LEVI-STRA LEVI- STRAUSS, USS, C. (1 (19 975 75). ). A ef efic icác ácia ia s i mb mbó ó lica . Rio de Ja Jane neir iro o : Te Temp mpo o Brasileiro.
CAPÍTULO X
A EFICÁC EFIC ÁCIA IA SIMBÓLICA (*) O primei.ro grande texto mágico-religioso conhecido, pro veniente de cultura sul-americana, que acaba de ser publicado por po r W assen ass en e Ho Holm lmer, er, langa urna nova luz sobre certos cer tos as as pectos da cu cura ra xamanís xam anística, tica, e coloca coloca proble pro blema mass de inte in terp rpre retatagao teórica que o excelente comentario dos editores nao basta certamente para esgotar. Nós desejaríamos retomar aqui o seu exame, nao na perspectiva lingüística ou americanista na qual o texto foi sobretudo estudado (2), mas para tentar por em evidencia suas implica.q5es gerais. Trata-se de um longo encantamento, cuja versao indígena ocupa dezoito páginas, divididas em quinheníos e trinta e cinco versículos, recolhido de um velho informante de sua tribo pelo indio Cuna Guillermo Haya. Sabe-se que os Cuna habitam o territorio da República do .Panamá, e que o lastimado Erland Nord No rden ensk skió ióld ld Ibes Ibes hav havia ia con consagr sagrado ado urna atengáo ateng áo p arti ar ticu cula lar; r; chegou mesmo a formar colaboradores entre os indígenas. No caso que nos interessa, é após a morte de Nordenskióld que Haya fez chegar a seu sucessor, o Dr. Wassen, um texto redigido na língua original e acompanhado de urna tradugao es panhola, á revisáo revis áo do qual Ho Holm lmer er devia ded dedicar icar todos tod os os seus cuidados. (1) Éste És te artigo, dedica dedicado do a Raymond Raymond de Saussure, foi fo i puRenm e de l ’H i stoi r e blicado, sob o título L’efficacité symbolique, na Renm des religions, t. 135, n.° I, 1949, pp. 527. Wassen , M i el ga-la or th e W ay (2) Nils M. H olmer e H enry Wassen o f M u u , a r uede uede cin e son son g f r om th e Cu n as of Pa P a n a m a , Goteborg, 1947. 215 21 5
O objeto do canto é ajudar um parto difícil. Éle é de um emprégo relativamente excepcional, visto que as mulheres indígenas da América Central e do Sul dáo á luz mais fácil mente que aquelas das sociedades ocidentais. A intervengo do xamá é, pois, rara q se realiza na falta de éxito, a pedido da parteira. O canto se inicia por um quadro da perplexidade desta última, descreve sua visita ao xamá, a partida déste para pa ra a ch choq oqaa da pa partu rturie riente nte,, sua chegada, seus prepar pre parati ativo vos, s, que consistem em fumiga^oes de favas de cacau queimadas, invoca9<5es, e confec^áo das imagens sagradas ou nuchu. Essas imagens, esculpidas ñas essencias prescritas que lhes dáo a eficácia, representam os espíritos protetores, que o xamá faz seus assistentes, e d,os quais toma a direqáo para conduzi-los á morada de Muu, potencia responsável pela forma^áo do feto. O parto difícil se explica, efetivamente, porque Muu ultrapassou suas atribuiqoes e se apoderou do pitrba ou "alma” da futura máe. Assim, o canto consiste inteiramente numa busca: busca do purba perdido, e que será restituido após inúmeras peripecia peri pecias, s, tais como demoligáo de obstáculos, vitór vit ória ia sobre animais ferozes e, finalmente, um grande torneio realizado pelo xamá e seus espíritos protetores contra Muu e suas filhas, com co m a ajud a judaa de chapéus mágicos, mágicos, cujo peso estas últimas sáo incapazes de suportar. Vencida, Muu deixa descobrir e liber tar o purba da doente; o parto se dá, e o canto termina pela enunciado das precauqóes tomadas para que Muu náo possa evadir-se apósi seus visitantes. O combate náo foi empenhado contra a própria Muu, indispensável á procria<;áo, mas somente contra seus abusos; urna vez que estés foram retificados, as rela^óes se tornam amistosas, e a despedida d,e Muu ao xamá quase se equivale a um convite: “Amigo nele, quando voltarás a me ver?” (412). Empregamos até aqui, em lugar de nele, o termo xamá, que pode parecer improprio, já que a cura náo parece exigir, da parte do oficiante, um éxtase ou urna passagem a um se gundo estado. Contudo, a fumaqa do cacau tem por primeiro objeto “fortificar suas vestimentas” e de “fortificá-lo”, de “ tomá-lo tom á-lo bravo bravo para afrontar afron tar Muu” Muu ” (65-66) ; e sobretu sobretudo, do, a classificaqáo Cuna, que distingue entre diversos tipos de mé dicos, mostra bem que a potencia no nele tem fontes sobrena 21 2 1 6
turáis. Os médicos indígenas se dividem em nele, inatuledi e absogedi. Essas últimas funçôes se referem a um conhecimento de cantos e de remédios, adquirido pelo estudo e verificado por ex exam ames es;; ao passo que o talento tale nto do nele é considerado como inato, e consiste numa visao que descobre imediatamente a causa da doença, ou seja, o lugar do arrebatamento das forças vitaiá, especiáis ou gérais, pelos maus espíritos. Pois o nele pode mobilizar estes para fazê-los seus protetores ou as sistantes (3). Trata-se pois, efetivamente, de um xamá, mesmo se sua intervençâo no parto nao oferece todos os caracteres que acompanham habitualmente esta funçâo. E os nuchu, e s pírit pí ritos os prote pr oteto tores res que vém se encarn enc arnar, ar, ao apelo do xamá, xamá , nas figurinhas que èie esculpiu, recebem déle, com a invisibilidade e a videncia, niga, “vitalidad^”, “resistencia” ( 4 ) , que fazem déles nelegcm (plural d 0 nele ) , ou seja “ para o serviço serviço dos homens”, “sêres à imagern dos homens” (235-237), mas dotados de podéres excepcionais. Tal como o resumimos sumáriamente, o canto parece ser de um modélo bastante banal: o doente sofre porque perdeu seu duplo espiritual, ou mais exatamente um de seus duplos partic pa rticula ulares res,, cu jo co conj njun unto to constituí cons tituí sua su a força vital (nós (n ós re re tornaremos a éste ponto) ; o xamá, assistido por seus espíri tos protetores, empreende urna viagem ao mundo sobrenatural para pa ra arra ar ranc ncar ar o duplo do espirito maligno que o captur ca pturou ou e, restituindo-o ao seu proprietàrio, assegura a cura. O interèsse excepcional de nosso texto nao reside ueste quadro formal, mas na descoberta —que sobressai sem dúvida de sua leitura, mas pela qual H olm ol m er e Wasse Wa ssenn merecem, merecem, contudo, todo tod o o cré cré dito— de que M u -I gala, isto é “o caminho de Muu” e a mo rada de Muu, nâo sâo, para o pensamento indígena, um iti neràrio e urna morada míticos, mas representam literalmente a vagina e o útero da mulher grávida, que percorrem o xamá e os ntccku, e no mais profundo dos quais êles travam seu combate vitorioso. (3)
E. N o r d e n s k i o l d ,
An A n H isto is to r ic a l a n d E th n o log lo g ica ic a l S u rs s en e n (Com vey of thè Cuna Indiami, editado... por Henry W a ss p a r a tiv ti v e E th n o g r a p h ic a l S tu d ie s , 10), Goteborg, 1938, pp. 80 ss. ( 4 ) Id., Id ., pp. 360 ss.; H o l m e r e W a s s e n , pp. 7879.
