1.
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0 sujeito: ' a pessoa
A indulgência de meus ouvinres e de meus leirores deverâ ser gra nd e, pois 0 assunto é realmente imenso e nao poderei, nesres cinqüenra e cinco minutas, senao vos clar uma idéia da maneira de estudâ-lo. Trata-se de nada menas que de vos explicar COrno uma das categorias do espirito humano - uma dessas idéias que acreditamos inatas - lentamenre surgiu e cresceu ao longo dos séculos e através de numerosas vicissitudes, de ra i modo que ela ainda é, mesm o hoje, fl uruanre, delicada, preciosa. e passivel de maior elahoraçào_É a idéia de "pessoa", a idéia do "Eu"_ Todos a consideram natural, hem definida no fu nd o da Sua pro pria consciênci a, perfei tamenteequip;da no fundo da moral que dela se deduz _ Trata-se de subStituir essa visao ingênua de sua hi sroria e de seu arual valor por uma visào mais precisa.
Urna palavra sobre
0
princfpio desse tipo de pesquisa
Corn isso, vereis uma arnostra - talvez inferior ao gue esperais _ dos trabalhos da escola francesa de sociologia. Dedicamo-nos de maneira muiCO especial à historia social das carego ri as do espirito huma no. Tenrarnos exp]ica-l as uma a uma, partindo sî mpl esmente, e prov iso riamenre, da 2 lisra da s categorias aristotéli cas. Descrevemos aIgu mas de suas fo rmas em aigu mas civilizaçoes e, por essa comparaçào, busca mos enco ntrar sua natureza fluida, e as razôes de esra ser assim. Foi dessa maneira qu e, ao desenvolver a noçào de mana, Huberr e eu acredita mos encomrar nao apenas 0 fundamenro arcai co da magia, mas também a forma muiw ge-
1. Duas teses da École des Hautes Études ja abo rdararn probJernas dess
raI e provavelmente muita primitiva da noçao de causa; foi assim que Hubert descreveu algumas caracteristicas da noçao de tempo; que n05so saudoso colega, amigo e discîpulo Czarnowski começou a elaborar e infelizmeme nao terminou - sua teoria do "retalhamento da extensao", isto é, de alguns aspectas da noçào de espaço; foi assim que meu tio e mest re Durkheim esrudou a noçao de todo, apos ter estudado comigo a noçâo de gêne ro. Ha muitas anoS venho preparando estudos sobre a noçào de substância, do quai publiquei apenas um trecho bastante absconso e inutil de 1er em sua forma atual. Mencionarei também as multiplas vezes em que Lucien Lévy-Bruhl abordou essas questoes no conjunta de suas obras relativas à mentalidade primitiva - em partlcular no que se refe re ao nossO terna, 0 que ele charnou a H~lma pri~itiva". Mas ele esta interessado, nao no esrudo de cada categona em partlcular, ou da que vamos esrudar, mas sobrerudo em destacar, a proposito de todas, inclusive a do "eu", 0 que hà de "pré-16gico" na mentalidade das populaçôes que pertencem à antropologia e à etnologia, e nao à historia. N osso procedimento sera mais metôdico e nos restringimos ao esrudo de apellas uma dessas categorias, a do "Eu". Isso ja sera bastante. ------Nesse curto espaço de excessiva, vos levarei a percorrer 0 mundo e as épocas, indo da Australia a nossas sociedades européias, e de historias muita antigas à de nossOS dias. Pesquisas mais amplas poderiam ser empreendidas, cacia uma poderia ser muita mais aprofundada, mas pretendo apenas vos mostrar camo se poderia organizâ-Ias. Pois minha intençao é vos oferecer, bruscamente, um catâlogo cias formas que a noçao adquiriu em diversos pontos, e mostrar de que maneira ela acabou por ganhar corpo, matéria, forma, arestas, e isto até nosSOS tempos, quando ela finalmente tarnou-se clara, nitida, em nossas cÎvilizaçôes (nas ocidentais, muita recentemente) e nâo ainda em todas. Farei apenas um esboço, darei um a primeira forma à argila. Ainda estau longe de ter explorado 0 bloco inteiro, de ter conc1uîd o a esculrura. . Assim nao vos falarei da questao lingüistica, que devena ser tratada num est~do completa. De modo nenhum afirmo que tenha havido uma tribo, uma lîngua, em que a palavra l'eu - mim" [je - moi] (vejam que a declinamos ainda corn ciuas palavras) .nâo existisse: I:ao e~pres sasse algo de nitidamente representado. Multo pela contrano, alem do pro nome que el as possuem, muitas Hnguas se destacam pelo usa ~e abundantes sufixos de posiçâo, os quais se referem em grande parte as 370 Noçào de pessoa
relaçôes que existem no tempo e no espaço entre 0 sujeito que fala e 0 objeto de que ele fala. Aqui, 0 "Eu" é onipresente, no entamo nao se exprime por "mim" nem por "eu". Mas sou um mediocre conhecedor nesse vasto terreno das Hnguas_ Minha pesquisa sera inteirarnente uma pesquisa de direito e de moral. Camo de lingiiistica, tampouco vos falarei de psicologia. Deixarei de lado tudo 0 que diz respeito ao "Eu" ) à personalidade consciente como tal. Direi apenas: é evideme, sobretudo para nos, que nunca houve ser humano que nao tenha tido 0 senso, nao apenas de seu corpo, mas também de sua individualidade espiritual e corporal ao mesmo tempo. A psicologia clesse sentido fez imensos progressos no ultimo século, de uns cern anos para Todos os neurologistas franceses, ingleses, alemâes, entre os quais meu mestre Ribot, nosso caro colega Head e outros, acumularam sobre esse ponto numerosos conhecimemos: sobre a maneira como se forma, funciona, decai, desvia-se e decompôe-se esse semido, e sobre 0 papel consideravel que ele desempenha. Meu assumo é hem diferente, e é independente. É um assunto de historia social. De que maneira, 301ongo dos sé~~los, através de numerasas sociedades, se elaborou lentamente, nào 0 senso do "eu" , mas a noçao, 0 conceito qu e os homens das diversas épocas criaram a seu respeito? 0 que quero mostrar é a série das formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das socieclades, corn base em seus direitas, suas religiôes, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades. Uma coisa pode vos indicar a tendência de minha dem onstraçao; é que vos mostrarei 0 quanta é receme a palavra filosofica "Eu" , como sâo recentes a "categoria do Eu", 0 "cuIta do Eu" (sua aberraçâo) e 0 respeito ao Eu - em particular, ao dos outras (sua norma). Classifiquemos, pois. Sem nenhuma pretensâo de reconsrituir uma hist6ria geral, cla pré-historia aos nossos dias, estudemos prirneiro algumas dessas formas da noçao de "Eu", para depois entrarmos na historia corn os gregos e constatarrnos, a partir clat, alguns encadearnentos certos. Antes, sem outra preocupaçâo exceta a 16gica, faremos um passeio por essa espécie de museu de fatas (nao gosto da palavra survivais, sobrevivêncÎas, para instiruiçoes que ainda vivem e proliferarn) que a etnografia nos apresenta.
ca.
37'
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II .
Deixo de lado, se permitis, tuda 0 que diz respeito à oriemaçào e à divisâo dos perso nagens do ritual, embora isso tenha uma gra nde importância, como jâ assinalamos alhu res; mas destaco estes dois pontas: Existência de um numero determinado de prenomes por clà; definiçào do pape! exato que cada um desempenha na figuraçào do clà, e expresso por esse nome.
