Allípio de Sousa Filho A
MEDOS. MITOS notas sobre a pena de morte 4 6
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ESTÕES ju j uaimOSSA ÉPOCA CORT6Z € D I T O R Q
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Coleção QUE STÕ ES D A NO SS A É POC A Volume
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46
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Sousa Filho, Alípio de Medos, mitos e castigos : notas sobre a pena de morte / Alípio de Sousa Filho. - São Paul o : Corte z, 1995. (Coleção questões da nossa época ; v. 46). Bibliografia ISBN 85-249-0567-0 1. Medo 2. Pena de morte 3. Puniç ão I. Titulo . II. Série. 95-1911
CDD-364.66 índices para catálo go sistemáti co:
1. Pena de morte : Penalogia
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Al Alípio de Sousa Filho
MED MEDOS, MIT MITOS E CASTIGOS:
notas sobre a pena de morte \ \ o -X
QUESTÕES DA NOSSA ÉPOCA
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MEDOS, MITOS E CASTIGOS: notas sobre a pena de morte Alípio de Sousa Filho Capa: Carlos Clémen Preparação de originais: Revisão: Carm en Teresa Composição: Coordenação
Irene Hikichi da Costa Dany Editora Ltda. editorial: Danil o A. Q. Morales
Ne nhum nh um a part pa rtee dest de staa obra ob ra pode po de ser se r repr re prod oduz uzid idaa ou dupl du plic icad adaa sem se m autorização expressa do autor e do editor. © 1995 by Autor Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Hartira, 387 — Tel.: (011) 864-0111 05(X)9-000 São Paulo — SP Impresso no Brasil — junho de 1995
A meus pais, a meus irmãos e sobrinhos, a Aécio, Concesça, Nicolau e Marcos a Márcio dedico.
Agradecimentos
Ao professor José Willington Germano, especialmente, que colaborou para a publicação deste trabalho. A professora Brasília Carlos Ferreira, pelas sugestões. A bióloga Shirley Monteiro de Melo, pela discussão de assunto específico. Ao prof pr ofes esso sorr Marc Ma rcos os An Antô tôni nioo Cost Co sta, a, pela pe lass disc di scus ussõ sões es de tema te mass específicos. Ao professor Márico de Lima Dantas, que acom panhou pan hou a feitu fei tura ra do text te xtoo dest de stee trab tr abal alho ho,, lendo le ndo e come co ment ntan ando do as primeiras versões.
SUMÁRIO Introdução
1. MITO E CASTIGO: a cultura do medo, a cultura cultu ra da dom domina inação ção
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1. A cultura do medo, a cultura da dominação: ou de uma relação entre cultura cultu ra e ideologi ideo logiaa 11 2. Os mitos: a forma for ma primeira da ideologia ideolo gia 80 3. Mitos de castigos (nossos) conhecidos: Dilúvios Dilúvios... ... Lobisomens Lobisomens... ... Mortes . . . 86 2. PRÁTICAS DE CASTIGOS E PENA DE MORTE: o mito do castigo exemplar 1. Sociedades tribais, primeiras civilizações e Antigüidade: a lei, os castigos castigos e as penas capitais capitais . . . 2. História (Foucault): das mil mortes à morte de um instante insta nte só 3. A SOCIEDADE BRASILEIRA E A PENA DE MOR TE 1. As práticas de castigos e a pena de morte na história históri a brasileir bras ileiraa 2. Mitos, ritos, pena de morte e cultura cultu ra bras br asil ileir eira, a, hoje ho je Bibliografia
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91 95 103 103 106 116
"Como o pecado é um ato contrário à Ordem, é óbvio que qualquer um que peque age contra uma mia Ordem; e assim pela mesma Ordem resulta que ele seja reprimido. E esta repressão é a Pena."
São Tomás de Aquino "Quando os homens agem apenas por medo, fazem o que menos gostariam de fazer e não se importam com a utilidade nem com a necessidade daquilo que fazem, procurando unicamente não pôr a cabeça em risco, isto é, não se expor aos castigos."
Baruch Espinosa "A ideologia não é uma crosta desagradável remove com com um bom detergente."
que se
Marilena Chaui
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Introdução
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A análise que desenvolverei procurará demonstrar que a existência das práticas de castigos e penas de morte nas culturas humanas faz parte da crença, mantida por essas culturas, na eficácia de castigos cruéis e de conhecimento público aplicados a todos aqueles que infringirem leis sociais, ofenderem deuses, governantes e a natureza. Conforme procurarei demonstrar, os castigos, as torturas e as penas de morte aplicados a indivíduos humanos são possíveis de existir e ser aceitos, seja de modo perm pe rman anen ente te,, como co mo no caso ca so de conj co njun unto toss cult cu ltur urai aiss inteiint eiros, seja de modo esporádico, como no caso de nossas sociedades ocidentais atuais, em razão do predomínio de uma crença generalizada: a crença de que sem o exemplo do castigo (do corpo) não existirá respeito e obediência às leis, às normas, aos costumes, aos governantes e aos pode po dere ress sagr sa grad ados os.. A análise levará em conta que é a existência de mitos de castigos, nas culturas humanas , que se constitui em verdadeira fonte para a produção de um simbolismo de aceitação dos castigos, torturas e penas de morte. Procurarei demonstrar como esses mitos de castigos são propiciadores de formação de uma verdadeira cultura do n ecessária e medo, que habitua a todos a aceitar como necessária legítima legíti ma a utilização utiliza ção da violência viol ência sobre sobr e o corpo, cor po, a imposição de castigos cruéis e a condenação de pessoas à morte. Para nós, sem a análise do papel significativo dos miestab elecimento ento da hegemonia hege monia do que tos de castigos, no estabelecim chamamos a cultura do medo, não se pode compreender por que qu e dive di vers rsas as soci so cied edad ades es — dife di fere rent ntes es quan qu anto to a suas su as naturezas e lugar no tempo — admitem e praticam a tor9
tura e a pena de morte, com o consentimento da maioria dos seus membros. Conforme entendo, não podemos deixar de reconhecer a existência de uma relação entre o fenômeno da aceitação dos castigos, tortura e penas de morte, em diversas sociedades, e o fenômeno, comum a todas essas sociedades, de produção de representações sociais de culto à Ordem como natural, necessária e inevitável, de que nascem os mitos legitimadores dos castigos que merecem todos aqueles que atentam contra o instituído, o estabelecido. O que pretendo demonstrar é que a instituição das prát pr átic icas as de cast ca stig igos os e pena pe nass de mo mort rte, e, em quas qu asee toda to dass as sociedades de que se tem conhecimento, não ocorre sem o concurso das idéias de justificação social do castigo: o que nos põe direto no rastro dos mitos, no mundo fantástico do imaginário, no campo da ideologia. E especificamente sob essa ótica que irei tratar o problema. Não Nã o me prop pr opon onho ho,, port po rtan anto to,, a disc di scut utir ir o tema te ma sob so b o pont po ntoo de vista vis ta das da s ques qu estõ tões es jurí ju rídi dica cass (e me mesm smoo étic ét icas as). ). A meu ver, não cabe discutir as implicações jurídicas das torturas e da pena de morte, mas antes os mitos nos quais as práticas de castigos se apoiam, o que nos obriga a tratar dos fenômenos da cultura e da ideologia e seus efeitos sobre a vida dos homens.
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1.
MITO E CASTIGO: A cultura do medo, a cultura da dominação 1. A cultura do medo, a cultura da dominação: ou de uma relação entre cultura e ideologia O medo sempre foi elemento integrante da vida das sociedades, desde os primeiros agrupamentos humanos. É mesmo certo que a existência do medo está profundamente ligada à própria história do homem (Delumeau, 1989, passim). Entre os estudiosos, o ponto de vista segundo o qual os homens sempre tiveram medo é aceito sem reservas, e é razoável pensar que continuarão a têlo. Pode-se pensar em um medo primigênio, espécie de reação psicológica útil para a defesa e para a sobrevivência do homem como espécie. O medo seria assim uma emoção básica frente a certas circunstâncias que exponham o indivíduo ao risco, ao perigo, ameaçando a continuidade da sua vida. Os animais de todas as espécies também sentem medo, mas nenhum outro animal sente o medo como o homem, com a intensidade que este sente. Dotados do sistema nervoso, os animais respondem às situações de perigo, mas nunca igualmente aos homens. A razão talvez esteja no fato de que o homem é o único animal que antecipa sua morte; sabe muito cedo que morrerá (ibidem:19).
Há, sem dúvida, um ingrediente natural no medo, mas esse ingrediente não pode ser tomado como a sua causa. Embora só possa ser sentido como uma emoção e um
sentimento em razão da estrutura orgânica de que o indivíduo humano é portador, o medo, no homem, não tem uma origem biológica, entendida aqui como a sua causa efetiva. Os fenômenos bioquímicos provocados pelo medo são, de fato, resultados, reações em razão do sentimento provocado pelas situações vividas como de medo. Não Nã o se pode po de dize di zerr que qu e o me medo do que qu e os home ho mens ns sent se ntem em,, de diversos modos, nasce no cérebro; nem afirmar que os homens sentem medo porque são dotados de hipotálamo. Provavelmente, sem a estrutura orgânica de que é dotado, o homem não poderia experimentar nenhum de seus sentimentos, reagir a suas emoções e nem ter respostas físicas e psicológicas, mas as emoções e os sentimentos não são definidos biologicamente, são determinados pela cultura e consistem no resultado de aprendizagem social. Todo o processo implicado na biologia do medo não é de origem natural, como se pode chegar a pensar. O que se descreve nos manuais que tratam das bases psico fisiológicas do comportamento (Brand (Br andão, ão, 1991) 1991) é antes uma resposta do organismo a estímulos exteriores. As regiões do cérebro do homem, envolvidas na inibição, na excitação e no reforço das emoções, não atuariam se não ocorresse interpretação dos fatos, o que só é possível possí vel porq po rque ue o home ho mem m está est á entr en tree os anim an imai aiss com o córt có rtex ex ma mais is desenvolvido, não resta dúvidas, mas também — e principalmente — porque é o homem um ser de cultura, ca paz pa z de elaborar e interpretar representações sociais. De todo modo torna-se proveitoso compreender que a estrutura orgânica do homem tem componentes e mecanismos que são responsáveis pelo desencadeamento de uma química que se produz cada vez que o indivíduo se depara com situações que interprete como com o perigo perig o e risco, que traduzimos como medo.
Se o homem reage ao medo porque está dotado de um córtex desenvolvido — e desse ponto de vista, bem como de todos os outros, o homem é o animal mais evoluído; o homem é o único a ter neocórtex — e responde a certas emoções de maneira a sentir efeitos concretos no plan pl anoo de sua fisi fi siol olog ogia ia,, conv co nvém ém obse ob serv rvar ar,, cont co ntud udo, o, que qu e o homem não sente medo senão em razão de algumas situações que vivência na vida em sociedade, sendo o medo, portanto, uma experiência que varia culturalmente. Do que decorre que o medo no homem não é único, mas múltiplo (Delumeau, 1989, passim). Natu Na tura ralm lmen ente te exis ex iste te um mínimo de reações semelhantes entre os homens de todas as culturas — o que se aplica a muitas outras experiências da vida em sociedade e não apenas ao medo. As razões para que existam reações semelhantes estão, certamente, em fatores da própria vida social. Acerca do assunto, Roger Caillois, ocupado com a análise de problema análogo, observa: (...) a generalidade do tema no homem não é surpreendente, pois poi s deve de ve espe es pera rarr-se se que qu e a gran gr ande de seme se melh lhan ança ça na estr es trut utur uraa orgânica e no desenvolvimento biológico de todos os h o m e n s , juntamente ternas
de sua
um mínimo
vida
com
a identidade
psicológica,
de reações
tenda
semelhantes,
das
condições
a estabelecer
exnele
e que eng end re, por
conseguinte, em todos, as mesmas tendências afetivas e conflitos passionais primordiais, tal como a identidade dos mecanismos da sensação determina, num modo sensivelmente equivalente, a das formas a priori da percepção e da representação. (1972:55: gritos meus)
Ainda conforme Roger Caillois — ressalvada minha discordância quanto ao autor admitir "uma espécie de condicionamento biológico da imaginação" (ibidem: 62) —, — , o me medo do,, entr en tree os home ho mens ns,, é resu re sult ltad ado, o, prin pr inci cipa palm lmen en-te, da faculdade de imaginar, de que apenas os indivíduos humanos são dotados. A existência do fenômeno se 13
mhbhí
deve certamente ao fato de o homem ser, essencialmente, uma criatura do Simbólico, como veremos adiante. Dessa forma, o medo com o qual me ocuparei, é de natureza social, como tudo o é na cultura. E nisso não me afasto de quaisquer das explicações já apresentadas pelas pe las ciên ci ênci cias as huma hu mana nass acer ac erca ca da natu na ture reza za da real re alid idad adee social. Contrariamente a todo o entendimento do senso comum, as ciências humanas vêm esclarecer que tudo que diz respeito ao comportamento social do homem e sua vida individual e coletiva tem origem social e histórica, não havendo nada, do ponto de vista do que foi afirmado antes, que possa ser aceito como resultado de herança biológica. A idéia segundo a qual a realidade social e o comportamento do homem são uma extensão de leis naturais (ou desígnios sagrados) é interpretada pelas ciências humanas como representações sociais, produções imaginárias cuja cuj a funçã fu nçãoo na vida social será analisada adiante. O medo é apenas mais uma das experiências sociais que guarda uma relação direta com a institucionalização 1 da vida em sociedade. A sua difusão faz parte da instituição da dominação social e política sobre os indivíduos. E perf pe rfei eita tame ment ntee cabív ca bível el pens pe nsar armo moss a exis ex istê tênc ncia ia de um umaa verdadeira cultura do medo como parte da institucionalização da vida coletiva nas sociedades. Os mitos de castigos são ingredientes fundamentais na construção dessa cultura do medo. (Analisarei o tema nesta primeira part pa rte. e.)) O medo de que trato está diretamente entrelaçado com a instituição da vida em grupo. A construção do espaço da sociedade é sempre-já um empreendimento marcado pelo controle social em que o medo é um ingreI. Para um conceito de institucionalização, ver Peter Berger e Thomas Luckmann, A construção social da realidade, pp. 69 e segs .
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diente fundamental. O fato mesmo de a criatura humana nascer inacabada e dependente da cultura 2 põe o homem sob o desígnio de sua destinação forçada a tornar-se humano. Toda a sua existência é marcada pelo temor de romper esse espaço no qual se cria a si próprio e sem o qual não existiria como ser. Os espaços da sociedade e da cultura passam a ser vistos como invioláveis sob todos os aspectos. O medo passa a ser, antes de tudo, temor metafísico da desagregação e da destruição da Ordem Social e da Natureza. Visto isso, convém ressaltar que o medo assume papel fundamental na socialização dos indivíduos e funciona como mecanismo de controle social, uma vez que se encontra ligado à idéia de poder: sejam os poderes humanos e sociais, sejam os poderes representados como não-humanos, sobrenaturais, sagrados, a que se deve obediência e respeito únicos, pois são responsáveis pela criação e existência do Mundo. As faces do medo são múltiplas, mas são sempre máscaras do mesmo fenômeno. E ainda que, hoje, existam outros e novos, não deixam de ser o mesmo medo humano. Mesmo tendo chegado ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, o homem não se libertou do medo. Não Nã o há razã ra zãoo em se pens pe nsar ar que qu e o me medo do exist exi stiu iu nas eras er as prim pr imit itiv ivas as da huma hu mani nida dade de.. O imag im agin inár ário io das soci so cied edad ades es urbanas industriais atuais nunca deixou de criar e recriar o medo sob diversas maneiras. Naturalmente não se trata dos mesmos medos. Todavia, pensar que o medo é com port po rtam amen ento to do homem arcaico3 é acreditar que o homem moderno está totalmente liberado dessa emoção, pela idéia de que este pode contar com explicações lógicas 2. Desenvolverei o tema adiante 3. A expressão homem arcaico é utilizada no no sentid o exclusi vamente dado pela antropologia, quando se refere ao homem das prim pr imei eira rass soci so cied edad ades es huma hu ma nas, na s, as soci so ci edad ed ad es primitivas ou arcaicas.
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cada vez que se depara com fenômenos que desconhece. Conforme essa visão, apenas aquele homem arcaico, porq po rque ue não nã o tinh ti nhaa um umaa defi de fini niçã çãoo racio ra cional nal dos do s f en ô me menn os que ignorava, mergulhado na superstição e na fantasia, era uma presa do medo. Se assim fosse não assistiríamos — c o m o assi as sist stim imos os atua at ualm lmen ente te — à reto re toma mada da de expl ex pliicações místicas para fenômenos que desconhecemos ou que nos vemos ameaçados por eles, como são as crises que o mundo atualmente atravessa 4 . E mais correto pensar que há uma história do medo porq po rque ue o me medo do é mu mutá tável vel como co mo as soci so cied edad ades es nas quai qu aiss os homens vivem. Entretanto, o fundamento e a função social desse sentimento não conhecem diferenças relevantes quanto aos domínios em que se apoia e ao papel que desempenha na vida coletiva, nas diversas sociedades e épocas. De fato, o medo funciona como verdadeiro "ectoplasma da angústia coletiva" (Ferrares, 1989:41) na medida em que fornece aos indivíduos de sociedades fundadas na divisão e no conflito entre suas partes — e não há sociedade que não conheça a divisão sob alguma forma — objetivos aceitáveis para resolver as angústias e agregar a todos sob a idéia do consenso e da harmonia. A difusão do medo serve para manter todos os indivíduos na normalidade da cultura instituída e muitos dos ritos coletivos, alimentados pelo medo, servem para aliviar as tensões psíquicas, funcionando como soluções para pa ra dese de sequ quil ilíb íbri rios os que qu e am amea eace cem m a Orde Or dem. m. Mas torna-se necessário procurar explicar a origem do medo, sua permanência e seus meios de se propagar. Poderíamos dizer que as culturas humanas — e aqui nenhuma delas em particular, mas todas — são culturas do medo. Desde tenra idade, os indivíduos humanos são 4 N:i N:i onda mística atual, verdade iros fant asma s da consciê ncia mítica coletiva estflo de volta, trazidos por magos e bruxas.
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socializados sob os efeitos do medo. Espécie de salvaguarda das instituições sociais. Mostrarei adiante a que isso está ligado. Mas uma raiz mais profunda — e mais universal — do problema não pode deixar de ser apontada, de maneira a não se perder de vista a relação existente entre o fenômeno particular do medo e os fenômenos da instituição da cultura e da existência do homem. Com respeito à última observação, desperta interesse uma passagem do antropólogo Gilbert Durand, em esdedic ada à truturas antropológicas antropológicas do imaginário, obra dedicada análise do processo de produção das representações sociais. G. Durand, citando Maria Montessori, lembra que o homem nasce marcado pelo medo. Naturalmente o estudioso das representações sociais não esqueceu que a ocorrência do nascimento, embora atado a determinações naturais, nunca deixou de ser um acontecimento cultural, marcado pelas convenções sociais. Mas, embora não se dê da mesma maneira em todas as culturas, o nascer tem as marcas características universais do ingresso do indivíduo na vida social. Conforme observa: (...) as manipulações e mudanças de nível brutais que se seguem ao nascimento seriam, ao mesmo tempo, a primeira experiência da queda e a primeira experiência do medo. (Durand, 1989:80)
Se essa é, para os indivíduos, a experiência primeira do medo, ela não se perderá para sempre, como um fato que sequer poderá ser lembrado. No curso da vida, muitos outros medos detonarão a lembrança desse fato original. Para G. Durand, o homem será verdadeiro prisioneiro de uma imaginação da queda (ibidem, passim). Mantendo relações entre si e com o ambiente externo natural, os homens produzirão representações que afastem (sim boli bo lica came ment nte) e) o peri pe rigo go da qued qu eda, a, um umaa am amea eaça ça que qu e vai se agravar quando, posteriormente, vai vir associada à idéia da queda como erro, danação e pecado. A força dessas 17
representações fará também que adorem, reverenciem e temam os poderes humanos sociais e aqueles que acreditam ser divinos, uma vez que a desobediência a esses pode po dere ress repr re pres esen enta ta o peri pe rigo go da cond co nden enaç ação ão e do cast ca stig igoo — f o r ma mass da qued qu eda. a. Pelo Pe lo proc pr oces esso so de sua próp pr ópri riaa educ ed ucaação, o homem é habituado a temer e, portanto, habituado ao medo. São muitos os medos difundidos e a que são habituados os indivíduos humanos: deve-se temer aos deuses (ou a um Deus único, como querem algumas tradições religiosas), aos demônios, aos chefes de Estado, aos pais, aos mortos, às forças da natureza. E tantos outros medos menores, mas nem por isso menos profundos e eficazes. Mas todos os medos, em primeiro lugar, estão associados aos temores de castigo a prováveis faltas, transgressões e desobediências: o que é sempre o temor de colocar a vida em risco. Por essa razão, os medos — nossos medos — têm raíze ra ízess prof pr ofun unda das, s, que qu e os torn to rnam am parte pa rte efet ef etiv ivaa da construção da defesa psicológica dos indivíduos contra o temor de que se instale o desequilíbrio, o caos, a desordem cada vez que se transgridam leis, normas, valores, crenças e costumes ou quando o homem se volta para a natureza para conhecê-la e dominá-la. (Pode-se pensar, para pa ra o caso ca so espe es pecí cífi fico co do que qu e aqui estou est ou abor ab orda dand ndo, o, em termos de uma determinação ontológica do medo. A análise da função dos mitos permite concluir que há sedimentado nas culturas um temor (metafísico) de que venha a ocorrer a desagregação ou a destruição da Ordem Cósmica e/ou Social. Voltarei ao assunto adiante.) A presença do medo nos comportamentos dos indivíduos e dos grupos não é fenômeno das sociedades primitivas, existe igualmente entre nós, nas sociedades contemporâneas, muito ativamente no cotidiano (e podemos sugerir que, nelas, há mais razões para a existência da difusão do medo). Como observa Jean Deluineau: 18
(...) não só os indivíduos tomados isoladamente mas também as coletividades e as próprias civilizações estão comprometidas num diálogo permanente com o medo. (...): os homens no poder fazem de modo a que o povo tenha medo. (1989:12)
Com a atenção voltada para o cotidiano, podemos constatar como as sociedades se valem dos mitos de castigos para incutir nos indivíduos o medo, de modo a evitar que desobedeçam às normas sociais ou desrespeitem a vontade dos deuses, das autoridades, dos antepassados etc. O que eqüivale a educar a todos para a aceitação da Ordem Social estabelecida. Os mitos de castigos serviriam sempre como discursos de estímulos à adoção de condutas integradas à Ordem — uma função do mito em geral (como demonstrarei adiante). Minha exposição, até aqui, pressupôs o processo de com o fundam fun damenensocialização do indivíduo pela cultura como tal para a existência do medo na vida individual e coletiva. Para me fazer entender melhor, prosseguirei no desenvolvimento do assunto por mais um pouco. A socialização do indivíduo humano huma no funcion fun cionaa como um condicionamento. O indivíduo submetido subm etido ao aprendizado da cultura instituída é levado levad o a consider cons iderar ar a sua sociedade (e seu modo de vida) como o único modelo de vida social, ou mesmo expressão natural da vida em comum. A sociedade, embora mascarando o fato, obtém isso por meio da imposição de normas de conduta e pela difusão de crenças segundo as quais a própria realidade imposta é vista como necessária, inevitável e imutável, como parte da natureza das coisas. Essa é a maneira pela qual o indivíduo passa a aceitar sua sociedade sociedad e tal tal como é (ou se apresenta), sem colocá-la em questão. Os costumes, as normas e as crenças têm o poder de condicionar o modo dos indivíduos verem o mundo, determinar suas apreciações morais e os diferentes comportamentos sociais. Ao lado disso, a aprendizagem da língua funciona 19
como verdadeiro sistema modelizante primário, que, enquanto aquisição de uma modalidade da linguagem — mas sua expressão obrigatória, dirá Roland Barthes 5 — , funciona como poderoso mecanismo de controle social. Em geral, nas ciências humanas, chamamos de cultura a esse processo e seus efeitos. (...) cultura é (...) a soma total, integrada, das características de comportamento aprendido que são manifestadas e com part pa rtil ilha hada dass pelo pe loss me memb mbro ross de um umaa soci so cied edad ade. e. (...) (.. .) é integralmente o resultado de invenção social, e pode ser considerada como herança social, pois é transmitida por ensinamento a cada nova geração. (...) sua continuidade é garantida pela punição dos membros da sociedade que se recusam a seguir os padrões de comportamento que lhes são determinado deter minado s pela Cultura. (Hoebel, 1982:219-20)
Para as ciências sociais, o homem é precisamente animal mais desesperadamente
dependente
da
o cultura cultura
(Geertz, 1989:56). Sua condição de criatura cujos instintos não sofrem desenvolvimento e cujo organismo ainda se completa quando já se encontra em relação com o am bien bi ente te exte ex tern rnoo faz fa z do home ho mem m um ser depe de pend nden ente te de um 6 tom e a seu cargo car go . Diferentemente das oumundo que o tome tras espécies animais, que dispõem de habitat próprio, o homem necessita criar o seu mundo e desenvolver extraorganicamente suas capacidades e potencialidades — e o faz criando instrumentos e técnicas que vão sendo aperfeiçoados. O que resulta dessa falta é a cultura. cultu ra. Isso decorre diretamente de uma realidade característica do homem: este necessita criar seu próprio mundo e fornecer um ambiente externo indispensável à sua exis5. Adiante, especificamente sobre o assunto, estarei voltando a Roland Barthes. 6. O assunto encontra-se em Peter Berger e Thomas Luckmann, op. cit., pp. 70-1.