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E sta st a interpretaçâo se funda antes de tudo numa análise da noçâo de purba. O purba é um principio espiritual di ferente do niga, que d,efinimos acima. Ao oontrário do primeiro, o segundo nao pode ser se r roubado de seu possuidor poss uidor ; e somente os humanos e os animais o possuem. Urna planta, urna pedra, tém um purba, mas nâo tém n i g a ; dá-se o mesmo com o cadáver; e, na criança, o niga só se desenvolve com a idade. Parece pois que se poderia, sem demasiada inexatidao, traduzir niga por “força vital” e purba por “duplo” ou “alma”, compreendendo-se que essas palavras nao implicam urna disiinçâo entre o animado e o inanimado (tudo é animado para os Cuna), mas corresponden! antes à noçâo platónica de “idéia” ou de “arquétipo”, de que cada ser ou objeto é a realizaçao sensível. Ora, a doente de nosso canto perdeu mais do que seu p u r b a ; o texto indígena lhe atribuí febre, “quente vestimenta da doença” (I, e p ûssim ssi m ) e urna perda ou enfraquecimento da vista, vista, “ ex extra travv iada ia da.... . adormecid adormecidaa sobre sobre a vereda de Muu Puklip” (97), e sobretudo, ela declara ao xamâ que a in terroga: “Muu Puklip veio a mim, e ela quer guardar meu nigapurbalele para sempre” (98). Holmer propóe traduzir niga por força física e purba (lele) por alma ou essência, don de: “a alma de sua vida” (5). Avançar-se-ia talvez em dema sía, sugerindo que o 'niga, atributo de ser vivo, resulta da existencia, neste, nao de um, mas de diversos purba funcional mente ment e unidos. Contud,o ontud,o,, cada part pa rtee do corpo cor po tern seu purba parti pa rticu cula lar, r, e o niga parece ser exatamente, no plano espiri tual, tua l, o equivalente da noçâo de organis orga nismo mo : do mesmo modo que a vida resulta do acórdo dos órgáos, a “força vital” náo seria senáo o concurso harmonioso de todos os purba, cada um presidindo o funcionamento de um órgáo particular. Com efeito, O' xamá xam á náo recup rec uper eraa somente o ni gapur bal el e: sua descoberta é ¿mediatamente seguida da descoberta, situada no mesmo plano, de outros purba, que sáo os do coraçâo, dos ossos, dos dentes, dos cábelos, das unhas, dos pés (401-408 e 435-442). Poder-se-ia ficar surpréso de náo ver aparecer, nesta (5) (5 ) 21 2 1 8
Loe. cit. ci t.,,
p. 38. n.° 44.
lista,'o purba que governa os órgaos mais afetados: os da geraçâo. Como sublinharam os editores de nosso texto, é que o purba do útero út ero nao é considerado como como vvii tima, mas co como mo responsável pela desordem patológica. Muu e suas filhas, as muugan, sao —Nordenskióld já o havia indicado— as forças que presidem o desenvolvimento do feto e que lhe conferem seus km*ngin, ou capacidades ( 6). Ora, o texto nao faz nenhum nh umaa referencia referen cia a essas atrib a tribuiçôe uiçôess positivas1. Muu aparece apare ce ai como um fator de desordem, urna “alma” especial que capturou e paralisou as outras “almas” especiáis, e destruiu assim a cooperaçâo que garantía a integridad,e do “corpo principal” {cu {cu er po j efe em espatihol, espatihol, 430, 430, 435) e de onde tirar tir araa seu niga. Mas ao rnesmo tempo, Muu dev devee perma per manece necerr no lugar lug ar : pois a expediçâo, libertadora dos purba, corre o risco de provocar a evasáo de Muu pelo caminho deixado aberto provisoriamente. De onde as precauçôes, cuja minudência preenche a segunda part pa rtee do canto. O xa xam m á mobiliza os Senhores Senh ores dos animais anima is ferozes para guardarem o caminho, os rastos sao misturados, estendem-se rêdes de ouro e de prata e, durante quatro dias, os nelegm vigiam e batem seus bastoes (505-535). Muu nâo é pois u m a ' forç fo rçaa essencialmente essencialment e má, é urna força transv tra nsviad iada. a. O parto difícil se explica como um desvio, pela “alma” do úte ro, de tôdas as outras “almas” das diferentes partes do corpo. Uma vez estas libertadas, a outra pod,e e deve retomar a colaboraçâo. Sublinhemos desde já a precisáo com que a ideolo gía indígena delineia o conteúdo afetivo da perturbaçâo fisio lógica, tal como pode aparecer, de maneira nao formulada, à consciencia da doente. Para atingir Muu, o xamâ e seus assistentes devem se guir uma rota, “o caminho de Muu”, que as múltiplas alusoes do texto permitem identificar da mesma maneira. Quando o xamá, acocorado sob a réde da doente, terminou de esculpir os nuchu, estes se erguem “à entrada do caminho” (72, 83), e o xamá exorta-os nestes termos: A doente jaz em sua rede diante de vos; seu tecido branco está estirado, seu tecido branco se move va garosamente. (6)
E . N o r d e n s k i ó ld l d , loe. cit., pp. 364 ss.
