Preparações e Tarefas. Letícia Parente curadoria e organização: André Parente
Preparações e Tarefas. Letícia Parente curadoria e organização: André Parente
Textos de: André Parente, Cláudio da Costa, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle, Katia Maciel e Marisa Florido Cesar
São Paulo, 2007
Copyright 2007 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Preparações e Tarefas.Letícia Parente/ textos de André Parente, Cláudio da Costa, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle, Kátia Maciel e Marisa Florido; organização André Parente. - São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Paço das Artes, 2007. Outros autores: Daniela Bousso, Letícia Parente. ISBN ISBN
Índice para catálogo sistemático: 1. Arte contemporânea 2. Exposições Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907)
Paço das Artes Av. da Universidade, 1 - Cidade Universitária 05508 040 - São Paulo-SP t/f (55 11) 3814 4832 http://www.pacodasartes.org.br
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Preparações e Tarefas. Letícia Parente curadoria e organização: André Parente
esposição realizada entre 12 de março e 20 de maio de 2007.
Paço das Artes É com grande satisfação que o Paço das Artes apresenta esta exposição de Letícia Parente, artista que atuou na década de 1970, período rico na cena política e cultural brasileira, quando ao mesmo tempo em que se vivia sob um clima de falta de liberdade e contestação à ditadura militar surgiam novas experimentações no campo da arte. Letícia fez parte de uma geração que realizou os primeiros experimentos da videoarte no Rio de Janeiro a partir de 1974. Ao fazer uso do suporte do vídeo para a arte propôs um deslocamento do foco do objeto para o corpo e a subjetividade. Hoje, a utilização de novas mídias já está totalmente incorporada à produção das atuais gerações de artistas brasileiros. No entanto, o trabalho de Letícia Parente foi um marco importante nos primórdios deste processo. O Paço das Artes considera não somente oportuno mas de extrema importância resgatar e difundir amplamente a obra desta artista que marcou presença na recente história da arte brasileira. Esta mostra vem reafirmar a missão do Paço das Artes de exibição, difusão e reflexão da arte contemporânea. Acreditamos que com esta mostra e este livro oferecemos ao nosso público mais um excelente acesso ao conhecimento do que há de melhor na produção da arte contemporânea brasileira.
ALÔ, 1
É A LETÍCIA ?
André Parente
Para Ana Vitória, Anna Bella, Essila, Fernando, Ivens, Miriam, Paulo e Sonia.
Escrever sobre a Letícia me coloca muitas dificuldades. Não sou apenas filho dela, sou também filho de seu trabalho. De fato, muito do que eu faço, seja no plano da criação artística, seja no plano intelectual, me remete de alguma forma ao seu trabalho. Por outro lado, eu fui não apenas uma testemunha atenta de sua obra mas também um colaborador em níveis muito diversos, sempre presente e interessado: fui modelo, fui câmera, fui fotógrafo, fui produtor e fui mesmo co-autor. De forma que escrever sobre ela me dava a estranha impressão de estar, em muitos momentos, escrevendo sobre mim também.,
Trata-se de uma frase dita em um vídeo de Letícia Parente intitulado A Chamada (1978), material considerado perdido. Na própria descrição da artista: “A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada perguntando: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Responde: ‘É A LETÍCIA...’ 1
A obra de Letícia Parente é pouco conhecida, seja da crítica, seja do grande público. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a arte mídia só veio ganhar espaço no circuito de arte no Brasil muito recentemente. Mesmo se restringirmos a arte mídia a um dos seus principais meios de expressão, a videoarte, nenhum dos grandes artistas do mainstream é videoartista. Nenhum dos críticos do mainstream tampouco tem sequer um texto relevante sobre videoarte no Brasil. Por outro lado, muito do que foi produzido em termos de arte e mídia no Brasil, nos anos de 1970, foi perdido. Grande parte dos trabalhos de xerox e arte postal, bem como de vídeo e videotexto foi perdida, seja porque tratavam-se de materiais frágeis, seja por causa da obsolescência dos equipamentos, seja pelo despreparo da instituição da arte do Brasil (que inclui os museus, os colecionadores e os artistas) no que diz respeito ao arquivo. Mais de um terço dos vídeos de Letícia foram perdidos porque ela enviava para as exposições seus próprios “masters”, uma vez que não tinha, à época, como fazer cópias de seus trabalhos2. Em geral, a obra de Letícia é conhecida por meio de seus vídeos. Entretanto, o vídeo não foi sequer o seu principal meio de expressão. Ela foi iniciada em arte tardiamente, com 40 anos (1971), nas oficinas de Ilo Krugli e Pedro Dominguez, no Rio de Janeiro. Já de volta a Fortaleza, depois de participar de várias exposições coletivas e receber um prêmio de aquisição do Salão de Abril, realiza, em 1973, sua primeira exposição individual (Museu de Arte da Universidade do Ceará – MAUC) com um conjunto de 29 gravuras. Em 1974 se muda para o Rio de Janeiro, para fazer o
doutorado, e continua a freqüentar oficinas de arte. Entre todos os seus professores, o único que deixou marcas em sua obra foi Anna Bella Geiger, de quem ela herdou um certo tipo de poética conceitual (ver mais adiante o texto de Fernando Cocchiarale, A Terceira Via) na qual se dissolve a separação entre os aspectos visuais e conceituais da obra, entre arte e vida, arte e política. Ainda no final de 1974, alguns colegas e ex-alunos de Anna Bella constituem um grupo de arte decisivo para seu trabalho futuro. Entre 1974 e 1982, esse grupo, que passou a ser conhecido como o pioneiro da videoarte no Brasil, formado por Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Sônia Andrade, Ivens Machado, Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi, produziu uma série de vídeos que circularam em grande parte dos eventos de videoarte no país e no exterior. Na verdade, o vídeo era apenas um dos meios empregados entre muitos outros, como a fotografia, o audiovisual (a projeção de slides com som), o cinema, a arte postal, o xerox e a instalação. A produção desse grupo de artistas, entre eles Letícia, foi fundamental para a história da arte e mídia no Brasil. Não apenas eles estão entre os pioneiros no uso que se fez desses meios como sua produção teve um tremendo impacto entre seus pares. É evidente que o grupo desempenhou um papel primordial. Roberto Pontual costuma situá-los como parte do que ele veio a chamar de Geração 70 (entre os quais estão, além do grupo citado, Antônio Manuel, Maria Maiolino, Cildo Meireles, Artur Barrio, João Alphonsus, Waltercio Caldas, Iole de Freitas, Tunga, entre outros), composta por artistas de tendência experimental e/ou conceitual que surgiram concomitantemente ao aprofundamento da crise do repertório modernista e formalista, à emergência, no Brasil, dos novos suportes e meios de produção imagética (fotografia, cinema, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e dos novos espaços, entre eles, a área experimental do MAM do Rio de Janeiro e o MAC de São Paulo.
O audiovisual
O audiovisual desempenhou um papel interessante e jamais devidamente analisado na produção de alguns artistas nos anos 70. Muito se falou sobre os Quasi-Cinema, de Hélio Oiticica e Neville dʼAlmeida, por se tratar não apenas de um audiovisual, mas de uma instalação audiovisual; porém muito pouco sobre as experiências dos outros artistas. Segundo Frederico Moraes, ele também autor de algumas experiências de audiovisual, tratava-se de um veículo propício à documentação das obsessões dos artistas e dos problemas brasileiros, a exemplo do documentário cinematográfico. Letícia realizou uma meia dúzia de audiovisuais. Em seu Eu Armário de Mim (ver imagem na pág. XX), ela nos mostra uma série de imagens de um mesmo guarda-roupa onde desfilam os objetos (roupas brancas, roupas pretas, temperos, papéis amassados, condimentos, cadeiras, objetos de culto) e as pessoas (em um deles, todos os cinco filhos são colocados dentro do armário) da casa, compondo ao mesmo tempo uma estranha taxionomia e um retrato miniaturizado do lar e da artista. Ao mesmo tempo em que vemos as imagens dos objetos que compõem essa estranha taxionomia, escutamos a artista falar, sob a forma de reza, cujo refrão é “Eu, armário de mim”. Como em outros trabalhos dela (a série de arte xerox Casa, o vídeo In), as imagens, objetos e gestos do cotidiano nos revelam uma “arqueologia do tempo presente” (Letícia).
A arte postal
Letícia era profundamente construtivista, ou seja, acreditava ser a realidade o ponto de chegada, e não de partida. Não se tratava, portanto, para ela, de representar uma realidade preexistente, mas de usar as imagens para produzir um efeito de realidade. Em seus trabalhos de xerox, temos distintas séries, cujas mais conhecidas são Casa e Mulheres. Nelas, a artista pretende utilizar códigos gráficos à sua disposição para falar da condição da mulher em nossa sociedade. A casa é mais do que apenas um território ou um espaço neutro, mas a confluência de signos e redes que nos compõem, nos produzem. Em uma das imagens da série Casa, a artista propõe um mapa de uma cidade composto por duas cidades (ver imagem na pág. XX): a Cidade da Bahia (como se chamava Salvador antigamente) e o Rio de Janeiro. Essa é a cidade imaginária de Letícia e antevê, de alguma forma, a cidade relacional, a cidade-rede, cidade topológica, concebida no projeto de Nelson Brissac, Brasmitte, projeto que une a cidade de São Paulo à cidade de Berlim por meio dos bairros Brás e Mitte. Letícia era uma artista do pensamento topológico, heterotópico: sua casa é feita de signos e códigos diversos, de redes e de relações.
Xerox
A questão do corpo na arte vem sendo discutida de forma exaustiva nestes últimos anos. No Brasil, desde o “quase corpo” da obra neoconcreta, que via na obra de arte um “prolongamento da corporalidade”, aos happenings e performances dos anos 60, em que o corpo do artista se tornou um dos principais personagens por meio do qual as obras vieram a se revelar como um processo de produção de subjetividade. Trata-se, antes de mais nada, de mostrar que o corpo é por natureza algo que escapa aos modelos de racionalidade e disciplinaridade cartesianos, iluministas, fordistas, tayloristas. O corpo é fundamentalmente da ordem da produção, do desejo, do inconsciente, algo que está sempre escapando ao processo de reificação do corpo como dado, como ordem, como modelo. E mais, o corpo não é espaço, visto que é processual, não apenas porque se inventa e se reinventa sem cessar, mas porque vai até onde vão os nossos hábitos e desejos. Muito do trabalho de Letícia bebeu desta fonte, de uma espécie de neo-kantismo, seja ele estruturalista ou bachelardiano, em que a estrutura é uma categoria topológica e virtual, pura condição de possibilidade do que vemos, sentimos e fazemos. Seguindo essa linha de pensamento Letícia sempre parte do corpo ou da casa como os lugares privilegiados para exprimir ao mesmo tempo o muro que separa o que liberta do que aprisiona. É nesse sentido que a nosso ver ganha importância a imagem do xerox do alfinete (ver imagem na pág. XX), ao lado do qual se escreve “liberta, aprisiona”. Em outro de seus xerox (ver imagem na pág. XX), vemos uma série de imagens dos quadros de Brueghel, nos quais os personagens são como que aprisionados, sujeitados, amordaçados por meio de cestas e gaiolas. Trata-se, aqui, de uma imagem recorrente na obra da artista, para quem se a arte tem um papel, é porque ela nos leva a repensar os processos de subjetivação.
Fotografias
Uma das séries mais conhecidas do trabalho fotográfico de Letícia é a Série 158, em que ela se apropria de imagens de rostos de modelos em revistas femininas. Ela submete as imagens dos rostos a deformações de forma a tornar um rosto mais longilíneo ou o contrário (ver imagem na pág. XX). Essa ação visa a deflagrar uma problematização das taxionomias caracterológicas, que tendem a interpretar o determinismo de certos aspectos físicos sobre os aspectos psicológicos. Curiosamente, esse trabalho nos chama a atenção para os artistas do digital, que vieram a produzir deformações dos rostos por meio do uso do Photoshop (é o caso, por exemplo, do trabalho de Helga Stein). Na verdade, quando se vê, hoje, o trabalho de Letícia, percebe-se que a deformação do rosto não tinha nenhum sentido puramente imagético, visava-se desencadear uma problematização dos modelos sociais de apreensão do rosto. Em uma outra série fotográfica sem título (ver imagem na pág. XX) – fotografias que eu fiz do corpo da própria artista a seu pedido e em função de suas idéias – , Letícia submete seu corpo a uma série de torções e tensões. Aqui, vemos claramente que o corpo não é mais tomado em uma imagem apaziguadora, cartesiana, do corpo. Portanto, o corpo não é mais o que separa o sujeito do objeto, ou melhor, o pensamento de si mesmo, mas é como algo no qual se deve “mergulhar” (o mergulho no corpo era como que a fórmula produzida por Hélio Oiticica para exorcizar o platonismo, o purismo, o formalismo modernista) para ligar o pensamento ao que está fora dele, como o impensável. O que é o impensável? É, em primeiro lugar, o intolerável que leva ao grito silencioso de um corpo torturado involuntariamente, silenciosamente; é o desespero que leva a artista a contorcer seu corpo até se deformar em gestos inúteis, vazios, inqualificáveis; é a cerimônia estranha, que consiste em forçar o corpo a se libertar por meio de atitudes fora de convenções; é, sobretudo, submeter o corpo a uma cerimônia, teatralização ou violência, como no caso em que o corpo tenta se mostrar em uma postura impossível.
2
Isso foi, aliás, o que a motivou a realizar duas cópias do seu vídeo Marca Registrada, um preto-e-branco (1975) e outro colorido (1980). Na verdade, o master da primeira versão foi dado como perdido, em uma mostra na Argentina, no CAIC, tendo retornado anos depois.
O vídeo
Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único plano-seqüência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística – subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitar-se, comer, brincar de telefone-sem-fio – são encenados de modo a produzir uma imagem do corpo. Nos vídeos do grupo, a imagem é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do corpo, pelo “mergulho no corpo” – termo de Oiticica que retomamos como expressão da reversão estética, a cura da obsessão formal modernista. A questão do corpo retorna aqui como um conceito ou atitude crítica, que visa a nos forçar a pensar o intolerável da sociedade em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como em um rito de passagem; em Dissolução (1974), Ivens Machado assina o seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver; Sônia, em Sem Título (1975), entra em transe como forma de reagir contra o intolerável da televisão que atrapalha a sua refeição; em A Procura do Recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em folhas de jornal como forma de transmutar os pequenos gestos em rituais transgressivos; em Estômago Embrulhado, Paulo Herkenhoff transforma o ato visceral de comer jornal em uma irônica pedagogia de como “digerir a informação”; em um vídeo coletivo, Telefone sem Fio (1976), o grupo de artistas dispostos em círculo brinca de telefone-sem-fio enquanto a câmara roda em torno deles e o espectador assiste ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência).
A obra de Letícia Parente é marcada pela idéia de extrair do corpo uma imagem que nos dê razão para acreditar no mundo em que vivemos. Os vídeos (ver imagem na pág. XX) dessa artista são, cada um deles, preparações e tarefas por meio dos quais o corpo revela os modelos de subjetividade que o aprisionam. Em Marca Registrada (1975), Letícia, seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com agulha e linha, na planta do pé, as palavras Made in Brasil, ao mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do indivíduo, presente em vários de seus vídeos; no vídeo In (1975), vemos a artista entrar em um armário, como se tivesse virado roupa; em Tarefa I (1982), a artista se deita em uma tábua de passar e uma preta passa a sua roupa a ferro (o contraste entre as mãos da negra que passa a ferro, mas cujo rosto está fora de quadro, e a mulher branca deitada na tábua de passar faz deste vídeo uma versão tropicalista do quadro de Manet); no vídeo Preparação I, a artista se prepara para sair, mas ao se maquiar ela cola esparadrapo
em seus olhos e em sua boca, como para revelar que seus olhos e sua boca são pura máscara, ditada pelas convenções; em Preparação II, a artista se aplica uma série de vacinas contra preconceitos (racismo, colonialismo cultural, mistificação da arte, etc.). Esses vídeos guardam muitas características comuns: são todos eles realizados no espaço doméstico; a artista é quem realiza as ações que remetem (quase todas) às ocupações femininas (guardar roupa, passar roupa, costurar, se maquiar, etc.); nenhum deles contém falas;
todos são realizados em plano-seqüência. Isso me fez pensar na possibilidade de fazer uma instalação, onde eles fossem projetados lado a lado, em uma grande parede de 20 metros, de forma que os aspectos comuns – a coisificação da pessoa, a condição feminina, a opressão das tarefas e preparações cotidianas – fossem potencializados. Para alguns críticos, os trabalhos de Letícia e do seu grupo são como que registros de performances. Isso porque os aspectos técnicos da filmagem e da montagem são relegados a um segundo plano. Em todo caso, o que importa é que nos vídeos dos pioneiros a câmera e a filmagem agem sobre os corpos e personagens como um catalisador. Entretanto, hoje fica cada vez mais claro que os trabalhos de videoarte diferem dos outros em parte por uma espécie de secura, de quase ausência de decupagem e de montagem. Na verdade, há um desconhecimento da própria história do cinema de artista aliado a uma certa postura de colonizado. Não creio que se dissesse isso sobre filmes de Andy Warhol e Michael Snow. Os corpos monogestuais de Warhol (alguém dorme (Sleep), alguém come (Eat), alguém “experimenta” um boquete (Blow Job), alguém se beija (Kiss) e os planos-seqüência vazios de Snow (os 45 minutos de zoom de Wavelength, as três horas de movimentos panorâmicos de La Région Central) são uma das principais tendências do cinema experimental, em um processo de radicalização dos tempos mortos do cinema do pós-guerra (Neo-Realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo mundial).
As instalações
Dentre todos os seus trabalhos, o mais expressivo e atual a nosso ver é a instalação Medidas (ver imagem na pág. XX). Em primeiro lugar, Medidas reúne os principais conceitos e elementos do trabalho de Letícia: o corpo, o rosto, a transformação da ação física, da presença em ação cognitiva, e sobretudo a problematização dos modelos de produção de subjetividade. Em segundo lugar, Medidas utiliza os principais suportes e meios de expressão utilizados por Letícia ao longo de sua carreira, a fotografia, o audiovisual, o xerox, a instalação, entre outros. Evidentemente, os novos meios de produção de imagem não são, no caso de Letícia, determinantes – neles, o meio não é a mensagem, como diria McLuhan –, mas são sem dúvida condicionantes, isto é, são a condição. Medidas é, a nosso ver, a primeira grande manifestação de arte e ciência no Brasil. O texto de Roberto Pontual, que escolhemos publicar neste catálogo, nos apresenta uma descrição bastante correta da exposição Medidas. Entretanto, há uma série de questões a ser aprofundadas. Uma delas diz respeito à forma como Letícia se aproxima da estratégia estruturalista, em particular Michel Foucault, de desnaturalizar o corpo, de pensar o corpo como algo que é produzido pelas forças bio-políticas. O que é interessante no pensamento estruturalista, que é um pensamento do dispositivo por excelência, é que ele procura pensar os campos de força e relações que constituem os sujeitos e signos dos sistemas culturais para além de suas particularidades psicológicas (pessoalidade) e metafísicas (significação). O pensamento estruturalista é relacional, embora tenha guardado
um resquício de idealismo, seja porque acredita em estruturas essenciais e formas a priori (por exemplo, o incesto e castração para a psicanálise e para a antropologia), seja porque acredita na homogeneidade dos elementos que formam a estrutura (são da mesma natureza). Segundo Foucault, um dispositivo possui três níveis de agenciamentos: 1) conjunto heterogêneo de discursos, formas arquitetônicas, proposições e estratégias de saber e de poder, disposições subjetivas e inclinações culturais, etc.; 2) a natureza da conexão entre esses elementos heterogêneos; 3) a “episteme”ou formação discursiva no sentido amplo, resultante das conexões entre os elementos. Na verdade, a visada sistemática da concepção
foucaultiana está plenamente contemplada na etimologia da palavra “dispositivo”. Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais, etc.) concorra para produzir no corpo social um certo efeito de subjetivação, seja ele de normalidade e de desvio (Foucault), seja de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), seja de apaziguamento ou de intensidade (Lyotard). No caso de Letícia, as medidas são produzidas no sentido de produzir no corpo dos visitantes um efeito de desocultamento dos dispositivos sociais. Nesse sentido, o que ela faz é criar uma situação, um dispositivo (na verdade, um conjunto de dispositivos) interativo de medição do corpo. Não se trata de forma alguma de medir para fazer o visitante (aqui, o espectador já não tem mais nada de espectador, ele é “interator” no sentido mais forte desta palavra) conhecer o seu corpo. A estratégia é muito
mais desvelar o trabalho, ocultado pelo sistema produtivo, por meio do qual produzimos nosso corpo ao tentarmos nos adequar aos modelos que o sistema secreta, em função de suas estratégias de saber, de poder e de produção de subjetividade (os três eixos principais do sistema de pensamento foucaultiano). Na verdade, a exposição de Letícia joga com duas estratégias básicas: um dispositivo de mobilização do espectador (que age no nível sensório-motor, ou seja, das ações perceptivas, físicas, afetivas), no sentido de operar
as medições solicitadas, por outro lado, um processo de desocultamento, no sentido de levar pouco a pouco a perceber que as ações que fazemos no nível sensório-motor têm como conseqüência a crença de que nosso corpo é natural, quando na verdade ele é fruto de uma negociação permanente entre os modelos do sistema (as normas, as prescrições, a disciplina, o conceito de saúde, do que é ou não melhor para o corpo, enfim, os modelos de racionalidade e de funcionalidade do corpo) e os nossos próprios desejos. Trata-se fundamentalmente de uma exposição de arte e ciência na medida em que ela desencadeia no visitante um confronto entre seus corpos e desejos singulares e os modelos científicos (ou pseudocientíficos) que ditam as normas e as prescrições, que pretendem calibrar a relação entre risco e prazer sobre os nossos corpos. Ao contrário das manifestações de arte e ciência em geral, aqui a ciência é desnudada no sentido de que não é neutra; ela é o campo por excelência de produção de subjetividade. Portanto, ao contrário da maior parte dos artistas que usam a ciência para produzir arte (mas na maior parte dos trabalhos de arte e ciência a ciência é o personagem principal da obra, de forma completamente anódina), Letícia produz arte como uma forma de nos libertar de uma certa visão da ciência. Para terminar este texto, gostaria de agradecer a Daniela Bousso pelo convite que me foi feito para realizar esta exposição no Paço das Artes. Gostaria de agradecer à equipe e aos amigos do Paço das Artes, em particular a Angela Santos e Marcelo Amorim, bem como aos colegas Fernando Cocchiarale, Marisa Flórido, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Cláudio da Costa e Katia Maciel por terem aceito o convite para escrever sobre o trabalho de Letícia Parente.
Letícia Parente: a videoarte como prática da divergência Luiz Cláudio da Costa
O vídeo chegou relativamente cedo ao Brasil e seria rapidamente absorvido pelos artistas plásticos interessados em novas experimentações e meios não tradicionais. Uma primeira geração de artistas de vídeo surge em 1974 no Rio de Janeiro, por ocasião de uma mostra de videoarte – realizada na cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos – para a qual alguns cariocas foram convidados. O Rio se tornaria, então, pioneiro na videoarte no país, pela intermediação de Jom Tob Azulay, que trouxera um equipamento portapack dos Estados Unidos. Foi com esse aparelho que os artistas cariocas puderam iniciar seus trabalhos de expansão das artes plásticas. São Paulo só começaria a produzir vídeos a partir de 1976, quando o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo adquiriu o equipamento e o disponibilizou para os artistas da cidade. A primeira geração de videoarte no Brasil incluía Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger e Ivens Machado. No ano seguinte, três outros artistas se juntariam àqueles: Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Míriam Danowski (MACHADO, 2003). Letícia formou-se e doutorou-se em química, e a relação com a ciência e o pensamento científico aparece em seus trabalhos artísticos, seja para problematizar todo pensamento sistematizante e unificante, seja para encontrar no método científico uma possibilidade de pensamento sensível. Sua primeira exposição individual, Medida1 ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1976. Nessa exposição, Letícia induz os participantes a executar ações físicas, cognitivas, emocionais e reflexivas sobre si mesmos e a registrar os dados de mensuração e classificação (formas, proporções, capacidades físicas, tipo sanguíneo, etc) em fichas individuais. Letícia pretende dos participantes “os conhecimentos de parâmetros pessoais”, a “busca de identificação com modelos
estáticos preestabelecidos”, “uma tipologia e caracterologia (pseudocientíficas e obsoletas)”, a “constatação por analogia do clima competitivo do mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas de informação” (Projeto da exposição Medidas). Nessa exposição, Letícia mostra um pensamento crítico em relação ao método científico, ao mesmo tempo o interesse na construção de tipologias e classificações que servem ao pensamento problemático e
autônomas. Parece antes desejar colocar esses círculos da prática e do saber – seus dispositivos, instituições e discursos – em contato para atrito e divergência, desfazendo a lógica de oposição entre verdadeiro e falso. Letícia conjuga arte, ciência e vida, no sentido de fazer surgir um conhecimento do corpo cotidiano por meio de formalidades e cerimônias que problematizam as ações programadas e as classificações sistematizadoras da ciência. dá a Letícia grande liberdade para transitar por campos distintos e mexer com meios artísticos e não artísticos. A artista trabalhou com gravura, fotografia, xerox, fichas de documentação, audiovisual com slides, jornais. Esse lugar limítrofe em que se encontra como profissional da química e artista plástica, fronteira a partir da qual parece desejar fundar seu trabalho artístico, mostra, sobretudo, a necessidade de questionar esses mesmos campos e seus dispositivos, assim como os discursos proporcionados. Mas questionálos não pressupõe que a artista perceba nesses meios uma especificidade ou unidade que deva ser encontrada por seu olhar, seus procedimentos artísticos ou reflexão. Ao contrário, parece mesmo buscar o pensamento heterogêneo por meio dos dispositivos que questiona e problematiza. Nesse sentido não interessa à artista a relação de reflexividade sobre um gênero ou uma esfera do conhecimento como se essas regiões fossem
Nos trabalhos em vídeo de Letícia Parente, câmera e corpo agem sem que um ou outro esteja vinculado à representação de uma ação dramática. Sem que algo seja propriamente representado no sentido dramático, o corpo da artista executa uma ação única solitária (Preparação I, Marca Registrada, In, Nordeste) ou com a participação de uma outra pessoa apenas (Quem piscou primeiro?, Especular, Tarefa I, Carimbo). Em todos esses vídeos, percebemos a importância do comportamento do corpo cotidiano disfarçado por teatralizações ironizantes, de modo a problematizar a subjetividade sistematizada e internalizada nesse corpo dominado por poderes, saberes e discursos não visíveis no âmbito de sua fisicalidade. A cerimônia falsificante que impõe ao corpo posturas excêntricas – pendurar-se como roupa num cabide e trancar-se no armário como em In, ou deitar-se sobre a tábua de passar e ser literalmente passada a ferro por uma mulher negra como em Tarefa I – visa atingir potências desconhecidas com o riso, a astúcia e a alegria.