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(ência, pois esse ambiente não o encontra dado, produzido. Terá que o produzir. O hom homem em faz fa z isso por meio de 7 no ambiente que o cerca. No contínua exteriorização dizer de Peter Berger e Thomas Luckmann, a exteriorização é uma necessidade antropológica, sendo send o por meio dela que o homem cria e recria o seu mundo humano e tudo o que nele existe. Ainda, é por meio da exteriorização que o homem completa o seu organismo. O mundo humano, como produto das práticas sociais dos homens, não é, porém, apenas produto. Age sobre os homens, condicionando, modelando, produzindo o com port po rtam amen ento to dest de stes es.. E é na dial di alét étic ica, a, entr en tree suje su jeit itoo cria cr iado dorr e mundo criado, que têm origem os fenômenos mais diretamente relacionados com o assunto do qual me ocupo aqui. A definição do comportamento humano está diretamente ligada ao processo de criação, pelo próprio homem, do seu mundo. Diferentemen te dos demais anianimais, o homem não nasce dotado de nenhuma característica de comportamento definida pela natureza. Tudo que lhe caracteriza como Ser social é produto de aprendizagem na vida em sociedade, na cultura. O comportamento do homem e as instituições sociais por po r ele cria cr iada dass e cons co nser erva vada dass não são sã o dete de term rmin inad ados os por leis do organismo humano e leis da natureza. O mundo humano, isto é, o próprio homem, seus espaços, valores, idéias e normas são produtos das práticas dos próprios indivíduos humanos como parte de uma história social. São resultados das práticas individuais e coletivas, não pode po dend ndoo ser comp co mpre reen endi dido doss fora fo ra do cont co ntex exto to e do propro cesso de sua produção. No processo de construção do mundo humano-social, o homem é o sujeito único. Ao 7. O conceito de exteriorização encontr a-se em Peter Peter Berger e Thomas Luckmann, op. cit., pp. 76 e segs.
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construir o mundo, produz-se a si próprio, complementando extraorganicamente suas capacidades e potencialidades, quando adquire aquilo que lhe falta quanto aos atributos que caracterizam o homem como humano. Mesmo aquelas características que temos como naturais da espécie, como são a fala, as mãos, o andar ereto, entre outras características, e mesmo nossas emoções e idéias, são, de fato, resultado de aprendizagem social na cultura. No home ho mem m nada que qu e diga dig a resp re spei eito to ao seu comp co mpor orta ta-mento e seus atributos tem origem.no que se costuma pens pe nsar ar como co mo exis ex isti tind ndo: o: um umaa natu na ture reza za huma hu mana na.. Entr En tree os estudiosos das ciências humanas, é amplamente aceito que "não existe uma natureza humana no sentido de um substrato biologicamente fixo, que determine a variabilidade das formações sócio-culturais. E mais significativo dizer que o homem constrói sua própria natureza, ou, mais simplesmente, que o homem se produz a si mesmo" (Berger (Berge r e Luckmann, Luckm ann, 1985:72). Desse modo, o próprio homem, implicado na criação do seu mundo, cria não apenas o ambiente externo de viver, mas os valores, as idéias, os modelos e as orientações de sua conduta, modelando-se como ser social. Seu comportamento é um produto de suas próprias práticas, no processo de criação do seu mundo. Nenh Ne nhum umaa atit at itud udee que qu e se rela re laci cion onee à sua cond co ndut utaa indiind ividual e coletiva resulta de um outro processo. E pela mund o humano-s hum ano-sooexteriorização que o homem cria o mundo cial e a si mesmo. Não há, portanto, uma base natural para pa ra o comp co mpor orta tame ment ntoo socia so ciall huma hu mano no e para pa ra as instit ins tituiuições sociais e políticas. O homem é todo ele resultado de um empreendimento social no qual toma parte como co mo seu principal princi pal agent ag entee e integrante. E isso o demonstram claramente todas as pesquisas das ciências humanas modernas. A esse respeito, a antropologia, a sociologia e a psicanálise andam juntas 22
na afirmação de que o homem é uma criatura que tem sua origem e desenvolvimento inextricavelmente ligados ao processo da cultura. Quanto a isso, não há dúvidas: o homem, em tudo o que lhe caracteriza como ser social, é um ser criado pela cultura, embora não o seja passivamente. Conforme Cliffort Geertz: Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem a cultura não haveria homens. (...) nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura — não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura (...). A grande capacidade de aprendizagem do homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes, mas o que é ainda mais crítico é sua extrema dependência de uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão e aplicação de sistemas específicos de significado simbólico. (1989:61)
Esse traço, que distingue o homem dos demais animais, não é algo simples e sem implicações. Ao invés, constitui a determinação ontológica da natureza social do homem, assim como da sua alienação. Pois, como o demonstram as ciências humanas, não se trata, para o caso, de terem os homens necessidade de aprender, com a sociedade (o grupo), apenas aquilo de que nascem desprovidos. Como passarão por um processo de aprendizagem global das instituições existentes, o que seria apenas adquirir os hábitos da locomoção, da alimentação, da fala e outros, resulta na internalização 8 dos do s padrões vigentes e das da s idéias dominantes, de maneira que nunca estará tãosomente adquirindo aquilo que lhes falta, do ponto de vista do seu equipamento corpóreo-orgânico, mas, simul8. Para um conceito similar, ver o conceito de interiorização por Pete Pe terr Berg Be rger er e Th om a s Luck Lu ck ma nn, nn , op. cit., cit ., pp. 173 e segs. se gs.
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taneamente, estarão introjetando os preceitos que orientarão as suas condutas. Tal experiência conta, principalmente, com a esfera do Simbólico para sancionar a realidade construída e institucionalizada. Nesse contexto, deparamo-nos com o que as ciências humanas denominam de legitimação da realidade social. Pela ação do Simbólico a realidade social é dotada de sentido e aos indivíduos é oferecida uma visão da ordem das coisas apreendida subjetivamente. Dessa maneira, pelo Simbólico a sociedade consegue sancionar sua Ordem e, por isso mesmo, obtém a legitimação das suas estruturas, papéis sociais, normas e crenças como coisas dotadas de sentido, com razões para existir. Conforme observam Peter Berger e Thomas Luckmann: A função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessível e subjetivamente plausível as objetivações de "primeira ordem", que foram institucionalizadas. (...) A legitimação "explica" a ordem institucional outorgando validade cognoscitiva a seus significados objetivados. A legitimação justifica a ordem institucional dando dignidade normativa a seus imperativos práticos. (1985:127-8)
No N o plan pl anoo da subj su bjet etiv ivid idad adee indi in divid vidual ual o efei ef eito to da legileg itimação é fornecer sentimentos de segurança e participação. Os indivíduos sentem-se seguros de que a Ordem Social existe por razões bem determinadas — que não se pode po de pôr pô r em dúvi dú vida da — e não nã o está es tá am amea eaça çada da de ser desde struída. O sentimento de que as sociedades são sistemas sociais seguros mantidos pela integração e pelo consenso — um umaa prob pr oble lemá máti tica ca am ampl plam amen ente te enfr en fren enta tada da por po r Émile Émi le 9 Durkheim em seus estudos — predispõe os indivíduos à aceitação de tudo aquilo que o simbolismo reveste e san9. Ver, acerca do assunto, Émile Durkheim, "Da divisão do trabalho social" e A? formas elementares de vida religiosa.
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ciona como natural, inevitável e legítimo. A esfera do universo simbólico — constituída das representações sociais; estas produzidas e difundidas graças à linguagem humana e sua lógica simbólica própria própr ia — é responsável respons ável pela pel a auto au topr prod oduç ução ão da legi le giti tima maçã çãoo da orde or dem m inst in stit ituc ucio iona nal.l. Ainda conforme Peter Berger e Thomas Luckmann: (...) o universo simbólico ordena e por isso mesmo legitima os papéis cotidianos, as prioridades e os procedimentos operatórios, colocando-os sub specie universi, isto é, no contexto do quadro de referência mais geral concebível. No me sm o cont co ntex exto to aind ai ndaa as tran tr ansa saçõ ções es ma mais is triv tr ivia iais is da vida cotidiana podem tornar-se imbuídas de profunda significação. É fácil ver como este procedimento fornece uma poderosa legitimação para a ordem institucional em totalidade, assim como para setores particulares dela. (...) o universo simbólico fornece uma integração unificadora de todos os processos institucionais separados. A sociedade inteira agora ganha sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados por sua localização em um mundo com pree pr eens nsiv ivel elme ment ntee dota do tado do de sign si gnif ific icaç ação ão.. (198 (1 985: 5:13 1355-41 41))
Conforme o exposto anteriormente, a linguagem é um dos principais veículos da tradução da realidade do plano objetivo para o plano subjetivo individual. Pela sua natureza e pela força com que se apresenta ao indivíduo, a linguagem se oculta como uma convenção — aparece como inerente à natureza dos objetos de que trata — e oculta, por efeito de seu funcionamento, o caráter tam bém bé m conv co nven enci cion onal al de todas tod as as inst in stit itui uiçõ ções es soci so ciais ais.. Em vista do funcionamento da linguagem, os indivíduos não interiorizam a realidade social como sendo uma das muitas realidades possíveis. Interiorizam-na como send o a realidade, a única possível, a única existente e concebível. A linguagem é, portanto, para o indivíduo humano, a prim pr imei eira ra expe ex peri riên ênci ciaa de sua alie al iena naçã ção, o, pois po is,, como co mo foi fo i exex post po sto, o, fun fu n cio ci o na ocul oc ulta tand ndoo seu cará ca ráte terr de conv co nven ençã çãoo social, enquanto oculta também o caráter de convenção de 25
todas as outras instituições sociais. O caráter de convenção da linguagem humana foi apontado por diversos pens pe nsad ador ores es.. Já Jean Je an-J -Jac acqu ques es Rous Ro usse seau au,, no sécu sé culo lo XVII XV III, I, insistindo na natureza de convenção social das instituições humanas, destaca a linguagem — e sua expressão nas línguas — como um caso de instituição criada pelos homens (1978a, 1978b). No N o iníc in ício io do sécu sé culo lo XX, XX , Ferd Fe rdin inan andd de Saus Sa ussu sure re,, tratando da natureza arbitrária do signo lingüístico, deixa entrever, pelo mesmo fundamento objetivo, a natureza arbitrária da língua (1991:81 (199 1:81 e segs.) segs. ) — o que pode ser estendido à linguagem como tal. Por ocultar sua natureza histórico-social, que é seu caráter de invenção social e convenção, a linguagem é a forma mais perfeita de condução das representações sociais, cuja natureza serve ao ocultamente do processo de institucionalização da realidade, pois, por seu intermédio, a realidade é fixada como dada, como natural. A realidade social, como representada na linguagem, adquire a aparência de que é também alguma coisa natural, pois, tal como a linguagem — vista como um dom natural e um dom divino —, existiria como decorrência decorrência de leis naturais, decorrência da vontade de Deus, dos deuses. Em vista de seu caráter, a linguagem é o suporte de operações essenciais à produção da alienação: permite o ocultamente do caráter de convenção que lhe é intrínseco e a origem social dela própria e permite o ocultamente da natureza histórico-social das instituições, dando su porte por te às repres rep resenta entaçõe çõess que qu e tornam torn am o real obje ob jeto to autônomo — obje ob jeto to sem o concur con curso so da ação dos hom homens ens.. E. em decorrência, a linguagem é suporte para uma operação — a mais poderosa dentre todas — pela qual os homens aprofundam sua alienação: consegue fazer com que a experiência do particular seja sej a vista e vivida como universal^. 10. Esse assunto, especificamente, será retomado adiante.
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A linguagem é responsável pela fixação das idéias segundo as quais existe uma natureza das coisas cuja prova são os signos que as representam. Dotados da aparência de que são inerentes aos objetos representados, os signos constroem zonas de significação — os campos semânticos — de um modo que a relação entre significantes e significados se torna impossível de ser percebida perceb ida como c omo uma relação imotivada, arbitrária. Quer dizer: as imagens significantes evocam os significados de modo direto e imediato sem que ocorra a reflexão que interponha — em qual qu alqu quer er nível nív el — um umaa perg pe rgun unta ta sobr so bree as rela re laçõ ções es entre esses aspectos constitutivos dos signos. Assim: A linguagem torna-se o depósito de um grande conjunto de sedimentações coletivas, que podem ser adquiridas monoteticamente, isto é, como totalidades coerentes e sem reconstruir seu processo original de formação. (Berger e Luckmann, 1985:97)
A natureza da linguagem provocou o semiólogo Roland Barthes a afirmar o que pode parecer, à primeira vista, um absurdo teórico: a linguagem é um fascismo. Inserido no campo da reflexão filosófica crítica, o autor, desenvolvendo uma análise no estilo de Foucault, procura demonstrar as articulações existentes entre a linguagem e as múltiplas formas pelas quais o poder se exerce na vida social. Conforme observa: Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para ser preciso, sua expressão obrigatória: a língua. A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. (...) Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada
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freqüência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada. (...) A língua, como desempenho de toda linguagem... é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. (Barthes, s/d: 12-4; grifos meus)
E certo que com a aquisição da linguagem o homem organiza o seu aparelho cognoscitivo, tornando possível que venha operar com a lógica simbólica subjacente aos proc pr oces esso soss do pens pe nsam amen ento to huma hu mano no e com co m os códi có digo goss que qu e organizam os discursos. O homem, sem dúvida, pode ser visto como, essencialmente, um ser da linguagem, mas a aquisição da linguagem implica simultaneamente a interiorização das convenções sociais. De fato, há boas razões para se pensar no papel da linguagem como promotora da alienação. A sujeição à linguagem, com a força com que ocorre, na socialização prim pr imár ária ia,, não se consti con stitui tui uma opçã op ção, o, ma mass um umaa impo im posi si-ção. E, pelas condições em que ocorre, o indivíduo absorve as representações, as normas e os papéis sociais como realidades de que não pode se separar, tornando-as como suas próprias convicções. Sem prejuízos para a acertada concepção de que o homem é resultado de um processo complexo, em que entram diversos fatores, entre os quais caberia ressaltar ainda o trabalho, à linguagem cabe papel preponderante no tocante ao modelamento da conduta humana para a vida em sociedade, pois não ocorre sem que, simultaneamente, aconteça o processo de subjetivação da realidade — que se tornará inconsciente —, verdadeiramen verdad eiramen te o processo de materialização do mundo exterior como o mundo privado interior". Portanto, pela linguagem e por meio do trabalho, o homem elaborou, embora sem o saber, as condições soI I. Adiante retomarei o problema da realidade torna da inconsciente assim como foi abordado pela psicanálise.
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l iais iais ile ile sua própria existência. ex istência. Con forme for me C. Geertz, Geer tz, o homem "literalmente, embora inadvertidamente, ele pró prio pr io se c rio ri o u" (198 (1 989: 9:60 60). ). Fora Fo ra do proc pr oces esso so de inst in stit itui uiçã çãoo do espaço da cultura torna-se impensável a existência do homem. Embora isso represente para o indivíduo humano a produção do espaço de sua alienação. Pelo que até aqui temos visto, os elementos que constituem a experiência da cultura tornam-na a experiência do controle. A institucionalização instituci onalização da vida em socieda s ociedade de nilo ocorre sem um alto grau de controle dos indivíduos. Nessa Nes sa pers pe rspe pect ctiv iva, a, um umaa defi de fini niçã çãoo de cult cu ltur uraa co mo a propr o post po staa por po r C. Geer Ge ertz tz torn to rnaa-se se adeq ad equa uada da:: (...) a Cultura é melhor vista não como complexo de padr pa drõe õess conc co ncre reto toss de co mp mpor orta tame me nto nt o — cost co stum umes es,, usos, uso s, tradições, feixes de hábitos —, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismo de controle — planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam "programas") — para governar o comportamento.(...) Não dirigido por padrões culturais — sistemas organizados de símbolos significantes — o co mp mpor orta ta me ment ntoo do home ho mem m seria ser ia virt vi rtua ualm lmen ente te ingoin governável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas, ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela — a principal base de sua especificidade, (ibidem: 56-8; grifos meus)
A maneira como a cultura opera — e o modo como os indivíduos se tornam membros de uma sociedade — esconde um fenômeno pela sua natureza invisível, mas ca paz de ma mant nter er a todo to doss os indi in diví vídu duos os sob o pode po derr das da s instituições sociais existentes: os homens acabam por se ver pris pr isio ione neir iros os da vida vid a social soc ial (dos (d os tabu ta bus, s, cren cr ença ças, s, mitos mit os e normas nela existentes), sem que se dêem conta de que se trata de produtos por eles próprios criados. Todo o proc pr oces esso so que qu e dá orig or igem em à cult cu ltur ura, a, e orig or igem em ao próp pr ópri rioo 29
homem, desaparece para dar lugar à idéia de que a realidade vivida é natural, necessária, inevitável, inde pendente do querer e do agir humanos. A realidade realida de social aparece como conseqüênci conse qüênciaa da natureza das coisas, como resultado de desígnios sagrados. O hom homem em perde a noção do processo social que está na base de sua existência histórica e da história de suas instituições. O que torna possível que a cultura se constitua nessa lente que condiciona o olhar humano é a ação das representações sociais que consegue fazer com que a realidade das sociedades apareça aos homens como dada, fixa, imutável, revestindo-se da aura de sacralidade necessária à sua autolegitimação. Uma vez que aparece como coisa dada a realidade social assume a aparência de autônoma, pode po dend ndoo exis ex isti tirr por po r si ou com co m o resu re sult ltad adoo de leis natu na tura rais is,, como extensão da "natureza" dos homens, que também é representada como decorrente de condicionamentos biológicos fixos. Já foi visto que nem mesmo os homens têm os seus comportamentos condicionados biologicamente, pois o que existe como suas emoções, seus hábitos, seus costumes, suas idéias, resulta de condicionamento social e histórico. Quanto à Ordem Social, especificamente, sua aparência de coisa natural é algo tratado, pelas ciências humanas, com a criticidade necessária. Conforme Peter Berger e Thomas Luckmann: A ordem social não faz parte da natureza das coisas e não pode ser derivada das leis da natureza. A ordem social existe unicamente como produto da atividade humana. Não é possível atribuir-lhe qualquer outro status ontológico sem ofuscar irremissivelmente suas manifestações empíricas. Tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano. (1985:76; grifo dos autores)
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No N o sécu sé culo lo XIX, XI X, Marx Mar x e Enge En gels ls,, de mo modo do geni ge nial al,, antean tecipando-se às pesquisas dos antropólogos e sociólogos modernos, chamaram ao fenômeno das representações sociais que invertem e ocultam a gênese da realidade social de ideologia. Por essa palavra palavr a entenderam enten deram as reprerepresentações sociais que ocultam dos homens a gênese histórico-social das instituições humanas e tudo o que delas resulta. Conforme deixaram entender, a ideologia torna o real algo que, aos olhos dos homens, independe de suas ações e atividades no mundo. A ideologia seria a inveraos hohosão da realidade justamen te porque, aparecendo aos mens como autônoma, a realidade ganha a aparência de umaa segunda natureza, deixando um deix ando de ser percebida percebid a como com o aquilo que é de fato: produto. Como observam: (...) em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida... (1986: 37)
É o ocultamento do processo que engendra e conserva o real, pela ideologia, que leva o homem a sacralizar sua cultura como única, inevitável e eterna. Os passos do indivíduo nas etapas de sua socialização conduzem-no a ingressar na vida em sociedade já pela aceitação da Ordem Social como natural e necessária. A análise de todos esses temas tem a vantagem de nos colocar diretamente na reflexão sobre a relação existente entre ideologia e cultura, pois apresenta a cultura como sempre-já a experiência da dominação da sociedade socom o natural, com base em bre os indivíduos, vivida como representações simbólicas diversas. A ideologia é pro-
pria pr iame ment ntee o que qu e poss po ssib ibil ilit itaa à cult cu ltur uraa ser intr in troj ojet etad ada, a, assimilada, compartilhada e conservada, sem que os seus padrões sejam questionado quest ionadoss ou recusados, recusa dos, em decorrência de não serem percebidos como construídos, particulares, relativos e históricos, mas como dados, únicos, inevitáveis, necessários e imutáveis — por meio do que 31
se estabelece a dominação sobre os indivíduos em diversas formas. Natu Na tura ralm lmen ente te,, quan qu ando do esto es touu cham ch aman ando do aten at ençã çãoo para pa ra o fato da dominação não estou reduzindo a vida social a isso. Nem muito menos compreendendo a cultura como unicamente controle e reprodução de padrões instituídos. A cultura é dinâmica e o processo histórico de modificações por que passaram as sociedades não deixa dúvidas quanto a isso. De outro modo, estaria negando o caráter histórico das instituições sociais. Entretanto, a concepção de cultura com a qual estou tecendo minhas reflexões visa demonstrar como a cultura — sua natureza e o modo como ela opera —, inde pend pe nden ente te das da s part pa rtic icul ular arid idad ades es de temp te mpoo e lugar lu gar que qu e pospo ssa assumir, tem sempre o componente do controle social como sua característica essencial. Aqui não se trata de ver esta ou aquela cultura — ou setores dela — mas a cultura em geral, isto é, a cultura em seus traços estruJun tamente nte a isso estou procuranprocura nturais e invariantes. Juntame do chamar atenção para o fenômeno específico do ocultamento da dominação, pelo processo da legitimação da realidade institucionalizada, levada a efeito pela ideologia.
Desse modo, em que pese a problemas de interpretação que poderão surgir, não me atenho aqui ao tema da mudança social — não porque deixe de reconhecer que a instituição da cultura se faça num processo de contradições e conflitos e que a cultura se modifique, mas porque o objeto central da reflexão que está em curso demanda que se veja o fato da dominação em toda a sua extensão mesmo que o nosso esforço não permita mais que apontar alguns aspectos. (A preocupação com a mudantem levado muitas análises para o erro, quando quan do ça social nfln pura o simplismo. Em nome do que afirmam ser uma <2
teórica
da mudança'
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, termin ter minam am por se constituir em obstáculos à análise mais acurada dos fenômenos sociais. Notadamente as análises que envolvem os fenômenos da dominação e da legitimação saem prejudicadas, pois, como sempre fazem aparecer o poder em toda sua força parece não interessar a certas posiçõ es que isso venha a ser reconhecido — contrariamente à vontade daqueles que, ao que parece, desejariam ver o pode po derr c o m o um umaa expe ex peri ri ênci ên ciaa da qual qua l os indi in diví vídu duos os pode po de-riam se ver livres tão logo se dessem conta da realidade pert pe rtur ur bado ba dorr a da divi di visã sãoo da soci so cied edad adee em clas cl asse ses, s, c o m o se costuma freqüentemente ver a dominaçãol3. O que qu e não é nosso caso. Diferentemente, entendo que a análise da dominação e seus mecanismos serve, em primeiro lugar, àqueles que se dedicam a pensar a transformação da sociedade. Mas esta é uma outra questão.) Nã N ã o há dúvi dú vi da, da , nem tudo tu do na cult cu ltur uraa é trab tr abal alho ho da ideologia. O que faz justamente a força da ideologia é ser um modo particular de representação da realidade
perspectiva
12. 12. Deixo para outra ocasião a discu ssão do proble ma De todo modo, convém assinalar que se trata de uma visão muito difundida no ensino universitário. Freqüentemente podem-se ver postas em oposição perspectivas teóricas apontadas como da ordem e da mudança, identif icadas com o posiçõ es político- ideológica s (sic) dos autores. Tal aberração não respeita nem mesmo os clássicos da filoso filosofia fia e das ciênci as huma nas . A meu ver, trat a-se isso de um artifício daqueles que trabalham mal com a teoria — o que serve para pa ra desv de svia iarr a at ençã en çãoo do si mpli mp li sm o de sua s anál an ális ises es.. A leit le itura ura de muitos trabalhos acadêmicos, escritos com a preocupação de se fazerem passar como da perspectiva da mudança, é bastante esclarecedora a esse respeito. 13. Essa maneira de enxergar a dominação foi criticada por Michel Foucault em toda sua obra. Seguindo a orientação teórica de M. Foucault, Roland Barthes participa também do combate ao simplismo comentando a ingenuidade dos que enxergam o poder por po r me io de uma um a única úni ca form fo rma. a. Adia Ad iant ntee esta es tare reii re to ma nd o o assu as sunt nto. o.
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que, embora ocultando o processo que a produz e conserva, aparece, em meio às idéias, como igualmente idéias. E precisamente essa dissimulação que torna possível mesmo aos estudiosos tomar a ideologia como simplesmente idéias, e ver em todas as expressões do pensamento expressões ideológicas. Necessário Necess ário se se faz afirmar afirm ar que nem todas as idéias em circulação na sociedade são idéias da ideologia, há aquelas que não o são, pois resultam do trabalho da crítica da realidade. Isto é, são idéias que resultam do trabalho da razão reflexionante, ocupada em desvelar o mundo para além de suas aparências. Em que se inclui o trabalho daqueles ocupados com a filosofia, a teoria e a ciência. (A concepção segundo a qual sustentad a por autores como com o Karl Karl Mantudo é ideologia, sustentada nheim — para quem nenhuma posição pode apontar outra como ideológica sem ter que enfrenta enfr entarr a mesma mesm a acu14 sação — pode ser ela própria tomada como uma armadilha da ideologia. Fazendo crer que é apenas um ponto 14. Ver, a esse respeito, Karl Mannheim, Ideologia e utopia. Como diz: "não é possível para um ponto de vista e para uma interpretação refutar os demais por serem ideológicos, sem ter que enfrentar essa acusação" (p. 100). O autor com base em um relativismo absoluto quer que todas as interpretações da realidade sejam interpretações ideológicas, já que todas são socialm ente determinadas. Ora, não resta dúvida de que toda forma do pensamento — incl in clui uind ndoo o pens pe nsam am en to cien ci entí tífi fico co — é soci so cial alme ment ntee dete de term rmin inad ada, a, mas não resulta disso que sejam ideológicas. O que disti ngue a ideologia é que ela é constituída das idéias da dominação, isto é, das idéias que, ocultando a origem histórico-social da realidade, dissimula também a dominação, tornando-a natural, legítima e mesmo invisível como tal. Karl Mannheim acaba se incluindo naquilo que Claude Lefort chama de uma história da degradação do conceito de ideologia, quan do passa a ser utilizado em sentido diferente daquele que deveria ser aplicado. (Ver. sobre o assunto, Claude Lefort, Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas, p. 296. 29 6.)) Se toda to dass as idéi id éias as fo ss em ideo id eoló lógi gica cass não nã o have ha veri riaa co mo separarmos as idéias da dominação dominação das idéias que são o seu contrá rio.
