FICHAMENTO MOITA LOPES. L. P. da. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas/SP: Mercado de Letras, 1996. (p. 17) 1. AFINAL, O QUE É LINGUÍSTICA APLICADA? Quero, no entanto, defender a posição de que esta discussão parece ser ainda necessária não para demarcar os limites entre a Linguística e a LA, como áreas de investigação, que já parecem claros, pelo menos para aqueles que se identificam como linguistas aplicados, mas para esclarecer os paradigmas sob os quais atuam. [...] esta discussão é útil para a LA, isto é, interessa aos linguistas aplicados, na medida em que representa um confronto ou não de percursos de investigação ... (p. 18) ... (isto é, paradigmas) ao se defender um ou outro. [...] o que parece estar ocorrendo em nosso campo é um interesse pelo estabelecimento estabelecimento de regras e padrões para a investigação científica em LA. [...] E muito do que está envolvido na aceitação de um novo paradigma deriva de argumentação persuasiva dentro da comunidade científica (cf. Kuhn, 1970:94) [...] defendo a visão de que esta questão interessa à LA, não simplesmente como uma demarcação de áreas de investigação (isto é, linguística X LA), mas como uma maneira de refinar modos de se realizar pesquisa em LA. Essa discussão começa a se fazer necessária principalmente ... (p. 19) ... agora no Brasil quando o número daqueles que se intitulam pesquisadores em LA é bastante considerável, ao contrário de décadas passadas, em que a pesquisa nesta área era, normalmente, realizada por linguistas que, muitas vezes, identificavam este tipo de pesquisa como secundário em relação à sua pesquisa principal e equacionavam a LA com aplicação de teoria linguística para resolver problemas de ensino de línguas ou para levar a efeito descrições de línguas específicas. É hora, então de nós mesmos nos perguntarmos: afinal, o que é LA? Vou tentar responder a esta questão através da caracterização de um paradigma de investigação que me parece ser cada vez mais defendido na literatura da área de LA (cf Widdowson, 1979 e 1990; Strevens, 1980; por exemplo), e que constitui o meu modo de realizar pesquisa e, na verdade, de formar pesquisadores em LA, LA, já que considero “ os paradigmas fornecem aos cientistas não somente um mapa mas também direções essenciais para fazer f azer mapas” (Kuhn, 1970: 94) (grifos meus). Considero que o percurso da pesquisa em LA que utilizo pode ser caracterizado pelos pontos discutidos a seguir. Trata-se de pesquisa: a) b) c) d) e)
De natureza aplicada em Ciências Sociais; Que focaliza a linguagem do ponto de vista processual; De natureza interdisciplinar e mediadora; Que envolve formulação teórica; Que utiliza métodos de investigação de base positivista e interpretativista.
(grifos meus)
a) Pesquisa de natureza aplicada em Ciências Sociais:
Trata-se de pesquisa aplicada no sentido de que se centra primordialmente na resolução de problemas de uso da linguagem... (grifos meus) (p. 20) ... tanto no contexto da escola quanto fora dele, embora possa também contribuir para a formulação teórica como a chamada pesquisa básica (cf. o item d abaixo). A LA é uma ciência social, já que seu foco é em problemas de uso da linguagem enfrentados pelos participantes do discurso no contexto social , isto é, usuários da linguagem (leitores, escritores, falantes, ouvintes) dentro do meio de ensino/aprendizagem e fora dele (por exemplo, em empresas, no consultório médico etc) (grifos meus). b) Pesquisa que focaliza a linguagem do ponto de vista processual Coloca-se foco na linguagem da perspectiva do uso/usuário no processo da interação linguística escrita e oral. Portanto, a teoria linguística que interessa ao linguista aplicado deve dar conta dos tipos de competências e procedimentos de interpretação e produção linguística que definem o ato da interação linguística. Só uma teoria do uso da linguagem é que pode fornecer os subsídios teóricos em relação à linguagem que sejam úteis para as questões com que o linguista aplicado se defronta . Deve-se observar que tem sido levantada a questão de que esta teoria linguística deva incorporar a visão intuitiva que o usuário tem da linguagem, isto é, estou me referindo a um modelo linguístico da perspectiva do usuário
