória inclui a consciência da desigualdade social e trabalho acadêmico centrado no problema, na denúncia e no clamor por uma sociedade mais justa e igualitária.
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co, o do louco, sonhador, visionário que acreditou ser o palco uma tribuna verdadeira, onde poderia pronunciar-se como o porta-voz de seus representados. Nesse episódio, começa a morte do senador Roberto Caxias. Ele sobrevive ainda, para preservar os sem-terra de massacres, pregando o diálogo, tentando mostrar-lhes o caminho da legalidade, insistindo sobre a inutilidade de se exporem às baionetas12 . Do ponto de vista da ficção, a estratégia do autor funcionou. O discurso, rejeitado no Senado, encontrou na realidade a acolhida de 80 milhões de brasileiros. Por mais longo e cansativo que pudesse ser, o repúdio natural à atitude dos senadores da república (e, por extensão, à classe política) tinha que ser manifesto com a atenção redobrada do telespectador. Este, com direito posterior a críticas e reclamações contra a personagem que retinha a ação, impedindo o desenvolvimento da trama romanesca. Crítica pertinente e corretamente política por se endereçar à ficção. O senador, guardadas as proporções, estava em situação de se identificar com os despossuídos que defendia: rejeitado pela mulher, discriminado pelos “amigos” políticos, que aos poucos vão se afastando, pelos colegas senadores, que o deixam falando no plenário vazio. Vive a solidão dos excluídos. Dos sem território, sem lugar. Sua retidão moral, sua pureza de princípios, sua honestidade, seu apego ao trabalho, seu rigor ético, sua fidelidade (à mulher e à causa que defendia) fizeram dele um raro exemplar da classe. Conservado apenas para incomodar, com seus valores em desuso, as confrarias de iguais, tão melhores quanto mais identificados entre si, na prática das barganhas, das negociatas, dos conluios, das simulações, e dos modernos recursos de criação de imagem, onde o homem público não tem que ser e parecer, mas, simplesmente, parecer não sendo. No jogo das identidades, o Outro, enquanto definidor do Eu, não podendo ser o diferente, tem que ser excluído. O senador precisa morrer. Como também irá morrer Regino, que não negociava seus princípios e mesmo entre os seus iguais era um diferente enquanto líder. Ele só queria a terra. Um ideal muito modesto para uma liderança. Ela deve ter ambições maiores de caráter político para agenciar forças e dar ao movimento poder de enfrentamento com o poder constituído. Regino vivo passou a representar um modelo desviante, em desacordo com os objetivos do movimento. Com um perfil e um caráter contrários aos interesses da classe dominante a quem convinha manter a imagem das lideranças do movimento longe das fronteiras da legalidade, Regino precisava ser morto e apagado como exemplo, símbolo, memória. 12 A palavra baioneta apareceria em fala real do presidente FHC, ao advertir o MST : contra pedras existem baionetas , numa referência explícita ao uso da força para conter ações dos sem-terra, quando um dos seus líderes sugeriu aos sem-teto a invasão (na verdade ocupação) de supermercados (dos estacionamentos), como forma de pressionar o governo a tomar providências.
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Senador Caxias e Regino, duas peças em desuso no sistema, dois espelhos de uma verdade. Para serem quebrados e não refletirem a degradação de valores humanos tornada consensual, tornada norma na sociedade. Dois excluídos por excesso de virtudes e de humanidade. Como reage o Congresso? Discursos dos Senadores Ney Suassuna e Eduardo Suplicy (sessão de 23/07/96). Os tênues fios que demarcavam as fronteiras entre ficção e realidade rompem-se. A novela entra nas discussões do Congresso Nacional. O senador Ney Suassuna (PMDB-PB) protesta na tribuna do Senado contra a irrealidade da cena em que aquela casa é representada na telenovela e a discussão se amplia envolvendo outros membros do Senado, como Eduardo Suplicy. O Congresso Nacional reage protestando contra um produto ficcional que elabora uma representação contrária à imagem que se busca criar para a instituição, já corroída e desgastada por sucessivas denúncias de corrupção e fraude. As CPI’s integram a rotina da casa e desde muito se sabe sobre a “assiduidade” dos parlamentares e a falta de quorum para votação de matérias. É a realidade do Congresso afetada pela ficção que entra na pauta das discussões: o senador ficcional, sem ouvintes, entra nos anais do Congresso real. Com seu discurso ainda ressoando nos ouvidos das bases dos políticos reais, constrange-os a reorientar sua postura, num momento particularmente feliz do calendário: as eleições de outubro/novembro de 1996. No Senado, Ney Suassuna ocupa a tribuna por vinte minutos para defender o Congresso Nacional da imagem desfavorável produzida pela ficção. No início de sua fala, uma espécie de introdução, ele vai reconhecer a importância da televisão no Brasil, o alcance da Rede Globo, das telenovelas do horário nobre e de sua influência sobre os telespectadores, considerando que “82% das residências urbanas (aí incluídos os barra- cos das favelas) dispõem de aparelho de televisão”. Ratificada a capacidade de influir da telenovela, ele entra em considerações sobre suas características dramatúrgicas. Segundo ele, a trama ficcional tem personagens realistas demais: (...) a novela tem cunho realista, ou melhor, de ultra-realismo, segundo críticos, especialistas, au- tores e atores, que procuram mostrar uma trama de ficção, mas com personagens que perfeitamente poderiam ser encontrados no dia-a-dia de cada um de nós. Para concluir com uma indagação: Então, por que a tomada do plenário superdimensionado – não é o plenário do Senado, e sim algo que poderia ser o auditório Petrônio Portella, por exemplo, ou algum teatro para pelo menos mil pessoas, não o Senado que tem oitenta e - 144 -
uma cadeiras – senão para ampliar o vazio, reforçando a tese de um bando de vadios e negligentes que vivem aqui e ganham sem trabalhar? Na lógica do Senador, se a telenovela alcança tal grau de realismo ela deve ser tão colada à realidade, a ponto de reproduzi-la de modo direto, ou seja, se as personagens são seres tão reais que podem ser identificadas com pessoas com as quais cruzamos na rua, então, tudo tem que ser assim e o mundo concreto é o único cenário digno de personagens tão dotadas de humanidade. Na cena em discussão, o cenário para o senador deveria ter sido o próprio Senado Federal. Como se ali fosse um lugar disponível aos meios de comunicação para produções ficcionais. Ele sabe que não é, mas, para resguardar a imagem da Casa, que interessa a ele, usa como argumento o pressuposto de que poderia ter sido. A crescente indignação do Senador Suassuna leva-o a apontar uma intenção deliberada de atingir a Casa: Por que a supervalorização do isolamento do Senador honesto e trabalhador, ilhado por uma totalidade de parasitas da nação? Não se encontra outra explicação, senão a má fé deliberada. O Senador questiona, como último argumento, o papel da televisão e dos intelectuais no apoio ao fortalecimento e à consolidação da democracia e conclui: Respeito e admiro o autor da novela ‘O Rei do Gado’, mas não acredito no pretenso resgate visual e histórico do Senado e dos Senadores junto à opinião pública, razão que poderá vir a ser alegada a partir da frágil construção do seu Senador. Aqui, após ter, pouco antes, exaltado o realismo das personagens, ele fala em “frágil construção do senador ”, estabelecendo uma certa contradição ou, pelo menos criando ambigüidade, afinal o que ele quer dizer agora sobre a personagem e em que sentido ele a considera frágil? A fala do Senador Ney Suassuna vai dar oportunidade para a réplica que trará o pronunciamento do Senador, pelo Partido dos Trabalhadores, Eduardo Suplicy. Um longo pronunciamento onde defende a pertinência do discurso do senador ficcional, descreve a cena, diz que ela fez bem ao Senado, confirma, com exemplo, a baixa freqüência dos senadores às sessões. Para ele o cenário condiz com a realidade da Casa e chama o testemunho de lideranças do MST e de João Pedro Stédile, que teria se emocionado, porque o discurso atingiu em cheio a questão da reforma agrária, tendo considerado apropriada a cena como um todo. Neste ponto, Eduardo Suplicy veste a roupa da personagem e convoca um grande debate sobre a questão (reforma agrária) convidando-se todas as partes envolvidas, com a recomendação de que os senadores compareçam: Espero que, desta vez, estejamos todos os senadores presentes, e talvez essa cena, com o plenário cheio, possa ser objeto de atenção de Benedito Ruy - 145 -
Barbosa. Como se vê, a telenovela não só entrou no Congresso Nacional, como virou pauta e entrou nos Anais do Congresso. No mundo da ficção, era esse o propósito do devotado senador Caxias, só que os anais que ele perseguia eram de faz-de-conta, embora esteja de todo evidente que o objetivo do autor, no tocante à realidade da vida política brasileira, não apenas foi alcançado como ultrapassado largamente, com dividendos superando as expectativas. Do ponto de vista da realidade, é a vida que imita a arte quando o senador verdadeiro se assume como mediador entre o Governo e o MST, papel que foi do senador morto na telenovela, e propõe um grande debate para discutir com todos os lados envolvidos a reforma agrária. O Congresso Nacional manifesta, pois, através de uma de suas Casas, o Senado, sua preocupação com a telenovela e reconhece sua importância. Esse reconhecimento expresso no conteúdo das falas dos senadores constitui, pelo registro nos Anais (documento com o qual estamos trabalhando) daquela Casa, um documento histórico que eleva a telenovela, como desencadeadora dos discursos daquela sessão plenária, a fato de relevância política nacional. A ênfase posta na dimensão sociopolítica da novela, ao transcender os limites do melodrama, eleva-a a condição de espaço para o exercício político e a transforma em poderoso instrumento de ação sobre a realidade. Assim, os senadores, ao queixarem-se da ficção, do seu cenário, ao referirem-se ao exagero da imagem produzida (modo de o produto artístico elaborar a sua crítica) comportam-se como se ela tivesse a obrigação (função) de reproduzir com total fidedignidade o real concreto. Na defesa (do Senado) acusação (da telenovela), o senador Ney Suassuna chega a discutir que a impressão de plenário vazio teria sido dada pelo tamanho do auditório, sem correspondência com o do Senado real, que dispõe de apenas 81 lugares. A crítica toma por base uma impossível correspondência entre ficção e realidade para apoiar ou rejeitar a imagem ficcional do Senado, produzida pela telenovela. O pressuposto se torna posto: se a telenovela confunde congressistas, como duvidar de seu efeito sobre a audiência ampla e heterogênea do Brasil continental, com suas disparidades regionais, econômicas, étnicas, culturais e sociais? Não é o próprio senador Ney Suassuna que diz: (...) o alcance da telenovela no Brasil, principalmente daque- las veiculadas pela Globo em horário nobre, é algo de real- mente poderoso, se considerarmos que 82% das residênci- as urbanas (aí incluídos os barracos das favelas) dispõem de aparelhos de televisão. Imaginem o estrago que uma imagem, traduzindo um fio condutor mal direcionado, pode fazer se repetida seis dias por semana sistemati- - 146 -