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de vista a mais dentre outros, a ideologia consegue não aparecer como aquilo que ela é de fato. E nada melhor para pa ra o seu trab tr abal alho ho,, pois po is,, com co m o opin op iniã ião, o, com co m o posi po siçã ção, o, a ideologia deixa de ser reconhecida como as idéias da dominação. O que torna invisível não apenas a ideologia mas a própria dominação como tal.) Portanto, não se deve confundir ideologia com posidefi niçãoo do cionamento, com interpretação. O erro na definiçã que venha a ser ideologia já produziu muitas confusões teóricas (e práticas!), chegando-se mesmo ao contra-senso de se tomar as idéias nascidas da reflexão teórico-filosófico-científica como ideologia, quando se trata de idéias críticas, análise e desvelamento do real (Kosik, 1976). Mas, se a ideologia não é tudo, é entretanto, hegemônica como explicação, circulando em todos os espaços da vida social. O que torna necessário procurar sua presença em múltiplas práticas sociais e diferentes espaços da sociabilidade. Nest Ne staa altur alt uraa de minh mi nhaa expo ex posi siçã çãoo conv co nvém ém porm po rmen enor oriizar a análise do que chamamos de ideologia. A existência da ideologia não seria possível se não fosse a vida social eivada do Simbólico. Sobre esse ponto, Émile Durkheim já advertia que "(...) a vida social, em todos os seus aspectos e em todos os momentos da sua história só é possível graças a vasto simbolismo" a sua negação. Essas idéias são a crítica. Como observa Marilena Chaui, curioso é vermos; intelectuais — mais curioso ainda, os marxistas —- envolvidos com uma maneira de abordar o fenômeno da ideologia que termina por dissolver as diferenças existentes entre ideologia e crítica, chegando mesmo à curiosa concepção do marxismo como ideologia ideologia revolucionária. Um erro em dobro: nem o marx ism o é ideologia, nem a ideologia pode ser revolucionária, sob nenhuma hipótese. Para um conceito de Crítica ver Marilena Chaui, "Crítica e ideologia", in Cultura e democracia: o discurso competente e outras
falas.
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(1989:288). A relação entre cultura e ideologia tem origem, primeiro, no fato de o indivíduo humano ser uma criatura destinada à aquisição da linguagem e sua lógica simbósu bjalica própria. A existência de uma lógica simbólica subjacente aos processos do pensamento humano — hoje conce bida por um vasto vast o núm número ero de disciplin disc iplinas, as, entre as quais se destacam a lingüística, a psicanálise e a antropologia — explica a capacidade de criação, pelos homens, de diversas representações para se referirem ao seu seu mun mundo do e às coisas. O que caracteriza a lógica simbólica da linguagem é não pressupor a presença dos objetos de que trata (Jakobson, 1991:33), em razão do que os objetos da realidade aparecem representados por imagens significantes, que, substituindo os objetos, têm o poder de evocar suas pres pr esen ença çass à pres pr esen ença ça dos do s suje su jeit itos os que qu e as inte in terp rpre reta tam. m. E nesse nível da ausência das coisas — a invisibilidade do real —, mas de suas presenças por meio de imagens, de que as metáforas e as metonímias nos mitos — mas em toda linguagem — são exemplos, que podemos tratar do ideológico propriamente. Pois a ideologia vale-se do es paço pa ço do invisí inv isível vel para par a reali re aliza zarr toda to dass as suas su as oper op eraç açõe õess de dissimulação e ocultamento. A ideologia estaria impossi bili bi lita tada da de exist exi stir ir se não exis ex isti tiss ssee a prática simbólica. A próp pr ópri riaa ideo id eolo logi giaa não nã o apar ap arec ecee como co mo tal, ma mass na form fo rmaa de idéias, crenças, valores e normas, tornando-se invisível à observação imediata, na vida diária e comum. Do que decorre toda a eficácia de seu trabalho. Portanto, a prática simbólica, como a operação básica da linguagem e, por extensão, da ideologia, corresponde à faculdade do homem de criar representações, de imaginar. As representações sociais são maneiras de os homens expressarem suas visões da realidade quanto a muitos de seus aspectos e têm quase sempre os traços de verdadeiras concepções que procuram explicar a origem das coisas e dos seres, do mundo físico e social, servindo de apreciações que orientam a conduta dos indivíduos. 36
Conforme muitos estudos demonstram, o simbolismo, nas culturas, não é um conjunto de alegorias inocentes, sem relação com o social por inteiro. Ao invés, existem em proveito da perpetuação do social. As relações ocultas e profundas entre o Simbólico e o social aparecem se refletirmos sobre o fato de que na vida social tudo está em conexão. Sobre especificamente o papel das representações sociais, ao eivarem a vida coletiva de simbolismo, vejamos o que o sociólogo Michel Maffesoli observa: De uma maneita ou de outra, o simbolismo remete à perm pe rman anên ênci ciaa do grup gr upo. o. De rest re sto, o, vale val e dizer diz er que, qu e, os símbolos têm origem no grupo, são eles que permitem continuidade do sentimento que o grupo nutre por si próp pr ópri rio. o. O símb sí mbol oloo é a caus ca usaa e efei ef ei to de toda to da vida vid a societal. (1985:19)
Ness Ne ssaa expr ex pres essã são, o, o Simb Si mból ólic ico, o, por po r ação aç ão dos do s elem el emen en-tos que o definem — todos os signos, destacadamente os símbolos —, torna-se o campo da elaboração e da consagração do sentimento de que a realidade social é permanente. A sociedade, nutrindo os indivíduos da idéia de perm pe rman anên ênci cia, a, cons co nseg egue ue ma mant nter er a todo to doss atad at ados os ao sist si stem emaa de dominação que lhe é inerente e ao qual os indivíduos estão determinados a serem submetidos. Na esfera do Simbólico, os sujeitos sociais são colocados diretamente na ideologia. A idéia de permanência da sociedade socie dade é, para par a os indi in diví vídu duos os,, verd ve rdad adei eiro ro tabu, cuja violação — que representa uma ameaça ao equilíbrio da Ordem — é passível de ser punida com castigos que vão das sanções prat pr atic icad adas as pelo pe loss pode po dere ress soci so ciai aiss às sanç sa nçõe õess que qu e são sã o re pres pr esen enta tada dass c om omoo sagr sa grad adas as.. Assi As sim, m, o socia so cial,l, por efei ef eito to de sua hipóstase, mostra-se como não podendo ser negado, pois sem ele o indivíduo não é nada 15 . 15. A esse respeito, a leitura de Durkheim é bastante esclarecedora. Ver At formas elementares de vida religiosa.
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Dessa maneira, a sociedade, nutrindo o indivíduo humano do sentimento de que, com suas instituições, é necessária e inevitável, reveste-se dos mantos da naturali(Ber ger, 1985), 1985), necessá nece ssários rios para dade e da sacralidade (Berger, que possa se apresentar como imutável, realidade que não pode ser posta em dúvida. E pelo processo básico da socialização que ocorre de o indivíduo interiorizar essas representações e idéias. A socialização é, para os indivíduos humanos, o canal pelo qual, ao ingressarem na vida social, penetram na experiência de sua alienação. Ser socializado, para os indivíduos, significa, antes de qualquer outra experiência, ser submetido à experiência de sua dominação pelo sistema de sociedade a que estão vinculados. Embora a dominação não apareça como existindo. A relação que aqui estabeleço entre socialização e dominação não pode ser vista como um abuso de interpretação que se deve recusar. A evidência de que a experiência da socialização é já a experiência da dominação está apontada — embora não explicitamente em todos — por mu muit itos os auto au tore res. s. Não Nã o se trat tr ata, a, port po rtan anto to,, de ver a domi do mi-nação em tudo, mas de percebê-la nos lugares e nas práticas onde menos parece estar — para seguirmos uma prec pr ecau auçã çãoo me meto todo doló lógi gica ca reco re come mend ndad adaa por po r Michel Mic hel FouFo u16 cault, quando se ocupava de tema análogo . A legitimação das instituições sociais — pelo ocultamento do processo histórico-social que lhes dá origem e pelo pe lo ocul oc ulta tame ment ntoo da domi do mina naçã çãoo a que q ue subm su bmet etem em os indiind ivíduos sob os seus controles — é o que o simbolismo mítico-religioso-ideológico produz por seu efeito e, não sem razão, podemos dizer que não há Simbólico que não 16. Mais do que um tema análogo, o tema do poder, enfrentado por Mic hel he l Fouc Fo ucau ault lt,, na tent te ntat ativ ivaa de reti re tira rarr a de fi niç ni ç ão de pode po derr do campo estrito do direito e do Estado, tem relação direta com o objeto de minha reflexão. Voltarei a Michel Foucault logo adiante.
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Ser a dissimula diss imulação ção da natureza part pa rtic icul ular ar das conv co nven ençõ ções es soci so ciai aiss e ser a expl ex plic icaç ação ão da origem do real que dota a realidade social de sentido é o que caracteriza a ideologia, no fundamento, e o que torna sua existência algo eficaz, que cabe à análise teórica do social desvendar. O que em tudo isso se apresenta muito claro é que a ideologia serve, em primeiro lugar, à dominação nas sociedades. Pois é da sua natureza, como ideologia, ocultar faze ndo com que a gênese histórico-social da realidade, fazendo a Ordem das sociedades humanas apareça como natural, necessária, inevitável e independente da ação humana. A ideologia é sempre a justificação da Ordem Social existente e experimentada pelos indivíduos, pois fornece a estes os fundamentos da existência dessa Ordem. Seja por po r me meio io dos do s mito mi tos, s, seja se ja por po r me meio io de disc di scur urso soss que qu e se querem racionais, a ideologia trata sempre de fazer crer que as instituições sociais existem por razões que não se pode po de duvi du vida dar, r, pois po is,, ora or a se apre ap rese sent ntam am como co mo prod pr odut utos os de leis naturais, ora se apresentam como produtos da vontade de poderes sagrados. Daí a ideologia se constituir no discurso que a sociedade faz sobre si mesma sempre de maneira a tornar invisível o processo que engendra e conserva sua estrutura de sociedade. Por essa razão, Marx e Engels, em A ideologia alemã, vão dizer que a ideologia não tem história. Não tem his- tória porque no lugar de história real a ideologia coloca uma história inteiramente imaginária: a história como vista pelas representações sociais que contam aos homens — pelos mitos, pelas narrativas épicas, pelos muitos discursos que circulam — o modo como o mundo humano teve origem, sem que apareça o processo real pelo pe lo qual qu al a real re alid idad adee social soc ial foi, fo i, de fato fa to,, prod pr oduz uzid idaa e se conserva. Processo no qual os homens estão diretamente envolvidos, como vimos, e dele participam como sujeitos principais, na medida em que são, de fato, os criadores do mundo humano. seja sempre-já ideologia.
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Na ideo id eolo logi gia, a, cont co ntud udo, o, o mu mund ndoo h um uman anoo não nã o apar ap arec ecee como produzido. Na ideologia o mun mundo do hum humano ano aparece como dado, seja como resultado re sultado de leis leis naturais, seja como resultado da vontade de poderes sagrados. E por essa representação do mundo humano como dado que a ideologia consegue tornar naturais as instituições existentes e, por extensão, tornar natural a dominação social e política a que os indivíduos são submetidos. O que a ideologia nega é precisamente a historicidade da realidade. A ideologia é, pois, o discurso da dominação nas sociedades, uma vez que serve à legitimação da Ordem vigente. Não deve, contudo, ser visto como um discurso voluntário e gratuitamente produzido pelos grupos ou classes no exercício da dominação. O discurso ideológico é espontaneamente produzido pelos indivíduos em suas relações sociais cotidianas. Como sabemos, a ideologia consiste na representação que torna as instituições sociais autônomas, eliminando elimi nando todos os vestígios da historicidade do processo que lhes deu origem. Simplesmente, na ideologia, o que é resultado, produto, obra das prát pr átic icas as dos do s home ho mens ns,, apar ap arec ecee como co mo coisa dada, natural, sagrada, independente indepen dente do agir humano, human o, assumind assu mindoo a forma de algo fantasmagórico (no dizer de Marx, Marx , em O ca11 pital) , ignorado pelos próprios homens. O que resulta no fetichismo da realidade, em sua mistificação. Conforme observam Marx e Engels: O poder social (...) aparece a estes indivíduos (...) como umaa força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo um destino ignoram, que não podem mais dominar e que, pelo pe lo cont co ntrá rári rio, o, perc pe rcor orre re um umaa série sé rie part pa rtic icul ular ar de fase fa sess e 17. Há na análise do modo de produção capitalista, por Marx, uma teoria da ideologia como o ocultamento do processo históricosocial em que têm origem as relações capitalistas de produção e, por po r ex te ns ão , o oc ulta ul ta me nt o da natu na ture reza za do capi ca pita tal.l. Este Es te que qu e se apresenta como "ser miraculoso", como observa Marx.
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de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige este querer e agir. (1986:49-50 grifos meus)
Sobre a dominação, uma palavra. pala vra. O que qu e aqui estou fazendo entender por dominação não é a experiência do pode po derr como co mo algo al go dest de stac acad adoo da soci so cied edad ade. e. Co nf or me tudo tu do o que até aqui venho expondo, a dominação deve ser entendida como sempre-já a experiência da submissão à vida em sociedade, pois essa experiência não existe senão como tal para os indivíduos humanos. A vida em sociedade, toda ela organizada sob a forma de padrões, normas e crenças, coloca o indivíduo sob a mira de diversos mecanismos de controle social, que são eles as formas pelas quais a dominação se exerce. (O conceito de sociedade, implícito no que estamos tratando, não se afasta do que pensou Émile Durkheim (1978 e 1989) e, de certo modo, do que pensou Karl Marx (Marx e Engels, 1986; Marx, 1983).) O que aqui procuro evitar é o entendimento que reduz a dominação a uma única de suas formas — a bem dizer, sua expressão visível na forma Estado. Um modo de compreender o fenômeno que perde de vista sua profundidade e sua amplitude. O entendimento segundo o qual a dominação é exclusivamente experimentad a com a dominação de classe e do Estado não passa de erro. Um erro que impede que se possa enxergar a dominação em todas as suas formas e em toda sua extensão. Articular a dominação (vivida pela sujeição ao poder da sociedade) à máquina do Estado e à dominação de classe é uma redução do problema que se deve evitar. Devemos mesmo supor que a dominação, como a ex peri pe riên ênci ciaa da suje su jeiç ição ão às regr re gras as,, norm no rmas as,, valo va lore ress e cren cr en-ças, é fenômeno anterior à existência do Estado e à dominação de classe, não podendo, portanto, ser tratada como se fosse fenômeno da mesma natureza desses últimos ou por eles determinada. Vistas bem as coisas, po41
demos supor que o processo é mesmo o inverso: é o fato de os indivíduos viverem a experiência do poder da sociedade e sua eficácia simbólica que torna possível o estabelecimento da dominação de classe e do poder separado do Estado e, por extensão, a aceitação desses fatos como algo natural e inevitável. Assim, torna-se possível pensar a precedência histórica — do ponto de vista de uma história da humanidade — e a prec pr eced edên ênci ciaa cron cr onol ológ ógic icaa — se quis qu iser ermo moss pens pe nsar ar a experiên cia que se dá biografia do indivíduo — de uma experiência antes e algures à divisão da sociedade em dominantes e dominados. Isto é, as sociedades humanas, antes de organizarem a dominação calcada na divisão em classes, organizam formas de dominação aos seus membros que não passam pelo poder das classes e do Estado. Do que advém todo o poder da dominação exercida por meio de formas dissimuladas como a educação, por exemplo. Estando os indivíduos submetidos à ideologia, desde seu ingresso na cultura, se constituirão sujeitos destinados a acreditarem no Estado e nas classes dominantes como necessários, inevitáveis, naturais e divinos. Mas isso não ocorreria se não fossem essas representações parte de um conjunto mais amplo de representações sociais que apresentam a realidade inteira como algo dado, natural, inevitável — de que o Estado e as classes são apenas uma part pa rte. e. Se, para o caso particular das sociedades burguesas modernas, a ideologia coincide com o discurso do Estado, uma vez que apresenta este órgão de poder como necessário ao social e separado da dominação de classe, não o é em todos os casos. A dissimulação do Estado, como órgão da dominação, é apenas um caso entre todas as formas de ocultamento da dominação realizadas pela ideologia. Se, na ideologia, o Estado, aparecendo como órgão impessoal de autoridade pública, tem mascarado seu caráter de classe e sua natureza de órgão da domina42
ção, não é essa a única experiência da dominação vivida pelo pe loss indi in diví vídu duos os,, me mesm smoo nas soci so cied edad ades es em que qu e o Esta Es ta-do seja o órgão máximo de poder. A sujeição à cultura é a forma mais global de toda experiência de dominação, e essa experiência nunca deixou de ser mascarada pela ideologia. A existência da ideologia — e todas as suas expressões — evidencia que a dominação não existe apenas na forma Estado e no exercício exercíc io do poder pelas classes dod ominantes, e, por conseguinte, que a ideologia não é fenômeno exclusivo das sociedades burguesas modernas. Como discurso de dissimulação da dominação, a ideologia existe para além da forma Estado. A ideologia é, prin pr inci cipa palm lmen ente te,, o ocul oc ulta tame ment ntoo do trab tr abal alho ho de domi do mina naçã çãoo da cultura sobre os indivíduos. E nisso, não há dúvida, está toda a sua força. Convém entender que o Estado não vem senão acentuar aquela realidade já experimentada pelos indivíduos no processo da aprendizagem das normas, dos padrões de conduta e dos valores sociais. O que o poder do Estado faz é valer-se das representações sociais produzidas pela pel a ideo id eolo logi gia, a, util ut iliz izan ando do-s -see do veíc ve ícul uloo da ling li ngua uage gem, m, entre outros recursos. O Estado tem a ideologia como seu suporte de legitimação, não resta dúvida, mas a ideologia não existe como uma entidade reflexa, derivada do Estado e da dominação de classe. A ideologia tem vida própria e goza de autonomia enquanto a esfera do real que abraça todas as demais. Sua existência não pode ser vinculada a uma forma particular de sociedade e tempo histórico, nem a uma forma única da dominação, ela (a dominação) que tem sido historicamente experimentada pelos homens de múltiplas formas e em todos os tempos e sociedades. A ideologia existiu (e existe) em sociedades que não apresentam estrutura de classe, nem mesmo uma importante diferenciação na estratificação social. A existência de sociedades sem ideo43
logia é comparável à existência de sujeitos humanos sem inconsciente — certamente algo fora da história 18 . Se quisermos ter uma compreensão mais profunda do que se passa na vida social, devemos abandonar certos dogmatismos — mais das vezes uma pura extensão de posi po siçõ ções es polí po líti tica cass sem nenh ne nhum um f un dame da menn to na teoria teo ria — e admitir, com o intuito de melhorar nossas próprias análises da realidade, verdades que quase sempre preferimos afastar, em nome de práticas que, se supõe, estão conduzindo à transformação da realidade. Acerca dos embaraços da prática teórica e da prática polí po líti tica ca dos do s que qu e enfr en fren enta tam m a que q uest stão ão do pode po derr e da d a domi do mi-nação na sociedade, o filósofo Michel Foucault e o semiólogo Roland Barthes produziram inúmeras advertências. Embora não façam referência à ideologia como existindo — para os autores não se trata de ideologia mas de poder —, conduzem suas reflexões de uma maneira a tornar claro que uma analítica do poder que se reduza a tratá-lo com base meramente nas suas formas visíveis está fadada ao fracasso. A investigação crítica de Michel Foucault contra as análises que reduzem o fenômeno da dominação a uma única de suas formas consegue ser, ao mesmo tempo, um prog pr ogra rama ma de pesq pe squi uisa sass deix de ixad adoo inac in acab abad adoo pelo pel o auto au torr e uma perspectiva metodológica de que não se pode deixar de ressaltar sua importância e alcance. Conforme observa: (...) é somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na prop pr opor orçã çãoo daqu da quil iloo que qu e cons co nseg egue ue ocul oc ulta tarr dent de ntre re seus se us me me-18. 18. A discus são desse ponto espe cífi co farei adiante Por agora poss po ssoo adia ad ia ntar nt ar que qu e em Loui Lo uiss Alth Al thus usse serr e Corn Co rnel eliu iuss Cast Ca stor oria iadi dis, s, em obras que estarei citando adiante, há uma reflexão radical sobre o assunto
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canismos (...) O segredo, para ele, não é da ordem do abuso; é indispensável ao seu funcionamento. (...) Trata-se port po rtan anto to de, de , ao me mesm smoo temp te mpo, o, assu as sumi mirr outr ou traa teor te oria ia do pode po der, r, form fo rmar ar outr ou traa chav ch avee de inte in terp rpre reta taçã çãoo hist hi stóri órica ca;; e, examinando de perto todo um material histórico, avançar pouc po uc o a pouc po ucoo em dire di reçã çãoo a outr ou traa conc co ncep epçã çãoo do pode po der. r. (1985:83-7)
O minucioso exame das relações de poder em contextos e situações em que menos parece existir, leva Foucault a postular que o poder não é um objeto imóvel, um lugar bem definido, definido, mas que o poder se encontra nas relações sociais, espalhado nas extremidades. Conforme
torna claro, o poder não pode ser compreendido por uma teoria que enxergue o seu lugar e aqueles que o possuem. Para Foucault, o único lugar irredutível em que se pode po de dize di zerr que qu e nele nel e o pode po de se insc in scre reve ve é o corp co rpoo huma hu ma-no. No corpo o poder registra todas as suas formas, mesmo quando diz sim, mesmo quando não é repressão. E clara a visão de Foucault quanto às possibilidades de lutas contra a dominação. Os ataques aos pontos da dominação só podem ser multifacetados e plurais. Em qualquer desafio às práticas de dominação o sucesso de pend pe ndee de se levar lev ar em cont co ntaa que qu e são sã o elas ela s formas específicas e localizadas, não havendo o lugar da grande Recusa (ibidem: 91), do desafio único e total ao poder. Atento às dissimulações da dominação, M. Foucault prod pr oduz uziu iu inúm in úmer eras as adve ad vert rtên ênci cias as sobr so bree os disf di sfar arce cess do poder. Acentuava sempre que seu programa de pesquisas visava "fazer sobressair o fato da dominação no seu íntimo e em sua brutalidade" (1979:181), revelando que so bret br etud udoo o dire di reit ito, o, nas na s soci so cied edad ades es ocid oc iden enta tais is,, teve tev e basica bas ica-mente o papel de dissolver o fato da dominação dentro do poder. E expõe: Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre
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outro, mas as múltiplas formas dc dominação que podem se exercer na sociedade. Portanto, não o rei em sua posi po siçã çãoo cent ce ntra ral,l, mas os súdi sú dito toss em suas sua s rela re laçõ ções es recí re cípr proc ocas as:: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social. (Ibidem:181)
Seguindo Foucault, Roland Barthes associa às reflexões do seu mestre suas preocupações de semiólogo. Para o autor é já na linguagem que o poder se inscreve desde sempre e é na experiência da sujeição à linguagem que se deve ter o exercício mais dissimulado da dominação. Suprimem-se aqui todas as ingenuidades voluntaristas que imaginam que a dominação pode ser varrida do mundo tão logo "ocorra a tomada do poder" — essa fórmula tão estranha, mas também tão incoerente! —, como se os indivíduos experimentassem a dominação na forma única em que ela se apresenta: sua forma (e fórmula) visível, o poder; o que não se percebe perc ebe é que qu e as ocasiõe ocas iõess em que o poder — como assim representado — ostenta a sua imagem, aquela que pode oferecer de si, são as ocasiões em que melhor se oculta. Para Roland Barthes é na linguagem humana que o pode po derr se enco en cont ntra ra incr in crus usta tado do,, o que qu e faz fa z dele del e um parasita de uma experiência tão duradoura quanto comum aos homens. Como diz: A inocência moderna fala do poder como se ele fosse um: dc um lado, aqueles que o têm. de outro, os que não o têm; (...) Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes. e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; (...) A razão dessa resistência e dessa ubiqüidade é que o poder é o parasita de um organismo trans-social, ligado
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à história inteira do homem, e não somente à sua história polí po líti tica ca,, histór his tórica ica.. Esse Ess e obje ob jeto to em que qu e se insc in scre reve ve o pode po der, r, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para pa ra ser ma mais is prec pr ecis iso, o, sua expr ex pres essã sãoo obri ob riga gató tóri ria: a: a língua lín gua,, (s/d: 11-2)
Do ponto de vista do que interessa à nossa discussão, há também na psicanálise — vistos os estudos de dois de seus maiores teóricos, Freud e Lacan — uma teoria (sub jace ja cent nte) e) da cult cu ltur uraa inte in teir iram amen ente te válid vál idaa e de acor ac ordo do com co m o projeto geral das ciências humanas. Embora seja a psicanálise encarada por alguns, erroneamente, como nada tendo a ver com os estudos sobre os fenômenos da alienação e da dominação, e recusada como uma teoria reacionária. Em Freud, como em Lacan, "é a Ordem Simbólica que, para o sujeito, sujeit o, é constitui cons tituinte" nte" (Lacan, 1992:61). 1992:61). Isto é: o inconsciente humano — que qu e é, para a psicanáli psic análise, se, a instância que mantém o indivíduo atado à cultura — é resultado de uma determinação forçada a que os indivíduos estão submetidos no processo de se constituírem sujeitos humanos. O limite para o sujeito humano, traçado pela psicanálise em toda sua dureza, é: à criança humana não sobra alternativa. A condição de se tornar sujeito plenamente humano é sua submissão à Ordem Simbólica da cultura, e essa experiência, como vimos, não é uma escolha, mas uma imposição, inerente à condição humana. Diz Lacan: "Não é permitido a ninguém ignorar a lei (...) Nenhum homem a ignora, com efeito, visto que a lei do homem é a lei da linguagem..." (ibidem: 136). Sem o trabalho da cultura, já vimos, o indivíduo humano simplesmente não existirá para a vida. Para Lacan "as vias do que se deve fazer (...) são inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro — o que é propriamente o Edipo. (...) o que se deve fazer (...) o ser humano tem sempre que aprender, 47
peça peç a por peça pe ça,, do Ou Outr tro. o. (...) (.. .) o suje su jeit itoo depe de pend ndee do sign si gniificante e (...) o significante está primeiro no campo do Outro" (1985:194-5). E, se em todo homem, o trabalho da cultura se torna inconsciente — o inconsci inco nsciente ente individual —, para Lacan, como diz, com boas razões: "o inconsciente é o discurso do Outro" (1992:255). O Outro é um lugar — "... lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder pres pr esen enti tifi fica carr-se se do s ujei uj eito to"" (Lac (L acan an,, 198 1985:1 5:193) 93) — e um umaa tarefa, a tarefa dos agentes que encaminham o candidato a sujeito social para a Ordem Simbólica da cultura. Para Lacan, é pelo Outro que a cultura se torna uma realidade plau pl ausí síve vell para pa ra o indi in diví vídu duoo huma hu mano no.. Isto Ist o nada na da mais mai s quer qu er dizer que aquilo que Freud já anunciava: o inconsciente é "herança de emoção" (s/d: 188), herança cultural, soma das repressões sociais, que tem no modelo da proibição do incesto o paradigma das proibições, vivida pelos indivíduos na experiência que Freud denominou de comple xo de Edipo — a experiência que lança a criança humana na Ordem Simbólica da cultura. A referência obrigatória (na teoria psicanalítica) ao Edipo não pode ser vista como uma psicologização da vida social. Apesar de toda a vulgarização em que já caiu, o alcance científico geral da teoria do complexo de Edipo, de valor antropológico e filosófico, permite que seja incluída como uma hipótese válida para a interpretação de fenômenos sociais. Não se pode ver a utilização da teoria do complexo de Edipo, para a análise dos fenômenos de cultura, como uma extrapolação abusiva dos domínios da psicanálise -— o campo familiar apenas? —, como se a vida social fosse compartimentada, e assim também os indivíduos. O essencial da teoria do Edipo é apresentar que a entrada da criança humana na vida social é vivida como um drama — narrado pelos mitos em diversas versões e 48
culturas, como Claude Lévi-Strauss analisará 19 — de que o indivíduo humano desse drama participa fazendo os registros simbólicos necessários para vir a se situar no espaço do mundo humano — o espaço cuja língua é a (1992:1 35). Ê língua dos símbolos, no dizer de J. Lacan (1992:135). a fórmula — "O homem fala então, mas é porque o sím bolo bol o o fez fe z h o m e m" (Lac (L acan an,, 199 1992:1 2:141) 41),, — é expl ex plic icad ada: a: Os símbolos envolvem, com efeito, a vida do homem, com uma rede tão total que conjugam antes que ele venha ao mundo aqueles que vão engendrá-lo "pelo osso e pela carne", que trazem no seu nascimento com os dons dos astros, senão com os dons das fadas, o desenho de seu destino, que dão as palavras que o farão fiel ou renegado, a lei dos atos que o seguirão mesmo até onde ele não está ainda e para além de sua morte mesma, e que por eles seu fim encontra seu sentido no julgamento final onde o verbo absorve seu ser ou o condena — salvo ao atingir a realização subjetiva do ser-para-a-morte. (Ibidem: 143-4)
Ainda no campo da psicanálise, as teses de Carl Jung aproximam ainda mais os estudos psicanalíticos dos estudos da cultura. Destacadamente seus conceitos de arguard am relação direta e quétipo e inconsciente coletivo guardam imediata com os estudos sobre o Simbólico e a ideologia. De acordo com Carl Jung, os arquétipos são imagens imagen s prim pr imev evas as inst in stal alad adas as na cons co nsci ciên ênci ciaa dos do s home ho mens ns desd de sdee o começo dos tempos históricos em que se organizaram os prim pr imei eiro ross agru ag rupa pame ment ntos os huma hu mano nos. s. Cons Co nser erva vamm-se se como co mo repr esentar tar o mun mundo do social e modelos paradigmáticos de represen natural e as relações sociais. Trata-se de manifestações da camada mais profunda do inconsciente, em que jazem 19. Ver adiante a interpretação de Claude Lévi-Strauss para o mito de Édipo, conforme o que escreve em Antropologia Antropologia estrutural, p. 245. 24 5.