A artista proponente e o participante convidado executam a ação única extravagante. Os gestos e as atitudes dos corpos correspondem a gestos e a atitudes da câmera que se percebe. A câmera fixa ou móvel, consciente de si, enquadra o objeto visado, mas como num filme caseiro e despretensioso. Não é aqui o enquadramento o que importa, mas aquele registro, aquela imagem com todas as imperfeições, a ausência de foco, a imprecisão. A postura falsificante do corpo precisa ser registrada como um corpo no cotidiano da vida familiar. É a sede do registro o que importa: a exigência de apropriar-se do presente, sobretudo no engano da teatralização, para em seguida fazê-lo variar, constituindo um pensamento impróprio, mas imanente àquele corpo submetido àquela situação excêntrica. É essa necessidade que afeta a câmera nos trabalhos de Letícia e desfaz o propósito de representar aquilo que ela visa, assim como o de refletir sobre o dispositivo. O interesse da câmera é antes o de constituir uma imagem do pensamento como traço da situação, como cicatriz e não como significação. O objetivo não é nem narrar nem propor um discurso sobre o corpo ou sobre a obra num retorno auto-reflexivo. Ainda que haja esse retorno sobre o corpo, sobre o dispositivo de registro e sobre o trabalho sendo executado, o que importa é colocar o dispositivo e o corpo em contato com o que lhe é divergente: a artisticidade, a encenação. Importa colocar a arte em contato com a vida, ambos num processo de contrafação mútua, fazendo assim brotar um pensamento no corpo. A intenção não é autoreflexiva. Não há uma ação desdramatizada que se desenvolve na frente do espectador que necessita tornar-se consciente da câmera e dos seus processos de produção. Esse procedimento
de conscientização dos dispositivos foi proposto pelo cinema e pela arte modernos. Já temos essa consciência proporcionada pela cultura recente. Falta-nos o efeito sobre nossos corpos e nossas vidas, mais que sobre nossas mentes e nossas obras. Por isso Letícia se propõe a ações físicas insignificantes no interior de um cotidiano diminuto e sem importância exibidas diante de uma câmera que as registra sem desprezo nem admiração. Os primeiros espectadores serão a pessoa com a câmera e o artista em performance. Essa repetição da imagem e a variação do atual e familiar é tudo o que importa. As artes plásticas no Brasil nos anos 70, fortemente vinculadas à cena internacional, viviam um momento muito rico, com os desdobramentos de problemas que passavam das condições espaciais da percepção às suas bases corpóreas. O espaço bidimensional da tela já havia sido problematizado pelo Neoconcretismo e esses artistas propuseram não-objetos no espaço da galeria que exigiam a participação do corpo do espectador, ora manipulando objetos, ora adentrando espaços envolventes. Hélio Oiticica e Lygia Clark radicalizaram essa transformação ao promover o corpo como lugar, meio e suporte de suas expressões artísticas em trabalhos sensoriais. A experiência de novos suportes levara Hélio Oiticica a invenção dos Quase-cinema, série de trabalhos audiovisuais que utilizava projeção de slides, realizada em Nova York no início dos anos 70. Esses trabalhos, entretanto, não foram expostos publicamente na época. Outros artistas também experimentavam a expansão dos meios com filme de 16 mm ou super-8: Antônio Dias, Barrio, Iole de Freitas, Lygia Pape, Rubens Gerchman, Agrippino de Paula, Arthur Omar, Antônio
Manuel e o próprio Oiticica (CANONGIA, 1981). Freqüentemente, para esses artistas, o interesse na imagem técnica vinha da possibilidade de se registrar novas experiências corporais. Iole de Freitas, na série Glass pieces/life slices (1974), apresentava múltiplas faces de seu corpo, fragmentado por espelhos. Lygia Pape, depois de participar lateralmente em cinema como programadora visual para Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, decide experimentar o super-8 na direção oposta àquela que considerava de “resultado amorfo, bem comportado e cinemanovista” (CANONGIA, 1981: 43). Com Eat me (1976), Lygia constrói uma montagem métrica, não dependente de ação dramática, a partir de dois planosbase de uma boca masculina que engole e expulsa uma pedra sobre a língua (CANONGIA, 1981). Em todos esses casos em que há um forte investimento do corpo e da subjetividade, ainda que diferentemente em outros filmes de artista da época, a montagem aparece como procedimento que interessa ao artista. Assunto de debate, no sentido de uma recuperação dos escritos de Eisenstein e Vertov pela crítica cinematográfica daqueles anos, a montagem tornase procedimento integrante na produção dos filmes de alguns artistas plásticos envolvidos com cinema. A montagem métrica - que segundo a reflexão de Eisenstein, soma-se à rítmica, à tonal, à atonal e à intelectual - utilizada por Lygia Pape é, dentre outros, um dos processos mais elementares na construção de
conflitos e contrapontos (EISENSTEIN, 1990). Lygia Pape reinventa esse procedimento simples do cinema tradicional e cria um problema para a medida metricamente calculada colocando-a em contato com a forte conotação erótica de seu tema: o erotismo desmontando a racionalidade matemática. O problema da montagem no cinema mundial e também no Brasil era retomado em grande parte por influência dos filmes e reflexões de Jean-Luc Godard desde os tempos de crítico, no final dos anos 50 e início dos anos 60, nos Cahiers de Cinema, revista francesa de cinema que ajudou a impulsionar a conhecida Politique des auteurs e a Nouvelle Vague. O pensamento plástico-cinematográfico de Godard, fundado na montagem que utilizava cenas, sons e escritos gráficos na imagem em disjunção, colocava pensamentos, tempos e gêneros artísticos, literários e cinematográficos em relação de exterioridade paradoxal, avultando o sentido e lhe devolvendo as múltiplas direções. Nos anos 70, os artistas plásticos vinham de um contexto que colocava em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais.
composição formal. O outro texto publicado na Revista Malasartes, do crítico Ronaldo Brito, esclarecia essa função do objeto artístico como fetiche para o mercado e para a legitimação de uma classe social (BRITO, 1975). Era um momento de questionar a experiência estética fundada nas formas sensíveis do objeto e
Afloravam também os questionamentos sobre a função da arte, o circuito e o mercado em que a obra se insere. Como fetiche de consumo e signo de status social, a obra de arte é entendida antes como parte de uma engrenagem do que objeto cultural significante. A Revista Malasartes do fim do ano de 1975 publicaria dois textos importantes relativos às questões que o meio artístico estava interessado no momento. O célebre artigo de Joseph Kosuth, de 1969, traduzido para a Malasartes, foi fundamental para os desdobramentos das artes plásticas de modo geral e, especificamente, para a arte conceitual. Kosuth levantava os problemas da separação entre a arte e a estética e perguntava-se sobre a função da arte. Tratava do estatuto do objeto artístico e da relevância, para o pensamento e para a produção de arte, do contexto institucional em que esta se encontra: o museu, a galeria, o curador, o crítico, o historiador, etc - “a existência dos objetos, ou seu funcionamento dentro de um contexto de arte, é irrelevante para o julgamento estético” (KOSUTH, 1975). O meio artístico tornava-se consciente de que o objeto de arte participa da constituição de um sistema de circulação e que seu valor não provém apenas de sua
no sentimento de gosto da recepção contemplativa, marcando a passagem do objeto ao evento que artistas provenientes do Neoconcretismo já vinham efetuando. A problematização do objeto estético enquanto produto final levaria os artistas a valorizarem mais os processos de investigação, as mudanças e transformações intermináveis de um evento sempre por vir. A crítica de arte, por sua vez, não podia mais analisar somente os elementos formais da composição de uma obra que discursa sobre seu próprio meio. A crítica haveria de incluir a recepção e o espaço no qual o trabalho se insere, as relações que a obra constitui com o contexto da arte. A obra tendia a desaparecer enquanto objeto de contemplação e tornava-se, primeiramente, objeto de manipulação e, posteriormente, espaço para a participação e a mobilização corporal, assim como para a ocorrência de um evento por vir. A arte tornavase antes o lugar para o investimento e a produção de subjetividades, um pretexto para agenciamentos estéticos, mas também filosóficos, sociais, antropológicos, políticos. Com essa estética da desaparição em que a obra
para contemplação se vê desmaterializada, problematizada e desdobrada em eventos,
ao processo da obra a seus lugares tradicionais. O cinema tinha seu espaço próprio para acontecer, a sala escura. Era
reflexões, depoimentos, notas, escritos. E desse processo fazem parte o envolvimento físico-
preciso possibilitar a participação corporal na produção do sentido de outros atores envolvidos no processo fílmico - os
corporal e mental-conceitual tanto do artista como do espectador. Com isso surge, no rastro dessa
espectadores. Coisas inesperadas estavam por vir.
errância de obra, a prática da performance como indispensável, uma vez que o produto, obra ou objeto final tornavam-se desobrigados. A tendência à dissolução do objeto levava muitos artistas a se interessarem por esse novo campo de expressão, o vídeo. A imagem-movimento era atraente para o artista interessado nas dobras da obra sempre ausente, porém estendida em registros fotográficos, fílmicos, literários, etc. O cinema, porém, tal como havia se estabelecido, colocava o artistaautor e o espectador em lugares distintos e a obra cinematográfica, ainda que questionando os sentidos e as identidades fixas, devolvia os atores vinculados
A nova tecnologia de captação de imagem em movimento que chegava ao Brasil com o portapack permitiria fazer o que o cinema não era capaz: ver o registro da imagem no mesmo instante de sua produção, além de possibilitar a participação de outros atores no processo. No que diz respeito às performances, o vídeo permitiria tornar, imediatamente, um trabalho de corpo em acontecimento de imagem, o que daria complexidade temporal ao evento presencial por sua imediata virtualização. Na imagem do vídeo, a presença tornava-se problemática, desmaterializada, reflexiva e agenciadora de duas formas de presença, a física-referencial e a virtual-indicial Essa mídia viria somar às novas idéias vigentes da obra ausente, que exigia tanto do artista como do espectador desdobramentos
fantasmas, elaborações conceituais, movimentos corporais e processamentos temporais. Em resumo, o vídeo exigia uma
O conhecimento do trajeto de Letícia é ainda precário, apesar do esforço de alguns poucos
assimilação do sentido como marca e cicatriz da experiência física.
interessados que vem organizando o acervo da artista. Os primeiros trabalhos de Letícia datam
É nesse contexto que os trabalhos de Letícia Parente surgem, tornando ainda mais complexa a relação com o espectador. Suas performances não existiriam para uma platéia, mas tão somente para a câmera que a registrava. Um trabalho de videoarte não seria apresentado em salas escuras com espectadores sentados, mas em qualquer lugar onde houvesse um equipamento de exibição e uma TV. Por falta de recursos técnicos acessíveis aos artistas naquele momento, os vídeos produzidos pela primeira geração não seriam editados. Manteriam, ao contrário, apenas o registro do gesto performático do artista, o confronto da câmera com seu corpo - procedimento mais elementar dessa nova arte que surgia.
de 1975, sendo Marca Registrada o vídeo mais conhecido e perturbador para a época. Nesse trabalho, a artista borda com uma agulha na sola do próprio pé a frase “Made in Brasil”. É interessante notar a ausência de composição, o desprezo pela estruturação, a improvisação tanto da câmera que observa quanto da performer que necessita refazer seus gestos quando um ponto de seu bordado se desfaz. Não há uma composição e nem mesmo construção de obra. Apenas o registro de uma ação familiar e sem grandes pretensões, ainda que a frase que Letícia borda em seu pé tenha sentidos simbólicos precisos vinculados ao contexto cultural e político da época. Mas o que impropriamente nos perturba é o efeito, a variação do atual visado que
indiferença, a falta de sentido, a tristeza, a esperança, etc.
não podemos fixar. Havia um discurso cultural no momento que privilegiava a noção “nacional-popular”. Havia, por outro lado, os artistas da geração 70 que problematizavam toda idéia de comunidade nacional, afirmando a diferença, a subjetividade e o corpo. Havia um governo repressor de um lado e a esperança de abertura política de outro. Havia a tristeza das mortes promovidas pela ditadura e a esperança de um Brasil desenvolvido e de livre mercado. Havia as experimentações dos artistas conceituais e a crença num mercado para a arte internacional produzida no Brasil. Todas as contradições parecem se multiplicar nesse vídeo feito sem pretensão, sem estrutura, sem composição. Registrando em seu próprio corpo as múltiplas contradições do momento, Letícia afirma e rejeita os vários discursos vigentes na cena artística dos anos 70: a noção de obra de arte como objeto para um mercado de elite, a idéia de identidade nacional, a mulher de classe média, o cinema, a política, a ditadura, a diferença, o sentimento de desprezo, a
Marca Registrada ironiza várias noções, conceitos e valores dos anos 70, criando estranhos paradoxos. Se a frase é uma referência à artista, tudo está fora de lugar, porque é redundante e óbvio. A ironia é manifesta. Se a referência é o discurso vigente da identidade cultural unificada na comunidade imaginada da nação, o desprezo parece evidente uma vez que a inscrição é bordada na parte mais baixa de seu corpo. O fato de ser brasileira ou de participar dessa comunidade imaginada é o que menos importa. E se a referência da inscrição é a obra que produz, sua indiferença também é total, uma vez que é coisa a ser pisada. É negada a noção de obra. O que faz a obra é a experiência do descentramento que ela é capaz de produzir, por isso a execução de ações excêntricas. O ato de bordar, na cultura patriarcal brasileira, é função da mulher. Bordando sobre a sola do pé, Letícia afirma e rejeita a experiência da identidade feminina vigente em nossa cultura. Letícia produz todos esses movimentos, fazendo justamente o que é dela esperado. Vai ao encontro do esperado com a imagem do inesperado. Para além dos sentidos simbólicos, há ainda outros indizíveis. Fazendo penetrar a fina agulha nas camadas superficiais de sua pele, invadindo a superfície de seu corpo com aquele instrumento pungente, Letícia desarticula silenciosamente uma cadeia de experiências, valores, conceitos e idéias enraizadas na cultura artística e na cena política do momento. Mais do que minar valores
arcaicos substituindo-os com outros mais novos, Letícia dá mobilidade aos sentidos. Parece antes colocá-los a mover-se do que trocá-los por outros quaisquer que pudessem valer mais. Não há o novo a ser substituído pelo antigo, mas há movimento crítico, questionamento. São justamente os valores, sejam eles da arte, da cultura ou da política que estão em questão. Afinal, um trabalho artístico exposto sobre a sola do pé que tocará a terra, o chão, não é aceitável para os valores de uma cultura que acredita que a arte eleva o espírito. O comportamento disciplinado de um corpo dócil que age cegamente comandado por ordens que ele mesmo desconhece parece mesmo interessar a artista. Em Preparação (1974), Letícia se prepara para sair. Desviando dessa ação cotidiana simples e familiar por meio da teatralização, Letícia se coloca diante do espelho e cobre os olhos e a boca com esparadrapos. Sobre eles, desenha outros olhos e outra boca. O que se revela nesse trabalho é
a afirmação de uma necessidade, um desejo: falsear o corpo é inventar um sujeito, é potencializar outros modos de ver e sentir. Outros comportamentos implicam em novas subjetividades. Essa é a política do corpo praticada por Letícia Parente em seus vídeos, o que mostra que o campo da estética não diz respeito somente ao gosto e às formas, mas também a uma esfera prática. A arte se expande ao cotidiano e ao espaço da existência para retirarlhe a vida escondida nos escombros do corpo disciplinado. Compartilhar a existência com o outro, descobrir-se como um outro fez parte das pretensões artísticas de Letícia Parente. Dois vídeos de 1978, Quem Piscou Primeiro? e Especular reproduzem a relação entre duas pessoas, o primeiro na forma de um jogo e o segundo, na forma de uma conversa absurda entre os participantes através de uma espécie de estetoscópio duplo. Não há dúvida nesses dois trabalhos, o diálogo que Letícia mantém com os objetos relacionais de Lygia Clark, como Óculos, de 1968. Nesse trabalho Lygia Clark adaptou óculos de mergulho para a utilização de dois participantes que captam imagens de si mesmos e do ambiente circundante por meio de espelhos que podem ser rodados conforme a participação. O objeto torna-se lugar para estabelecimento de um diálogo entre os participantes. Os dois vídeos de Letícia Parente, produzidos dez anos mais tarde, mantém a mesma
ordem do jogo para potencializar o diálogo e a relação entre os participantes. O objeto produzido, o estetoscópio duplo, só faz sentido se utilizado como processo de relacionamento intersubjetivo, de aproximação com o outro, de contato, enfim, com o estranho. No caso específico do vídeo Especular, o objeto utilizado cria um estranho paradoxo que mostra que a aproximação com o universo de Lígia Clark não era superficial. O estetoscópio é um instrumento de ausculta de sons internos do corpo (coração, pulmão, estômago, etc) ao passo que no jogo proposto por Letícia, o aparelho colocado no ouvido dos dois participantes não permite a ausculta do espaço interior do outro. Mas interioridade e
são por isso antes mobilizadores de variações de identidades individuais e culturais fixas, apresentando a subjetividade como extratos fluidos de interioridade e exterioridade, discurso e invenção, poder e construção, marca e ramificação. A arte nos trabalhos de Letícia Parente torna-se campo de experiência, prática do estranhamento do hábito, do comportamento e do mundo da cultura e das instituições. Em Nordeste (1981), vemos uma mala de couro rústico sendo aberta e em seu interior duas cobras vivas sobre um lençol
exterioridade criam conexões e atravessamentos, contato e disjunção. A frase que os participantes repetem com variações múltiplas – “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim dentro de você”, “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim do que eu estou ouvindo de você dentro de mim”, etc – indica o contato entre interioridade e exterioridade que está se produzindo mútua e indistintamente, num processo de repetição e variação, de estranho acordo trabalhado na dissensão. Esses vídeos não são produzidos para a contemplação. Não são propriamente nem belos nem sublimes, ainda que o sejam impropriamente. Não são tampouco discursos estéticos auto-reflexivos, denunciadores do aparato artístico ou mecânico. O que não implica que não haja aspectos contemplativos e auto-reflexivos nesses vídeos. Apenas pretendemos enfatizar que a pretensão é a de praticar um pensamento e uma política de produção de subjetividade. Esses vídeos
branco. A pessoa, que jamais é identificada por seu rosto, manipula o lençol e modifica a posição das cobras. Nada sobre o nordeste brasileiro temos acesso nesse vídeo, nada sobre o sertão tão presente nas telas de nosso cinema desde os anos 60, nenhuma representação do outro. A identificação e representação não são mais possíveis, mas ainda assim é preciso inscrever sensações. A música dos Novos Baianos insere às experiências de Letícia Parente naquele momento pós-tropicalista em que a arte faz sentido
enquanto experiência de expansão dos sentidos, das sensações e dos valores. Ao nomear Nordeste esse trabalho, Letícia não propõe uma imagem da cultura nordestina, mas antes mobiliza a experiência singular dessa região de nosso corpo cultural ao qual se dá o nome de “Nordeste”. O vídeo tem algo da estranheza de Marca Registrada. Aqui, a agulha é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a presença do corpo sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da cultura. Mas outros elementos renovam os problemas: a região do país em questão (o nordeste), uma canção urbana, o contato com o animal repulsivo. Novos componentes se espacializam e se temporalizam numa mesma prática da disjunção, uma vez que não podem ser sintetizados numa representação de nação ou de sujeito artista. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele que vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta subjetividades. Agregando as sensações perfurantes da agulha em Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se percebe é uma fragilização tanto da obra como do autor, ainda que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média educada, afinada com a cultura popular-urbana, suas referências de profissional da química, interessada em dispositivos como agulhas e cobras, estejam presentes. No pouco tempo de sua produção artística, entre 1971-1986, Letícia mostrou-se interessada pela prática da contestação pontual, mas irônica e teatral: a contrariedade enganosa força a vida para fora do instituído. Sua trajetória artística não foi muito longa, mas apontou para uma intensidade alegre, ainda que grave em certos momentos. O jogo e a brincadeira sempre fizeram par com a prática questionadora. Feito em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger,
Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade, o vídeo Telefone sem fio não é o único trabalho coletivo. Já havia feito outros trabalhos em parceria com André Parente (O homem do braço e o braço do homem e Onde, vídeo desaparecido). Telefone sem fio, entretanto, mostra a importância do jogo, da cena e do engano na prática contestatória de Letícia Parente sobre as instituições do sujeito, da autoria, da obra, da verdade científica, do pensamento lógico que aliena a contradição e o dissenso ou os disfarça na unidade. Letícia parecia querer forçar o contato das forças internas do corpo com seu espaço de exterioridade, exigindoo passar pelo mundo externo do instituído. Forçar o corpo a participar de uma cerimônia encenada de contestação artificiosa em que o mundo da ordem sistematizadora, da burocracia e do poder implicados no corpo se expanda para fora e permita a produção de novos sujeitos, sempre esteve presente nos trabalhos de Letícia. No currículo da artista consta da participação na XVI Bienal Internacional de São Paulo, em 1981, no interior do Projeto Arte Postal. Para essa exposição Letícia produziu o vídeo Carimbo. Vemos o rosto da artista sobre o qual está sendo escrito o endereço da XVI Biena1. A instituição endereçada e para a qual pretende enviar o trabalho é inscrita na superfície de seu próprio corpo/rosto. As inscrições visíveis provocam o discurso da artista que narra sua dificuldade com a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, cuja burocracia não permitiu que ela gravasse sua proposta original de trabalho. No vídeo não gravado, Letícia teria sua testa carimbada nos espaços da instituição de postagem. Em Carimbo, vemos, porém, outra situação. Além da inscrição de endereçamento feita no rosto da artista, vemos ainda um grande papel que, segundo consta nas descrições do vídeo, é uma foto do rosto da artista
pela Bienal. No fim, a mesma pessoa que colocou o vídeo no aparelho, retira-o. Letícia alcança questionar duas instituições num mesmo trabalho. A Bienal não é objeto de polêmica, mas os Correios. A arte postal em vídeo – processo precário e ainda não institucionalizado pelo sistema das artes – parece estranha para o espaço que a receberá, ainda que tenha a instituição proposto o Projeto de Arte Postal. Mesmo que trate diretamente da instituição que lhe causou problemas – os Correios – por ordem de uma burocracia amedrontada e cega, Carimbo, de maneira irônica e sob o signo do engano e da ambigüidade, submete a Bienal e seus dispositivos burocráticos também à mesma crítica.
sendo novamente endereçado à Biena1. A gravação do vídeo Carimbo é precária, mal escutamos o que narra a artista. Mas percebe-se um trabalho feito em estrutura de parênteses. Vemos no início, alguém colocando uma fita de vídeo no aparelho para exibição na TV. A imagem da inscrição de endereçamento sobre o rosto da artista é vista nessa TV. Na parede ao fundo, vemos um cartaz da Bienal. A gravação de Carimbo parece ser feita em um escritório e então deduzimos que o vídeo é o registro da recepção
Parece que seus trabalhos frágeis, porém intensos, vídeos que são meros registros de ações não dramáticas, ainda que teatrais e falsificantes, forçam uma compreensão da arte: o lugar da prática da impropriedade. Agenciar-se com o exterior de um contexto discursivo, institucional, subjetivo ou político, sempre mobilizando seu próprio corpo e/ou outros participantes, é impor o engano, o erro, o desacordo. Em Preparação II (1975), Letícia registra a situação do processo de sua saída do país. Entendemos o contexto pelas fichas do Ministério da Saúde que a artista preenche após cada uma das vacinas que aplica em seu próprio braço. Como em seus outros vídeos, a única tomada registrada pelo aparelho não mostra o rosto da artista, sempre fora do campo de visão da imagem. Nesse trabalho de 1975, a artista demonstra claramente seu interesse por agenciar questões éticas e políticas além das artísticas, por meio da mobilização de seu próprio corpo. Aplica-se cada uma das vacinas contra o “racismo”, o “colonialismo cultural”, a “mistificação política” e a “mistificação da arte”. Fica claro
que o contexto político coercitivo do governo militar está em pauta e figurado na instituição do Ministério da Saúde. Mas o contexto artístico que problematizava a propriedade da Arte está acentuado pela ironia do trabalho. Aplicase vacinas contra vários valores instituídos, do racismo à mistificação artística. Aqui o movimento é contrário à fetichização do objeto de arte que o mercado necessita, colocando em questão o que é próprio à arte.
artísticos auto-reflexivos. Não se pode dizer que os vídeos de Letícia sejam propriamente auto-reflexivos porque faltam-lhes a nitidez ilusionista do cinema ou porque os drop-outs comentam o meio enquanto dispositivo eletrônico. Ainda que haja essa dimensão de exposição dos dispositivos técnico e artístico, seus trabalhos são mobilizadores de um pensamento que é puro traço. A figura da auto-reflexividade está inscrita como cicatriz que não permite que o trabalho volte-se somente para si mesmo, autonomizando esse processo de outras operações e esferas. A heteronomia marca os trabalhos de Letícia: eles existem em relação com o mundo das instituições, dos poderes e dos discursos. O pensamento é antes o agenciamento produzido entre forças, campos, e esferas contrárias e sempre exteriores. Seus vídeos são, nesse sentido, marcas dos eventos e das ações que se propõe atuar, índice de um contexto histórico e cultural que se impõe à imagem. Mas enquanto índice é também erro e armadilha, ironia e encenação, tudo conduzindo às ramificações e aos desvios seja dos gêneros artísticos, dos valores instituídos, dos comportamentos sistematizados, das instituições e burocracias, dos saberes e poderes. Letícia Parente praticou a arte do vídeo como potencializadora de um pensamento da divergência, esse que permite a ramificação dos sentidos e o desdobramento dos eventos.
Se por um lado não se fetichiza o trabalho artístico operando uma forte ausência de interesse estético pela pouca nitidez da imagem (e de som, quando existente), os vídeos de Letícia impõe um pensamento que é simples relação de contato, operação de proximidade física. Tal como Lygia Clark que havia descoberto um pensamento disjuntivo a partir da “linha orgânica”, Letícia descobriu a disjunção pelo contato entre a arte e a ciência, o corpo cotidiano e o cerimonioso, a instituição e a contrafação, o valor e a fraude, o acontecido e o encenado. Lygia colocou em contato superfícies (planos, coisas, objetos, corpos) e pela disjunção “escapou do objeto em favor do evento” (BASBAUM, 2006). Letícia encontrou a imagem da disjunção em seu próprio corpo e subjetividade, ambos marcados pelo pensamento lógico científico das medidas e dos métodos. Colocando a presença de seu corpo físico em contato com sua presença virtual, Letícia descobriu a simulação, a encenação e o engano como ordens do corpo, do pensamento e da arte em sua impropriedade própria.
Nota do curador: “O nome da exposição é “Medidas”, ocorre que no folder do MAM o nome é “Medida” no singular. Este erro induziu os comentadores a utilizá-lo no singular. Entretanto, tanto no projeto, como em textos posteriores, a autora se refere a exposição sempre no plural”. 1
Um presente desdobrado em imagem, um corpo que se faz ausente na variação, uma ação que não faz obra são agenciamentos que mobilizam o pensamento, mas não chegam a se transformar em reflexão analítica ou trabalhos
BASBAUM, Ricardo. “Within the organic line and after”. In: Alberro, Alexander. Buchmann, Sabeth. (Ed.). Art after Conceptual Art.. Cambridge: MIT Press, Generali Foundation, 2006 BRITO, Ronaldo. “Análise do circuito”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975. CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, 1970/80. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme.Rio de Janeiro: Zahar, 1990. KOSUTH, Joseph. “Arte depois da fiolosofia”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975. MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.
PROPOSTA DE ARTE EXPERIMENTAL Letícia T. S. Parente
1. Fundamentação teórica: A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que se contacta com ela, não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, “mas ao modo pelo qual ele é transmitido” (processo). Trata-se de uma tentativa de denunciar, sob a forma de mensurações competitivas criadas num espaço e todos os gestos dela decorrentes, a atmosfera de concorrência e tensão sob a qual vivemos no tempo histórico, em que os sistemas procuram enquadrar as pessoas para classificá-las quantitativamente ou distingui-las segundo categorias fixas de comportamento. O importante e desejável, mais do que as atividades que as pessoas desempenham durante a presença e participação no âmbito da mostra, é a verificação e a vivência de respostas ao nível de um público bastante variado em nível cultural e de faixa etária. 2. Proposta O que se pretende é a criação de um ambiente onde as pessoas sejam convidadas ou induzidas a: a) Ações físicas – Execução de medidas (sobre si próprias) em torno de capacidades e atributos físicos, recursos e habilidades individuais, etc.; b) Ações cognitivas – Conhecimento de parâmetros pessoais (importantes ou não); registro de dados observados em fichas individuais e coletivas permitindo a comparação dos mesmos; c) Atitudes emocionais – Envolvimento com clima competitivo (ou resistência, ou indiferença) em relação a si mesmas e aos outros; busca de identificação com modelos estáticos preestabelecidos por uma tipologia e caracterologia (pseudocientíficas e obsoletas) ainda vigentes em certos níveis de informação da mass media; d) Ação reflexiva – Constatação por analogia do clima competitivo do mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas de informação, e a denúncia das mesmas como dado referencial crítico.
3. Formalização da proposta a) Montagem de dispositivos semi-empíricos (criados pela proponente) mensuração de dados pessoais: Por exemplo: 1. Dados biométricos 1.1. Para classificação tipológica: Forma do rosto; Proporções do corpo, etc. 1.2. Para avaliação de capacidades físicas Força manual; Resistência ao frio e ao calor; Capacidade respiratória; Reação à luz; Tipo sanguíneo; Tipo de pele e cabelo, etc.
de
b) Audiovisual – O Livro dos Recordes; c) Livretos e álbuns xerografados ou de fotografias: - Classificação de figuras humanas de telas célebres; - Propostas de medições “para fazer em casa”; - Coletânea de material de livros científicos antigos e revistas e jornais atuais sobre testes, classificações, tipologia, caracteres diferenciais, valorativos, etc. 4. Disposição no espaço Vide layout anexo. 5. Época preferida Abril ou maio de 1976. 6. Previsão de gastos Cr$ material para construir os dispositivos de medidas audiovisual fotos, xerox e álbuns fichas individuais e coletivas catálogos (1.000 exemplares)
1.000,00 1.000,00 800,00 800,00 2.000,00 5.600,00
JORNAL DO BRASlL Rio de Janeiro, quinta-feira, 24 de junho de 1976
Artes Plásticas
MEDIDAS, POR FORA E POR DENTRO Roberto Pontual
Dá ao mesmo tempo alívio e esperança uma exposição como a de Letícia Parente, aberta desde o dia 10 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Alívio porque, no meio de uma temporada sem maior garra e interesse como a atual, ela reafirma a vitalidade do trabalho no âmbito da proposição experimental, exatamente um dos aspectos que melhor havia definido o comportamento das artes visuais no Rio em 1975 e que se estava demonstrando em recesso nos últimos seis meses. Esperança por vir talvez indicar a retomada mais compacta da atividade nesse setor no próximo segundo semestre. Por coincidência, Letícia expõe na sala ao lado da individual do jovem paulista Wilson Alves, o premiado da Arte Agora I. A mostra dele, no momento se encerrando, constituiu outro dos raros pontos instigantes no comodismo da temporada e redobrou sua importância por comprovar a vitalidade de que também se nutre a nossa recente escultura e/ou objeto – com um modo específico de indagação, mais do que visual, mágica e lúdica. 0 texto de hoje, no entanto, é sobre Letícia Parente. Nascida em Salvador (1930), até pouco tempo atrás ela residiu em Fortaleza, onde expôs pela primeira vez em 1973. Dois anos antes, estivera no Rio, estudando e participando de seminários com Anna Bella Geiger. E foi no Rio que se fixou de 1974 para cá. Pode-se dizer que os três anos de sua atividade têm sido marcados por uma opção de linguagem cujos contornos se definem desde cedo. O cerco da figura e do ser humano a partir dos mais diferentes pontos e ângulos de abordagem, utilizando particularmente a fotografia e o audiovisual. Há algo de fenomenológico, creio que em nível consciente, no seu método de tratar as evidências deste dado do real, que é o homem. Já era assim nos primeiros trabalhos que conheci de Letícia, em 1975 – por exemplo, no audiovisual em que apenas números de vários algarismos apareciam inscritos em cada novo diapositivo, correspondentes a nomes de pessoas sucedendo-se em ordem alfabética na fita gravada. Quaisquer pessoas, números e nomes apanhados nas fichas de algum setor da burocracia, malha que processa o indivíduo como multidão, quer defini-lo e apreendê-lo mas só consegue dessangrá-lo e diluí-lo. Nessa visão crítica do envolvimento burocrático, Letícia Parente se irmanava a Margareth Maciel, jovem carioca, também conhecida do público a partir de 1975, com trabalhos em torno do passaporte, da certidão de nascimento e da carteira de identidade – alguns entre tantos outros dos nossos documentos, seguranças numéricas e tipológicas no sistema, ainda que nos reduzam de formas vivas, na verdade imensuráveis, a formas arquivadas, papel-poeira de repartição. Mas a mostra atual de Letícia mantém elos muito mais diretos com a exposição que Emil Forman realizou igualmente no MAM, em agosto do ano passado, reunindo em painéis cerca de 2,5 mil fotos emolduradas, além de filmes exibidos no mesmo recinto, tudo concentrado numa única figura: a de sua própria mãe. Se Emil individualizava a esse ponto o objeto de abordagem – dando ao ambiente uma atmosfera final de santuário, morbidez de dados mortos que se acumulavam para modelar um ser ainda vivo –, Letícia procura o pólo oposto. Faz de cada visitante o centro, foco a ser medido por todo tipo de variável capaz de caracterizá-lo como forma física e processo
mental, corpo e alma, indivíduo. Ambos, Emil e Letícia, medem obsessivamente o ser humano, o mais próximo ou o mais distante, o conhecido ou o anônimo. Mas o mede, como também Margareth, antiburocraticamente, para torná-lo consciente de sua vida individualizada. Por isso, ela deu à exposição o título Medida – um método e uma ironia. Dividiu-a em dois setores complementares, um servindo à coleta de dados e outro à visão de dados já previamente registrados. Daí cabe dupla tarefa: a de ver e a de agir. Esses compartimentos de mensurações constituem, como os chama Letícia, estações, e se destinam a nos colocar em contato com dados em torno do tipo físico, da respiração, da resistência, do sangue, da acuidade visual, da atenção e das “medidas secretas” – estas, ao contrário das anteriores, voltadas para a liberação da subjetividade contra a rigidez nas medidas que podem ou devem ser exatas e objetivas. Diria que as primeiras estações referem-se ao corpo, às formas visíveis e a última, à alma, as formas impalpáveis do pensamento, da imaginação e da memória se desdobrando. Há uma estação extra, a do gosto, e um audiovisual, Os Recordes, completando a mostra de Letícia. Ali o visitante se comporta primeiro como quem vê e compulsa dados a ele oferecidos, inclusive os deixados por visitantes que o antecederam. Mas é logo solicitado a também produzir dados, por meio de testes que o levam, de estação a estação, a medir a si próprio e a registrar as medidas. “Quero deflagrar ações até que elas se incorporem e criem a forma das marcas do homem em sua presente busca: um fio entre os imensuráveis de sua trama. Desejo capturar vestígios atuais através de quantidades, medidas que possam se fazer transcender, a fim de que o imponderável invada e faça nexo ou interrogação.” Dispondo de dados concretos, precisamente mensuráveis, mas podendo submetê-los à ação aberta que é sua própria existência, o visitante tem como romper o “espaço imposto das gaiolas”, os números que o indicam em série, porém não o confirmam como ser único entre outros seres únicos, seus companheiros de humanidade. Letícia Parente mede, portanto, tudo – o tempo também. Durante a nossa permanência na sala de exposição estaremos sendo obrigados a ouvir de um alto-falante a voz monocórdia repetindo, em ciclos incessantes: “Cinco segundos, 10 segundos, 15 segundos, 20 segundos, 25 segundos, 30 segundos, 35 segundos, 40 segundos, 45 segundos, 50 segundos, 55 segundos, 60 segundos. Cinco segundos, 10 segundos”, etc. O tempo bate como um coração naquele espaço. E é medida que nos penetra e nos regula, igualmente imposta enquanto número. No audiovisual Os Recordes, a prevalência da medida chega, enfim, ao ponto de mostrar que o ato de medir se tornou compulsivo num mundo em que cada um tem de ser o maior para ser o melhor: são registros sucessivos de recordes que um dos dispositivos nos apresentam, dos mais corriqueiros aos mais estranhos, ao som de palmas padronizadas, como as que ouvimos vindos de falsos auditórios de TV – as quantidades fora de série, a elefantíase da concorrência, a desumanizante obsessão humana pela medida. O paraíso seria nada medir.
