A instân ins tânçia çia d a letr le tra a no inco in cons nscie ciente nte ou a raz.â raz.âo o d e sde sd e de F reud re ud
Criangas de cueiros , Oh, cidades do mar, vejo em vos vossos cidadáos, homens e mulheres, com bracos e pernas estreitamente atados em sólidos lagos por pessoas que nao entenderlo vossa linguagem, e só entre vos podereis desabafar, por queixas lacrimejantes, lamentos e suspiros, vossas dores e vossos pesares pela liberdade perdida. Pois aqueles que vos agrilhoam nao compreenderao vossa lingua, tal como nao os compreendereis. (Cadernos de Leonardo da Vinc Vi nci1 i1)
Se o tema do volume 3 de La L a P s y c h a n a lys ly s e 2 encomendoumé esta co n trib u ito , devo tal deferencia deferencia ao que nela nela se irá desco descobri brir, r, po p o r intr in troo d u z ila i la s itu it u a n d o a e n tre tr e o e s c rito ri to e a fala fa la:: e ia fica fi cará rá a meio caminho. O escrito distinguese, com efeito, por urna prevalencia do texto, no sentido que veremos ser assumido aqui por esse fator do discurso — o que permite a concisáo que, a meu ver, nao deve deixar ao leitor leitor ou tra saída senao a entrada nele, que prefiro prefiro difícil. Este, pois, nao será um escrito, como o entendo. A propriedade que confiro de alimentar minhas linóes de seminàrio com urna contribu i 5 ào sem pre inédita impediume, até hoje, de fornecer délas um texto assim, a nao ser o de uma, uma qualquer, aliás, em sua sucessáo, e ao qual só sp justifica nos reportamos aqui pela escala da tópica que lhes e pròpria. Pois a urgencia de que agora extraio como pretexto para deixar de lado esse propósito só faz encobrir a dificuldade de que, ao sustentálo na,escala em que devo aqui apresentar meu ensino,
1.
Codice Co dice Atlantico 145, r.a., trad. trad. Louis Lo uisee Servicen, Paris, Paris, Gallimard, vol.II, p.400. 2. Psy P sy ch an alys al ys e e t sc ien ie n ce s d e l ’hom me. me . 496 49 6
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eie nào se distancie demais da fala, cujas medidas diferentes sao essenciais para o efeito de formagao que procuro. Eis por que adotei essa linha de um debate que me foi solicitado num dado momento pelo grupo de filosofia da Feder a l o do doss Estudante Estudantess de Letras Letras,3 ,3 por nele nele encontrar encontrar a aco m od ad o pro p ropp icia ic ia a m in h a ex expp o sig si g à o : sua su a g en e rali ra lidd a d e n e c e s s à ria ri a m o stra st ra combinar com o caráter extraordinàrio do público formado por eles, mas seu objeto único depara com a conivència da qualific a l o que eles eles tèm em comum, a lit literár erária, ia, à qua quall meu títu título lo pre p rest staa h o m e n ag agee m . Como esquecer, de fato, que Freud sustentou com constancia e até seu firn a exigencia primordial dessa qualificagào para a formagao dos analistas, e que apontou na universitas litterarum de sempre o lugar ideal para sua instituigáo?4 Assim, o recurso ao movimento desse discurso restaurado ao vivo marcou, de quebra, através daqueles a quem eu o destino, aqueles a quem nào se dirige. Ou seja: nenhum daqueles que, seja para que finalidade for na psicanálise, toleram que sua disciplina se valha de urna falsa identidade. Vicio de hábito, e tamanho em seu efeito efeito mental que a propria identidade verd adeira po de parecer um àlibi àlibi entre outros, do qual se espera ao menos que a reprodugáo refinada nào escape aos mais sutis. Assim é que observamos com curiosidade a reviravolta que se esboga, no que concerne à simbolizado e à linguagem, no In ter te r n a tio ti o n a l J o u r n a l o f Psy P sycc h o a n a lysis, ly sis, com grande reforjo de dedos úmidos a revirarem os folios de Sapir e¡ Jespersen. Esses exercícios ainda sao novatos, mas é sobretudo seu tom que está po p o r for f ora. a. U rna rn a c e r ta seri se riee d ad adee faz fa z sorr so rrir ir q u a n d o e n tra tr a no n o ve verí rídd ico ic o . E como nào haveria até mesmo um psicanalista de hoje de sentir sentir que chegou a isso, isso, a tocar tocar na fala, fala, quando qu ando sua experiencia recebe déla seu instrumento, seu enquadre, seu material e até o ruido de fundo de suas incertezas?
3. A exposigào exposigà o teve tev e lugar em 9 de maio de 1957 no anfit anfiteatro eatro Descartes, na Sorbonne, e a discussào prosseguiu diante das tajas. 4. D ie F rage ra ge d e r L aien ai en an alys al ys e, G W , XIV, p.281-3.