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O fraco corpo da diente está estendido; quando éles alumiam o caminho de Muu, éste escorre, como sangue; o corrí mentó se derra de rrama ma sob sob a réde, como como sangue, todo vermelho; o branco tecido interno desee até o fundo da térra; no meio do branco tecido da mulher, um ser humano desee (84-90). Os tradutores dáo o sentido das duas últimas frases como duvidoso; mas éles reenviam ao mesmo tempo a um outro texto indígena publicado por Nordenskióld, que náo deixa subsistir nenhum equívoco sobre a identificado do “branco tecido in terno” com a vulva: sibugua molul arkaali
blanca tela abriendo abri endo
sibugua molul akinnaii
blanca tela ex extend tendiend iendoo
sibugua molul abalase tulapurua ekuanali
blanca tela centro cen tro feto caer haciendo ( 7). 7) . O obscuro obsc uro “ caminho d, d,e Muu M uu”” , todo todo ensangi ens angiient ientado ado pelo pelo par p arto to difícil, difícil, e que os nuchu devem reconhecer ao claráo de suas vestimentas e chapéus mágicos é, pois, incontestávelmente, a vagina vagina da do doent ente. e. E a “morada “ morada de de Muu”, Mu u”, a “ fonte fonte turv tu rvaa ” onde ela reside, corresponde exatamente ao útero, já que o in formante indígena comenta o nome desta morada Amukkapit- r y a w i l a em térmos de omegan purba amurrequedi, “a turva menstruaqáo das mulheres”, também denominada, “a profunda, sombría fonte” (250-251) e “o sombrío lugar interior” ( 8) (32). (7) (7 )
pp. 607608; H o l me r e W a s s e n , loe. cit., p. 38, 38, ns. ns. 3539. 3539. (Em espanhol, espan hol, no original origin al francés fran cés — Nota cit» T.). t i i p y a por “turbilháo” parece forjada. (8) (8 ) A tradu^áo tradu^áo de ti Para certos indígenas sulamericanos, como aliás ñas línguas ibéricas (cf. portugués, ólho d ’á g u a ) , um “olho d’água” é urna fonte. 2 2 0
sk i ó l N o r d e n sk
d,
Ice. Ice. cit. ci t.,,
Nósso texto tex to oferece pois urtt rtt cará ca ráte terr original, orig inal, qtle o faz faz merecedor de um lugar especial entre as curas xamanísticas habitualmente descritas. Essas constituem tres tipos, tipos, que nao nao Sao, ademais, mutuamente exclusivos: quer seja que o órgáo ou o membro doentes experimentem fisicamente urna manipulagáo, ou sugáo, que tem por objeto extrair a causa da doenga, geralmente urna espinha, um cristal, urna pluma, que se faz aparecer no momento oportuno (América tropical, Aus tralia, trali a, Alasca) Alasc a) ; quer seja, como como entre os Araucanos, que a cura se estabelega em torno de um combate simulado, realizado na cabana, depois em céu aberto/contra os espíritos nocivos; seja enfim, por exemplo, entre os Navaho, que o oficiante pro nuncie encantamentos e prescreva operagoes (instalagáo do doente sobre as diversas partes d,e urna pintura tragada sobre o solo com areias e pólens coloridos) dos quais nao se perceba a relagáo direta com a perturbagáo especial que se trata de curar. cur ar. Ora, Or a, em em todos ésses ésses casos, casos, o método terapéuti tera péutico co (que (qu e se sabe sabe ser freqüentemente freqüentemente eficaz) eficaz) é de inte in terp rpre reta tadd o difícil: difícil: quando acomete diretamente a parte malsá, é por demais grosseiramente concreto (em geral, pura fraude) para que se Ihe reconhega um valor intrínseco; e quando ele consiste na re petigáo de um ritua rit uall freqüe fre qüentem ntemente ente muito muit o ab abstr strato ato,, na naoo se chega a compre com preende enderr sua incidencia sobre a doen doenga. ga. É cómodo cómodo desembaragar-se dessas dificuldades, declarando que se trata de curas cur as psicol psicológi ógica^ ca^.. Mas éste termo term o permanecerá vazio vazio ddee sentido, enquanto nao se defina a maneira pela qual representagoes psicológicas determinadas sao invocadas para combater perturb per turbagoe agoess fisiológicas, fisiológicas, igualmente bem definidas. O ra, ra , o texto que analisamos fornece uma contribuigáo excepcional á solugáo d,o problema. Éle constitue uma u ma medicagáo purame pura mente nte psicológica, psicológica, visto vist o que o xamá nao toca no co corpa rpa da doente e nao lhe administra remédio; mas, ao rnesmo tempo, éle póe em causa, direta e explícitamente, o estado patológico e sua sed se d e : diríamos, de bo bom m grado, que que o canto constitue uma m a- nipulagao psicológica do órgáo doente, e que a cura é esperada desta manipulagáo.
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Gomecemos por estabelecer a realidade e os caracteres desta manipulado; pesquisaremos em seguida quais podem ser seu firn e sua eficác eficácia. ia. Fica-s Fic a-see inicialmente inicialme nte chocado, ao co cons nstat tatar ar que o canto, canto, cujo tema é urna luta dramática dram ática en entre tre espi espi ritos protet pro tetore oress e espir es pirito itoss malfazejos malfaz ejos pela reconq rec onquis uista ta de urna “alma”, consagra uni lugar muito restrito à a^ào pròpriamente dita di ta:: ern ern dezoito dezoito páginas de texto, texto , o toraeìo torae ìo ocupa menos de urna urna,, e a entrevista entrevis ta co coni ni Muu Puklip Pukl ip exatamente exatam ente duas. Ao contràrio, os preliminares sào muito desenvolvidos, e a descriqao dos preparativos, do equipamento dos nuchu, do itineràrio e dos sitios sitios é tratad tra tadaa com com urna grande gran de riqueza de detalhes. Tal Ta l é o caso, no inicio, para a visita da parteira ao xamà, a conversalo da doente com a primeira, depois desta com o segundo, é reproduzida duas vézes, pois cada interlocutor repete exatamente a frase do outro, antes de responderrespo nder-lhe lhe : A doe doente nte diz à p arte ar teira ira:: “ Certamente, eu estou vestida com co m a quente vestimenta vestime nta da doenga” ; A parteira part eira responde à doente doente : “ Tu estás, estás, certamente, ves tida com a quente vestimenta da doen<;a, assim também eu te escutei”. ( 1 -2 ). Pode-se acentuar (9) que éste procedimento estilístico é corrente entre os Cuna, e que èie se explica pela necessidade, dos povos limitados à tradiqào orai, de fixar exatamente pela memòria mem òria aquilo aquilo que fo foi dito. E contudo, c ontudo, ele se aplica aqui, nao sòmente às palavras, palavr as, mas aos meios : A parteira dà urna volta dentro da cabana ; A parteira procura pérolas; A parteira dà urna volta; A parteira pòe um pé diante do outro ; A parteira toca o solo com seu pé; A parteira coloca o outro pé para a frente; A parteira abre a porta de sua cabana ; a porta de sua ca bana estal es tala; a; A parteira sai. . . (7-14). (7-14 ). (9) (9 ) 22 2 2 2
Holmer e Wàssen, loc. cit..
pp. 6566.