A CASA
Katia Maciel
Letícia Parente, artista e química, foi casada 20 anos, teve 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além de conhecer as ditas tarefas do lar, como cozinhar, costurar e cuidar dos filhos e marido, a moça baiana ainda dirigia, fez parte da juventude católica e trabalhava fora como professora de química na Universidade Federal do Ceará, e depois na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E tudo isso no Brasil da década de 1960. Os vídeos que a artista produziu entre 197582 mostram imagens que não saem de casa. Letícia Parente tece um fio sutil entre a casa e um pensamento sensível da arte. Com agulha e linha ela costura o Brasil na sola do pé, com o ferro de passar ela refaz as posições entre patroa e empregada e entre roupa e corpo, com o cabide se guarda no armário e com a maquiagem inventa uma máscara que cega. Cada trabalho realizado acrescenta ao vivido e com ele se confunde. A casa é então a família, a religião, o país, a casa é tudo e todos ao mesmo tempo, que, convidados a permanecer diante da câmera, não disfarçam suas imagens. O que vemos é cru, sem retoques, sem segundas intenções. Letícia não enfeita os momentos do cotidiano que escolhe. Ela faz passar os dias que passam por ela de uma outra maneira. Eu sou uma coisa no meio das coisas e desejo agir como elas, ficar dentro do armário, me estender sobre a tábua de passar. Ao mesmo tempo eu subverto. A empregada passa a patroa e meu pé é a minha terra. Nesse duplo movimento reside a tensão que caracteriza a obra de arte, um olho que assiste ao que é enquanto o outro insiste no que não é.
Preparação Diante do espelho a artista inverte a própria imagem, mas não se trata da visão de cima para baixo, trata-se da cegueira no lugar da visão. Letícia cuidadosamente, como uma mulher que prepara a maquiagem antes de sair de casa, cuida de cada parte do rosto. Cola primeiro um esparadrapo na boca e contorna os lábios por cima. Depois, também por cima de cada olho, repete a mesma operação. O desenho no esparadrapo refaz o que esconde. Sem fala e sem visão, a mulher continua armando o cabelo e fixa no espelho seu olho construído e bem aberto e depois deixa o espelho e o banheiro e a casa.
In Quantas vezes já penduramos roupas no armário? E quantas vezes já desejamos nos trancar em casa ou fechar a porta do quarto? O isolamento e o fechamento nos remetem às sensações de angústia, mas também à tranqüilidade e à paz. A artista desloca operações e objetos. Por que não nos pendurarmos juntos com a roupa? Por que não nos sentirmos como a roupa? Por que não deixar de sentir? Por que não guardar o que sentimos? Ela parece não pensar, ela está apenas fazendo mais uma tarefa do dia, não há tempo para pensar no cotidiano, é uma coisa atrás da outra. Mas, quando se fecha no armário, o tempo se guarda junto com a artista.
Tarefa 1 Letícia deita sobre a tábua de passar diante da sua empregada, que tranqüilamente passa a ferro a patroa vestida ,com a mesma atenção nos detalhes de quem passa uma roupa estendida e plana. A artista tem a calma de uma roupa vazia, não se move, não reclama, permanece. Ela é uma roupa qualquer, num dia qualquer. Não há indiferença, é apenas mais uma tarefa cumprida. Na relação entre a patroa e a empregada não há tensão, apenas uma cumplicidade muda. Marca registrada Os pés caminham, e depois as pernas que se cruzam mostram para a câmera parada a sola de um dos pés. A mão surge com a linha e a agulha que costura as palavras Made in Brasil. Brasil com “s”diante da presença americana que se desenha nos pés sobre os quais pisamos. Os pontos são firmes como se fosse em um tecido estendido. Sem qualquer hesitação, Letícia tece na própria pele o estado do Brasil, um país feito fora daqui, propriedade estrangeira, o Brasil de 1974, estranho a nós mesmos. A pele cede à pressão da agulha que não pára. No gesto não há violência, mas coragem. Brasil é uma casa estranha, nós e outros ao mesmo tempo. Ora pro nobis A voz repete a oração. Ora pro nobis, ora pro nobis, ora pro nobis. A cada repetição a fotografia em pretoe-branco das mãos entrelaçadas na reza é trocada por outra que também reza. A voz da artista é rouca e pede ora pro nobis. Nesta prece a luz surge e desaparece. Na reza não se reza, não há pedidos ou agradecimentos, apenas a ladainha que sussurra, que comove, que aflige. Na repetição dos gestos e da reza há apenas o sentimento da prece. Do canto da casa Letícia Parente olhou e viu outras casas. Do afastamento e da proximidade desse olhar surgiram alguns dos primeiros vídeos da arte brasileira, vídeos curtos, agudos, breves como relatos íntimos, mas que vão além da cotidianidade e apontam para o que está no avesso das nossas ações banais, o acolhimento da poesia que se repete todo dia.
Letícia Parente por Letícia Parente A característica principal do meu trabalho é não ter se fixado em nenhuma característica preferencialmente. A sua dinâmica é mais ramificada do que linear. Deixo que ele persiga um processo, o meu processo de descoberta e visão. Suas raízes de unidade evidentes estão dentro de mim e resultam da interação da minha realidade com a realidade social e histórica do meu tempo e do meu momento. É mais interrogativo que descritivo. Atendendo a uma intencionalidade com o máximo de rigor que me é possível, a uma coerência de leitura que possa conseguir, nem por isso escapa a um contorno maior, acrescido pela interação da obra com aqueles que a fruem. A participação do público é um elemento esperado e levado em conta. De acordo com o projeto, ora faz ênfase maior sobre a arqueologia do tempo presente, ora sobre uma linguagem denunciante e crítica. Há variação de meios. Há seleção de meios. Há somatória e combinação de meios. De preferência meios não convencionais. Crítica à maneira tradicional de arte, desde que não se coloque como objeto de consumo, no sentido de não estar dirigido à venda, embora isso possa ocorrer. Aberto a vários níveis de leitura e de público sem preocupação seletiva ou de diluição, torna-se muitas vezes um fato escandalizante dentro das “ortodoxias artistas”, uma vez que não exclui nem impõe nenhum tipo de pessoa. Isso acrescenta então novo aspecto crítico com relação ao sistema de arte e a desmistifica. Em alguns projetos o método de abordagem da obra pode estar enriquecido com uma perspectiva ou ótica utilizável em assuntos científicos. É a destruição de um outro tabu. A racionalidade que exige, porém, não pretende colocar a lógica num pedestal, mas também ela passa a ser objeto de crítica e denúncia. A verificação do humano sem proselitismo ou dogmatização pode bem ser a preocupação mais contínua e presente.
RELAÇÕES COM A INSTITUIÇÃO DA ARTE Até certo tempo achei difícil comprar a “barra” de aparecer como cientista profissional dentro de outra área profissional “oposta”. Tinha a impressão de que os profissionais de arte não aceitavam essa condição. Aos poucos, perdi a impressão. O relacionamento procedeu-se como em qualquer outro grupo, isto é, com dificuldades naturais inerentes às pessoas, pressões externas do meio, etc. Quanto aos críticos, sempre tive dificuldade de aproximação. Sempre me mantive à distância e com horror a usar as oportunidades para “furar” os muros. Perdi o horror, mas me mantive ainda distante. Acho a crítica necessária e creio que sempre existirá. O desempenho profissional com que é feita é que distingue a necessária da desnecessária.
Não concordo com que esses profissionais tenham poder maior que lhes seja dado pelo sistema quando utilizam instrumentos de opinião pública. Mas na realidade não há como neutralizar os efeitos multiplicadores senão desmistificando a ação por um efeito de conscientização maior do próprio trabalho e uma independentização do mercado como meio de sobrevivência econômica. O público me parece muito mais importante porque nele também está incluída a categoria dos artistas. Não faço restrições ao público. Acho importante qualquer público. Creio que cada um frui a seu modo. O grau de fruição é aberto. Se o nível da obra é esgotado no gole de uma pessoa, azar da obra. Foi pouca para a sede e para o espaço.
EXPERIÊNCIA DO GRUPO Foi das melhores experiências humanas e profissionais que eu já tive. Com todas as crises de nascimento, crescimento, etc. Quando me afastei “geograficamente” do grupo, considerei uma perda irreparável. Indispensável para: a)
Lucidez;
b)
Estímulo;
c)
Sentido de realidade;
d)
Informação;
e)
Ação no meio em momentos de atuação política.
A existência de um grupo de arte é uma luta contínua contra um condicionamento do artista individualista. As ações podem ser algumas vezes infantis ou superficiais. Mas sem passar pela experiência muita coisa válida não será descoberta. Do ponto de vista pessoal, a afeição e sentimentos negativos fazem parte da mistura. Tudo muito importante. Ameaçam e cimentam. Fazem crescer ou fragmentam. Quanto à perenidade, é difícil mantê-la. Os grupos também terão de se abrir, fechar, refazer, ampliar, cessar, aparentemente morrer, nascer de novo e tal. Transferi para cá a necessidade de vivenciar em grupo problemas da vida profissional deste setor de atividade. Não creio que possa mais dispensá-lo.
PROPOSTA DE SERIAÇÃO DE TRABALHOS A fim de conter momentos significativos de minha produção, bem como uma seleção que possibilite abranger todas as mídias utilizadas, fiz a seguinte escolha que, abaixo descrita, será acompanhada, no momento, de fotografias e, posteriormente, na ocasião propícia, das próprias obras.
Trabalhos em audiovisual (Seqüência de slides com som). Dimensões – Seria uma espécie de topologia de dimensão interna projetada no espaço, no tempo e, sobretudo, também na velocidade que é fruto da relação dos dois outros – “comunica-se nos outros apenas uma orientação para o segredo sem jamais poder dizer objetivamente o segredo” (Bachelard) (Rio de Janeiro, 1975).
TRABALHOS EM FOTOGRAFIA Projeto 158 – A interferência nas dimensões da face, alongando-a ou encurtando-a, indica, por meio de uma ideologia aparentemente flagrada em caricatura, a relação de dominação do exterior sobre a interioridade das pessoas (Rio de Janeiro,1976)
TRABALHOS EM VÍDEO Marca Registrada – De forma cruenta e remanescente de antigo costume popular presente em brincadeiras infantis, a autora costura no próprio pé, com linha preta, bordando as palavras MADE IN BRASIL (preto-e-branco – 11 minutos). Preparação I – Relação da pessoa da artista, através de seu corpo, com o contexto político-social e suas conseqüências. Presente, sobretudo, a opressão e a censura à lucidez e à fala. Ambos os trabalhos são desenvolvidos na linha do testemunhal; ponto de encontro dos caminhos por onde passa a arqueologia do tempo presente (Rio de Janeiro,1975).
TRABALHOS EM XEROX Seqüência de trabalhos das séries Mulheres e Casa. A proposta está dentro do pensamento anterior. Documentação da mostra de arte experimental Medidas A referida mostra aconteceu em 1976 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Utilizou-se de um conjunto de mídias: fotografia, xerox, audiovisual, jornal. A proposta tinha como premissa um questionamento e uma resposta (testemunhal) que chegava às raias da explicitação escrita em relatórios coletivos e individuais assinados. A quantificação violentava e feria, porquanto se efetuava sobre sensações, percepções e limites imponderáveis. A manifestação externa tomada como assunto deflagrador do processo era a competição em vários dos seus aspectos.
Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a André Parente”. 1
A Terceira Via. Entrevista de Fernando Cocchiarale
Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão da crise do Modernismo. A datação é relativa, os americanos tendem a incluir o Expressionismo Abstrato já no mundo contemporâneo. Eu penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte contemporânea, tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo da década de 1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição proletária ao mundo burguês e criar, dentro do mundo burguês, diferenças na esfera do comportamento que pudessem justificar a mudança na permanência. Muita gente diz que a passagem do moderno para o contemporâneo não se deu porque, afinal de contas, ainda estamos no capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção do jovem introduziu uma dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no campo da arte. Nesse último, podemos considerar o Abstracionismo, mesmo o expressivo, como o Expressionismo Abstrato americano, como uma espécie de poética do sujeito. O sujeito concretista é quase um sujeito cartesiano e um sujeito Pollock é quase a legitimação da existência de um inconsciente, de um interior – não importa, são faces diferentes do sujeito. Por isso mesmo, eles colocam a sua unidade, que vem lá de dentro, projetada, na sua obra, que tem um estilo, e pode ser detectável e reconhecível formalmente. Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção entre arte e imagem durante um período razoável – que foi o período das vanguardas históricas. Claro que sempre houve um flerte com a fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a gente sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna ainda era muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura, o desenho. Esse desenho era
feito em um retângulo, horizontal ou vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da janela renascentista. No campo das artes, em relação às transformações do mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do jovem cuidaram de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma sociedade regulada pela razão e pela ordem. Então você vê desde fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, ou mesmo uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia é um problema porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica jovem uma vez, você vai ficar jovem até 75 anos. A invenção do jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o ethos, com a estética, que justificam a passagem do moderno para o contemporâneo, apesar de você ainda estar em um regime econômico dominantemente capitalista. Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria radicalmente com a substituição de um modo de produção dominante por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que foi empiricamente conquistado pelos dois regimes, vamos ver que em um determinado momento, o regime soviético primava por ter uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou possibilidades de fraturas ou de fragmentações. Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção. Temos de observar que a transição para a arte contemporânea foi introduzida por artistas que começavam ali, mas ela foi vivenciada no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio Oiticica fez isso, ele foi moderno e se tornou contemporâneo. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então não é uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais complicada mesmo. Essa volta a um diferencial, a reintrodução da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali está, do ponto de vista espacial, por uma linguagem de formas ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem menos complexas.
Mas há a introdução de um fator muito importante, que eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é a assimilação do tempo na vida social desde o mundo que resulta do Iluminismo, no mundo moderno. A idéia de progresso, de avanço da razão, justifica a noção de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na Idade Média uns carros de boi, uma carroça ficassem obsoletos em menos de 200 ou 300 anos. A idéia de que uma coisa vai ser superada e vai ser substituída, no campo da produção, do objeto, do produto, que hoje em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com a invenção desses novos tipos de tema, como a história, no século 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina, você tem métodos específicos, você tem a historiografia para explicar por que as coisas mudam, por que elas se transformam. A introdução do tempo e do movimento certamente teria de empurrar a obra de arte que vem dessa tradição para registros não só técnicos, como a fotografia, como também o cinema e o vídeo.
Vídeo ou Performance? Naquela época, as performances (que ninguém chamava de performances, eram happenings ou intervenções) tinham por característica um certo desdobramento temporal, que precisava ser registrado, digamos, apenas como memória, ou havia um fotógrafo que pegava a seqüência, ou alguém com um Super-8, um 36mm, etc. Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito séria, que se dá no campo da experiência artística, que é pensar agora o tempo e o espaço como valores articulados. Não um espaço com um antes e um depois como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se de um antes e um depois que sustente uma narrativa de qualquer tipo. O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais
se caracteriza por um único sujeito com estilo definido. Na época em que começamos a fazer videoarte, nós tínhamos consciência dessas questões, mas não conhecíamos os textos da Lygia e do Hélio, não estudávamos isso. É importante dizer que o pessoal que passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de alguma maneira foi formado por uma espécie de terceira via. A via da Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li o Kosuth antes de saber o que era um parangolé. Das outras vias, uma delas era a que vinha de um experimentalismo de origem neoconcreta e a outra era a que resistia a isso por várias razões, até por um exacerbamento de uma posição formalista. Como a Anna Bella nunca havia explicitado para si o que estava operando, ninguém pensou sobre o que seria aquilo. Mas se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela, em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo, as duas outras vias não favoreciam isso, porque elas estavam ainda, digamos, voltadas para a observação da grandiosidade das questões de que elas eram portadoras. Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado,
em que ele e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a imagem só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele não poderia fazer. Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. Agora, o sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem que hoje em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma neopolitécnia que está no photoshop, que está no sintetizador. Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as pessoas acham que a linguagem do vídeo é filmar em close, editar, colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo registrar simplesmente uma performance. Não poderia aparecer daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se pusesse um desenhista, um Debret para desenhar. Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia – tacando o feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente –isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal da Globo. Aquilo quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou não é o que menos me interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter Benjamim já saca isso quando ele fala do close. Como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu vejo ali é vídeo.
A Contribuição dos Vídeos A contribuição artística desses trabalhos é inegável e eu poderia citar, de cara, a obra de Letícia Made in Brasil, que se tornou emblema de uma mostra retrospectiva de vídeos, diria eu, quase um emblema da videoarte brasileira. Então, se uma obra tem essa potência, eu não preciso dizer nada. Outro exemplo é o sucesso recentíssimo dos trabalhos da Sônia Andrade – recente no sentido de reconhecimento –, que participou de uma exposição no Louvre. O vídeo em que ela enrola um fio de náilon em torno do rosto foi associado pela curadora a Degas. Tratam-se de narrativas ou neonarrativas feitas sobre temas e questões que hoje são candentes e reconhecidas em toda a produção artística contemporânea. A questão do corpo, por exemplo, que está nos trabalhos de Letícia, de Sônia. Esta joga o feijão, enrosca o rosto. A Anna Bella sobe as escadas. Quer dizer, há uma performance, uma ação direta do artista. Agora, uma curiosidade: como é que a Anna Bella poderia subir e descer tantas escadas, externas e internas, se não fosse em um registro feito em vídeo? A linguagem do vídeo é isso também. Eu tive consciência no meu
trabalho de que a televisão era um meio de comunicação absolutamente essencial para o Brasil, naquele momento de ditadura, e, por meio da intervenção direta do defeito, tomei como lema o check-out desse sistema. A idéia era introduzir nesse sistema eficiente algo que comunicasse pela falha, pelo defeito, pela falta. Eu também só poderia fazer isso em vídeo. O próprio Herkenhoff, na série Estômago Embrulhado, quando ele filma uma notícia de jornal, “Cruzeiro já circula livremente no Paraguai”, lê a notícia, o público lê também, ele come e sai pela rua repetindo a notícia até a memória ficar diluída. Isso é um Globo Repórter no meio da rua. É feito com quê? Carvão, pastel, crayon? Não, só podia ser feito em vídeo! Não poderia ter sido visto de outra maneira se não fosse visto do jeito que foi. E foi concebido para ser visto em vídeo, então é videoarte, sim, e tem qualidades estéticas inegáveis.
Exposição Medidas Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência. Não por ser retrógrado ao que se chama arte-ciência, ao contrário, eu acho a arte-ciência retrógrada ao que a Letícia estava mostrando ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos de mensuração é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição, supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse sistema, mas ironizar e até, em certos momentos, implodi-lo. Então quando se fala em arte-ciência hoje, muitas vezes, o que há é uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas. Mas o que se chama de arte-ciência é quase fruto de uma sedução recíproca e no trabalho de Letícia o que há é uma espécie de tensão explícita e intencional. Até porque essa artista foi a pessoa que eu conheci que mais tinha as duas coisas, a arte e a ciência. Ela era uma química impecável, chefe do Centro de Ciências do Rio de Janeiro, mas sempre deixava claro que essa atividade como artista era o gancho que ela possuía com um outro lado, poético, humano, imprevisível, um lado do risco,
da incerteza, do jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver porque ele está muito bem encastelado em todas as suas razões. Em geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo tem suas razões”. Ela passava de um estado para o outro muito naturalmente. Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor, o lado da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza de que se há alguma coisa que a guia e que implode tudo isso é o lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração, um encantamento. É um trabalho, como você1 disse, foucaultiano, que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo não tinha nenhum objetivo escrutinador, esquadrinhador. Aquilo era uma coisa sensual, lúdica. Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo diz que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas experiências são registradas ali com uma seriedade quase de um viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que era o amor à verdade, aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então ele reifica aquelas experiências do cotidiano agindo sobre elas como se fosse um cientista. Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico, mas artístico. Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um português imprime um peixe em um papel lá em Lisboa, estivesse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película, cajuína em Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no sentido de rendição, no sentido de libertação.
Persistência da consciência: marcas da identidade Cristiana Tejo
Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo, a conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano afirmar que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas, mesmo que suas obras extravasem o entendimento e a pertinência para outros contextos e gerações. Dessa forma, poderíamos dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra manifesta seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização do corpo como suporte discursivo, a escalada do consumismo exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias, aspectos que caracterizam a arte da segunda metade do século 20. Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual que lida com essas questões. Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino como alvo de reificação num período de extremo questionamento da posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se. O aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária femininas é representado a partir
de subversões e paródias de situações cotidianas em ambientes domésticos, concomitantemente simples e de alta potência imagética. Em Preparação I, o ato banal de se embelezar para sair transforma-se no vestir de uma máscara. O deslizar do batom não evidencia os traços labiais da artista, mas por ser aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios, uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um caráter de mascaramento. O que supostamente seria feito para ressaltar a beleza feminina apresenta-se como falseamento, enganação. Em outra performance sem audiência, a artista abre um armário e pendura-se num cabide através de sua própria roupa. Neste outro comentário sobre os adereços que podem garantir a feminilidade, fica mais evidente a crítica ao processo de coisificação do humano, já identificado como Homo consumericus1. Roupa e mulher confundem-se de tal forma que não se apartam. A vestimenta que ganha crescentemente o poder de definição de identidade e status cola-se no indivíduo, que parece não mais significar nada sem seu símbolo de colocação e expressão. Ainda sob a abordagem da aderência e contaminação da identidade pelas vestes e consumo, Letícia Parente deitase numa tábua de passar roupa. Seu traje-pele é passado a ferro. Não há truques. A crueza do ato é uma das maneiras de amplificar a urgência de seu discurso crítico, assim como se fazia nos anos 70, a exemplo das performances desafiadoras e arriscadas de Marina Abramovic e Chris Burden, entre outros. A contundência da imagem (que é diretamente ligada à verdade, à realidade) é um recurso usado amplamente pelos artistas a partir da segunda metade do século 20. Ver é crer, e no caso de Letícia, assim como no de muitos outros artistas, a ação vista é a ação praticada. Marca Registrada, trabalho exponencial da artista baiana, apropria-se novamente da pele. Não mais como indistinção entre indivíduo e consumo, mas como superfície escrevente. A artista borda os dizeres Made in Brasil na sola de seu pé num grande close da câmera. Mesmo sabendo que essa brincadeira recorrente no sertão nordestino não fere a epiderme e é reversível, o ato suscita apreensão e desconforto. Fica patente o intuito e a carga simbólica de sua performance: o pertencimento marcado com severidade e agressividade, que é eternizado em nosso imaginário. A preferência pela língua inglesa e o uso de uma
técnica tradicional de sua região natal ressaltam outra questão identitária, a cultural. Uma constante nos debates intelectuais brasileiros desde a independência do Brasil, os questionamentos sobre a influência estrangeira e o colonialismo cultural ressoam fortemente não apenas no país, mas internacionalmente, graças ao processo de independência política e econômica que diversas sociedades atravessam a partir dos anos 60, além do aumento do fluxo de imigração mundial. Esses tópicos servem ainda de pano de fundo para Preparação II. Uma pessoa aplica em si mesma vacinas contra o colonialismo cultural, o racismo, as mistificações política e da arte. A ação é seguida do
preenchimento de um cartão convencional de vacinação. O Homem do Braço e o Braço do Homem assinala uma fase posterior das investigações de Letícia Parente. Seu foco migra para uma discussão mais abrangente do corpo e inclui a afetividade e comunicação como catalisadores de seus trabalhos. O tom assumido nessas obras do final dos anos 70 pende para o lúdico, assimilando o outro (a artista deixa de ser a protagonista das ações e passa a orquestrar os trabalhos). Nesse vídeo, Letícia versa sobre a mitificação da virilidade e da resistência esperadas do corpo masculino. Um anúncio luminoso de uma academia de ginástica mostra o movimento incansável de um halterofilista contraindo seu bíceps, numa clara demonstração de força. Após um período longo de exposição à seqüência repetida do néon, uma imagem de um rapaz de carne e osso copiando o movimento braçal é sobreposta. Assistimos à sua tentativa de manter o ritmo da máquina e sua gradual falha. Seria uma antecipação da discussão sobre gênero que atualizou apenas recentemente os argumentos feministas?
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Colocação de Gilles Lipovetsky em Tempos
Hipermodernos, pp 122.
Especular e Quem Piscou Primeiro? partem do espelhamento e da complementação como argumento. No primeiro, observamos um processo de diálogo e reciprocidade. Um casal busca clarificar seu processo de escuta. A cada fala a conversa vai se tornando mais complexa, sem que a dupla escorregue no entendimento mútuo de suas ações. O segundo vídeo coloca um casal de frente para uma TV. Vemos apenas seus reflexos no aparelho de televisão e devemos prestar atenção no causador do fim da brincadeira. Assim que um dos dois pisca o olho, o vídeo escurece e a gincana acaba. Potencialmente um trabalho de percepção, Quem Piscou Primeiro? ativa também a capacidade de olhar para o outro, de se deter no rosto de alguém, mesmo este encontro sendo mediado pelo vídeo. Tal aspecto afetivo é arrematado por De Aflictibus, uma seqüência de slides de entrelaçamentos corporais de todos os tipos. Experimentação plástica que se tornou freqüente nos últimos anos, Letícia Parente ritma imagens de fusões corporais com uma frase que mais parece mantra entoado gravemente. A produção contemporânea brasileira atual deve muito à investigação desta artista e de sua geração. A amnésia reinante obstaculiza o surgimento de um experimentalismo pungente e não ingênuo.
Cristiana Tejo é diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães.
Letícia Parente. Livro: Arte e Novos Meios (FAAP) “Em termos de trabalho eu cheguei a articular A Proposta da Casa (série de xerox), cujo assunto é a casa, em Fortaleza e no MAC-USP, mas dependia do trânsito dentro do espaço. Comecei o trabalho em xerox em 74, e esporadicamente ainda faço, mas não é o cerne da questão. É uma casa com cortes, na sua planta baixa, que tem três situações geográficas, três estados: Bahia, Ceará e Rio, as minhas residências. Outra coisa importante deste trabalho é que sempre há um elemento de tecnologia do nosso tempo, que acrescento e procuro contrastar com a linguagem mais poética: então, essa planta baixa, que é de uma casa típica de BNH, com os sinais de letraset, por exemplo, é seta num lugar-comum de indicação. Fui colocando idas e vindas, voltas e revoltas na entrada, e no lugar da conversa tem essas mãos todas aqui (em letraset), diálogos desejados e coisas assim. No quarto há sete camas em letraset, sete alternativas. Numa mistura de senso, inocência e sinais estereotipados – aqui rituais de codificação. Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco diferente, que era um trabalho em cima da mulher. O corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços. Todo o corpo em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do corpo todo feito da própria função do corpo – não no sentido só da função física, mas de uma função social-humana. 0 outro era uma seqüência de perucas, de fisionomias de mulheres. A contradição, as perucas, as mulheres carregando perucas, os manequins carregando as perucas e as mulheres imitando as fisionomias dos manequins – aquele efeito estilizado do manequim. Havia uma seqüência de óculos: uns que davam felicidade, outros que estavam ainda com olhos e narizes, boca sentimental, todo aquele jargão do consumo querendo decifrar o psiquismo feminino, usando ao mesmo tempo e veiculando a propaganda. A fase do corpo que testemunha situações culturais, políticas e sociais culminou em um trabalho de vídeo que de todos foi o que conseguiu a sigla mais forte – chama-se Marca Registrada. Nesse trabalho eu costuro na sola do pé com uma agulha e uma linha preta as palavras Made in Brasil na pele. É uma agonia! Dá muita aflição, porque a agulha entra, fere o meu pé – só podia ser o meu próprio. Há um costume popular na Bahia em que se borda muito com uma linha na palma da mão e na sola do pé. Esse é o trabalho de vídeo de 75, que sintetiza essa fase toda. Em geral, a gente tem de ter essa caminhada, um processo de gestação de certo modo, eu não sei dizer o que é – se é emocional, se é intuitivo –, e depois tem a parte de reflexão. Realmente o pensamento faz a consistência, elabora as amarras das coisas. E a vida é momento, é paixão, é emoção, é tudo misturado. O pensamento está ali fecundando essas coisas todas e estruturando, porque às vezes me parece que é assim. Estava preocupada com que as coisas tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas respostas.”