camente? (grifo nosso) A simpatia pela causa, despertada pela telenovela, e a consciência de que a solução depende da reforma agrária, como fez ver a hábil e paulatina construção do cotidiano ficcional – pontuada de dificuldades, privações, sofrimento e mortes, tendo como único interlocutor e mediador o senador Caxias – pesou fortemente sobre as decisões do Congresso Nacional. Projetos em tramitação naquela Casa, como o Rito Sumário para desapropriação de terras improdutivas e o novo Imposto Territorial Rural – ITR, passos em direção à Reforma Agrária, foram aprovados pelos congressistas que, às vésperas das eleições, temiam represálias de seus eleitores caso votassem contra. Consideramos este episódio um argumento muito forte em favor de nossa tese de que a telenovela, objeto deste trabalho, está entre os acontecimentos de maior importância na vida nacional. Não fosse ela assunto tão sério teria entrado e ocupado tempo e espaço em uma Casa de Leis? Consideramos não só um apoio à nossa tese pelos argumentos dos Senadores, mas principalmente pelo fato em si e pelo selo oficial que chancela tal depoimento. Afinal, trata-se do reconhecimento público, expresso oficialmente, por um dos três poderes da República Federativa do Brasil, o Congresso Nacional. Aqui, abrimos um parêntese para lembrar que o mesmo Senador, Eduardo Suplicy, visitou, logo após o término da telenovela, o Pontal do Parapanema (SP). Permanecendo um dia entre os acampados, pernoitou numa das barracas (... havia menos insetos do que costuma ter em São Paulo ou no meu apartamento em Brasília), que achou confortável (... me senti como se estivesse em casa) e acompanhou as atividades rotineiras do grupo. A experiência foi acompanhada de perto pela imprensa e ganhou ampla divulgação13 . No curso das nossas discussões a atitude do Senador ganha ares de representação (... de madrugada fez calor, mas havia uma janelinha que permaneceu aberta e permitiu a ven- tilação como se tivesse ligado o ar condicionado)14 . Talvez um modo de confundir o imaginário popular, introduzindo-se sorrateiramente na vaga deixada pelo senador Roberto Caxias que, nesse momento, já havia morrido na telenovela. Mas, no andamento de nossas discussões, o senador ainda não morreu, está apenas condenado. Fechamos o parêntese. As conquistas do senador foram modestas. Seus últimos esforços como congressista apontam em favor de mudanças na política fundiária: aprovação do ITR e do Rito Sumário para desapropriação de terras improdutivas. 13 “UDR – No dia anterior, o presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Roosevelt Roque dos Santos, disse que a visita do senador ao Pontal do Paranapanema de nada vai adiantar se as invasões do MST continuarem na região .” Folha de S. Paulo , 08/02/97. 14 “Suplicy diz que barraco é como casa ”. Folha de S. Paulo , Edit. Brasil, p. 1-10, 08/02/97 (CD -Rom Folha de S. Paulo ).
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A questão agrária, o MST A concentração de terra nas mãos de poucos proprietários e o imenso número de latifúndios improdutivos são traços marcantes da estrutura fundiária brasileira. As grandes propriedades representam apenas 2,8% de todos os imóveis rurais, mas somam 56,7% de todas as terras, de acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). E 62,4% das propriedades rurais são consideradas improdutivas, ainda segundo o Incra15 . O governo federal anuncia em dezembro de 1997 o assentamento de 81.994 famílias no ano, superando a meta de assentar 80 mil em uma área de 4,8 milhões de hectares, dos quais 52% na Região Norte. Enquanto o governo se orgulha de ter realizado mais assentamentos que o total dos três últimos governos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST - a mais importante organização que luta pela reforma agrária, contesta os números oficiais e responsabiliza a atual política econômica pela crise no campo. O MST é um movimento iniciado em 1979, com a ocupação da fazenda Macali, no Rio Grande do Sul, que começa a se consolidar nos anos 87/89 e se firma nos anos 90. É um movimento social que consegue aglutinar principalmente os trabalhadores rurais que querem lutar por terra e pela reforma agrária a que se agregaram objetivos de mudanças na sociedade. Segundo João Pedro Stédile (...) do ponto de vista sociológi- co, chegamos a um consenso depois que o movimento já existia, e acha- mos que ele se caracteriza como movimento de massas no meio rural e tem ao mesmo tempo um caráter popular, sindical e político . Ele explica que é popular (...) porque entra toda a família, o adulto, o avô, a mulher, a criança .16 É esse movimento que vai inquietar, por exemplo, Brasília, quando, em 1994, um grupo de sem-terra resolve ir à capital federal numa tentativa de dialogar com o governo. Desde o episódio da Praça da Matriz em Porto Alegre, em 1990, quando a investida da polícia provocou um confronto do qual resultaria um miliciano morto, tido como degolado pelos sem-terra, e que ocupou as manchetes dos jornais e a capa da revista Veja , com o título: “Selvageria no Campo ”, não só a esfera do Governo, mas toda a população brasileira passou a temê-los. Em Brasília, a chegada do grupo foi acompanhada por helicópteros e um amplo dispositivo militar foi ativado para prevenir ações violentas e ocorrências semelhantes àquela que cunhou uma imagem distorcida dos agricultores sem-terra e do MST. A telenovela viria resgatar essa imagem deformada seis anos depois. O que parece, mais que uma hipótese, ser uma verdade. Sua influência se dá no nível da afetividade, pois seria temerário imaginar que só ela garantiu toda a visibilidade que o movimento ganhou nesse ano de 15 Questão Agrária em 1997. Abril , São Paulo, 1998. p. 146-147. (Almanaque) 16 Entrevista concedida à revista Caros Amigos . São Paulo: Casa Amarela, novembro de 1997.
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1996. Ela agiu numa vertente emocional, angariando simpatia e respeito pelo homem da terra que está privado dela. O tema tratado como “selvageria” (1990), como conflito, intranqüilidade, desestabilização social, passa a ocupar lugar de destaque nos jornais, com rubricas próprias, ganham grande espaço no noticiário geral e presença constante nas manchetes. Antes de 1995, as questões referentes à terra eram ligadas à questão indígena, demarcação, invasão de áreas por posseiros ou ligadas aos garimpos. A partir de 1995, conflito e reforma agrária associam-se a invasões e os confrontos que se verificam são sempre sangrentos. Intranqüilidade no campo e desestabilização social são atribuídas aos sem-terra e ao movimento, com conotação de guerrilha. Começam os massacres: de Corumbiara (Rondônia), em agosto de 1995 e de Carajás (Pará), em abril de 1996. A imprensa hesita, o governo tem duas vertentes: para uns, confronto, para outros, massacre, chacina. O mundo olha para o Brasil. Produz-se o consenso: massacre de Carajás. A telenovela já vinha sendo preparada e divulgada. Aguardava o momento de entrar no ar. Foi adiada cedendo lugar a O Fim do Mundo . Na verdade, uma telenovela não tem apenas seis meses de vida, ela nasce muito antes, começa a ser preparada com quatro ou cinco meses com relação ao início das gravações e, depois de seu término, dependendo de sua repercussão, ela permanecerá por muito tempo ainda. Depois, ficará na memória, individual para alguns, social para muitos. Finalmente, ela entra com força em junho de 96. Apesar da comoção provocada pelo massacre, de a organização do movimento ter avançado, da interlocução aberta com o governo FHC, e seu reconhecimento como atores sociais inimigos, o massacre poderia ter sido esquecido, superado por outros acontecimentos, como é comum17 , principalmente do ponto de vista da imprensa, mas isto não aconteceu. Pelo contrário, 1996 pode ser considerado o ano do MST. Dentro do período de 1989 a 1998, o ano de 1996 foi o que teve maior área (1.940.483 ha) declarada de interesse social pelo governo, para a reforma agrária, foi o ano em que se registrou o maior número de ocupações de terra pelo MST, inclusive com relação aos anos seguintes, 1997 e 1998, o ano da telenovela O Rei do Gado , e de sua maior presença na mídia. Foi ainda em meio a toda essa efervescência que se preparou a Marcha a Brasília e que a revista Playboy foi descobrir uma sem-terra bonita para desnudar em sua capa. Foi também o ano da exposição de Sebastião Salgado, com fotos dos sem-terra, da visita de José Saramago (hoje Prêmio Nobel), simpatizante, amigo do MST e defensor da distribuição da terra ao trabalhador. É desse modo que surge uma súbita curiosidade pelo modo de vida nos acampamentos, pelo sem-terra, por sua história. As revistas informa17 Vale lembrar o Massacre do Carandiru (São Paulo), em 1985, contra presos, a Chacina da Candelária (Rio de Janeiro), em 1993, contra menores, de Diadema (São Paulo) em 1997, contra favelados.