Esta descriqao minuciosa de urna salda se repete na chegada á casa do xamá, na volta á casa da doente, na partida do xamá e na chegada déste último; e de vez em quando, a mesma descrigáo é repetida duas vézes nos mesmos termos ( 37-39 e 45-47 45-47 reproduzein 33-35). 33-3 5). A cura cometa, poi pois, s, por um histó rico dos acontecimentos que a precederam, e certos aspectos, que poderiam parecer secundários (“etitradais” e “saidas”), sao tratados com grande luxo de detalbes, como se fóssem, dir-se-ia, filmados filmados “ em cámara cám ara lenta” lenta ” . Essa técnica técnica se encontra no con junt ju ntoo d,o texto,' mas nao é aplicada em nen nenhum humaa p a rte rt e táo sistemáticamente como no inicio, e para detscrever incidentes de interésse retrospectivo. Tudo se passa como se o oficiante tratasse de conduzir urna doente, cuja atengáo ao real está indubitávelmente diminuida — e a sensibilidade sensibilidad e exacer exa cerbada bada — pelo sofrimento, a reviver revi ver de maneira muito preciisa e intensa urna situado inicial, e a perceber déla mentalm men talmente ente os menore men oress detalhes. Com efeito, efeito, esta esta situado introduz urna série de acontecimentos da qual o corpo e os órgáos internos da doente constituirlo o teatro suposto. Vai-se, pois., passar da realidade mais banal ao mito, do uni verso físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. interio r. E o mito, mito, desenvolv desenvolvendo endo-se -se no corpo interior, interior , deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiéncia vivida á qual, graQas ao estado patológico e a urna técnica obsidente apropriada, o xamá terá imposto as condicjóes. As dez páginas que se seguem oferecem, num ritmo ofegante, urna oscilagáo cada vez mais rápida entre os temas mí ticos e os temas fisiológicos, como (se se tratasse de abolir, no espirito da doente, a distin^áo que os separa, e de tornar im possível possível a dife di fere renn c iad ia d o de seus respectivos atribu atr ibutos tos.. Á s imagens da mulher estendida em sua rede ou na posi<;áo obstetri cia indígena, joelhos afastados e voltada para o leste, gemente, perdendo perd endo seu sangue, a vulva dilatada dilatad a e movedica (84-92, 12 1233124, 134-135, 152, 158, 173, 177-178, 202-204), sucedem os apelos los! nomináis nomin áis aos es e s p írit ír itoo s : os das bebidas bebidas alcoólicas, alcoólicas, os os do vento, das águas e dos basques, e até — testemunho precioso da plasticidade do mito — o “do paquete prateado do homem branc bra nco” o” (18 (1 8 7 ). Os temas tem as se reúne re únem: m: como a doente, qs nuchu gotejam, jorram sangue; e as dores da doente tomam propor 22 2 2 3
çoes çoes cósmicas: cósmicas: “ Seu branco tecido tecido interno intern o se se estende até o seio seio da terr te rraa . . . até até o sei seio da terra, suas suas transpi transpiraçôes raçôes for formam mam uma poça, da mesma maneira que sangue, tôda vermelha” (89, 92). 92 ). Ao mesm mesmoo tempo, tempo, cada cada espirito, quando quando aparece, torna tor na se objeto de uma descriçâo atenta, e o equipamento mágico, que ele recebe do xamá, é longamente detalhado: pérolas ne gras, pérolas cor de fogo, pérolas escuras, pérolas redondas, ossos de jaguar, ossos arredondadas, osso da garganta e muitos outnos ossos, colares de prata, osos de tatú, ossos do pássaro kerkettoli, ossos de picanço verde, ossos de fazer flautas, pérolas de prata (104-118) ; depois a mobilizaçâo geral continua, como se essas garantías fóssem ainda insuficientes, e que todas as forças, conhecidas ou desconhecidas da doente, d,evessem ser reunidas para a invasáo (119-229). Mas o vago tem um lugar táo pequeño no reino do mito, que a penetraçâo da vagina, por mítica que seja, é proposta à doente em tér nos concretos e conh conheci ecidos dos.. P o r duas vézes, vézes, aliás, “muu” iesigna diretamente o útero, e nao o principio espiritual que governa sua atividade (“o muu da doente”, 204, 453) ( !û ). Aqu Aqui,i, sâo os nelega-n que, para se introdjizir no caminho de Muu, asisumem a aparéncia e simulam a manobra do pénis em ereçâo: Os chí.péus dos nelegan brilham, os chapéus dos nelegan embranquecem ; os 'nelegan se tomam chatos e baixos (?), exatamente como pontas, inteiramente retos ; os nelegan começam a ser terrificantes (?), os nelegan se tornam completamente terrif¡cantes (?) ; para pa ra a salvaçâo do nigapurbalele da doente (230-233). E rrcris abaixo: Os nelegan váo oscilando em direçao ao alto da rede, éles vâo em direçâo ao alto, como nusupane (239) (H). (10) (11)
e W a s s e n , p. 45, n.° 219; p. 57, n.° 539. nu supa pane ne,, Os pontos de interrogaçâo interroga çâo sâo do do tradutor: tradu tor: nusu de nu8u, “verme”, comumente empregado por “pénis” (cf. H o l me r e W a s s e n , p. 47, n.° 280; p. 57, n.° 540, e p. 82).
2H 2 H
H o l me r
A técnica da narrativa visa, pois, reconstituir urna expe riencia real, onde o mito se limita a substituir os protagonis tas. Éstes Éste s pen penetra etram m no orificio orificio natura nat ural,l, e pode pode-se -se imaginar imagina r que, após tòda essa preparalo psicológica, a doente os sente efetivamente penetrar. Nao sòmente eia os sente, mas éles “alumiam” — para éles próprios, sem dúvida, e para encon trar sua via, mas cambém para eia, para lhe tornar “claro” e acessivel ao pensamento consciente a sede de sensagóes inefàveis e dolorosas — o caminho que éles se dispòem a percorrer : Os nelegan pòem urna boa visáo na doente, os nelegan abrem olhos luminosos luminosos ria ria do doen ente. te... . (238 (2 38). ). E esta “ visá visáoo iluminador iluminadora”, a”, para parafrasear urna urna fòr mula do texto, lhes permite detalhar um itineràrio complicado, verdadeira anatomia mitica que corresponde, menos à estrutura real dos órgàos genitais, que a urna espécie de geografia afetiva, identificando cada ponto de resistència e cada movi mento impetuoso: Os nelegan se pòem a caminho, os nelegan andam em fila ao longo da senda de Muu, tao longe quanto a Baixa Montanha ; os n., etc., táo longe quanto a Curta Montanha; os n., etc., tào longe quanto a Longa Montanha; os n., etc., tào longe quanto Yala Pokuna Yala (nao traduzido) ; os n., etc., tào longe quanto Yala Akkwatallekun Yala (id.) ; os n., etc., tào longe quanto Yala Ilamisuikun Yala (id.) ; os n., etc., até o centro da Chata Montanha; os nelegan se pòem a caminho, os nelegan andam em fila ao longo da senda de Muu (241-248). O quadro do mund,o uterino, inteiramente povoado de monstros fantásticos e de animais ferozes, està sujeito à mesma interpretagáo, diretamente confirmada em outro lugar pelo in formante form ante indígen ind ígena: a: sáo, sáo, diz diz eie eie,, “os “ os animais que aumentam os males da mulher no parto”, ou seja, as próprias dores perso nificadas nificadas.. E aqui ainda, ainda, o canto canto parece parece ter por p or finalidade finalidade prin prin cipal descrevè-las à doente e nomeà-las, de lhas apresentar sob urna- forma que pudesse ser apreendida pelo pensamento cons 22 2 2 5