0 personagem e 0 lugar da pessoa
Em cada da. encontra-se um conjunto de nomes gue sao chamados nomes de infância. Esses nomes sa.o mais t{rulos gue cognomes, Sao selecionados segundo modos sodolôgicos e di'Vinalônos, e conJen'dos na infância na qualidade de "nomes de 'Verdade" ou titulos das crianças que os receoem. Mas este corpo de nomes relacionado a qualquer um dos tOlens - por exemplo, a um dos totens animais - nao sera 0 nome do propn'o totem, e sim 0 nome do totem em suas 'Van'as condiçoes ou de SUtll partes, ou de suas funçôes, ou de seus atriOulOs, reais ou misticos. Estas partes ou fimçôes, ou atrioutos das partes ou !unçôes, sao tamoém subdi'Vididas em seis, de modo que 0 nome reJerente a um memoro qualquer do totem - por exemplo, 0 oraço direiro ou a perna do animal- correse sena 0 (cl~9.ue nào é, e~...IPp-riq, _ parte grupo setenm'onal); entao 0 nome reJerente a outro memoro - digamos, a perna ou oraço esquerdo e seus poderes etc. - pertenceria ao oeste e seria o segundo em honra; e outro memoro - 0 pé direito por exemplo - ao sul e seria o terceiro em Iwnra; e outro memoro ainda - 0 pé esquerdo - ao leste e 0 quarto em honra; a outro - digamos a caheça - às regiôes superiores e sen'a 0 quinto em honra; e outra - digamos a cauda - à regiao inJen'or e seria 0 sexLO em honra; efUjuanto 0 coraçào ou umoigo e centro do ser seria 0 primeiro assim como ûüimo em honra. Os estudos do Major Powell entre os Maslcolci e outras t,ibos deixaram muùo claro que os termos de parentesco, assim chamados, entre outras m'bos indigenas (e a regra !lào se aplicarâ menos, e tal'Ve{ mesmo mais estrùam.ente, aos Zuiii), sao anUs dispositivos para determinar a posiçào ou aulon'dade relaliva como significadas pela relaçao de 'idade, mais velho ou. mais nova, da pessoa tratada ou refen'da pela Lerma de parentesco, De modo 'lue é imposs/vel para um ZuiiiJalando corn OUlro di{er simplesmente irmào; é precisa sempre di{er irmao mais 'Velho ou mais novo, por meio de que 0 [a/ante afirma, ele mesmo, sua idade ou posiçào relau'va, É tamhém haoitualque 0 memoro de um dà chame 0 outro pelos nomes de parentesco para irmào mais velho ou irmào mais novo, lia ou soorinho elC,; mas segundo 0 dà daquele 'lue é chamado ocupe uma posiçào supen'or ou infen'or ao do 'lue 0 chama pelo termo vocati'Vo, a palavra-s/moolo para mais 'Velho ou mais novo tem de ser usada,
Os Pueblos
Comecemos pela fato do quai partiram todas essas pesquisas. Vou toma-la dos indios Pueblos, dos Zui'ii, mais precisamente os do Puebla de Zuiii, admiravelmenre esrudados par Frank Hainilton Cushing (plenamente inici: Jo aas Pueblos) e por Mathilda Cox Stevenson e seu marid o clurante muitos anos. A ob ra de1es foi criticada. Mas julgo-a segura e, em roda caso, ûnica. Nada de "muito primitivo", é verdade. As "Cidades de Cibo la" foram convertidas outrora aD cristianismo, elas conservaram seus registras batismais; mas ao mesmo têmp-o seus antigos direitos e religiàes - qua se em ('estado nativo", se podemas dizer: aproximadamente os de seus predecessores, os cliff dwelfers [moradores dos rochedos1e os habitantes da mesa até a México. Eles eram e continuaram senclo muita comparaveis em civilizaçào material e em constituiçào social aos mex icanos e aos mais civilizados do s indios das duas Américas. ":\Iéxico, esse Pueblo" , escreve admiravelmente 0 grande e tao injustamente tratado L. H. Morgan, fundador de nossas ciências. ' o documento qu e segue é de Frank H amilton Cushi ng, autor muita criticado, mesmo por seus colegas do Bureau of American Ethnology. Mas, conhecendo sua obra publicada e muito do que foi publicado sobre os Zui'ii e os Pueblos em geral, e também pela que julgo saber de um g rande nûmero de sociedades americanas, insista em considera-lo como um dos melho res descritares de sociedades de todos os tempos.
1 . Sob re l S datas respecti"as das diferemes civilizaçôes que ocuparam essa area dos hasket people, dos cliff dwellers, PO\'os que habitavam as ruinas da mesa, e enfim dos pu.eh/os (qua-
drados e circularcs), encontrar-se-a uma boa exposiçâo das hipôteses provaveis recentes cm F. H. H. RobertS 1932: 23-ss. Id. 19,0: 9·
373
372 Noçào de p essoa
.
...,
Com um laI slstema de ordenamelllo, que se pode constatar ser cudo ùso;
COm
além, mas também a renascimenta dos individuos (homens) ûnicos
um dispositivo tào simples para simbolirar esse ordellameflto (nào Gpenas se-
her~eiros dos portadores de seus prenomes (a reencarnaçào da: mulhe-
gundo
res e uma questao hem diferente), compreendereis que vernos ja entre os Pueblos, em suma, uma noçào da pessoa, do indivîcluo confundido corn seu cla: ma: ~â destacado dele no cerimonial, pela mascara, por seu tltu10, sua poslçao, seu papel, sua propriedade, sua sobrevivência e seu reap.a~ecimento na ter~a num ~e s.eus descendentes dotados das mesmas poslçoes, prenomes, nrulos, dlreuos e funçôes. .
0
l1umero de regioes e suas subdil/isoes em sua Sllcessào relat/ hl e a
sucessào de seus elemefllos e estaçoes, mas também nas cores alfibut'das a elas elc),. e, finalmente, com cal ordenamenta dos nomes correspondemel1lellle classificados e dos termos de paremesco, indicativos de posiçào mals do que de conexào consangiimea: cam cudo usa, um erra na ordem de uma cerimon ia, uma proclssào ou um conselho, é simplesmente impossivel, e as pessoas 9ue empregam tais disposiri'/os podem ser ditas ter escrù o e estar escrevendo seus Slatus e suas Leis em rodas os seus relaclol/amentas e expressoes dùirias.
Noroeste americano
Assim, por um lado, 0 clà é concebido como constituido po r um cerlO numero de pessoas, na verclade personagens; e, por outro, 0 papel de to~m outra grupo de tribos da América seria digno, neste estudo, se eu [}vesse tempo, de uma amilise aprofundada dos mesmos fatos. É 0 das dos esses personagens é realmente figurar, cada um por sua parte, a tOtalidade prefigurada do clà. tribos. do nor~este americano, cujas instituiçôes vosso Royal AnthroIsto em relaçao às pessoas e ao cla . As CCfraternidades" sào ainda pologlcallnstltute e a British Association tiveram a honra de suscitar a mais complicadas. Entre os Pueblos de Zuiii, e evidente mente entre os anâlise c~mpl eta, iniciada por Dawson, a grande ge610go, tao bem outros, os de Sai, de Tusayan, entre os Hopi, de Walpi e Mishongnov_i,' -__-ll-__-;,prossegulda, quando nao terminada, pelos excelentes trabalhos de os nomes correspondem nào simplesmente à organizaçào do cIa, a seu oas es eusauiiliares lnaios Hunt e Tate, pelos de sap ir'-,..:d~e~S~w~a~n..,t-o"n"-,-----desfile, a suas pompas, privadas e pûblicas, mas sobretudo às posiçôes de Barbeau etc. nas confrarias, naquilo que a antiga nomenc1atura de Powell e do BuLa também se coloca, em termos diferentes mas corn natureza e reau of American Ethnology chamava as "Fratemùies", as c< Secret Sociefunçao idênricas, 0 mesmo problema, 0 do nome, da posiçào social da lies", e que poderîamos corn muita exatidào comparar aos Colégios da "natividade" jurîdica e religiosa de cada homem livre e, corn mais ra~ao, religiao romana. Segredo das preparaçôes e de numerosos ritos solenes dos nobres e principes. reservados à Sociedade dos Homens (Kaka ou Koko, Koyemshi etc.), Tomarei como ponto de partida a mais conhecida dessas importantes socledades, os Kwakiutl, e me limitarei a algumas indicaçôes. mas [ambém demonstraçôes publicas - quase teatrais -, sobretudo em Zuii.i, sobretudo entre os Hopi: as danças de mascaras - em particular as Vma ressalva: como em relaçao aos Pueblos, tampouco se deve pensar em qualquer coisa de primitivo em relaçao aos indios do noroesdos Katcina, visita dos espiritos representados pelos que possuem seus direitos nesse mundo, os portaclores de seus tÎtulos. Tudo isso, que virou te americano. Ern primeiro lugar, uma parte desses indios, justamente os agora espetâculo para ruristas, estava ainda em plena vida ha menos de do n?rte, Tlingit e Haïda, falam lînguas que, segundo Sapir, sao linguas cinqüenta anos, e ainda continua vivo. [QnalS e aparentadas às linguas derivadas do tronco que se convencionou charnar prota-sino-tibeto-birmanês. E, se posso vos conta r uma de A srta. B. Freire Marecco (agora sra. Aitken) e 0 sr. E. Clews Parsons cominuam trazendo-nos informaçoes e corroborando nossos cominha:. i ~p re.ssôes de etn6grafo, se nao de gabinete, pelo menas "de nhecimentos. m use~ ,e mu~to forte a lernhrança que guardo de uma apresentaçào dos Por outro lado, se considerarmos que essas vidas dos individuos, Kw~~utl, devlda ao respeitaclo Putnam, um dos funclaclores da seçao etnolog!ea do Ameriean Museum of Na tural History: um grande barco de forças motoras dos c1às e das sociedades sobrepostas aos cHis, asseguram nao apenas a vida das coisas e dos deuses, mas a upropriedade" das coiceri mônia, corn manequins em tamanho natural, corn todos os seus pesas; e que nao apenas asseguram a vida dos homens, neste mundo e no trechos de religiao e de direito, represemava os Hama tsé, principes ca374 NOfàodep,moa