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tivas semanais fazem grandes reportagens, os jornais publicam encartes e cadernos especiais. Os discursos da imprensa, antes claramente monossêmicos, tinham no sem-terra o agente provocador dos conflitos, desencadeador de reações e, portanto respondiam pelas mortes, seja de seus iguais, seja dos seus agressores, passam a polêmicos, a polissêmicos e, finalmente, assumem uma visão de compreensão e simpatia. O semterra passa a ser uma categoria de excluído e o MST se legitima, num processo de mudança que vai do mito e do medo à simpatia e adesão à sua causa, agora vista como justa e legítima. Como o Senador da novela, a população deseja uma solução que não passe pela violência. A Reforma Agrária e as medidas que possam apressá-la contam com amplo apoio popular. Pesquisa realizada pelo IBOPE para a Confederação Nacional da Indústria (03/97), ao avaliar o item “violência”, surpreende-se ao comprovar, no quesito “3 – O movimento dos Sem-Terra, a CPI dos Precatórios e as Reformas” , que 63% da população tem ampla simpatia pelo MST, 77% dos entrevistados consideram o Movimento legítimo; 85% consideram que a invasão de terra é um instrumento de luta importante, desde que não haja violência e mortes, e 90% acham que o Movimento deve lutar pela reforma agrária, mas sem violência ou invasão de terras. Segundo o relatório, chama a atenção o fato de 88% dos entrevistados apoi- arem uma solução mais drástica: o governo deve confiscar todas as ter- ras improdutivas e distribuí-las aos sem-terra 18 . Esses dados têm particular importância por duas razões: primeiro, pela seriedade da instituição que promove a pesquisa e por tratar-se de um resultado colhido indiretamente, ou seja, ela não visava medir simpatia ao MST, mas sim colher opiniões sobre a questão “violência”; segundo, por comprovar o que já havíamos verificado pela mudança do tratamento dispensado ao tema e a intensidade com que ele passou a circular na mídia e no cotidiano da sociedade. Em artigo assinado, página de editorial do jornal O Estado de S. Pau- lo 19 , sob o título “Os sem-terra e O Rei do Gado ” João Pedro Stédile faz referência a essa pesquisa e reconhece a contribuição da telenovela para a superação de estereótipos, apoio ao movimento e popularização de problemas agrários: Misturando ficção do folhetim à realidade da concentração da propriedade e ao cotidiano dos sem-terra, o autor, Bene- dito Ruy Barbosa, prende a atenção, emociona e mantém aceso o debate sobre a necessidade de partilha da terra, para garantir trabalho e vida digna a quem tem as mãos ca- lejadas. De protagonistas das manchetes de jornais, os sem- terra se transformam em personagens da novela e entram 18 Telefax ASCOM-CNI- 23/03/97 - 3179550 - (Moacyr de Oliveira) 19 STÉDILE, J. P. “Os sem terra e O Rei do Gado ”, O Estado de S. Paulo, Espaço Aberto, Editorial, 16/ 07/96. p. A-2.
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no cotidiano de mais de 80 milhões de telespectadores. Mais do que observadores passivos, acreditamos que os segui- dores da novela passarão a torcer pelo final feliz dos perso- nagens, reforçando o apoio à nossa luta, que é de 86% da população, conforme pesquisas de institutos reconhecidos 20 . O líder prossegue ressaltando a importância da temática na telenovela e lembra que a Constituição prevê a destinação de terras para a reforma agrária: Além de maior apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a novela chama à reflexão sobre a contradição entre os que tanto possuem e pouco produzem, ou sobre o absurdo da agropecuária extensiva, que pouco representa na economia nacional, em geração de empre- gos, comparativamente ao tamanho das áreas ocupadas. Mostra ainda trabalhadores que perambulam sem esperan- ça e bóias-frias explorados. E os que tentam mudar essa realidade, ocupando terras improdutivas, levantando acam- pamento à beira das estradas, marchando pelas cidades ou ocupando sedes do Incra, para pressionar o governo para que cumpra o que está estabelecido no artigo 184 da Cons- tituição: destinar à reforma agrária terras que não cumpri- rem a função social. Esses novos personagens, lutadores, são ótimas contraposições aos habituais matutos, jecas-tatu e outros estereótipos que tantos danos causaram à forma- ção do nosso povo. Se Stédile faz um balanço favorável à telenovela do ponto de vista de seus efeitos sobre a imagem dos sem-terra, sua crítica se dirige ao encaminhamento dado pelo autor à questão da terra e ao ponto de vista assumido, considerado governista, na medida em que recomenda o comedimento e a contenção das ações do MST 21 . A forma como ele discutiu (a reforma agrária) e o Rito Sumá- rio, sempre era da ótica do governo. Nunca era da nossa ótica. O que nós imaginávamos era que Benedito Ruy Bar- bosa estava lendo o Estadão: lia num dia e no outro escrevia o capítulo, porque às vezes apareciam falas que tínhamos lido no Estadão antes 22 . 20 Em entrevista com o líder, citada anteriormente, tivemos oportunidade de confirmar que ele se referia à mesma pesquisa que estávamos utilizando, obtida por fax da ASCOM-CNI ( Op. cit.) 21 Entrevista com Stédile. Op. cit . 22 Ibidem .
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Para ele, o tratamento da questão agrária estava muito próximo do tratamento do jornal O Estado de S. Paulo e isso aparecia principalmente na fala do senador Caxias. Fica evidente que o líder destaca a importância da telenovela com proposta de pautar a problemática da terra, levantar o debate sobre a situação do homem do campo, do latifúndio, da terra improdutiva, da reforma agrária. Sua crítica, manifesta em outras oportunidades, diz respeito ao encaminhamento das soluções, passando pelo esforço de conter certas ações do movimento. Afinal, segundo Stédile, o governo tem que ser pressionado para cumprir o dispositivo constitucional. Mas, podemos entender pelo artigo, sobretudo pela conclusão, e por outras declarações do líder, que o saldo é amplamente positivo: A trans- formação de “marginais” em personagens de novela, debatendo essas questões, é uma contribuição importante da arte para a construção de uma realidade com mais justiça social 23 . As evidências apontam para a telenovela como a grande responsável por essa mudança. Segundo Luiz Inácio Lula da Silva24, “a novela O Rei do Gado está para o MST assim como Luciano Pavarotti está para a música clássica ”, ou seja, a novela popularizou o movimento e Pavarotti a música clássica, e Stédile escreve: O Rei do Gado ajuda a popularizar o tema da reforma agrá- ria, tão urgente para desconcentrar a terra e resolver diver- sos problemas sociais do Brasil. Ajuda a questionar a injusta estrutura que garante, em nosso país, que dos 371 milhões de hectares potencialmente agriculturáveis apenas 52 mi- lhões sejam ocupados com lavouras temporárias e perma- nentes, gerando péssima colheita de 70 milhões de tonela- das de grãos anuais. A popularização dos problemas agrári- os contribuirá para formar consciências contra a força da bancada ruralista no Congresso, que breca leis e medidas necessárias para colocar o Brasil no rumo da “modernidade”, impedindo que trabalhadores utilizem terras improdutivas para plantar, instalar agroindústrias, gerar riquezas no interior do País 25. O episódio de Eldorado de Carajás (Pará, 17/04/96), visto como conseqüência de mais um conflito provocado por “invasores” do MST, poderia ter caído logo no esquecimento – como tantos outros acontecimentos trágicos envolvendo repressão dos setores de segurança do Estado – não fosse a confluência de fatores, como a entrada da telenovela no ar, dois meses depois. O sem-terra, trazido para o centro da cena nacional, 23 STÉDILE, J.P. “Os sem-terra e O Rei do Gado”. Op. cit . 24 Luiz Inácio Lula da Silva é líder sindical e candidato à presidência da república pelo Partido dos Trabalhadores - PT nas eleições de 1998. 25 STÉDILE, J. P. Op. cit .
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ressemantizou o tema para a mídia numa mobilização que influenciou o curso das investigações e o conflito assumiu sua real dimensão de massacre. A partir daí, temas como questão agrária, questão fundiária, questão da terra, MST ganharam importância em si mesmos e passaram a pautas permanentes na rotina da mídia e em particular dos grandes jornais de circulação nacional, onde conquistaram espaço próprio. Sem desconsiderar a conjunção de fatores, a telenovela, sem dúvida, foi um fator de enorme potência. Ela manteve o tema na agenda da mídia contra a tendência de seu esgotamento. Nossa pesquisa, nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo confirma essa tendência. Isso sem considerar o meio TV, em que os telejornais chegaram a ocupar cerca de 50% do tempo com o assunto em muitas edições. Os levantamentos, efetuados no período de abril de 1996 a abril de 1997, começam com o massacre e terminam com a Marcha Nacional dos Sem-Terra a Brasília, totalizando 730 edições. O total de notícias no jornal Folha de S. Paulo é de 740 e no jornal O Estado de S. Paulo é de 624. Somadas perfazem um total de 1.364 notícias. Confirma-se a manutenção da temática da terra, com curva semelhante nos dois jornais, cada qual mantendo uma média mínima de 30 notícias, o que equivale a estar todos os dias nos dois jornais. As tabelas e gráficos desenham uma curva, onde os pontos baixos coincidem com fatos de grande interesse nacional ou internacional. Fatos de interesse nacional e internacional
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Quadro 47
O levantamento quantitativo é apenas indicativo e serve como base para nossas discussões sobre a pauta da mídia. Ele não mostra a qualidade, nem se envolve com questões técnicas como: centimetragem das inserções do assunto na imprensa, que variam de grandes reportagens e entrevistas a encartes e cadernos especiais, conforme já mencionamos, tratando especificamente do sem-terra e do MST, buscando informar ao leitor quem é, como vive, o que quer o sem-terra, assim como o MST e seus líderes. Estivemos confrontando o ano de 1997 e 1998 e verificamos a diminuição progressiva de espaço para o tema 26, nos mesmos jornais e revistas que foram objeto da pesquisa. Com a diminuição do interesse pela temática da terra na imprensa, porque, a nosso ver, perdeu o caráter de fato de importância jornalística – que era conferido pela telenovela – reduz-se a pressão sobre a sociedade e sobre as autoridades do setor agrário27. A Marcha a Brasília – Marcha Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça, sua preparação e divulgação se deu durante a exibição da telenovela. Seu início coincidiu com o término e ocorreu dois meses depois, quando tudo que acontecia com o movimento e o sem-terra parecia uma continuidade da “história”, que foi acompanhada com o interesse 26 Stédile (em entrevista concedida à autora, op.cit), confirma essa informação e atribui essa retração à ação do governo junto aos editores dos órgãos de imprensa. Parece-nos, todavia, mais adequado considerar a variável, constituída pelo fim da telenovela, que gerava pauta para os meios, o que não exclui a variável apontada pelo líder. 27 Convém notar que, após o encontro de Brasília (Marcha), o presidente Fernando Henrique Cardoso só volta a recebê-los dois anos depois. Agora, em julho de 1999, com a telenovela de volta ao ar, sendo exibida no “Vale a Pena Ver de Novo ”, no horário das 14 horas. Coincidência ou não, está na Folha de S. Paulo , caderno Brasil , p.6, com o título: “FHC recebe Sem-Terra e libera verba. (Encontro é o primeiro em 2 anos e o MST se mostra cético)”. No corpo da notícia, de meia página, lê-se: “ A reunião acontece dois meses antes da chegada a Brasília de uma marcha nacional promovida pelo MST e no momento em que FHC apresenta seus maiores índices de rejeição.” Assim, também se estabelece um elo entre telenovela e Marcha.