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adormecidas as imagens humanas universais e origináoriginárias. Assim:
Afora as recordações pessoais, existem em cada indivíduo as grandes imagens "primordiais" (...), ou seja, a aptidão hereditária da imaginação humana de ser como era nos prim pr imór órdi dios os.. Essa Es sa here he redi dita tari ried edad adee expli exp lica ca o fenô fe nôme meno no,, no fundo surpreendente, de alguns temas e motivos de lendas se repetirem no mundo inteiro e cm formas idênticas. (...) Isso não quer dizer, em absoluto, que as imaginações sejam hereditárias ; hereditária heredi tária é apenas apena s a capacidade de ter imagens, o que é bem diferente . (...) Essas imagens image ns ou motivos, denominei-os arquétipos... (1987:57)
Os arquétipos, adormecidos ou em atividade, conservam sua existência no que C. Jung chama de inconscienaqui podemos pode mos aproximar com aquilo que te coletivo, que aqui as ciências sociais denominam de imaginário social, em que a ideologia toma lugar. Em certo sentido é perfeitamente legítimo colocar os dois fenômenos na dependência um do outro. O inconsciente coletivo funciona para a ideologia como um reservatório de todas as lembranças necessárias à detonação da Ordem Simbólica da cultura, sem o que a ideologia não pode atuar. Da mesma maneira, o inconsciente coletivo é resultado do trabalho da ideologia ao construir, pelos arquétipos, todo o corpus de explicação e justificações que fundamentam a existência da realidade, tendo uma função na vida social equivalente à que o inconsciente pessoal tem para o indivíduo, na vida privada. Temos que distinguir o inconsciente pessoal do inconsciente impessoal ou suprapessoal. Chamamos este último de inconsciente coletivo, porque é desligado do inconsciente pessoal e por ser totalmente universal; e também porq po rque ue seus se us cont co nteú eúdo doss pode po dem m ser enco en cont ntra rado doss em toda to da
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parte, parte, o que obviamente obviamente não é o caso dos conteúdos conteúdos pessoais. (Ibidem:58) (Ibidem:58) Desenvolvendo uma reflexão que procura ser a síntese das contribuições do materialismo histórico somada às contribuições da psicanálise, Louis Althusser procura estabelecer a relação entre a ideologia e a formação do indivíduo, numa reflexão instigante, em duas de suas obras, a saber Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado e Freud e Lacan/Marx e Freud.
Uma das primeiras observações que se faz necessário destacar na reflexão de L. Althusser é aquela que trata da prob pr oble lemá máti tica ca j á apon ap onta tada da antes an tes,, quan qu anto to à auto au tono nomi miaa da ideologia e sua relação com a história. Há bons motivos para considerarmos que a reflexão do autor encontra seu ponto de apoio mais importante quando deixa a discussão sobre os fundamentos da ideologia, vistos como uma decorrência do modo de produção social, e passa a entendê-la como o trabalho das acomp anha o indivíduo desde idéias da dominação que acompanha o seu nascer. (A ideologia como decorrência pura e sim ples pl esme ment ntee do mo modo do de prod pr oduç ução ão capi ca pita tali list sta, a, ou qual qu alqu quer er outro, se é disso que se trata, é preciso dizer que não pass pa ssaa de um prim pr imar aris ismo mo na inte in terp rpre reta taçã çãoo dos do s f enôm en ômen en os sociais, incoerente quanto a muitos de seus argumentos; um conceito teoricamente irrealizável cuja elaboração deve ser eliminada.) Althusser enriquece a discussão so bre ideo id eolo logi giaa quan qu ando do prop pr opõe õe:: (...) a ideologia não tem história, pode e deve (e de uma maneira que não tem absolutamente nada de arbitrário, mas que é pelo contrário teoricamente necessário, porque existe uma ligação, orgânica entre as duas proposições) ser posta em relação direta com a proposição de Freud segundo a qual o inconsciente é eterno, isto é, não tem história. (...) Se eterno não quer dizer transcendente a toda história (temporal) mas omnipresente, trans-histórico, trans-histórico, portanto portanto imutável imutável na sua forma ao longo longo da história, história, 51
retomarei, palavra por palavra, a expressão de Freud e direi: a ideologia é eterna como o inconsciente. E acrescentarei justificada tem
uma
em
geral.
que
esta
pelo fato certa
aproximação
me
parece
de que a eternidade
relação
com
a eternidade
teoricamente
do
inconsciente da
ideologia
(1974:75-6; grifos meus) meus)
Buscando uma relação entre a existência da ideologia e o processo da socialização nos espaços da sociedade que chamou de aparelhos de Estado, Louis Althusser desenvolve uma teoria da ideologia em geral muito importante quanto a poder definir a ideologia sem seus traços gerais, despida de formas históricas. As teses de L. Althusser tornam claro que a força maior da ideologia advém de estar dispersa por todo o corpo social, uma vez que, introjetada pelos indivíduos, torna-se inconsciente. A criança humana, que nasce des prov pr ovid idaa da ling li ngua uage gem, m, cedo ce do pass pa ssar aráá por um apre ap rend ndiz izad adoo que a manterá presa às instituições de sua sociedade. Conforme esclarece, a ideologia em geral é o trabalho das idéias da dominação com vistas vistas à constituição dos indivíduos em sujeitos sociais. Diz: (...) toda ideologia tem por função constituir os indivíduos concretos em sujeitos. (...) a ideologia age ou funciona de tal forma que recruta sujeitos entre os indivíduos indivíduos (recruta-os a todos), ou transforma os indivíduos em sujeito (transforma-os a todos). (...) Toda ideologia ideologia interpela interpela os indivíduos concretos como sujeitos concretos. (...) a ideologia sempre-já interpelou os indivíduos como sujeitos, que nos leva a precisar que os indivíduos são sempre-já interpelados pela ideologia como sujeitos. (lbidem:82-98). Louis Althusser, sem dúvida, é o primeiro teórico a sistematizar com clareza a relação existente entre a ideologia e a formação da subjetividade dos indivíduos — que, para a psicanálise, requer necessariamente tratar da instância do inconsciente pessoal. Não se trata, pois, de ver na ideologia um amontoado de idéias falsas, uma 52
máquina de fazer mentiras. Para o indivíduo, a subordinação à ideologia é o que o habilita à vida social, ainda que isso ocorra pela sua sujeição à Ordem da Linguagem, simultaneamente à forma e à substância do contato original do indivíduo com a Ordem Social. Nesse contato original o indivíduo experimenta a dominação no seu nível mais elementar, e mais duradouro. Para Louis Althusser, a análise do inconsciente, ou uma teoria do inconsciente humano, interessa, em primeiro lugar, ao estudioso da ideologia. Isso porque a ideologia encontra no inconsciente pessoal seu corres pond po nden ente te priv pr ivad ado, o, pois po is func fu ncio iona na como co mo o dispositivo do se reconhecer como co mo inteintesimbólico, que faz o indivíduo se grante de urna Ordem que desconhece sua origem, mas à qual deve se submeter. Sem dúvida, é legítimo pensar que a força da ideologia deixaria de ser aquela que se pode atestar na vida dos indivíduos e na vida social como um todo se ela (a ideologia) não tivesse uma raiz psicológica profunda, pela qual se fixa e se mantém introjetada. O indivíduo humano nunca é para a cultura mero exemplar biológico da espécie. Mesmo antes do nascer a criança humana já é esperada com todas as representações sociais existentes. Observa Althusser: Quando sublinhou o ritual ideológico de que se rodeia a expectativa de um nascimento, esse acontecimento feliz, Frcud mostrou que os indivíduos são sempre abstratos relativamente aos sujeitos que eles são sempre-já. (...) Antes de nascer, a criança é portanto sempre-já sujeito, designado a sê-lo na e pela configuração ideológica familiar específica em que é esperada depois de ter sido concebida. (...) Compreende-se que esta pressão e esta pré-designação ideológica, e todos os rituais da criação e mais tarde da educação familiar, têm uma relação com o que Freud estudou nas formas das etapas pré-genitais e genitais da sexualidade, portanto naquilo que Freud definiu, pelos seus efeitos, como sendo o inconsciente. (Ibidem: 98-9)
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Com Althusser fica claro que a ideologia, embora guarde relações com a dominação de classe e do Estado, não existiria se não fosse o indivíduo um produto de sua sujeição, transformada na subjetividade individual; individual; sujeição que, se é a condição do ingresso do indivíduo na Ordem Humana, é simultaneamente sua submissão a essa Ordem como única e inevitável. De Lacan, Louis Althusser vai extrair uma conclusão necessária ao estudo da ideologia, pois, com ela, encontra a relação existente entre o fenômeno social da ideologia e sua componente psicológica individual. O processo da sujeição do indivíduo humano à Ordem Simbólica da cultura conforma uma passagem de um estado est ado da vida a outro. Nessa passagem os indivíduos são constituídos su jeit je itos os da ideo id eolo logi gia. a. C o mo diz: di z: "Ess "E ssaa pass pa ssag agem em da exis ex is-tência (no puro limite) biológico à existência humana (filho de homem), Lacan mostrou que ela se operava sob a lei da Ordem que eu chamei de Lei de Cultura, e que essa Lei da Ordem se confundia, em sua essência formal, com a ordem da Linguagem" (1985:64). Natu Na tura ralm lmen ente te esse es se ente en tend ndim imen ento to que qu e se dest de stac acaa na rere flexão de L. Althusser é extensão de todo o seu pensar sobre a dominação da sociedade. Seguindo Antônio Gramsci 20 , Althusser procura ampliar a teoria do Estado no marxismo, por considerá-la uma teoria descritiva. Para ele o Estado, como definido pelos teóricos clássicos, era visto como unicamente o aparelho da repressão, deixando-se de lado toda a rede de instituições pela qual a ideologia, circulando, difundindo-se e interiorizando-se nos indivíduos, faz o Estado se manter. Conforme observa: "nenhuma classe pode durável mente deter o poder de 20. A referência que Althusser faz a Gramsci, em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, é de fato muito breve. Mas não há como deixar de reconhecer que é Gramsci quem inspira Althusser para pa ra um a teor te oria ia am plia pl iada da do Esta Es tado. do.
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Estado sem exercer simultaneamente a sua hegemonia sobre e nos aparelhos ideológicos de Estado" (1974:49). Torna-se conveniente observar, contudo, que há na reflexão de L. Althusser a presença de uma idéia que necessita ser afastada. A concepção segundo a qual os aparelhos ideológicos são aparelhos do Estado é algo a ser revisto. O mais correto é não termos as instituições que fazem circular a ideologia como aparelhos de Estado, pois são mais do que isso. Como instituições, existem mesmo nas sociedades sem Estado e não dependem do Estado para existir. A meu ver, o que L. Althusser chamou de aparelhos de Estado não pode continuar a ser visto como tentáculos do Estado, constitui, de fato, uma rede, uma malha de espaços de socialização em cujo cu jo interior a ideologia circula, atua. Não são espaços — aparelhos — do Estado, mas da sociedade, da cultura. A ideologia é, principalmente, o canal de ingresso do indivíduo no espaço da cultura, pois tem o poder pode r de ocultar ocult ar para os homens homen s que qu e
a experiência de viver na cultura é a experiência da sua dominação por um sistema social e político determinado. E essa experiência é maior do que o Estado. A essa altura de minha exposição é possível que o leitor se pergunte das razões que fazem possível o discurso da ideologia se tornar o discurso de todos. Por que a ideologia consegue ser o conjunto das representações sobre o real? Quais as explicações que ela fornece aos indivíduos que os tornam sujeitos? Se seguirmos as exposições de Cornelius Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade, veremos que manei ra de toda sociedade sociedade se institui pelo Simbólico. Simbólico. A maneira ser sob a qual toda sociedade se institui leva em conta o trabalho das representações sociais na sua função de sancionar a realidade construída pelos homens. Uma sociedade não se reduz ao simbólico, mas qualquer sociedade — até aqui na história humana — só constitui sua Ordem por meio do simbolismo que a torna 55
real para
os indivíduos. Não é demais pensar: toda sociedade se vale de simbolismos os mais diversos para tornar suas instituições algo presente na vida cotidiana. Não no sentido que isso pode, à primeira vista, dar a entender, mas no sentido de que somente graças ao dispositivo do Simbólico é que a sociedade torna-se, aos olhos dos indivíduos, algo de fato existente e regular, dotado de sentido. O simbolismo se crava em todos os espaços e atos da vida social e individual, fazendo com que surjam encadeamentos, relações, e conexões entre significantes e significados — dispostos no imaginário social — produzindo conseqüências que nem mesmo eram esperadas ou pret pr eten endi dida das. s. Natu Na tura ralm lmen ente te não nã o se trata tra ta aqui aqu i de ter em toda to da ativ at ivid idaade humana a atividade simbólica, mas de uma maneira ou de outra todas as atividades humanas contêm, em algum lugar das formas e dos conteúdos que as constituem, uma dimensão simbólica inegável. Con forme for me observa C. Castoriadis: Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos — o trab tr abal alho ho,, o cons co nsum umo, o, a guer gu erra ra,, o am amor or,, a nata na tali lida dade de —, os inum in umer eráv ávei eiss prod pr odut utos os mater mat eria iais is sem os quai qu aiss nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica. (1982:142)
O que resulta da esfera do Simbólico não é um con jun ju n to de aleg al egor oria iass inoc in ocen ente tess afas af asta tada dass do social soc ial e sepa se para ra-das da função política de instituir o poder e a sociedade. Ao invés, disperso por todos os espaços da sociedade, o Simbólico é, em sua relação direta e imediata com o imaginário social, o complemento necessário à instituição de toda Ordem Social (ibidem: 156). 56
O fundamental a se compreender aqui é que o Simbólico não existe como uma fina camada da realidade a boa distância do social, mas está inteiramente vinculado à experiência da vida em sociedade, existindo em proveito do seu processo de institucionalização. Ao que primeiro o Simbólico está ligado é ao problema das Origens. As significaçõ signi ficaçõ es imaginárias — ou dito de outra maneira, as representações sociais — constituem as formas de explicação que os indivíduos espontaneamente produzem na tentativa de responder às perguntas sobre os começos da vida social. A sociedade constitui seu simbolismo de modo que nada nele exclui seu uso pelos próprios sujeitos sociais que o produziram. Nenhuma sociedade deixa ociosa a sua esfera simbólica, torna-a sempre útil. E essa utilidade não é da ordem da pura instrumentalidacle pelo poder nas sociedades — ou da sociedade como poder que é sempre-já —, mas de uma outra ordem: a do suplemento essencial de que toda sociedade necessita para se instituir com
significado.
E que as perguntas sobre o que é ser humano, sobre o que é a sociedade, sobre o que é a natureza, o próprio homem as inventa, fixando-as em definitivo — como arquétipos, vimos — sem a coerência que a racionalida racio nalidade de exige. E é pelo transporte dessas perguntas para o plano do imaginário que se oferece aos indivíduos humanos a poss po ssib ibil ilid idad adee de orga or gani niza zare rem m simbolicamente o inundo humano como coerente, homogêneo e harmonioso, em que eles (os indivíduos) reconhecem um destino e um sentido para suas vidas, que de outro modo — pela racionalidade? — não obteriam. Observa C. Castoriadis: Até aqui toda sociedade tentou dar uma resposta a algumas perg pe rgun unta tass fund fu ndam amen enta tais is:: quem qu em somo so moss nós, nós , co mo cole co leti tivi vi-dade? Que somos nós, uns para os outros? Onde e em que somos nós? Que queremos, que desejamos, o que nos falta? A sociedade deve definir sua identidade; sua
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articulação; o mundo, suas relações com ele e com os objetos que contém; suas necessidades e seus desejos. Sem a "resposta" a essas "perguntas", sem essas "definições" não existe mundo humano, nem sociedade e nem cultura — porque permaneceria caos indiferenciado. O papel pap el das da s sign si gnif ific icaç açõe õess imag im agin inár ária iass é o de forn fo rnec ecer er um umaa resposta a essas perguntas, resposta que, evidentemente, nem a "realidade" nem a "racionalidade" podem fornecer... (ibidem: 177)
Se é, pois, com o problema das Origens que as sociedades estão envolvidas quando produzem o simbólico com que se revestem, é nessa experiência experiência que devemos buscar a gênese da ideologia, pois, reconhecido recon hecido o papel do imaginário social, nessa esfera do real são construídas as representações que fornecem respostas às perguntas fundamentais com as quais os homens procuram inter pret pr etar ar o mu mund ndoo em que qu e vive vi vem, m, em embo bora ra o faça fa çam m semp se mpre re de um modo que nunca trata do processo que produz e conserva a realidade. O componente imaginário de todo símbolo — conforcon forme destaca C. Castoriadis Castoriad is (ibidem: (ibidem : 15 154) 4) —, e, por consecons eguinte, de suas redes, o Simbólico, propriamente, não torna as respostas para as perguntas que os indivíduos se fazem, no curso de suas vidas, produtos de um colegiado de homens que existiriam com a função explícita ou im plícit plí citaa de ofer of erec ecer er me ment ntir iras as ou fant fa ntas asia iass — mu muit itoo pouc po ucoo dessas respostas restaria se fossem falsificações ou puros delírios. Convém, já aqui, ressaltar que a natureza de representações imaginárias dessas respostas não as torna meras fraseologias desprovidas de sentido. E se se tornam as idéias de todos na sociedade é porque não conseguem ser identificadas com nenhum autor. (E se é de ideologia do que tratamos, convém dizer: as idéias da ideologia têm força — uma força quase impossível de remover, 58
dirá Marilena Chaui 21 — porque são coletivas, anônimas e impessoais. Não se trata de ter na ideologia um discurso exterior ao indivíduo — discurso do poder para o indivíduo; cuja natureza seria essencialmente política — organizado e dirigido arbitrária e voluntariamente. A ideologia é o resultado das representações espontâneas que os indivíduos vão produzindo na vida social.) Não Nã o sem razão ra zão temo te moss nos mito mi toss o para pa radi digm gmaa das re pres pr esen enta taçõ ções es socia so ciais is — de que qu e a ideo id eolo logi giaa é a expr ex pres essã sãoo do seu conjunto. As narrativas mitológicas são modelos das respostas que procuram resolver para os homens o prob pr oble lema ma das da s Origens das instituições sociais e o enigma da origem dos próprios homens, dos animais e do mundo físico, enfim. Não Nã o há dúvi dú vida da,, a ideologia tem no mito sua primeira forma. (A concepçã conc epçãoo de que as sociedades sociedad es primitivas são sociedades sem ideologia, porque porqu e são sociedades sociedad es sem 22 Estado, como sustenta Pierre Clastres , não passa de 21. Cf. Marilena Chaui, O que é ideologia, ideologia, p. 87. Eis uma das melhore s reflexõ es sobre o tema da ideologia A leitura leitura de seus textos em muito contribui para uma definição do que seja a ideologia ao chamar atenção para o equívoco de se admitir por ideologia as idéias em geral, e não somente as representações (idéias) que ocultam a gênese histórico-social da realidade. A autora é claramente favorável a que se entenda por ideologia apenas as idéias da dominação cujo trabalho se destina a tornar invisíveis os fundamentos do poder das classes dominantes nas sociedades, embora conceba o fenômeno apenas para o caso das socie dades burguesa s modernas (Quan to ao último ponto, especificamente, faço anotar o meu desacordo; quanto ao mais, as proposições dela são inteiramente válidas para uma teoria da ideologia em geral. Essenciais à compreensão dos mecanismos íntimos das operações da ideologia.) Adiante, voltarei às reflexões da autora. 22. Cf. Pierre Clastres, em Sociedade contra Estado, e, com toda a clareza necessária, em Os marxistas e sua Antropologia, Antropologia, pp. 95-1 95 -101 01..
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erro. Afinal, um duplo erro: não entende a ideologia senão como o ocultamento do poder do Estado e deixa de considerar a existência do ocultamento do poder da sociedade sobre os indivíduos — uma realidade em qualquer experiência de vida social e coletiva — como a ideologia propriamente. Mas, no erro — para Pierre Clastres "a ideologia é mentira" (1983:98) —, não há como o autor enxergar a ideologia como existindo nas sociedades em que os mitos são a forma do imaginário social! Embora seja o próprio P. Clastres, no mesmo ensaio, quem acusa o estruturalismo de evitar a análise da dimensão sócio-polttica do discurso mítico; acusa a análise estruturalista de ser "uma sociologia sem sociedade", pois po is,, segu se gund ndoo sua inte in terp rpre reta taçã ção, o, os estr es trut utur ural alis ista tass analiana lisam os mitos como se estes sobrevoassem a boa distância do social, isto é, uma abordagem dos mitos que não toca na sua função político-social. Por outro lado, recusa a análise marxista por considerá-la um abuso — como diz: "um vigoroso fandango, martelando com suas grossas botinas o chão da pesquisa", ao pretender substituir "o gracioso minueto dos estruturalistas", com os conceitos do materialismo histórico que diz ser por natureza impróprios à análise das sociedades primitivas. Afinal, que pensa o autor? (ibidem, passim).) De fato, a ideologia, seguindo o mito, não difere deste senão quanto à forma de sua discursividade, e não totalmente. Encarregada de fornecer explicações sobre a realidade, a ideologia funciona como os mitos ao apresentar os fundamentos sobre os quais a realidade de uma determinada sociedade repousa, embora o faça ocultando para os homens a origem real das instituições sociais. A ideologia, em cada sociedade e época histórica, proc pr ocur uran ando do prov pr over er os suje su jeit itos os soci so ciai aiss das expl ex plic icaç açõe õess necessárias para que se situem, como sujeitos sociais, no espaço da sociedade, isto é, numa determinada Ordem Social, torna-se forma e substância do imaginário. 60
Acerca dessa questão, relativamente ao papel que cabe propriamente à ideologia no tocante ao trabalho do simbólico no processo de instituição da sociedade, as reflexões dos filósofos Claude Lefort e Marilena Chaui tornam-se indispensáveis a toda análise que queira tratar bem do prob pr oble lema ma.. Embora suas teses não possam ser tomadas como em acordo com todos os argumentos que até aqui foram apresentados, são, contudo, essenciais para uma definição precisa do que seja a ideologia de fato. No geral, observado o sentido mais profundo que reside no ponto central da reflexão que desenvolvem, as teses dos filósofos podem ser vistas como parte do mesmo projeto teórico que torna relevante o estudo da ideologia. Evitando um tratamento do problema de modo a cair no que o próp pr ópri rioo Clau Cl aude de Lefo Le fort rt (197 (1 979) 9) cham ch amou ou de degradação do conceito, os autores procuram definir ideologia a partir de uma volta a Marx, sem contudo deixar de fazer os reparos necessários à sua reflexão pioneira. A principal tese dos dois autores é aquela que apresenta a ideologia como a forma particular do imaginário social das sociedades burguesas modernas — que chamam de sociedades propriamente históricas. Essas seriam sociedades que tematizam o problema das Origens de um modo inteiramente diferente das sociedades feudais, escravistas e primitivas, cuja maneira de tratar o prob pr oble lema ma da orig or igem em de suas su as inst in stit itui uiçõ ções es apar ap arec ecee nos no s mitos e na religião. Para M. Chaui, a ideologia seria, principalmente, o trabalho das idéias, na sociedade burguesa, com vistas a ocultar a existência do Estado como órgão de poder destacado da sociedade e órgão de dominação da classe econômica e politicamente dominante. Com isso, o que a ideologia visaria, em primeiro lugar, seria ocultar a existência da divisão da sociedade em classes e a luta de classes. (Como diz: "... no real, de direito e de fato, a 61
sociedade está internamente dividida e o próprio Estado é uma das expressões dessa divisão. No entanto, a operação ideológica consiste em afirmar que, de direito, a sociedade é indivisa, sendo uma prova da indivisão a existência de um só e mesmo poder pode r estatal que dirige dir ige toda a sociedade socieda de e lhe dá homogen homo geneida eidade" de" (Chaui, (Chaui , 1981:20; 1981:20; grifos da autora).) Para a autora, a ideologia corresponde ao discurso do pode po derr nas soci so cied edad ades es burg bu rgue uesa sass mo mode dern rnas as porq po rque ue,, ness ne ssas as sociedades, a existência do Estado — como órgão de poder destacado da sociedade — é um problema a ser enfrentado sem que seja mais possível o apelo ao mundo transcendente do Sagrado, para justificá-lo. (Como são os casos dos discursos do mito e da teologia.) Agora a sociedade se vê obrigada a produzir um discurso do seu próp pr ópri rioo inte in teri rior or abor ab orda dand ndoo o socia so ciall de ma mane neir iraa que, qu e, em em- bora bo ra send se ndoo um discurso sobre o social, apareça como sendo aquilo que o social e a política seriam em sua realidade (ibidem: 20).