375
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..-
nibais que chegavam do mar para um rirual - certamente de casamento. Corn suas roupas muito ncas, suas coroas de casca de cedro vermelho, seus acompanhantes menos ricamente vestidos mas gloriosos, eles me deram precisamente a impressâo do que pode ter sido, por exemplo, uma China setentrional muito} muito antiga. Penso que esse barco, que essa representaçâo um tanto romanceada desapareceu; ela nâo esta mais na moda em nossos museus de etnografia. Mas 0 que importa é que esta produziu um efeito sobre mim. Mesmo as [aces indigenas lembraramme vivameme as faces dos "paleo-asiaticos" (assim chamados porque nâo se sabe onde classificar suas Hnguas). E, a partir desse ponto de civilizaçâo e de povoamento, devemos ainda contar longas e muitiplas evoIuçôes, revoIuçôes, novas formaçôes, que 0 nosso caro colega Franz Boas se es força por reconstituir, talvez um pouco apressadamente. o fato é que todos esses indios, os Kwakiutl em particular, instalaram 2 entre el es um sistema social e religioso no quaI, nu ma imensa traca de direitos, de prestaçôes, de bens, de danças, de cerimônias, de privilégios, de posiçôes, as pessoas e os grupos sociais sâo simultaneamente satisfeitos. V ê-se muito nicidamente camo, a partir das classes e dos clàs, - - - - -o=-r- ,enam-se as rrpe 'ssoas human as", e coino, a partir destas, ordenam-se os gestos dos atores num drama. Aqui, todos os atores sâo teoricament~ todos os ho mens livres. Mas, desta vez, 0 drama é mais do que estético. E religioso, e ao mesmo tempo côsmico, mito16gico, social e pessoa!. Primeiro, coma entre os Zufii, todo individuo em cada cIa: tem um nome - ou até dois nomes - para cada estaçào, profana (verao) (WiXsa) e sagrado (inverno) (LaXsa) . Esses nomes sao repartidos entre as (amîlias separadas, as "sociedades secretas" e os cHis gue colaboram nos ritos, nos momentos em que os chefes e as familias se enfremam nos inûmeros e interminaveis potlatch, do s quais busquei al hures dar uma idéia. Cada d a tem duas séries comple[as de nomes pr6prios, ou melhor, de prenomes, uma corrente, a outra secreta, mas esta nao é uma série simples. Pois 0 p renome do individuo, no caso 0 nobre, muda corn sua 2. C f. Davy 1922; Mauss [1 923-2.-11 192 5 (cf. Terceira pane, supra), onde n50 pude insistir estava fora do meu assuma - sobre 0 falo da "pessoa" e de seus direitos, dcveres e poderes religiosos, sobre a sucessào dos nomes elc. Nem Davy nem eu insistimos sobre 0 fata de que o porlatell comporta, além das trocas de homens, mulheres, heranças, contratos, bens, prcslaçoes riruais, em primeiro lugar, e em panicular, danças, iniciaçoes, e ainda: êxtases e passcssocs pelas espfritos elernos e reencarnados. Tudo, mesmo a guerra, as lutas, é fliro apenas entre porraJores du~es titulos hueJùin'os, que encamam euas aimas.
376 !"oçào de pessoa
i~ade e a~ funçoes que ele c~mpre em decorrência dessa idade. 3 É 0 que dl z u m d~s~urs~ do clà das Aguias, isto é, é verdade, de uma espécie de grupo pnnlegJado de c1às privilegiados:
o hâbiro de
llào mudar os nomes começou ha muito tempo / / Oemaxt!
Mali:, 0 ancestal do flumaym G. ig.flgarn do / Q 10moyâEye, fit os tronos das Aguias; e esses passaram para os nurnayms. E 0 dono do Mme WiltseEgstala dit / «agora, baixo {segundo
Q
rlOSSOS
cI/efes receberam tudo, e eu vou direto para
posiçào na lzierarquia)". / Assim eie dit, quando ele doa
sua.s propriedades: pois eu
VOu
apellas nomear os nomes / / de urn dos chefes
prin.cipais dos numayms das / tribos Kwakiutl. Eles nunca mudam seus nomes desde a começo, / quando os primeiros hurnanos exirtiam no mundo; pois os nomes nào padern sair / da lam /lia dos che/es principais dos numayms, ape1la.s para a mals J'elho da proIe do chefe.
o que esta em jogo em mdo isso é portanto mais do que 0 prestigio e a autoridade do chefe e do clà, é a existência mesma destes e dos antepassad os que se reencarnam nos deœmores de tal direito, que revivem no corpo dos que carregam seus nomes, cujo perpe tuidade é garantida pelo rituaI em todas as suas fases. A perpetuidade das coisas e das aImas 56 é garantida pela perpetuidade dos nomes dos individuos, das pessoas. Es[as agem apenas como representantes e, inversamente, sao responsaveis por todo 0 seu cla, suas familias, suas tribos. Por exemplo, uma posiçao, um poder, uma funçao religiosa e estética, dança e possessao,parapher_ na!ia e cobres em forma de escudos - verdadeiras "moedas" de cobre-, moedas insignes dos potlatch presentes e futuros, tudo isso se conquis ta pela guerra: basta matar seu possuidor - ou apoderar-se de um dos aparatos do ritual , vestes} mascaras - para herd ar seus nomes, seus bens, seus cargos, seus antepassados, sua pessoa - no semido pleno da palavra . ~ Assim adquirem-se posiçôes, bens, direiros pessoais, coisas e ao mesmo tempo 0 espirito individual deIas. Toda essa imensa mascarada, todo esse drama e esse balé complicado de êx[ases, dizem respeito tamo ao passado quanto ao futuro, sao uma prova do oficiante e uma prova da prese nça nele do naualaku (ibid.: 39 6 ), elemento de força impessoal, ou do antepassado, ou do deus pessoaI, em todo casa do poder sobre-humano, espirituaI, defini3. Boas /92/: 431. 4. A melhor exposiçào geral de Boas encontra-se em: 1895b: 396- ss .
377
.,.,
tivo. 0 potlatch vitorioso, 0 cobre conquistado, correspondem à dança irnpecavel (cf. ibid., p. j6j) e à possessào bem-sucedida (ver ibid. , p. 6j8, jOj, 46j etc.). Nao dispo mos de tempo para desenvolver todos esses assuntos. De um ponto de vista quase aned6tico, assinalo-vos uma insrituiçao, um objeto comum desde os Nootka até os Tlingit do norte do Alaska: é 0 uso das notaveis mascaras corn portinholas, duplas e mesmo triplas, que se abrem para revelar os dois ou trés seres (totens superpostos) que 0 portador da mascara personifica .5' Podereis ver algumas~ muito belas, no British Museum. E tambérn os famosos totem poles, os cachimbos em pedra-sabào etc.) todos esses objetos que vira ram ago ra mercadoria para turistas trazidos de trem ou de navio, podem ser assim analisados. Um cachirnbo que julgo haida, e ao quaI nào dei antes muita atençao, representa precisamente um jovem iniciado corn seu chapéu pontudo, aprese ntado par seu pai-espirito corn chapéu, portando a orca - e abaixo do iniciado, ao quaI estào subordinados em ordem descendente: uma rà ~ certamente sua mae, e a corvo, certamente seu avô (materno). o caso importantissimo d_as mudanças de nome ao longo da vida sobretudo nobre - nao ira nos ocupar; seria preciso ëx-por toda uma série de fatos curiosos de substituiçâo: 0 filho - menor - é representado temporariamente par seu pai, que recolhe provisoriamente 0 espirito do avô falecido; e teriamos que fazer aqui toda uma demo nstraçâo da presença, entre os Kwakiutl, da dupla descendéncia uterina e masculina, e do sistema das geraç6es alternadas e defasadas. De resto, é muito sig nificativo que, entre os Kwakiutl (e seus parentes mais pr6ximos, Heitsuk, Bellacoola etc.), cada momento da vida seja nomeado, personificado, por um novo nome, um novo titu lo, da criança, do adolescente, do adulto (masculino e feminino); a adulw também possui um nome coma guerreiro (na ru ra lmente, nao as mulheres), coma principe e princesa, coma chefe e chefa, um nome para a festa que eles oferecem (hornens e mulheres) e para 0 ceri monial particular que lhes pertence, para sua idade de retira, seu nome da sociedade das focas (dos retirados: sem éxtases nem possessoes, sem responsabilidades nem beneficios, exceto os das lembranças do passado); enfim, sâo nomeados: sua I4 socieclade secreta" na quaI sào protagonistas (urso - fre5. A uhima portinhola abre-se, se n50 para a face inteira, ao menos pa ra a boca, e na maio-
ria das vezes para os olhos e a hoca (cf. id. ibid.: 628, fig. 195).