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humano despertado, mas, sobretudo como ficção. Foi como se a novela ainda não tivesse terminado e todos estivessem atentos para o desfecho final: a chegada a Brasília. Afinal, a telenovela falava de se colocar uma boiada na Praça dos Três Poderes, a música tema, de Zé Ramalho28 , chamava o povo de gado e o povo chegou lá. A metáfora explica a expectativa preparada na telenovela29 e realizada na realidade, pelo povo tratado como gado que foi mostrar para o Brasil e para o mundo que ele não aceita mais essa condição. Um país que tem tanta terra para o gado e deixa sem terra seu homem, não é sério, nem merece respeito. O homem organizou-se, se fortaleceu. A manifestação da Praça dos Três Poderes reuniu mais de 50 mil manifestantes para reivindicar rapidez na reforma agrária, protestar contra a política econômica e exigir a apuração das mortes no campo. Nessa oportunidade, estabeleceu-se uma polêmica, divulgada pela imprensa, em torno do comportamento do governo quanto à chegada dos sem-terra a Brasília. Chegou-se a falar que eles não seriam recebidos pelo presidente. Mas, conforme conta Stédile, eles não pediram audiência: (...) quando nós nos aproximamos de Brasília, eles disseram: “o presidente gostaria de recebê-los, na quinta feira, dia 17”. E nós respon- demos: “não, na sexta feira nós vamos chegar na cidade, nós vamos falar com o povo, se for possível num outro dia, nós vamos falar com o presi- dente. Quer dizer, nós marcamos a data. E nós não vamos sozinhos. Nós vamos levar uma comissão da sociedade brasileira”. Eles concordaram que levássemos cinco ou seis pessoas e, afinal, foram vinte e uma 30 . Benedito Ruy Barbosa resgatou o sem-terra, deu apoio ao movimento e, apesar das ameaças, levou adiante sua história, “pagando” com a sua ficção uma pequena parcela da dívida, longamente acumulada, contraída pela sociedade brasileira com o agricultor que ela excluiu. Ao nosso ver, esse papel é simbolicamente representado na telenovela, também pelo MST com relação aos indígenas, sem-terra como eles, sucessivamente expulsos de suas terras e dizimados desde o “descobrimento” do Brasil. Ele é desde sempre um sem-terra que perdeu tudo e não teve força ou apoio, nem pôde criar um movimento, ficando inteiramente à mercê da proteção ineficaz do Estado. Suas perdas incluem a da identidade cultural que tem levado o suicídio coletivo aos pequenos grupos que ainda restam, como último gesto de liberdade. Na telenovela, ele está representado por Uerê, o indiozinho, filho de 28 Vida de Gado – Zé Ramalho. 29 Sílvio de Abreu afirma que autor de telenovela não é repórter e ninguém discute essa verdade. Todavia O Rei do Gado exerceu de tal forma essa função que muitas vezes se teve dificuldade de saber se as ações dos sem-terra recriadas na trama ou referidas no diálogo das personagens precediam ou sucediam o noticiário da imprensa, do mesmo modo que as falas do senador Caxias com sua defesa da mudança do ITR e da aprovação do Rito Sumário, se eram anteriores ou posteriores aos noticiários sobre o assunto. Também, após a aprovação, seria difícil identificar quem primeiro comemorou os resultados como passos importantes em direção à reforma agrária, tal a simultaneidade entre os acontecimentos na ficção e na realidade. 30 Entrevista com João Pedro Stédile realizada pela autora, na Secretaria Nacional do MST em São Paulo, em fevereiro de 1999.
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pai branco e mãe indígena, que deixa sua aldeia e é levado pelo pai. Ele quer voar. Andar de avião? Ser piloto? Ou voar tem aí um sentido figurado de romper as fronteiras do mundo? Ele terá um destino melhor que seus irmãos indígenas, graças à possibilidade de conseguir superar os limites que separam o excluído do cidadão. Provavelmente, uma homenagem prestada pelo autor, um crédito, um pedido antecipado de perdão pelo horror que teria lugar em Brasília, com a morte em circunstâncias trágicas do índio Galdino Jesus dos Santos (20/04/97), vítima da ação inconseqüente, irracional e gratuita, de adolescentes que não distinguem entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, “educados” na amoralidade, na impunidade, e na crença de que são semi-deuses e podem dispor e brincar com a vida. Consideramos que tais exemplos sejam suficientes para demonstrar a capacidade de penetração da ficção na realidade nacional e de como ela pauta temas para debates que se processam em cadeia, criando um clima cultural em cujos poros ela se insere, no cotidiano, de tantas maneiras e através de tantas ramificações, desdobramentos e transformações, que a imagem que nos ocorre é a de que ela entra na corrente sangüínea da sociedade e daí se irradia para todo o corpo social, sendo impossível localizá-las nas diversas manifestações individuais que assume. Apenas encontram-se traços eventuais de sua presença no ambiente cultural, onde ela está dispersa e se acumula progressivamente. Restaria, ainda, mencionar um terceiro elemento presente na telenovela, em estreita relação com os dois já referidos. Se o primeiro foi do âmbito do social, o segundo do político, o terceiro é do âmbito da economia. Trata-se mais especificamente da expansão da pecuária registrada no ano de 1996 com um crescimento de 7,8%. A produção de carne bovina totaliza quatro milhões de toneladas, trezentos e trinta e nove mil a mais que em 1995. O volume de leite produzido aumenta 7,5%. O bom desempenho da pecuária é, segundo consta, decorrente do aumento do consumo interno e das exportações do setor. Em 1997, no entanto, a pecuária apresenta tendência a retração. Com a redução da demanda interna e a queda no volume de exportações, há expectativa de resultados inferiores aos alcançados em 1996.31 Há também a registrar uma contradição não explicada entre o aumento recorde no ano de 1996 (22,5%) no consumo interno, e o aumento do preço da carne no atacado e no varejo, considerando-se, ainda, a ampla divulgação sobre as precárias condições de higiene e fiscalização sanitária em todo o país naquele momento. Ficam por analisar, outros aspectos ligados à questão, como por exemplo, o aumento das exportações de couro, do repentino interesse de empresas como Kaiser e Brahma em triplicar o patrocínio em festas de peão boiadeiro, os sucessos dos leilões e feiras do ramo e a segunda grande fase de explosão da música 31 Ibidem, Almanaque Abril.
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sertaneja. Resta avaliar as correlações entre esses fatos com apoio em informações de especialistas da área econômica para verificar se houve algum fator determinante além do que se pode pressupor, ou seja, de que a telenovela poderia, de algum modo, ter contribuído para a geração do fenômeno. Nossa prudência recomenda apenas registrar a indagação. Neste mesmo ano, com a telenovela no ar, criou-se um ambiente propício para a deflagração de campanhas publicitárias para a promoção de vendas de ações de empresas com investimentos na pecuária bovina. A Boi Gordo , já citada, ocupava espaço nos intervalos comerciais da telenovela, trazendo a imagem e falando pela voz de Antônio Fagundes como Bruno Mezenga, o Rei do Gado. Dois anos depois, Antônio Fagundes volta como Bruno Mezenga para afirmar que investiu na Boi Gordo e não se arrependeu. Como se sabe, outras empresas aderiram a esse mercado de ações em meio à euforia. Colocamos em dúvida a afirmação do “Rei do Gado”, pois se ele se deu bem (com os cachês, por exemplo), muitos brasileiros entusiasmados e ingênuos não tiveram a mesma sorte32 , pois perderam seu investimento. De qualquer modo é certo que a empresa, atuante desde 1988, ganha visibilidade a partir de suas inserções publicitárias nos intervalos da telenovela e, a partir daí, consolida sua imagem em outras mídias. É também nessa oportunidade que começam a surgir as empresas concorrentes. Dados a considerar33 • Fazendas Reunidas Boi Gordo - a pioneira, detém 70% do mercado. Teve o número de investidores triplicado nos últimos dois anos, de 3.872 clientes em 95 para 12.300 em 97. Possui 14 fazendas próprias e 22 arrendadas (SP, MT e GO), contendo cerca de 130 mil cabeças. Possui, ainda, 6 filiais. Informações não confirmadas pela empresa apontam um gasto de 5 milhões de dólares com propaganda no período da telenovela O Rei do Gado . Permaneceu sem concorrentes até o início de 1996. • Gallus Agropecuária – mais forte concorrente da Boi Gordo. Das 30 fazendas que utilizam, 16 são próprias (SP, GO e BA). O rebanho é de, aproximadamente, 18 mil cabeças. O diretor presidente informou que estão em vigência mil e duzentos contratos e que 70% dos investidores aplicam entre 20 e 30 mil. São destinados 5% do faturamento para publicidade. • Arroba’s - aberta em março de 96 já possui um rebanho com dez mil cabeças espalhadas por sete fazendas em MS. O Sócio-diretor João Arnaldo Tutti diz que foi a saída encontrada para aumentar o rebanho sem recorrer aos financiamentos bancários. 32 Quem não se lembra da grande proporção que assumiu a fraude em torno dos investimentos na criação de gados inexistentes. 33 Sucesso da Boi Gordo traz preocupação. Folha de S. Paulo , Dinheiro, 16/09/97. p. 2-1.