Mas não devemos ter nessas explicações de M. Chaui algo válido apenas para o caso das sociedades que a autora chama de propriamente históricas. Se tomarmos como base uma teoria da ideologia em geral, veremos que os traços apontados como sendo as manifestações part pa rtic icul ular ares es do imag im agin inár ário io social soc ial das da s soci so cied edad ades es burg bu rgue ue-sas modernas — retirado o elemento da presença ostensiva (mas também dissimulada) do Estado — são traços que iremos encontrar no fenômeno do ocultamento do pode po derr de domi do mina naçã çãoo igua ig ualm lmen ente te exis ex iste tent ntee em todas tod as as sociedades, já na forma dos mitos e da religião, como são os casos das sociedades primitivas, escravistas e feudais. Não há qualquer exercício do poder de dominação que não procure maneiras de se dissimular. (Não foi o próp pr ópri rioo Marx Ma rx quem qu em afir af irmo mouu que qu e a religião religião é a forma perfeita da ideologia, razão por que qu e "a crítica críti ca da religião é a condição preliminar de toda crítica" (Marx, 1976:45).) 62
Não Nã o rest re staa dúvi dú vida da de que qu e se pode po de dize di zerr que nas socie so cie-dades burguesas modernas — e mais fortemente ainda, nas nossas sociedades atuais, com todo o aparato dos meios de comunicação de massa e outros — a ideologia ganha força, mas não se pode vê-la vê-la como um fenôm eno cuja origem estaria vinculada à gênese do modo de produção capitalista. Quanto ao problema da dominação, já tratei do assunto antes: a dominação não pode ser com pree pr eend ndid idaa por po r me meio io de um umaa únic ún icaa de suas su as form fo rmas as,, de modo que não cabe restringir o ocultamento da dominação pela ideologia ao ocultamento do poder do Estado e das classes dominantes. Ressalvadas as diferenças na maneira de colocar o prob pr oble lema ma,, conv co nvém ém entr en tret etan anto to admi ad miti tirr que qu e as form fo rmul ulaç açõe õess apresentadas por Marilena Chaui são essenciais para uma definição do fenômeno do ideológico (ou da ideologia) — embora seja inevitável alargar o sentido original de suas proposições. Senão vejamos. No que podemos entender como um prim pr imei eiro ro nível níve l de conc co ncei eitu tuaç ação ão,, em M. Chau Ch auii a ideo id eolo logi giaa corresponde ao aparecer social. A aparência não como irrealidade, erro ou engano, mas como o modo (em imagens) pelo qual a realidade social ganha a sua forma e aparece para a consciência dos indivíduos indivíduos na vida social. Como observa:
Na ideo id eolo logi gia, a, o mo modo do imed im edia iato to do aparecer (o fenô meno ) social é considerado como o próprio ser (a realidade social). O aparecer social c constituí do pelas imagens que a sociedade e a política possuem para seus membros, imagens consideradas como a realidade concreta do social e do político. (1981:19)
Visto que o aparecer social corresponde às imagens do real que o tornam opaco, dissimuladas como as imagens que pretendem ser a própria realidade concreta, não pode po demo moss ter nesse nes se fato fa to um umaa expe ex peri riên ênci ciaa e um fenô fe nôme meno no restrito às sociedades burguesas modernas. Nenhuma so63
ciedade desconhece a esfera do imaginário social em que just ju stam amen ente te são sã o prod pr oduz uzid idas as as imag im agen enss do real que qu e ocul oc ul-tam a gênese das instituições e relações sociais para os indivíduos que se vêem sob o seu poder, quando ganham a aparência de autônomas. (Como adverte C. Castoriadis, "(...) a alienação existiu em sociedades que não apresentavam uma estrutura de classe, nem mesmo uma im port po rtan ante te dife di fere renc ncia iaçã çãoo socia so cial.l. (...) (.. .) a alie al iena naçã çãoo apre ap rese sent ntaase de início como alienação da sociedade às suas instituições, como autonomização das instituições com relação à sociedade. (...) A alienação é a autonomização e a dominância do momento imaginário da instituição relativamente à sociedade" (1982; 139-59).) Se se trata, pois, de aparecer social, são as imagens da autonomização do social que o constituem como tal. (De maneira adequada Karel Kosik chama a atenção para o fato de que a aparência do real torna o mundo visível verdadeiramente o mundo da pseudoconcreticidade. Como diz: "O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente e a atmosfera comum da vida humana, que, com sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseu ps eudo do-c -con oncr cret etic icid idad ade" e" (1976 (19 76:1 :1 1).) 1).) M as o que qu e torn to rnaa pospo ssível que as imagens do aparecer social sejam vistas e admitidas como coerentes é que elas próprias resultam das transposições que os homens realizam, para o plano das idéias, das suas relações reais. Transposições que não podem ser vistas como quimeras, sonhos, ilusões. No nível do aparecer , no que consiste consist e a ideologia ideolog ia de fato, a realidade construída pelos homens passa a existir como coisa natural, necessária, universal e imutável. O que torna possível que a experiência de estar submetido a uma sociedade particular não seja percebida percebid a como com o a experiência do particular, mas como a experiência experi ência universal. Fundamento de toda adesão dos indivíduos às 64
suas sociedades e, por sua vez, fundamento de toda alienação. No que temos a relação direta e imediata entre ideologia e cultura, uma vez que toda experiência experi ência de estar submetido a uma cultura ocorre simultaneamente ao seu ocultamento enquanto uma experiência particular, pois po is apar ap arec ece, e, para pa ra os indi in diví vídu duos os,, semp se mpre re-j -jáá co mo expe ex pe-riência única e inevitável — os padrões culturais (como dizemos em antropologia) aparecendo como universais. Na inve in vers rsão ão em que qu e o part pa rtic icul ular ar ganh ga nhaa a apar ap arên ênci ciaa de escond e o que talvez seja a operação opera ção mais universal se esconde pode po dero rosa sa da ideo id eolo logi gia. a. Segr Se gred edoo de todo to do pode po derr de domi do mi-nação sobre os indivíduos. Conforme M. Chaui: Através da ideologia, são montados um imaginário e uma lógica da identificação social com a função precisa de escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto enqua nto particular, dando-lh e a aparência de universal. (1981:21; grifos meus)
Como nos mitos, o que a sociedade oferece por meio da ideologia é uma representação da vida social que elimine a possibilidade do questionamento da realidade, evitando o perigo da desagregação e da destruição de sua Ordem. Oferecendo uma explicação — na ideologia, a sociedad e, a ideologia, explicação\ — para a origem da sociedade, em sua maneira em tudo igual aos mitos, consegue ser a reatualização das razões que deram origem à sociedade. Importa saber que a ideologia carrega uma herança dos mitos em sua maneira maneira de representar a realidade — e, em certo sentido, nunca conseguiu abolir totalmente a part pa rtee míti mí tica ca cons co nsti titu tuti tiva va de seu disc di scur urso so.. O caráter coletivo e a natureza social da ideologia é suficiente para garantir que não se trata de um artifício das classes dominantes para enganar os dominados. O que a ideologia oferece à sociedade o faz valendo-se da própria sociedade pelo apelo constante constan te às representações que tornam o real algo justificado, sagrado e necessário. Ao apresentar as razões pelas quais o social 65
está organizado, a ideologia funciona como a salvaguarda das instituições, pois consegue fazer com que elas não apareçam aos indivíduos como aquilo que são em sua realidade. A imagem que a ideologia fornece da sociedade embaça toda visão do que é, de fato, a experiência da vida em sociedade. Se podemos dizer da ideologia que ela "... constrói uma imagem da sociedade como idêntica, homogênea e harmoniosa. Fornece aos sujeitos uma resposta ao desejo metafísico de identidade e ao temor grif os meus), metafísico da desagregação" (ibidem: 27; grifos há todas as razões para reconhecermos que se trata de um fenômeno mais geral da experiência humana, não se restringindo a um tipo específico de sociedade. O que desaparece na ideologia é a historicidade da enqua nto um resultado das práticas sociais hurealidade enquanto manas. Ocorre que na ideologia a origem da sociedade e de suas instituições aparece na forma de uma história que não coincide com o processo histórico real. A historicidade do real é substituída por uma história dos feitos individuais e heróicos ou da ação de poderes não-humanos sagrados e separados dos homens — já Marx e Engels tratam disso, em A ideologia alemã. A história deixa de ser um processo em que os homens tomam parte para ser uma sucessão de fatos sem nexo, em que os indivíduos são meros espectadores. Quando dizemos que a ideologia inverte a realidade, estamos tratando da operação do ocultamento da historicidade do real. Na inversão, a realidade é uma soma de dados empíricos, desprovidos de toda conexão. A imagem que a ideologia oferece da realidade com base nesses dados mantém os indivíduos no nível do aparecer obs ervação ação imediata na forsocial, pois o que aparece à observ ma dos dados, dos fatos, não é o processo histórico-social em que tem origem o real, mas uma representação imaginária dele. A ideologia como o modo do aparecer social é uma representação da realidade em que não apa66
recem as determinações intrínsecas que a produzem e conservam, compreensíveis apenas em sua historicidade. Das noções de inversão e ocultamento não participam as idéias de inverdade e inexatidão. Não se trata na ideologia de faltar com a verdade, nem de falhar na precisão dos dados, por erro ou engano. A ideologia, não é demais repetir, não é uma visão do mundo imposta (pelas classes dominantes) pelo trabalho de indivíduos encarregados de produzir falsificações da realidade. (Se os dominantes organizam a sua dominação contando com o suporte da ideologia, não são, contudo, os seus criadores. A ideologia, não resta dúvida, serve à dominação, mas não é um produto das classes no exercício da dominação; é um fenômeno social cuja característica principal é ser o modo como a realidade aparece aos homens e que impede a esses o conhecimento do processo de institucionalização da realidade. Voltarei a essa questão adiante.) O que a ideologia afasta nas representações sobre a realidade é o processo instituinte do real, colocando em seu lugar uma imagem da realidade como dada. A instituição sem o processo que lhe deu origem torna-se, aos olhos humanos, natural, autônoma. O que a ideologia afasta da explicação sobre a origem das instituições sociais é o processo que as produz e conserva. As instituições sem o processo instituinte são vistas, pelos indivíduos, como objetos dados, que existem por si ou por obra da natureza e dos deuses. E porque na ideologia não aparecem as determinações que fariam com que os indivíduos compreendessem como e por que existem certas instituições e não outras, certas relações sociais e não outras e certas idéias e não outras, na sociedade, é que se pass pa ssaa a admi ad miti tirr as repr re pres esen enta taçõ ções es imag im agin inár ária iass sobr so bree a realidade como explicações sobre as origens do que existe na vida social. O que no início é tentativa de explicação sobre as Origens passa a existir como uma repredisc urso marcado marc ado sentação com todos os traços de um discurso 67
pelas pel as lacu la cuna nas, s, pelo pe loss vazio va zioss — que qu e Mari Ma rile lena na Chau Ch aui,i, com acuidade, denominou de lógica da lacuna, lógica do branco. Como observa: O discurso ideológico é um discurso feito de espaços em bran br anco co,, c om o um umaa fras fr as e na qual qua l houv ho uves esse se lacun lac unas as.. A coerência desse discurso (o fato de que se mantenha como uma lógica coerente e que exerça um poder sobre os sujeitos sociais e políticos) não é uma coerência nem um pode po derr obti ob tido doss malgrado as lacunas, malgrado os espaços em branco, malgrado o que fica oculto; ao contrári cont rário, o, é graças
aos
brancos,
graças
às lacunas
entre suas partes ,
que esse discurso se apresenta como coerente. Em suma, é porque não diz tudo e não pode dizer tudo que o discurso ideológico é coerente e poderoso. (...) O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende dizer. (...) A força do discurso ideológico provém de uma lógica que poderíamos chamar de lógica
da lacuna,
lógica
do branco.
(Ibidem:
22; gritos da autora)
O que a ideologia obtém, por efeito das representações sociais que faz circular na sociedade, é a eliminação da visão do processo histórico que permitiria a todos compreender a origem das instituições e das relações existentes na vida social — segredo de todo poder de dominação. Aqui, como em Marx, a ideologia não tem história porque a história real é a história dos homens em suas práticas sociais criadoras de instituições e de relações, que passam a dominá-los, mas ignoradas, por po r aqu aq u eles el es,, c o m o prod pr odut utos os de suas su as p ró pr ias ia s açõe aç ões. s. "(...) desde que os homens se encontram ruma sociedade natural e também desde que há cisão entre o interesse part pa rtic icul ular ar e o inter in teres esse se comu co mum, m, desd de sdee que, qu e, por po r cons co nseeguinte, a atividade está dividida não voluntariamente, mas de modo natural, a própria ação do homem converte-se num poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado. (...) Esta fixação da atividade social — esta consolidação de nosso próprio 68
prod pr odut utoo num pode po derr obje ob jeti tivo vo supe su peri rior or a nós, nós , que qu e esca es capa pa ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos — é um dos momentos capitais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos." (Marx e Engels, 1986:47-8)) E, pois, por essa razão, que se pode afirmar que para a ideologia a história é um perigo, que procura evitar. Nega Ne gada da a hist hi stor oric icid idad adee da real re alid idad ade, e, a vida social soci al pode po de ser petrificada no tempo e no espaço como eterna e imutável, pois independente das práticas dos homens. E como a natureza da ideologia a torna necessária à dominação, pois consegue fazer com que a dominação tam bém bé m apar ap areç eçaa co mo eter et erna na,, imut im utáv ável el e inde in depe pend nden ente te de todo agir e querer humanos, o perigo da história é ainda maior se for posto o problema do desvendamento da origem de todo poder de dominação. O ocultamente da historicidade da realidade é imediatamente ocultamente da origem histórico-social do poder de dominação em todas as suas formas. Ao não aparecer em sua origem e nos fundamentos nos quais repousa, o poder de dominação — em qualquer de suas formas — pode se eternizar como natural, divino, eterno, necessário e inevitável. O desvendamento de suas bases sociais e históricas — seus segredos — só pode po de cons co nsti titu tuir ir um umaa am amea eaça ça,, um peri pe rigo go,, que qu e a ideo id eolo logi giaa tem o poder de afastar, sem que, para isso, seja preciso a mentira ou a falsificação arbitrária. Na vida social soci al vão vã o se prod pr oduz uzin indo do idéias idé ias (rep (r epre re-sentações) que se constituem elas próprias nas explicações que tornam a dominação invisível como uma extensão da invisibilidade por trás da qual toda a realidade reali dade se esconde para os indivíduos. Tudo o que constituir desvendamento do que se conserva invisível se torna ameaça ao discurso ideológico, e, por extensão, ameaça a aparência de equilíbrio e harmonia com que o mundo aparece aos homens. Esta é a razão pela qual os indivíduos estão submetidos à dominação sem que a percebam 69
como existindo — o que, do ponto de vista dos que exercem o poder de dominação, se torna algo a ser buscado continuamente. A ideologia, ocultando a gênese histórico-social de toda realidade, obriga as sociedades a viverem a ilusão prov pr ovoc ocad adaa pelas pel as repr re pres esen enta taçõ ções es que qu e torn to rnam am a expe ex peri riên ên-cia da vida social sempre idêntica e paralisada no tempo. Na ideo id eolo logi giaa só há o pres pr esen ente te das instit ins titui uiçõ ções es;; para par a elas el as não há passado, nem haverá qualquer futuro. O momento dominante é aquele em que as representações sociais — pelo pe lo simb si mbol olis ismo mo por po r me meio io do qual qua l atua at uam m — fixa fi xam m a rearea lidade como existindo objetivamente, sem o concurso das práticas dos sujeitos sociais. A abolição de toda historicidade da realidade social torna-se necessária à negação dessa realidade como provisória e institucional, do que adviria a concepção de que se trata de algo possível de ser questionado e transformado — o que toda instituição social procura afastar. A realidade fixada como natural e independente de toda história — na ideologia, a história é o resultado dos atos dos grandes homens, os grandes feitos — não é processo, nem construção humana. Ainda conforme observa Marilena Chaui: (...) a ideologia procura neutralizar o perigo da história, ou seja, opera no sentido de impedir a percepção da historicidade. Deve-se considerar que a ideologia
não
história
porque
excelência
consiste
em permanecer
idêntico,
e,
exorcizar
aquilo
história
a
nessa
operação
na região
medida,
que tornaria
e o surgimento
ideológica fixando fixando
daquilo daquilo
que
conteúdos, conteúdos,
impossível
da própria
por é
sempre procura
o surgimento
ideologia:
tem
da
a hist ória
real, isto é, a compreensão de que o social e o político não cessam de instituir-se a cada passo. (1981:29; grifos da autora)
Se, nas formas em que existe nas sociedades, a ideologia torna autônoma a realidade reali dade social, pois sem o pro70
cesso que lhe dá origem, mesmo para o caso das sociedades para as quais consideramos que não há o problema sabemos , pela análise dos mitos, que da história — mas sabemos, isto não é de todo válido —, o ocultamento da natureza de convenção das suas instituições sociais e a natureza social das bases sobre as quais repousa a sua Ordem se faz também como o ocultamento da gênese do real. Assim, não se tratando de deduzir do fenômeno da alienação, conforme aparece na sociedade burguesa, toda a história da alienação, podemos conceber, pela evidência da função do simbolismo nas culturas, a presença da ideologia em todas as formas sociais da existência coletiva dos homens, suas sociedades. Pela exposição até aqui, é possível compreender que, não se tratando de tomar a forma da ideologia como existe na sociedade burguesa moderna pela ideologia em geral — o que seria cair na própria ideologia —, cabe, contudo, entender que o fenômeno do ideológico (ou da ideologia) é comum a todas as sociedades, pois tem origem no modo espontâneo dos sujeitos sociais representarem a realidade. A ideologia é sempre a dominância do imaginário social, que existe como o reservatório de todas as representações sociais que cuidam de explicar, para pa ra os indi in diví vídu duos os subm su bmet etid idos os aos sist si stem emas as de soci so cied edaades, as origens das instituições sociais, tornando-se im poss po ssíve ívell pens pe nsar armo moss soci so cied edad ades es sem a prod pr oduç ução ão dess de ssas as representações imaginárias. A ideologia para se constituir em instrumento do poder de dominação — como ilusão necessária à dominação (Marx e Engels, 1986:57) — vale-se, principalmente, como foi exposto antes, dos mecanismos da interiorização da Ordem Simbólica da cultura no trabalho de constituição dos indivíduos em sujeitos sociais concretos cujos atos a sociedade espera reproduzam as instituições e as relações vigentes existentes. A ideologia é antes, port po rtan anto to,, iner in eren ente te ao proc pr oces esso so de inst in stit itui uição ção da cult cu ltur ura. a. 71
Nã N ã o se t ra t a , c o m i s s o, d e d e i x a r d e r e c o n h e c e r o v í n culo específico entre a existência da ideologia e o exercício do poder de dominação pelas classes econômica e po p o l i t i c a m e n t e d o m i n a n t e s , na s s o c i e d a d e s d e c l a s s e . M a s não se pode ter nesse vínculo a explicação para a existência da ideologia e mesmo para a natureza do seu tra ba b a l h o e s p e c í f i c o c o m as i d é i a s . ( C o m o n ã o s e t r a t a d e te r a ideologia como incultura e ignorância d e iletrados.) N ã o r e s t a d ú v i d a q u e a s c l a s s e s e c o n ô m i c a e p o l i t i c a mente dominantes organizam o exercício de sua dominação e que a ideologia é a arma fundamental de que se servem, mas a ideologia enquanto instrumento da legitimação do exercício de todo poder de dominação não surge com as classes sociais. A ideologia serve à dominação, mas porque se constitui de representações que invertem e ocultam para os homens a natureza históricosocial da sociedade na qual se encontram. O que torna po p o s s í v e l q u e a d o m i n a ç ã o a p a r e ç a c o m o n a t u r a l ou s i m pl p l e s m e n t e n ã o a p a r e ç a c o m o e x i s t i n d o — o q u e a t o r n a legítima, em qua lqu er caso , ou invisível. O estudo do fenômeno nas sociedades primitivas talvez permita aclarar a compreensão do problema. Embora não seja comum vermos antropólogos tratarem da ideologia quando abordam o fenômeno da cultura e quando tratam das sociedades primitivas e dos mitos — p a r a a l g u n s , d o q u e s e p o d e c o n c l u i r d e s u a s a n á l i s e s , simplesmente não existe o que se possa denominar ideologia —, o estudo do campo do imaginário social nessas sociedades revela não somente que igualmente nelas a ideologia existe, como o estudo da questão suscita a reflexão sobre o problema da alienação e da dominação de uma maneira que nos obriga a revisar alguns pontos de vista acerca do assunto. O antropólogo Maurice Godelier analisa a existência do ideológico nas sociedades primitivas chamando a atenção para o fato de que, nessas sociedades, não existem classes sociais e nem mesmo hierarquias fortes.
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A descoberta de que também nessas sociedades a dominação social e política se oculta pelo trabalho das reprerevel a o quanto quan to a ideologia ideolo gia está implicada impli cada na sentações revela existência de todo imaginário social e quão fundamental se torna para a vida das sociedades. Nenhum poder se apóia na violência pura e simples; para se manter necessita se legitimar: e isso o consegue por meio do ocultamento das bases sobre as quais se ergue e se mantém, obtendo o consentimento para o exercício exercíc io de sua dominação. As sociedades primitivas, embora sociedades sem classes, não deixam de contar com o ocultamento do poder que é inerente a todo espaço de sociedade, e o faz por po r form fo rmas as que qu e não nã o pode po dem m deix de ixar ar de ser vistas vis tas como co mo parpa rte do que chamamos de ideologia. Tendo vivido entre os Baruya da Nova Guiné, Maurice Godelier observa que aquela é uma sociedade na qual a ideologia da mesma maneira serve à dominação, sem que ali existam classes sociais. O ideológico se manifesta, contudo, de outras maneiras na vida social. Observa M. Godelier que entre os Baruya existe uma crença com part pa rtil ilha hada da por po r todo to doss de que qu e ter o domí do míni nioo das pala pa lavr vras as secretas pelas quais se pode chamar alguma coisa é ter o pode po derr sobr so bree essa es sass cois co isas as.. Na soci so cied edad adee Baru Ba ruya ya está es tá instiins tituído que apenas os homens podem ser iniciados no aprendizado dessas palavras secretas — que formam umaa língua secreta, com sua linguagem cifrad um ci fradaa —, o que lhes confere superioridade perante as mulheres. Os homens, por conhecerem as palavras secretas, têm o poder sobre os objetos da natureza e objetos materiais e, por via disso, afirmam-se senhores das condições da reprodução do Universo, da vida, da fertilidade dos solos, da prod pr oduç ução ão dos do s alim al imen ento tos; s; enfi en fim, m, senh se nhor ores es da repr re prod oduç ução ão das condições de produção da existência de todos na sociedade. 73
O monopólio do saber reserva aos homens um poder que não pode ser colocado em dúvida. Porque se assim se faz, a sobrevivência da sociedade estará ameaçada. Para que se tenha a garantia da reprodução desse mono póli pó lioo ma masc scul ulin inoo do sabe sa ber, r, os me meni nino noss Baru Ba ruya ya são sã o afas af asta ta-dos das suas mães aos nove anos, idade a partir da qual entram para os rituais de iniciação em que não se dispensam violências físicas e psicológicas como recurso para a boa socialização, conforme os valores vigentes. Observando que nos rituais femininos vai ocorrer justamente de não se produzir nenhum contramodelo das relações relaçõ es homem-mulher conservadas na sociedade — ao invés, as mulheres, quando estão entre elas, praticam rituais que em tudo lhes ensinam, sob diversas formas simbólicas, que devem se submeter aos homens —, Godelier diz: O exemplo dos Baruya tem a vantagem de ilustrar algumas formas de dominação e de subordinação que se encontram em sociedades sem classes. Convida sociólogos, historiadores e filósofos a refletirem sobre a existência de relações de dominação e de opressão mais velhas que as relações de classe e que precederam em muito o aparecimento do Estado na história. Isto é um fato histórico que põe prob pr oble lema mass teór te óric icos os difí di fíce ceis is sobr so bree os quai qu aiss o caso ca so dos do s Baruya pode fazer alguma luz. Ele mostra que a força mais forte do poder não é a violência mas o consentimento, o consentimento dos dominados na sua sujeição, sendo normalmente a dominação masculina reconhecida e vivida pelas pel as mu mulh lher eres es co mo legít le gítima ima.. (198 (1 982: 2: 318) 31 8)
Para a história das sociedades até aqui conhecidas, há boas bo as razõ ra zões es para par a se pens pe nsar ar que qu e o poder po der de domi do mina naçã ção, o, embora apoiado na violência enquanto uma força virtual, encontra no consentimento ao seu exercíci exer cícioo sua base prin pr incip cipal al e me mesm smoo uma das cond co ndiç içõe õess para par a o seu apar ap areecimento. A força maior da ideologia é conseguir fazer com que os dominados se tornem cúmplices de sua pró74
pria pr ia domi do mina naçã çãoo — ao que qu e Etie Et ienn nnee La Boét Bo étie ie cham ch amou ou de "servidão voluntária" 23 . A análise do fenômeno do ideológico nos leva a afirmar que, dos dois componentes que constituem todo exercício do poder, a saber, a violência física e a violên24 , o elemento que garante à dominação se cia simbólica perp pe rpet etua uarr é o que qu e repo re pous usaa no exer ex ercí cíci cioo da viol vi olên ênci ciaa simsi m bóli bó lica ca,, um umaa vez que, que , por po r seus se us efei ef eito tos, s, o pode po derr de domi do mi-nação obtém adesão ao seu projeto de submeter a todos na vida social. A ideologia consegue ainda adesão ao projeto da dominação porque pode se universalizar como conjunto de idéias que expressam o interesse geral da sociedade, mascarando-se como idéias da dominação. Essa universalidade permite à dominação ser exercida sem que possa ser percebida como tal. Nas Na s soci so cied edad ades es prim pr imit itiv ivas as os tabus e os mitos são formas do discurso do poder que asseguram a coesão e a reprodução do sistema de sociedade a que os indivíduos estão submetidos. As ameaças constantes de que sobre os transgressores dos tabus se abaterá a maldição dos Deuses, que se abaterá a ira sagrada sobre todos aqueles que desobedecerem à lei social da comunidade — como se conta nos mitos —, são provas da existência de uma forma pela qual o poder de dominação se exerce sem que 23. Cf. Etienne La Boétie, Discurso da servidão voluntária. Escrevendo o seu Discurso no século XVI, o autor anteci pa-se à reflexão do materialismo histórico no tocante ao problema da alienação e do consentimento à dominação. 24. Para um conceito de violência simbólica ver Pierre Bourdieu Bourd ieu e Jean Claude Passeron, A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, ensino, pp. 15-75. Nesta obra há uma teor ia sobre a reprodução inteiramente de acordo com uma teoria geral da ideologia, em muitos aspectos semelhante à teoria desenvolvida por Louis Althusser sobre a escola como aparelho ideológico.