(cf. Widdowson, 1979: 234-237) (grifos meus). c) Pesquisa de natureza interdisciplinar e mediadora: A LA tem como uma das suas tarefas no percurso de uma investigação mediar entre o conhecimento teórico advindo de várias disciplinas [...] ... (p. 21) ... e o problema de uso da linguagem que pretende investigar . O corpo de conhecimento teórico utilizado pelo linguista aplicado vai depender das condições de relevância determinadas pelo problema a ser estudado: portanto, isto implica o fato de que seja possível que os subsídios teóricos para a explicitação de uma determinada questão possam vir de disciplinas outras que a linguística, mesmo quando esta é entendida em um sentido macro. d) Pesquisa que envolve formulação teórica [...] a LA também formula seus próprios modelos teóricos , podendo colaborar com o avanço do conhecimento não somente dentro de seu campo de ação como também em outras áreas de pesquisa. Ou seja, embora a LA, por envolver pesquisa aplicada, centre-se na resolução de problemas específicos, pode contribuir para o desenvolvimento do conhecimento e a formulação teórica tanto quanto a chamada pesquisa básica (cf. van Lier, 1988: 22). e) Pesquisa que utiliza métodos de investigação de base positivista e interpretativista: A LA, da mesma forma que as outras áreas de investigação nas Ciências Sociais, operou a princípio exclusivamente com métodos de pesquisa de natureza positivista, entendendo que a produção do conhecimento nas Ciências Sociais deveria se dar nos moldes das Ciências Naturais, isto é, sob o controle de variáveis específicas que garantiriam a validade interna e externa da investigação de modo a se poder demonstrar relações de causa e efeito através da aplicação de teses de significância estatística. Este tipo de investigação centra-se na análise do produto final do usuário (ou seja, a análise da produção escrita e oral e do desempenho em ...
(p. 22) ... compreensão escrita e oral). Esta tendência pode-se dizer que caracteriza a maior parte da pesquisa produzida em LA. Todavia, nota-se um interesse cada vez maior por pesquisa de base interpretativista, não só por representar um foco de investigação diferente, revelador, portanto, de novas descobertas que não estão ao alcance de pesquisa positivista, mas também por avançar um tipo de método de pesquisa que pode ser mais adequado à natureza subjetiva do objeto das Ciências Sociais (cf. Moita Lopes, 1994). Estas características da pesquisa de base interpretativista podem, portanto, impulsionar o desenvolvimento da LA. O foco neste tipo de pesquisa é no processo de uso da linguagem . Há em LA duas tendências principais de pesquisa de cunho interpretativista : pesquisa etnográfica e pesquisa introspectiva. Em poucas palavras, pode-se dizer que a pesquisa etnográfica é caracterizada por colocar o foco na percepção que os participantes têm da interação linguística e do contexto social em que estão envolvidos, através da utilização de instrumentos tais como notas de campo, diários, entrevistas etc .
[...] a pesquisa introspectiva centra-se no estudo dos processos e estratégias subjacentes ao uso da linguagem através da utilização da técnica chamada de protocolo, cujo objetivo é tornar acessíveis estes processos e estratégias ao fazer o usuário pensar alto, isto é, relatar passo a passo o que está fazendo ao desempenhar uma tarefa específica de uso da linguagem , por exemplo, ler um texto, produzir
um texto, etc. Em resumo, a LA é entendida aqui como uma área de investigação aplicada, mediadora, interdisciplinar, centrada na resolução de problemas de uso da linguagem, que tem um foco na linguagem de natureza processual, que colabora com o avanço do conhecimento teórico, e que utiliza métodos de investigação de natureza positivista e interpretativista (grifos meus).
(p. 27) 2 LINGUÍSTICA APLICADA NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA ... até recentemente, a pesquisa em LA era praticamente desenvolvida somente no programa de pósgraduação em LA da PUC-SP, que já tem 20 anos. Atualmente, porém, há cinco programas de pósgraduação em LA (PUC-SP, UFSC, UFRJ, UFRN E UNICAMP). Além disso, cursos independentes de graduação e pós-graduação são ministrados em várias universidades e encontram-se grupos de pesquisadores espalhados por todo o país. Em 1990, a comunidade nacional de LA sentiu a necessidade da organização política da área... (p. 28) A fundação da Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) em julho de 1990, na Universidade Federal de Pernambuco, ... Até bem recentemente, a LA era entendida como um apêndice da linguística (dentro da tradição de LA como aplicação de linguística) e isso foi certamente prejudicial ao desenvolvimento da LA como área independente de investigação. Este equívoco ajudou a gerar um preconceito contra a LA ... este equívoco também é culpado pela prática corrente nas agências financiadoras de não se usarem linguistas aplicados como consultores para avaliar projetos na área de LA. Parece-me, portanto, que uma das tarefas mais importantes da LA no Brasil é divulgar a natureza da LA como área de investigação.