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eie nào se distancie demais da fala, cujas medidas diferentes sao essenciais para o efeito de formagao que procuro. Eis por que adotei essa linha de um debate que me foi solicitado num dado momento pelo grupo de filosofia da Feder a l o do doss Estudante Estudantess de Letras Letras,3 ,3 por nele nele encontrar encontrar a aco m od ad o pro p ropp icia ic ia a m in h a ex expp o sig si g à o : sua su a g en e rali ra lidd a d e n e c e s s à ria ri a m o stra st ra combinar com o caráter extraordinàrio do público formado por eles, mas seu objeto único depara com a conivència da qualific a l o que eles eles tèm em comum, a lit literár erária, ia, à qua quall meu títu título lo pre p rest staa h o m e n ag agee m . Como esquecer, de fato, que Freud sustentou com constancia e até seu firn a exigencia primordial dessa qualificagào para a formagao dos analistas, e que apontou na universitas litterarum de sempre o lugar ideal para sua instituigáo?4 Assim, o recurso ao movimento desse discurso restaurado ao vivo marcou, de quebra, através daqueles a quem eu o destino, aqueles a quem nào se dirige. Ou seja: nenhum daqueles que, seja para que finalidade for na psicanálise, toleram que sua disciplina se valha de urna falsa identidade. Vicio de hábito, e tamanho em seu efeito efeito mental que a propria identidade verd adeira po de parecer um àlibi àlibi entre outros, do qual se espera ao menos que a reprodugáo refinada nào escape aos mais sutis. Assim é que observamos com curiosidade a reviravolta que se esboga, no que concerne à simbolizado e à linguagem, no In ter te r n a tio ti o n a l J o u r n a l o f Psy P sycc h o a n a lysis, ly sis, com grande reforjo de dedos úmidos a revirarem os folios de Sapir e¡ Jespersen. Esses exercícios ainda sao novatos, mas é sobretudo seu tom que está po p o r for f ora. a. U rna rn a c e r ta seri se riee d ad adee faz fa z sorr so rrir ir q u a n d o e n tra tr a no n o ve verí rídd ico ic o . E como nào haveria até mesmo um psicanalista de hoje de sentir sentir que chegou a isso, isso, a tocar tocar na fala, fala, quando qu ando sua experiencia recebe déla seu instrumento, seu enquadre, seu material e até o ruido de fundo de suas incertezas?
3. A exposigào exposigà o teve tev e lugar em 9 de maio de 1957 no anfit anfiteatro eatro Descartes, na Sorbonne, e a discussào prosseguiu diante das tajas. 4. D ie F rage ra ge d e r L aien ai en an alys al ys e, G W , XIV, p.281-3.
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I. O sentido da letra No N o sso ss o títu tí tulo lo d e ix a c lar la r o q ue ue,, p a r a a lém lé m d e s s a fala fa la,, é tod to d a a estrutura da linguagem que a experiéncia psicanalítica descobre no inconsciente. Pondo desde logo o espirito espirito prev enido em alert alerta, a, po p o rqu rq u a n to é p o s s íve ív e l q u e e le ten te n h a d e re a v a lia li a r a idé id é ia seg se g un undo do a qual o inconsciente é apenas a sede dos instintos. Mas essa letfa, como se há de tomála aqui? Muito simples mente, ao pé da letra. Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem. Essa definiçâo sim ples supóe que a linguagem nao se confunda confunda com as diversas funçôes somáticas e psíquicas que a desservem no sujeito falante. Pela razáo primeira de que a linguagem, com sua estrutura, pre p re e x iste is te à e n tra tr a d a d e c a d a suje su jeit itoo n u m m o m e n to d e seu se u de dese senn volvimento mental. No N o tes te see q u e as a f a s ias ia s , cau ca u sad sa d a s p o r leso le soes es p u ra m e n te a n a tótó micas nos aparelhos cerebrais que conferem a essas funçôes seu centro mental, revelam, no conjunto, distribuir seus déficits segundo as duas vertentes do efeito significante do que aqui chamamos de letra, na criaçâo da significaçâo.5 Indicaçâo que se esclarecerá pelo que virá a seguir. Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu seu nom e próprio. próprio. _ A referencia à experiéncia da comunidade e dà substáncia desse discurso nao resolve nada. Pois essa experiéncia adquire sua dimensao essencial na tradiçâo instaurada por ésse discurso. Essa tradiçâo, m uito antes qu e nela se inscrev inscrev a o drám a histó históric rico, o,
5. Esse Es se aspecto, muito m uito suges su gestivo tivo por derr derrub ubar ar a perspectiva perspe ctiva da “ fungáo psico ps ico lógica” que tudo obscurece nessa matéria, aparece, luminoso, na análise pura mente lingüística das duas grandes formas de afasia que um dos expoentes da lingüística moderna, Román Jakobson, pode efetuar. Cf., na mais acessível de F un da m en táis tá is o f Lang La ngua uage ge (com Morris Halle), Mouton and Co., suas obras, Fun ‘S-Gravenhage, os capítulos I a IV da Segunda Pajte, bem como a coletánea de tradugoes que devemos aos cuidados de Nicolás Ruwet, publicada pela editora E s s a is lin guis gu istiq tiq ues. ue s. Minuit sob o título Es
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funda as estruturas elementares da cultura. E essas mesmas estruturas revelam urna ordena§áo das trocas que, embora inconsciente, é inconcebível fora das permuta§oes autorizadas pela linguagem. Donde resulta que a dualidade etnográfica da natureza e da cultura iestá em vias de ser substituida por urna concepgao ternária — natureza, so ciedade e cultura — da cond¡ 5 ao hum ana, na qual é bem possível que o último termo se reduziu á linguagem, ou seja, áquilo que distingue essencíalmente a sociedade humana das sociedades naturais. Mas nisso nao tomamos partido nem partida, deixando entregues a suas trevas as relagoes origináis do significante com o trabalho. E nos contentando , para fazer urna piad a com a funsáo geral da práxis na génese da historia, em destacar que a própria sociedade que teria restabelecido em seu direito político, com o privilegiamento dos produtores, a hierarquia causal das relagSes de produgao ñas superestruturas ideológicas, nem por isso gerou um esperanto cujas relagóes com o real socialista tenham posto fora de debate, pela raiz, qualquer possibilidade de formalismo literario.6 De nossa parte, vamos fiarnos apenas ñas premissas que viram seu valor confirmado pelo fato de a linguagem ter efeti vamente conquistado, na experiencia, seu status de objeto científico. Pois é por esse fato que a lingüística7 se apresenta numa posigáopiloto nesse campo em tomo do qual uma reclassificagáo das ciencias assinala, como é de costume, uma revolugáo do conhecimento: e so mente as necessidades da comunicagáo fazem com que o inscrevamo s no frontispicio deste volume sob o título de “ ciencias do hom em” , malgrado a confusáo que ai pode encontrar meios de se acobertar.