A CARNE DA IMAGEM
Marisa Flórido Cesar
Se a imagem no espelho se assemelha a nós o suficiente para ter direito a um nome, o nosso, esse nome só faz sentido para o ouvido e a voz de um outro. O espelho não tem ouvidos e a imagem só adquire sentido na triangulação em que a voz pede ao olhar para não se tomar por aquilo que ele vê, senão será tomado por aquilo que ele não vê. Onde estão as vozes que constroem nosso olhar para lhe dar visibilidade? Marie-José Mondzain Le Commerce des Regards
A mulher diante do espelho. Nada mais corriqueiro do que vê-la maquiar-se defronte à superfície do cristal. Salvo que, naquele lavabo, inicia-se um cerimonial que nos sugere uma estranha violência, uma automutilação simbólica: a boca é silenciada com um pequeno esparadrapo sobre o qual a mulher delineia seus lábios. Os olhos são então vendados: um após o outro, e sobre o tecido branco, são desenhados os olhos subtraídos. Tateando à procura da porta, a mulher enfim retira-se. O que se oculta atrás do mutismo e da cegueira das imagens? O vídeo chama-se Tarefa I (1975) e, como em outros vídeos de Letícia Parente, é a artista que protagoniza a performance no espaço privado de sua casa. São rituais do cotidiano, pequenos afazeres domésticos e banais desprovidos de narrativa dramática, como passar ou pendurar a roupa no armário. Mas eis que a roupa ainda veste a artista, aquela que realiza a ação confunde-se com aquela que sofre a ação: a artista é suspensa pela roupa no armário. Corpo, carne e o véu que os cobre tornam-se indiscerníveis. O olhar e a voz convocados no endereçamento são apanhados na armadilha: a imagem é o lugar de uma indecisão, ou, como diz Marie-José Mondzain, “de uma crise”.
No final dos anos 50 e nos 60, os happenings e as performances já haviam introduzido a execução de tarefas cotidianas como as Task Performances, de Robert Morris, coreografias realizadas com Simone Forte e outros dançarinos. O esvaziamento do gesto expressivo do artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas, com seu tempo operacional, repetitivo e autômato, a exigência da co-presença do espectador para a completude da obra vinham opor-se às concepções formalistas da arte. Mas, tal como Bruce Nauman, que na série Studio Films executaria uma sucessão de atividades em seu ateliê, muitas vezes conduzindo o corpo à sua quase exaustão, as performances e tarefas de Letícia Parente não se realizam diante de uma audiência, mas têm a câmera, seu olho maquinal, como testemunha. Tarefa I parece remeter ao gênero do retrato na arte, expondo-o em toda a sua ambivalência: de um lado, está a clausura de um si mesmo, figura cega e muda, colocada frente à face e à visão de um espelho impossível e sob a vigilância de um olho mecânico. De outro, um fora de si, figura extraviada que se ganha e se perde na própria captura. A imagem solicita a palavra, o sopro de um sentido partilhado, mas não se deixa capturar ou reduzir-se por ela. Como devolver àquela figura a voz, se nenhum nome parece adequar-se? O que se mostra ali como uma fratura íntima é o véu obscurecido de um encontro, de um espaçamento. “Arte”: o nome instável desse encontro.
“Entretanto, ʻeuʼ não me encontro, nem me reconheço no outro, existo com ele: eu experimento a alteridade e a alteração que em mim mesmo coloca, fora de mim, nessa exposição, a singularidade de qualquer existência tecendose em tramas e ecos infinitos” — eis a resposta subentendida em outro vídeo, Especular (1978). Nele, o espelho foi removido. Permanece, pelo nome que o intitula, apenas o adjetivo que designa sua propriedade reflexiva. Em seu lugar, um jovem casal se olha e se escuta por estetoscópios. Ela diz: “Eu quero ouvir o que em mim você está ouvindo dentro de você”. Ele responde: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você, dentro de mim”. Ela outra vez: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você, o que você está ouvindo de mim, dentro de você”. E assim, sucessivamente, nos rebatimentos da palavra, Narciso oferece a hospitalidade a Eco. O que faz a arte senão solicitar o pensamento e a sensibilidade diante do visível e explicitar
seu desamparo diante da face impossível? O que faz a arte senão expor esse vazio, essa intermitência, esse espaçamento eclipsado, que todavia abre o lugar a um terceiro. O lugar de onde se aguardaria uma resposta, a recompensa desse dom. Qual é o lugar que ele ocupa nesses rebatimentos amorosos e fugidios? Letícia Parente é uma das primeiras a trabalhar com videoarte no país. E, de certo modo, seus vídeos estão em diálogo com as questões da história da arte e de suas imagens, mas confrontam-se, também, tanto com a invasão das visibilidades da televisão e da propaganda, quanto com o roubo das imagens de uma sociedade de controle, que então se anunciava. A onividência divina dando vez ao olho das câmeras de vigilância. Seus vídeos interrogam as tiranias que exercitam e extraem o poder da
imagem, esvaziando-a em submissões crédulas. As tiranias que promovem estratégias de cegueira e de emudecimento: manipulam o desejo de ver, violentam nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra. Encarceram visão e voz na servidão dos consensos econômicos, políticos, religiosos, fusionais, identitários, quais sejam. Mas ela o faz, acredito, indagando os fundamentos de nossa relação com a imagem. Nos vídeos de Letícia Parente, corpo, casa, figura, as tarefas cotidianas ganham contornos singulares, solicitam outras aproximações. Os rituais domésticos assemelham-se à paixão da carne e da imagem, interrogam a capacidade de sentir, de afetar e de ser afetado. São as pequenas paixões do cotidiano, suas passagens, os modos de aparição de um provável homem dotado de palavra e de visão. O que está em questão ali é a natureza da imagem que se ergue e se
imagem que existe por nós e faz um mundo advir por ela, no jogo das aparições e desaparições recíprocas entre homem e mundo. O que está em questão ali, penso, é a possibilidade de um homem, de uma humanidade sempre por vir. Figura paradoxal que se debate entre seu excesso, sua infigurabilidade, e o desejo e desenho de sua imagem. Entre o véu que cobre a face inominável e o véu como plano de inscrição de um nome encarnado. Afinal, aquilo que um dia chamamos homem nasce da palavra encarnada na imagem. Na instalação Medidas (1976), realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, as pessoas eram convidadas a passar por uma série de testes e escolhas tipológicas para montar seu perfil ou sua face. Eram formas de mensuração, classificação e catalogação as mais diversas: definições dos tipos físicos (altura, peso, forma do rosto e proporções da face); comparação e escolha de uma das imagens da história da arte (como Virgens e Vênus) ou de tipologias supostamente científicas; um audiovisual com slides, extraídos do livro Guiness do ano, que exibiam o que escapava dos padrões e das medidas habituais (como a mulher mais gorda ou as unhas mais compridas); um ambiente em que se guardavam as medidas secretas. Dispostos em seqüência linear, cada um passava por essa espécie de “estações de sua paixão pessoal” munido de uma ficha em que preenchia seus dados particulares. “A medida é a conveniência [convenience] de um ser a um outro ou a si mesmo”, disse Jean-Luc
Nancy. Se a Antigüidade era o mundo da “medida, do horizonte, do phronésis, da mésotès e do metron – em que a hybris era por excelência a desmedida mensurável – essa medida era a conveniência de ser si mesmo, o modo e não sua dimensão.”1 A medida do mundo moderno e ocidental foi, por sua vez, o modo desmedido do infinito. Um modo infinito de ser cujo fundo é cristão. Pois ainda que a criatura conservasse uma medida pelo reflexo de Deus, guardaria também o vestígio de seu criador: o homem, medida de todas as coisas, esse filho do humanismo grego e cristão, possuiria por conveniência Sua imensidão, Sua não-medida. Mas o que seria hoje, a medida ou a desmedida da existência sem Deus e sem eu, senão o sem-medida enquanto tal, que conduz o próprio homem a uma outra imensidão? Não mais como substância, não mais como o infinito de Deus, mas a imensidão da “responsabilidade”2. A imensidão de um cuidado. Ora, nossa relação com a imagem está indiscutivelmente vinculada ao pensamento cristão. “A imagem fez uma entrada real em nossa cultura em que a encarnação cristã deu à transcendência invisível e atemporal sua dimensão temporal e visível, a transcendência que negocia com o acontecimento (...). Deus entra na história pelo nascimento de sua imagem filial. Doravante, no Ocidente, a manifestação do visível se descreve em termos de nascimento, de morte e de ressurreição, ela se endereça aos corpos vivos dotados de palavra e julgamento.”3 Nas reflexões de Marie-José Mondzain, o imaginário contemporâneo tem suas fontes na crise do iconoclasmo em Bizâncio4. Em sua dupla natureza, Verbo e Carne, Cristo é o ícone que serve de modelo, imagem natural de uma invisibilidade. Foi a partir dessa imagem que o homem pôde produzir imagens artificiais. Por isso o véu do interdito bíblico, que cobre a imagem de Deus hebreu, pôde se tornar um plano de inscrição da face do homem cristão. A Paixão de Cristo é oferecida então em espetáculo aos olhos dos homens como uma redenção a imitar. O destino icônico da paixão ativa de Cristo transforma-se na “paixão da Imagem”, diz a autora, que reúne em si todos os destinos e paixões em uma única fábula em que fiéis são atores e espectadores. A redenção da própria Humanidade. Mas se o pensamento cristão instaurou um laço solidário e fundamental entre a palavra invisível transfigurada em imagem à nossa realidade viva e corpórea, ele o fez preservando seu enigma, seu espelho velado. Enigma da carne habitada pela Voz invisível que enuncia Sua manifestação, mas que mantém nos filhos o desejo insaciável de ver Sua face, pois a imagem é sempre estranha àquilo a que ela serve de imagem. Como esse Deus estrangeiro que habitou entre nós. É em torno dessa invisibilidade estrangeira se institui o que Mondzain denomina o “comércio dos olhares”. A imagem é o “lugar de crise”, diz. Não é uma experiência mística, mas uma negociação entre o visível e o invisível, entre a distância e a proximidade. A liberdade face às imagens necessita de um olhar crítico que os coloque em relação.
Crise, do verbo grego krinô: discernir, distinguir, escolher, julgar. “Ver é julgar.” “Dar à imagem um estatuto crítico era uma promessa de liberdade.” É a partir do lugar assinalado para o espectador, que exige uma distância por onde ele se movimente, que se pode julgar. “Não se partilha o visível sem construir o lugar invisível da própria partilha.”5 Ela demanda a palavra, o apelo e o envio dos olhares, que se encontram pelas imagens. A economia do visível é uma escolha política, aquela da partilha do amor e dos ódios, a partilha de um mundo comum. O comércio dos olhares, a economia própria à imagem, nada se relaciona com o mercado das visibilidades, diz Mondzain. Não é a proliferação das imagens, pelas técnicas modernas de produção e difusão de imagens, que constitui uma situação nova. “A presença da imagem e o reconhecimento de seus poderes remonta há milênios.” Não estamos sob a inflação das imagens em um mundo submerso de coisas a ver, “jamais a imagem esteve tão ameaçada e arrisca-se a desaparecer sob o império das visibilidades. Há cada vez menos imagens”6. Quando o comércio dos olhares se transforma na gestão comercial do visível, o mercado dos espetáculos constrói “o império das barbáries”. A extenuação da imagem condena o olhar e sua liberdade à servidão de “iconocracias”. Programar o consumo unívoco e o consenso de um sentido é destruir a imagem e produzir a idolatria por um poder econômico totalizante. Extravia-se o lugar do espectador: não há palavra, escolha, ou um juízo sobre nossos gostos e afetos. Não há a partilha de uma vida em comum. Assim o plano de inscrição se transforma no registro da mercadoria. E o fora do lugar, o exterior que se abriria à cidade humana se converte na inscrição de um poder entre fronteiras dos territórios econômicos,
no solo indiferenciado das identificações e incorporações do mercado. No vídeo mais conhecido de Letícia Parente, Marca Registrada (1975), a artista costura, na pele da sola do pé, a expressão Made in Brasil. Não a imagem da palavra inscrita na carne, mas a marca exaurida. Seria necessário, então, devolver a condição de estrangeiro em sua própria pele, ou antes, incorporar seu próprio impróprio, encarná-lo: o corpo sem próprio se entrega à errância, que abre incondicionalmente as fronteiras à alteridade qualquer. Em Preparação II (1976), a artista se aplica vacinas contra todas as formas de poder e preconceito, contra o pensamento absoluto que reduz o outro ao espelho dialético do mesmo: anti-racismo, anticolonialismo cultural, antimistificação política, antimistificação da arte.
E talvez o lugar do espectador da arte deva ser apenas esse sem-lugar como abertura infinita. As imagens da arte são essa oferta ao olhar de qualquer um como pura despesa, como a prodigalidade de um excesso que não se deixa figurar. Para nomear a carne do mundo e partilhá-la com outros é necessário um dom que não tem certeza de sua recompensa: a recompensa da acolhida de um olhar, o sopro e a inscrição de uma palavra estrangeira. E, ainda que o olho e a voz não vierem recolher essa graça, não há como evitar o chamado. NANCY, Jean-Luc. Démesure Humaine. In: Être Singulier Pluriel. Paris: Éditions Galilée, 1996. p.205 Idem ibidem. 3 MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p.18. 4 MONDZAIN, Marie-José Image, Icône, Économie: Les Sources Byzantines de l’Imaginaire Contemporain. Paris: Éditions du Seuil, 1996. 5 MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.146. Entretanto, não deixando à liberdade de cada um compor sua troca com a divindade, a Igreja construiria pelos séculos os dispositivos coletivos, as regras da partilha, a política e a doutrina das visibilidades programáticas comunicando uma única mensagem. Desde então a carne ressuscitada e o corpo eucarístico é o corpo institucional da Igreja. 6 MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.17. 1
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A imagem se fez carne. Desde então, o que será a carne de nossas imagens? Marie-José Mondzain Image, Icône, Économie
abril de 2007
PROPOSTA GERAL DA OBRA EM VÍDEO Letícia Parente
A artista pretende estabelecer as coordenadas de cada situação arqueológica, sobretudo com relação ao tempo e ao espaço. O ponto referencial do espaço, na maioria das vezes, é a própria autora como elemento ora passivo, ora ativo da ação. A tecnologia, representada pelo recurso sempre presente, é, na maioria das vezes, um personagem visível ou invisível. Pode ser obstáculo nos cortes, ponte de união entre o perto e o longe e denotador das distâncias, para vencê-las ou ampliá-las, entre os diversos níveis de consciência interna do personagem. O que se quer, em suma, do vídeo, é a possibilidade de confrontar a vivência ao nível mais profundo, do plano do visceral ao plano do corpóreo tátil com aquelas regiões circundantes do exterior imediato. O tempo resta agora “ampliado” pelo poder da máquina, como o aumento fotográfico de um detalhe. A tecnologia potencializa ao máximo, por todas as vias de acesso e por todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência. Um dos aspectos mais importantes é que as contradições permanecem não resolvidas, mas, antes mesmo realçadas de uma forma ora sutil, ora repetitiva, constante ou fugaz.
PREPARAÇÃO I A artista chega ao espelho do banheiro e vai se preparar para sair. Cola um esparadrapo sobre um dos olhos e desenha sobre o esparadrapo com lápis de sobrancelha um olho aberto. Faz o mesmo com o outro olho. Em seguida, cobre a boca com esparadrapo também, e desenha uma boca sobre ele com um batom. Ajeita o cabelo. Pega a bolsa e sai. Ano: 1975 Duração: 6 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Jom Tob Azulay
MARCA REGISTRADA A autora costura a sola do pé com uma agulha com linha preta. Borda a inscrição “MADE IN BRASIL”. O trabalho pretende a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém, transcende também à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés. Ano: 1975 Duração: 9 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Jom Tob Azulay
PONTOS (desaparecido) Uma mão desenha uma caneta com pena sobre uma cartolina. Depois de desenhada, a caneta é recortada e costurada com agulha e linha preta sobre o dedo indicador da mão esquerda. Em seguida a pena é imersa num tinteiro e com ela marca-se um ponto sobre uma folha de papel.
IN A artista entra no seu próprio armário vazio e se pendura através de sua roupa, pelos ombros, num cabide. Fecha-se a porta do armário, encerrando-a. Ano: 1975 Duração: 3 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Jom Tob Azulay
Ano: 1975 Duração: 6 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente
PREPARAÇÃO II São aplicadas pela própria pessoa em si mesma quatro injeções. Após cada aplicação são escritos dizeres numa ficha de controle sanitário internacional para a saída do país. Os registros são feitos na coluna sob o título VACINAS: -
Anticoloniaismo cultural; Anti-racismo; Antimistificação política; Antimistificação da arte.
Ano: 1976 Duração: 7 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Ana Vitória Mussi
CHAMADA (desaparecido) A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: “ALÔ, É A LETÍCIA?”. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Pega o telefone, liga para o seu próprio apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu
apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada perguntando, “ALÔ, É A LETÍCIA?”. Responde: “É A LETÍCIA”. A artista se chama e se identifica por três vias de acesso. Uma interior imediata, muda, silenciosa de si para si mesma. Invisível. Outra através de seu corpo chamando a si e sendo conduzida pelo corpo, pelas pernas atravessando o espaço físico até sua casa e respondendo: “ALÔ, SOU EU MESMA”. A terceira via localiza-se dentro do meio tecnológico que grava a sua voz, transmite-a pelo telefone até a sua casa, fá-la esperar até sua chegada e chama-a. A esta ela própria responde: “É A LETÍCIA”. Ano: 1978 Duração: 10 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente QUEM PISCOU PRIMEIRO Duas pessoas (André e Angela Parente) sentadas diante de um espelho olhando uma para a outra através do mesmo. Por trás de ambas um painel e nesse painel um orifício por onde sai a objetiva de uma câmera de vídeo (o terceiro olho) na direção do espelho. As pessoas se observam para ver quem pisca primeiro. Num determinado momento dão o jogo por encerrado. Mas quem piscou primeiro? Ano: 1978 Duração: 4 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Letícia Parente
ESPECULAR Duas pessoas, sentadas no chão, uma de frente para a outra, estão ligadas por uma espécie de estetoscópio duplo, de modo que os tubos que saem dos ouvidos de cada uma se ligam no meio, através de um tubo comum. A primeira afirma: “Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou falando.” A segunda responde: “Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou falando do que você pensava que eu estava escutando do que você falava.” A primeira prossegue: “Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou falando do que você está pensando que eu estava escutando do que você falava do que eu estava pensando que você escutava do que eu falava.” E continua assim até o quinto termo. Ano: 1978 Duração: 4 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Letícia Parente
O HOMEM DO BRAÇO E O BRAÇO DO HOMEM (em co-autoria com André Parente) Vê-se a imagem de um anúncio em néon de um corpo de homem da cintura para cima, distendendo e contraindo um dos braços, num gesto simbólico de exibição de força. (Trata-se do anúncio de uma academia de ginástica). Após alguns minutos dessa cena, aparece um homem de torso nu, da cintura para cima, movimentando o braço da mesma forma. À medida que o gesto se repete, o homem demonstra fadiga e não sustenta o ritmo alentando o movimento. Ano: 1978 Duração: 6 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente e Letícia Parente Modelo/ator: André Parente ONDE (em co-autoria com André Parente, vídeo desaparecido) Letícia não deixou nada escrito sobre o video ONDE. Trata-se de um jogo de imagens ao infinito ocasionado pela gravação da gravação da imagem de um aparelho de TV que transmite a própria imagem do que está sendo gravado. Constitui-se, portanto, um curto-circuito da imagem (da imagem (da imagem (da imagem))) ao infinito. Ano: 1978 Duração: 4 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente
DE AFLICTI (ORA PRO NOBIS) Aparecem sucessivamente em imagens fixas gestos de mãos e pés entrelaçados, contraídos e contorcidos. Cada imagem surge do escuro e depois se dissolve no escuro. Uma voz reza uma litania: ORA PRO NOBIS. O ritmo é como o fechar e abrir de um olho (o olho da câmera), convocado pela invocação. Ano: 1979 Duração: 10 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Fotografias: André Parente Câmera: André Parente NORDESTE Uma mala de couro rústica é arrastada pela autora até o centro do campo visual. A mala é aberta e vê-se dentro dela duas cobras vivas sobre um lençol branco. A artista procura retirar o lençol sem ser atingida pelas cobras. Ao retirá-lo fecha a mala e abraça-se ao mesmo. Música de fundo: canção
de Caetano Veloso (“No dia que eu vim embora...”) terminando no verso “e a mala cheirava mal...” Ano: 1981 Duração: 3 minutos Formato: Betamax, colorido Câmera: Cacilda Teixeira da Costa TAREFA I Letícia não deixou nenhuma anotação sobre este vídeo. A artista deita-se dobre a tábua de passar e alguém passa a sua roupa a ferro (ela estando dentro da mesma). Ano: 1982 Duração: 3 minutos Formato: Betamax, colorido Câmera: desconhecido VOLTA AO REDOR DO GLOBO (desaparecido) Dentro de um carro chegando num cruzamento encontra-se um jornalista com o jornal O Globo fazendo gestos espontâneos (quase ritualísticos, de apresentação de “mercadoria”). Toma-se o jornal, mostrase o título e faz-se um círculo demarcado pelo asfalto em torno de O Globo. Ano: 1981 Duração: 8 minutos Formato: Betamax, colorido Câmera: Cacilda Teixeira da Costa
CARIMBO A artista é marcada no rosto com o endereço da Bienal. Uma foto de sua face envelopa o vídeo gravado com o endereçamento e de novo é endereçado à Bienal. Na Bienal abre-se o pacote e aparece a fisionomia da atriz remetente como destinatário, na tela de outro vídeo, no escritório de recepção da Bienal. Ano: 1981 Duração: 10 minutos Formato: VHS, colorido Câmera: Roberto Sandoval VERDE DESEJO / FOME DA CIDADE (desaparecido) Um garoto vê um homem comendo um coco em um restaurante de praia. Deseja o coco. Sobe num coqueiro e tira-o. Abre-o com as mãos. O coco está vazio. Decepção do garoto e a fome da cidade. Ano: 1983 Duração: 3 minutos Formato: VHS Câmera: desconhecido TELEFONE SEM FIO (em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade) O grupo de artistas (autores do vídeo) brinca de telefone sem fio, fazendo a mensagem passar de ouvido a ouvido e observando a deformação que ela sofre. Ano: 1976 Duração: 13 minutos Formato: porta-pack ½ reel Câmera: David Geiger
Vias distorcidas: costuras, ressignificações e a sensibilidade que se renova com o tempo Daniela Castro
A imagem, disse Godard, é apenas o complemento da idéia que a motiva. Desconstruindo Letícia Parente, de Luiz Duva, resulta então em imagens-complemento da idéia que o motivou a manipular ao vivo a imagem-complemento da idéia de Letícia Parente em Marca Registrada, de 1975. Letícia já havia afirmado que sua prática artística era enfatizar a arqueologia do tempo presente. A estrutura em camadas descrita acima estabelece as coordenadas de uma situação arqueológica espaço-temporal digna de ser observada em seu caráter experimental, técnico e semântico. Da linearidade tensa do vídeo de Letícia à sua desconstrução no processo de inacabamento da performance em tempo real de Duva, o que ainda permanece é a potência inventiva de projetar e experimentar. * * * A experimentação com novos meios tecnológicos marcou a produção dos pioneiros do vídeo no Brasil nos idos de 1970. Longos planos-seqüência como registro de performances, intervenções no monitor de TV, a intercalação de técnicas (“pintar” com a câmera), a inscrição do absurdo como método de narrar a análise de vivências contrapunham-se à produção televisiva da época, ordenada e dependente da comunicação informacional (censurada). O processo de transmitir o conteúdo artístico sobrescreveu-se sobre seu próprio conteúdo1. Sendo o processo o aspecto vital da obra, abre-se a possibilidade de inserção da interlocução do público na construção de seu conteúdo. Em tempos anteriores aos dos pioneiros do vídeo, mas não menos conflituosos, Walter Benjamin decretava as vias de extinção da arte de narrar2. Para o autor, o narrador não está presente entre nós em sua atualidade viva; seu interlocutor vive a exigência de ocupar uma localização numa distância acomodada, num ângulo favorável, devido à privação de uma faculdade que parecia ser segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Isso porque, na modernidade, o “informar” ocupou a atividade de “narrar”. A informação só se valida no novo, ela só vive nesse momento e tem de se explicar nele. Os fatos chegam acompanhados de explicações, ou seja, quase nada está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação: para Benjamin, metade da arte narrativa está em evitar explicações. A novidade da experimentação artística com a tecnologia vigente na segunda metade do século 20 se encerrava na própria técnica. Os vídeos pioneiros não explicavam nada, não informavam. Seja por meio do rigor conceitual ou da linguagem do absurdo, eles narravam as condições opressivas da vivência diária. Marca Registrada pretendeu, nas palavras de Letícia, “a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém, transcende também à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés”3. A marca registrada é também o blindspot, o ponto cego da herança violenta da colonização, patriarcalismo e ditadura que constituem essa historicidade; pois, quando de pé sobre as plantas dos pés, não se enxerga a marca. Quando de pé, parada ou em movimento, internaliza-se a reificação da pessoa como produto dessa herança, desde a sua base corpórea até sua estrutura identitária. A linearidade tensa do vídeo é revelada na agonia da lentidão com que a artista costura na pele o conhecimento da coisificação do sujeito (Made in Brazil), que, sem
se revelar nas imagens do vídeo, só lhe resta levantar e esconder para que se possa continuar o exercício da vida. É como se a violência constituinte desse conhecimento fosse muito dolorosa para ser contemplada em sua eterna costura. “Dá muita aflição, porque a agulha entra, fere meu pé – só podia ser meu próprio corpo”4; e só podia ser essa parte do corpo. Não se rendendo à parálise física da revelação do saber – sentada, imóvel – , há de se levantar e caminhar com ele, mesmo sem enxergá-lo, mesmo que se escolha temporariamente não sabê-lo – pois ele fere. E deixa marca. A tensão dessa narrativa se revela na estrutura rigorosa da ação do sujeito consciente em registrar a marca desse conhecimento e de posteriormente suspendê-lo, como se suspensa fosse, também, a esperança de obter agenciamento sobre ele. Aqui, antes de ser uma novidade técnica, a tecnologia é o modo pelo qual esse conhecimento é transmitido e dividido entre Letícia e seu interlocutor; ela é personagem visível e invisível na obra. Para a artista, a tecnologia potencializa ao máximo todas as vias de acesso e todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência da narrativa. Em suma, “o que se quer do vídeo é a possibilidade de confrontar a vivência no nível mais profundo, no plano do visceral, passando ao do corpóreo tátil com aquelas nas regiões circundantes do externo imediato”5. Diferente do novo da informação, a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver6. * * * Tampouco foi a intenção de Duva meramente re-enformar (de re-formar e re-informar) a obra de Letícia do ponto de vista da novidade técnica. O artista assegura-se da faculdade de intercambiar experiências, re-enunciando a potência inventiva de Marca Registrada. De imediato, um primeiro acesso à performance de Duva pode ser entendido como uma atualização das possibilidades de experimentação com dispositivos tecnológicos atuais. E de fato o é. Mas há também a intenção em Desconstruindo Letícia Parente de revelar uma atualização na sensibilidade que se renova com o tempo: do analógico linear às variações algorítmicas com suas regras arbitrárias determinadas pela combinação de um simples binário, que organizam nosso cotidiano, determinam nosso comportamento, sempre com a ligeira sensação de que o real está constantemente nos escapando, escorrendo pelos dedos das mãos. O plano visceral que se espera do vídeo se mantém. Já o plano do corpóreo tátil transborda nas regiões circundantes do externo imediato, pois a performance ocorre em três telas de 200 x 300 cm cada, delineando uma gramática espacial propiciada pela sua arquitetura imersiva e pelo descompasso da desconstrução das imagens do vídeo em tempo real. O espectador costura seu próprio percurso dentro da performance de Duva, escolhendo as vias de ressignificação da narrativa sugerida pelo artista. Os primeiros dez minutos da apresentação mostram Marca Registrada na íntegra. A partir daí, Duva manipula as imagens se valendo de “marcas” que ele inseriu no vídeo, desconstruindo-o, cortando-o, distorcendo-o. A fita VHS do vídeo de Letícia entregue ao artista continha fortes drop-outs, pequenas falhas resultantes do desprendimento das partículas magnéticas devido ao defeito da fita ou ao seu envelhecimento. Como efeito visual, durante a reprodução, aparecem linhas horizontais brancas na imagem. Duva isolou e transformou esse efeito em um frame de vídeo, distribuindo-o (sampleando)
aleatoriamente pelo vídeo inteiro. Esses riscos, além do efeito sonoro gerido da própria imagem, funcionam como marcas de manipulação durante a performance. O resultado é uma não-linearidade tensa e cortante. “Quem hoje consegue registrar os vários níveis de emoção de uma coisa sem danificar profundamente a imagem?”7 Essa questão, colocada em 1984 por Francis Bacon – fonte infindável de inspiração para Duva na criação de inúmeros de seus trabalhos –, foi em resposta à pergunta sobre o porquê das distorções em suas pinturas. Para Bacon, a técnica ou o meio de reprodução (medium) de uma idéia é tão artificial, que para resgatá-la da artificialidade e remetê-la de novo ao real, só a partir da violência da distorção, ou da desconstrução de sua forma verdadeira. A técnica só importa enquanto remete a algo que a ultrapassa, sem o que não se justifica8. A releitura sobre a obra de Letícia Parente proposta por Duva não se valida somente na novidade do uso diversificado com novos meios tecnológicos. Aqui, a tecnologia é também personagem visível e invisível. É sobretudo a espacialização da narrativa, ao invés de sua temporalização, e a capacidade de inscrever a experiência do interlocutor dentro dela que recupera com força para o real a idéia já distorcida que a artista traçou há 32 anos. O processo de transmissão do conceito da obra inclui o aleatório, o inacabado, o recombinado, o repetido, o interrompido. Ao participador é dada a oportunidade de alinhavar os recortes e escolher suas próprias vias de acesso à narrativa; ou seja, lhe é dado o agenciamento sobre ela. * * * A distorção maior e mais sensível em Desconstruindo Letícia Parente é a inauguração do agenciamento sobre o conhecimento doloroso da coisificação do sujeito. As imagens manipuladas em tempo real não têm começo nem fim; sua escrita é arbitrária e nada impede que se leia seu conceito a partir da descostura da marca que registra a constituição do sujeito sobre o signo da historicidade colonialista e patriarcal. No processo de distorcer sua condição coisificada e assegurando sua condição como sujeito da ação de descostura, Letícia desenraiza-se. E se levanta apenas com uma leve cicatriz.