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• Gado Forte - fechou os primeiros contratos em janeiro de 97 e já conta com 300 investidores. Distribui o rebanho de 1.800 cabeças em três fazendas (SP). Para o marketing destina cerca de 140 mil por ano. • Embrapek - no mercado desde de janeiro de 97, trabalha apenas com indicação, sem publicidade e já conta com 100 investidores. Possui apenas uma fazenda em Avaré-SP com 1.420 cabeças. • Ouro Branco - possui oito fazendas (SP e TO). Julgamos ter sido acertada nossa escolha de trabalhar com a recepção da imprensa, sobretudo escrita, pois ela se mostrou uma mediação de ponta, que orientou nosso olhar para seus modos de difusão e propagação para outros sistemas e para o ambiente sociocultural. O quadro mostra mais uma “coincidência”, apontando a telenovela como forte coadjuvante do processo de expansão de uma área econômica emergente. Somos levados a crer que a telenovela pode ser considerada, no contexto brasileiro, o nutriente de maior potência do imaginário nacional e, mais que isso, ela participa ativamente na construção da realidade, num processo permanente em que ficção e realidade se nutrem uma da outra, ambas modificam-se, dando origem a novas realidades, que alimentarão outras ficções, que produzirão novas realidades. O ritmo dessas transformações passa a ser a questão. Entendemos que O Rei do Gado , ao focalizar um dos maiores problemas brasileiros de modo frontal, na sua dimensão política e fortemente humana, foi um momento de crise, particularmente importante, para permitir a manifestação do processo simbiótico subjacente, que desafiava nossa compreensão, manifesto pelas vinculações intensas entre o ficcional, o factual e a realidade como um todo. A morte do Senador Se o discurso do senador Caxias gerou grande repercussão, como acontecimento ficcional, o Congresso Nacional, ao discutir o assunto no plenário, amplificou, elevou o discurso, conforme já dissemos, à categoria de acontecimento de importância nacional, transformando-o em fato jornalístico e, a partir daí, alimentou a continuidade da discussão para fora dos círculos políticos e para além do jornalismo, ganhando as ruas. Com a morte do senador Caxias, não foi muito diferente. Só que desta vez à comoção provocada pela morte, sentida pela população brasileira, juntou-se o inusitado de comparecerem ao velório do senador ficcional dois senadores reais, fazendo uma insólita figuração: Benedita da Silva, senadora do PT pelo Rio de Janeiro e Eduardo Suplicy, senador do PT por São Paulo, o mesmo que participou do debate com Ney Suassuna. Agora, o pesar cede lugar ao espanto e o tema que entra em pauta no país é a presença de políticos naquele velório. Discute-se a pertinência, a oportunidade, a adequação dessa inserção de personagens de expres- 158 -
são política nacional num senado ficcional, dentro de uma telenovela. Todos os jornais dão destaque para o assunto. Ele ganha os telejornais, o rádio, os jornais de bairro e chega trepidante entre opiniões contra e a favor, nas feiras livres, nos corredores, ou seja, nos estratos mais baixos da população, pois as duas figuras envolvidas são do Partido dos Trabalhadores e gozam de grande popularidade. Mas, a polêmica provocada pelo senador Caxias também gerou um diálogo entre o antropólogo, senador pelo Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, em artigo assinado na página de Editorial da Folha de S. Paulo (20/01/ 97), e Benedito Ruy Barbosa, que responde, da telenovela. Darcy Ribeiro inicia seu recado lamentando a morte do senador Caxias: Morreu meu senador. Foi morto, duplamente assassinado. Morreu até bem, baleado pelos latifundiários, como uma voz insuportável, para eles, dos sem-terra (...). Um senador in- ventado, falso, mais verossímil, porém, e mais veemente que nós todos senadores da República. Morreu mal, entretanto, nas mãos e na pena deste admirável Benedito Ruy Barbosa. Por que Benedito teve que matar o senador Caxias? Acaso ele havia esgotado o conteúdo dramático de seu papel? Nada disso. Caxias se transformou na voz tranqüila de advertên- cia de que o Movimento dos Sem-Terra será condenado a tocar fogo no Brasil, se continuar entregue à chicana buro- crática ou submetido às injunções judiciárias cegas para o maior problema social do Brasil. Em outro trecho de seu artigo, Darcy Ribeiro lembra que a mediação do senador não foi apenas entre sem-terra e governo, mas também dialogou com os fazendeiros, ao impedir Bruno Mezenga de criar uma situação ostensiva de provocação colocando uma boiada na Praça dos Três Poderes, numa demonstração de que os fazendeiros produtivos podem ser defendidos se separados dos latifundiários que usam a terra para especulação. Noutro trecho, ele interpreta o pensamento do senador Caxias e a realidade-cenário que põe a reforma agrária como uma solução para o mais grave problema brasileiro: Via a reforma agrária como a única solução que se oferece para o gravíssimo problema brasileiro do desemprego, que condena o povo à delinqüência, à droga e à prostituição. São milhões de brasileiros que só pedem um pedaço de ter- ra para produzir sua mandioca e seu milho, criar sua vaca e suas galinhas, a fim de ter com que se ocupar e salvar seus filhos da fome e da criminalidade. Instalados no seu pé de terra, esses milhões de lavradores e de desempregados ur- - 159 -
banos ruralizados criariam zonas de prosperidade generali- zada, que o fazendeiro foi incapaz de criar. A fala de Darcy Ribeiro é a de um grande conhecedor da questão, de quem já fez dela sua bandeira nas décadas de cinqüenta e sessenta. Ele atuava ao lado do presidente João Goulart no projeto de reforma agrária que estava em vias de se realizar, quando o presidente foi deposto e ambos foram exilados. Diante da provocação da telenovela, ele, agora senador em exercício, não poderia calar-se, sobretudo porque o senador Caxias está expressando sua visão do problema. Está dada pois, pela ficção, a oportunidade para todos os que comungam essas idéias manifestarem seu apoio e se unirem em defesa desses ideais. Dizendo não temer mobilização do Exército para matar “lavradores” ele afirma: A opinião pública brasileira já não o permitiria 34 . Mas, tenho medo da guerra que o latifúndio arma para continuar agarra- do às suas terras mal tidas e mal usadas.” O senador conclui indagando: “Caxias foi calado. Por quê?” Ao que ele mesmo responde num post scriptum: “Vi sexta-feira que Benedito é quem tinha razão. O senador Caxias não podia dizer nada tão eloqüente quanto o que disse a morte dele. Benedito Ruy Barbosa leu o artigo, comoveu-se e respondeu com uma homenagem a Darcy Ribeiro. Desse modo instutuiu-se um diálogo insólito e de forma direta, com comentário sobre a ficção na realidade e réplica da ficção endereçada à realidade. Mas, as interações entre a ficção e a realidade produzidas pela telenovela O Rei do Gado e a interlocução que se estabeleceu entre senadores dos dois mundos em confronto, seguem provocando desdobramentos. O artigo comentado acima, deve ter sido uma das últimas manifestações feitas do senador Darcy Ribeiro antes de sua morte. A proximidade dos acontecimentos determinou, de certo modo, a ficcionalização da morte deste último. Vimos, pelo olhar do Jornal Nacional, o velório de Darcy Ribeiro. Em meio ao clima de pesar, as câmeras focalizaram o esquife e, sobre ele, a bandeira do MST 35 , no momento em ele estava ladeado pelos senadores Eduardo Suplicy e Benedita da Silva, os mesmos que participaram do velório do senador Caxias, poucas semanas antes. Também foram mostrados trechos da fala de Ruth Cardoso 36, numa espécie de delegação de voz, uma vez que a TV Globo preferiu economizar pala34 No momento anterior não havia se formado uma opinião, nem a população estava em condições de interferir, pois os movimentos que tentaram organizar-se durante os anos de Ditadura foram eliminados, destruídos, dizimados pelo Exército do governo militar. Quem não se lembra da Guerrilha do Araguaia? 35 Convém lembrar que sobre o esquife estavam três bandeiras, sendo uma delas a do MST. 36 Primeira dama do Brasil, na condição de mulher do, então, Presidente da República Fernando Henrique Cardoso
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vras e falar mais com a câmera. Aliás, essas cenas correspondem ao velório, porque no dia do falecimento de Darcy Ribeiro ela não proferiu uma palavra sequer sobre o antropólogo. Entende-se, sem dificuldade, o caráter manipulador do recorte efetuado pelo Jornal Nacional, sabida que é a relação de cordial hostilidade entre o morto e a Rede Globo, senão por uma história que não iremos investigar, pelo menos em razão de suas relações com Leonel Brizola, ex-Governador do Rio de Janeiro, de quem foi vice. Não havendo porque lamentar sua morte, explora-se, pois, a homologia entre uma situação ficcional, pela sua anterioridade, como uma espécie de premonição da situação real, agora exposta pelo olhar atento da emissora. Desse modo, colhem os lucros decorrentes da extraordinária oportunidade para promoção de seu produto, ainda no ar, a telenovela. A situação paradoxal propiciada por aquele diálogo só pode se explicar no contexto mais amplo da sociedade brasileira. Nele, o papel dos meios de comunicação em geral, da televisão em particular, da TV Globo, da telenovela, do horário nobre, de modo específico e, sobretudo, das obras dos poucos autores, a que já nos referimos e que, com Benedito Ruy Barbosa, se alternam no horário. São roteiristas que oferecem a matéria prima e a receita para os grandes “chefs ” e suas equipes prepararem, com engenho, arte e requinte, os pratos servidos ao consumo democrático do país, na “Festa de Babette” 37 da televisão brasileira. Para os que só aprenderam a reconhecer, na telenovela de que falamos, o fio melodramático, nossa comparação poderá parecer ousada, exagerada, ou até fruto de um entusiasmo ingênuo. Para os que se detiverem na telenovela, mantendo como pano de fundo o amplo espectro da programação de entretenimento da nossa televisão aberta, ela será adequada. Estaremos, pois, de acordo: o cardápio oferecido pelo zapping faz da “telenovela brasileira”, ou “telenovela de autor”, um banquete de Babette que o mundo globalizado já pode comprar congelado e acondicionado para viagem. Com sabor levemente alterado, mas, ainda assim, uma fina iguaria.