6. Havem os de estar lembrados de que a discussá o concernente á necessidade do advento de uma nova linguagem na socied ade comunista realmente teve lugar, e de que Stalin, para alivio dos que confiavam em suá filosofía , decidiu-a nestes termos: a linguagem nao é uma superestrutura. 7. A lingüística, frisamos, ou seja, o estudo das línguas existentes em sua estrutura e ñas leis que nelá se revelam — o que deixa de fora a teoría dos cód igos abstratos, impropriamente elevada a categoría da teoría da com unica9ao, ou a chamada teoria, constituida pela física, da informagáo, ou qualquer semiología mais ou menos hipotéticamente generalizada.
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Para marcar o surgimento da disciplina lingüística, diremos que ela se sustenta, como acontece com toda ciencia no sentido moderno, no m om ento constitutivo de um algoritmo que a funda. Esse algoritmo é o seguinte: S s que se le: significante sobre significado, correspondendo o “ so bre” á barra que separa as duas etapas. O signo assim redigido merece ser atribuido a Ferdinand de Saussure, embora nao se reduza estritamente a essa forma em nenhum dos numerosos esquemas em que aparece na impressáo das diversas aulas dos tres cursos, dos anos de 19067, 19089 e 191011, que a devogáo de um grupo de seus discípulos reuniu sob o título de Curso de lingüística geral: publicagao primordial para transmitir um ensino digno desse nome, isto e, que só pode ser detido em seu próprio movimento. Eis por que é legítimo lhe rendermos homenagem pela for malizagáo 5, em que se caracteriza, na dive rsidad e das escolas, a etapa moderna da lingüística. A temática dessa ciencia, por conseguinte, está efetivamente pre sa á posigáo prim ordia l do significante e do significado, como ordens distintas e inicialmente separadas por urna barreira resistente á significagáo. Eis o que tornará possível um estudo exato das Iigagoes próprias d o . signific ante e da amplitude da fungáo destas na génese do significado. Pois essa distingáo primordial vai muito além do debate relativo á arbitrariedade do signo, tal como foi elaborado desde a reflexáo da Antigüidade, ou até do impasse, experimentado desde a mesma época, que se opoe á correspondencia biunívoca entre a palavra e a coisá, nem que seja no ato da nomeagáo. E isso, con trariando as aparéncias que lhe sao conferidas pelo papel imputado ao dedo indicador que aponta um objeto, na aprendi zagem da lingua materna pelo süjeito infans, ou pelo emprego dos chamados m étodos escolares concretos no estudo das línguas estrangeiras.
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Por essa via, as coisas nao podem fazer mais que dem onstrar8 que nenhuma significado se sustenta a nao ser pela remissao a urna outra significagáo: o que toca, em última instancia, na observa§ao de que nao há língua existente á qual se coloque a questáo de sua insuficiencia para abranger o campo do significado, piosto que atender a todas as necessidades é um efeito de sua existencia como língua. Se formos discernir na linguagem a constituigáo do objeto, só poderemos constatar que ela se encontra apenas no nivel do conceito, bem d iferente de qualquer nominativo, e que a coisa, evidentem ente ao se reduzir ao nome, cindese no duplo raio divergente: o da causa em que ela encontrou abrigo em nossa língua e o do nada ao qual abandonou sua veste latina ( rem ). Essas considerares, por mais existentes que sejam para o filósofo, desviamnos do lugar de onde a linguagem nos interroga sobre sua natureza. E fracassaremos em sustentar sua questáo enquanto nao nos tiverm os livrado da ilusáo de que o significante atende á fungao de representar o significado, ou, melh or dizendo: de que o significante tem que responder por sua existencia a título de urna significado qualquer. Pois, mesmo ao se reduzir a esta última fórmula, a heresia é a mesma. É ela que conduz o positivismo lógico á busca do sentido do sentido, do meaning of meaning, tal como se denomina, na língua em que se agitam seus devotos, o objetivo. Donde se constata que o texto mais carregado de sentido des fazse, nessa análise, em bagatelas insignificantes, só resistindo a ela os algoritmos matemáticos, os quais, como seria de se esperar, sao sem sentido algum.9
8. Cf. o De m agistro, de sto. Agostinho, do qual comentei o capítulo “De significatione locutionis” em meu seminàrio de 23 de junho de 1954. 9. Assim é que o sr. Richards, autor, justamente, de urna obra sobre os processos adequados a esse objetivo, no-los mostra numa outra aplicafáo. Ele escolhe para tanto urna página de Meng-tseu, ou Mencio, para os jesuítas: M en ci us on the min d é como se chama isso, considerado o objeto dessa parte. As garantías dadas à pureza da experiencia nada ficam a dever áo luxo de suas abordagens. E o douto especialista no Canone tradicional em que se insere o texto encontra-se justamente no sitio de Pequim para onde foi transportada a secadora em demonstrado, sem preocupagao para com os custos.