cíente ou ou inconsciente: Tío Aligátor Ali gátor,, q ue se rnove jpof toda part pa rte, e, com seus olhos protu pr otube bera rante ntes, s, seu corpo corp o sinuoso sinuos o e man ma n chado, acocorando-se e agitando a cauda; Tio Aligátor Tiikwalele, de corpo luzente, que remexe suas luzentes barbatanas, cujas barbatanas invadem o lugar, empurram tudo, arrastam tuclo tuclo;; Néle Néle Ki(k)k K i(k)kirpa irpana nalele lele,, o Polvo Polvo,, . cujos tentáculos tentáculos vis cosos saem e entram alternadamente; e muitoa outros ainda: Aquéle-cujo-chapéu-é-mole, Aquéle-cujo-chapéu-é-vermelho, Aquéle-cujo-chapéu-é-multicor etc.; e os animais guard,iae d,iaes: s: o Tigre-neg Tigre -negro, ro, o Animal-vermelho, o Animal-bicolor, Animal-bicolor, o Animal-cór-de-poeira; cada um ligado por urna corrente de ferro, língua pendente, língua saliente, babando, espumando, a cauda flamejante, os dentes amea^adores e dilacerando tudo, “ do mesmo modo modo que sangue, inteirament inteira mentee vermelho” (253298). Para penetrar neste inferno á Hyeronimus Bosch e alcan zar a sua proprietária, os nelegan tém outros obstáculos a ven cer, estes, estes, materia mat eriais: is: fibras, cordas flutuantes, flutua ntes, fios fios estendidos, cortina cor tinass sucessiv suc essivas: as: coloridas de arco-iris, douradas, prateaprat eadas. vermelhas, pretas, marrons, azuis, brancas, vermiformes, “ como como grav gr avat atas as”, ”, amarelas, torcidas, espessas espessas (305-330) (305 -330) ; e para pa ra esta finalidade, o xa xamá má pede ref re f e rio ri o s: Senhore Sen hores-dos s-dos animaís-furadores-de-madeira, que deveráo “cortar, reunir, enro lar, reduzir” os fios, nos quais Holmer e Wassen reconhecem as pared,es mucosas do útero (12). A invasáo segue a queda désses últimos obstáculos, e é aqui que se dá o torneio dos chapéus, cuja discussáo nos afastaria ta ria demasiado demasiado da finalidade imediata déste estudo. estudo. Após a libertaoáo do nigapurbalele vem a descida, táo perigosa quanto a ascensáo: ascens áo: po pois is a meta m eta de toda a empresa é de provocar provoca r o parto pa rto,, ou seja, precisamente precis amente,, urna descida difíci difícil.l. O xamá xam á recenseia seu mundo e encoraja seu tropel; mas lhe é necessário convocar refor^os: refor ^os: os “ abridores abri dores de caminho”, SenhoresSenhoresdos-animais-fossadores, tais como como o tatú. Exort Ex ortaa-se se o ñi pa a se dirigir em direqáo ao orificio: Teu corpo jaz diante de ti, na rede; seu branco tecido está estendído; (12) 22 2 2 6
Loe. c it., it .,
p. 85.
seu branco tecido tecido intern in ternoo se move move vagarosamente vagaros amente ; tua doente jaz diante de ti, acreditando que eia perdeu a vista. Em seu corpo, éles repóem seu nigapurbalele ... (430-435). O episòdio ep isòdio que se segue é obscuro : dir-se-i dir- se-iaa que a doente nào està ainda aind a curada. O xamà parte par te para a montanha montan ha co com m os moradores da aldeia, para recolher plantas medicináis, e re pete sua ofensiva ofensi va sob urna nova form fo rma: a: é èie, èie, desta vez, vez, que que,, imitando o pènis, penetra na “abertura de niuu" e se move ai “corno n u s u p a n e . . . limpando e secando completamente o lu garr inter ga int erio ior” r” (453-45 (45 3-454). 4). Contudo, Contudo, o empr emprègo ègo de adstringentes adstringe ntes sugeriría que o parto já se teria dado. Enfim, antes da nar rativa das precaugòes tomadas para prevenir a evasao de Muu, e que nós já descrevemos, encontra-se um apèlo a um povo de arqueiros. arqueiro s. Co Como mo èle èless tèm por mis missao sao provocar u m an anuu v e m de poeira “pa “ para ra obscurecer obscurecer o caminh caminhoo de de Muu” Mu u” (464 (4 64), ), e de montar guarda em todos os caminhos de Muu, desvios e atalhos (468), sua intervengo pertence também, sem duvida. à con clusa». Talvez o episòdio anterior se refira a urna segunda técnica de cura, com manipulaqào de órgáos e administraba de remédios; talvez ocorra, ao contràrio, durante a primeira viagem, mais completamente desenvolvida na nossa versáo, sob urna forma igualmente metafórica. Haveria assim duas ofensivas lanzadas em em socorro soco rro da do doen ente: te: escoradas, urna por urna mi tologia. psico-fisiològica, a outra, por urna mitologia psico-social, indicada pelo apelo aos: habitantes da aldeia, más que teria per manecido manecid o em estado esta do de esb esbóq óqo. o. O que quer que r que seja, é neces sàrio notar que o canto se concluí após o parto, como se havia inicia iniciado do antes ante s da cu cura: ra: os acontecime acontecimentos ntos anteriores anteriore s e poste riores sào cuidadosamente relat relatados. ados. Trata-se Tra ta-se,, efetiva efetivamente mente,, de constru con struir ir um conjunto conjun to siste sistemátic mático. o. Na Naoo é sòmente contra as as veleidades de evasáo de Muu que a cura deve ser, por procedimentos minuciosos, minuciosos, “ aferrolh afer rolhad ada” a” : sua eficác eficácia ia seria com prome pro metid tidaa se, an antes tes mesmo que se pudessem pudesse m espera esp erarr seus resu re sul l tados, eia nao apresentasse à doente um desfécho, isto é, urna situagáo onde todos os protagonistas reencontraram seu lugar, e ingressaram numa ordem sòbre a qual nao paira mais ameaga. 2 2 7
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A cura consistiría, pois, era tornar pensável urna situagáo dada inicialmente en?, termos afetivos, e aceitáveis para o espi rito as dores que o corpo se se recusa a tolerar. tolera r. Que a mitolo mitolo gía do xamá nao corresponda a urna realidade objetiva, nao tem impo im porta rtanc ncia: ia: a doente acredita acred ita nela, nela, e ela é membro membro de de urna soc socie ied, d,ad adee que acredita. acredit a. O s espíritos espír itos prot pr oteto etores res e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais má gicos, fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a concepgáo concepgáo indígena do universo. unive rso. A doente doen te os aceita, ou, mais exatamente, exatam ente, ela nao os pos jamais jam ais em dúvida. O que ela nao aceita sao dores incoerentes e arbitrarias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamá vai reintegrar num conjunto onde todos os elemen tos se apóiam mutuamente. Mas a doente, tendo compreendido, náo se resigna apenas: ela sara. E nada na da disto disto se produz produ z em nossos nossos dpentes, quan quando do se lhes explica a causa de suas desordens, invocando secregoes go es,, microbios microbios ou virus. Acusar-se-nos-á talvez de paradoxo, parado xo, se respondemos que a razáo disto é que os microbios existem e que os monstros náo existem. existem. E náo obstante, a relagáo relagáo entre microbio e doenga é exterior ao espirito do paciente, é urna relagáo de causa