qüente entre as mulheres, que sào represemadas par seus ho mens ou seus filhos-.lobo, Hamatsé (canibais) erc.). Sào ainda nomeados: a casa do chefe (corn seu telhad o, vigas. portas, aberturas, decoraçàes, serpente corn dupla cabeça e face), a canoa cerimonial. os càes. É precisa acrescemar às listas expostas e~ "Ethnology of the Kwakiml"6 que os pratos, os ga~fo~~ ~s cabres, ~~o e brasonado, animado, faz parte da persona do propnetano e dafomlüa, das res de seu clà. Escolhemos os Kwakiutl, e em geral os înd ios do noroesre, po rque eles rep resemam os pomos maximos, os excessos que permitem pe rceber m~lhor os fatas do que la onde. nào menas essenciais, estes se mostram amda pequeno: e nào evoluîdos. Mas convém saber que uma gran~e ~a~t: dos amencanos da Pradaria, os Sioux em particular, tém mstltulçoes semelhames. Assim os \Vinnebago, estudados por nosso colega Radin. têm justamente essas sé ri es de prenomes determinados por clâs ~ famûias, que os repartem segundo uma certa orrl.em , mas sempre preclsame~te segundo uma reparriçào lôgica de atributos ou de forças e n.aturezas, baseada no miro de origem do clà. e que fun dam ema a capacldade desse ou daquele de assumir seu personagem.
1 . i)
,
1
- . Eis aqui um exemplo dessa origem dos nomes de indi viduos que RadIn oferece em detalhe em sua aurobiografia exemplar, Crashing Thunder [19 27]: Em nosso clà sempre 'lue uma cn'ança ia ser nomeada, era meu pai 'lue 0 fatia. Eie agora transmitiu esse direito a meu irmào.
o criador (Earthmaker), no prindpio,
enviou quatro homens do mundo de
cima e~ quando eies chegaram a esta terra, tudo a 'lue acomecla cam eies era utili{ado.para fater nomes pessoais. Foi isso 'lue !laSSO pai nos COlltOIl. Do [a ta de eles l"trem de cima origil/ou-se
0
nome Vern-de-cima; e coma t'ieram com o
espiritos temos 0 !lame Homem- espirito. QUQI/do yieram, caiu uma gama, dar' os nomes Andando-no-nevoeiro, Vem-no-ne yoeiro, Chuya-miûda. Ditem 'lue quando eles yieram para Lago-de-dentro ( l.f7ithin-Iake) eles descansaram junlo a um arbuslO e dar' 0 nome Dobra-o-arbuslo; e como eles descansaram jUlltO a um caryaiho, hâ 0 nome Aryore-carva/ho. Como nossos pâssaros vie-
6.. B.oas 1921:. 79.1 -80 1. 7. Ver Radin (/916. v: 246) , para os nom es do c1à do I3Malo, e as pagmas segulmes. para os oUlros clàs; ver sobrerudo a repaniçào dos quarro a seis primeiros prenomes para os homens e 0 mesmo para as mulheres . Ver outras listas (p. 22.1) que datam de DOrSf\·.
., 378 Noçào de pessoa
379
ram com os pdssaros-troviio cemos um nome Pdssaro-trovào, e como esses sào
Aru nta, os Loritja, os Kakadu eIc.). Mesmo entre os Arunta e os Loritja, esses espiritos reencarnam-se corn g rande precisào na te rceira geraçào (avô-new) e na quinta, na quai antepassado e trineto sao homônimos. Também aqui se trata de urn truto da descendência uterina cruzada corn a masculina. - E. par exernplo, pode-se estudar na repartiçào dos nomes por individ uos, par clà e classe matrimonial exata (oito classes arunta), a relaçao desses nomes corn os ancesrrais eternos) corn os ralapa, sob a forma deles no momento da concepçao, os fetos e crianças que eles engendram a partir des se dia, e encre os nomes desses ralapa e os nomes de adultos (que sao, em particular, os das funçôes cumpridas nas cerimônias de clà e trillais). II A arte de todas essas repartiç6es é nao apenas culminar na religiào, mas também definir a posiçào do ind ividuo em seus direitos, seu lugar rama na tribo camo nos ritos. Finalmente, se, par razôes que veremos em seguida, falei sobretudo de sociedades corn ma.scaras permanentes (Z uni, Kwakiutl), convém nao esquecer que as mascaradas tempora rias sao, na Australia e nOutros lugares. simplesmeme cerimônias de mascaras nao permanentes. Nelas o homem fabrica-se uma personalidade sobreposta, verdadeira no casa do-rirual,-fingida-no"caso do jogo. Mas, entre uma pintura facial ou corpo ral e uma vestimema e uma mascara, ha someme uma diferença de grau, nenhuma diferença de funçào. Tudo resultou, aqu i e acola, numa represemaçào extatica do antepassado. Alias, a presença ou a auséncia da mascara sao antes traças da arbitrariedade social, hist6rica, cultural, coma foi dito, do que traças fundamentai s. Assim, os Kiwai, os Papua da ilha de Kiwai , possuem admi raveis mascaras, que ri\'alizam até mesmo corn as dos Tlingit, da Amé rica do Norte - enquanro seus vizinhos pouco afastados, os Marind-Anim, nào têm senao uma unica mascara imeirameme simples, mas realizam festas de confrarias e de c1as corn as pessoas enfeiradas da cabeça aos pés, tornadas irreconhecÎyeis corn rantos enfeites. Concluamos esta primeira parte de nossa demonstraçao. Observase evidenremente que um imenso conjunto de sociedades chegou à no-
os animais que causam trovaes, temos 0 nome Ele-que-trovoa. Temos tamhém Anda-com-passadas-poderosas, Treme-a-terra-com -sua-força, Vem-comvenlo-e-granizo, Raios-para-todos-os-Iados, S6-um-raio, Relâmpago, Andanas-nuvens, Ele-com-longas-asas, Alinge-a-arvore. Os pâssaros-troviio vieram com cerriveis trovoadas. Tudo sohre a terra, animais, plantas, cudo, é coherto pela dgua da chul'a. Tro voadas terriveis ressoam por wda a parte. De cudo isso um nome foi derivado, e este é 0 meu nome: Choque-do-troviio [Crash.i ng Thunder} .8
Cada um dos nomes de pâssaro-trovao em que se dividem os diferentes momentos do totem trovao, é a nome de um dos antepassados perpetuamente reencamados. (Ternas inclusive9 a historia de duas reencarnaçôes.) Os homens que os reencarnarn sao intermediârios entre 0 animal totêmica e a espirito guardiao, de um lado, e as coisas brasonadas e os ritos do da ou grandes "medicamentos", de outro. E todos esses nomes e heranças de personalidades sao determinados par revelaçôes, cujos limites o beneficiario conhece antecipadamente, indicados par sua avo ou pelas --- - - - - - - -anci6es:--En contramos-um-pouco-por-toda-a-América;-se-nao-es mesmo" fatos, pelo menos 0 mesmo gênero de fatos. Poderiamos prosseguir essa demonstraçao no mundo iroquês, algonquino etc.
Australia Convém voltar por um instante a fatas mais sumarios, mais primitivos. Duas ou três Îndicaçôes dize m respeito à Austrâlia. Também aqui 0 d a de modo nenhum é representado coma um ser inteiramente impessoal, coletivo, 0 totem, representado pela espécie animal e nao pelas individuos - homens, de urn lado, animais, de outro. 1O Sob seu aspecta homem, ele é a frlito das reencarnaçôes dos espiritos dispersas e que renascem perpetuamente no d a (isso é verd ade para os
çâo de personagem, de papel cumprido pelo individuo em dramas sa8. Ver 0 mesmo fato, diferentemente disposto, em Radin 19 16: 194. 9. P. Rad in, Crashing Thunder (1927: 41). 10. Formas de totemismo desse gênero encontram-se na A.O.F. [Âfrica Ocidenlal Francesa1 e na Nigéria, 0 numero de peixes-boi e de crocodilos de um determinado braço morto de rio correspondendo ao numero de viventes. Noutros lugares, provavelmente, os individuos animais sào nomeados como os individuos humanos.