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O fato é que o algoritmo y , se dele só pudéssemos retirar a nogao do paralelismo de seus termos superior e inferior, cada qual considerado apenas em sua globalidade, permanec ería como o signo enigmático de um mistério total. Evidentemente, nao é o caso. Para a preender sua fungào, comegarei por produzir a ilustragao incorreta com a qual classicamente se introduz seu uso. Eila: ÁRVORE
onde se vé que preferencia eia revela pela direçâo previamente apontada como errónea. Substituía, para meus ouvintes, por urna outra, que só podia ser tida com o mais co rreta por exagerar na dimensao incongruente à qual o psicanalista ainda nâo renunciou por completo, no sentimento justificado de que seu conformismo só tem valor a partir dela. Eis essa outra: HOMENS
MULHERES
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!=□
Porém nao menos transportados seremos nós, e por um custo menor, a ver operar-se a transformagao de um bronze que produz um som de sino ao menor rogar do pensamento numa espèrie de pano de chào para limpar o quadro negro do mais consternador psicologismo inglés. Nào sem muito depressa identificá-lo, infelizmente, com a propria meninge do autor, único residuo a subsistir de seu objeto e dele mesmo, uma vez consumado o esgotamento do sentido de um e do bom senso do outro.
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onde se ve que, sem estender muito o alcance do significante implicado na experiencia, ou seja, apenas duplicando a espécie nominal, pela simples justaposigáo de dois termos cujo sentido complementar parece ter que ser consolidado por ela, produzse a surpresa de uma inesp erada precipitagáo do sentido, na imagem de duas portas gémeas que simbolizam, com o reservado ofere cido ao homem ocidental para satisfazer suas necessidades na turais fora de casa, o imperativo que ele parece compartilhar com a grande m aioria das comu nidades primitivas, e que subm ete sua vida pública as leis da segregagáo urinária. Isso nao é apenas para desconcertar com um golpe baixo o debate nominalista, mas para mostrar como o significante de fato entra no significado, ou seja, de uma forma que, embora nao seja imaterial, coloca a questáo de seu lugar na realidade. Pois, ao ter que se aproximar das plaquinhas esmaltadas que lhe servem de suporte, o olhar pestanejante de um miope talvez tivesse razáo em questionar se é realmente ali que convém ver o significante, cujo significado, nesse caso, receberia da dupla e solene procissáo da nave superior as derradeiras honras. Mas nenhum exemplo construido poderia igualar o relevo que se encontra na vivencia da verdade. Portanto, nao há razáo para que eu fique d escontente po r ter forjado este, já que ele despertou na pessoa mais digna de minha confianga a seguinte lembranga de sua infancia, a qual, assim afortunadamente posta a meu alcance, encaixase perfeitamente aqui. Um trem chega á estagáo. Numa cabine, um menino e uma menina, irmáo e irmá, estáo sentados um em frente ao outro, do lado em que a vidraga dando para o exterior descortina a visáo das construgoes da plataforma ao longo da qual o trem parou: “ Olha!, diz o irmao, chegam os a Mulheres!” ; “ Imbécil!, res ponde a irm a, nao está vendo que nós estamos em Hom ens?” Além, com efeito, de os trilhos dessa historia materializarem a barra do algoritmo saussuriano de uma forma que é a conta certa para sugerir que sua resistencia pode ser outra que nao dialética, seria preciso — essa é exatamente a imagem que convém — nao ter olhos na cara para se atrapalhar quanto ao respectivo lugar do significante e do significado, e para nao observar de qual centro irradiante o primeiro vem refletir sua luz ñas trevas das significagoes inacabadas.
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Pois ele trará a Dissensáo, apenas animal e fadada ao esque cimento das brumas naturais, para a potencia desmedida, impla cável para com as familias e impertinente para com os deuses, da guerra ideológica. A partir desse momento, Homens e Mu Iheres serào para essas crianzas duas pátrias para as quais a alma de cada urna puxará sua brasa divergente, e a respeito das quais lhes será tanto mais impossível fazer um pacto quanto, sendo elas em verdade a mesma, nenhum deles poderia ceder da primazia de urna sem atentar contra a gloria da outra. Paremos por aqui.Isso parece a historia da Franca. Mais humana de se evocar, como seria de se esperar, que a da Inglaterra, fadada a ser virada de cabega para baixo da Ponta Grossa para a Ponta Fina do ovo do Deáo Swift. Resta conceber que degrau e que corredor o ^ do significante, aqui visível nos plurais com que centraliza seus atendimentos paraalém da vidraga da ja nela , tem que transpor para levar suas conexòes ás tubulagoes pelas quais, como o ar quente e o ar frió, a indignagào e o desprezo vem sóprar no paraaquém. Urna coisa é certa: é que esse acesso, pelo menos, nao deve com portar nenhuma significagao, se o algoritmo com sua barra, lhe convém. Pois o algoritm o, na medida em que ele mesmo é apenas pura fungáo do significante, só pode revelar uma éstrutura de significante nessa transferencia. Ora, a éstrutura do significante está, como se diz comumente da linguagem, em ele ser articulado. Isso quer dizer que suas unidades, de onde quer que se parta para desenhar suas invasoes recíprocas e seus englobamentos crescentes, estáo submetidas á dupla condigáo de se reduzirem a elementos diferenciáis últimos e de os comporem segundo as leis de uma ordem fechada. j Ésses elementos, descoberta decisiva da lingüistica, sao os fo nem as, onde nào se deve buscar nenhuma constáncia fonética na variabilidade modulatória em que se aplica esse termo, e sim o sistema sincrònico dos pareámentos diferenciáis necessários ao discernimenjto dos vócábulos numa dada lingua. Por onde se ve que um elemento essen cial na pròpria fala estava predestinado a fluir nos caracteres movéis que, qual Didots ou Garamond s10
10 .