37 Título original Babette’s Gaestebud . Direção Gabriel Axel, 111 minutos, Dinamarca, 1987.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS CENOGRAFIA, TEMÁTICAS E REALIDADE No teatro é forte a convenção que rege a representação, podendo ser fraco ou apenas indicial o cenário no qual se desenvolve a ação. Assim, uma cadeira de um certo tipo, disposta no palco de um certo modo, submetida aos jogos de iluminação, pode falar sozinha de uma época, clima, ambiente, espaço, além de remeter para aspectos subjetivos de personagens, da história, ou seja, interagir com o ator de tal modo que troquem sentimentos, estados de alma, de memória. Esta produção de sentido parte da interação objeto, iluminação, enquadramento e, sobretudo, depende da capacidade do texto e da expressão do ator para tornar aquele objeto suficiente, por si mesmo, enquanto presença cenográfica. Claro que se pressupõem irradiações do palco, fundamentais para a obtenção desse efeito. O que importa é a realidade palco e platéia, atores e espectadores, num acontecimento vivo em que a interação, nas suas várias formas de manifestação, garante a sinergia que move o espetáculo. No cinema, há uma variação maior de situações-cenários. As locações pressupõem a construção de cidades cenográficas, sobretudo quando os lugares, tempos em que se desenvolve a história requerem a produção do já não existente. Nas obras que situam-se na contemporaneidade, filmar em espaços, cidades, estradas, casas reais é uma opção relativamente menos problemática por estarem prontas, disponíveis para jogos com cenas externas e de estúdio. Com relação à literatura, temos as descrições de ambiente puramente imaginárias, onde o cenário é uma construção de palavras, mesmo quando as referências remetem a lugares reais. Aqui podemos lembrar a cidade de Dublin, de Joyce, de que fala Eco, ou a Paris de Balzac, que é em verdade construída a partir de um quadro, de uma pintura. Se, para todas essas artes, a ficção mantém ancoragens numa base cenográfica, elas variam grandemente quanto ao modo de construir. Como o palco e sala de espetáculo no teatro, a tela do cinema e a sala de projeção constituem fatores importantes para a percepção do espectador. Para a telenovela, prender apenas pela imaginação e pelas percepções próprias daquelas artes não pode funcionar, pois mudam as condições do espectador e sua relação com a mediação é outra. Na pequena - 163 -
tela já estão dados, como no cinema, os enquadramentos, e o tamanho da tela de TV faz com que eles sejam mais pontuais que naquele, diferentemente do teatro, onde o olhar do espectador escolhe o ângulo, definindo o seu próprio enquadramento. Na literatura, a imaginação do leitor preenche espaços, introduz suas referências, criando um cenário próprio a partir das sugestões do autor. É por essa razão que, no caso de personagens, se processa o estranhamento entre a que imaginamos a partir do livro e a que se concretiza em filmes, séries, unitários, em telenovelas e em peças de teatro. No caso da telenovela, em primeiro lugar, devemos considerar a horizontalidade em que esse tipo de programa de ficção se insere, oferecendo-se em simultaneidade com quase uma centena de outros (TV a cabo), ou menos de uma dezena (TV comercial aberta). Portanto, ele deve ter um ritmo, um tempo, uma precisão e um efeito catalisador forte, que apague ou esfume a possibilidade de se empreender outras buscas no zapping . Portanto, o tônus dramático deve ser de tal ordem que as cenas mais alongadas e o espaço publicitário sejam suportados como um retardamento amplificador da expectativa dos suspenses motivados pelo aguçamento de conflitos e pela solução de ambigüidades deixadas em aberto. Em segundo lugar, em se tratando de produção seriada, o telespectador deve encontrar múltiplos caminhos de identificação com a história, mas, acima de tudo, com cada fragmento-capítulo diário; neste com cada fragmento-bloco dentro do espaço-tempo-hora de programação, bem como de cada fragmento-cena dentro do bloco. É nesse aspecto que os elementos cotidianos ganham importância, na medida em que os detalhes estabelecerão o clima de familiaridade, coerência, coesão, em analogia com os mundos conhecidos e/ou vividos pelo telespectador. Os mesmos elementos estão presentes aqui e lá: móveis, objetos de decoração, livros, roupas, bijuterias, assuntos do país, problemas, temas do momento, existem e circulam lá e aqui. Inclusive os produtos de consumo (merchandising comercial) como café solúvel, determinada marca de leite, de refrigerante, cosmético, como certos serviços (bancos, hospitais), assim como novos hábitos, podem entrar para diluir diferenças e promover o apagamento da mediação e a interpenetração dos mundos de aquém e além da tela. Passa-se a conhecer melhor aquele mundo que o nosso próprio, sabese mais das características, gostos e sentimentos das personagens do que dos familiares mais próximos. Lá, tudo é revelado, enquanto aqui as barreiras da intimidade nunca se rompem por completo, antes se preservam e se erigem em segredos e muralhas para o acesso à plenitude do outro. Talvez seja esse o maior conforto proporcionado pelo mundo ficcional. Uma das razões da ampla afetividade investida nas personagens, do envolvimento com seus conflitos. Entre os dois, mundos uma oposição - 164 -
radical: lá a transparência que nos permite viver juntos, aqui a opacidade que faz dos mais próximos estranhos; lá podemos amar a alguns, odiar outros, ser indiferentes ou apenas simpáticos com outros tantos, aqui, nenhuma possibilidade de sentimentos completos, definidos, claros. Vivemos de incertezas e ambigüidades, na permanente insatisfação de ter com o outro verdadeira comunhão, mesmo quando as barreiras são mais fluidas. Em terceiro lugar, considera-se o ambiente em que se dá a recepção, em geral, bem típico da situação que nos impõe a vida cotidiana, ao contrário do cinema e do teatro, onde nos colocamos inteiros. Diante da telenovela/TV estamos com nossa atenção sendo solicitada por diferentes focos. Raros são os momentos de verdadeira concentração, face às requisições a serem atendidas (telefone, interfone, conversas, apelos para solução de problemas, dúvidas e até os próprios comentários sobre o que se passa na tela, forçando a dispersão). Nesse sentido, os recursos para manutenção do interesse fundam-se no que é fixo e permanente, na recorrência e reiteração dos elementos mais importantes da trama. Trata-se, aqui, de uma característica sem a qual a telenovela não resistiria na sua longa duração. É praticamente impossível que alguém assista com atenção a todos os capítulos de uma telenovela, do primeiro ao último. Se alguém consegue essa façanha, estamos diante de uma exceção, pois a regra é a lealdade à telenovela, não a fidelidade obsessiva nos limites do patológico. Assim, ela se constrói sabendo das infidelidades e das circunstâncias, o que a leva a se explicar o suficiente para permitir, no seu andamento, a entrada de novos telespectadores. O que seria improvável, caso ela não retomasse periodicamente o eixo da história para reavivar a memória de distraídos e possibilitar sua compreensão pelos que precisam de antecedentes como base de entendimento do que já é passado na história e assim poder compreender o presente e preparar-se para os investimentos futuros. Desse modo, dizer que a telenovela é repetição, torna-se apenas uma forma de enunciar o desconhecimento do modo de se construir e existir da telenovela. O cotidiano da telenovela brasileira é construído a partir de vários elementos associados, dos quais destacamos a base concreta que o sustenta. Esta base é constituída pelo entorno cenográfico, onde cada detalhe é tratado de maneira a construir um ambiente que guarde a mais estreita relação de identidade com os ambientes que nossas referências permitam reconhecer como reais, pesando aí detalhes mínimos e, considerando o cotidiano, até o merchandising comercial. Trata-se, pois, de uma característica das produções da TV Globo, onde arte e técnica fazem um casamento perfeito. Neste ponto aproxima-se do cinema. É o que inferimos da fala de Jean-Claude Carrière sobre o esmero de produção num filme de Buñuel: - 165 -
No último filme de Buñuel, “Esse obscuro objeto do desejo”, o rico Fernando Rey visita uma jovem espanhola, uma pobre imigrante, que vive com a mãe num edifício arruinado dos subúrbios industriais de Paris. O homem sobe uma escada, cruza com alguém e toca a campainha de uma porta: cena bem curta, dez segundos no máximo. O cenário desta cena foi construído no estúdio. No dia anterior ao da tomada, vi o cenógrafo Guffroy e seu assistente raspando atarefadamente as paredes da escada, deixando nelas marcas bem visíveis. Perguntei a Guffroy o que ele pretendia com aquilo. – “A questão é que estamos”, explicou ele, “num pequeno prédio, nos limites da cidade. As pessoas que vivem aqui são traba- lhadores imigrantes, em geral muito pobres. Quando não po- dem pagar o aluguel, esgueiram-se daqui, geralmente du- rante a noite. Se conseguem, levam a mobília com eles. Essa mobília arranha as paredes, deixando marcas. É isso”. Si- nais de ocupação humana. Incrível trabalho de pesquisa fei- to por um grande profissional, levando a paixão pelos deta- lhes lógicos às fronteiras do imperceptível. Um detalhe, é claro, que ninguém perceberia, mas cuja ausência seria tal- vez (embora vagamente) sentida” 1. Qualquer telenovela, por mais que queira fugir do chamado realismo2 , encontrará nessa base cenográfica um estrato realista e, ainda que se busque o fantástico, ele só existirá acima desse patamar, dessa base. Citando um exemplo, lembramos a telenovela Meu Bem Querer 3 , em cuja sinopse, o autor declarava que não queria vinculações com a realidade: Faço uma espécie de crônica de uma cidadezinha que não existe, sem nenhuma preocupação realista, sem a idéia de retratar a vida como ela é . Iria introduzir fantasmas e a lenda de um tesouro escondido há 300 anos. Logo a seguir, o diretor Marcos Paulo dizia que estava trazendo árvores adultas e palmeiras do Ceará, as rendas e as rendeiras, e que os personagens são reais, as situações são reais, mas mostrados de uma forma um pouco exagerada, um tom acima do que realmente seriam . Bem, está claro que os dois níveis são independentes e que os fantasmas do piso superior não conseguirão atravessar a estrutura de concreto que é o que denominamos base cenográfica. 1 CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema . RJ: Nova Fronteira, 1995. p. 193. 2 Realismo, movimento artístico que se manifesta na segunda metade do séc. XIX. Caracteriza-se pela intenção de uma abordagem objetiva da realidade e pelo interesse por temas sociais. O engajamento ideológico faz com que, muitas vezes, a forma e a situação descritas sejam exageradas para reforçar a denúncia social. O realismo representa uma reação ao subjetivismo do Romantismo. Sua radicalização rumo à objetividade sem conteúdo ideológico leva ao naturalismo. Muitas vezes, realismo e naturalismo se confundem. 3 Telenovela de Ricardo Linhares, levada ao ar pela TV Globo, no horário das 19 horas, no período de 24/08/98 a 20/03/99.