11. Sobre essas très séries de nomes, Hr os quadros genealôgicos (A runta) em Slrehlow 19 15, Caderno de ilustraçôes. parte V. Podem ser acompanhados corn inleresse os casos dos
Jerramba (formiga de mel) e dos Malbanka (portadores do nome do ncrôi civîlizaclor e fundador do clà do gato seIYagem) que reaparecem varias vezes em genealogias muito scguras.
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380 Noçào de pessoa
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grados, assim como ele desempenha um papel na vida familiaL A funcào criou a formula e isso desde socîedades muito primirivas até as nossas. - Instituiçôes coma as dos "retirados", das focas kwakiutl, ou um costume coma 0 dos Arunta, que relegam à condiçâo das pessoas inconseqüentes aquele que nao consegue mais dançar, "que perdeu seu Kabara", sao inteiramente tipicas. Um outro ponto de vista, que apenas mencionarei, é 0 da noçao de reencarnaçào de um numero determinado de espiritos nomeados, nos corpos de um numero dererminado de indivîduos. - No entanto, B. e C. G. Seligmann publicaram corn razao os documentas de Deacon, que observou 0 fato na Melanésia. Rattray jâ 0 havia observado a proposiro do nlOro shantin. 12 E vos anuncio que Maupoil descobriu nisso um dos elementos mais importantes do culto do Fa (Daomé e Nigéria). - Mas dei>
Ill.
A persona Iatina
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Todos sabeis 0 quanto é normal, classica, a noçào de persona larina: mascara, mascara tragica, mascara rirual e mascara de ancestral. Ela aparece no inicio da civilizaçào latina.
Quero vos mosrrar de que maneira ela se tornou eferivamente a nossa. 0 espaça, os tempos, as diferenças gue separam es sa origem desse fim sao consideraveis. Evoluçoes e revoluçàes dispàem-se, hisroricamente desta vez, segundo datas precisas, e par causas visiveis que iremas descrever. Essa categoria do espirito vacilou em alguns pontos, noutros lançou profundas raizes. -- ---------~~~~~-.-~~~------~~~----------~~~~---~~~_iI_'C--~~---M:esm_c""hrre a~ grandes e amigas sociedades que foram as primei-
xo tudo isso de lado. Passemos da noçào de personagem à noçào de pessoa e de "Eu".
ras a tomar cansciência dela, du as a inventaram para, por assim dizer, dissolvê-Ia quase definitivamente, ja a partir dos ûltimos séculos gue precederam nassa era. 0 exemplo delas é instrutivo : é 0 da fndia bramânica e budica, e a da China antiga.
A [ndia
12. Ver 0 artigo de Herskovits 193T 287-96. Um bom exemplo de reaparecim~nto de ~om~s em paises bantu foi assinalado por E. \V. Smith e A. Dale, 1920; C. G. e B. Sebgmann Jamais perderam essa questao de vista. 382 Noçào de pessoa
A India pareee-me ter sido a mais antiga das civilizaçôes que teve a noçao do individuo, de sua consciéncia, digo eu, do "Eu"; a ahamkara, a "fabricaçao do eu", é 0 nome da consciência individual, aham = eu (é a mesma palavra indo-européia qu e ego). A palavra ahamkara é evidentemente uma palavra técnica, criada por alguma escola de sâbios videntes, superiores a todas as ilusôes psicologicas. 0 samklzya, a escola que justamente deve ter precedido 0 budismo, afirma 0 carater compostO das coisas e dos espiritos (samklzya quer dizer precisamente composiçao), considera que 0 "Eu" é algo ilusorio; quanta ao budisma, nu ma primeira parte de sua historia ) ele decretava ser esse apenas um composta, divisîvel, separavel de skandha, e buscava seu aniqu ilamento no mange. .1
As grandes escolas do bramanismo dos Upani.xades - seguramente anteriores ao samkh)'a assim como às duas formas ortodoxas do Vedama que 0 seguem - partem rodas da liçâo dos '\'identes", até 0 dialogo de Vixnu mostrando a verdade a Arjuna~ na Bhagavad Gita: "tat tvam asi", 0 que equivale quase a dizer verbalmente em inglês: "that thou art" _ ru és isso (0 universo). Alias, 0 ritual védico posterior e seus comentarios ja estavam impregnaclos dessa merafisica.
A China Da China, sei apenas 0 que meu colega e amigo Marcel Granet consentiu em ensinar-rne. Em nenhum lugar, ainda hoje ~ 0 individuo, seu ser social em particular, é mais levado em coma; em parte alguma ele se classifica mais fortement"". 0 que nos revelam os admiraveis trabalhos de Granet é a força e a grandeza, na China antiga~ de instituiçôes comparaveis às do noroeste americano. A ordem dos nascimentos,. a hier~r quia e 0 jogo das classes sociais fixam os nomes, a forma de vlda do 111dividuo, sua "face", como ainda se diz . n6s). Sua individualidade é seu ming, seu nome. A China conservOu as noçoes arcaicas. Mas, ao mesmo tempo, retirou da individualidade todû carater de ser perpétuo e indecomponivel. 0 nome, 0 ming, é um coletivo, é uma coisa vinda de alhures: 0 antepassado correspond ente 0 usou, assim como volta ra a usa-Io 0 descend en te do portador. E quando se fi losofou sobre 0 individuo, quando em certas metafîsicas se tentou exprimir a que ele é, foi dito que é um composta de shen e de kwei (ainda dois coletivos) nesta vida. Taolsmo e budismo tarnhém rocaram nesse pontO, e a noçao de pessoa nao se desenvolveu mais. Outras naçoes conheceram ou adotaram idéias sem el hantes. Sao raras as que fizeram da pessoa humana uma entidade completa, independente de qualquer outra, exceto de Deus. A mais importante é a romana. A nosso ver, foi em Roma que essa liltima noçao se forrnou.
384 Noçào de pessoa
IV.
A persona
~o contrario dos hindus e dos chineses, os romanos - os latin os, melhor dlzendo - pa~ecem ser aqueles que estabeleceram parcialmente a noçao de ~e:s~a, CUJO nome permaneceu exatamente 0 da palavra latina. Bem no InlCIO, samos transportados aos mesmos sisternas de fatos que os anteriores, mas ja corn uma forma nova: a "pessoa" é mais do que um elemeoto de organizaçào, mais do que um nome ou 0 direito a um personagem e a uma mascara ritual, ela é um fato fundarnental do direito. Ern direito, os juristas dizem: ha somente as personae, as res e as actiones: esse prindpio ainda governa as ~ivisôe~ de nossos c6digos. Mas trata~~~gui romano. Corn alguma ousadia, eis camo posso conceber essa historia. 1 Tuda indica que 0 sentido origina l da palavra fosse exc1usivamente "mascara". N aturalmente, a explicaçao dos etimologistas latinos - persona viodo de per/sonare, a mascara pela (per) quaI ressoa a voz (do ator) - foi mventada logo em seguida. (Embora se distinga entre persona e persona muta, 0 personagem rnud o do drama e da pantomima.) Na verdade a palavra nao parece ser exatamente de origern latina , mas sim etrus~a , camo outros nomes em na (Porsenna, Caecina etc.). Meillet e Ernout (Dictionnaire .Etym~logique) compara rn-na à palavra mal transrnitida farsu, e Benvemste dlsse-me que ela pode vir de um empréstimo tomado pelos etruscos do grego rrp6crwTIov (perso) . 0 faro é que, materialmente,
1. 0. sociôlogo e 0 historiaclor do DireilO sempre deparam corn 0 obstaculo de nào termos pr~tlcameme (omes autêmîcas do mais amigo direito: s6 alguns fragmentos da época dos Reis (~uma) e algun~ t~echos da Lei das DOte Tâ/mas, c a seguir faros registrados muiro p~s[Cnormeme. Do dlrelta romano completa, s6 comcçamos a formar uma idéia cena atraves de texlOs de dircito, devidameme restiru fdos ou recuperados, nos séculos 1II e Il antes de noss~ era, e mesmo mais tarde. No entamo. precisamos imaginar um passado do Direito e da Clda.de. Sobre esta e sua primeira histôrü!. podem ser consultados os livras de Pigan iol e CarcopIno.