Unidades tipométricas do sistema tipográfico francés e earopeu em geral. (N.E.)
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a se imprimirem em caixa baíxa, presentificam validamente aquilo a que chamamos letra, ou seja, a estrutura essencialmente localizada do significante. Com a segunda propriedade do significante, de se compor segundo as leis de urna ordem fechada, afirmase a necessidade do substrato topológico do qual a expressáo “cadeia significante” , que costumo utilizar, fornece urna aproximagáo: anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis. Sao essas as condigóes estruturais que determinam — como gramática — a ordem das invasoes constitutivas do significante, até a unidade ¡mediatam ente superior na frase, e — com o léxico — a ordem dos englo bam entos constitutivos do sig nificante, até a locugao verbal. E fácil, dentro dos limites em que se detém essas duas iniciativas de apreensáo do uso de urna língua, perceber que somente as correlagoes do significante com o significante for necem o padrao de qualquer busca de significagao, como é assinalado pela nogao de emprego de um taxema ou de um semantema, que remete a contextos do grau ¡mediatamente superior as unidades implicadas. Mas nao é porque as iniciativas da gramática e do léxico se esgotam num certo limite que se deve pensar que a significagáo reina irrestritamente paraálém. Isso seria um erró. Pois o significante, por sua natureza, sempre se antecipa ao sentido, desdobrando como que adiante dele sua dimensáo. E o que se ve, no nivel da frase, quando ela é interrompida antes do termo significativo: Eu nunca..., A verdade é que..., Talvez, também... Nem por isso ela deixa de fazer sentido, e um sentido ainda mais opressivo na medida em que se basta aó se fazer esperar." Mas nao é diferente o fenómeno que, pelo simples recuo de um mas que a faz aparecer, bela como a Sulamita e táo virtuosa quanto a donzela, adorna e prepara a negra para as nupcias e a miserável para o leiláo.12
11. A alucinagáo verbal, ao se revestir dessa forma, as vezes nos abre lima porta de comunicagao, até aqui faltante por ser despercebida, com a estrutura freudiana da psicose (Seminàrio do ano de 1955-56). 12. Cf. o Cántico dos cánticos de Salomào. (N.E.)
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Donde se pode dizer que é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significalo de que ele é capaz nesse mesmo momento. Impòese, portanto, a nogào de um deslizamento incessante do significado sob o significante — que F. de Saussure ilustra com urna imagem qug\se assemelha às duas sinuosidades das Aguas superiores é inferiores ñas miniaturas dos manuscritos do Génesis. Duplo fluxo onde pa rece tènu e o marco dos finos riscos de ch uva que ali desenham os pontilhados verticais que se supoe limitarem segmentos de correspondéncia. Co ntra isso vai toda a experiéncia que me fez falar, num dado mom ento de meu seminàrio sob re as psicoses, dos “ pontos de basta ” exigidos por esse esquema, para explicar a dominancia da letra na transformagào dramática que o diálogo pode operar no sujeito.13 Mas se, com efeito, é necessària a linearidade que F. de Saussure considera constitutiva da cadeia do discurso, em con formidade com sua emissào por uma só voz e na horizontal em que eia se inscreve em nossa escrita, eia nao é suficiente. Só se impòe à cadeia do discurso na diregáo em que é orientada no tempo, sendo até tomada como fator significante em todas as línguas em que “ [Pedro surra Pa ulo]” reverte seu tempo ao inverter seus termos. Mas basta escutar a poesia, o que sem dúvida aconteceu com F. de Saussure,14 para que nela se faga ouvir urna polifonia e
13. Nos o fizemos, em 6 de junho de 1956, com o exemplo da primeira cena de A th alie, ao que reconhecem os nâo ter sido estranha uma' alusao feita de passagem no New Statesm an and Nation , por um crítico high bro w [intelectualóide], à “alta putaria” das heroínas de Racine, assim nos incitando a renunciar à referencia aos dramas selvagens de Shakespeare, que se tornou compulsiva nos méios analíticos em que desempenha o papel de verniz do filistinismo. [A expressâo aqui traduzida por “ verniz” , sa vonnette à vilain (sabonete de plebeu), é o termo depreciativo com que se designavam, na Idade Média, os títulos comprados pelos plebeus para terem acesso à nobreza, que nao lhes “lavavam” as origens. (N.E.)] 14. A publicaçâo, feita por Jean Starobinski no Mercu re de Fran ce de fevereiro de 1964, das notas deixadas por Ferdinand de Saussure sobre os anagramas e seu uso hipogramático, desde o s versos saturninos até os textos de Cicero, dá-nos a certeza que nos faltava nessa ocasiáo ( 1966).