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Portanto, é sobre essa base “real” que se irá construir tanto a história absurda como a realista. Mas, a razão de ser da base é funcionar como uma ancoragem para o cotidiano que se irá estruturar a partir dela. Um cotidiano que, diferentemente do cinema ou do teatro, terá que se estender por seis meses, fragmentado em semanas, dias, horas. Portanto, tem que haver um lugar e lugares para estabelecer os pontos de apoio para as personagens. As personagens entram na cotidianidade interagindo com esse ambiente, onde tudo deve “funcionar”: cama, fogão, geladeira, etc. Onde a comida seja para comer, o vinho, o café, o leite, para beber. Desse modo marcam-se horas do dia, hábitos, preferências que evidenciam o gosto e o caráter da personagem. É no âmbito da vida doméstica, mas não só, que elas se destacam como “pessoas” que “vivem” um cotidiano em paralelo com o do telespectador. Relembrando a frase de Hitchcock, já citada por nós, segundo a qual Meus atores têm que se comportar como seres humanos 4 , reafirmamos sua validade para a telenovela. O estrato realista, essa base que sustenta a vida cotidiana da personagem, constitui-se numa, pois, potente fonte de identificação, num elo entre personagem – telespectador, entre ficção e realidade. Boa parte desse trabalho está a cargo da cenografia (com seu entorno, produção, etc.) de televisão, de teledramaturgia, ou melhor, de telenovela. Quando a esse estrato realista se junta uma produção que também persegue o real, tematiza questões sociais candentes, obtém a integração que facilita sua inserção na realidade concreta e tende a ganhar total adesão do público, não só telespectador, mas envolve também os que não fazem parte da audiência medida e, mesmo assim, participam indiretamente e acabam formando opinião. Neste ponto, é bom lembrar o que Augé busca em Christian Metz: (...) a ficção é um fato antes de chegar a ser uma arte ou antes que certas formas de arte se apoderem desse fato”. Ou ainda, “se a ficção pode definir-se como um regime de percepção socialmente regulado, decorre daí, por um lado, que a ficção tem uma existência histórica que se traduz em instituições técnicas e práticas e, por outro lado, que a ficção constitui um fato sociocultural no qual entram em jogo rela- ções de alteridade, relações de diversos tipos”. O autor re- conhece portanto, “(...) a existência, historicamente consti- tuída, de um regime de funcionamento psíquico socialmente regulado que precisamente se chamaria ficção.5 Falando do filme, Augé lembra que eles não são ficções puras, sua aspiração é a de representar: 4 Op. cit., p. 278. 5 AUGÉ, M. Op. cit ., p. 126.
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(...) a evidência cotidiana, a existência; sugerem um espaço, uma linguagem, um olhar sobre o mundo, uma aspiração particular ao universal. (...) O fato de que uma obra seja uma obra de ficção, tanto aos olhos do autor como aos olhos do público, não a define por isso como alheia à realidade ou oposta à ela. Não só porque o real é uma parte constitutiva da obra em diversos aspectos – é sua matéria prima – mas também porque sua recepção pode levar ao nascimento de fenômenos sociais coletivos. Mas a dimensão social elemen- tar e primeira da obra de ficção implica uma relação virtual do autor com seu público (...) e a relação recíproca do públi- co com o autor, uma relação real porque supõe evidente- mente a realização e a recepção da obra. Em todo caso, essa relação é imaginária e nisto reside seu interesse: tal relação põe em contato mundos imaginários singulares. Carrièrre complementa a observação do antropólogo, ao afirmar o que consideramos a função social maior da ficção, a de rearticular elementos do real para tornar compreensível a concretude do mundo, que não conseguimos abarcar enquanto participantes envolvidos no seu movimento. Diz ele: (...) a vida como a percebemos normalmente, é confusa e até incoerente. Andamos por uma rua, ouvimos pedaços de frases, vemos pessoas, de quem não sabemos nada, em atividades cujo sentido nos escapa. Percebemos sons sem nem os escutar, cheiros, cores que irrompem; sentimos ca- lor, frio, fadiga que resulta de carregarmos uma pesada car- ga nas costas. Cada uma dessas sensações pode predomi- nar, uma depois da outra, dependendo da pessoa, do estado de espírito, do momento. Escrever uma história ou um rotei- ro significa pôr ordem nessa desordem: fazendo uma sele- ção preliminar de sons, ações, palavras; descartando mui- tas delas e acentuando ou reforçando o material seleciona- do. Significa violar a realidade (ou, pelo menos, o que perce- bemos como realidade) para reconstruí-la de outra forma, confinando as imagens num determinado enquadramento, selecionando a realidade: vozes, emanações, às vezes idéi- as.6 Naturalmente, não se pode atribuir a essa visão um caráter universal, na medida em que não é toda ficção que se propõe a ser um conhecimento sobre a realidade e ser capaz de interferir nela. Nossa experiência 6 CARRIÈRE, J. C. Op . cit., p. 177.
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é restrita. Limita-se à amostra analisada. Ela abrange telenovelas de autores consagrados, marcados por essa intenção de mudança mas, mesmo assim, com diferentes graus de enfrentamento das questões que elegem para discussão. Não só do ponto de vista do destaque conferido na hierarquia das tramas, mas, nelas, o modo frontal, lateral ou tímido de tratá-las. Esta foi a razão, ditada pela própria telenovela, para que apresentássemos análises e quadros não padronizados quando demonstramos as questões de interesse social. Recebendo um tratamento diferenciado pelo autor, o grau de possibilidade de intervenção na realidade também é variável. A categorização levou em conta essas diferenças. Homogeneizála, seria desconsiderar os diferentes graus de valor por elas atribuídos a temas de, também, diferentes graus de valoração social. Aguinaldo Silva e Sílvio de Abreu estão certos quando insistem, respectivamente, que cada autor tem seu universo ficcional e insere suas em histórias nesse universo particular ou escrevo sobre as questões que me incomodam . Nada mais natural do que os autores delimitarem seus mundos ficcionais a partir de seu cotidiano de experiências, de seus ambientes de origem: daquilo que conhecem bem, que fala de suas raízes, de suas angústias, inquietações e desejos. Assim, elas falam também de seus criadores. Foi, a partir da análise das telenovelas, que identificamos os valores que lhes atribuímos e que reafirmamos aqui. Em A Próxima Vítima , de Sílvio de Abreu, encontramos o valor trabalho (relacionado à dignidade, à identidade, à auto-estima). Em Explode Coração , de Glória Perez, o valor humanidade (associado à modernidade/diversidade cultural). Em O Rei do Gado , de Benedito Ruy Barbosa, o valor terra (associado à produção social de riqueza e ao homem que a produz). Finalmente, em O Fim do Mundo , de Dias Gomes, o valor ética (implícito na crítica aos desmandos que sustentam o poder).
COTIDIANO FICCIONAL E COTIDIANO CONCRETO Tipologia das interações Nas telenovelas pesquisadas registramos diferentes modos de interação do cotidiano ficcional com o cotidiano concreto que tentaremos esboçar. Queremos deixar claro que essas diferenças estão em estreita relação com as questões sociais focalizadas. São elas que permitem pensar numa tentativa de categorização O Fim do Mundo : homologia metafórica, ou seja, o cotidiano da telenovela constrói-se a partir dos seus elementos internos e tudo faz-se segundo essa lógica interna. Exemplificando: a crítica das instituições e de seus representantes ocorre no dia-a-dia que se estabelece no curso da história, sem qualquer referência direta a uma exterioridade, não aponta - 169 -
para a realidade concreta, nem dialoga diretamente com ela; os “comentários” são alusivos. Poderia ser representada por dois círculos fechados em correlação.
A Próxima Vítima : homologia metonímica, ou seja, o cotidiano da telenovela constrói-se buscando reproduzir aspectos cotidianos da vida na grande metrópole, a partir de alguns aspectos que são articulados internamente de forma a mostrar uma parte de um todo maior. Aponta para a realidade concreta, faz comentários e envia recados. Poderia ser representada por dois círculos se tocando.
Explode Coração : homologia atenuada, ou seja, o cotidiano não está estruturado para perseguir uma identidade com o real. Todavia, ela vai se relacionar diretamente com ele, a partir de um único ponto, ou seja, de um acontecimento (desaparecimento de Gugu) que surge tardiamente numa trama secundária, mas constitui um canal através do qual a realidade penetra na ficção e com forte potência. A figura que poderia representá-la seria a de duas esferas com uma pequena interseção.
O Rei do Gado : homologia intensificada, ou seja, há uma interpenetração dos cotidianos ficcional e concreto, com um intenso diálogo processando-se entre eles e os acontecimentos misturando-se. A figura que poderia representar essa homologia é a da interseção quase completa das esferas representativas da ficção e da realidade. Intervém na realidade concreta. Aproximação máxima da integração.
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Assim como os diferentes graus de enfrentamento das questões sociais, também as diferenças nos modos de estruturação da base cenográfica vão resultar em maior ou menor aproximação entre os cotidianos ficcional e concreto (não ficcional), o que poderia levar à formulação de outros quadros comparativos, que reservamos para uma outra oportunidade.