(p. 29) Os tópicos mais comuns nos eventos nacionas na área de LA desde 1990 parecem indicar um grande interesse pelas regras, pelos padrões e pela natureza da pesquisa em LA. Esta discussão, acredito, tem dois objetivos: por um lado, ajuda a desenvolver a área de LA ao focalizar questões diretamente relacionadas à pesquisa em nosso campo, e, por outro lado, colabora na divulgação da natureza da pesquisa em LA na comunidade que estuda questões referentes à linguagem (linguistas, pesquisadores em teoria da literatura, etc) ... a informação sobre a pesquisa existente em LA no Brasil mais facilmente encontrável é aquela em desenvolvimento nos programas: ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística), Simpósio de LA (SIMPLA), I Intercâmbio de Pesquisa em LA da PUC-SP. Os projetos existentes centram-se, principalmente, em quatro áreas: Ensino/Aprendizagem de Língua Estrangeira (LE), Ensino/Aprendizagem de Língua Materna (LM), Educação Bilíngue e Tradução. (p. 30) ... teses de doutorado em LA escritas por brasileiros nos últimos dez anos: mais de 50% estão na área de leitura em inglês como LE. ... 90% das teses de doutorado estão na área de LE. Embora haja um interesse crescente por pesquisa na área de LM, a maior parte da pesquisa, fora dos programas de LA, é ainda realizada na forma de aplicação de linguística. Isto, na minha opinião, causa danos consideráveis aos possíveis desenvolvimentos em educação em LM, já que é difícil perceber que contribuição a linguística pode dar a questões que estão além de sua abrangência (isto é, a natureza da aprendizagem em contextos formais, aspectos sociopolíticos da educação linguística etc.) Além disso, em geral, muitos dos que trabalham neste campo não possuem a formação necessária em LA: tendem a ser linguistas com um interesse em tópicos de LA, ou seja, atuam em LA de forma periférica. Este fato dá às suas pesquisas um foco distorcido. Grande parte do trabalho nesta área trata somente de análises da linguagem como produto e das implicações destas análises para o ensino de LM. (p. 31) Na pesquisa em LE, o Projeto Nacional de Inglês Instrumental, criado e coordenado pela PUC-SP desde 1978, tem tido um desempenho central (cf. Celani, Holmes, Ramos & Scott, 1988). Este projeto conseguiu envolver o corpo docente de língua inglesa da maior parte das universidades federais do Brasil, e aumentou o nível de interesse e pesquisa. Uma outra questão de grande interesse na comunidade brasileira de LA tem sido a da formação do professor. Acredita-se que os desenvolvimentos teóricos e práticos dos programas de LA não conseguiram ir além do mundo acadêmico e alcançar o mundo relativamente distante da sala de aula de línguas, onde a prática de ensinar e aprender línguas se desenvolve. Há um desequilíbrio entre o nível de desenvolvimento teórico em LA e os padrões relativamente baixos da educação em LE nas escolas. Embora alguma pesquisa já tenha sido desenvolvida na área, esta não conseguiu influenciar o que acontece nas escolas. ...
(p. 32) ... Acrescenta-se ainda o fato de que as secretarias de educação em muitos estados não tem prestado muita atenção ao que as universidades vêm fazendo.
Na tentativa de alterar esta situação, vários esforços têm sido desenvolvidos: uma das linhas de pesquisa do Grupo de Trabalo de LA da ANPOLL é exatamente a formação do professor de línguas, alguns projetos de
pesquisa têm se centrado na sala de aula de línguas, e alguns programas de LA vêm oferecendo cursos de especialização voltados para a educação do professor. Espera-se que a influência dos programas de pósgraduação comece a ser percebida fora dos limites das universidades. A situação da LA no Brasil parece ser similar à situação da LA em outras partes do mundo. As questões centrais referem-se ao status da LA como uma área de investigação, aspectos políticos relacionados ao financiamento de pesquisa, a relação entre linguística e LA, e a distância entre o trabalho desenvolvido nos programas de pós-graduação e o que ocorre nas salas de aula fora da universidade. Apesar destas dificuldades, está claro que a LA no Brasil está estabelecida como uma área de pesquisa.