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para que todo discurso revele alinharse ñas diversas pautas de urna partitura. Nao há cadeia significante, com efeito, que nao sustente, como que apenso na pontuaçâo de cada urna de suas unidades, tudo o que se articula de contextos atestados na vertical, por assim dizer, deisse ponto. Assim é que, retomando nossa palavra arbre, nâo mais em seu isolamento nominal, mas ao término de urna dessas pontua çôes, veremos que nâo é apenas pelo fato de a palavra barre ser seu anagrama que ela transpôe a barra do algoritmo saussuriano. É que, decomposta no duplo espectro de suas vogais e suas consoantes, ela evoca, juntamente com o .carvalho e o plátano, as significaçôes de que é carregada em nossa flora, as de força e majestade. Drenando todos os contextos simbólicos em que é tomada no hebraico da Biblia, ela ergue sobre um outeiro sem fronde a sombra da cruz. Depois, reduzse ao Y maiúsculo do signo da dicotomía que, sem a imagem que historiza o armorial, nada deveria à árvore, por mais genealógica que ela se diga. O, árvore circulatoria, árvore vital do cerebelo, árvore de Saturno ou de Diana, cristais precipitados numa árvore condutOra do raio, será talvez tua figura que traça nosso destino no casco chamuscado da tartaruga, ou teu clarao que faz surgir de urna inominável noite a lenta mutaçâo do ser no hen panta da lin guagem: Nâo! diz a Árvore, diz ela: Nâo! no~cintilar Em sua ramagem soberba,
versos que consideramos tao legítimos de ouvir nos harmónicos da árvore quanto seu reverso: Que a tempestade trata universalmente Como fa z a uma er va.15
É que essa estrofe mo derna ordenase de acordo com a m esma lei do paralelismo do significante cujo concerto rege o gesto eslavo primitivo e a mais refinada poesía chinesa.
15. “Non! dit l'Arbre, il dit: Non! dans l'étincellement / De sa tête superbe / Que la tempête traite universellement / Comme elle fa it une h erbe.” (N.E.)
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Como se ve na modalidade comum do ente em que sao escolhidas a árvore e a erva, para que ai advenham os sinais, signos de contradigáo do dizer “ N ao!” e do “ tratar com o” , e para que, através do contraste categórico do particularismo do sobarba com o universalmente de sua redugáo, completese, na condensagáo da cabega com a tempestade, o indiscernível cintilar do instante eterno. Mas todo esse significante, dirao, só pode operar por estar pre se nte no sujeito. É justam ente a isso que respondo ao supor que ele passou ao patamar do significado. Pois o importante nao é que o sujeito o reconhega mais ou menos. (Estivessem HQMENS e MULHERES escritos numa língua desconhecida do menino e da menina, sua briga só faria ser ainda mais exclusivamente uma briga de palavras, mas nem por isso menos ap ta a se carregar de significagao.) 0 que essa estrutura da cadeia significante revela é a possi bilid ade que eu tenho, justa m ente na med ida em que sua língua me é comum com outros sujeitos, isto é, em que essa língua existe, de me servir déla para expressar algo completamente diferente do que ela diz. Fungáo mais digna de ser enfatizada na fala que a de disfargar o pensamento (quase sempre indefi nível) do sujeito: a saber, a de indicar o lugar desse sujeito na busca da verdade. Bastame, com efeito, plantar m inha árvore na locugao “ trepar na árvo re” , ou projetar sobre ela a luz m aliciosa que um contexto de descrigáo confere á palavra “ arvorar” , para nao me deixar aprisionar num comunicado qualquer dos fatos, por mais oficial que ele seja, e para, caso eu saiba a verdade, exprimila apesar de todas as censuras ñas entrelinhas, pelo simples significante que podem constituir mmhas acrobacias através dos galbos da árvore, provocantes a ponto de che garem ao burlesco ou sensíveis apenas ao olhar experiente, conforme eu queira ser entendido pela multidao ou por alguns. A fungao propriamente significante que assim se desenha na linguagem tem um nome. Esse rióme, nós o aprendemos em nossa gramática infantil, na última página, onde a sombra de Quintiliano, relegada a um fantasma de capítulo para enunciar algumas consideragóes fináis sobre o estilo, parecia precipitar sua voz sob a ameaga de colchetes.
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É entre as figuras de estilo, ou tropos, de onde nos vem o verbo trouver,16 que se encontra esse nome, com efeito. Esse nome é metonimia. Da qual reteremos apenas o exemplo que déla foi dado: trinta velas. Pois a inquietagao que ele provocava em nós — pelo fato de a palavra “barco” nele ocultada parecer multiplicar sua presenta , por ter podid o, no próprio repisamente desse exemplo, assum ir seu sentido figurado — menos velava essas ilustres velas do qué a definigáo que lhes competía ilustrar. Com efeito, a parte tom ada pelo todo, dizíamos á nós mésmos, se a coisa é para ser tomada no real, nao nos deixa uma grande idéia do que convém entender sobre a importancia da frota que, nó entanto, essas trinta velas supostamente aquilatam: um navio ter apenas uma vela é, na verdade, o caso menos comum. Onde se ve que a ligagáo do navio com a vela nao está em outro lugar senáo no significante, e que é no de pala vra em pala vra dessa conexáo q ue se apóia a m etonim ia.17