mesmo a instituiçào das mascaras, e em particular das mascaras de ancestrais, parece ter tido por nûcleo principal a Etrûria. Os etruscos Linham uma civilizaçào de mascaras. Nào ha comparaçao entre a guanriclade de mascaras de madeira, de terracota - as de ce ra desapareceram -. a guantidade de efîgies de ancestrais adormecidos e sentados gue se encontraram nas escavaçôes do vasto reino tirreno, e as enco ntrad as em Roma, no Lacio ou na Magna Grécia - alias, em minha opiniào) em sua maior parte de ratura etrusca, Mas, se nao foram os latÎnos que invemaram a palavra e as instituiçà es, ao menas foram eles que Ihe deram 0 semido primitivo que veio a ser 0 nosso. Eis agui 0 processo. Em primeiro Jugar, encontramos neles rraços definidos de insriruiçôes do gênero das cerimôni as de clàs, mascaras, pintu ras, em que os atores se enfeitam conforme os nomes que trazem. Ao menos um dos grandes riruais da Roma mais antiga corresponde exatamenre ao tipo comum cujas formas descrevemos. É 0 dos Hirpi Sorani, dos lobos do [monte] Soracte (Hirpi = loba em lingua samnira). lrpini apelfatinomù/e lupl~ quem irpum dieU/Il Samnites; eum enim dueem seeuti agros oeeUpa )/ère, ensina Festo, 93, 2).2 As pessoas das familias que portavam esse tÎtulo caminhavam sobre carvôes ardentes no samuario da deusa Feronia, e gozavam de privilégias e de isençào de impostos. Sir James Frazer supôs ser 0 resta de um anrigo cIa, transforma do em confra ria, que usava nomes, peles e mascaras. E mais: parece que estamos aqu i em presença do miro mesmo de Roma. Aeea Larentia, a velha, a mae dos Lares, feste jada nas Larenrais (dezembro), nao é outra senao 0 indigitamen.tum, 0 nome secreta da Loba romana, mae de Rômulo e de Remo (Ovidio, Fastes, l, 5) -SS), 3 Um clà, danças, mascaras, um nome, nomes, um rirua1. 0 fa te, ad mira, est~ um pouco dividido em dois elementos: uma confra ri a que sob revive, um mita que relata 0 que precedeu a pr6pria Roma. Mas os dois formam um rodo complete. 0 estudo de outros colégios romanos pe rmi ti ria OUI ras hip6teses. No fundo, samnitas, etruscos, latinos ainda viv iam na atmos-
2. Alusào clara a uma fo rma de 100em-lobo do deils do Irigo RoggenwolfJ (germ.). A pala. vra hirpex orie;inou herse (cf. Lupatum), Ver Meillel e Emoul! 1931. 3. Ver os comema rios de Frazer, ad. loc., cf. id. ibid., verso 4SJ, Acca lamemando·se sobre os reslOS monais de Remo mOrio par Rômulo - Fundaçào das lemuria (resla sinisna dos lêmu res, das aimas dos mor· tos sangrentos) - jogo de palavras entre Remuria/ Lemuria.
386 NOfao de pessoa
(edra q.ue a~abam~s ~~ ~eixar: personae, mâscaras e nomes, dire itos indiualS a rItos, pnvIleglos. D" - d d d d al a no?ao e pessoa hà somente um passo. Ele talvez nào foi a a e il,ma so vez. Penso que lendas coma a do cônsuI Bruto e seus fi lhos, ~~ ~I m do direito do paLer de matar seus filhos, seus sui, traduze~ a aqulslçao da persona pelos filhos ainda em vida do . p 1 d 1b ..' pal. ensoqueare_ vo ta a pee, 0 pleno dlrelto de cidadania que adquiriram d . d filhos das familias senatoriais _ rodos os memb 1b d- epolS os d" "T' d ros p e eus as gentes fOl eClslva. l a os os homens li vres de Roma foram cidada ) dos t ' . os romanos toI v~ram a persona CIvil; alguns tornaram-se personae religiosas' um~s .ma~caras, nomes e rituais permaneceram ligados a algumas f:mi~as pnv!legladas dos colégios religiosos. VI
al
Um Outro costu,me chegou aos mesmos fins, 0 dos nomes, renop mes e cognomes. 0 cldadào romano tem di reiro ao nOmen ao e ao ' praenomen cognomen, que sua gens lhe atribui. Prenome que traduz 0 . d ' P r exemPlo, a orde m de naSClmento a antepassado que 0 usou . P n.mus, Secund N e u_s. 0n: (nomen - numen) sagrado da gens. Cognomen sobrenome ~I-_ _ "T(,nao .apehdo~~ par exemplo Naso, Cicero etc.4 Um senatus-~onsulto den-;1i=o 'h:-:ac..v"ia=o::.d;éi-'re"ic_- - - -- - - ermlnou (evlC1entememe aeve ter fiavldo abusos) que = ta de tomar, de usar 0 prenome de Outra gens que nao a sua 0 co rem um h' ,. . 'gnomen a Outra lstona, acabou-se por confund ir eognomen 0 sobre nome que se pode usar, corn a imago, a mâscara de cera moldada sobre a face, 0 np6awnov do ances[ra l mono e conservado no vestibulo da casa
:' DeverÎamos desem'olver mais essa questào das relaçôes em Roma entre
Imag~, e entre esta e, 0 no~~: nom~n,prat.nome" e, sobrerudo: cognomen . 'Nao te:~:r~ot::e =
~ara IS5O. A pess~a e condmo, stalUS, munus. Condùio é a posiçào hierarquica (po P ua persona Epammondat. 0 segund . r ex. secunda vida civil M ~ , 0 pecsonagem depols de Epaminondas), Slalus é 0 estado . un~ sao ~s ~rgos e as. honrarias na vida civil e milita r; tudo isso é determi_ nado pel
leia-se n~sn;:~s: ;r;~::;:ed:~~:~n,a~~ pela pO,si.çào fa~iliar, a classe, 0 nascimento. fala da origem do nome de Augus,o (',"', \ e c~me{ntano de SIr J. G. Frazer, a passagem gue . v. 47v' c 1 v 589) po .. ,. , r que 0 tavlO Augusto n50 q uis IOmar 0 ,'orne cl e R'omu 10. nem cl e' Qu" , . (Q. , preferindo um g . ' , IfIno UI tenu flOC nume", Romulus anU fuit) Encomramos af t:~:e:umls:e 0 cara.ler sagrado de :odos os Outras (cf. Frazer, ad. v. 4 0)~ Iho d '" teona romana do nome. Asslm também em Virgilio: Marcelo 0 fi e Auguslo, Ja e nomeado no limbo onde seu "Pai" Enéias ver-se igual menre a consideraçào do (ù~/u.r gue é mencionad 0 ve. - Aqul deH~na Inscrese qu e para ele " 1 0 nesses versos. EmoU! me dis'. ) a propna pa avra lem uma origem etrusca. Do meSmo mod _ gramallcal de "pessoa" u ' 0, a noçao deveria ser cOtlsiderada. q e empregamos alnda, persona (grego np6awrrov, gramaticos), A
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de famîlia. 0 usa dessas mascaras e esta tuas deve ter sida reservado por muito tempo às familias patrî~ias, e de faro - ainda mais que de direitopareee nunca ter se estendido muita na plebe. Sào antes usurpadores, estrangeiros que adotam cognomina que nào Ihes pertenciam. A lias, as palavras cognomen e imago estào, por assim dizer, indissoluvelmenre ligadas em fôrmulas quase correntes. Agui esta um dos fatos - em minha opiniào, tîpico - de que parti para wdas essas pesquisas, ,e que encontrei sem procurar. Trata-se de urn indivîduo suspeito, Stalenus, cOntra 0 quaI Cicero advoga em favor de Cluentius. Eis a cena. Tum appe/at hilari vu/tu hominem Bu/bus, ut placidissime potest. "Quid lU, Înquù, Paete?" Hoc enim sibi Staienus cognomen ex imaginibus Aeliorum delegerat ne sese Ligurem fecisset, nationis magis quam generis Utl cognomine videretur.;
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[Entao, Bilbo chama 0 homem de rosto risonho, do modo mais brando possÎvel . "E agora tu, Peto*?", diz. Corn efeito, Estaleno** escolhera para si este sobrenome, tendo como referência as esta tuas da familia Élia, temendo, se se apresentasse coma Ligure, que parecesse usar antes o nome de sua naçao do que 0 de sua famllia.] Paerus é um cognomen dos Aelii, ao quaI Staienus, um ligure, nao tinha nenhum direito, e que ele --usrrrpava-p-ara-esc-ondersua-nacionalidade e indicar uma outra descendência que nao a sua. Usurpaçao de pessoa, ficçao de pessoa, de tlrulo) de filiaçâo. Um dos mais belos e autênticos documentas, assinado no bronze pelo imperador Claudio (assim como nos chegaram as Tâ~uas de ~11ciTa de Augusto), a Tcibua de Lyon (anno ..j.8), camendo 0 d lscursa Imperial sobre 0 senatus-consulto de jure hOl1orum Gallis dando, concede aos jovens senadores gauleses, recentemente admitidos à curia, 0 direita às imagens e aos cognomina de seus antepassados. "Agora eles nada mais tedo a lamentar. Como Persicus, meu caro amigo [que fora obrigado a escolher esse cognome estrangeiro... na falta desse senâtu~ -. consulto], e que agora pode inter imagines majorum SUOTum Allobroglcl nomen legere ('escolher seu nome Allobrogicus entre as imagens de seus ancestrais')." Até 0 fim, 0 Senado romano concebeu-se camo composto par um numero determinado de patres que representavam as pessoa s, as imagens de seus antepassados. 5. Pro C/Ilenlio, 72 . * Peto é nome proprio masculino e, também, adjetivo que significa zaroIho. ** Élio Estaleno Pero, juiz do processo de Opiâncîo tratado no Pro Cluêncio_ [S_T.]