e efeito; ao passo que a relagáo entre inonstro e doenga é interior a ésse mesmo espirito, consciente ou in conscien con sciente te : é urna rela r elagáo gáo d, d,e símbolo á coisa simboli si mbolizada, zada, ou, par p araa empr em preg egar ar o vocabulário voca bulário dos lingüista ling üistas, s, de significante signif icante a significado. significado. O xamá xam á fomece fom ece á sua doente urna linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados náo-formulados, de ou outro tro modo informuláveis. informuláveis. E é a passagem a esta expressáo verbal (que permite, ao mesmo tempo, viver sob urna forma or denada e inteligível urna experiencia real, mas, sem isto, anár quica e inefável) inefável) que provoca o desbloqueio do processo fisio lógico, isto é, a reorganizagáo, num .sentido favorável, da seqüéncia cujo desenvolviment desenvolvimentoo a d ien ie n te sofreu sofreu.. Neste Ne ste sentido, a cu cura ra xa xama maní nístic sticaa se sitúa a meio-caminho entre nossa medicina orgánica e terapéuticas psicológicas como a psicanálise. psicanálise. Sua originalidade originalidad e provém de que que ela aplica a ¿ 28
urna perturbado orgánica um método bem próximo dessas úl timas. Como é isto possível? possível? Urna comparagáo mais particula partic ula rizada entre xamanismo e psicanálise (e que nao comporta, em nosso pensamento, nenhuma descortesía para com esta) permi tirá precisar éste ponto. Em ambos os casos, propóe-se conduzir á consciéncia conflitos e resistencias até entáo conservados inconscientes, quer em razáo de seu recalcamento por outras forjas psicológicas, quer — no caso do parto — por causa de sua natureza própria, que nao é psíquica, mas orgánica, ou até simplesmente mecá nica. Em ambos os os casos também, os conflitos e as resistencia resiste nciass se dissolvem, nao por causa do conhecimento, real ou suposto, que a cliente adquire déles progressivamente, mas porque éste conhecimento torna possível urna experiencia específica, no curso da qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que pe perm rmite item m seu livre liv re desenvolvimento desenvolvimen to e conduzem condu zem ao seu desenlac desenlace. e. E sta st a experiéncia expe riéncia vivida vivid a recebe recebe na psicanálise o nome de a br eagcío. Sabe-se que ela tem por condigao a intervengáo nao provocada do analista, que surge nos conflitos do doente, pelo duplo mecanismo da transferéncia, como um pro tagonista de carne e osso, e face ao qual éste último pode restabelecer e explicitar urna situa^áo inicial conservada informulada. Todos ésses caracteres se encontram na cura xamanística. Ai também, trata-se de suscitar uma experiéncia, e, na me dida em que esta experiéncia se organiza, mecanismos situados fora do contróle do sujeito se ajustam espontáneamenie, espontáneamenie, para chegar a um u m funcionamento funcionamento ordenado. ordenado. O xamá xam á tem tem o mesmo mesmo duplo pap papel el que que o psicana psica nalísta: lísta: um primeiro papel papel — de auditor audito r para pa ra o psicanalís psic analísta, ta, e de orad or ador or pa para ra o xa xamá má — estabelece uma um a relaqáo imediata com a consciéncia (e mediata com o incons ciente) ciente) dp doe doent nte. e. É o pa pape pell da en enca cant ntad adoo própriamente dita. dita. Mas o xamá nao profe profe re soment somentee a en e n c a n tad ta d o : éle é seu herói, visto que é éle quem penetra nos órgáos amea^ados á frente do batalh bat alháo áo sobren sob renatu atura rall dos espíritos, espírito s, e quem liber lib erta ta a almn almn ca tiva. Ne Neste ste sentido, éle se encama, como como o psicanalísta, no ob jeto je to da transf tra nsferé erénci ncia, a, pa para ra se tom to m a r, grabas as represe rep resenta ntacoe coess induzidas no espirito do doente, o protagonista real do conflito que éste experimenta a meio-caminho entre o mundo orgánico 2 2 9
e o mundo psíqui psíquico. co. O doente d oente atingido de neuros neu rosee liquida um mito individual, opondo-se a um psicanalista real; a partu riente indígena supera urna desordem orgànica verdadeira, identificando-se com um xamá mìticamente transposto. O paralelismo paralelism o nao exclue, pois, dif difer eren en<; <;as as.. N ao se ficará fic ará admirado, se se prestar atenqáo ao caráter psíquico, num caso, e orgánico orgánico no no outro, outro, da p e rtu rt u r b a lo que se trata de curar. De fato, a cura xamanística parece ser um equivalente exato da cura psicanalitica, mas com urna inversáo de todos os termos. Ambas visam provocar urna experiencia ; e ambas chegam a isto, reconstituindp um mito que o doente deve viver, ou reviver. Mas, num caso, é um mito individual que o doente constrói com a ajud aju d a de elementos elementos tirado tira doss de seu passado ; no outro. out ro. é um mito social, que o doente recebe do exterior, e que nao cor responde a um antigo estado pessoal. Para preparar a abreaqáo, que se torna entáo urna “ad~reaQáo”, o psicanalista escuta, ao passo que o xamá fala. fala. Melhor ainda ain da:: quando as transfe tran sfe rencias se organizam, o doente faz falar o psicanalista, emprestando-lhe sentimento» e intenqoes supoátos, ao contràrio, na en c a n tad ta d o , o xamá fala por sua doent doente. e. Èie Èie a interroga, interrog a, e po poee em sua bòca réplicas' que corresponderá à interpretado de seu estado, do qual eia se deve compenetrar: Minha vista se extraviou, eia adormecen no caminho de Muu Puklip; É Muu Puklip Puk lip que ve veio io a mim mim.. E ia quer tomar meu n i - gapur bal el e ;
Muu Naurya N auryaiti iti veí veíoo a mim. mim. Eia quer se apo apodera derarr de meu meu m qapu qa pu r bátel e para sempre ; etc. (97-101). E contudo, a semelhanqa se torna aínda mais surpreendente, quando se compara o método do xamá com certas tera péuticas péuti cas de a p a r i d o recente recen te e que se valem da psicanálise. Já Desoille sublinhara, em seus trabalhos sobre o sonho acordado, que a perturbado psico-patológica só é acessível à linguagem dos símbolos. Èie fala, pois, aos seus doentes doe ntes por p or símbolos, mas estes sao ainda metáforas metáforas!! verbais. verb ais. N um traballio traballi o mais recente, recente , e que desconheciamos.no momento em que iniciamos este es 23 2 3 0