16. Trouver, verbo que lem igualmente as acepgctes de “ encontrar” , “ achar” e “trovar”. (N.E.) 17. ÁqUi rendemos homenagem ao que devemos, nessa formulagäo, ao sr. Roman Jakobson, ou seja, a seus trabalhos, onde um psicánalista encontra a todo instante com que estruturar sua experiencia, e que tornam supérfluas as “comunicagoes pessoais”, sobre as quais podemos testemunhar tanto quanto qualquer um. Reconhecemos, com efeito, nessa forma oblíqua de fidelidade, ó estilo daquele par imortal, Rosencrantz e Guildenstern, cujo desacoplamento é impossível, nem que seja pela imperfeigäo de seu destino, pois ele perdura pelo mesmo processo que a faca de Jeannot, e pela razäo mesma que fez Goethe enaltecer Shakespeare por haver aprésentado o personageín no dúo formado por eles: ém si, eles sao a Gesellschaft inteira, numa palavra, a Sociedade ( Wilhelm M eisters Lehrjahre, Éd. Trunz, Christian Wegner Verlag, Hamburgo, V, p.299(a)), quer dizer, a IPA. Agradega-sc, nésse contexto, ao autor das “Observagöes sobre o papel da fala na técnica psicanalítica” ([“Some Remarks on the Role of Speech in Psychoanalytic Technique”], U P , nov.-dez. 1956, XXXVII, 6, p.467), por ter tomado o cuidado de frisar que elas se “basearam num” trabalho de 1952. Assim se explica, com efeito, que nada tenha sido assimilado dos trabalhos publicados desde entäo, os quais o autor näo ignora, já que me cita como seu editor (sie. Sei o que quer dizer editor). (a) Conviria destilar todo o trecho de Goethe: Die se s le is e Auf treten , dieses Schmiegen und Biegen, dies Jasagen, Streicheln und Schmeicheln, diese Behen digkeit, die s Schw änzein, die se A llheit und Leerheit, die se rechtlich e Schurke rei, die se Unfähigkeit, w ie kann sie du rc h einen Menschen aus ge dru ckt wer de n? Es
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Designaremos com isso a primeira vertente do campo efetivo que o significante constituí, para que nele tenha lugar o sentido. Falemos da outra. É a metáfora. E vamos ilustrála prontamente: o dicionário Quillet pareceume adequado para fornecer urna amostragem que nào fosse suspeita de ser selecionada, e nao precisei p rocurar o recheio18 muito além do conhecido vèrso de Victor Hugo: Seufeixe nào era avaro nem odiento...,
sob cuja feÍ 9 áo apresentei a metáfora quando chegou o m omento em meu seminàrio sobre as psicoses. Digamos que a poesia m oderna e a escola surrealista fizeram nos dar um grande passo nisso, ao demonstrar que qualquer conjun 9 áo de dois significantes seria equivalente para constituir uma metáfora, caso nào se exigisse a condigáo da máxima disparidade entre as imagens significadas para a produgao da centelha poética, ou, em outras palavras, para que tenha lugar a criagáo metafórica. Certo, essa postura radical fundamentase numa experiencia dita da escrita automática, que nao teria sido tentada sem o aval que seus pioneiros tiravam da descoberta freudiana. Mas eia continua marcada pela confusáo, porque sua doutrina é falsa. A centelha criadora da metáfora nào brota da presentificagao de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atua lizados. Eia brota entre dois significantes do s quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexào (metonimica) com o resto da cadeia. Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora, e, caso seja voce poeta, produzirá, para fazer com eia uni jogo, um jato continuo ou um tecido resplandecente de m etáforas. Nào obtendo
so llten ih rer wen ig sten s ein Dutzen d sein, wenn man sie haben könnte; denn sie blo ss in Ges el lsch af t etwas , si e sind die Gesellsch af t...
18. Com échantillon ... sélectionné Lacan alude (metaforicamente) a mo rceau ch oisi (trecho seleto), mas também ao fragmenta ou bocado que serve para se apreciar a qualidade de uma mercadoria, como a “ prova” de um alimento, por exemplo, donde o “ recheio” usado na traduçào de fa rce, que também significa “farsa”, indicando a maneira como Lacan percebe este verso de Victor Hugo. (N.E.)
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com isso, além do efeito de ebriedade do diálogo que Jean Tardieu compòs com esse título, senào a demonstragào que ai se opera da superfluidade radicai de qualquer significalo para urna representagào perfeitamente convincente da comédia burguesa. No vqrso de Hugo, é patente que nào jorra a mínim a luz da declaragào de que um feixe nào é avaro nem odiento, pela simples razào de que nào se trata de eie ter mais mérito ou demérito por esses atributos, posto que ambos, juntamente com eie, sào propriedades de Booz, que os exerce ao dispor do feixe sem lhe participar seus sentimentos. Se o feixe remete a Booz, como efetivamente faz, no entanto, é por substituílo na cadeia significante, no exato lugar que o esperava, por terse elevado em um grau mediante a remogào do entulho da avareza e do òdio. Mas, a partir dai, é de Booz que o feixe faz esse lugar vazio, rechagado que eie fica desde entào para as trevas do exterior em que o abrigam a avareza e o òdio, no vazio da negagào deles. Contudo, urna vez que seu feixe assim lhe usurpou o lugar, Booz nào pode retomálo, e o tènue fio do pequeño seu que o prende a ele constitui um obstáculo a mais, ligando esse retorno a um título de propriedade que o reteria no seio da avareza e do òdio. Sua afirmada generosidade vèse reduzida a menos do que nada pela munificencia do feixe, que, por ser extraído da natureza, desconhece nossa reserva e nossos rechagos e, até em sua acumulagào, continua pròdigo em relagào à nossa medida. Mas se, nessa profusàó, o doador desaparece junto com o dom, é para ressurgir naquilo que cerca a figura em que eie se aniquilou. Pois hà a irradiagào da fecundidade — que anuncia a surpresa celebrada pelo poema, ou seja, a promessa que o anciào receberá, num contexto sagrado, de seu advento à pater nidade. Portanto, é entre o significante do nom e pròprio de um hom em e aquele que o abole metaforicamente que se produz a centelha poética, ainda mais eficaz aqui, para realizar a significagào da paternidade, por reproduzir o evento mítico em que Freud re construiu a trajetòria, no inconsciente de todo homem, do mistério paterno. Nào é outra a estrutura da m etàfora moderna. Dai o dardeja mento:
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O amor é um seixo rindo ao sol