388 Noçào de pessoa
. A propried ade dos -l'I!lIu/acra e das imagines (Lucrécio, 4, 29 6 ) é 0 atnbuto dapersollna (cf. Pllnio. 35,43, e no Digeste, I9 . J. '7, final). Paralelarnenr e. a pal ana persona, personagem artificial, mascara e papel de comédia e de tragedia. representando 0 embus te, a hipocris ia o.es~ranho ao :'Eu" - P6rosseguia seu c~minho: Mas a cararer pessoal do dlreno estava tundado, e pa;,:ona tambem havla se tarnado sinônimo da verdadeira narureza do indi \-iduo.7 Par Outra lado, a direiro à persona é fundado. Somente 0 escravo esta exclufdo del e. Servus fion habet personam. Ele nao tem personalidade, nào possui seu corpo, nào rem antepassados, nome coonomen bens ,. Il '0 , propnos. 0 ve 10 direito ge rmânico ainda a distingue do homem livre -.~ Leibeigen, proprierario de seu corpo. Mas, no momento em que os direi~ tos dos saxoes e dos suevos sào redigidos, se os servos oao possufam seu corpo, ja possuiam uma al ma. que 0 cristianismo lhes deu. Mas antes ~e chegar ao cristianismo, convém falar de um outro e~riquecimento do quai parric iparam nao apenas os latinos, mas tambem seus colaboradores gregos. seus mestres e intérpretes. Entre fil6sofos greg~s? nobres e legi sladores romanos~ é tQdo_um_Outra edifîci0- _____ _ que se consrruiu.
6: Outr~s exemplos de usurpaçao de prauwmina, Sue!onio, N ero., 1. 7. Assim lu:um, dlz flaluram et pUsol/am meam , e ft! rsoflam seeluis nOutra parte_
Cicero, Ad At-
v. A pessoa: fato moral
Explico: penso que esse trabalho, esse progresso, foi fei to sobretudo corn a ajuda dos est6icos, cuja moral voluntarista, pessoal, padia enriquecer a noçâo ro mana de pessoa, e mesmQ se enriquecer ao mesmo tempo que enriquecia 0 direito. J Creio, mas infelizmente possa apenas começar a provar, que nao hâ como exagerar a influência das escolas de Arenas e de Rodes sobre 0 desenvolvimento do pensamento moral la tino - e, inversamente, a influência dos fatos romanos e das necessidades da educaçào dos jovens romanos sobre os pensa dores gregos. Pollbio e Cicero jâ 0 testemunham, assim como Sêneca, Marco Aurélia, Epicteto - - - - -e-outros,nrais-tarde-. - - - - - - - - -- - - - - - - - A palavra rrpoowlIOV tinha claramente 0 mesmo sentid o que persona, mascara; mas eis que ela pode rambém significar 0 pe rsonagem que cada um é e quer ser, seu carater (as duas palavras estao ligadas corn freqüência), a verdadeira face . Ela rapidamente adquire, a partir do século II antes de nossa era, 0 sentido de persona. Ao traduzir exatamente persona, pessoa, direito, ela co nserva ainda um sentido de imagem superpos-
aurônomo, livre, responsâvel. A consciência moral introduz a consciè ncia na concepçào juridica do direitO . .Às funçàes, honrarias. cargos e direitos, acrescenta-se a pessoa moral co nsciente. Sou aqui raI vez mais ousado, porém mais clara qu e BrunschYicg que, em sua grande obra Le Progrès de fa conscience [1 927], abordou com freqü ências esses assu mos (em particular, l , p. 69-ss). Para mim ; as palavras qu e design am primei ro a consciência, depois a consciência psicol6gica, a O'u\'Ei8'latç _ TO auvEIOÔÇ, sào verdadeiramenre est6icas: elas parecern técnicas e rraduzem nitidamente COJ1ScllLS, conscielllia do direito romano. Pode-se mesmo pe rceber, entre a antiga es toicismo e 0 da épaca greco-latin a, 0 progresso, a mu dan ça, definirivamente realizada na época de Epicteto e de Marco Aurélio. D e um se nrido primiti\·o de cûmplice, "que viu corn" - auvoloE -, de testemunha, passa u-se ao sentido da "consciência do bem e do mal". De usa carrente em larim ~ a palavra adquire por fim esse sen tido entre os gregos. em Diodoru de Sicîli a, em Luciano, em Dionisio de Halicarnasso1 e a consciência de si tornou-se 0 apanâgio da pessoa moral. Epicteto guarda ainda 0 senrido das duas imagens sobre as quais trabalhou essa ci\·ilizaçào, quand o escreve 0 qL!e _____.___ ._ Marco Aurélio cita: "esculpe tua mascara". impôe teu Hpe rso nagem" , teu "tipo" e teu "carâter", quando Ihe propunha 0 que ve io a ser nosso exame de consciência. Renan percebeu a imponância desse momento da vida do Espirito. Mas a noçào de pessoa carecia ainda de base metafisica segura. É ao cristianismo que ela deve esse fundamenro.
ta; por exemplo, a figura da proa do barco (entre os celtas etc.). Mas significa também personalidade humana ou mesmo divina. Tudo depende do contexto. Estende-se a palavra npoawrrov ao individuo em sua natureza nua, arrancada toda mascara, conservando-se, em contraposiçao, 0 semido do artificio : 0 sentido do que é a intimidade dessa pessoa e 0 sentido do que é personagem. Tudo soarâ de outro modo entre os clâssicos latinos e g regos da mora l (século II a.C. a século IV d.C .): rrpoawTCOV sera tao-som ente persona e , 0 que é fundamental, acrescenta-se cada vez mais u m sentido moral ao sentido juridico, um sen tido de ser conscien te, inde pend ente, 1. Sobre a moral esroica, tanto quanta estou informado, 0 melhar livra é ainda Bonhafer
18 94.
390 Noçào de pessoa
39 1
.,
VI.
A pessoa crista
Foram os cristâos que fizeram da pessoa moral uma entidade metafîsica, de pois de terem sentido sua força religiosa _N ossa pr6pria noçào de pessoa humana é ainda fundamentalmente a noçào crista. Aqui, nao farei senào seguir 0 excelente livro de Schlossmann (1906).' Este percebeu muita hem - depois de outros, mas melhor que outras - a passagem da noçào de persona, homem investido de um eSlado, à noçào de homem simplesmente, de pessoa humana. A noçao de "pessoa moral") alias, havia se tornado de tal modo clara que, jâ nos primeiros dias de nossa era, e antes em Roma, em rodo - - - -no-Império;-ehrse-impunhadnrda-s-:rs-p - =alicla-d-esfittfclas que cl1afua- mûs ai nda por esse nome de pessoas morais: corporaçôes, fundaçôes religiosas etc., que passaram a ser "pessoas". A palavra Ttp6awJt?v a~ de: signa até nos Processos e Constituiçôes mais recentes. Uma un,lversztas ~ uma pessoa de pessoas - mas, como uma cidade, como Roma, e uma C01 sa, uma entidade. Magistratus gerù personam ~iYùatis, diz clara~ente Cîcero (De Off., 1, 34). E von Carolsfeld examma e comenta mUlto bem a Epistola aos Gâlatas, 3, 28: "Jâ nao sois, um [rente ao outro, nem j~deu, nem grego, nem escravo, nem livre, nem homem, nem mulher, pOIS todos sois um, Elç ,em Jesus Cristo." Estava colocada a questào da unidade da pessoa, da unidade da Igreja, em relaçào à unidade de Deus, elç . Ela foiresolvida apos numerosos debates. É toda a historia da 19reja que se na preclso reconstltlllr aqui (ver Suidas - s. Y. e as passagens do famoso Discurso da Epifania de Sao Gregorio de Nazianza, 39, 630, A). Sao as querelas Trinitâria, Mono(jsita, que continuarâo a agitar os espirÎcos por muito tempo, e que a 1. Hen ri Lévy-Bruhl indicou-me ha bastante tempo esse livro e, desse modo, facili tou toda cssa dcmonstraçào. Ver também a primeira parte do prim eiro volume de M.L.1. von Carols[eld. Cesclll"c/ue der Jurislischen Person .