“A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que se conecta com ela; não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, ʻmas ao modo pelo qual ele é transmitidoʼ (processo).” Trecho do texto “Projeto de Arte Experimental”, escrito por Letícia Parente em 1976; cedido pelo curador dessa mostra e filho da artista, André Parente. 2 Walter Benjamin. “O Narrador: Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov”, in Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 197-221 (publicado em 1936 sob o título “Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows”) 3 Letícia Parente, “Proposta Geral da Obra em Vídeo”. Texto não publicado. Cedido gentilmente por André Parente. 4 Ibid. 5 Ibid. 6 Benjamin, p. 204. 7 David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon: A Brutalidade dos Fatos. Trad. Maria Teresa Resende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 1995, p. 148. 8 Jean-Claude Bernardet, O Autor no Cinema. São Paulo: ed. Brasiliense/Edusp, 1994, p. 56. 1
ALÔ, É A LETÍCIA ?1 Para Ana Vitória, Anna Bella, Essila, Fernando, Ivens, Miriam, Paulo e Sonia. Escrever sobre a Letícia me coloca muitas dificuldades. Não sou apenas filho dela, sou também filho de seu trabalho. De fato, muito do que eu faço, seja no plano da criação artística, seja no plano intelectual, me remete de alguma forma ao seu trabalho. Por outro lado, eu fui não apenas uma testemunha atenta de sua obra mas também um colaborador em níveis muito diversos, sempre presente e interessado: fui modelo, fui câmera, fui fotógrafo, fui produtor e fui mesmo co-autor. De forma que escrever sobre ela me dava a estranha impressão de estar, em muitos momentos, escrevendo sobre mim também., A obra de Letícia Parente é pouco conhecida, seja da crítica, seja do grande público. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a arte mídia só veio ganhar espaço no circuito de arte no Brasil muito recentemente. Mesmo se restringirmos a arte mídia a um dos seus principais meios de expressão, a videoarte, nenhum dos grandes artistas do mainstream é videoartista. Nenhum dos críticos do mainstream tampouco tem sequer um texto relevante sobre videoarte no Brasil. Por outro lado, muito do que foi produzido em termos de arte e mídia no Brasil, nos anos de 1970, foi perdido. Grande parte dos trabalhos de xerox e arte postal, bem como de vídeo e videotexto foi perdida, seja porque tratavam-se de materiais frágeis, seja por causa da obsolescência dos equipamentos, seja pelo despreparo da instituição da arte do Brasil (que inclui os museus, os colecionadores e os artistas) no que diz respeito ao arquivo. Mais de um terço dos vídeos de Letícia foram perdidos porque ela enviava para as exposições seus próprios “masters”, uma vez que não tinha, à época, como fazer cópias de seus trabalhos2. Em geral, a obra de Letícia é conhecida por meio de seus vídeos. Entretanto, o vídeo não foi sequer o seu principal meio de expressão. Ela foi iniciada em arte tardiamente, com 40 anos (1971), nas oficinas de Ilo Krugli e Pedro Dominguez, no Rio de Janeiro. Já de volta a Fortaleza, depois de participar de várias exposições coletivas e receber um prêmio de aquisição do Salão de Abril, realiza, em 1973, sua primeira exposição individual (Museu de Arte da Universidade do Ceará – MAUC) com um conjunto de 29 gravuras. Em 1974 se muda para o Rio de Janeiro, para fazer o doutorado, e continua a freqüentar oficinas de arte. Entre todos os seus professores, o único que deixou marcas em sua obra foi Anna Bella Geiger, de quem ela herdou um certo tipo de poética conceitual (ver mais adiante o texto de Fernando Cocchiarale, A Terceira Via) na qual se dissolve a separação entre os aspectos visuais e conceituais da obra, entre arte e vida, arte e política. Ainda no final de 1974, alguns colegas e ex-alunos de Anna Bella constituem um grupo de arte decisivo para seu trabalho futuro. Entre 1974 e 1982, esse grupo, que passou a ser conhecido como o pioneiro da videoarte no Brasil, formado por Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Sônia Andrade, Ivens Machado, Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi, produziu uma série de vídeos que circularam em grande parte dos eventos de videoarte no país e no exterior. Na verdade, o vídeo era apenas um dos meios empregados entre muitos outros, como a fotografia, o audiovisual (a projeção de slides com som), o cinema, a arte postal, o xerox e a instalação. A produção desse grupo de artistas, entre eles Letícia, foi fundamental para a história da arte e mídia no Brasil. Não apenas eles estão entre os pioneiros no uso que se fez desses meios como sua produção teve um tremendo impacto entre seus pares. É evidente que o grupo desempenhou um papel primordial. Roberto Pontual costuma situá-los como parte do que ele veio a chamar de Geração 70 (entre os quais estão, além do grupo citado, Antônio Manuel, Maria Maiolino, Cildo Meireles, Artur Barrio, João Alphonsus, Waltercio Caldas, Iole de Freitas, Tunga, entre outros), composta por artistas de tendência experimental e/ou conceitual
que surgiram concomitantemente ao aprofundamento da crise do repertório modernista e formalista, à emergência, no Brasil, dos novos suportes e meios de produção imagética (fotografia, cinema, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e dos novos espaços, entre eles, a área experimental do MAM do Rio de Janeiro e o MAC de São Paulo. O audiovisual O audiovisual desempenhou um papel interessante e jamais devidamente analisado na produção de alguns artistas nos anos 70. Muito se falou sobre os Quasi-Cinema, de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida, por se tratar não apenas de um audiovisual, mas de uma instalação audiovisual; porém muito pouco sobre as experiências dos outros artistas. Segundo Frederico Moraes, ele também autor de algumas experiências de audiovisual, tratava-se de um veículo propício à documentação das obsessões dos artistas e dos problemas brasileiros, a exemplo do documentário cinematográfico. Letícia realizou uma meia dúzia de audiovisuais. Em seu Eu Armário de Mim (ver imagem na pág. XX), ela nos mostra uma série de imagens de um mesmo guarda-roupa onde desfilam os objetos (roupas brancas, roupas pretas, temperos, papéis amassados, condimentos, cadeiras, objetos de culto) e as pessoas (em um deles, todos os cinco filhos são colocados dentro do armário) da casa, compondo ao mesmo tempo uma estranha taxionomia e um retrato miniaturizado do lar e da artista. Ao mesmo tempo em que vemos as imagens dos objetos que compõem essa estranha taxionomia, escutamos a artista falar, sob a forma de reza, cujo refrão é “Eu, armário de mim”. Como em outros trabalhos dela (a série de arte xerox Casa, o vídeo In), as imagens, objetos e gestos do cotidiano nos revelam uma “arqueologia do tempo presente” (Letícia). A arte postal Letícia era profundamente construtivista, ou seja, acreditava ser a realidade o ponto de chegada, e não de partida. Não se tratava, portanto, para ela, de representar uma realidade preexistente, mas de usar as imagens para produzir um efeito de realidade. Em seus trabalhos de xerox, temos distintas séries, cujas mais conhecidas são Casa e Mulheres. Nelas, a artista pretende utilizar códigos gráficos à sua disposição para falar da condição da mulher em nossa sociedade. A casa é mais do que apenas um território ou um espaço neutro, mas a confluência de signos e redes que nos compõem, nos produzem. Em uma das imagens da série Casa, a artista propõe um mapa de uma cidade composto por duas cidades (ver imagem na pág. XX): a Cidade da Bahia (como se chamava Salvador antigamente) e o Rio de Janeiro. Essa é a cidade imaginária de Letícia e antevê, de alguma forma, a cidade relacional, a cidade-rede, cidade topológica, concebida no projeto de Nelson Brissac, Brasmitte, projeto que une a cidade de São Paulo à cidade de Berlim por meio dos bairros Brás e Mitte. Letícia era uma artista do pensamento topológico, heterotópico: sua casa é feita de signos e códigos diversos, de redes e de relações. Xerox A questão do corpo na arte vem sendo discutida de forma exaustiva nestes últimos anos. No Brasil, desde o “quase corpo” da obra neoconcreta, que via na obra de arte um “prolongamento da corporalidade”, aos happenings e performances dos anos 60, em que o corpo do artista se tornou um dos principais personagens por meio do qual as obras vieram a se revelar como um processo de produção de subjetividade. Trata-se, antes de mais nada, de mostrar que o corpo é por natureza algo que escapa aos modelos de racionalidade e disciplinaridade cartesianos, iluministas, fordistas, tayloristas. O corpo é fundamentalmente da ordem da produção, do desejo, do inconsciente, algo que está sempre escapando ao processo de reificação do corpo como dado, como ordem, como modelo. E mais, o corpo não é espaço, visto que é processual, não apenas porque se inventa e se reinventa sem cessar, mas
porque vai até onde vão os nossos hábitos e desejos. Muito do trabalho de Letícia bebeu desta fonte, de uma espécie de neo-kantismo, seja ele estruturalista ou bachelardiano, em que a estrutura é uma categoria topológica e virtual, pura condição de possibilidade do que vemos, sentimos e fazemos. Seguindo essa linha de pensamento Letícia sempre parte do corpo ou da casa como os lugares privilegiados para exprimir ao mesmo tempo o muro que separa o que liberta do que aprisiona. É nesse sentido que a nosso ver ganha importância a imagem do xerox do alfinete (ver imagem na pág. XX), ao lado do qual se escreve “liberta, aprisiona”. Em outro de seus xerox (ver imagem na pág. XX), vemos uma série de imagens dos quadros de Brueghel, nos quais os personagens são como que aprisionados, sujeitados, amordaçados por meio de cestas e gaiolas. Trata-se, aqui, de uma imagem recorrente na obra da artista, para quem se a arte tem um papel, é porque ela nos leva a repensar os processos de subjetivação. Fotografias Uma das séries mais conhecidas do trabalho fotográfico de Letícia é a Série 158, em que ela se apropria de imagens de rostos de modelos em revistas femininas. Ela submete as imagens dos rostos a deformações de forma a tornar um rosto mais longilíneo ou o contrário (ver imagem na pág. XX). Essa ação visa a deflagrar uma problematização das taxionomias caracterológicas, que tendem a interpretar o determinismo de certos aspectos físicos sobre os aspectos psicológicos. Curiosamente, esse trabalho nos chama a atenção para os artistas do digital, que vieram a produzir deformações dos rostos por meio do uso do Photoshop (é o caso, por exemplo, do trabalho de Helga Stein). Na verdade, quando se vê, hoje, o trabalho de Letícia, percebe-se que a deformação do rosto não tinha nenhum sentido puramente imagético, visava-se desencadear uma problematização dos modelos sociais de apreensão do rosto. Em uma outra série fotográfica sem título (ver imagem na pág. XX) – fotografias que eu fiz do corpo da própria artista a seu pedido e em função de suas idéias – , Letícia submete seu corpo a uma série de torções e tensões. Aqui, vemos claramente que o corpo não é mais tomado em uma imagem apaziguadora, cartesiana, do corpo. Portanto, o corpo não é mais o que separa o sujeito do objeto, ou melhor, o pensamento de si mesmo, mas é como algo no qual se deve “mergulhar” (o mergulho no corpo era como que a fórmula produzida por Hélio Oiticica para exorcizar o platonismo, o purismo, o formalismo modernista) para ligar o pensamento ao que está fora dele, como o impensável. O que é o impensável? É, em primeiro lugar, o intolerável que leva ao grito silencioso de um corpo torturado involuntariamente, silenciosamente; é o desespero que leva a artista a contorcer seu corpo até se deformar em gestos inúteis, vazios, inqualificáveis; é a cerimônia estranha, que consiste em forçar o corpo a se libertar por meio de atitudes fora de convenções; é, sobretudo, submeter o corpo a uma cerimônia, teatralização ou violência, como no caso em que o corpo tenta se mostrar em uma postura impossível. O vídeo Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único planoseqüência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística – subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitarse, comer, brincar de telefone-sem-fio – são encenados de modo a produzir uma imagem do corpo. Nos vídeos do grupo, a imagem é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do corpo, pelo “mergulho no corpo” – termo de Oiticica que retomamos como expressão da reversão estética, a cura da obsessão formal modernista. A questão do corpo retorna aqui como um conceito ou atitude crítica, que visa a nos forçar a pensar o intolerável da sociedade em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como em um rito de passagem; em Dissolução (1974), Ivens Machado assina o seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver; Sônia, em
Sem Título (1975), entra em transe como forma de reagir contra o intolerável da televisão que atrapalha a sua refeição; em A Procura do Recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em folhas de jornal como forma de transmutar os pequenos gestos em rituais transgressivos; em Estômago Embrulhado, Paulo Herkenhoff transforma o ato visceral de comer jornal em uma irônica pedagogia de como “digerir a informação”; em um vídeo coletivo, Telefone sem Fio (1976), o grupo de artistas dispostos em círculo brinca de telefone-sem-fio enquanto a câmara roda em torno deles e o espectador assiste ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência). A obra de Letícia Parente é marcada pela idéia de extrair do corpo uma imagem que nos dê razão para acreditar no mundo em que vivemos. Os vídeos (ver imagem na pág. XX) dessa artista são, cada um deles, preparações e tarefas por meio dos quais o corpo revela os modelos de subjetividade que o aprisionam. Em Marca Registrada (1975), Letícia, seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com agulha e linha, na planta do pé, as palavras Made in Brasil, ao mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do indivíduo, presente em vários de seus vídeos; no vídeo In (1975), vemos a artista entrar em um armário, como se tivesse virado roupa; em Tarefa I (1982), a artista se deita em uma tábua de passar e uma preta passa a sua roupa a ferro (o contraste entre as mãos da negra que passa a ferro, mas cujo rosto está fora de quadro, e a mulher branca deitada na tábua de passar faz deste vídeo uma versão tropicalista do quadro de Manet); no vídeo Preparação I, a artista se prepara para sair, mas ao se maquiar ela cola esparadrapo em seus olhos e em sua boca, como para revelar que seus olhos e sua boca são pura máscara, ditada pelas convenções; em Preparação II, a artista se aplica uma série de vacinas contra preconceitos (racismo, colonialismo cultural, mistificação da arte, etc.). Esses vídeos guardam muitas características comuns: são todos eles realizados no espaço doméstico; a artista é quem realiza as ações que remetem (quase todas) às ocupações femininas (guardar roupa, passar roupa, costurar, se maquiar, etc.); nenhum deles contém falas; todos são realizados em plano-seqüência. Isso me fez pensar na possibilidade de fazer uma instalação, onde eles fossem projetados lado a lado, em uma grande parede de 20 metros, de forma que os aspectos comuns – a coisificação da pessoa, a condição feminina, a opressão das tarefas e preparações cotidianas – fossem potencializados. Para alguns críticos, os trabalhos de Letícia e do seu grupo são como que registros de performances. Isso porque os aspectos técnicos da filmagem e da montagem são relegados a um segundo plano. Em todo caso, o que importa é que nos vídeos dos pioneiros a câmera e a filmagem agem sobre os corpos e personagens como um catalisador. Entretanto, hoje fica cada vez mais claro que os trabalhos de videoarte diferem dos outros em parte por uma espécie de secura, de quase ausência de decupagem e de montagem. Na verdade, há um desconhecimento da própria história do cinema de artista aliado a uma certa postura de colonizado. Não creio que se dissesse isso sobre filmes de Andy Warhol e Michael Snow. Os corpos monogestuais de Warhol (alguém dorme (Sleep), alguém come (Eat), alguém “experimenta” um boquete (Blow Job), alguém se beija (Kiss) e os planos-seqüência vazios de Snow (os 45 minutos de zoom de Wavelength, as três horas de movimentos panorâmicos de La Région Central) são uma das principais tendências do cinema experimental, em um processo de radicalização dos tempos mortos do cinema do pós-guerra (Neo-Realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo mundial). As instalações Dentre todos os seus trabalhos, o mais expressivo e atual a nosso ver é a instalação Medidas (ver imagem na pág. XX). Em primeiro lugar, Medidas reúne os principais conceitos e elementos do trabalho de Letícia: o corpo, o rosto, a transformação da ação física, da presença em ação cognitiva, e sobretudo a problematização dos modelos de produção de subjetividade. Em segundo lugar, Medidas utiliza os principais suportes e meios de expressão utilizados por Letícia ao longo de sua carreira, a fotografia, o audiovisual, o
xerox, a instalação, entre outros. Evidentemente, os novos meios de produção de imagem não são, no caso de Letícia, determinantes – neles, o meio não é a mensagem, como diria McLuhan –, mas são sem dúvida condicionantes, isto é, são a condição. Medidas é, a nosso ver, a primeira grande manifestação de arte e ciência no Brasil. O texto de Roberto Pontual, que escolhemos publicar neste catálogo, nos apresenta uma descrição bastante correta da exposição Medidas. Entretanto, há uma série de questões a ser aprofundadas. Uma delas diz respeito à forma como Letícia se aproxima da estratégia estruturalista, em particular Michel Foucault, de desnaturalizar o corpo, de pensar o corpo como algo que é produzido pelas forças bio-políticas. O que é interessante no pensamento estruturalista, que é um pensamento do dispositivo por excelência, é que ele procura pensar os campos de força e relações que constituem os sujeitos e signos dos sistemas culturais para além de suas particularidades psicológicas (pessoalidade) e metafísicas (significação). O pensamento estruturalista é relacional, embora tenha guardado um resquício de idealismo, seja porque acredita em estruturas essenciais e formas a priori (por exemplo, o incesto e castração para a psicanálise e para a antropologia), seja porque acredita na homogeneidade dos elementos que formam a estrutura (são da mesma natureza). Segundo Foucault, um dispositivo possui três níveis de agenciamentos: 1) conjunto heterogêneo de discursos, formas arquitetônicas, proposições e estratégias de saber e de poder, disposições subjetivas e inclinações culturais, etc.; 2) a natureza da conexão entre esses elementos heterogêneos; 3) a “episteme”ou formação discursiva no sentido amplo, resultante das conexões entre os elementos. Na verdade, a visada sistemática da concepção foucaultiana está plenamente contemplada na etimologia da palavra “dispositivo”. Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais, etc.) concorra para produzir no corpo social um certo efeito de subjetivação, seja ele de normalidade e de desvio (Foucault), seja de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), seja de apaziguamento ou de intensidade (Lyotard). No caso de Letícia, as medidas são produzidas no sentido de produzir no corpo dos visitantes um efeito de desocultamento dos dispositivos sociais. Nesse sentido, o que ela faz é criar uma situação, um dispositivo (na verdade, um conjunto de dispositivos) interativo de medição do corpo. Não se trata de forma alguma de medir para fazer o visitante (aqui, o espectador já não tem mais nada de espectador, ele é “interator” no sentido mais forte desta palavra) conhecer o seu corpo. A estratégia é muito mais desvelar o trabalho, ocultado pelo sistema produtivo, por meio do qual produzimos nosso corpo ao tentarmos nos adequar aos modelos que o sistema secreta, em função de suas estratégias de saber, de poder e de produção de subjetividade (os três eixos principais do sistema de pensamento foucaultiano). Na verdade, a exposição de Letícia joga com duas estratégias básicas: um dispositivo de mobilização do espectador (que age no nível sensório-motor, ou seja, das ações perceptivas, físicas, afetivas), no sentido de operar as medições solicitadas, por outro lado, um processo de desocultamento, no sentido de levar pouco a pouco a perceber que as ações que fazemos no nível sensóriomotor têm como conseqüência a crença de que nosso corpo é natural, quando na verdade ele é fruto de uma negociação permanente entre os modelos do sistema (as normas, as prescrições, a disciplina, o conceito de saúde, do que é ou não melhor para o corpo, enfim, os modelos de racionalidade e de funcionalidade do corpo) e os nossos próprios desejos. Trata-se fundamentalmente de uma exposição de arte e ciência na medida em que ela desencadeia no visitante um confronto entre seus corpos e desejos singulares e os modelos científicos (ou pseudocientíficos) que ditam as normas e as prescrições, que pretendem calibrar a relação entre risco e prazer sobre os nossos corpos. Ao contrário das manifestações de arte e ciência em geral, aqui a ciência é desnudada no sentido de que não é neutra; ela é o campo por excelência de produção de subjetividade. Portanto, ao contrário da maior parte dos artistas que usam a ciência para produzir arte (mas na maior parte dos trabalhos de arte e ciência a ciência é o personagem principal da obra, de forma completamente
anódina), Letícia produz arte como uma forma de nos libertar de uma certa visão da ciência. Para terminar este texto, gostaria de agradecer a Daniela Bousso pelo convite que me foi feito para realizar esta exposição no Paço das Artes. Gostaria de agradecer à equipe e aos amigos do Paço das Artes, em particular a Angela Santos e Marcelo Amorim, bem como aos colegas Fernando Cocchiarale, Marisa Flórido, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Cláudio da Costa e Katia Maciel por terem aceito o convite para escrever sobre o trabalho de Letícia Parente. Paço das Artes É com grande satisfação que o Paço das Artes apresenta esta exposição de Letícia Parente, artista que atuou na década de 1970, período rico na cena política e cultural brasileira, quando ao mesmo tempo em que se vivia sob um clima de falta de liberdade e contestação à ditadura militar surgiam novas experimentações no campo da arte. Letícia fez parte de uma geração que realizou os primeiros experimentos da videoarte no Rio de Janeiro a partir de 1974. Ao fazer uso do suporte do vídeo para a arte propôs um deslocamento do foco do objeto para o corpo e a subjetividade. Hoje, a utilização de novas mídias já está totalmente incorporada à produção das atuais gerações de artistas brasileiros. No entanto, o trabalho de Letícia Parente foi um marco importante nos primórdios deste processo. O Paço das Artes considera não somente oportuno mas de extrema importância resgatar e difundir amplamente a obra desta artista que marcou presença na recente história da arte brasileira. Esta mostra vem reafirmar a missão do Paço das Artes de exibição, difusão e reflexão da arte contemporânea. Acreditamos que com esta mostra e este livro oferecemos ao nosso público mais um excelente acesso ao conhecimento do que há de melhor na produção da arte contemporânea brasileira. Vias distorcidas: costuras, ressignificações e a sensibilidade que se renova com o tempo A imagem, disse Godard, é apenas o complemento da idéia que a motiva. Desconstruindo Letícia Parente, de Luiz Duva, resulta então em imagens-complemento da idéia que o motivou a manipular ao vivo a imagem-complemento da idéia de Letícia Parente em Marca Registrada, de 1975. Letícia já havia afirmado que sua prática artística era enfatizar a arqueologia do tempo presente. A estrutura em camadas descrita acima estabelece as coordenadas de uma situação arqueológica espaço-temporal digna de ser observada em seu caráter experimental, técnico e semântico. Da linearidade tensa do vídeo de Letícia à sua desconstrução no processo de inacabamento da performance em tempo real de Duva, o que ainda permanece é a potência inventiva de projetar e experimentar. *
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A experimentação com novos meios tecnológicos marcou a produção dos pioneiros do vídeo no Brasil nos idos de 1970. Longos planosseqüência como registro de performances, intervenções no monitor de TV, a intercalação de técnicas (“pintar” com a câmera), a inscrição do absurdo como método de narrar a análise de vivências contrapunham-se à produção televisiva da época, ordenada e dependente da comunicação informacional (censurada). O processo de transmitir o conteúdo artístico sobrescreveu-se sobre seu próprio conteúdo . Sendo o processo o aspecto vital da obra, abre-se a possibilidade de inserção da interlocução do público na construção de seu conteúdo. Em tempos anteriores aos dos pioneiros do vídeo, mas não menos conflituosos, Walter Benjamin decretava as vias de extinção da arte de narrar . Para o autor, o narrador não está presente entre nós em sua atualidade viva; seu interlocutor vive a exigência
de ocupar uma localização numa distância acomodada, num ângulo favorável, devido à privação de uma faculdade que parecia ser segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Isso porque, na modernidade, o “informar” ocupou a atividade de “narrar”. A informação só se valida no novo, ela só vive nesse momento e tem de se explicar nele. Os fatos chegam acompanhados de explicações, ou seja, quase nada está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação: para Benjamin, metade da arte narrativa está em evitar explicações. A novidade da experimentação artística com a tecnologia vigente na segunda metade do século 20 se encerrava na própria técnica. Os vídeos pioneiros não explicavam nada, não informavam. Seja por meio do rigor conceitual ou da linguagem do absurdo, eles narravam as condições opressivas da vivência diária. Marca Registrada pretendeu, nas palavras de Letícia, “a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém, transcende também à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés” . A marca registrada é também o blindspot, o ponto cego da herança violenta da colonização, patriarcalismo e ditadura que constituem essa historicidade; pois, quando de pé sobre as plantas dos pés, não se enxerga a marca. Quando de pé, parada ou em movimento, internaliza-se a reificação da pessoa como produto dessa herança, desde a sua base corpórea até sua estrutura identitária. A linearidade tensa do vídeo é revelada na agonia da lentidão com que a artista costura na pele o conhecimento da coisificação do sujeito (Made in Brazil), que, sem se revelar nas imagens do vídeo, só lhe resta levantar e esconder para que se possa continuar o exercício da vida. É como se a violência constituinte desse conhecimento fosse muito dolorosa para ser contemplada em sua eterna costura. “Dá muita aflição, porque a agulha entra, fere meu pé – só podia ser meu próprio corpo” ; e só podia ser essa parte do corpo. Não se rendendo à parálise física da revelação do saber – sentada, imóvel – , há de se levantar e caminhar com ele, mesmo sem enxergá-lo, mesmo que se escolha temporariamente não sabê-lo – pois ele fere. E deixa marca. A tensão dessa narrativa se revela na estrutura rigorosa da ação do sujeito consciente em registrar a marca desse conhecimento e de posteriormente suspendê-lo, como se suspensa fosse, também, a esperança de obter agenciamento sobre ele. Aqui, antes de ser uma novidade técnica, a tecnologia é o modo pelo qual esse conhecimento é transmitido e dividido entre Letícia e seu interlocutor; ela é personagem visível e invisível na obra. Para a artista, a tecnologia potencializa ao máximo todas as vias de acesso e todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência da narrativa. Em suma, “o que se quer do vídeo é a possibilidade de confrontar a vivência no nível mais profundo, no plano do visceral, passando ao do corpóreo tátil com aquelas nas regiões circundantes do externo imediato” . Diferente do novo da informação, a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver . *
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Tampouco foi a intenção de Duva meramente re-enformar (de re-formar e re-informar) a obra de Letícia do ponto de vista da novidade técnica. O artista assegura-se da faculdade de intercambiar experiências, re-enunciando a potência inventiva de Marca Registrada. De imediato, um primeiro acesso à performance de Duva pode ser entendido como uma atualização das possibilidades de experimentação com dispositivos tecnológicos atuais. E de fato o é. Mas há também a intenção em Desconstruindo Letícia Parente de revelar uma atualização na sensibilidade que se renova com o tempo: do analógico linear às variações algorítmicas
com suas regras arbitrárias determinadas pela combinação de um simples binário, que organizam nosso cotidiano, determinam nosso comportamento, sempre com a ligeira sensação de que o real está constantemente nos escapando, escorrendo pelos dedos das mãos. O plano visceral que se espera do vídeo se mantém. Já o plano do corpóreo tátil transborda nas regiões circundantes do externo imediato, pois a performance ocorre em três telas de 200 x 300 cm cada, delineando uma gramática espacial propiciada pela sua arquitetura imersiva e pelo descompasso da desconstrução das imagens do vídeo em tempo real. O espectador costura seu próprio percurso dentro da performance de Duva, escolhendo as vias de ressignificação da narrativa sugerida pelo artista. Os primeiros dez minutos da apresentação mostram Marca Registrada na íntegra. A partir daí, Duva manipula as imagens se valendo de “marcas” que ele inseriu no vídeo, desconstruindo-o, cortandoo, distorcendo-o. A fita VHS do vídeo de Letícia entregue ao artista continha fortes drop-outs, pequenas falhas resultantes do desprendimento das partículas magnéticas devido ao defeito da fita ou ao seu envelhecimento. Como efeito visual, durante a reprodução, aparecem linhas horizontais brancas na imagem. Duva isolou e transformou esse efeito em um frame de vídeo, distribuindo-o (sampleando) aleatoriamente pelo vídeo inteiro. Esses riscos, além do efeito sonoro gerido da própria imagem, funcionam como marcas de manipulação durante a performance. O resultado é uma não-linearidade tensa e cortante. “Quem hoje consegue registrar os vários níveis de emoção de uma coisa sem danificar profundamente a imagem?” Essa questão, colocada em 1984 por Francis Bacon – fonte infindável de inspiração para Duva na criação de inúmeros de seus trabalhos –, foi em resposta à pergunta sobre o porquê das distorções em suas pinturas. Para Bacon, a técnica ou o meio de reprodução (medium) de uma idéia é tão artificial, que para resgatá-la da artificialidade e remetê-la de novo ao real, só a partir da violência da distorção, ou da desconstrução de sua forma verdadeira. A técnica só importa enquanto remete a algo que a ultrapassa, sem o que não se justifica . A releitura sobre a obra de Letícia Parente proposta por Duva não se valida somente na novidade do uso diversificado com novos meios tecnológicos. Aqui, a tecnologia é também personagem visível e invisível. É sobretudo a espacialização da narrativa, ao invés de sua temporalização, e a capacidade de inscrever a experiência do interlocutor dentro dela que recupera com força para o real a idéia já distorcida que a artista traçou há 32 anos. O processo de transmissão do conceito da obra inclui o aleatório, o inacabado, o recombinado, o repetido, o interrompido. Ao participador é dada a oportunidade de alinhavar os recortes e escolher suas próprias vias de acesso à narrativa; ou seja, lhe é dado o agenciamento sobre ela. *
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A distorção maior e mais sensível em Desconstruindo Letícia Parente é a inauguração do agenciamento sobre o conhecimento doloroso da coisificação do sujeito. As imagens manipuladas em tempo real não têm começo nem fim; sua escrita é arbitrária e nada impede que se leia seu conceito a partir da descostura da marca que registra a constituição do sujeito sobre o signo da historicidade colonialista e patriarcal. No processo de distorcer sua condição coisificada e assegurando sua condição como sujeito da ação de descostura, Letícia desenraiza-se. E se levanta apenas com uma leve cicatriz. Daniela Castro
Letícia Parente: a videoarte como prática da divergência
Luiz Cláudio da Costa - UERJ
O vídeo chegou relativamente cedo ao Brasil e seria rapidamente absorvido pelos artistas plásticos interessados em novas experimentações e meios não tradicionais. Uma primeira geração de artistas de vídeo surge em 1974 no Rio de Janeiro, por ocasião de uma mostra de videoarte – realizada na cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos – para a qual alguns cariocas foram convidados. O Rio se tornaria, então, pioneiro na videoarte no país, pela intermediação de Jom Tob Azulay, que trouxera um equipamento portapack dos Estados Unidos. Foi com esse aparelho que os artistas cariocas puderam iniciar seus trabalhos de expansão das artes plásticas. São Paulo só começaria a produzir vídeos a partir de 1976, quando o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo adquiriu o equipamento e o disponibilizou para os artistas da cidade. A primeira geração de videoarte no Brasil incluía Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger e Ivens Machado. No ano seguinte, três outros artistas se juntariam àqueles: Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Míriam Danowski (MACHADO, 2003). Letícia formou-se e doutorou-se em química, e a relação com a ciência e o pensamento científico aparece em seus trabalhos artísticos, seja para problematizar todo pensamento sistematizante e unificante, seja para encontrar no método científico uma possibilidade de pensamento sensível. Sua primeira exposição individual, Medida3 ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1976. Nessa exposição, Letícia induz os participantes a executar ações físicas, cognitivas, emocionais e reflexivas sobre si mesmos e a registrar os dados de mensuração e classificação (formas, proporções, capacidades físicas, tipo sanguíneo, etc) em fichas individuais. Letícia pretende dos participantes “os conhecimentos de parâmetros pessoais”, a “busca de identificação com modelos estáticos preestabelecidos”, “uma tipologia e caracterologia (pseudocientíficas e obsoletas)”, a “constatação por analogia do clima competitivo do mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas de informação” (Projeto da exposição Medidas). Nessa exposição, Letícia mostra um pensamento crítico em relação ao método científico, ao mesmo tempo o interesse na construção de tipologias e classificações que servem ao pensamento problemático e ramificado que deseja produzir por meio de seus trabalhos plásticos. O interesse nos dispositivos científicos (fichas, seringas, aparelhos de medição, metodologia) dá a Letícia grande liberdade para transitar por campos distintos e mexer com meios artísticos e não artísticos. A artista trabalhou com gravura, fotografia, xerox, fichas de documentação, audiovisual com slides, jornais. Esse lugar limítrofe em que se encontra como profissional da química e artista plástica, fronteira a partir da qual parece desejar fundar seu trabalho artístico, mostra, sobretudo, a necessidade de questionar esses mesmos campos e seus dispositivos, assim como os discursos proporcionados. Mas questioná-los não pressupõe que a artista perceba nesses meios uma especificidade ou unidade que deva ser encontrada por seu olhar, seus procedimentos artísticos ou reflexão. Ao contrário, parece mesmo buscar o pensamento heterogêneo por meio dos dispositivos que questiona e problematiza. Nesse sentido não interessa à artista a relação de reflexividade sobre um gênero ou uma esfera do conhecimento como se essas regiões fossem autônomas. Parece antes desejar colocar esses círculos da prática e do saber – seus dispositivos, instituições e discursos – em contato para atrito e divergência, desfazendo a lógica de oposição entre verdadeiro e falso. Letícia conjuga arte, ciência e vida, no sentido de fazer surgir um conhecimento do corpo cotidiano por meio de formalidades e cerimônias que problematizam as ações programadas e as classificações sistematizadoras da ciência. Nos trabalhos em vídeo de Letícia Parente, câmera e corpo agem sem que um ou outro esteja vinculado à representação de uma ação dramática. Sem que algo seja propriamente representado no sentido dramático, o corpo da artista executa uma ação única solitária (Preparação I, Marca Registrada, In, Nordeste) ou com a participação de uma outra pessoa apenas (Quem piscou primeiro?, Especular, Tarefa I, Carimbo). Em todos esses vídeos, percebemos
a importância do comportamento do corpo cotidiano disfarçado por teatralizações ironizantes, de modo a problematizar a subjetividade sistematizada e internalizada nesse corpo dominado por poderes, saberes e discursos não visíveis no âmbito de sua fisicalidade. A cerimônia falsificante que impõe ao corpo posturas excêntricas – pendurar-se como roupa num cabide e trancar-se no armário como em In, ou deitar-se sobre a tábua de passar e ser literalmente passada a ferro por uma mulher negra como em Tarefa I – visa atingir potências desconhecidas com o riso, a astúcia e a alegria. A artista proponente e o participante convidado executam a ação única extravagante. Os gestos e as atitudes dos corpos correspondem a gestos e a atitudes da câmera que se percebe. A câmera fixa ou móvel, consciente de si, enquadra o objeto visado, mas como num filme caseiro e despretensioso. Não é aqui o enquadramento o que importa, mas aquele registro, aquela imagem com todas as imperfeições, a ausência de foco, a imprecisão. A postura falsificante do corpo precisa ser registrada como um corpo no cotidiano da vida familiar. É a sede do registro o que importa: a exigência de apropriar-se do presente, sobretudo no engano da teatralização, para em seguida fazê-lo variar, constituindo um pensamento impróprio, mas imanente àquele corpo submetido àquela situação excêntrica. É essa necessidade que afeta a câmera nos trabalhos de Letícia e desfaz o propósito de representar aquilo que ela visa, assim como o de refletir sobre o dispositivo. O interesse da câmera é antes o de constituir uma imagem do pensamento como traço da situação, como cicatriz e não como significação. O objetivo não é nem narrar nem propor um discurso sobre o corpo ou sobre a obra num retorno auto-reflexivo. Ainda que haja esse retorno sobre o corpo, sobre o dispositivo de registro e sobre o trabalho sendo executado, o que importa é colocar o dispositivo e o corpo em contato com o que lhe é divergente: a artisticidade, a encenação. Importa colocar a arte em contato com a vida, ambos num processo de contrafação mútua, fazendo assim brotar um pensamento no corpo. A intenção não é auto-reflexiva. Não há uma ação desdramatizada que se desenvolve na frente do espectador que necessita tornar-se consciente da câmera e dos seus processos de produção. Esse procedimento de conscientização dos dispositivos foi proposto pelo cinema e pela arte modernos. Já temos essa consciência proporcionada pela cultura recente. Falta-nos o efeito sobre nossos corpos e nossas vidas, mais que sobre nossas mentes e nossas obras. Por isso Letícia se propõe a ações físicas insignificantes no interior de um cotidiano diminuto e sem importância exibidas diante de uma câmera que as registra sem desprezo nem admiração. Os primeiros espectadores serão a pessoa com a câmera e o artista em performance. Essa repetição da imagem e a variação do atual e familiar é tudo o que importa. As artes plásticas no Brasil nos anos 70, fortemente vinculadas à cena internacional, viviam um momento muito rico, com os desdobramentos de problemas que passavam das condições espaciais da percepção às suas bases corpóreas. O espaço bidimensional da tela já havia sido problematizado pelo Neoconcretismo e esses artistas propuseram não-objetos no espaço da galeria que exigiam a participação do corpo do espectador, ora manipulando objetos, ora adentrando espaços envolventes. Hélio Oiticica e Lygia Clark radicalizaram essa transformação ao promover o corpo como lugar, meio e suporte de suas expressões artísticas em trabalhos sensoriais. A experiência de novos suportes levara Hélio Oiticica a invenção dos Quase-cinema, série de trabalhos audiovisuais que utilizava projeção de slides, realizada em Nova York no início dos anos 70. Esses trabalhos, entretanto, não foram expostos publicamente na época. Outros artistas também experimentavam a expansão dos meios com filme de 16 mm ou super-8: Antônio Dias, Barrio, Iole de Freitas, Lygia Pape, Rubens Gerchman, Agrippino de Paula, Arthur Omar, Antônio Manuel e o próprio Oiticica (CANONGIA, 1981). Freqüentemente, para esses artistas, o interesse na imagem técnica vinha da possibilidade de se registrar novas experiências corporais. Iole de Freitas, na série Glass pieces/life slices (1974), apresentava múltiplas faces de seu corpo, fragmentado por espelhos. Lygia Pape, depois de participar lateralmente em
cinema como programadora visual para Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, decide experimentar o super-8 na direção oposta àquela que considerava de “resultado amorfo, bem comportado e cinemanovista” (CANONGIA, 1981: 43). Com Eat me (1976), Lygia constrói uma montagem métrica, não dependente de ação dramática, a partir de dois planos-base de uma boca masculina que engole e expulsa uma pedra sobre a língua (CANONGIA, 1981).