TELENOVELA E INDÚSTRIA CULTURAL Aqui retomamos uma questão sugerida pela amostra recortada. Entre as telenovelas, introduziu-se uma minissérie. Ela se distingue pela quantidade de capítulos, pela duração portanto, mas diferencia-se principalmente pelo processo de produção. As telenovelas são produzidas quase simultaneamente com a exibição, o que significa que estão no ar sem estarem concluídas, o que permite mudanças no percurso. A minissérie, pelo contrário, só vai ao ar depois de pronta, não estando, pois, sujeita a mudanças. A pergunta, que nos incomodou durante todo o período em que nos debruçamos sobre nosso objeto, girava em torno da avaliação das vantagens e desvantagens dessa característica. É comum atribuir-se ao autor, à emissora e a outros fatores a lenta evolução do gênero. A denominada indústria cultural vista sob a ótica de teóricos, como Edgar Morin 7 , por exemplo, enfatiza o paradoxo da padronização/invenção a que está su jeito o criador na indústria cultural. Está claro que a liberdade de criação sofre constrangimentos advindos das diversas instâncias do sistema capitalista de produção para grandes públicos mas, do ponto de vista da telenovela, parece-nos que o mais tirânico dos constrangimentos vem exatamente da outra ponta do fio: o público8 . O conceito de democracia implicado na chamada abertura é a mais restritiva das instâncias. Se pensamos no autor que ousa arejar os esquemas padronizados e desgastados com uma proposta inovadora, é o publico quem primeiro se rebela e, às vezes, de modo tão impositivo (como queda de audiência ou pela via da crítica da imprensa) que o autor é instado pela emissora9 a reorientar sua proposta e o curso de seu trabalho. A sociedade brasileira, constituída por uma grande maioria conservadora, por razões que não cabe aqui discutir, pode definir o rumo da história rejeitando-a ou manifestando aprovação através dos índices de audiência, bem como seus representantes podem expressar diretamente o desagrado com o todo ou com aspectos específicos da telenovela. Pois bem, a quem serve a obra aberta ou em aberto? Ao cerceamento das 7 MORIN, E. Cultura de massas no século XX. O espírito do tempo: Neurose , Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977. 8 Não daquele que contribui para o aprimoramento de detalhes, para a preservação de aspectos educativos, ou para a defesa de valores humanos, como o direito à diferença, à dignidade, etc. É claro que este público corresponde a uma minoria, entretanto não queremos incorrer no erro de confundir censura com propostas capazes de melhorar a qualidade da telenovela. 9 Que também pode se servir do conceito de abertura para atribuir à audiência vetos que partem das próprias instâncias hierárquicas do processo de produção.
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possibilidades criativas do autor e ao prejuízo da obra que se deforma ao sofrer as modificações, impostas, que a mutilam? Assim, o que na aparência seria uma vantagem, acaba por ser uma força poderosa para a manutenção do já visto, já conhecido, de que tanto reclama a crítica de telenovela e boa parte da audiência. O poder de influenciar torna-se uma força contrária aos verdadeiros interesses sociais, pois o preconceito ou a falta de estereótipos e de referenciais familiares geram uma ansiedade que leva ao desconforto e ao descontentamento antes que o produto inovador possa se fazer compreensível. Esta contradição, contra a qual certos autores não se cansam de lutar, só se resolve quando ele trapaceia10 , o que não pode ser a regra e nem sempre funciona. A interação com o público é fator que abre para sua participação, mas tem funcionado para frear as possibilidades de mudança dos dois lados: da ficção e da realidade. No contexto geral da cultura, a telenovela constitui um dos seus elementos e, dentre eles, destaca-se como um dos mais diponíveis pela sua acessibilidade, custo quase zero e conseqüente abrangência da população independentemente das limitações socioecônomicas. Desse modo, entendemos que sua avaliação deve levar em conta primeiramente o seu caráter democrático. E, a partir daí, sem apriorismos de qualquer tipo, avaliar se ela pode, de algum modo, contribuir para que o vasto contigente da população brasileira, excluída do consumo de bens culturais, acessíveis apenas a uma minoria com capacidade econômica, possa compreender um pouco a complexidade da vida social e o seu lugar nesse con junto no qual pesa a diferença econômica como fator determinante. Criticar a telenovela por suas soluções conciliadoras, próprias do melodrama, sem olhar para outros elementos que a compõem, é a prática comum quando se destaca sua função alienante. Todavia desconsiderar sua dimensão social equivale a reafirmar uma posição já firmada sobre um objeto sem olhar para ele. Essa nos parece uma postura elitista que parte de pressupostos equivocados quanto às possibilidades, sejam da televisão, sejam das opções do público. Aquela, tendo que atender ao gosto médio, este, tendo que se contentar com o que ela oferece. Nossas conclusões levam em consideração essa circunstância. Não nos propusemos a fazer a crítica da televisão. A crítica está implícita, pois é dela que partimos para examinar, dentro do que ela oferece, o que pode se considerar tenha alguma diferença para mais, como qualidade. Foi o que determinou a escolha da telenovela como objeto, e o caminho de avaliar o que ela poderia ter, além de sua estrutura melodramática. Nas reflexões que seguem tivemos este objetivo, por isso o caminho é menos o da crítica e mais do elogio. Não chegamos à conclusão de que ela é a melhor coisa do mundo, apenas inferimosque ela ainda é o me10 Como aconteceu com o relacionamento homossexual dos jovens de A Próxima Vítima , cuja construção foi sutil, paulatina e não chegou antecipadamente ao conhecimento da imprensa. Com as personagens construídas, a revelação não causou nem choque, nem espanto e eles foram tranqüilamente aceitos.
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lhor produto dentro da programação, de pouca ou nenhuma qualidade das emissoras abertas, destinada ao entretenimento. O levantamento não teve a pretensão de ser exaustivo, antes pretendeu ilustrar e documentar a hipótese de que a ficção e a telenovela, em particular, representam uma fonte permanente de assuntos para a mídia focalizar como realidade e que, dependendo de variáveis como relevância do tema – seja pela importância social, seja pelo caráter polêmico –, eles receberão tratamento de destaque e retornarão à pauta sempre que não haja assuntos de grande importância nacional ou internacional a serem priorizados. É possível perceber, pelos levantamentos feitos, e pelo amplo material examinado, que as telenovelas podem ser consideradas em duas dimensões. Uma é a melodramática e a outra, a dimensão social. A prevalência da primeira gera conforto para o telespectador mediano, pode dar audiência, gerar críticas nos cadernos e espaços destinados à televisão, mas não funciona como pauta para a mídia dita informativa ou séria. A prevalência da segunda gera desconforto, queda na audiência, repúdio pelos segmentos conservadores da sociedade, resvala para o documentário. A realização de um filme nada mais é do que a narração de uma história, e ela – é óbvio – tem que ser boa. Não tento levar para a tela a chamada “fatia da vida real” porque as pessoas podem conseguir todas as fatias que quiserem lá fora, na calçada, em frente aos cinemas, sem precisar pagar por isso. Por outro lado, a fantasia total também não é boa porque as pessoas querem estabelecer uma conexão entre si mesmas e o que vêem na tela. Essas são todas as restri- ções que eu imporia à história. Ela tem que ser verossímil, embora não corriqueira. Tem que ser dramática, e, ainda assim, semelhante à vida. O drama, alguém já disse, é a vida sem as manchas de monotonia 11. Em se tratando de contar-se uma história, a virtude parece estar no equilíbrio. Para a telenovela, o equilíbrio consiste em manter suas características como gênero e trabalhar os temas indispensáveis para a permanente crítica social, apontar caminhos que levem à mudança de posturas individuais e individualistas, à revisão dos preconceitos e estereótipos, ao compromisso com a melhora da qualidade de vida e das relações sociais. A maior tribuna do país precisa assumir seu papel e sua responsabilidade. É essa consciência que a impedirá de capitular rapidamente diante do estranhamento da audiência, da polêmica e da pressão de setores 11 GOTTLIEB, S. Op. cit ., p. 235-236.
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interessados em esconder sob o tapete a realidade social concreta do País. O diferendo, do que qualificamos como telenovela brasileira, está nas obras de autores que assumem sua responsabilidade de interferir, mesmo quando dizem que telenovela é entretenimento, o que reformulamos com base no conhecimento que pudemos acumular durante a pesquisa: telenovela é um entretenimento com um potencial educativo, social, cultural e artístico ainda não avaliado adequadamente, nem explorado do ponto de vista dos dividendos que ele pode render. Inclusive econômicos. Finalmente, gostaríamos de relevar a existência de múltiplas formas de interação ficção-realidade envolvendo a telenovela – discussão não oportuna, pela sua complexidade e extensão12 – e que ela não produz temas, simplesmente os identifica e recolhe do cotidiano. Todavia, sua garimpagem depende do autor, de sua sensibilidade humana e artística para percebê-los, às vezes ainda informes, no horizonte social, recortálos, reelaborá-los ficcionalmente e, com sua obra, dar-lhes clareza ideológica. É assim que ela retornará ao ponto de partida, delimitando e iluminando o que não era percebido na fragmentação, diluição e obscuridade da vida cotidiana. Finalmente, reiteramos: A telenovela pode ser considerada, no contexto brasileiro, o nutriente de maior potência do imaginário nacional e, mais que isso, ela participa ativamente na construção da realidade, num processo permanente em que ficção e realidade se nutrem uma da outra, ambas se modificam, dando origem a novas realidades, que alimentarão outras ficções, que produzirão novas realidades. O ritmo dessas transformações passa a ser a questão.
12 A preocupação com as temáticas sociais focalizadas surgiram em decorrência de nosso objetivo de estudar a construção do cotidiano na telenovela em relação ao cotidiano concreto da sociedade e, por essa via, a interação entre ficção e realidade. Nossa pesquisa tem como título: Ficção e realidade: a construção do cotidiano na telenovela e integra-se num conjunto de pesquisas Ficção e realidade: a telenovela no Brasil; o Brasil na telenovela, reunindo nove pesquisadores da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
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