Igreja resolveu refugiando-se no mistério divino, mas rambém corn um a firmeza e uma clareza deci sivas: Unltas Ùl tres personas, ulla persona in duas llalUras - diz definitivamente 0 Co ncÎlio de Nicéia. Unidade da s três pessoas - da Trindade - e uni dade da s duas naturezas do Cristo. É a partir da noçào de UlIO que a noçào de pessoa é criada _ acredico nisto hâ muito tempo - a propôsito das pessoas divinas, mas simultaneamente a propôsito da pessoa humana, subsrância e modo: corpo e alma, consciência e arc. 2 Nào comentarei mais nem prolongarei esse es tudo teolôgico. Cassiodoro resume corn precisào: persona - sUhSlGmia rationalis indivl'dua (Ps VII). A pessoa é uma substância racional indivisîvel, individuaP Falrava fazer dessa subsrância raci onal individual 0 que ela é agora, uma consciência e uma categoria.
Isso foi a obra de um longo trabalho dos filosofos, que tenho someme alguns minuros para descrever. 4
2. Ver as notas de Schlossmann , op.cit.: 6s Ctc. 3. Ver 0 CQncurs/.l.S de nu sticu s. 4. Sobre essa histôria, essa revoluçào da noçào de unidade, have ria ainda muito a dizer. Ver em particular 02" volume de Progrès de la ConscÎence de Brunschvicg [19 27J.
392 Noçào de pessoa
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VII.
A pessoa, ser psico16gico
Ao resumir um certo numero de investigaçoes pessoais e inumeras opiniàes das quais se pode fazer a historia, escusar-me-ao se lanço aqui mais idéias do que provas. A noçào de pessoa haveria de sofrer ai nd a uma outra transformaçào para tarnar-se 0 que ela se tarllOu hâ menas de urn século e meio, a categoria do Eu. Longe de ser a idéia primordial, inata, claramente inscrita desde Adào no mais fu ndo de nasso ser, eis que ela continua, até quase 0 nosso tempo, lentamente a edificar-se, a c1arificar-se, a especificar-se , a identificar-se corn 0 conh ecimento de si, corn a consciência psicoI6gka-. - - - --.---. - ..__. ----Todo 0 longo trabalho da 19reja, das 19rejas, d os te610gos, dos filôsofos escolâsticos, dos fil6sofos do Renascimento - sacudidos pela Refo rma _, produziu mesmo um certo atraso, e obstaculos para criar a idéia que ago ra julgamos clara. A mentalidade de nossOs antepassados até a século XVlI, e mesmo até 0 final do século XVIII, é atormentada pela questào d e saber se a alma individual é uma suhstância ou se é sustentada po r um a subsrância - se é a narureza do homem ou se é apenas uma das duas naturezas do homem; se é una e indivisive\ ou divisivel e separave l; se é li vre, fonte absolu ta de açôes, ou se é determinada 'e esta encadead a pa r outros destinos, po r uma predestinaçao. Pergunta-se corn ansiedade de onde ela vern, quem a criou e quem a dirige. E, no debare de seitas, grupos e g randes instituiçoes da Ig rej a e das escolas fil osOficas, das universidades em particular, nao se vai muitO além do resultado estabelecido desd e 0 século tV de nossa era. - 0 concilio de Trenta pôe fim, felizmenre, a polêmicas inûreis sobre a criaçào pessoal de cada alma. D e resta, quando se fala d as fu nçôes precisas da alma, é ao pensamento , ao pensame nto discursivo, claro, dedutivo, que Renascimenta e Descartes se dirigem para co mpreender sua natureza. E esta que conrém revolucionâ ri o Cogito ergo sum j é Ela que constitui a oposiçao es-
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pinosista da "extensao" e do "pensamemo". Apenas uma pa rte da consciência é considerad a. Mesmo Espinosa l conservou ainda sobre a imortal idade da alma a idéia antiga pura. Sab emos gue ele nao crê na subsisrência apos a morte de uma outra parte da alma sena a a gue é ani i'nada pela "amor intelectuai de Deus". No fundo, ele repete Mai mônid es, gue repetia Aristoteles (De an., 408, 6 cf. 430 a, Gen an. Il, 3, 7)6 b) . Somente a al ma poéti ca pode ser eterna, pois as duas outras aimas, a vegetati\'a e a sensitiva, estao necessari arnente ligadas ao carpo, e a e ne rgia do corpo nao penetra no voüç . - E, ao m es mo tempo, par uma oposiçào naru ral qu e Brunschvicgl evidenciou bem, é Espinosa, melhor gue D escartes, e melhor que 0 prop rio Leibniz, porque colocou antes de tudo 0 problema érico, gue rem a visao mais corre ra da s re laçoes da consciência individual corn as coisas de Deus. Nao foi entre os cartesian as, mas eITI OutrOs me ios, que 0 problema da pessoa que é apenas consciência enconr rou sua soluçao. Nao se poderia exagerar a importância dos movimentos sectarios, duranre os séculos XVlt e sobre a formaçâo dt?j,ensamento polftico e filoséfico. Neque se as questèes da liberdade ind ividual, da consciência individual, do direito de comunicar-se diretamente corn D eus , de ser um sacerdote para si mesmo, de ter um D eus inrerio r. As noçoes dos Irmaos Morâvios, dos puriranos, dos wesleyanos, dos pietistas, for mam a base sobre a quaI se estabelece a naçao: pessoa = 0 Eu; 0 Eu = a consciência - gue é sua categoria primordial. Tudo isso é relativamen te recente. Foi preciso que Hume revolucionasse tudo (depois de Berkeley, qu e havia começado) para dizer que, na alma, havia apenas eSlados de cOflsciéncia, "percepçôes"; mas ele acabava po r hesirar di ante da noçao de " Eu ") coma categoria fund amental da consciência. Os escoceses acl imataram melhor sua s idéias. É so mente corn Kant que ela adqu ire forma precisa. Kant era pietista, swedenhorguiano, aluno de Tetens, que foi fi losofo medioc re mas psic6 logo e te6logo experientej 0 "Eu" indi visivel, ele 0 descob ria a seu
1. Élica, Va pan e, proposiçâo
XL. Corolario, proposiçào XXIII e cscolio. cm relaçao corn: pro e esc61io, proXXXVII! e csc6lio, pro XX I X, pro XXI. A noçào de amor inrelecrual vem de Leâo, Hebreu, fl orentino e plalônico. 2. Op.CiL, 1: 182-SS. 3. Blondel Jembra-rne 0 interesse das notas de Hume, nas quais este coloca a questào da relaçào consciéncia-eu. En.saio sohre 0 ~ntendimenLO humano: idemidade pessoal (1912). XXX IX
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39,
394 Noçào de pessoa
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redor. l\.ant colocou, mas sem solucionâ-Ia. a 'Iuestâo de saber se 0 "Eu", das leI/, é uma categoria. Entlm. 'Iuem respondeu que todo fata de consciência é um fata do "Eu ", 'Iuem fundou toda ciência e tada açào sobre 0 "Eu", foi Fichte. Kant ja ha\'ia feito da consciência individual: do carâtel' sagrado da pessoa humana. a condiçao da Razào pcatica. Foi Fich te~ que fez dela, também, a categoria do "Eu", condiçào da consciència e da ciência, da Razào Pura. Descie entào, a revoluçào das mentalidades se com pletou, temos cada um nos50 "Eu", eco das D eclaraçoes dos Direitos que haviam precedido Kant e Fichte.
VII.
Conclusao
De uma simples mascarada à mascara; de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um individuo; deste a um ser corn valor metafisico e moral; de uma consciência moral a um ser sagrado; deste a uma forma fundamental do pensamento e da açào; foi assim que 0 percurso se realizou. Quem sabe quais serao ai nda os progressos do Emendimento sobre esse ponto? Que Iuzes projetarao sobre esses recentes problemas a psicologia e a sociologia, ja avançadas, mas que devem se des envol ver ainda mais? Quem pode mesmo dizer que essa "categoria", que todos aqui -----jt.~-'iCBë
4. Fichte! S!O- !!. Um breve e excelentc resumo desse rexlO pode se r lid o em Xavier Léon 19 21.: 101-09.
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