relações que a obra constitui com o contexto da arte. A obra tendia a desaparecer enquanto objeto de contemplação e tornavase, primeiramente, objeto de manipulação e, posteriormente, espaço para a participação e a mobilização corporal, assim como para a ocorrência de um evento por vir. A arte tornava-se antes o lugar para o investimento e a produção de subjetividades, um pretexto para agenciamentos estéticos, mas também filosóficos, sociais, antropológicos, políticos.
Em todos esses casos em que há um forte investimento do corpo e da subjetividade, ainda que diferentemente em outros filmes de artista da época, a montagem aparece como procedimento que interessa ao artista. Assunto de debate, no sentido de uma recuperação dos escritos de Eisenstein e Vertov pela crítica cinematográfica daqueles anos, a montagem torna-se procedimento integrante na produção dos filmes de alguns artistas plásticos envolvidos com cinema. A montagem métrica - que segundo a reflexão de Eisenstein, soma-se à rítmica, à tonal, à atonal e à intelectual - utilizada por Lygia Pape é, dentre outros, um dos processos mais elementares na construção de conflitos e contrapontos (EISENSTEIN, 1990). Lygia Pape reinventa esse procedimento simples do cinema tradicional e cria um problema para a medida metricamente calculada colocando-a em contato com a forte conotação erótica de seu tema: o erotismo desmontando a racionalidade matemática. O problema da montagem no cinema mundial e também no Brasil era retomado em grande parte por influência dos filmes e reflexões de Jean-Luc Godard desde os tempos de crítico, no final dos anos 50 e início dos anos 60, nos Cahiers de Cinema, revista francesa de cinema que ajudou a impulsionar a conhecida Politique des auteurs e a Nouvelle Vague. O pensamento plástico-cinematográfico de Godard, fundado na montagem que utilizava cenas, sons e escritos gráficos na imagem em disjunção, colocava pensamentos, tempos e gêneros artísticos, literários e cinematográficos em relação de exterioridade paradoxal, avultando o sentido e lhe devolvendo as múltiplas direções.
Com essa estética da desaparição em que a obra para contemplação se vê desmaterializada, problematizada e desdobrada em eventos, reflexões, depoimentos, notas, escritos. E desse processo fazem parte o envolvimento físico-corporal e mental-conceitual tanto do artista como do espectador. Com isso surge, no rastro dessa errância de obra, a prática da performance como indispensável, uma vez que o produto, obra ou objeto final tornavam-se desobrigados. A tendência à dissolução do objeto levava muitos artistas a se interessarem por esse novo campo de expressão, o vídeo. A imagemmovimento era atraente para o artista interessado nas dobras da obra sempre ausente, porém estendida em registros fotográficos, fílmicos, literários, etc. O cinema, porém, tal como havia se estabelecido, colocava o artista-autor e o espectador em lugares distintos e a obra cinematográfica, ainda que questionando os sentidos e as identidades fixas, devolvia os atores vinculados ao processo da obra a seus lugares tradicionais. O cinema tinha seu espaço próprio para acontecer, a sala escura. Era preciso possibilitar a participação corporal na produção do sentido de outros atores envolvidos no processo fílmico - os espectadores. Coisas inesperadas estavam por vir.
Nos anos 70, os artistas plásticos vinham de um contexto que colocava em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais. Afloravam também os questionamentos sobre a função da arte, o circuito e o mercado em que a obra se insere. Como fetiche de consumo e signo de status social, a obra de arte é entendida antes como parte de uma engrenagem do que objeto cultural significante. A Revista Malasartes do fim do ano de 1975 publicaria dois textos importantes relativos às questões que o meio artístico estava interessado no momento. O célebre artigo de Joseph Kosuth, de 1969, traduzido para a Malasartes, foi fundamental para os desdobramentos das artes plásticas de modo geral e, especificamente, para a arte conceitual. Kosuth levantava os problemas da separação entre a arte e a estética e perguntava-se sobre a função da arte. Tratava do estatuto do objeto artístico e da relevância, para o pensamento e para a produção de arte, do contexto institucional em que esta se encontra: o museu, a galeria, o curador, o crítico, o historiador, etc - “a existência dos objetos, ou seu funcionamento dentro de um contexto de arte, é irrelevante para o julgamento estético” (KOSUTH, 1975). O meio artístico tornava-se consciente de que o objeto de arte participa da constituição de um sistema de circulação e que seu valor não provém apenas de sua composição formal. O outro texto publicado na Revista Malasartes, do crítico Ronaldo Brito, esclarecia essa função do objeto artístico como fetiche para o mercado e para a legitimação de uma classe social (BRITO, 1975). Era um momento de questionar a experiência estética fundada nas formas sensíveis do objeto e no sentimento de gosto da recepção contemplativa, marcando a passagem do objeto ao evento que artistas provenientes do Neoconcretismo já vinham efetuando. A problematização do objeto estético enquanto produto final levaria os artistas a valorizarem mais os processos de investigação, as mudanças e transformações intermináveis de um evento sempre por vir. A crítica de arte, por sua vez, não podia mais analisar somente os elementos formais da composição de uma obra que discursa sobre seu próprio meio. A crítica haveria de incluir a recepção e o espaço no qual o trabalho se insere, as
A nova tecnologia de captação de imagem em movimento que chegava ao Brasil com o portapack permitiria fazer o que o cinema não era capaz: ver o registro da imagem no mesmo instante de sua produção, além de possibilitar a participação de outros atores no processo. No que diz respeito às performances, o vídeo permitiria tornar, imediatamente, um trabalho de corpo em acontecimento de imagem, o que daria complexidade temporal ao evento presencial por sua imediata virtualização. Na imagem do vídeo, a presença tornava-se problemática, desmaterializada, reflexiva e agenciadora de duas formas de presença, a física-referencial e a virtual-indicial Essa mídia viria somar às novas idéias vigentes da obra ausente, que exigia tanto do artista como do espectador desdobramentos fantasmas, elaborações conceituais, movimentos corporais e processamentos temporais. Em resumo, o vídeo exigia uma assimilação do sentido como marca e cicatriz da experiência física. É nesse contexto que os trabalhos de Letícia Parente surgem, tornando ainda mais complexa a relação com o espectador. Suas performances não existiriam para uma platéia, mas tão somente para a câmera que a registrava. Um trabalho de videoarte não seria apresentado em salas escuras com espectadores sentados, mas em qualquer lugar onde houvesse um equipamento de exibição e uma TV. Por falta de recursos técnicos acessíveis aos artistas naquele momento, os vídeos produzidos pela primeira geração não seriam editados. Manteriam, ao contrário, apenas o registro do gesto performático do artista, o confronto da câmera com seu corpo procedimento mais elementar dessa nova arte que surgia. O conhecimento do trajeto de Letícia é ainda precário, apesar do esforço de alguns poucos interessados que vem organizando o acervo da artista. Os primeiros trabalhos de Letícia datam de 1975, sendo Marca Registrada o vídeo mais conhecido e perturbador para a época. Nesse trabalho, a artista borda com uma agulha na sola do próprio pé a frase “Made in Brasil”. É interessante notar a ausência de composição, o desprezo pela estruturação, a improvisação tanto da câmera que observa quanto da performer que necessita refazer seus gestos quando um ponto de seu bordado se desfaz. Não há uma composição e nem mesmo construção de obra. Apenas o registro de uma ação familiar e sem grandes pretensões, ainda que a frase que Letícia borda em seu pé tenha sentidos simbólicos precisos vinculados ao contexto cultural e político da época. Mas o que impropriamente nos perturba é o efeito, a variação do atual visado
que não podemos fixar. Havia um discurso cultural no momento que privilegiava a noção “nacional-popular”. Havia, por outro lado, os artistas da geração 70 que problematizavam toda idéia de comunidade nacional, afirmando a diferença, a subjetividade e o corpo. Havia um governo repressor de um lado e a esperança de abertura política de outro. Havia a tristeza das mortes promovidas pela ditadura e a esperança de um Brasil desenvolvido e de livre mercado. Havia as experimentações dos artistas conceituais e a crença num mercado para a arte internacional produzida no Brasil. Todas as contradições parecem se multiplicar nesse vídeo feito sem pretensão, sem estrutura, sem composição. Registrando em seu próprio corpo as múltiplas contradições do momento, Letícia afirma e rejeita os vários discursos vigentes na cena artística dos anos 70: a noção de obra de arte como objeto para um mercado de elite, a idéia de identidade nacional, a mulher de classe média, o cinema, a política, a ditadura, a diferença, o sentimento de desprezo, a indiferença, a falta de sentido, a tristeza, a esperança, etc. Marca Registrada ironiza várias noções, conceitos e valores dos anos 70, criando estranhos paradoxos. Se a frase é uma referência à artista, tudo está fora de lugar, porque é redundante e óbvio. A ironia é manifesta. Se a referência é o discurso vigente da identidade cultural unificada na comunidade imaginada da nação, o desprezo parece evidente uma vez que a inscrição é bordada na parte mais baixa de seu corpo. O fato de ser brasileira ou de participar dessa comunidade imaginada é o que menos importa. E se a referência da inscrição é a obra que produz, sua indiferença também é total, uma vez que é coisa a ser pisada. É negada a noção de obra. O que faz a obra é a experiência do descentramento que ela é capaz de produzir, por isso a execução de ações excêntricas. O ato de bordar, na cultura patriarcal brasileira, é função da mulher. Bordando sobre a sola do pé, Letícia afirma e rejeita a experiência da identidade feminina vigente em nossa cultura. Letícia produz todos esses movimentos, fazendo justamente o que é dela esperado. Vai ao encontro do esperado com a imagem do inesperado. Para além dos sentidos simbólicos, há ainda outros indizíveis. Fazendo penetrar a fina agulha nas camadas superficiais de sua pele, invadindo a superfície de seu corpo com aquele instrumento pungente, Letícia desarticula silenciosamente uma cadeia de experiências, valores, conceitos e idéias enraizadas na cultura artística e na cena política do momento. Mais do que minar valores arcaicos substituindo-os com outros mais novos, Letícia dá mobilidade aos sentidos. Parece antes colocá-los a mover-se do que trocá-los por outros quaisquer que pudessem valer mais. Não há o novo a ser substituído pelo antigo, mas há movimento crítico, questionamento. São justamente os valores, sejam eles da arte, da cultura ou da política que estão em questão. Afinal, um trabalho artístico exposto sobre a sola do pé que tocará a terra, o chão, não é aceitável para os valores de uma cultura que acredita que a arte eleva o espírito. O comportamento disciplinado de um corpo dócil que age cegamente comandado por ordens que ele mesmo desconhece parece mesmo interessar a artista. Em Preparação (1974), Letícia se prepara para sair. Desviando dessa ação cotidiana simples e familiar por meio da teatralização, Letícia se coloca diante do espelho e cobre os olhos e a boca com esparadrapos. Sobre eles, desenha outros olhos e outra boca. O que se revela nesse trabalho é a afirmação de uma necessidade, um desejo: falsear o corpo é inventar um sujeito, é potencializar outros modos de ver e sentir. Outros comportamentos implicam em novas subjetividades. Essa é a política do corpo praticada por Letícia Parente em seus vídeos, o que mostra que o campo da estética não diz respeito somente ao gosto e às formas, mas também a uma esfera prática. A arte se expande ao cotidiano e ao espaço da existência para retirar-lhe a vida escondida nos escombros do corpo disciplinado. Compartilhar a existência com o outro, descobrir-se como um outro fez parte das pretensões artísticas de Letícia Parente.
Dois vídeos de 1978, Quem Piscou Primeiro? e Especular reproduzem a relação entre duas pessoas, o primeiro na forma de um jogo e o segundo, na forma de uma conversa absurda entre os participantes através de uma espécie de estetoscópio duplo. Não há dúvida nesses dois trabalhos, o diálogo que Letícia mantém com os objetos relacionais de Lygia Clark, como Óculos, de 1968. Nesse trabalho Lygia Clark adaptou óculos de mergulho para a utilização de dois participantes que captam imagens de si mesmos e do ambiente circundante por meio de espelhos que podem ser rodados conforme a participação. O objeto torna-se lugar para estabelecimento de um diálogo entre os participantes. Os dois vídeos de Letícia Parente, produzidos dez anos mais tarde, mantém a mesma ordem do jogo para potencializar o diálogo e a relação entre os participantes. O objeto produzido, o estetoscópio duplo, só faz sentido se utilizado como processo de relacionamento intersubjetivo, de aproximação com o outro, de contato, enfim, com o estranho. No caso específico do vídeo Especular, o objeto utilizado cria um estranho paradoxo que mostra que a aproximação com o universo de Lígia Clark não era superficial. O estetoscópio é um instrumento de ausculta de sons internos do corpo (coração, pulmão, estômago, etc) ao passo que no jogo proposto por Letícia, o aparelho colocado no ouvido dos dois participantes não permite a ausculta do espaço interior do outro. Mas interioridade e exterioridade criam conexões e atravessamentos, contato e disjunção. A frase que os participantes repetem com variações múltiplas – “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim dentro de você”, “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim do que eu estou ouvindo de você dentro de mim”, etc – indica o contato entre interioridade e exterioridade que está se produzindo mútua e indistintamente, num processo de repetição e variação, de estranho acordo trabalhado na dissensão. Esses vídeos não são produzidos para a contemplação. Não são propriamente nem belos nem sublimes, ainda que o sejam impropriamente. Não são tampouco discursos estéticos auto-reflexivos, denunciadores do aparato artístico ou mecânico. O que não implica que não haja aspectos contemplativos e auto-reflexivos nesses vídeos. Apenas pretendemos enfatizar que a pretensão é a de praticar um pensamento e uma política de produção de subjetividade. Esses vídeos são por isso antes mobilizadores de variações de identidades individuais e culturais fixas, apresentando a subjetividade como extratos fluidos de interioridade e exterioridade, discurso e invenção, poder e construção, marca e ramificação. A arte nos trabalhos de Letícia Parente torna-se campo de experiência, prática do estranhamento do hábito, do comportamento e do mundo da cultura e das instituições. Em Nordeste (1981), vemos uma mala de couro rústico sendo aberta e em seu interior duas cobras vivas sobre um lençol branco. A pessoa, que jamais é identificada por seu rosto, manipula o lençol e modifica a posição das cobras. Nada sobre o nordeste brasileiro temos acesso nesse vídeo, nada sobre o sertão tão presente nas telas de nosso cinema desde os anos 60, nenhuma representação do outro. A identificação e representação não são mais possíveis, mas ainda assim é preciso inscrever sensações. A música dos Novos Baianos insere às experiências de Letícia Parente naquele momento pós-tropicalista em que a arte faz sentido enquanto experiência de expansão dos sentidos, das sensações e dos valores. Ao nomear Nordeste esse trabalho, Letícia não propõe uma imagem da cultura nordestina, mas antes mobiliza a experiência singular dessa região de nosso corpo cultural ao qual se dá o nome de “Nordeste”. O vídeo tem algo da estranheza de Marca Registrada. Aqui, a agulha é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a presença do corpo sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da cultura. Mas outros elementos renovam os problemas: a região do país em questão (o nordeste), uma canção urbana, o contato com o animal repulsivo. Novos componentes se espacializam e se temporalizam numa mesma prática da disjunção, uma vez que não podem ser sintetizados numa representação de nação ou de sujeito artista. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele que
vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta subjetividades. Agregando as sensações perfurantes da agulha em Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se percebe é uma fragilização tanto da obra como do autor, ainda que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média educada, afinada com a cultura popular-urbana, suas referências de profissional da química, interessada em dispositivos como agulhas e cobras, estejam presentes. No pouco tempo de sua produção artística, entre 1971-1986, Letícia mostrou-se interessada pela prática da contestação pontual, mas irônica e teatral: a contrariedade enganosa força a vida para fora do instituído. Sua trajetória artística não foi muito longa, mas apontou para uma intensidade alegre, ainda que grave em certos momentos. O jogo e a brincadeira sempre fizeram par com a prática questionadora. Feito em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade, o vídeo Telefone sem fio não é o único trabalho coletivo. Já havia feito outros trabalhos em parceria com André Parente (O homem do braço e o braço do homem e Onde, vídeo desaparecido). Telefone sem fio, entretanto, mostra a importância do jogo, da cena e do engano na prática contestatória de Letícia Parente sobre as instituições do sujeito, da autoria, da obra, da verdade científica, do pensamento lógico que aliena a contradição e o dissenso ou os disfarça na unidade. Letícia parecia querer forçar o contato das forças internas do corpo com seu espaço de exterioridade, exigindoo passar pelo mundo externo do instituído. Forçar o corpo a participar de uma cerimônia encenada de contestação artificiosa em que o mundo da ordem sistematizadora, da burocracia e do poder implicados no corpo se expanda para fora e permita a produção de novos sujeitos, sempre esteve presente nos trabalhos de Letícia. No currículo da artista consta da participação na XVI Bienal Internacional de São Paulo, em 1981, no interior do Projeto Arte Postal. Para essa exposição Letícia produziu o vídeo Carimbo. Vemos o rosto da artista sobre o qual está sendo escrito o endereço da XVI Biena1. A instituição endereçada e para a qual pretende enviar o trabalho é inscrita na superfície de seu próprio corpo/ rosto. As inscrições visíveis provocam o discurso da artista que narra sua dificuldade com a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, cuja burocracia não permitiu que ela gravasse sua proposta original de trabalho. No vídeo não gravado, Letícia teria sua testa carimbada nos espaços da instituição de postagem. Em Carimbo, vemos, porém, outra situação. Além da inscrição de endereçamento feita no rosto da artista, vemos ainda um grande papel que, segundo consta nas descrições do vídeo, é uma foto do rosto da artista sendo novamente endereçado à Biena1. A gravação do vídeo Carimbo é precária, mal escutamos o que narra a artista. Mas percebe-se um trabalho feito em estrutura de parênteses. Vemos no início, alguém colocando uma fita de vídeo no aparelho para exibição na TV. A imagem da inscrição de endereçamento sobre o rosto da artista é vista nessa TV. Na parede ao fundo, vemos um cartaz da Bienal. A gravação de Carimbo parece ser feita em um escritório e então deduzimos que o vídeo é o registro da recepção pela Bienal. No fim, a mesma pessoa que colocou o vídeo no aparelho, retira-o. Letícia alcança questionar duas instituições num mesmo trabalho. A Bienal não é objeto de polêmica, mas os Correios. A arte postal em vídeo – processo precário e ainda não institucionalizado pelo sistema das artes – parece estranha para o espaço que a receberá, ainda que tenha a instituição proposto o Projeto de Arte Postal. Mesmo que trate diretamente da instituição que lhe causou problemas – os Correios – por ordem de uma burocracia amedrontada e cega, Carimbo, de maneira irônica e sob o signo do engano e da ambigüidade, submete a Bienal e seus dispositivos burocráticos também à mesma crítica. Parece que seus trabalhos frágeis, porém intensos, vídeos que são meros registros de ações não dramáticas, ainda que teatrais e falsificantes, forçam uma compreensão da arte: o lugar da prática da impropriedade. Agenciar-se com o exterior de um
contexto discursivo, institucional, subjetivo ou político, sempre mobilizando seu próprio corpo e/ou outros participantes, é impor o engano, o erro, o desacordo. Em Preparação II (1975), Letícia registra a situação do processo de sua saída do país. Entendemos o contexto pelas fichas do Ministério da Saúde que a artista preenche após cada uma das vacinas que aplica em seu próprio braço. Como em seus outros vídeos, a única tomada registrada pelo aparelho não mostra o rosto da artista, sempre fora do campo de visão da imagem. Nesse trabalho de 1975, a artista demonstra claramente seu interesse por agenciar questões éticas e políticas além das artísticas, por meio da mobilização de seu próprio corpo. Aplica-se cada uma das vacinas contra o “racismo”, o “colonialismo cultural”, a “mistificação política” e a “mistificação da arte”. Fica claro que o contexto político coercitivo do governo militar está em pauta e figurado na instituição do Ministério da Saúde. Mas o contexto artístico que problematizava a propriedade da Arte está acentuado pela ironia do trabalho. Aplica-se vacinas contra vários valores instituídos, do racismo à mistificação artística. Aqui o movimento é contrário à fetichização do objeto de arte que o mercado necessita, colocando em questão o que é próprio à arte. Se por um lado não se fetichiza o trabalho artístico operando uma forte ausência de interesse estético pela pouca nitidez da imagem (e de som, quando existente), os vídeos de Letícia impõe um pensamento que é simples relação de contato, operação de proximidade física. Tal como Lygia Clark que havia descoberto um pensamento disjuntivo a partir da “linha orgânica”, Letícia descobriu a disjunção pelo contato entre a arte e a ciência, o corpo cotidiano e o cerimonioso, a instituição e a contrafação, o valor e a fraude, o acontecido e o encenado. Lygia colocou em contato superfícies (planos, coisas, objetos, corpos) e pela disjunção “escapou do objeto em favor do evento” (BASBAUM, 2006). Letícia encontrou a imagem da disjunção em seu próprio corpo e subjetividade, ambos marcados pelo pensamento lógico científico das medidas e dos métodos. Colocando a presença de seu corpo físico em contato com sua presença virtual, Letícia descobriu a simulação, a encenação e o engano como ordens do corpo, do pensamento e da arte em sua impropriedade própria. Um presente desdobrado em imagem, um corpo que se faz ausente na variação, uma ação que não faz obra são agenciamentos que mobilizam o pensamento, mas não chegam a se transformar em reflexão analítica ou trabalhos artísticos auto-reflexivos. Não se pode dizer que os vídeos de Letícia sejam propriamente auto-reflexivos porque faltam-lhes a nitidez ilusionista do cinema ou porque os drop-outs comentam o meio enquanto dispositivo eletrônico. Ainda que haja essa dimensão de exposição dos dispositivos técnico e artístico, seus trabalhos são mobilizadores de um pensamento que é puro traço. A figura da auto-reflexividade está inscrita como cicatriz que não permite que o trabalho volte-se somente para si mesmo, autonomizando esse processo de outras operações e esferas. A heteronomia marca os trabalhos de Letícia: eles existem em relação com o mundo das instituições, dos poderes e dos discursos. O pensamento é antes o agenciamento produzido entre forças, campos, e esferas contrárias e sempre exteriores. Seus vídeos são, nesse sentido, marcas dos eventos e das ações que se propõe atuar, índice de um contexto histórico e cultural que se impõe à imagem. Mas enquanto índice é também erro e armadilha, ironia e encenação, tudo conduzindo às ramificações e aos desvios seja dos gêneros artísticos, dos valores instituídos, dos comportamentos sistematizados, das instituições e burocracias, dos saberes e poderes. Letícia Parente praticou a arte do vídeo como potencializadora de um pensamento da divergência, esse que permite a ramificação dos sentidos e o desdobramento dos eventos. Bibliografia BASBAUM, Ricardo. “Within the organic line and after”. In: Alberro, Alexander. Buchmann, Sabeth. (Ed.). Art after Conceptual Art.. Cambridge: MIT Press, Generali Foundation, 2006 BRITO, Ronaldo. “Análise do circuito”. In: Malasartes, Nº 1, set./
out./nov., 1975. CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, 1970/80. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme.Rio de Janeiro: Zahar, 1990. KOSUTH, Joseph. “Arte depois da fiolosofia”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975. MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003. A Terceira Via. Entrevista de Fernando Cocchiarale Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão da crise do Modernismo. A datação é relativa, os americanos tendem a incluir o Expressionismo Abstrato já no mundo contemporâneo. Eu penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte contemporânea, tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo da década de 1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição proletária ao mundo burguês e criar, dentro do mundo burguês, diferenças na esfera do comportamento que pudessem justificar a mudança na permanência. Muita gente diz que a passagem do moderno para o contemporâneo não se deu porque, afinal de contas, ainda estamos no capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção do jovem introduziu uma dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no campo da arte. Nesse último, podemos considerar o Abstracionismo, mesmo o expressivo, como o Expressionismo Abstrato americano, como uma espécie de poética do sujeito. O sujeito concretista é quase um sujeito cartesiano e um sujeito Pollock é quase a legitimação da existência de um inconsciente, de um interior – não importa, são faces diferentes do sujeito. Por isso mesmo, eles colocam a sua unidade, que vem lá de dentro, projetada, na sua obra, que tem um estilo, e pode ser detectável e reconhecível formalmente. Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção entre arte e imagem durante um período razoável – que foi o período das vanguardas históricas. Claro que sempre houve um flerte com a fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a gente sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna ainda era muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura, o desenho. Esse desenho era feito em um retângulo, horizontal ou vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da janela renascentista. No campo das artes, em relação às transformações do mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do jovem cuidaram de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma sociedade regulada pela razão e pela ordem. Então você vê desde fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, ou mesmo uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia é um problema porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica jovem uma vez, você vai ficar jovem até 75 anos. A invenção do jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o ethos, com a estética, que justificam a passagem do moderno para o contemporâneo, apesar de você ainda estar em um regime econômico dominantemente capitalista. Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria radicalmente com a substituição de um modo de produção dominante por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que foi empiricamente conquistado pelos dois regimes, vamos ver que em um determinado momento, o regime soviético primava por ter uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou possibilidades de fraturas ou de fragmentações.
Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção. Temos de observar que a transição para a arte contemporânea foi introduzida por artistas que começavam ali, mas ela foi vivenciada no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio Oiticica fez isso, ele foi moderno e se tornou contemporâneo. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então não é uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais complicada mesmo. Essa volta a um diferencial, a reintrodução da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali está, do ponto de vista espacial, por uma linguagem de formas ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem menos complexas. Mas há a introdução de um fator muito importante, que eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é a assimilação do tempo na vida social desde o mundo que resulta do Iluminismo, no mundo moderno. A idéia de progresso, de avanço da razão, justifica a noção de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na Idade Média uns carros de boi, uma carroça ficassem obsoletos em menos de 200 ou 300 anos. A idéia de que uma coisa vai ser superada e vai ser substituída, no campo da produção, do objeto, do produto, que hoje em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com a invenção desses novos tipos de tema, como a história, no século 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina, você tem métodos específicos, você tem a historiografia para explicar por que as coisas mudam, por que elas se transformam. A introdução do tempo e do movimento certamente teria de empurrar a obra de arte que vem dessa tradição para registros não só técnicos, como a fotografia, como também o cinema e o vídeo. Vídeo ou Performance? Naquela época, as performances (que ninguém chamava de performances, eram happenings ou intervenções) tinham por característica um certo desdobramento temporal, que precisava ser registrado, digamos, apenas como memória, ou havia um fotógrafo que pegava a seqüência, ou alguém com um Super-8, um 36mm, etc. Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito séria, que se dá no campo da experiência artística, que é pensar agora o tempo e o espaço como valores articulados. Não um espaço com um antes e um depois como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se de um antes e um depois que sustente uma narrativa de qualquer tipo. O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais se caracteriza por um único sujeito com estilo definido. Na época em que começamos a fazer videoarte, nós tínhamos consciência dessas questões, mas não conhecíamos os textos da Lygia e do Hélio, não estudávamos isso. É importante dizer que o pessoal que passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de alguma maneira foi formado por uma espécie de terceira via. A via da Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li o Kosuth antes de saber o que era um parangolé. Das outras vias, uma delas era a que vinha de um experimentalismo de origem neoconcreta e a outra era a que resistia a isso por várias razões, até por um exacerbamento de uma posição formalista. Como a Anna Bella nunca havia explicitado para si o que estava operando, ninguém pensou sobre o que seria aquilo. Mas se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela, em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo, as duas outras vias não favoreciam isso, porque elas estavam ainda, digamos, voltadas para a observação da grandiosidade das questões de que elas eram portadoras. Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado, em que ele e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a
imagem só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele não poderia fazer. Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. Agora, o sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem que hoje em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma neopolitécnia que está no photoshop, que está no sintetizador. Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as pessoas acham que a linguagem do vídeo é filmar em close, editar, colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo registrar simplesmente uma performance. Não poderia aparecer daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se pusesse um desenhista, um Debret para desenhar. Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia – tacando o feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente – isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal da Globo. Aquilo quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou não é o que menos me interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter Benjamim já saca isso quando ele fala do close. Como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu vejo ali é vídeo. A Contribuição dos Vídeos A contribuição artística desses trabalhos é inegável e eu poderia citar, de cara, a obra de Letícia Made in Brasil, que se tornou emblema de uma mostra retrospectiva de vídeos, diria eu, quase um emblema da videoarte brasileira. Então, se uma obra tem essa potência, eu não preciso dizer nada. Outro exemplo é o sucesso recentíssimo dos trabalhos da Sônia Andrade – recente no sentido de reconhecimento –, que participou de uma exposição no Louvre. O vídeo em que ela enrola um fio de náilon em torno do rosto foi associado pela curadora a Degas. Tratam-se de narrativas ou neonarrativas feitas sobre temas e questões que hoje são candentes e reconhecidas em toda a produção artística contemporânea. A questão do corpo, por exemplo, que está nos trabalhos de Letícia, de Sônia. Esta joga o feijão, enrosca o rosto. A Anna Bella sobe as escadas. Quer dizer, há uma performance, uma ação direta do artista. Agora, uma curiosidade: como é que a Anna Bella poderia subir e descer tantas escadas, externas e internas, se não fosse em um registro feito em vídeo? A linguagem do vídeo é isso também. Eu tive consciência no meu trabalho de que a televisão era um meio de comunicação absolutamente essencial para o Brasil, naquele momento de ditadura, e, por meio da intervenção direta do defeito, tomei como lema o check-out desse sistema. A idéia era introduzir nesse sistema eficiente algo que comunicasse pela falha, pelo defeito, pela falta. Eu também só poderia fazer isso em vídeo. O próprio Herkenhoff, na série Estômago Embrulhado, quando ele filma uma notícia de jornal, “Cruzeiro já circula livremente no Paraguai”, lê a notícia, o público lê também, ele come e sai pela rua repetindo a notícia até a memória ficar diluída. Isso é um Globo Repórter no meio da rua. É feito com quê? Carvão, pastel, crayon? Não, só podia ser feito em vídeo! Não poderia ter sido visto de outra maneira se não fosse visto do jeito que foi. E foi concebido para ser visto em vídeo, então é videoarte, sim, e tem qualidades estéticas inegáveis. Exposição Medidas
Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência. Não por ser retrógrado ao que se chama arte-ciência, ao contrário, eu acho a arte-ciência retrógrada ao que a Letícia estava mostrando ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos de mensuração é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição, supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse sistema, mas ironizar e até, em certos momentos, implodi-lo. Então quando se fala em arte-ciência hoje, muitas vezes, o que há é uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas. Mas o que se chama de arte-ciência é quase fruto de uma sedução recíproca e no trabalho de Letícia o que há é uma espécie de tensão explícita e intencional. Até porque essa artista foi a pessoa que eu conheci que mais tinha as duas coisas, a arte e a ciência. Ela era uma química impecável, chefe do Centro de Ciências do Rio de Janeiro, mas sempre deixava claro que essa atividade como artista era o gancho que ela possuía com um outro lado, poético, humano, imprevisível, um lado do risco, da incerteza, do jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver porque ele está muito bem encastelado em todas as suas razões. Em geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo tem suas razões”. Ela passava de um estado para o outro muito naturalmente. Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor, o lado da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza de que se há alguma coisa que a guia e que implode tudo isso é o lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração, um encantamento. É um trabalho, como você4 disse, foucaultiano, que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo não tinha nenhum objetivo escrutinador, esquadrinhador. Aquilo era uma coisa sensual, lúdica. Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo diz que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas experiências são registradas ali com uma seriedade quase de um viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que era o amor à verdade, aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então ele reifica aquelas experiências do cotidiano agindo sobre elas como se fosse um cientista. Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico, mas artístico. Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um português imprime um peixe em um papel lá em Lisboa, estivesse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película, cajuína em Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no sentido de rendição, no sentido de libertação. A CASA Letícia Parente, artista e química, foi casada 20 anos, teve 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além de conhecer as ditas tarefas do lar, como cozinhar, costurar e cuidar dos filhos e marido, a moça baiana ainda dirigia, fez parte da juventude católica e trabalhava fora como professora de química na Universidade Federal do Ceará, e depois na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E tudo isso no Brasil da década de 1960. Os vídeos que a artista produziu entre 1975-82 mostram imagens que não saem de casa. Letícia Parente tece um fio sutil entre a casa e um pensamento sensível da arte. Com agulha e linha ela costura o Brasil na sola do pé, com o ferro de passar ela refaz
as posições entre patroa e empregada e entre roupa e corpo, com o cabide se guarda no armário e com a maquiagem inventa uma máscara que cega. Cada trabalho realizado acrescenta ao vivido e com ele se confunde. A casa é então a família, a religião, o país, a casa é tudo e todos ao mesmo tempo, que, convidados a permanecer diante da câmera, não disfarçam suas imagens. O que vemos é cru, sem retoques, sem segundas intenções. Letícia não enfeita os momentos do cotidiano que escolhe. Ela faz passar os dias que passam por ela de uma outra maneira. Eu sou uma coisa no meio das coisas e desejo agir como elas, ficar dentro do armário, me estender sobre a tábua de passar. Ao mesmo tempo eu subverto. A empregada passa a patroa e meu pé é a minha terra. Nesse duplo movimento reside a tensão que caracteriza a obra de arte, um olho que assiste ao que é enquanto o outro insiste no que não é.
Ora pro nobis A voz repete a oração. Ora pro nobis, ora pro nobis, ora pro nobis. A cada repetição a fotografia em preto-e-branco das mãos entrelaçadas na reza é trocada por outra que também reza. A voz da artista é rouca e pede ora pro nobis. Nesta prece a luz surge e desaparece. Na reza não se reza, não há pedidos ou agradecimentos, apenas a ladainha que sussurra, que comove, que aflige. Na repetição dos gestos e da reza há apenas o sentimento da prece. Do canto da casa Letícia Parente olhou e viu outras casas. Do afastamento e da proximidade desse olhar surgiram alguns dos primeiros vídeos da arte brasileira, vídeos curtos, agudos, breves como relatos íntimos, mas que vão além da cotidianidade e apontam para o que está no avesso das nossas ações banais, o acolhimento da poesia que se repete todo dia.
Preparação Diante do espelho a artista inverte a própria imagem, mas não se trata da visão de cima para baixo, trata-se da cegueira no lugar da visão. Letícia cuidadosamente, como uma mulher que prepara a maquiagem antes de sair de casa, cuida de cada parte do rosto. Cola primeiro um esparadrapo na boca e contorna os lábios por cima. Depois, também por cima de cada olho, repete a mesma operação. O desenho no esparadrapo refaz o que esconde. Sem fala e sem visão, a mulher continua armando o cabelo e fixa no espelho seu olho construído e bem aberto e depois deixa o espelho e o banheiro e a casa. In Quantas vezes já penduramos roupas no armário? E quantas vezes já desejamos nos trancar em casa ou fechar a porta do quarto? O isolamento e o fechamento nos remetem às sensações de angústia, mas também à tranqüilidade e à paz. A artista desloca operações e objetos. Por que não nos pendurarmos juntos com a roupa? Por que não nos sentirmos como a roupa? Por que não deixar de sentir? Por que não guardar o que sentimos? Ela parece não pensar, ela está apenas fazendo mais uma tarefa do dia, não há tempo para pensar no cotidiano, é uma coisa atrás da outra. Mas, quando se fecha no armário, o tempo se guarda junto com a artista. Tarefa 1 Letícia deita sobre a tábua de passar diante da sua empregada, que tranqüilamente passa a ferro a patroa vestida ,com a mesma atenção nos detalhes de quem passa uma roupa estendida e plana. A artista tem a calma de uma roupa vazia, não se move, não reclama, permanece. Ela é uma roupa qualquer, num dia qualquer. Não há indiferença, é apenas mais uma tarefa cumprida. Na relação entre a patroa e a empregada não há tensão, apenas uma cumplicidade muda. Marca registrada Os pés caminham, e depois as pernas que se cruzam mostram para a câmera parada a sola de um dos pés. A mão surge com a linha e a agulha que costura as palavras Made in Brasil. Brasil com “s”diante da presença americana que se desenha nos pés sobre os quais pisamos. Os pontos são firmes como se fosse em um tecido estendido. Sem qualquer hesitação, Letícia tece na própria pele o estado do Brasil, um país feito fora daqui, propriedade estrangeira, o Brasil de 1974, estranho a nós mesmos. A pele cede à pressão da agulha que não pára. No gesto não há violência, mas coragem. Brasil é uma casa estranha, nós e outros ao mesmo tempo.
Katia Maciel A CARNE DA IMAGEM
Se a imagem no espelho se assemelha a nós o suficiente para ter direito a um nome, o nosso, esse nome só faz sentido para o ouvido e a voz de um outro. O espelho não tem ouvidos e a imagem só adquire sentido na triangulação em que a voz pede ao olhar para não se tomar por aquilo que ele vê, senão será tomado por aquilo que ele não vê. Onde estão as vozes que constroem nosso olhar para lhe dar visibilidade? Marie-José Mondzain Le Commerce des Regards
A mulher diante do espelho. Nada mais corriqueiro do que vê-la maquiar-se defronte à superfície do cristal. Salvo que, naquele lavabo, inicia-se um cerimonial que nos sugere uma estranha violência, uma automutilação simbólica: a boca é silenciada com um pequeno esparadrapo sobre o qual a mulher delineia seus lábios. Os olhos são então vendados: um após o outro, e sobre o tecido branco, são desenhados os olhos subtraídos. Tateando à procura da porta, a mulher enfim retira-se. O que se oculta atrás do mutismo e da cegueira das imagens? O vídeo chama-se Tarefa I (1975) e, como em outros vídeos de Letícia Parente, é a artista que protagoniza a performance no espaço privado de sua casa. São rituais do cotidiano, pequenos afazeres domésticos e banais desprovidos de narrativa dramática, como passar ou pendurar a roupa no armário. Mas eis que a roupa ainda veste a artista, aquela que realiza a ação confundese com aquela que sofre a ação: a artista é suspensa pela roupa no armário. Corpo, carne e o véu que os cobre tornam-se indiscerníveis. O olhar e a voz convocados no endereçamento são apanhados na armadilha: a imagem é o lugar de uma indecisão, ou, como diz Marie-José Mondzain, “de uma crise”. No final dos anos 50 e nos 60, os happenings e as performances já haviam introduzido a execução de tarefas cotidianas como as Task Performances, de Robert Morris, coreografias realizadas com Simone Forte e outros dançarinos. O esvaziamento do gesto expressivo do artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas, com seu tempo operacional, repetitivo e autômato, a exigência da co-presença do espectador para a completude da obra vinham opor-se às concepções formalistas da arte. Mas, tal como Bruce Nauman, que na série Studio Films executaria uma sucessão de atividades em seu ateliê, muitas vezes conduzindo o corpo à sua quase exaustão, as performances e tarefas de Letícia Parente não
se realizam diante de uma audiência, mas têm a câmera, seu olho maquinal, como testemunha. Tarefa I parece remeter ao gênero do retrato na arte, expondo-o em toda a sua ambivalência: de um lado, está a clausura de um si mesmo, figura cega e muda, colocada frente à face e à visão de um espelho impossível e sob a vigilância de um olho mecânico. De outro, um fora de si, figura extraviada que se ganha e se perde na própria captura. A imagem solicita a palavra, o sopro de um sentido partilhado, mas não se deixa capturar ou reduzir-se por ela. Como devolver àquela figura a voz, se nenhum nome parece adequar-se? O que se mostra ali como uma fratura íntima é o véu obscurecido de um encontro, de um espaçamento. “Arte”: o nome instável desse encontro. “Entretanto, ‘eu’ não me encontro, nem me reconheço no outro, existo com ele: eu experimento a alteridade e a alteração que em mim mesmo coloca, fora de mim, nessa exposição, a singularidade de qualquer existência tecendo-se em tramas e ecos infinitos” — eis a resposta subentendida em outro vídeo, Especular (1978). Nele, o espelho foi removido. Permanece, pelo nome que o intitula, apenas o adjetivo que designa sua propriedade reflexiva. Em seu lugar, um jovem casal se olha e se escuta por estetoscópios. Ela diz: “Eu quero ouvir o que em mim você está ouvindo dentro de você”. Ele responde: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você, dentro de mim”. Ela outra vez: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você, o que você está ouvindo de mim, dentro de você”. E assim, sucessivamente, nos rebatimentos da palavra, Narciso oferece a hospitalidade a Eco. O que faz a arte senão solicitar o pensamento e a sensibilidade diante do visível e explicitar seu desamparo diante da face impossível? O que faz a arte senão expor esse vazio, essa intermitência, esse espaçamento eclipsado, que todavia abre o lugar a um terceiro. O lugar de onde se aguardaria uma resposta, a recompensa desse dom. Qual é o lugar que ele ocupa nesses rebatimentos amorosos e fugidios? Letícia Parente é uma das primeiras a trabalhar com videoarte no país. E, de certo modo, seus vídeos estão em diálogo com as questões da história da arte e de suas imagens, mas confrontamse, também, tanto com a invasão das visibilidades da televisão e da propaganda, quanto com o roubo das imagens de uma sociedade de controle, que então se anunciava. A onividência divina dando vez ao olho das câmeras de vigilância. Seus vídeos interrogam as tiranias que exercitam e extraem o poder da imagem, esvaziando-a em submissões crédulas. As tiranias que promovem estratégias de cegueira e de emudecimento: manipulam o desejo de ver, violentam nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra. Encarceram visão e voz na servidão dos consensos econômicos, políticos, religiosos, fusionais, identitários, quais sejam. Mas ela o faz, acredito, indagando os fundamentos de nossa relação com a imagem. Nos vídeos de Letícia Parente, corpo, casa, figura, as tarefas cotidianas ganham contornos singulares, solicitam outras aproximações. Os rituais domésticos assemelham-se à paixão da carne e da imagem, interrogam a capacidade de sentir, de afetar e de ser afetado. São as pequenas paixões do cotidiano, suas passagens, os modos de aparição de um provável homem dotado de palavra e de visão. O que está em questão ali é a natureza da imagem que se ergue e se desdobra para além da visibilidade, que exige um vazio, uma invisibilidade no coração do visível. Que demanda uma liberdade e uma resistência. O que está em questão é a potência da imagem que existe por nós e faz um mundo advir por ela, no jogo das aparições e desaparições recíprocas entre homem e mundo. O que está em questão ali, penso, é a possibilidade de um homem, de uma humanidade sempre por vir. Figura paradoxal que se debate entre seu excesso, sua infigurabilidade, e o desejo e desenho de sua imagem. Entre o véu que cobre a face inominável e o véu como plano de inscrição de um nome encarnado. Afinal, aquilo que um dia chamamos homem nasce da palavra encarnada na imagem.
Na instalação Medidas (1976), realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, as pessoas eram convidadas a passar por uma série de testes e escolhas tipológicas para montar seu perfil ou sua face. Eram formas de mensuração, classificação e catalogação as mais diversas: definições dos tipos físicos (altura, peso, forma do rosto e proporções da face); comparação e escolha de uma das imagens da história da arte (como Virgens e Vênus) ou de tipologias supostamente científicas; um audiovisual com slides, extraídos do livro Guiness do ano, que exibiam o que escapava dos padrões e das medidas habituais (como a mulher mais gorda ou as unhas mais compridas); um ambiente em que se guardavam as medidas secretas. Dispostos em seqüência linear, cada um passava por essa espécie de “estações de sua paixão pessoal” munido de uma ficha em que preenchia seus dados particulares. “A medida é a conveniência [convenience] de um ser a um outro ou a si mesmo”, disse Jean-Luc Nancy. Se a Antigüidade era o mundo da “medida, do horizonte, do phronésis, da mésotès e do metron – em que a hybris era por excelência a desmedida mensurável – essa medida era a conveniência de ser si mesmo, o modo e não sua dimensão.”1 A medida do mundo moderno e ocidental foi, por sua vez, o modo desmedido do infinito. Um modo infinito de ser cujo fundo é cristão. Pois ainda que a criatura conservasse uma medida pelo reflexo de Deus, guardaria também o vestígio de seu criador: o homem, medida de todas as coisas, esse filho do humanismo grego e cristão, possuiria por conveniência Sua imensidão, Sua nãomedida. Mas o que seria hoje, a medida ou a desmedida da existência sem Deus e sem eu, senão o sem-medida enquanto tal, que conduz o próprio homem a uma outra imensidão? Não mais como substância, não mais como o infinito de Deus, mas a imensidão da “responsabilidade”2. A imensidão de um cuidado. Ora, nossa relação com a imagem está indiscutivelmente vinculada ao pensamento cristão. “A imagem fez uma entrada real em nossa cultura em que a encarnação cristã deu à transcendência invisível e atemporal sua dimensão temporal e visível, a transcendência que negocia com o acontecimento (...). Deus entra na história pelo nascimento de sua imagem filial. Doravante, no Ocidente, a manifestação do visível se descreve em termos de nascimento, de morte e de ressurreição, ela se endereça aos corpos vivos dotados de palavra e julgamento.”3 Nas reflexões de Marie-José Mondzain, o imaginário contemporâneo tem suas fontes na crise do iconoclasmo em Bizâncio4. Em sua dupla natureza, Verbo e Carne, Cristo é o ícone que serve de modelo, imagem natural de uma invisibilidade. Foi a partir dessa imagem que o homem pôde produzir imagens artificiais. Por isso o véu do interdito bíblico, que cobre a imagem de Deus hebreu, pôde se tornar um plano de inscrição da face do homem cristão. A Paixão de Cristo é oferecida então em espetáculo aos olhos dos homens como uma redenção a imitar. O destino icônico da paixão ativa de Cristo transforma-se na “paixão da Imagem”, diz a autora, que reúne em si todos os destinos e paixões em uma única fábula em que fiéis são atores e espectadores. A redenção da própria Humanidade. Mas se o pensamento cristão instaurou um laço solidário e fundamental entre a palavra invisível transfigurada em imagem à nossa realidade viva e corpórea, ele o fez preservando seu enigma, seu espelho velado. Enigma da carne habitada pela Voz invisível que enuncia Sua manifestação, mas que mantém nos filhos o desejo insaciável de ver Sua face, pois a imagem é sempre estranha àquilo a que ela serve de imagem. Como esse Deus estrangeiro que habitou entre nós. É em torno dessa invisibilidade estrangeira se institui o que Mondzain denomina o “comércio dos olhares”. A imagem é o “lugar de crise”, diz. Não é uma experiência mística, mas uma negociação entre o visível e o invisível, entre a distância e a proximidade. A liberdade face às imagens necessita de um olhar crítico que os coloque em relação. Crise, do verbo grego krinô: discernir, distinguir, escolher, julgar. “Ver é julgar.” “Dar
à imagem um estatuto crítico era uma promessa de liberdade.” É a partir do lugar assinalado para o espectador, que exige uma distância por onde ele se movimente, que se pode julgar. “Não se partilha o visível sem construir o lugar invisível da própria partilha.”5 Ela demanda a palavra, o apelo e o envio dos olhares, que se encontram pelas imagens. A economia do visível é uma escolha política, aquela da partilha do amor e dos ódios, a partilha de um mundo comum. O comércio dos olhares, a economia própria à imagem, nada se relaciona com o mercado das visibilidades, diz Mondzain. Não é a proliferação das imagens, pelas técnicas modernas de produção e difusão de imagens, que constitui uma situação nova. “A presença da imagem e o reconhecimento de seus poderes remonta há milênios.” Não estamos sob a inflação das imagens em um mundo submerso de coisas a ver, “jamais a imagem esteve tão ameaçada e arrisca-se a desaparecer sob o império das visibilidades. Há cada vez menos imagens”6. Quando o comércio dos olhares se transforma na gestão comercial do visível, o mercado dos espetáculos constrói “o império das barbáries”. A extenuação da imagem condena o olhar e sua liberdade à servidão de “iconocracias”. Programar o consumo unívoco e o consenso de um sentido é destruir a imagem e produzir a idolatria por um poder econômico totalizante. Extravia-se o lugar do espectador: não há palavra, escolha, ou um juízo sobre nossos gostos e afetos. Não há a partilha de uma vida em comum. Assim o plano de inscrição se transforma no registro da mercadoria. E o fora do lugar, o exterior que se abriria à cidade humana se converte na inscrição de um poder entre fronteiras dos territórios econômicos, no solo indiferenciado das identificações e incorporações do mercado. No vídeo mais conhecido de Letícia Parente, Marca Registrada (1975), a artista costura, na pele da sola do pé, a expressão Made in Brasil. Não a imagem da palavra inscrita na carne, mas a marca exaurida. Seria necessário, então, devolver a condição de estrangeiro em sua própria pele, ou antes, incorporar seu próprio impróprio, encarná-lo: o corpo sem próprio se entrega à errância, que abre incondicionalmente as fronteiras à alteridade qualquer. Em Preparação II (1976), a artista se aplica vacinas contra todas as formas de poder e preconceito, contra o pensamento absoluto que reduz o outro ao espelho dialético do mesmo: antiracismo, anticolonialismo cultural, antimistificação política, antimistificação da arte. E talvez o lugar do espectador da arte deva ser apenas esse semlugar como abertura infinita. As imagens da arte são essa oferta ao olhar de qualquer um como pura despesa, como a prodigalidade de um excesso que não se deixa figurar. Para nomear a carne do mundo e partilhá-la com outros é necessário um dom que não tem certeza de sua recompensa: a recompensa da acolhida de um olhar, o sopro e a inscrição de uma palavra estrangeira. E, ainda que o olho e a voz não vierem recolher essa graça, não há como evitar o chamado. A imagem se fez carne. Desde então, o que será a carne de nossas imagens? Marie-José Mondzain Image, Icône, Économie Marisa Flórido Cesar abril de 2007
Persistência da consciência: marcas da identidade Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo,
a conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano afirmar que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas, mesmo que suas obras extravasem o entendimento e a pertinência para outros contextos e gerações. Dessa forma, poderíamos dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra manifesta seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização do corpo como suporte discursivo, a escalada do consumismo exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias, aspectos que caracterizam a arte da segunda metade do século 20. Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual que lida com essas questões. Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino como alvo de reificação num período de extremo questionamento da posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se. O aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária femininas é representado a partir de subversões e paródias de situações cotidianas em ambientes domésticos, concomitantemente simples e de alta potência imagética. Em Preparação I, o ato banal de se embelezar para sair transforma-se no vestir de uma máscara. O deslizar do batom não evidencia os traços labiais da artista, mas por ser aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios, uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um caráter de mascaramento. O que supostamente seria feito para ressaltar a beleza feminina apresenta-se como falseamento, enganação. Em outra performance sem audiência, a artista abre um armário e pendura-se num cabide através de sua própria roupa. Neste outro comentário sobre os adereços que podem garantir a feminilidade, fica mais evidente a crítica ao processo de coisificação do humano, já identificado como Homo consumericus5. Roupa e mulher confundemse de tal forma que não se apartam. A vestimenta que ganha crescentemente o poder de definição de identidade e status cola-se no indivíduo, que parece não mais significar nada sem seu símbolo de colocação e expressão. Ainda sob a abordagem da aderência e contaminação da identidade pelas vestes e consumo, Letícia Parente deita-se numa tábua de passar roupa. Seu traje-pele é passado a ferro. Não há truques. A crueza do ato é uma das maneiras de amplificar a urgência de seu discurso crítico, assim como se fazia nos anos 70, a exemplo das performances desafiadoras e arriscadas de Marina Abramovic e Chris Burden, entre outros. A contundência da imagem (que é diretamente ligada à verdade, à realidade) é um recurso usado amplamente pelos artistas a partir da segunda metade do século 20. Ver é crer, e no caso de Letícia, assim como no de muitos outros artistas, a ação vista é a ação praticada. Marca Registrada, trabalho exponencial da artista baiana, apropria-se novamente da pele. Não mais como indistinção entre indivíduo e consumo, mas como superfície escrevente. A artista borda os dizeres Made in Brasil na sola de seu pé num grande close da câmera. Mesmo sabendo que essa brincadeira recorrente no sertão nordestino não fere a epiderme e é reversível, o ato suscita apreensão e desconforto. Fica patente o intuito e a carga simbólica de sua performance: o pertencimento marcado com severidade e agressividade, que é eternizado em nosso imaginário. A preferência pela língua inglesa e o uso de uma técnica tradicional de sua região natal ressaltam outra questão identitária, a cultural. Uma constante nos debates intelectuais brasileiros desde a independência do Brasil, os questionamentos sobre a influência estrangeira e o colonialismo cultural ressoam fortemente não apenas no país, mas internacionalmente, graças ao processo de independência política e econômica que diversas sociedades atravessam a partir dos anos 60, além do aumento do fluxo de imigração mundial. Esses tópicos servem ainda de pano de fundo para Preparação II. Uma pessoa aplica em si mesma vacinas contra o colonialismo cultural, o racismo, as mistificações política e da arte. A ação é seguida do preenchimento de um cartão convencional de vacinação. O Homem do Braço e o Braço do Homem assinala uma fase posterior
das investigações de Letícia Parente. Seu foco migra para uma discussão mais abrangente do corpo e inclui a afetividade e comunicação como catalisadores de seus trabalhos. O tom assumido nessas obras do final dos anos 70 pende para o lúdico, assimilando o outro (a artista deixa de ser a protagonista das ações e passa a orquestrar os trabalhos). Nesse vídeo, Letícia versa sobre a mitificação da virilidade e da resistência esperadas do corpo masculino. Um anúncio luminoso de uma academia de ginástica mostra o movimento incansável de um halterofilista contraindo seu bíceps, numa clara demonstração de força. Após um período longo de exposição à seqüência repetida do néon, uma imagem de um rapaz de carne e osso copiando o movimento braçal é sobreposta. Assistimos à sua tentativa de manter o ritmo da máquina e sua gradual falha. Seria uma antecipação da discussão sobre gênero que atualizou apenas recentemente os argumentos feministas? Especular e Quem Piscou Primeiro? partem do espelhamento e da complementação como argumento. No primeiro, observamos um processo de diálogo e reciprocidade. Um casal busca clarificar seu processo de escuta. A cada fala a conversa vai se tornando mais complexa, sem que a dupla escorregue no entendimento mútuo de suas ações. O segundo vídeo coloca um casal de frente para uma TV. Vemos apenas seus reflexos no aparelho de televisão e devemos prestar atenção no causador do fim da brincadeira. Assim que um dos dois pisca o olho, o vídeo escurece e a gincana acaba. Potencialmente um trabalho de percepção, Quem Piscou Primeiro? ativa também a capacidade de olhar para o outro, de se deter no rosto de alguém, mesmo este encontro sendo mediado pelo vídeo. Tal aspecto afetivo é arrematado por De Aflictibus, uma seqüência de slides de entrelaçamentos corporais de todos os tipos. Experimentação plástica que se tornou freqüente nos últimos anos, Letícia Parente ritma imagens de fusões corporais com uma frase que mais parece mantra entoado gravemente. A produção contemporânea brasileira atual deve muito à investigação desta artista e de sua geração. A amnésia reinante obstaculiza o surgimento de um experimentalismo pungente e não ingênuo. Cristiana Tejo é diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. (Footnotes) 1 Trata-se de uma frase dita em um vídeo de Letícia Parente intitulado A Chamada (1978), material considerado perdido. Na própria descrição da artista: “A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada perguntando: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Responde: ‘É A LETÍCIA...’” Isso foi, aliás, o que a motivou a realizar duas cópias do seu vídeo Marca Registrada, um preto-e-branco (1975) e outro colorido (1980). Na verdade, o master da primeira versão foi dado como perdido, em uma mostra na Argentina, no CAIC, tendo retornado anos depois. 3 Nota do curador: “O nome da exposição é “Medidas”, ocorre que no folder do MAM o nome é “Medida” no singular. Este erro induziu os comentadores a utilizá-lo no singular. Entretanto, tanto no projeto, como em textos posteriores, a autora se refere a exposição sempre no plural”, 4 Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a André Parente”. 5 Colocação de Gilles Lipovetsky em Tempos Hipermodernos, pp 122. 2
(Endnotes) 1 NANCY, Jean-Luc. Démesure Humaine. In: Être Singulier Pluriel. Paris: Éditions Galilée, 1996. p.205 2 Idem ibidem. 3 MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. Paris: Éditions du Seuil, 2003. p.18. 4 MONDZAIN, Marie-José Image, Icône, Économie: Les Sources Byzantines de l’Imaginaire Contemporain. Paris: Éditions du Seuil, 1996. 5 MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.146. Entretanto, não deixando à liberdade de cada um compor sua troca com a divindade, a Igreja construiria pelos séculos os dispositivos coletivos, as regras da partilha, a política e a doutrina das visibilidades programáticas comunicando uma
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única mensagem. Desde então a carne ressuscitada e o corpo eucarístico é o corpo institucional da Igreja. MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.17.