tudo, Sechehaye vai multo além (13), e nos parece que os resultados que ela obteve, no tratamento de um caso de es quizofrenia considerado incurável, confirmam plenamente as considerares precedentes acerca das relaqóes entre a psicanálise e o xamanismo. Pois Sechehaye percebeu que o discurso, táo simbólico quanto possa ser, chocava-se ainda na barreira do consciente, e que ela só por atos podia atingir os com plexos mais profu pr ofund ndam ament entee en enter terrad rados. os. Assim, p ara ar a resolver resolve r um c-mplexo de ablactado, a psicanalista deve assumir unía ^osi^áo maternal realizada, nao por urna reprodujo lite ral da conduta correspondente, mas» se é lícito dizer, por meio de atos descontinuos, cada um simbolizando um elemento fun damental damental desta s itu it u a d 0 : por exemplo exemplo,, o contato da face face da doente doe nte com com o seio da psicanalista. A carga carg a simbólica simbólica de tais atos torna-os próprios para constituirem urna linguagem: certamente, o médico dialoga com seu doente, nao pela palavra, mas por po r meio de operaqoes concretas, conc retas, verdad ver dadeiro eiross ritos rito s que atra at ra-vessam a tela da consciencia sem encontrar obstáculo, para le var sua mensagem diretamente ao inconsciente. Reencontramos, por conseguinte, a nogáo de manipulado, que nos parecera essencial ao entendimento da cura xananística, mas devenios ampliar bastante essa definido tradicional: pois abrang abr ange, e, ora or a urna m an anip ipuu lad la d o de idéias, ora urna ma ma n ipu ip u lad la d o de órgáos, sendo cond condigáo igáo comum que ela se faqa faqa com a ajuda de símbolos, isto é, de equivalentes signi ficativos do significado, proveni pro veniente entess de urna ordem ord em de realídade diversa da déste último. Os gestos de Sechehaye re percuten) no espirito inconsciente de sua esquizofrénica, como n t agoes agoes evocadas pelo xamá de^erminam urna mo as r epr es& nt dificado das fungoes orgánicas da parturiente. O trabalho está bloqueado no inicio do canto, o delivramento se produz no fim, e os progressos do parto se refletem ñas etapas sucessivas do mito: a primeira penetrado da vagina pelos nelegan se faz em fila indiana india na (24 (2 4 1 ), é, com comoo é urna ascensáo, com a ajuda dos prestigiosos chapéus, que abrem e ilu(13) (1 3) M. A. S e c h e h a y e , R e v u e su isse is se de plemento n.° 12 da Re ap a p p liq li q u é e ) , Berna, 1947.
La L a R é a lis li s a tio ti o n sym sy m b oliq ol iqu ue P sy ch o log lo g ie e t de P sych sy ch o log lo g ie
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minam a passagem. Quando vem o retorno (que corresponde á segunda fase do mito, mas á primeira fase do processo fisio lógico, já que se trata de fazer descer a crianqa), a ateneo se desloca para seus pés: assinala-se que éles tém sapatos (494-496 -4 96). ). No momento em que éle éless invadem a morada mor ada de Muu, já j á nao váo mais em fila, mas “ qu quat atro ro a q u atro at ro”” (388 (3 88)) ; e pa para ra voltar vol tar ao ar livre, livre, éles éles váo “ todos em linha” linh a” (2 ( 2 48 48). ). Sem dúvida, esta transformado dos detalhes do mito' tem por finalidade despertar unía reagáo orgánica correspondente; mas a doente náo poderia apropriar-se déla sob forma de experien cia, se ela náo fósse acompanhada de um progresso real da d ilata ila tadd o . É a eficá eficácia cia simból simbólica ica que garan gar ante te a harmonía do paralelismo paraleli smo entre entr e mito e o p e r a r e s . E mito e operaqóes forma for mam m um par, onde se encontra sempre a dualidade do doente e do médic médico. o. Na cura c ura da esquizofrenia, o médico médico executa as ope rares e o doente produz seu mito; na cura xamanística, o mé dico fornece o mito e a doente executa as operaqóes. *
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A analogia entre os dois métodos seria mais completa aínda, se se pudesse admitir, como Freud parece ter sugerido por po r d,ua ,uas vézes vézes ( I 4), 4) , que a descriqáo em term ter m os psicológicos psicológicos da estrutura das psicoses e das neuroses deve desaparecer um dia diante de urna concepcáo fisiológica, ou mesmo bio-química. Esta eventualidade poderia estar mais próxima do que parece, visto que pesquisas pesquis as suecas recentes (15) puseram pus eram em evidencia diferencias químicas entre as células nervosas do in dividuo normal e as do alienado, concernentes a sua riqueza respectiva em polinucleados. Nesta hipótese. ou em qualquer outra do mesmo tipo, a cura xamanística e a cura psicanalí(14)
ri n cip ci p io do p r a z e r e ñas N o v a s con Em A l é m do p rin fe re n c ia s, p. 79 e p. 198, respectivamente, das edigóes inglesas. Citado por E. Kris, The Nature of Psychoanalytie Propositioms an a n d th e ir V a lid li d a tio ti o n em Fre F re ed c m a n d E x p e rie ri e n ce ce,, E s s a y s p re se n ted te d to H. M. R a lle ll e n , Corne’il il Uni U nive vers rsity ity Press Pr ess,, 1947, p. p. 244. p e r s so s o n e H y d e n , no Instituto Karolinska de (15) D e C a s pe Estocolmo.
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tica tornar-se-iam t ornar-se-iam rigorosamente semelhan semelhantes tes ; tratar-se-ia tratar-s e-ia em ambos os casos de induzir urna transformado orgánica, que se constituiría essencialmente numa reorganizad0 estrutural, que conduzisse o doente a viver intensamente um mito, ora recebid recebido, o, ora or a produzido, e cu cuja ja estru est rutu tura ra seria, nono- nivel do psiquismo inconsciente, análoga àquela da qual se qu quer erer eria ia de terminar a formado no nivel do corpo. A eficácia simbólica consistiria precisamente nesta “propriedade indutora” que possuiriam, suiriam, urnas urnas em rela re ladd o ás outras, outras,-- estruturas estrutu ras formalme formalmente nte homologas, que se podem edificar, com materiais diferentes, nos diferentes níveis do vivente: processos orgánicos, psiquis mo inconsciente, pensamento refletido. A metáfora poética fornece um exemplo exemplo familiar deste processo ind in d utor ut or;; mas seu uso corrente nao lhe permite ultrapassar o psíquico. Constata mos assim o valor da intuido de Rimbaud, dizendo que eia pode também serv se rvir ir pa para ra modificar o mundo. A comparado com a psicanálise nos permitiu esclarecer certos aspectos da cura xamanística. Nao é certo que, inver samente, o estudo do xamanistno nao seja solicitado, solicitado, algum dia, para elucidar aspectos ainda obscuros da teoria de Freud. Pensamos particularmente na nodo de mito e na nodo de inconsciente. Vimos que a única d,iferenga entre os dois métodos que sobreviveria à descoberta de um substrato fisiológico das neuroses diría respeito á origem do mito, encontrado, num caso, como um tesouro individual, e recebido, noutro, da tradi^áo coletiva. De fato, inúmeros psicanalistas se recusaráo a admitir que as constelagóes psíquicas que reaparecein à consciencia do doente possam constituir um mito: sao, diráo éles, acontecimentos reais, ás vèzes possí possí veis veis de serem datados, cu cuja ja autenticiauten ticidade é verificável por urna investigado junto aos parentes ou criados (16). Nao pomos os fatos em dúvida. O que é ne cessàrio indagar, é se o valor terapéutico da cura se deve ao caráter real das situaqóes rememoradas, ou se o poder trau matizante destas situaqoes nao provém do fato de que, do mo(16)
te s on the th e A n a ly t ic a l D isc is c o v e ry M a r i e B o n a pa p a r t e , N o tes
em The v:l. I, Nova Iorque, 1945.