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pa p a r a i s s o t e n h a q u e f a z e r u s o d a v i o l ê n c i a o u m e s m o q u e pr p r e c i s e a p a r e c e r c o m o tal ta l p a r a s e f a z e r o b e d e c e r . Ne N e s s a s s o c i e d a d e s o p o d e r d e d o m i n a ç ã o n ã o se e n contra ausente porque, como nas sociedades de classe, ideologia. existe na forma da ideologia. Pensa r as soci edade s primitivas como sociedades sem ideologia porque estas seriam sociedades sem divisão — diz Pierre Clastres: "para que haja ideologia, é preciso que haja divisão social. (...) Por natureza as sociedades primitivas excluem a possibilidade desse discurso dissimulador (...) a sociedade primitiva é indivisa porque não comporta um órgão separado de poder político" (1983:98) — é pensar a sociedade pr p r i m i t i v a c o m o u m a s o c i e d a d e h o m o g ê n e a e h a r m o n i o s a — c o m o e s t a p r ó p r i a s o c i e d a d e s e r e p r e s e n t a n o s m i t o s . A trama na qual os indivíduos estão impedidos de pe p e r c e b e r o l u g a r q u e o c u p a m n ã o e s t á a u s e n t e n a s s o c i e dades primitivas como mecanismo em que se apóia o poder de dominação. Pois a sociedade aparecendo aos indivíduos como homogênea e harmoniosa e o sistema de dominação aparecendo como encarregado de prover a vida de todos dos bens indispensáveis e da Ordem necessária faz com que se fixem representações pelas quais se pr p r o d u z as c r e n ç a s d e q u e a q u e l e s i s t e m a d e s o c i e d a d e é necessário e algo a ser preservado. Em qualquer dos casos, a parte da vida social que a ideologia mascara é aquela que revela que os indivíduos, atados a um sistema de sociedade determinado, estão submetidos a um poder de dominação que se oculta como existindo, fazendo-se passar por um poder necessário (natural ou sagrado), conseguindo que os próprios indivíduos se tornem os agentes de sua dominação. Pela crença de que estão numa sociedade sem divisão e sem opressão — e toda sociedade aparece para os seus mem br b r o s d e s s a m a n e i r a ; n e n h u m a s o c i e d a d e o u s a r i a se a p r e sentar de outra maneira —, os indivíduos consentem a sua própria dominação sem que percebam a trama na qual estão enredados. Nenhuma sociedade ignora esse
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fenômeno explicável apenas pela existência da ideologia, que torna possível que a dominação não apareça como tal. Conforme Maurice Godelier: (...) só resta um meio de explicar como os indivíduos e os grupos dominados podem "consentir espontaneamente" na sua dominação. E preciso que esta dominação lhes apareça como um sen>iço que lhes prestam os dominadores. Desde então o poder destes mostra-se legítimo e parece aos dominados que é seu dever
servir
àqueles
que
os
servem. É partilhem
preciso, portanto, que dominadore domin adoress e domin ados as mesmas representaç ões, para que nasça a força mais forte do poder de uns sobre os outros: um consentimento fundado no reconhecimento dos benefícios e da legitimidade desse poder, um consenso fundado no reconhecimento de sua necessidade. (1981:192-4)
Pelas pesquisas da antropologia, mostra-se claro que a explicação proposta por Pierre Clastres contém erros. Como acredita que a ideologia é um fenômeno "surgido no século XVI" (1983:98), não consegue reconhecer a ideologia senão no lugar onde está o Estado. Mas, como até aqui estivemos demonstrando, a ideologia é fenômeno cuja existência é anterior à forma Estado do poder e superior quanto a ser a forma pela qual toda sociedade mascara, para seus indivíduos, a origem de suas instituições. O poder de dominação se torna impensável sem a pr es en ça d o Esta Es tado do para pa ra aque aq uele less que qu e não nã o re co n h ec em nas reflexões de Michel Foucault uma explicação necessária para que se compreenda que o poder circula na vidal social de maneira dissimulada porque é parasita das relações sociais pelas quais é construído o espaço da sociedade. Não Nã o send se ndoo a ideo id eolo logi giaa um refl re flex exoo tardi tar dioo das rela re laçõ ções es de produção — mas isso é tudo o que se deve evitar no estudo da ideologia! — ou um andar da superestrutura das sociedades — a ideologia vista como um nível, anil
dar ou instância
da superestrutura superestr utura torna a ideologia algo dependente da infra-estrutura da sociedade — mas uma parte par te da vida vid a social soc ial,, inere in erente nte à inst in stit ituc ucio iona nali liza zaçã çãoo da culcu ltura, é ela, no dizer de Godelier, armadura interna das relações sociais. E parte sempre-já do processo de instituição da sociedade, não sendo algo que venha a ser posteriormente acrescido à vida social. Ainda as reflexões de Maurice Godelier são oportunas lembrar nesse contexto. Estudando a vida social dos incas, observa que a crença no poder sobrenatural da linhagem aristocrática, compartilhada por grande parte da popu po pula laçã çãoo camp ca mpon ones esaa das da s aldeia ald eias, s, subm su bmet etid idaa ao pode po derr do Inca, verdadeiro deus vivo, assegurava as corvéias so bre br e os camp ca mpos os do Inca In ca ou de seu pai, pai , o Sol, Sol , e o trab tr abal alho ho de construção das estradas, templos, cidades, celeiros, que era representado como dívidas que a população cam pone po nesa sa tinh ti nhaa em face fa ce dos do s serviços prestados pelo Inca, pois poi s este es te tinh ti nhaa não nã o só o domí do míni nioo das da s cond co ndiç içõe õess de re prod pr oduç ução ão d o Un Univ iver erso so,, mas, mas , em sua su a gene ge nero rosi sida dade de divi di vina na,, tinha também domínio sobre os destinos de toda a po pula pu laçã ção. o. Essa crença na eficácia sobrenatural de certas linhagens aristocráticas, crença amplamente compartilhada pelas po pula pu laçõ ções es índias índ ias bem be m ante an tess da apar ap ariç ição ão do Impé Im péri rioo Inca, Inc a, não constituía apenas uma ideologia que legitimava tardiamente relações de produção nascidas sem ela, como foi o caso após a conquista dos Incas, que obrigaram a todos os povos submetidos a orar ao Sol além de a seus próp pr ópri rios os deus de uses es;; ela el a foi um umaa das própr pr óprias ias cond co ndiç içõe õess do aparecimento desse poder de opressão e que fez da religião não um reflexo mas uma parte da armadura interna das relações de produção. (Godelier, 1981:196; grifos meus)
A meu ver, cabe, principalmente, à antropologia a revisão do conceito de ideologia, pois é dela que pode vir o melhor da reflexão sobre o problema. E isso por uma razão: até o presente as análises sobre o fenômeno do 78
ideológico (ou sobre a ideologia) — interpretado como objeto da sociologia e da ciência política — destacam, em primeiro lugar, o vínculo entre ideologia, poder e classes sociais. Conforme muitas análises levam a pensar, a ideologia seria as idéias que ocultam a função de órgão da dominação a que corresponde o Estado, isto é, a ideologia seria as idéias que mascarariam a existência do Estado como o órgão do poder das classes dominantes. (Uma maneira de colocar o problema que levou a uma extrema politização do conceito conce ito até até a estupidez estup idez de se considerar a ideologia como a mentira burguesa a que se devia contrapor a ideologia revolucionária (sic) do proletariado — outra estupide estu pidezz com a qual se pretende pret ende afirmar a existência de um ponto de vista dos dominados que seria contrário ao ponto de vista das classes dominantes, que existiria elaborado no marxismo a partir do potencial revolucionário natural — como acreditam existir — das classes dominadas.) 25 Precisamos estudar o fenômeno da ideologia em sua relação com o fenômeno da cultura. Nesse sentido é que cabe um papel destacado à antropologia na revisão do conceito de ideologia — mesmo tendo que se reconhecer que a antropologia sempre recusou tratar do fato da dominação nas sociedades e da ideologia como existindo — na me medi dida da em que, qu e, nas ciên ci ênci cias as huma hu mana nas, s, é a antr an trop opoologia que tem as condições de retirar a reflexão sobre a ideologia do campo restrito da luta de classes e da política e recolocá-la no campo da discussão sobre a cultura. O modo como a cultura atua (e já se disse: a cultura atua como uma lente (Benedict, s/d)) coloca-nos diante de um fato e de um problema teórico: a cultura torna-se impensável sem a análise da ideologia, assim como a existên25. Essa é a idéia do leninismo. que impregnou a prática da esquerda no mundo inteiro.
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cia da ideologia torna-se impensável se separada do fenômeno da cultura. A adoção das práticas de castigos e penas de morte nas sociedades humanas pode ser assim situada: como recursos de punição, os castigos e as penas de morte são exemplos máximos do que pode vir a ser feito com aqueles que fugirem às normas, infringirem as leis da sociedade. O efeito socializador dessa ameaça pode ser constatado: de fato, os indivíduos humanos, introjetando as lições dos mitos (narrados de todas as maneiras: nos contos de fada, nas lendas do folclore, nas canções de ninar, nas brincadeiras infantis...), neles acreditando, sedimentam internamente a idéia da necessidade do castigo e das pena pe nas. s. Antes, contudo, de tratarmos mais diretamente do mito do castigo exemplar das práticas de castigos e penas de morte, procuraremos tratar brevemente da função do mito em geral e trazer à lembrança mitos de castigo que nos acompanham desde muito.
2. Os mitos: a forma primeira da ideologia A função social dos mitos na legitimação da sociedade é algo já de muito estudado pela antropologia. A história de todos os povos, em todas as épocas, atesta a existência dos mitos como parte integrante da vida social e como fundamental na função de legitimar a realidade social existente. Em sentido geral, o mito pode ser entendido como a narrativa de um acontecimento extraordinário, o relato de um fato fabuloso, que se acredita verdadeiro e se su põe põ e acon ac onte teci cido do num temp te mpoo mu muit itoo afas af asta tado do e impr im prec ecis iso. o. Os mitos contam, em geral, histórias que com freqüência falam do começo, da origem e do fundamento de práticas, costumes e crenças de um grupo social ou do gênero humano em geral. Contam também a origem do mundo 80
físico, dos seres vivos e do próprio homem, como obras de seres sobrenaturais que intervém com suas ações para a Criação (Eliade, 1991:11). A narrativa mitológica é sempre contada como história verdadeira, cercada de mistérios e segredos, transmitida por meio de narrações complexas ou de ritos caracterizados pela sacralidade e magia. Há na narrativa mitológica uma estrutura e um conteúdo bem marcados, que garantem significação simbólica ao que é narrado. Para se contar, o mito mistura seres humanos, animais e criaturas sobrenaturais numa só realidade. Mas essa é mesmo a linguagem do mito. Linguagem cifrada. Pois se empregada para deliciar os homens, ao lhes contar histórias fantásticas, serve, em primeiro lugar, para lhes explicar o fundamento da existência das coisas e da própria vida humana. Para Mircea Eliade, os mitos, ao assegurarem explicações sobre as Origens, justificam a realidade de que tratam. Explicando aos homens a origem do mundo, da vida, dos seres humanos e animais, os mitos dão sentido à existência das sociedades humanas como eventos sagrados, pois são incluídas também, nos relatos míticos, como nascidas no mesmo momento cosmogônico. Conforme observa: (...) a mitologia não só constitui como que a "história sagrada" da tribo, não só explica a realidade total e just ju st if ica ic a as suas sua s cont co ntra radi diçõ ções es,, co mo revela rev ela igua ig ualm lmen ente te uma hierarquia na série de acontecimentos fabulosos que relata. Em geral, pode-se dizer que qualquer mito conta a forma como qualquer coisa surgiu, o mundo, ou o homem, ou uma espécie animal, ou uma instituição social, etc. (...) Ora, esta história sagrada primordial, reunida pela totalidade de mitos significativos, é fundamental porque explica, e por isso mesmo justifica, a existência do mundo, do homem e da sociedade. (1989:96-7)
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Disso decorre que os mitos passam a ser modelos de conduta e conferem sentido à existência humana. As narrativas mitológicas são sempre relatos que explicam o modo de ser dos homens e das instituições existentes entre eles. No mito cosmogônico — o modelo mítico por excelência — o relato das Origens é mais que uma história sagrada: como discursos de reatualização da passagem do Caos ao Cosmos, funcionam como representações sociais que, contando o momento da Criação, reafirmariam a necessidade da Ordem entre os homens. Conforme observa M. Eliade, a repetição do instante da Criação é uma tentativa de restauração do conceito de Ordem, e sua celebração em muitos rituais — mesmo entre nós, nas sociedades ocidentais modernas, nas nossas festas de Ano Novo, Carnaval — visa abolir o tempo decorrido (histórico, profano), projetando o homem no tempo mítico, tornando-o contemporâneo da cosmogonia e, desse modo, permitindo a preparação a um regresso à vida durável, concreto — a Ordem de todo dia. A necessidade que as sociedades primitivas sentem de ritualizar a passagem do Caos à Cosmogonia — e o fazem por meio de diversas cerimônias rituais — revela que também nessas sociedades o problema de uma história para as suas instituições é problema renovado. A re peti pe tiçã çãoo do ato cosm co smog ogôn ônic icoo é regenerativa, assumindo enorme importância para a vida social. Em O mito do eterno retorno, Mircea Eliade conta como entre os babibabilônicos, assírios e hebreus os rituais de comemoração do Ano Novo serviam para dramatizar os momentos da Criação, pela repetição imaginária da Cosmogonia, em que tomavam parte as mais diversas crenças. A cerimônia do akitu entre os babilônicos — em que se dramatiza a vitória de Marduk sobre Tiamat, relatada no poema da Criação, Enâma elish —, igualmente celebrada pelos hititas e hebreus, pode perfeitamente ser vista como a reafirmação da necessidade da Ordem Social, pois a vitória das Divindades sobre os Monstros são vitórias da Ordem 82
que traz o bem, a paz e a vida. Nas cerimônias primitivas do Ano Novo, a restauração do caos primordial é sempre sucedida da repetição do ato cosmogônico, instante em que o homem se torna contemporâneo da Criação do Mundo, isto é, criação da Ordem na qual se encontra (Eliade, 1988, passim). Ness Ne ssaa pers pe rspe pect ctiv iva, a, o míti mí tico co não nã o é best be stiár iário io,, igno ig norâ rânncia, infantilidade, fabulação fantasiosa, é algo vivo e vivido, com razões muito determinadas para existir. Para Roger Caillois, "o caráter coletivo da imaginação mítica é suficiente para garantir que ela seja de base social, existindo graças à sociedade e em seu proveito. Aí reside a sua característica própria, a sua função específica" (1972:63). Convencido de igual concepção sobre o mito, Claude Lévi-Strauss vai sugerir que não se pensem os mitos como ficções desprovidas de sentido, produtos de imaginação individual ou casos de delírios coletivos. Como observa: Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra de uma função fabulatória que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser pres pr eser erva vado do até hoje ho je,, de form fo rmaa resi re sidu dual al,, mo modo doss de obse ob serrvação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados e descobertas de tipo determinado... (1989:31)
Para Lévi-Strauss, uma das funções do mito é situar os homens no espaço da cultura (na Ordem Simbólica). As narrativas mitológicas são sempre versões (tentativas de explicações) para o fenômeno da existência humana como fenômeno cultural: que são os homens? homen s? produtos prod utos da natureza ou da cultura? donde provêm os homens? como eles nascem? Entende Lévi-Strauss que o problema principal presente nos mitos é a contradição natureza versus cultura. (E com esse entendimento que Claude 83
Lévi-Strauss interpreta o mais célebre mito do mundo, o Édipo (1975:245).) O fenômeno universal da mitologia comprova que os mitos têm razões muito determinadas para existir e funções também muito determinadas a cumprir. As narrativas mitológicas, como explicações sobre as Origens, confirmam como tudo se ordenou para dar condições à harmonia da vida. Mas, como o mundo humano é um mundo de divisões, pelos mitos os homens buscam restituir a unidade perdida da harmonia dos começos. Pesa sobre os humanos a responsabilidade da fratura do seu mundo. Esses vêem-se perseguidos pelo sentimento de que transgrediram a Ordem Natural das coisas: forma-se assim, poderíamos dizer, o arquétipo do temor à transgressão. Dessa maneira, podemos compreender por que as narrativas mitológicas são portadoras também de modelos de conduta, pois trata-se de dizer como os humanos no s devem viver sem que ameacem amea cem o mun mundo do à sua volta. Observe Georges Gusdorf: (...) o mito se afirma como uma conduta de retorno à ordem. Ele intervém como um protótipo de equili bração do universo, como um formulário de reintegração. (Apud Morais, 1988:71; gritos meus)
Assim, como estamos vendo, o mito, como a forma prim pr imei eira ra da ideo id eolog logia, ia, é uma respo res posta sta huma hu mana na ao temo te morr da desagregação da Ordem Cósmica e/ou Social. Pelos mitos, os indivíduos humanos procuram pacificar seus medos ante o acaso, o incerto e a desordem, e procuram aplacar suas culpas em virtude da queda, do pecado, do erro, da transgressão. Não Nã o sem razão ra zão,, pode po demo moss dize di zerr que qu e essa es sa procura do equilíbrio e da harmonia é a fonte do culto humano ao Poder , de maneira absoluta, e aos poderes (sagrados ou sociais), por parecerem (aos olhos humanos) restituintes da Ordem das coisas e asseguradores da vida de todos, merecendo, pois, que sejam objeto de culto, adoração e 84
reverência. O que, por conseguinte, faz do mito uma representação do social com todos os traços de um discurso cujas metáforas metáforas escondem dos homens os segredos do poden do ser pensado pensad o de outra maneira sen ão social, não podendo
como a forma primeira da ideologia. A esse respeito, também muito esclarecedora é a análise desenvolvida por Emile Durkheim, em As formas elementares de vida religiosa, ao procurar fornecer uma explicação sobre a origem da idéia, entre os homens, de um poder misterioso, como causa eficiente de todos os fenômenos e coisas existentes. Embora se manifeste de diferentes maneiras, a idéia existe em todas as sociedades de que se tem conhecimento. O que Durkheim basicamente procura demonstrar é que é comum a diversas sociedades a idéia da existência de um Poder anônimo (não humano) como fonte da vida de todas as coisas e seres. Essa idéia tem tudo o que é prec pr ecis isoo para pa ra desp de sper erta tarr nos indi in diví vídu duos os a cren cr ença ça em deus de uses es e despertar o comportamento de aceitação das coisas como naturais, pois fruto da vontade daqueles. A crença num poder sagrado é fonte da crença em todo poder. (Ao escrever seu Tratado teológico-político, no século XVII, Espinosa antecipa-se em idéias a Marx e a Durkheim. Espinosa demonstra como a religião é antes de tudo instrumento necessário à dominação social e política. Como diz, não podendo a sociedade subsistir sem o poder, esse procura uma maneira de não ser percebido como tal, ou então busca ser a aparência de algo superior ao que é comum aos homens para que seja possível que esses se convençam que é assim. Espinosa (1988), utilizando-se
da análise histórico-crítica, demonstra como a religião de Moisés serve em primeiro lugar ao estabelecimento do Estado hebreu, e esse não é caso particular.) Conforme a representação mítica, como tudo na natureza e na sociedade é obra do poder, os indivíduos humanos devem ter respeito e adoração pelo que existe e se manifesta à sua volta. Dessa maneira, em volta dessa 85
crença, todo um simbolismo se erige em deuses e em elementos sagrados, objetos de culto. Diz Émile Durkheim: (...) não há enumeração que possa esgotar essa noção infinitamente complexa. Não se trata de poder definitivo e definível, o poder de fazer isto ou aquilo; trata-se do Poder, de maneira absoluta, sem adjetivo nem determinação de qualquer espécie. (1989:244-5)
A análise dos mitos não pode fugir a esta interpretação. Dizemos isso porque algumas interpretações que se fazem dos mitos é como se esses fossem fabulações ingênuas, sem relação com o social. Os mitos dão aos humanos "a possibilidade de criarem em torno de si um sistema de autoproteção das ameaças do mundo fraturado" (Morais, 1988:71), fraturado, corrompido, impuro, atingido pelo pecado. Os muitos deuses, os gênios, os heróis, as narrativas sobre as Origens, as recomendações de condutas, os muitos exemplos de castigos por transgressões são representações que procuram confortar os humanos no temor da desagregação social, da desarmonia, do caos. Por isso, essas representações são consagrações da sociedade como necessária e inevitável, e que, para pa ra os huma hu mano nos, s, deve de ve ser tamb ta mbém ém obje ob jeto to de resp re spei eito to e veneração.
3. Mitos de castigos (nossos) conhecidos: Dilúvios... Lobisomens... Mortes A existência de mitos sobre castigos, em todas toda s as culturas, atesta que as sociedades humanas precisam da adesão dos seus membros a uma crença: a crença de que sem o exemplo da punição puniçã o não existirá respeito e obediência às leis, às regras, aos costumes etc. Nas sociedades ocidentais cristianizadas, muitos são os mitos de castigo. A lembrança do tempo que nos acompanha já se perd pe rdeu eu no próp pr ópri rioo temp te mpoo do mito. mit o. Cont Co ntos os de fada fa da,, lendas len das 86
popu po pula lare res, s, rela re lato toss bíbl bí blic icos os,, film fi lmes es,, hist hi stór ória iass em quad qu adri ri-nhos, romances, literatura de cordel, brincadeiras de rua, em tudo isso os mitos vão sendo contados, e deixam em cada um de nós seus efeitos socializadores. Fazendo o que chamou uma História do medo no Ocidente, Jean Delumeau class ifica os relatos e profecia prof eciass apocalípticas, que sugerem castigos corretivos a transgressões da Ordem das coisas, de medos escatológicos. São exemplos desses mitos de castigo as narrativas da Bíblia cristã que contam o Dilúvio e a Destruição de Sodoma e Gomorra, as profecias sobre a vinda de Deus, a vinda do Anticristo, o Juízo Final e as Pestes dizimadoras da humanidade. A tradição de muitos povos inclui o mito do Dilúvio. Em eras remotas, águas furiosas teriam devastado a Terra com todos os seres. Nas versões é comum a existência de um homem que, com sua família, e alguns animais, teriam sido salvos pelos Deuses. Narram os mitos que, antes das chuvas, os Deuses recomendam a construção de um barco salvador, em que o Protegido deve permanecer com os seus. Para nós ocidentais, a versão mais conhecida desse mito é a narrada no livro Gênesis. Conforme ali se pode ler, Deus teria destruído o Mundo tendo feito cair sobre a Terra uma grande chuva, que, inundando todos os lugares, exterminou tudo que na Terra tinha vida, pois a Terra estava corrompida pelo pecado. Apenas Noé e sua família, escolhidos por Deus, foram salvos. Embora seja a versão mais conhecida, contudo, não é a mais antiga. Nem mesmo um mito original (e não há mito original!). O mito do Dilúvio já existia na Mesopotâmia, entre os primeiros povos de que se tem conhecimento, de onde certamente se originou a versão do Gênesis. O Velho Testamento não faz mais do que recontar um mito existente entre os povos sumários, babilônicos e assírios. 87
A Epopéia de Gilgamesh conta a mais antiga versão conhecida da história do Dilúvio. A Epopéia, um épico sumério, relata o encontro de Gilgamesh com Utnapistim, o imortal, a quem Gilgamesh recorreu a fim de saber dele sobre a natureza da vida além da morte, depois de ter caído em estado de desconsolo com a morte do seu querido amigo, Enkidu. Utnapistim, para explicar sua imortalidade, narra a Gilgamesh a história do Dilúvio, em que toma parte como escolhido dos Deuses para ser salvo do furor das águas. É clara a semelhança do Noé do Gênesis com o velho Utnapistim 26 . Os gregos também tinham seu mito do Dilúvio. Na versão grega contada por Píndaro, no século V a.C., a tempestade durou nove dias e nove noites. Os sobreviventes foram Deucalion e sua mulher, salvos pela proteção de Zeus (Gonçalves, 1974). Pierre Clastres registra a existência de um mito de Dilúvio também entre os indígenas Guarani (1990:46-54). Ainda conforme a nossa tradição judaico-cristã, no caso de Sodoma e Gomorra a fúria de Deus não ocorreu de ser menor. Como no castigo do Dilúvio, também puniu os homens por seus erros. Como as cidades de Sodoma e Gomorra estavam tomadas pelo pecado (do sexo), Deus fez cair sobre elas uma chuva de enxofre e de fogo, vinda do Céu. (O enxofre era empregado nos cultos pagãos para a purificação dos culpados. E assim que vai estar associado a culpa e punição. Mas o enxofr enx ofree está também associado a Satanás e ao Inferno: a luz amarela esfumaçada, com que o Inferno envolve seus ocupantes, é produzida pelo enxofre satânico. Teria o Deus dos he breu br euss proc pr ocur urad adoo cast ca stig igar ar os home ho mens ns com a próp pr ópri riaa matémat é27 ria do Inferno? ) 26. Épico sumério anônimo, Gilgamesh: Rei de Uruk. Uruk. Contém a narrativa mais antiga conhecida do Dilúvio. 27. Sobre o simbolismo do enxofre, ver Jean Chevalier et alii, Dicionário de símbolos, p. 374
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A morte ta mbé m é conta da pelos mitos co mo u ma intrusão dos Deuses na vida dos homens. A morte não havia no começo, mas apareceu como punição, pela desobediência, ingratidão ou simples estupidez da humanidade. Há uma crença de que, no começo, a morte deveria ser temporária ou inexistente para os homens. Os Deuses teriam concedido a imortalidade aos homens, mas esses erraram, pecaram e veio a morte. Muitos povos africanos po p o s s u e m m i t o s q u e n a r r a m c o m o a m o r t e f o i i n t r o d u z i d a na vida dos homens. Os arawaks, da Guiana, contam que o benevolente Criador veio à Terra para verificar como se portavam os primeiros homens. O Criador, tendo sido agredido, tirou-lhes a imortalidade, dando-a aos lagartos, serpentes e besouros. A morte, como punição por um pecado da mulher, está em muitos mitos, além da versão do mito Adão e Eva. Os aborígenes da Nova Gales do Sul contam que o Deus principal proibiu os humanos de se aproximarem de uma árvore, onde havia abelhas. Os homens obedeceram, mas as mulheres, para conseguirem o mel, golpearam a árvore com um machado. E de lá surgiu a morte, em forma de morcegos, para reclamar a vida de todos, o que conseguem tocando os humanos com suas asas (Gonçalves, 1974). O noss o fol clo re — e seus contos fant ást ico s — tam bé b é m e s t á r e p l e t o d e m i t o s s o b r e c a s t i g o s , m e r e c i d o s p o r transgressões às normas sociais e às ordens dos Deuses. O estudioso Luís da Câmara Cascudo, fazendo o que chamou uma Geografia dos mitos brasileiros , demonstra como muitos são os mitos populares, nas diversas regiões do país (e países do mundo), que tratam de exem pl p l o s d e c a s t i g o s , c o m funções educativas (nos te rmo s do pr p r ó p r i o C a s c u d o ) . Classificando às lendas em mitos do ciclo da angústia infantil e mitos do ciclo dos monstros , Câma ra Cas cudo anota muitas lendas populares que se contam desde muito e sobrevivem na tradição oral. Como exemplos, podemos citar alguns: o Lobisomem, um caso de uma meta-
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morfose por castigo, devido a ligações sexuais entre irmãos, primos e compadres, incluídos na categoria de incesto (1983:143); a Mula Sem Cabeça ou Burrinha de Padre, castigo tremendo da concubina de padre (ibidem: 145-62); o Mão de Cabelo, o espantalho das crianças que costumam mijar na cama. Conforme Cascudo, é a ameatipica mente ao ciça da castração intimática. Pertence tipicamente clo da angústia infantil na acepção de pavor sexual; a Cabra Cabriola, devoradora de crianças desobedientes às ordens dos pais (ibidem: 162-80); e, no Piauí, o Cabeçade-Cuia, "de finalidade moral e reunido no ciclo do castigo. O Cabeça-de-Cuia, disforme e apavorante, é um homem que sofre sua penitência com tempo limitado. (...) é um exilado do convívio humano, cumpre sina mas com esperança teimosa de regressar aos tempos em que pescava de tarrafa e arpão" (ibidem: 223-36). O lendário brasileiro é rico em contos desse tipo. E ainda hoje, não raro, em algumas cidades, explodem contos fantásticos de histórias do fim do mundo, de mensageiros do além. Muito freqüentemente se contam histórias desse tipo como fatos realmente ocorridos. As sociedades humanas, organizando a educação para incutir o medo, só podem ter nos mitos de castigos meios de grande eficácia simbólica. Dessa forma, podemos compreender como as sociedades logram conservar práticas de punição, mesmo quando isso se faz com a violência total sobre o corpo e com retirada da vida das pessoas, sem que isso seja combatido, recusado. E neste nível da análise que podemos situar o problema das práticas de castigos e penas de morte, como existem nas sociedades ou foram instituídas em certos períodos da história.