JORNAL DO BRASlL Rio de Janeiro, quinta-feira, 24 de junho de 1976 Artes Plásticas MEDIDAS, POR FORA E POR DENTRO Roberto Pontual Dá ao mesmo tempo alívio e esperança uma exposição como a de Letícia Parente, aberta desde o dia 10 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Alívio porque, no meio de uma temporada sem maior garra e interesse como a atual, ela reafirma a vitalidade do trabalho no âmbito da proposição experimental, exatamente um dos aspectos que melhor havia definido o comportamento das artes visuais no Rio em 1975 e que se estava demonstrando em recesso nos últimos seis meses. Esperança por vir talvez indicar a retomada mais compacta da atividade nesse setor no próximo segundo semestre. Por coincidência, Letícia expõe na sala ao lado da individual do jovem paulista Wilson Alves, o premiado da Arte Agora I. A mostra dele, no momento se encerrando, constituiu outro dos raros pontos instigantes no comodismo da temporada e redobrou sua importância por comprovar a vitalidade de que também se nutre a nossa recente escultura e/ou objeto – com um modo específico de indagação, mais do que visual, mágica e lúdica. 0 texto de hoje, no entanto, é sobre Letícia Parente. Nascida em Salvador (1930), até pouco tempo atrás ela residiu em Fortaleza, onde expôs pela primeira vez em 1973. Dois anos antes, estivera no Rio, estudando e participando de seminários com Anna Bella Geiger. E foi no Rio que se fixou de 1974 para cá. Pode-se dizer que os três anos de sua atividade têm sido marcados por uma opção de linguagem cujos contornos se definem desde cedo. O cerco da figura e do ser humano a partir dos mais diferentes pontos e ângulos de abordagem, utilizando particularmente a fotografia e o audiovisual. Há algo de fenomenológico, creio que em nível consciente, no seu método de tratar as evidências deste dado do real, que é o homem. Já era assim nos primeiros trabalhos que conheci de Letícia, em 1975 – por exemplo, no audiovisual em que apenas números de vários algarismos apareciam inscritos em cada novo diapositivo, correspondentes a nomes de pessoas sucedendo-se em ordem alfabética na fita gravada. Quaisquer pessoas, números e nomes apanhados nas fichas de algum setor da burocracia, malha que processa o indivíduo como multidão, quer defini-lo e apreendê-lo mas só consegue dessangrá-lo e diluí-lo. Nessa visão crítica do envolvimento burocrático, Letícia Parente se irmanava a Margareth Maciel, jovem carioca, também conhecida do público a partir de 1975, com trabalhos em torno do passaporte, da certidão de nascimento e da carteira de identidade – alguns entre tantos outros dos nossos documentos, seguranças numéricas e tipológicas no sistema, ainda que nos reduzam de formas vivas, na verdade imensuráveis, a formas arquivadas, papel-poeira de repartição. Mas a mostra atual de Letícia mantém elos muito mais diretos com a exposição que Emil Forman realizou igualmente no MAM, em agosto do ano passado, reunindo em painéis cerca de 2,5 mil fotos emolduradas, além de filmes exibidos no mesmo recinto, tudo concentrado numa única figura: a de sua própria mãe. Se Emil individualizava a esse ponto o objeto de abordagem – dando ao ambiente uma atmosfera final de santuário, morbidez de dados mortos que se acumulavam para modelar um ser ainda vivo –, Letícia procura o pólo oposto. Faz de cada visitante o centro, foco a ser medido por todo tipo de variável capaz de caracterizá-lo como forma física e processo mental, corpo e alma, indivíduo. Ambos, Emil e Letícia, medem obsessivamente o ser humano, o mais próximo ou o mais distante, o conhecido ou o anônimo. Mas o mede, como também Margareth, antiburocraticamente, para torná-lo consciente de sua vida individualizada. Por isso, ela deu à exposição o título Medida – um método e uma ironia. Dividiu-a em dois setores complementares, um servindo à coleta de dados e outro à visão de dados já previamente registrados. Daí cabe dupla tarefa: a de ver e a de agir. Esses compartimentos de mensurações constituem, como os chama Letícia, estações, e se destinam a nos colocar em contato com dados em torno do tipo
físico, da respiração, da resistência, do sangue, da acuidade visual, da atenção e das “medidas secretas” – estas, ao contrário das anteriores, voltadas para a liberação da subjetividade contra a rigidez nas medidas que podem ou devem ser exatas e objetivas. Diria que as primeiras estações referem-se ao corpo, às formas visíveis e a última, à alma, as formas impalpáveis do pensamento, da imaginação e da memória se desdobrando. Há uma estação extra, a do gosto, e um audiovisual, Os Recordes, completando a mostra de Letícia. Ali o visitante se comporta primeiro como quem vê e compulsa dados a ele oferecidos, inclusive os deixados por visitantes que o antecederam. Mas é logo solicitado a também produzir dados, por meio de testes que o levam, de estação a estação, a medir a si próprio e a registrar as medidas. “Quero deflagrar ações até que elas se incorporem e criem a forma das marcas do homem em sua presente busca: um fio entre os imensuráveis de sua trama. Desejo capturar vestígios atuais através de quantidades, medidas que possam se fazer transcender, a fim de que o imponderável invada e faça nexo ou interrogação.” Dispondo de dados concretos, precisamente mensuráveis, mas podendo submetê-los à ação aberta que é sua própria existência, o visitante tem como romper o “espaço imposto das gaiolas”, os números que o indicam em série, porém não o confirmam como ser único entre outros seres únicos, seus companheiros de humanidade. Letícia Parente mede, portanto, tudo – o tempo também. Durante a nossa permanência na sala de exposição estaremos sendo obrigados a ouvir de um alto-falante a voz monocórdia repetindo, em ciclos incessantes: “Cinco segundos, 10 segundos, 15 segundos, 20 segundos, 25 segundos, 30 segundos, 35 segundos, 40 segundos, 45 segundos, 50 segundos, 55 segundos, 60 segundos. Cinco segundos, 10 segundos”, etc. O tempo bate como um coração naquele espaço. E é medida que nos penetra e nos regula, igualmente imposta enquanto número. No audiovisual Os Recordes, a prevalência da medida chega, enfim, ao ponto de mostrar que o ato de medir se tornou compulsivo num mundo em que cada um tem de ser o maior para ser o melhor: são registros sucessivos de recordes que um dos dispositivos nos apresentam, dos mais corriqueiros aos mais estranhos, ao som de palmas padronizadas, como as que ouvimos vindos de falsos auditórios de TV – as quantidades fora de série, a elefantíase da concorrência, a desumanizante obsessão humana pela medida. O paraíso seria nada medir.
A artista chega ao espelho do banheiro e vai se preparar para sair. Cola um esparadrapo sobre um dos olhos e desenha sobre o esparadrapo com lápis de sobrancelha um olho aberto. Faz o mesmo com o outro olho. Em seguida, cobre a boca com esparadrapo também, e desenha uma boca sobre ele com um batom. Ajeita o cabelo. Pega a bolsa e sai. Ano: 1975 Duração: 6 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Jom Tob Azulay MARCA REGISTRADA
A autora costura a sola do pé com uma agulha com linha preta. Borda a inscrição “MADE IN BRASIL”. O trabalho pretende a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém, transcende também à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés. Ano: 1975 Duração: 9 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Jom Tob Azulay IN A artista entra no seu próprio armário vazio e se pendura através de sua roupa, pelos ombros, num cabide. Fecha-se a porta do armário, encerrando-a.
PROPOSTA GERAL DA OBRA EM VÍDEO
Ano: 1975 Duração: 3 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Jom Tob Azulay
A artista pretende estabelecer as coordenadas de cada situação arqueológica, sobretudo com relação ao tempo e ao espaço.
PONTOS (desaparecido)
O ponto referencial do espaço, na maioria das vezes, é a própria autora como elemento ora passivo, ora ativo da ação. A tecnologia, representada pelo recurso sempre presente, é, na maioria das vezes, um personagem visível ou invisível. Pode ser obstáculo nos cortes, ponte de união entre o perto e o longe e denotador das distâncias, para vencê-las ou ampliá-las, entre os diversos níveis de consciência interna do personagem. O que se quer, em suma, do vídeo, é a possibilidade de confrontar a vivência ao nível mais profundo, do plano do visceral ao plano do corpóreo tátil com aquelas regiões circundantes do exterior imediato. O tempo resta agora “ampliado” pelo poder da máquina, como o aumento fotográfico de um detalhe. A tecnologia potencializa ao máximo, por todas as vias de acesso e por todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência. Um dos aspectos mais importantes é que as contradições permanecem não resolvidas, mas, antes mesmo realçadas de uma forma ora sutil, ora repetitiva, constante ou fugaz. PREPARAÇÃO I
Uma mão desenha uma caneta com pena sobre uma cartolina. Depois de desenhada, a caneta é recortada e costurada com agulha e linha preta sobre o dedo indicador da mão esquerda. Em seguida a pena é imersa num tinteiro e com ela marca-se um ponto sobre uma folha de papel. Ano: 1975 Duração: 6 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente PREPARAÇÃO II São aplicadas pela própria pessoa em si mesma quatro injeções. Após cada aplicação são escritos dizeres numa ficha de controle sanitário internacional para a saída do país. Os registros são feitos na coluna sob o título VACINAS: -
Anticoloniaismo cultural; Anti-racismo; Antimistificação política; Antimistificação da arte.
Ano: 1976 Duração: 7 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Ana Vitória Mussi
“Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou falando do que você está pensando que eu estava escutando do que você falava do que eu estava pensando que você escutava do que eu falava.” E continua assim até o quinto termo.
CHAMADA (desaparecido) A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: “ALÔ, É A LETÍCIA?”. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Pega o telefone, liga para o seu próprio apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada perguntando, “ALÔ, É A LETÍCIA?”. Responde: “É A LETÍCIA”. A artista se chama e se identifica por três vias de acesso. Uma interior imediata, muda, silenciosa de si para si mesma. Invisível. Outra através de seu corpo chamando a si e sendo conduzida pelo corpo, pelas pernas atravessando o espaço físico até sua casa e respondendo: “ALÔ, SOU EU MESMA”. A terceira via localiza-se dentro do meio tecnológico que grava a sua voz, transmite-a pelo telefone até a sua casa, fá-la esperar até sua chegada e chama-a. A esta ela própria responde: “É A LETÍCIA”. Ano: 1978 Duração: 10 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente
Ano: 1978 Duração: 4 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Letícia Parente O HOMEM DO BRAÇO E O BRAÇO DO HOMEM Parente)
(em co-autoria com André
Vê-se a imagem de um anúncio em néon de um corpo de homem da cintura para cima, distendendo e contraindo um dos braços, num gesto simbólico de exibição de força. (Trata-se do anúncio de uma academia de ginástica). Após alguns minutos dessa cena, aparece um homem de torso nu, da cintura para cima, movimentando o braço da mesma forma. À medida que o gesto se repete, o homem demonstra fadiga e não sustenta o ritmo alentando o movimento. Ano: 1978 Duração: 6 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente e Letícia Parente Modelo/ator: André Parente ONDE (em co-autoria com André Parente, vídeo desaparecido)
QUEM PISCOU PRIMEIRO Duas pessoas (André e Angela Parente) sentadas diante de um espelho olhando uma para a outra através do mesmo. Por trás de ambas um painel e nesse painel um orifício por onde sai a objetiva de uma câmera de vídeo (o terceiro olho) na direção do espelho. As pessoas se observam para ver quem pisca primeiro. Num determinado momento dão o jogo por encerrado. Mas quem piscou primeiro?
Letícia não deixou nada escrito sobre o video ONDE. Trata-se de um jogo de imagens ao infinito ocasionado pela gravação da gravação da imagem de um aparelho de TV que transmite a própria imagem do que está sendo gravado. Constitui-se, portanto, um curto-circuito da imagem (da imagem (da imagem (da imagem))) ao infinito. Ano: 1978 Duração: 4 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: André Parente DE AFLICTI (ORA PRO NOBIS)
Ano: 1978 Duração: 4 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Câmera: Letícia Parente ESPECULAR
Aparecem sucessivamente em imagens fixas gestos de mãos e pés entrelaçados, contraídos e contorcidos. Cada imagem surge do escuro e depois se dissolve no escuro. Uma voz reza uma litania: ORA PRO NOBIS. O ritmo é como o fechar e abrir de um olho (o olho da câmera), convocado pela invocação.
Duas pessoas, sentadas no chão, uma de frente para a outra, estão ligadas por uma espécie de estetoscópio duplo, de modo que os tubos que saem dos ouvidos de cada uma se ligam no meio, através de um tubo comum.
Ano: 1979 Duração: 10 minutos Formato: porta-pack ½ polegada Fotografias: André Parente Câmera: André Parente
A primeira afirma: “Eu estou falando.”
pensando
NORDESTE que
você
está
escutando
o
que
eu
estou
A segunda responde: “Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou falando do que você pensava que eu estava escutando do que você falava.” A primeira prossegue:
Uma mala de couro rústica é arrastada pela autora até o centro do campo visual. A mala é aberta e vê-se dentro dela duas cobras vivas sobre um lençol branco. A artista procura retirar o lençol sem ser atingida pelas cobras. Ao retirá-lo fecha a mala e abraça-se ao mesmo. Música de fundo: canção de Caetano Veloso (“No dia que eu vim embora...”) terminando no verso “e a mala cheirava mal...” Ano: 1981 Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido Câmera: Cacilda Teixeira da Costa TAREFA I Letícia não deixou nenhuma anotação sobre este vídeo. A artista deita-se dobre a tábua de passar e alguém passa a sua roupa a ferro (ela estando dentro da mesma). Ano: 1982 Duração: 3 minutos Formato: Betamax, colorido Câmera: desconhecido VOLTA AO REDOR DO GLOBO (desaparecido) Dentro de um carro chegando num cruzamento encontra-se um jornalista com o jornal O Globo fazendo gestos espontâneos (quase ritualísticos, de apresentação de “mercadoria”). Toma-se o jornal, mostra-se o título e faz-se um círculo demarcado pelo asfalto em torno de O Globo. Ano: 1981 Duração: 8 minutos Formato: Betamax, colorido Câmera: Cacilda Teixeira da Costa CARIMBO A artista é marcada no rosto com o endereço da Bienal. Uma foto de sua face envelopa o vídeo gravado com o endereçamento e de novo é endereçado à Bienal. Na Bienal abre-se o pacote e aparece a fisionomia da atriz remetente como destinatário, na tela de outro vídeo, no escritório de recepção da Bienal. Ano: 1981 Duração: 10 minutos Formato: VHS, colorido Câmera: Roberto Sandoval VERDE DESEJO / FOME DA CIDADE (desaparecido) Um garoto vê um homem comendo um coco em um restaurante de praia. Deseja o coco. Sobe num coqueiro e tira-o. Abre-o com as mãos. O coco está vazio. Decepção do garoto e a fome da cidade. Ano: 1983 Duração: 3 minutos Formato: VHS Câmera: desconhecido TELEFONE SEM FIO (em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade) O grupo de artistas (autores do vídeo) brinca de telefone sem fio, fazendo a mensagem passar de ouvido a ouvido e observando a deformação que ela sofre. Ano: 1976 Duração: 13 minutos Formato: porta-pack ½ reel Câmera: David Geiger
A característica principal do meu trabalho é não ter se fixado em nenhuma característica preferencialmente. A sua dinâmica é mais ramificada do que linear. Deixo que ele persiga um processo, o meu processo de descoberta e visão. Suas raízes de unidade evidentes estão dentro de mim e resultam da interação da minha realidade com a realidade social e histórica do meu tempo e do meu momento. É mais interrogativo que descritivo. Atendendo a uma intencionalidade com o máximo de rigor que me é possível, a uma coerência de leitura que possa conseguir, nem por isso escapa a um contorno maior, acrescido pela interação da obra com aqueles que a fruem. A participação do público é um elemento esperado e levado em conta. De acordo com o projeto, ora faz ênfase maior sobre a arqueologia do tempo presente, ora sobre uma linguagem denunciante e crítica. Há variação de meios. Há seleção de meios. Há somatória e combinação de meios. De preferência meios não convencionais. Crítica à maneira tradicional de arte, desde que não se coloque como objeto de consumo, no sentido de não estar dirigido à venda, embora isso possa ocorrer. Aberto a vários níveis de leitura e de público sem preocupação seletiva ou de diluição, torna-se muitas vezes um fato escandalizante dentro das “ortodoxias artistas”, uma vez que não exclui nem impõe nenhum tipo de pessoa. Isso acrescenta então novo aspecto crítico com relação ao sistema de arte e a desmistifica. Em alguns projetos o método de abordagem da obra pode estar enriquecido com uma perspectiva ou ótica utilizável em assuntos científicos. É a destruição de um outro tabu. A racionalidade que exige, porém, não pretende colocar a lógica num pedestal, mas também ela passa a ser objeto de crítica e denúncia. A verificação do humano sem proselitismo ou dogmatização pode bem ser a preocupação mais contínua e presente. Relações com a instituição da arte Até certo tempo achei difícil comprar a “barra” de aparecer como cientista profissional dentro de outra área profissional “oposta”. Tinha a impressão de que os profissionais de arte não aceitavam essa condição. Aos poucos, perdi a impressão. O relacionamento procedeu-se como em qualquer outro grupo, isto é, com dificuldades naturais inerentes às pessoas, pressões externas do meio, etc. Quanto aos críticos, sempre tive dificuldade de aproximação. Sempre me mantive à distância e com horror a usar as oportunidades para “furar” os muros. Perdi o horror, mas me mantive ainda distante. Acho a crítica necessária e creio que sempre existirá. O desempenho profissional com que é feita é que distingue a necessária da desnecessária. Não concordo com que esses profissionais tenham poder maior que lhes seja dado pelo sistema quando utilizam instrumentos de opinião pública. Mas na realidade não há como neutralizar os efeitos multiplicadores senão desmistificando a ação por um efeito de conscientização maior do próprio trabalho e uma independentização do mercado como meio de sobrevivência econômica. O público me parece muito mais importante porque nele também está incluída a categoria dos artistas. Não faço restrições ao público. Acho importante qualquer público. Creio que cada um frui a seu modo. O grau de fruição é aberto. Se o nível da obra é esgotado no gole de uma pessoa, azar da obra. Foi pouca para a sede e para o espaço. Experiência do grupo
Letícia Parente por Letícia Parente
Foi das melhores experiências humanas e profissionais que eu já tive. Com todas as crises de nascimento, crescimento, etc. Quando me afastei “geograficamente” do grupo, considerei uma perda irreparável.
Seqüência de trabalhos das séries Mulheres e Casa. A proposta está dentro do pensamento anterior. Documentação da mostra de arte experimental Medidas
Indispensável para: a) b) c) d) e)
Lucidez; Estímulo; Sentido de realidade; Informação; Ação no meio em momentos de atuação política.
A existência de um grupo de arte é uma luta contínua contra um condicionamento do artista individualista. As ações podem ser algumas vezes infantis ou superficiais. Mas sem passar pela experiência muita coisa válida não será descoberta.
A referida mostra aconteceu em 1976 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Utilizou-se de um conjunto de mídias: fotografia, xerox, audiovisual, jornal. A proposta tinha como premissa um questionamento e uma resposta (testemunhal) que chegava às raias da explicitação escrita em relatórios coletivos e individuais assinados. A quantificação violentava e feria, porquanto se efetuava sobre sensações, percepções e limites imponderáveis.
Do ponto de vista pessoal, a afeição e sentimentos negativos fazem parte da mistura. Tudo muito importante. Ameaçam e cimentam. Fazem crescer ou fragmentam. Quanto à perenidade, é difícil mantê-la. Os grupos também terão de se abrir, fechar, refazer, ampliar, cessar, aparentemente morrer, nascer de novo e tal.
A manifestação externa tomada como assunto deflagrador do processo era a competição em vários dos seus aspectos.
Transferi para cá a necessidade de vivenciar em grupo problemas da vida profissional deste setor de atividade. Não creio que possa mais dispensá-lo.
“Em termos de trabalho eu cheguei a articular A Proposta da Casa (série de xerox), cujo assunto é a casa, em Fortaleza e no MAC-USP, mas dependia do trânsito dentro do espaço. Comecei o trabalho em xerox em 74, e esporadicamente ainda faço, mas não é o cerne da questão. É uma casa com cortes, na sua planta baixa, que tem três situações geográficas, três estados: Bahia, Ceará e Rio, as minhas residências.
Proposta de seriação de trabalhos A fim de conter momentos significativos de minha produção, bem como uma seleção que possibilite abranger todas as mídias utilizadas, fiz a seguinte escolha que, abaixo descrita, será acompanhada, no momento, de fotografias e, posteriormente, na ocasião propícia, das próprias obras. Trabalhos em audiovisual (Seqüência de slides com som). Dimensões – Seria uma espécie de topologia de dimensão interna projetada no espaço, no tempo e, sobretudo, também na velocidade que é fruto da relação dos dois outros – “comunicase nos outros apenas uma orientação para o segredo sem jamais poder dizer objetivamente o segredo” (Bachelard) (Rio de Janeiro, 1975). Trabalhos em fotografia Projeto 158 – A interferência nas dimensões da face, alongandoa ou encurtando-a, indica, por meio de uma ideologia aparentemente flagrada em caricatura, a relação de dominação do exterior sobre a interioridade das pessoas (Rio de Janeiro,1976) Trabalhos em vídeo Marca Registrada – De forma cruenta e remanescente de antigo costume popular presente em brincadeiras infantis, a autora costura no próprio pé, com linha preta, bordando as palavras MADE IN BRASIL (preto-e-branco – 11 minutos). Preparação I – Relação da pessoa da artista, através de seu corpo, com o contexto político-social e suas conseqüências. Presente, sobretudo, a opressão e a censura à lucidez e à fala. Ambos os trabalhos são desenvolvidos na linha do testemunhal; ponto de encontro dos caminhos por onde passa a arqueologia do tempo presente (Rio de Janeiro,1975). Trabalhos em xerox
Letícia Parente Livro: Arte e Novos Meios (FAAP)
Outra coisa importante deste trabalho é que sempre há um elemento de tecnologia do nosso tempo, que acrescento e procuro contrastar com a linguagem mais poética: então, essa planta baixa, que é de uma casa típica de BNH, com os sinais de letraset, por exemplo, é seta num lugar-comum de indicação. Fui colocando idas e vindas, voltas e revoltas na entrada, e no lugar da conversa tem essas mãos todas aqui (em letraset), diálogos desejados e coisas assim. No quarto há sete camas em letraset, sete alternativas. Numa mistura de senso, inocência e sinais estereotipados – aqui rituais de codificação. Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco diferente, que era um trabalho em cima da mulher. O corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços. Todo o corpo em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do corpo todo feito da própria função do corpo – não no sentido só da função física, mas de uma função social-humana. 0 outro era uma seqüência de perucas, de fisionomias de mulheres. A contradição, as perucas, as mulheres carregando perucas, os manequins carregando as perucas e as mulheres imitando as fisionomias dos manequins – aquele efeito estilizado do manequim. Havia uma seqüência de óculos: uns que davam felicidade, outros que estavam ainda com olhos e narizes, boca sentimental, todo aquele jargão do consumo querendo decifrar o psiquismo feminino, usando ao mesmo tempo e veiculando a propaganda. A fase do corpo que testemunha situações culturais, políticas e sociais culminou em um trabalho de vídeo que de todos foi o que conseguiu a sigla mais forte – chama-se Marca Registrada. Nesse trabalho eu costuro na sola do pé com uma agulha e uma linha preta as palavras Made in Brasil na pele. É uma agonia! Dá muita aflição, porque a agulha entra, fere o meu pé – só podia ser o meu próprio. Há um costume popular na Bahia em que se borda muito com uma linha na palma da mão e na sola do pé. Esse é o trabalho de vídeo de 75, que sintetiza essa fase toda. Em geral, a gente tem de ter essa caminhada, um processo de gestação de certo modo, eu não sei dizer o que é – se é emocional,
se é intuitivo –, e depois tem a parte de reflexão. Realmente o pensamento faz a consistência, elabora as amarras das coisas. E a vida é momento, é paixão, é emoção, é tudo misturado. O pensamento está ali fecundando essas coisas todas e estruturando, porque às vezes me parece que é assim. Estava preocupada com que as coisas tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas respostas.”
b) Audiovisual – O Livro dos Recordes; c) Livretos e álbuns xerografados ou de fotografias: - Classificação de figuras humanas de telas célebres; - Propostas de medições “para fazer em casa”; - Coletânea de material de livros científicos antigos e revistas e jornais atuais sobre testes, classificações, tipologia, caracteres diferenciais, valorativos, etc. 4. Disposição no espaço
PROPOSTA DE ARTE EXPERIMENTAL Vide layout anexo. Letícia T. S. Parente 5. Época preferida 1. Fundamentação teórica: Abril ou maio de 1976. A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que se contacta com ela, não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, “mas ao modo pelo qual ele é transmitido” (processo). Trata-se de uma tentativa de denunciar, sob a forma de mensurações competitivas criadas num espaço e todos os gestos dela decorrentes, a atmosfera de concorrência e tensão sob a qual vivemos no tempo histórico, em que os sistemas procuram enquadrar as pessoas para classificá-las quantitativamente ou distingui-las segundo categorias fixas de comportamento.
6. Previsão de gastos Cr$ material para construir os dispositivos de medidas audiovisual 1.000,00 fotos, xerox e álbuns 800,00 fichas individuais e coletivas 800,00 catálogos (1.000 exemplares) 2.000,00 5.600,00
O importante e desejável, mais do que as atividades que as pessoas desempenham durante a presença e participação no âmbito da mostra, é a verificação e a vivência de respostas ao nível de um público bastante variado em nível cultural e de faixa etária. 2. Proposta O que se pretende é a criação de um ambiente onde as pessoas sejam convidadas ou induzidas a: a) Ações físicas – Execução de medidas (sobre si próprias) em torno de capacidades e atributos físicos, recursos e habilidades individuais, etc.; b) Ações cognitivas – Conhecimento de parâmetros pessoais (importantes ou não); registro de dados observados em fichas individuais e coletivas permitindo a comparação dos mesmos; c) Atitudes emocionais – Envolvimento com clima competitivo (ou resistência, ou indiferença) em relação a si mesmas e aos outros; busca de identificação com modelos estáticos preestabelecidos por uma tipologia e caracterologia (pseudocientíficas e obsoletas) ainda vigentes em certos níveis de informação da mass media; d) Ação reflexiva – Constatação por analogia do clima competitivo do mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas de informação, e a denúncia das mesmas como dado referencial crítico. 3. Formalização da proposta a) Montagem de dispositivos semi-empíricos (criados pela proponente) de mensuração de dados pessoais: Por exemplo: 1. Dados biométricos 1.1. Para classificação tipológica: Forma do rosto; Proporções do corpo, etc. 1.2. Para avaliação de capacidades físicas Força manual; Resistência ao frio e ao calor; Capacidade respiratória; Reação à luz; Tipo sanguíneo; Tipo de pele e cabelo, etc.
1.000,00
apoio institucional
realização
Concepção editorial Organização Coordenação editorial Projeto gráfico Textos Revisão Versão para o inglês Fotografias
Título Formato Tipografia Miolo Capa Número de páginas Tiragem
Paço das Artes André Parente Marcelo Amorim Patrícia Dominguez André Parente, Cláudio da Costa, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle, Kátia Maciel, Marisa Florido Cesar e Marília Mazzucchelli ?????????????? ???????????????? Domingues, Letícia Parente
Preparações e Tarefas. Letícia Parente 20 x 20 cm Trauma e Arial Off set 180 g/m2 CartãoTriplex 350 g/m2 120 1.000
Este livro foi produzido em dezembro de 2007.