of a P r i m a l Se Seen ene, e,
Psychoanalytic Study of the Child,
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mento em que se apresentam, o sujeito as experimenta imediatamente sob forma de mito vivido. Com isío, entendemos que o poder traumatizante de urna situado qualquer nao pode resultar de seus caracteres intrínsecos, mas da aptidáo de certos acontecimentos, que surgem num contexto psicológico, his tórico e social apropriado, para induzir urna cristalizado afetiva, que se faz no molde de urna estrutura preexistente. Em relagáo ao acontecimento ou à particularidade histórica, essas estruturas —ou, mais exatamente, essas leis de estrutura— sao verdaderamente intemporais. No psicópata, toda a vida psíqui ca e todas as experiencias ulteriores se organizam em funqao de uma estrutura exclusiva ou predominante, sob a a<;áo ca talítica do mito inicial; mas esta estrutura, e as outras que néle sao relegadas a um lugar subalterno, se encontram tam bém no homem normal, norm al, primitivo prim itivo ou civilizado. civilizado. O co conju njunto nto dessas estruturas formaria o que denominamos de inconsciente. Veríamos assim dissipar-se a última diferenga entre a teoria do xamanismo e a teoria da psicanálise. O inconsciente deixa d,e ser o inefável refugio das particularidades individuáis, o depositario de uma historia única, que faz de cada um nós um ser insubstituível. Èie se reduz a um tèrmo pelo qual nós designamos designamos urna fu n d o : a f u n d o simból simbólic ica, a, específ específicam icamente ente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo segu ndo as mesmas leis? ; que se reduz red uz,, de fato, ao con c onju junt ntóó destas leis. Se esta concepqao é exata, será necessàrio restabelecer, provávelmente, prováv elmente, en entre tre inconsciente e subconsciente, uma distindist ind o mais' is' acentuada acentuad a do que que aquela que a psico psicologí logíaa contempo contempo ránea nos habituou a fazer. Pois o subconsciente, reservatório de recordares e de imagens colecionadas ao longo de cada vida vid a O17 17), ), se torn to rnaa um simples aspecto da memo me moria ria;; ao mesmo tempo que afirma sua perenidade, implica em suas limita r e s , visto visto que o tèrmo subconsciente subconsciente se relaci relaciona ona ao fato de de que as recordares, se bem que conservadas, náo estáo sem pre p re disponíveis. disponíveis. Ao co contr ntràri àrio, o, o inconsciente está sempre vazio ; ou, mais exatamente, èie é táo estranho as imagens quanto o (17) Esta d efin ef in id o , táo criticada, retoma retoma um sentido sentido pela pela distindo radical entre subconsciente e inconsciente: 2 8 U
estómago aos alimentos que o atravessam. Órgáo de urna fun d o especí específica fica,, ele ele se se limita limita a impor leis leis estru est rutur turais ais,, que esesgotam sua realidade, a elementos inarticulados que provém de outra parte; pulsóes, emo^oes, representagóes, recordares. Poder-se-ia dizer que o subconsciente é o léxico individual onde cada um de nós acumula o vocabulário de sua historia pessoal, mas que èsse èsse vocabulário vocabul ário só ad adqu quire ire sign sig n ific if icad adoo , pa para ra nós. próprios e para os outros, à medida em que o inconsciente o organiza segundo suas leis, e faz déle, assim, um discurso. Como estas leis sáo. as mesmas, em todas as ocasioes em que ele exerce sua atividade e para todos os individuos, o problema colocado no parágrafo precedente pode se resolver fàcilmente. O vocabulário importa menos do que a estrutura. Quer seja o mito recriado recr iado pelo su jeito, quer seja tomado de empréstimo à tradito, èie só absorve de suas fontes, individual ou coletiva (entre as quais se produzem constantemente interpenetragoes go es e tro tr o c a s), s) , o material mate rial de imagens que ele emprega emp rega ; mas a estrutura permanece a mesma, e é por eia que a fungáo sim bólica se realiza. Acrescentemo Acresc entemoss que essas essas estru es trutur turas as náo sao sómente as mesmas para todos, e para todas as materias as quais se aplica a fundo, mas que elas sáo pouco numerosas, e compreenderemos porque o mundo do simbolismo é infinitamente diverso por po r seu conteúdo, conteú do, mas sempre sempr e limitado limita do po por. r. suas sua s leis. leis. Existe Ex istem m muitas línguas, mas muito poucas leis fonológicas, que valem par p araa todas tod as as línguas. língua s. Urna Urn a c o m p ilad il adoo de contos e de mitos conhecidosí ocuparía urna massa impotente de volumes. Mas se podem redu re duzi zirr a um pequeño número núm ero de tipos simples, simples, se foforem postas em evidencia por detrás da diversidade dos personagens alguma algu mass fun^oes elementares elementa res ; e os complexos, éssei ésse i mitos individuáis, se reduzem também a alguns tipos simples, moldes aonde vem agarrar-se a fluida multiplicidade dos casos. Do fato de que o xamá náo psicanalisa seu doente, pode-se, pois, concluir conc luir que a proc pr ocur uraa do tempo perdido, perd ido, consider cons iderada ada por po r alguns como a chave da terapé ter apéutic uticaa psicanalitica, ná náoo é sesenáo urna modalidade (cujo valor e resultados náo sáo negligenciáveis) de um método mais fundamental, que se deve de finir sem apelar para a origem individual ou ooletiva do mito. Pois a f o r m a mítica tem precedencia sobre o conteúdo da nar 23 2 3 5
rativa. Ao menos é o que a análise de um texto indígena nos pareceu pare ceu ensinar. Mas, em ou outro tro sentido, sabe-se bem qu quee todo mito é urna procura do tempo perdido. Esta forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilizado mecánica, nao há mais lugar para o tempo mítico, senáo no próprio homem. Desta constatado, a psicanálise pode recolher urna con firmado de sua validade, ao mesmo tempo que a esperanza de aprofundar suas bases teóricas e de melhor compreender o mecanismo de sua eficácia, por urna confrontado de seus mé todos e de suas finalidades com os de seus grandes predecessores sore s : os os xamas xa mas e os os feiticeiros.
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