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2.
PRÁTICAS DE CASTIGOS E PENA DE MORTE: o mito do castigo exemplar 1. Sociedades tribais, primeiras civilizações e Antigüidade: a lei, os castigos e as penas capitais Uma história da pena de morte remontaria às primeiras civilizações e à Antigüidade. Há informações de que todos os povos conhecidos aplicavam a pena de morte para pa ra os caso ca soss cons co nsid ider erad ados os deli de lito toss grav gr aves es.. Nas Na s soci so cied edaades tribais, do passado e nas atuais, os castigos cruéis e a pena pe na de mo mort rtee tamb ta mbém ém exis ex iste tem m c om omoo mo moda dali lida dade dess da puni pu niçã ção. o. C om omec ecem emoo s por po r esta es tass últi úl tima mas. s. Nas Na s soci so cied edad ades es trib tr ibai aiss 1, pelo fundamento do poder nessas sociedades, cujo critério de sua legitimação é manter a indivisão da comunidade, o direito é exclusivamente penal, conforme distingue Durkheim (1978). O delito é um ato que ofende a consciência coletiva e, por efeito oposto, gera na sociedade uma maior coesão. A reação coletiva da sociedade implica a pena para o transgressor. Quase sempre, a sanção penal vem cominada com o recurso ritual às forças sobrenaturais, o que põe em relevo o significado das crenças míticas para a manutenção da Ordem Social. Não Nã o se pens pe nsee que qu e nas soci so cied edad ades es triba tri bais is (do (d o pass pa ssad adoo e nas atuais) o ensino da lei não se faz com dureza. Nessas sociedades a educação, para a obediência à lei, não se I. Aqui, entenda-se sociedades tribais apenas no sentido restrito dado pela antropologia.
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faz sem uma simbólica do medo e do terror, em volta da qual se ordena, em sua totalidade, a vida social e religiosa da soçjedade. Ness Ne ssas as soci so cied edad ades es,, a ma marc rcaa da lei, como co mo a ma marc rcaa da pert pe rten ença ça ao grup gr upo, o, se faz fa z no próp pr ópri rioo corp co rpo. o. Co nf or me Pierre Clastres, a sociedade primitiva designa o corpo "como o único espaço propício a conter o sinal de um traç o de uma passagem, a determinaç deter minação ão de um tempo, o traço destino (1990:125). (1990:1 25). Ninguém Ningu ém deve esquecer a lei lei que governa a vida de todos. Como nessas sociedades o poder é indivisível, e a sociedade afirma a todo momento a recusa de um poder separado (um Estado), a cultura tribal da lei visa, em primeiro lugar, a coesão social em torno do pode po derr cole co leti tivo vo — o pode po derr da soci so cied edad adee como co mo tal. tal . O saber revelado no rito é a história da sociedade, a cultura de suas tradições. A inscrição do sinal nos corpos é uma pedagogia. Como Com o observa: (...) nas sociedades primitivas, a tortura é a essência do ritual de iniciação. (...) depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste subsi ste algo, um saldo sald o irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada com a faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o sua corpo: no ritual iniciatório, a sociedade imprime a sua marca
no corpo
dos jovens,
(ib ide m:
127-8)
Nas soci so cied edad ades es tribai tri bais, s, os mitos mit os,, como co mo a form fo rmaa do imaginário social, colocando distante no tempo e afastando dos homens a decretação das leis sociais, tornam ainda maior o poder da sociedade sobre seus membros, uma vez que, não sendo poder separado (de Um), existe como igual para todos, sem que seja vontade e idéia de um só, ou de poucos. Nesse contexto, os castigos são ordens sagradas e deixam a marca indelével da exclusão do grupo, da sociedade. 92
Nas soci so cieda edade dess tribai tri bais, s, a pena pen a de morte mor te existe exi ste como co mo uma possibilidade de punição para casos de violação grave de um juramento ou tradição da sociedade. O ostracismo e o abandono são as punições mais comuns e temidas, todavia (Bernardi, 1988:355). Entre os povos das primeiras civilizações, entre os quais estão os sumérios, babilônicos, assírios, hebreus e hititas, eram comuns a aplicação iJè^pênãsTlè morte S 3 práti prá tica ca de mutil mut ilaçõ ações es,, incluí inc luídas das entre ent re as punTçõg§~p punTçõg§~para ara aqueles que ofendessem o Rei, perturbassem a ordem públi púb lica, ca, prati pra tica cass ssem em o adulté adu ltério rio,, o ho homi micíd cídio io,, o roubo rou bo contra certas classes, o falso testemunho, o rapto, entre outros casos. A leitura de textos sobre a história desses povos atesta que a lei assíria era bastante severa e que os assírios praticavam a empalação. Os hititas, embora embo ra tivessem punições mais moderadas, puniam o culpado por rebelião com sua destruição e de toda sua família. Ainda puniam o que consideravam crime contra os costumes: a sodomia e o estupro, por exemplo. Os hebreus prescreviam a pena capital para casos de homicídio voluntário, a blasfêmia, a violação de dia festivo. Havia diversas maneiras de a pena de morte ser executada: lapidação, morte no fogo, decapitação etc. Igual repressão merecia o infanticídio e o aborto voluntário. Entre os hebreus, além das penas que acarretavam a morte do réu, existiam ainda castigos públicos como a flagelação: o culpado era estendido no chão ou amarrado a uma coluna e batido com varas. Aplicavam o anátema, a excomunhão, para aqueles que atentassem contra os prin pr incí cípi pios os da religi rel igião ão (contr (co ntraa qu quem em deix de ixas asse se de comer com er o pão ázimo, ázi mo, nos sete set e dias dia s da Pásco Pás coa, a, por exemp ex emplo lo). ). Ainda Ain da da legislação hebraica, é conhecida a pena de talião, cujo prin pr incí cípi pioo pres pr escr crev evee que a pena pen a a ser aplica apl icada da ao culp cu lpad adoo não haverá de ser menor nem maior do que o crime cometido. Eram ainda punidos o adultério, o incesto e o 93
que chamavam o crime de fornicação. Na Bíblia, esses castigos e penas estão relatados nos livros Levítico, Números^©e«t meros^©e«t«Kwômi «Kwômio. o. _ — — — '—-— Entre os egípcios antigos, igualmente, existia a pena de morte. As penas mais utilizadas eram o abandono do condenado à voracidade dos crocodilos, estrangulamento, decapitação, fogueira e embalsamento em vida. Quando se tratava de réus das classes dominantes, era perm pe rmit itid idoo o suicí su icídi dio, o, para pa ra que qu e foss fo ssee evit ev itad adaa a verg ve rgon onha ha da cerimônia pública. A mutilação era um castigo tam bém em empr preg egad ado. o. Entre En tre os tipo ti poss de mu muti tila laçã çãoo figu fi gura rava vam ma decepação do nariz, a amputação das mãos ou da língua e furar os olhos. Os egípcios antigos costumavam punir a traição aos superiores, o perjúrio, o parricídio, o assassínio de escravo ou homem livre. Grécia e Roma, tributárias dessas civilizações antigas, vão ter também entre seus códigos de direito a prescrição de penas de morte, para os culpados de delitos considerados graves. O homem grego não esteve menos sujeito a leis severas, a despeito de toda descrição idílica que se faz da vida grega. Para conservar a rígida divisão da sociedade em possuidores de terras e escravos, guerreiros, filósofos e trabalhadores escravizados, a sociedade grega modelou um tipo de educação especial — que sustentava que a escravidão estava na natureza das coisas — e conservava um aparato legislativo que garantia a permanência das relações sociais dominantes domin antes (Ponce, 1982:35-9). Os romanos, da mesma maneira, durante muito tempo tiveram no terror e nos castigos o único acicate para manter dominado o trabalho escravo. O costume de teatralizar dos romanos — a atmosfera do Senado, do Exército e dos Tribunais não fugia a isso — fez com que grande parte dos castigos aplicados a condenados fossem prom pr omov ovid idos os em públ pú blic ico, o, e mu muit itos os deles de les pass pa ssar aram am a ser motivos de festas públicas para divertimentos dos governantes e mesmo dos súditos. 94
Durante a vigência das tiranias, nem mesmo era preciso ser réu de algum crime para ser executado e morto. Ser vitima inocente da ira dos tiranos ocorreu de_ser o destino de muitos, e isso não acontecia "sem uma forte dose de crueldade, em que se compraziam os soberanos, que, por todos os meios, procuravam demonstrar o poder que detinham. Os imperadores romanos não raro mandavam executar suas vítimas em público, para que não houvesse dúvida quant o ao poder de que estavam investidos. Em Roma,xomo para as civilizações antigas anteriores, 0 poder tinha origem divina. A pprsepnição aos primei1 os cristãos não se deixou de fazer com crueldade: tortura e execução de muitos fiéis, laflçaÜUS liã arena para o apetite dos leões (e para a sanha dos poderosos) (Gibbon, 1989, passim). Conforme Michel Rouche, a lei romana, na Idade Média, previa a tortura para todos os criminosos condenados. E os suplícios impostos aos condenados revelavam o alto grau de sadismo que se manifestava nos carrascos e na multidão. "Abriam-se as chagas dos supliciados que acabavam de cicatrizar, chamava-se um médico para tratar do infeliz a fim de poder torturá-lo num suplício ainda mais longo." (Rouche, 1989:440). Da pena de morte alguns condenados podiam escapar, mas nunca do ritual do supliciamento. O autor conta ainda que o corpo era o lugar privilegiado de um verdadeiro combate entre o mal e o bem; havia um verdadeiro ódio e medo do corpo. Concepção que perdurará, nos aparelhos da Justiça, até o começo da chamada Idade Moderna, como veremos a seguir.
2. História (Foucault): das mil mortes à morte de um instante só Até ainda o início do século XIX, as execuções das pena pe nass tinh ti nham am o mesm me smoo cará ca ráte terr de ceri ce rimô môni niaa públ pú blic icaa que qu e 95
adquiriram nas sociedades antigas. No período de vigência das sociedades feudais, a tortura e as penas de morte, como espetáculos públicos, foram largamente aplicadas. Somente com o advento da Justiça moderna, a dramatização pública do castigo foi aos poucos sendo abolida. Como conta Michel Foucault, em Vigiar e punir, apenas no período entre o final do século XVIII e início da metade do século XIX, apunição com pena de morte deixa de ser uma cena publica, um espetácujp. Essa relação da pena de morte com o espetáculo teatral público é importante que seja sublinhada porque ex prim pr imee toda to da a inte in tenç nção ão de forç fo rçaa simb si mból ólic icaa do mito mi to do cascas tigo exemplar. A ostentação do suplício do condenado (seja na prática da empalação, pelos antigos, seja no castigo da lapidação, entre os hebreus, seja no horror da roda) e a execução do réu, numa cerimônia ritual pública, serviam de demonstração do triunfo do poder e da lei, mas, principalmente, pela riqueza do.simbolismo. da encenação servia de exem£dLL4±àr±í.iodas, .qs demais nã~Sr>-^ ~cled3tfg: "DízTõ "Dí zTõ u c auj au j t: -v O suplício faz parte de um ritual. E um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante; destina-se, ou pela pel a cica ci catri trizz que qu e deix de ixaa no corp co rpo, o, ou pela oste os tent ntaç ação ão de que se acompanha, a tornar infame aquele aque le que é sua vítima; (...) a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados. E pelo lado da Justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como o seu triunfo. (1977:35; grifo do autor)
O emprego do suplício, como espetáculo ritual, foi largamente utilizado nos séculos da chamada Idade Média. Mas esse modelo da punição se estendeu por todos os séculos seguintes, com mais ostentação e crueldade 96
no período em que atuou o Tribunal da Inquisição, da Igreja Católica de Roma, com a contra-reforma. A pena de morte e a tortura pública foram intensamente praticadas, na Europa, no período que vai do fim do século XIV até meados do século XVIII, legitimadas pela ideologia da caça às bruxas, heréticos, cismáticos e pagãos. A re pres pr essã sãoo sist si stem emát átic icaa prom pr omov ovid idaa pelo pe lo Trib Tr ibun unal al da Inqu In quis isiição ocupou todo o espaço da cultura do medo e foi, em grande medida, sua promotora. Ligando sobretudo o prazer sexual à transgressão das leis de Deus, a concepção dominante do catolicismo, nesse período, criava as condições para uma repressão generalizada às mulheres. Como no mito narrado no Gênesis — a mulher é a culpada da queda dos humanos no_ peca pe cado do,, por po r se deix de ixar ar sedu se duzi zirr pelo pe lo praz pr azer er — , na Idad Id adee Média a concepção dominante é aquela segundo a qual as mulheres, sendo essencialmente sexuais, dominadas pelo pe lo praz pr azer er,, torn to rnam am-s -see as agen ag ente tes, s, por po r exce ex celê lênc ncia ia,, do DeDe mônio. Assim, nos séculos dominados por essa visão càtólica, surge a figura da feiticeira, resumo do que sêrTâm as mulheres: agentes do Diabo, praticantes da luxúria-e com poder de desencadear todos os males. Conforme o Malleus maleficarum, as feiticeiras são capazes capaze s de desencadear todos os males, especialmente a impotência masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, abortos, oferendas de crianças a Satanás, estrago das colheitas, doenças nos animais etc. (Kramer e Sprenger, 1991). Durante todo o período em que vigorou a Inquisição, foram queimadas em fogueiras, à vista de multidões sequiosas de horror, milhares de mulheres, consideradas brux br uxas as.. C o n fo r me dado da doss colh co lhid idos os pelo pe loss estu es tudo doss hist hi stór óriicos, quatrocentas mulheres foram assassinadas num único dia, em Toulouse, queimadas vivas na fogueira. A natureza da perseguição determinou uma média de duas por po r dia (Mur (M urar aro, o, 1991 19 91:1 :13) 3).. ~~ 97
Mas não apenas as mulheres foram condenadas ao su plíc pl ício io da fogu fo guei eira ra ou da roda ro da.. Sem Se m impo im port rtar ar idade ida de ou sexo, adultos e crianças foram torturados e mortos em públ pú blic ico, o, co mo anún an únci cioo do supl su plíc ício io e da morte mor te eter et erna na que qu e iriam viver no Inferno, como castigo por seus pecados. Com apoio na doutrina de Santo Agostinho (para a qual era obrigação dos cristãos resgatar hereges, judeus, cismáticos e pagãos do destino que os esperava depois da morte), a queima de pessoas vivas na fogueira envolvia uma verdadeira economia da morte, que ia desde juizes até os fornecedores de lenha para a queima dos acusados (Gonçalves, 1974:119). As formas mais comuns de castigo, em vigor nesse perí pe ríod odo, o, eram er am tostar tos tar a vítim ví timaa numa nu ma cald ca ldei eira ra de ferr fe rroo incandescente, beliscar-lhe a pele com pinças quentes, esmagar suas pernas, deslocar as clavículas e esmagar os dedos. As autoridades não deixavam que o acusado, uma vez preso, pres o, escapass escap assee a sua sorte (idem: (ide m: 119 119). ). Esse modelo de castigo, imposto à vítima da condenação pela Lei da Inquisição, constituiu-se no modelo geral da punição aos acusados de crimes, durando até quando do advento da Justiça moderna. A cerimônia pública do suplício, seguida da execução do condenado, era um acontecimento que não levava ao espetáculo apenas o réu, o oficiante e o carrasco, mas muitos "espectadores a se comprimirem em torno do cadafalso" (Foucault, 1977:44). A teatralização da tortura e morte do condenado dava a todos papéis bem definidos e tornava a ocasião o momento de uma longa confissão públ pú blic icaa de toda to da a verd ve rdad adee do crim cr imee e de " u ma ving vi ngan ança ça pesso pes soal al públ pú blic ica" a" (ibi (i bide dem: m: 46). 46 ). Conforme Foucault, a violência das execuções na forca, na roda, na fogueira, o esquartejamento ou o arrastamento por cavalos, procuravam obter o máximo de rendimento punitivo sobre o corpo. Era o corpo do condenado que se visava na tortura, pois sua alma seria objeto de 98
um outro julgamento, o julgamento de Deus. Do corpo, cuidava a Justiça terrestre. Diz Foucault: (...) agora a morte é certa, trata-se de salvar a alma. O jo j o g o eter et erno no já come co meço çou; u; o supl su plíc ício io ante an teci cipa pa as pena pe nass do além; mostra o que são elas; ele é o teatro do inferno; os gritos do condenado, sua revolta, suas blasfêmias já significam seu destino irremediável. Mas as dores deste mundo podem valer também como penitência para aliviar os castigos do além; um martírio desses, se é suportado com resignação, Deus não deixará de levar em conta. A crueldade da punição terrestre é considerada como dedução da pena futura; nela se esboça a promessa do perdão, (ibid em: 44) -•»-»--»-•« -•»-»--»-•«-»--— -»--—-» -»
A concepção implícita nessa liturgia da punição é a constante do Malleus maleficarum, para a qual o DemôDe mônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de ma! aos homens a fim de se apropriar do maior número possível de almas. E esse mal é feito prioritariamente por po r me meio io d o corp co rpo, o, únic ún icoo lugar lug ar onde on de o Demô De môni nioo pode po de entrar, pois o espírito é governado por Deus, só lhe restando o corpo para dominar. Também não se afasta do que pensava Santo Agostinho, cujo entendimento era o de que se fazia necessário salvar as criaturas humanas do terror eterno do Inferno, mesmo que para isso suas penas fossem antecipadas aqui na Terra (Kramer e Sprenger, 1991). Contudo, a transformação ocorrida com o fim da Idade Média e durante o longo período de transição para a ídade Moderna, vem modificar também o ritual da pena de morte. O ritual não mais teatralizará o sofrimento, o castigo e a punição do condenado. Não mais haverá o supliciamento do réu. Ainda conforme Michel Foucault, desde o início do século XIX, a Justiça moderna mudou a mecânica exemplar da punição. Para a concepção moderna, o teatro do suplício do conde tudo tu do é abominável abomi nável.. 99
A redução das "mil mortes" — no espetáculo ostentoso do suplício do corpo — à estrita execução da pena capital, com novos métodos, define uma moral bem nova do ato de punir. A Justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada a seu exercício. (...) é a própria condenação que marcará o delinqü ente com sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença. Quanto à execução, ela é vergonha suplementar que a Justiça tem vergonha de impor ao condenado, ela guarda distância, tendendo sempre a confiá-la a outros e sob a marca do sigilo. (Foucault, 1977:15; grifo meu)
U m a história da guilhotina poderia poderi a revelar essas momodificações nas concepções da Justiça moderna. Embora já j á em uso us o desd de sdee o sécu sé culo lo XVI, XV I, na Itáli It áliaa e em regi re giõe õess da França, a utilização da guilhotina como máquina de efeito infalível a ser adotada como modelo de pena de morte para pa ra todo to doss — serv se rvia ia tamb ta mbém ém para pa ra a exec ex ecuç ução ão de nobr no bres es — data da ta dess de ssee perí pe ríod odoo de mo modi difi fica caçõ ções es no dire di reit itoo mo mode derrno. J i a J à ^ n ç a r ^ a r l l L d e J 792, é usada conforme a nova moral da punição: a morte é reduzida a um ãcontecimento visível, mas de um instante instante só.
Ainda assim novás iffõSITIcãções foram sendo introduzidas. As execuções passaram a ser realizadas apressadamente e em horas tardias. O condenado era conduzido em carruagem fechada. Acabaram-se os espetáculos da carroça aberta — que expunha o condenado à vista de todos — e da tortura e execução em público. Finalmente, o palco da execução é retirado para o interior das prisões; a partir desse momento tudo se passaria em segredo (ibidem: 14-20). Hoje, as penas de morte aplicadas em países como os Estados Unidos são sem a ostentação do suplício e sem a cerimônia pública da execução. As execuções são rápidas, higiênicas, feitas no silêncio da lei, conforme a con100
cepção da Justiça moderna. Apenas os meios de.cemHHÚ.cação funcionam como o elo necessário (da informação) entre o vazio da sala da lei e as maiorias do lado de fora: a informação é o aviso (e o exemplo ) a todos quantos pens pe ns am em deso de sobe bede dece cerr à lei, lei , prat pr atic ican ando do crim cr imes es.. A s j i e nas mais comuns são a cadeira elétrica, a câmara de gás e a injeção letal. Todavia, nos adverte Foucault, mesmo com o aperfeiçoamento das prisões (e seu complexo de técnicos: psiquiatras, médicos, enfermeiros, padres, carcereiros, cozinheiros etc.) e com a modernização das técnicas de punir, a nova ética da moral legal não consegue se livrar totalmente do fundo supliciante de todo castigo. A privação do direito da liberdade nunca funcionou certo complemento punitivo sobre o corpo.
sem um
A tortura a presos comuns em muilòü países, com es peci pe cial alid idad adee no Bras Br asil il,, demo de mons nstr traa a perm pe rman anên ênci ciaa da conco ncepção medieval nos aparelhos que fazem funcionar a Justiça, concepção segundo a qual deve ser o corpo o objeto central do castigo, para que guarde para sempre a marca da punição — alguns certamente ainda acreditam que se trata de corpo tomado pelo demônio e assim por diante. Em março de 1992, nos Estados Unidos, um juiz, do Texas, decidiu pela castração de um condenado por estupro. No Brasil, houve também sugestão de que a castração fosse aplicada ao acusado de violentar e assassinar catorze garotos, no Rio, em caso ocorrido em 1992. Na cidade de Fiera, na Albânia, dois homens foram enforcados em praça pública, na presença de cinco mil pessoas, em junho de 1992, no estilo das execuções medievais. Nos No s país pa íses es mu muçu çulm lman anos os aind ai ndaa são sã o adot ad otad adas as a cas c astr traç ação ão e a decepação das mãos ou da língua, para punição de ladrões e blasfemadores. Em Cuba, em episódio também em 1992, Fidel ordenou o fuzilamento público de acusados políticos, revivendo o paredón. Como Co mo pod podemos emos ver, ver, 101
a crença no mito do castigo exemplar — seja mutilando o corpo, seja decretando a morte do condenado — é compartilhada por muitos. O que é exemplar na pena de morte é que, decretada a sançãó, o castigo é cruel: não há chance de arrependimento, a punição não é retirar a liberdade do corpo, mas impedir a vida, cessar seu fluxo. Dessa maneira, por menos pública que seja, a execução resultado de condenação à pena de morte serve de lição a todos aqueles que intencionam praticar crimes ou que já estejam envolvidos em transgressões à lei, pois não pode haver castigo maior que pagar com a vida crimes que se tenha cometi do — essa é a moral do mito. Lembremos o que aqui já dissemos antes: a morte é também um castigo imposto aos homens pela desobediência às leis dos Deuses. A pena pe na de mo mort rtee seri se riaa um umaa deci de cisã sãoo dos do s dete de tent ntor ores es do popo der, que agem, por semelhança, como os Deuses: a ação dos homens antecipa a ação dos Deuses, já que se trata de punir erros e pecados.
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2.
A SOCIEDADE BRASILEIRA E A PENA DE MORTE 1. As práticas de castigos e a pena de morte na história brasileira *
No Bras Br asil, il, apen ap enas as no perí pe ríod odoo colon co lonia iall mo moná nárq rqui uico co a pena pe na de mo mort rtee vigo vi goro rouu lega le galm lmen ente te e sem inte in terr rrup upçõ ções es.. Durante esse período em que vigorou, a pena mais utilizada foi o enforcamento. Com a proclamação da Repú blic bl ica, a, em 1889, a pena pe na de mo mort rtee fica fi cava va abol ab olid idaa da lei, embora desde 1855 tenha deixado de ser utilizada. Em 1938, com o Estado Est ado Novo, Nov o, a instituição instit uição legal da pena pe na de mo mort rtee é rest re stit ituí uída da.. Prev Pr evis ista ta para pa ra os cham ch amad ados os atos de subversão, é extinta com o fim da ditadura Vargas. Novamente, com a ditadura militar, é restabelecida pelo pe lo Ato At o Inst In stit ituc ucion ional al n° 14, 14, de 1969, para pa ra os caso ca soss de guerra externa e para o que os militares denominavam de refor crimes de subversão. E outra vez abolida, com as reformas constitucionais de 1978. Contudo, as interrupções na lei nunca significaram a ausência de práticas de execuções e práticas de castigos e torturas. O que se tornou evidente nos períodos dos governos ditatoriais. Mesmo quando se trata da ação das forças policiais — vide os exemplos diários de assassinatos e espancamentos bárbaros praticados pela polícia bras br asil ilei eira ra — , os cast ca stig igos os,, as tort to rtur uras as e as exec ex ecuç uçõe õess não foram afastados como práticas, ainda que a lei determine o contrário. Dos primeiros anos da colonização até o século XIX, a sociedade brasileira foi uma sociedade escravista. E mesmo que ainda se possa tratar da escravidão de muitos 103
indivíduos em situações de trabalho, no país, atualmente, o certo é que a instituição da escravidão como modo de prod pr oduç ução ão não nã o exis ex iste te mais. mai s. Quanto ao objeto de minha análise, foi na fase do Brasil escravista que tivemos uma legislação abertamente favorável aos castigos públicos, à tortura e à pena de morte. Na legislação era não só previsto o tipo de castigo e pena como ainda eram definidos os motivos e as maneiras pelas quais se deveria fazê-los. j Como se tratava de uma sociedade cujos trabalhadores eram os escravos — homens e mulheres trazidos da África, comprados e vendidos como mercadorias —, toda a violência dos castigos e das penas era dirigida a eles como sujeitos potenciais da desobediência. Como eram o pólo oposto das classes dominantes, que aqui reuniam o poder que a Coroa lhes dava e o poder que construíam com base na propriedade dos meios de produção que concentram em suas mãos, os africanos escravizados eram objetos de uma legislação calcada no mito do casviolên cia que lhe é peculiar. peculiar . tigo exemplar, com a violência A idéia subjacente aos castigos aplicados aos africanos escravizados era deixar sinais visíveis no corpo cor po para que servissem de exemplo. Os sinais serviam para os escravizados serem mais facilmente reconhecidos como conseguin te, serviam as as marcas dos castigados. E, por conseguinte, castigos como sinais indicativos da existência de um poder pronto a punir o que considerasse desobediência, desrespeito e conduta ilegal. Como se tratava de uma sociedade escravista, isto é, uma sociedade com senhores e escravizados, a lei existia para pa ra resp re spal alda darr a crue cr ueld ldad adee dos do s senh se nhor ores es n o trato tr ato com os seus escravos. Como demonstram muitos historiadores, a aplicação de castigos, torturas e mesmo o assassínio de escravizados no Brasil colonial foi amplamente praticada e aceita como legítima, mesmo quando o que estava em 104
ação era tão-somente a crueldade dos senhores, haja vista o comportamento dos escravizados não "exigir" nenhum castigo (Goulart, 1971, passim). A crueldade das classes dominantes coloniais na relação com os escravizados é vista por muitos historiadores — e à époc ép ocaa pelos pel os viaj vi ajan ante tess estr es tran ange geir iros os,, que qu e deix de ixar aram am relatos impressionantes retratando a vida social brasileira — como co mo inco in comp mpar aráv ável el em mu muit itos os de seus seu s aspe as pect ctos os com co m ação de mesmo tipo em outras sociedades. Dissimulando o alto grau da violência contido nas prát pr átic icas as de cast ca stig igar ar os escr es crav aviz izad ados os,, a legi le gisl slaç ação ão "pre "p re-via" multas e outras formas de condenação aos atos dos senhores considerados exagerados. Do que se sabe, tal legislação pouco foi posta em prática e em muito foi letra morta. Ainda, e em nossa história temos sido pródigos na dissimulação dos nossos feitos, criou-se no país e difundiu-se além-mar que a escravidão no Brasil era verdadeiramente humanitária. Esse pretenso humanismo da escravidão no país talvez esteja na origem do nosso mito da democracia racial ainda fortemente preservado pela cultura livresca e oficial. Os fatos e os dados, contudo, contestam essa dissimulação. Dos castigos praticados nas relações entre senhores e escravizados, os mais comuns eram o tronco, a marca de ferro, a máscara de flandres, os açoites, as palmatoadas de morte constava const ava como punição puni ção legal e as galés. A pena de
e não raro foi aplicada como castigo exemplar, mesmo sem a participação da Justiça. No Brasil Bra sil Colo Co loni nial al,, foi bast ba stan ante te elev el evad adoo o núme nú mero ro de escravos sentenciados à morte em processo regular e executados por carrascos oficiais. O próprio governo se encarregava de propalar a execução da pena visando a alcançar, com tal alarde, dois objetivos: um, o de dar satisfação ao povo; outro, o de amedrontar os escravos. O método de divulgação, que por sinal não se crê tenha
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jam j am ai s alca al canç nçad adoo o segu se gund ndoo prop pr opós ósit itoo — é que qu e reves rev esti tiaa forma bárbara, qual a de expor cabeça e membros do sentenciado onde houvesse este cometido o delito que o levara à morte. (Goulart, 1971:143) 1971:14 3)
Castrações, amputações de seios, extrações de olhos, fraturas de dentes, desfigurações de faces, amputações de membros foram castigos que em engenhos e fazendas não se pode dizer tenham sido raros. Os anúncios de jornais informam a respeito das mutilações físicas dos escravos, em especial os negros fugidos, quando mencionam os seus sinais identificadores. Ness Ne ssee perí pe ríod odo, o, mo mont ntaa-se se um umaa verd ve rdad adei eira ra máquina de fazer sofrer que encarregava homens de confeccionar chicotes — os mais duros e resistentes —, correntes, gargalheiras, anjinhos, algemas, e de realizar os castigos mais cruéis. Entre as formas de castigar escravos aqui se aplicou com freqüência o açoite de chicote, em cenas públ pú blic icas as,, tend te ndoo aind ai ndaa o cast ca stig igad adoo suas su as carn ca rnes es reta re talh lhad adas as a navalhadas e nos talhos abertos se aplicavam sal e vinagre (ibidem, passim). Entre os casos mais célebres de condenação à morte estão os de Tiradentes, Frei Caneca e Padre Tenório, os dois últimos executados em Pernambuco. (Acerca do caráter ritual de que se reveste toda execução da lei, o poeta João Cabral de Melo Neto, em Auto do frade, o demonstra muito bem. Descrevendo o que seriam os preparativos para a execução de Frei Caneca, o poeta na cena "A cela" introduz a seguinte fala: "Não é circo. E a lei que monta o espetáculo" (1988:153).)
2. Mitos, ritos, pena de morte e cultura brasileira, hoje A partir do momento em que o projeto de realização de um plebiscito sobre a instituição da pena de morte, no 106
país, paí s, apre ap rese sent ntad adoo ao Cong Co ngre ress ssoo Naci Na cion onal al,, ocup oc upou ou parte pa rte importante do debate sobre os problemas nacionais, e circula como uma alternativa para o que autoridades judiciais e meios de comunicação chamam coibir a violência, impõe-se a necessidade de uma cuidadosa reflexão sobre o problema, haja vista tudo que até aqui vimos dizendo. Disfarçado na idéia de uma consulta democrática, o pleb pl ebis isci cito to colo co loca ca nas mã mãos os da popu po pula laçã çãoo o pode po derr de dede cisão sobre a instituição legal de ato bárbaro sobre pessoas humanas: o Estado retirar a vida de indivíduos sob o seu poder. Os meios de comunicação fazem suas campanhas veladas. Programas diários da tevê e do rádio — como "Aqui e Agora", "Plantão de Polícia", "Cidade Aflita" e mesmo os noticiários diários —, ao darem ênfase ao que chamam o mal da violência, que, segundo segu ndo dão a entender, teria atacado — com seus "monstros", como dizem — repe re pent ntin inam amen ente te a soci so cied edad adee bras br asil ilei eira ra,, estã es tãoo subl su blim imiinarmente apontando a necessidade de medidas fortes, sempre repressivas, para coibir e eliminar os violentos. Apoiados no medo de cada um em particular de ver sua casa assaltada, seu carro roubado, sua filha estuprada, sua bolsa arrancada, os meios de comunicação acabam por tran tr ansf sfor orma marr a todo to doss em geral ger al em defe de fens nsor ores es de medimed idas repressivas, em que se inclui a pena de morte. O apelo diário para que se reconheça a violência presente no nosso cotidiano — dramatizada por repórteres e apresentadores —, buscando apoio na insatisfação da po pula pu laçã ção, o, acab ac abaa prod pr oduz uzin indo do a idéia idé ia de uma opinião pública interessada em medidas policiais repressivas que ponham fim a casos como os que a tevê, as rádios e os jorn jo rnai aiss noti no ticia ciam m todo to doss os dias di as,, que, qu e, tantas tan tas vezes vez es reite re itera ra-dos, passam a ser vistos como a violência real. Uma pesquisa realizada em 1991 (Folha de S. Paulo, 28.4.1991) indica que 83% da população brasileira quer 107
A realização do plebiscito sobre a adoção da pena de morte e que 60% votaria a favor da introdução dessa pena pe na,, caso ca so o pleb pl ebis isci cito to foss fo ssee real re aliz izad adoo naqu na quel elee mo mome ment nto. o. Esse dado nos informa o quanto a população acredita que é mesmo a pena de morte o remédio para acabar com o que é visto como sendo a violência. Como vimos, condicionados a acreditar na necessidade de castigos (e manipulados pelos meios de comunicação, embora sutis em suas maneiras), os indivíduos acabam por se tornar veiculadores da opinião favorável à instituição de medidas repressivas fortes. Modo pelo qual se cria o mito da opinião pública. Um dos mitos que mais serve à dominação nas sociedades contemporâneas, pois po is é nele nel e que qu e o pode po derr se apóia ap óia para par a dar ma maio iorr legi le giti timi mi-dade a suas ações. Como se trata de opinião aferida por pesq pe squi uisa sass cien ci entí tífi fica cas, s, mu muit itoo me melh lhor or.. Como não interessa ao poder buscar a origem disso que se convencionou chamar opinião pública, basta ressaltar os dados isolados da manifestação individual de cada um. Ali está a vontade soberana do indivíduo que à ciência das pesquisas sabe objetivamente registrar. Assim, esse é o modo como se conserva oculto o processo de produção da opinião (e do que se toma por vontade): proc pr oces esso so que qu e resu re sult ltaa do trab tr abal alho ho da ideo id eolo logi gia, a, com co m o vimos. O que é tomado como a opinião pública (do povo, da pólis) é, de fato, uma visão socialmente socialmente produzida a part pa rtir ir de co mo a soci so cied edad ade, e, o pode po derr e a real re alid idad adee co mo um todo aparecem à observação imediata dos indivíduos, na vida cotidia coti diana na (Bourdieu (Bou rdieu,, 1980). Evidentemente, aos que interessam a instituição da pena pe na de mo mort rte, e, no país pa ís,, mu muit itoo serv se rvee o mito mit o da opin op iniã iãoo ojjJadica, uma vez que os próprioslndividuos cttMadòs a se manifestar respondem em favor da implantação da medida, e isto não há como negar. Por essa via o pensamento conservador e o poder encontram a maneira de se 108
afirmarem como corretos, justos, democráticos e fundados na opinião da maioria. Pode-se ver assim como tão complexo é o nosso pro blem bl emaa (e co mo é gran gr ande de a am amea eaça ça que qu e pair pa iraa sobr so bree nós nó s caso venha a ser realizado o plebiscito, pois neste caso não será difícil se obter o apoio favorável da população), ainda mais quando a ele se vincula o lastro maior sobre o qual tudo isso se apoia, repousa: a eficácia simbólica da ideologia, que, por meio de mitos, fixa a raiz mais pr of un da da cren cr ença ça na nece ne cess ssid idad adee de cast ca stig igos os,, como co mo são sã o os casos da punição exemplar das torturas e da pena de morte, como vimos. Como estamos na era pós-ColIor, é certo que a pro post po staa de inst in stit itui uiçã çãoo da pena pe na de mo mort rte, e, no país pa ís,, acom ac ompa pa-nha o modelo das execuções modernas: cadeira elétrica, câmara de gás, injeções letais. Contudo, não nos sur pree pr eend nder erem emos os se, semp se mpre re tend te nden ente tess à carn ca rnav aval aliz izaç ação ão,, didi ferentes segmentos sociais brasileiros sugerirem, ou estiverem à espera, que a instituição da pena de morte, aqui, seja acompanhada da reedição da prática do suplício dos condenados. Quem sabe estejam o autor do Projeto, parte dos dominantes e parte dos dominados, imaginando a volta da roda, da forca, da fogueira e do esquartejamento, acompanhada do teatro do suplício, para o prazer de multidões sequiosas de horror. (Não está muito distante de nós, no tempo, a prática do supliciamento: no Brasil colonial foi largamente aplicado aos negros escravizados, em rituais públicos, como vimos. E demonstração melhor não há dessa sequiosidade das massas por essas epopéias curtas, em que se vêem como atores principais, do que o caso da chacina de Matupá, exibida pelas tevês com riquezas de detalhes^Os linchamentos diários,praticados nas cidades, são também outro exemplo. No ano de 1990, somente no estado da Bahia, foram linchadas cento e cinco pessoas. pes soas. E no primeiro semestre de 199 1991, 1, 109
no mesmo estado, ocorreu uma média de um linchamento a cada três dias ( Folha de S.Paulo, 18.7.1991).) Acostumados a ver na violência como aparece a violência real, as pessoas acabam por se ver impossibilitadas de desvendar as representações cotidianas sobre a violência, o discurso das autoridades, políticos e meios de comunicação quando tratam do problema. Mas o discurso do poder também se vê impossibilitado de tratar dos fundamentos da violência, uma vez que é o discurso de uma sociedade que se vê impedida de explicar a origem da violência no seu interior. Por isso, aquele discurso trata de afastar a violência como intrinsecamente ligada à estrutura da sociedade, ao sistema de dominação a que todos estão submetidos, fazendo com que a violência apareça como um acidente, um mal temporário, uma crise, devendo ser tratada como tal, a base de medidas re pres pr essi siva vas. s. Assi As sim, m, nada nad a me melh lhor or do que qu e o exem ex empl ploo do conco ndenado que paga com sua própria vida. Ainda temos, enpacífico, ordeiro tre nós, o mito de que somos um povo pacífico, — o mito da não-violência do brasileiro (Chaui, 1983). Paradoxalmente, mas por força da ideologia, os indivíduos, ao absorverem o discurso dominante sobre a violência, convertem-se em cúmplices de sua própria dominação, sem disso tomarem consciência. Ao defenderem a necessidade da pena de morte, estão defendendo a re pres pr essã sãoo de si próp pr ópri rios os.. O que qu e se torna tor na mais mai s trág tr ágic icoo quan qu an-do a manifestação parte das classes populares, uma vez que a medida repressiva visa, em primeiro lugar, a elas, pois po is exis ex iste te na soci so cied edad adee um umaa defi de fini niçã çãoo taci ta cita tame ment ntee aceiace ita, embora nunca explicitada, segundo a qual o crime hediondo, como assim chamam, é praticado pelos pobres, porq po rque ue são sã o eles el es os bárb bá rbar aros os,, pois po is são sã o igno ig nora rant ntes es,, incul in cul-tos, sem religião definida, anti-sociais, amorais, sendo os criadores de violência, portanto. As classes populares, sobretudo, vêem-se tragicamente envolvidas na sua própria repressão ao partilharem do 110
mito cio castigo exemplar, que aponta os castigos, a re pres pr essã são, o, a tortu to rtura ra e a pena pe na de mo mort rtee como co mo solu so luçã çãoo para pa ra 11111 problema que tem sua origem mascarada, dissimulada, pela representação ideológica e mítica da boa sociedade sem conflitos, harmoniosa, prejudicada quando em vez por enlouquecidos, endemoniados, pervertidos e maníacos. Com o seu pensar produzido por uma sociedade que assim se representa, os dominados não podem (no contexto da vida cotidiana e comum) ter outra visão da realidade e do mundo. Assim como acreditam que são os pode po dero roso soss os únic ún icos os capa ca paze zess de prov pr over erem em a fart fa rtur ura, a, o didi vertimento, a vida etc., acreditam também que o Estado forte (da lei da pena de morte) é o único capaz de acabar com a violência, com o crime, apresentados como quase sempre punidos com penas leves ou deixados totalmente impunes. Nasc Na scid idos os e cres cr esci cido doss em soci so cied edad ades es que qu e se apre ap rese senntam como homogêneas e harmoniosas, sem conflitos e contradições — como nos mitos —, somos todos cultuadores da Ordem, da harmonia e do bem. As sociedades humanas, numa linha de continuidade que não permite colocar nenhuma delas fora disso, tornam os sujeitos sociais — senão todos, aos menos é certo, a maioria — veiculadores do discurso da condenação do mal, em que se inclui o que se toma por violência. Assim, fica possível a sociedade (a nossa e outras) obter a adesão dos indivíduos a projetos que visam garantir o bem, a paz, a segurança e a harmonia. Ainda mais porque a impessoalidade da lei, do direito, e por extensão do Estado, consagra a sociedade como não dividida, pois a ideologia consegue fazer com que a sociedade, que é dividida de fato, apareça de direito indivisa, homogênea. E assim, por essa análise, que podemos pensar o quanto difícil seria a discussão, com a qual nos envolveríamos, caso viesse a ser realizado um plebiscito nacional que propusesse a adoção da pena de morte no país. 111
Não N ão sem razã ra zão, o, temo te moss nas cren cr ença çass em mito mi toss de cast ca stiigos a base para o surgimento de representações favoráveis à instituição da pena de morte. Não fazemos como outros que insistem em ver apenas na miséria e na crise atual da sociedade brasileira o fundamento para a origem do desejo de castigo entre as massas. Menos interessanos as análises da crise social e da miséria econômica — em que as massas foram colocadas —, que alguns tomam como causa do crescimento da criminalidade e da violência, e por força disso, causa também do nascimento de uma forte vontade da população em ver a violência eliminada — uma análise não somente cansativa porque gasta, mas antes de tudo porque carece de pertinência 1 — porq po rque ue,, a noss no ssoo ver, ver , acab ac abaa coin co inci cidi dind ndoo com os argumentos dos defensores da pena de morte, pois termina por ter nos pobres, porque foram colocados coloc ados na miséria, os violentos, os responsávei respo nsáveiss pelo aumento aume nto da delinqüência. Para-essas análl&es,-ii..accitação da £ro£ostji_dejnstituição da pena de morte viria acompanhada do desejo da popu po pula laçã çãoo de ver a viol vi olên ênci ciaa abol ab olid idaa do coti co tidi dian ano. o. Esse Es se desejo seria reflexo da crise mais geral por que qu e passa a sociedade brasileira e, se defendida pela população, seria porq po rque ue esta es ta enco en cont ntra ra-s -see em um esta es tado do de misér mis éria ia e abanaba ndono tais que acaba por se tornar imediatista. Conforme entendemos, pensar dessa maneira é não levar em conta que muito antes da miséria econômica atua a ideologia — e essa tem vida própria, não se trata de um mero reflexo das relações sociais, embora as ex prim pr imaa —, no sent se ntid idoo de faze fa zerr a todo to doss acredi acr editar tar nos mito mi toss de castigo. Para nós, essa é a razão forte do convenciI A maneira de dizer é de Michel Foucault em As palavras e as causas: uma arqueologia das ciências humanas, p. 366.
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mcnto da população quanto à necessidade da pena de morte.
A retirar pelas experiências recentes da vida nacional, i' possível concluir que as massas brasileiras, caso viesse .1 sei realizado o plebiscito proposto no Congresso Nacional, votariam a favor da pena de morte. Não porque estejam estej am ult ult rajadas, maltrat adas, desespe d esesperadas radas,, mas porque p.ulilliam, como os governantes e dominantes, da _do castigo crença na necessidade _d cast igo exemplar. exem plar. Um mito, de íTnrrtH Torça simbólica, como até aqui vimos explicando, não se tratando de mero artifício das classes dominantes, como alguns preferem pensar. Na ilusão de participarem da decisão que acaba com o crime, os dominados (e vencidos pelo poder) intentam uma desforra: num misto de nlucinação e recusa inconsciente da exclusão a que estão submetidos, imaginam tomar parte no combate dos poderoso - seus heróis — à violência violê ncia e aos violentos viol entos,, caso tomem parte na decisão da condenação dos culpados e nos rituais da execução dos réus. Daí nunca ter faltado povo para acompanhar os suplícios, as torturas preparatórias da morte. (Novamente aqui vale lembrar o poema de João Cabral, que retrata a execução de Frei Caneca: "Na procissão que está passando/há muitas damas para um preso /Fácil tomarão sua bênção/se isso estiver nos seus desejos /Mas será somente por piedade/que alugam balc ba lcõe õess no traj tr ajet eto? o?/T /Tal alve vezz seja se ja até por po r pied pi edad ade: e: mas no Carnaval têm os mesmos./A procissão é um espetáculo/como o Carnaval mais aceso./Não há música, é bem verdade,/ainda não se inventou o frevo./Mas no cortejo que assistimos/há mais luxo do que respeito./Querem ver o réu, mas de cima,/é a atração pelo que faz medo"(Melo Neto Ne to,, 1988: 19 88:164 164). ).)) Ocidente, Jean DeluEm seu História do medo no Ocidente meau observa que o comportamento da multidão em cir-
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cunstâncias de grande apelo emocional quase sempre está associado à realização de fantasias de retorno ao tempo mítico do castigo dos Deuses, da volta à idade dos heróis. Edgar Morin diz: (...) um rumor local não passa de fina camada emersa de um mito que não é nem local, nem isolado, nem acidental; que é oriundo das profundezas de um subsolo inconsciente; que, uma vez lançado, manifesta-se como uma força selvagem capaz de propagação atordoante. Suscitando ao mesmo tempo atração e repulsa, ele recusa a verificação dos fatos, alimenta-se de tudo, produz metástases em múltiplas direções, faz-se acompanhar de proc pr oces esso soss hist hi stér éric icos os,, atra at rave vess ssaa as barr ba rrei eira rass de idade id ade,, de classes sociais e de sexo... ( Apud Delumea D elumea u, 1989:155)
O trágico é que vivemos atualmente na sociedade brasileira um ambiente propício para as intenções daqueles que visam instituir a pena de morte. No contexto da cultura autoritária que caracteriza nossa sociedade, com certeza se gestam as condições propícias para uma adesão popu po pula larr a um umaa prop pr opos osta ta como co mo aque aq uela la que qu e cheg ch egou ou ao Congresso, por meio de projeto apresentado pelo ex-de puta pu tado do Am Amar aral al Neto Ne to.. Tive Ti vemo moss aind ai nda, a, mu muit itoo rece re cent ntem emen en-te, um governante que simbolizou a promessa do Estado forte — "caçou marajás", "prendeu fraudadores", "demitiu ociosos" —, que teve a capacidade de se enquadrar no modelo arquetípico do herói salvador. As imagens públ pú blic icas as das da s apar ap ariç içõe õess de Coll Co llor or se asso as soci ciav avam am mu muit itoo bem à defe de fess a da pena pe na de mo mort rte. e. Coll Co llor or reav re aviv ivou ou a fé messiânica em um Salvador, que instalaria uma comunidade de homens felizes, em que o crime e a violência não teriam lugar. Anoto aqui a presença de Frei Damião ao lado de Collor (durante a campanha eleitoral e de pois po is). ). O frei fr ei fran fr anci cisc scan anoo de B ozan oz anoo exis ex iste te no imag im agin inár ário io social do sertão nordestino como a imagem do Deus punitivo. O frade de Bozano em tudo lembra o Tribunal do 114
Santo ()fício e nos faz encarar a lembrança do tempo das fogueiras, ilos suplícios do corpo e da condenação à morte, como castigos merecidos. Esse frade foi apresentado ii sociedade brasileira como o guia espiritual do presidente da República, que abandonou a todos da nação numa tragédia, como nos mitos.
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ALÍPIO DE SOUSA FILHO é docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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que torna possível a prática de castigos nas sociedades humanas? O que leva sociedades supliciarem indivíduos acusados de crimes? Por que se aceita a condenação de pessoas à morte? Quais os mitos que ajudam a construir uma cultura do medo funda fundada da na cr c rença do c as asttigo c omo e x e m p lo < que evita o crime, a desobediência às normas, a transgressão aos tabus e aos padrões culturais? Qual a força mais forte que torna tudo isso possível? Este livro apresenta algumas idéias para a discussão dessas questões. Destaca a existência da i d e o lo g ia c omo o fenômeno que torna p os oss sível o consentimento das práticas de castigo e o consentimento da pena de morte nas sociedades. O autor entende a i d e o lo g ia como co mo a for forç ç a que mantém os indivíduos prisioneiros dos sistemas de sociedades aos quais ig o . estão es tão submeti ubmetido dos s, del de la de des stac a ndo ndo-s -se e os m it o s d e c a st ig Analisa a questão da pena de morte de modo a retirá-la do campo do discurso jurídico, deslocando-a para o c a mpo d a s análi aná lis ses sob sobrre mi mito, to, ide ideologia, ologia, ima ima ginár gináriio e rep eprresentações sociais.