recría o amor numa dimensao que pude dizer que me parece sustentável, contrariando seu deslizamento sempre iminente para a miragem de um altruismo narcísico. Vemos que a metáfora se coloca no ponto exato em que o sentido se produz no náosenso, isto é, na passagem sobre a qual Freud descobriu que, transposta as avessas, dá lugar á palavra que é, em francés, “ a palav ra” 19 por exceléncia, a palavra que nao tem outro patrocinio senao o significante da espirituosida de,20 e onde se vislum bra que é seu próprio destino qu e o homem desafia através da derrisáo do significante. Mas, voltando atrás um pouco, que encontra o homem na metonimia, se isso tiver que se r mais do que o poder de contornar os obstáculos da censura social? Porventura essa forma que dá á verdade seu campo em sua opressao nao manifesta urna certa servidáo inerente á sua apresentagáo? Havemos de 1er com proveito o livro em que Léo Strauss, da térra clássica no oferecimento de asilo aos que escolheram a liberdade, medita sobre as relagoes entre a arte de escrever e a perseguigao.21 Ali abordando de perto o tipo de conaturalidade que vincula essa arte a tal condigáo, ele deixa entrever o algo que aqui impoe sua forma no efeito da verdade sobre o desejó. Mas, acaso já nao sentimos há algum tempo que, por ter seguido os caminhos da letra para chegar á verdade freudiana, ardemos em seu fogo, que consomé por toda parte? E fato que a letra mata, dizem, enquanto o espirito vivifica.22 Nao discordamos disso, já tendo tidó que saudar aqüi, em algum
19. Le mot (ou le bon mot), que designa em francés o dito espirituoso, o chiste. (N.E.) v 20. É exatamente esse o equivalente do termo alemáo Witz com que Freud marcou a visada de sua terceira obra fundamental sobre o inconsciente. A dificüldade muito maior de , encontrar ess e equivalente em inglés é instrutiva: o wit, sobrecarregado pela discussáo que vai de Davenant e Hobbes até Pope e Ad dison, cede suas virtudes essenciais ao humour, que é outra coisa. Resta o pu n, estreito demais, no entanto. [W it se traduziria por graga, finura, perspicàcia; hum our e pu n, respectivamente, por humor e trocadilho. (N.E.)] 21. Leo Strauss, Per se cu tion and thè A rt o f Writing, Glencoe, III., Free Press. [A “terra (asilar) clássica” sao, é claro, os Estados Unidos. (N.E.)] 22. Da Segunda epístola de Paulo aos Corintios, 3, 6. (N.E.)
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ponto, urna n obre vitim a do erro de procurar na letra, mas também indagamos como, sem a letra, o espirito viveria. No entanto, as pretensòes do espirito continuariam irredutíveis, se a letra nào houvesse comprovado produzir todos os seus efeitos de verdade no homem, sem que o espirito tenha que se intrometer minimamente glisso. Essa revelagào, foi a Freud que eia se fez, e eie deu a sua descoberta o nome de inconsciente. II. A le tra no inconsciente A obra completa de Freud nos apresenta urna página de referencias filológicas a cada très páginas, urna página de inferencias lógicas a cada duas páginas e, por toda parte, urna apreensào diatètica da experiència, vindo a analitica linguageira reforçar ainda mais suas proporçôes à medida que o inconsciente vai sendo mais diretamente implicado. Assim é que, na Ciéncia dos sonhos, tratase apenas, em todas as páginas, daquilo a que chamamos a letra do discurso, em sua textura, seus empregos e sua imanência na matèria em causa. Pois esse texto abre com sua obra a via règia para o inconsciente. E disso somos alertados por Freud, cuja confidéncia surpresa, ao lançar esse livro para nós nos primeiros dias deste século,23 só faz confirmar o que ele proclamou até o fim: que nesse arriscartudo de sua mensagem está a totalidade de sua deseo berta. A primeira cláusula, articulada logo no capítulo preliminar, posto que a exposiçâo nâo pode suportar sua demora, é que o sonho é um rébus. E Freud trata de estipular que é preciso entendélo, como afirmei a principio, ao pé da letra. O que se prende à instâneia, no sonho, dessa mesm a estrutu ra literante (em outras palavras, fonem àtica) em que se articula e se anali sa o significante no discurso. Como as figuras nâo naturais do barco sobre o telhado ou do homem de cabeça de vírgula, expressa
23. Cf. a correspondéncia, nómeadamente as cartas de números 107 e 119, dentre as escolhidas por seus editores. [As cartas sao as de 19 de março e 7 de novembre de 1899. (N.E.)]
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mente evocadas por Freud, as imagens do sonho só devem ser retidaspor seu valor de significante, isto é, pelo que permitem soletrar do “ prov èrbio” proposto pelo rèbus do sonho. Essa estrutura de linguagem que possibilità a operagào da leitura està no principio da significancia do sonho, da Traumdeutung. Freud exemplifica de todas as maneiras que esse valor de significante da imagem nada tem a ver com sua significagào, e recorre aos hieróglifos do Egito, onde seria ridículo deduzir da freqüéncia do abutre, que é um aleph, ou do pintinho, que é um vau para assinalar urna forma do verbo ser e também os plurais, que o texto concerne minimamente a esses espécimens ornitológicos. Freud encontra meios de se orientar, nessa escrita, por certos empregos do significante que se apagaram n a nossa, como o emprego do determinativo, acrescentando o expoente de urna figura categòrica à figuragào literal de um termo verbal, mas para melhor nos remete r ao fato de que estamos num a escrita em que até o pretenso “ ideog ram a” é uma letra. Mas nào é necessària a confusáo atual a respeito desse termo para que, no espirito do psic analista sem nenhuma form agao lingüística, prevaleva o preconce ito de um simbolismo que deriva da analogia natural, ou entáo da imagem redutora do instinto. Tanto assim que, fora da escola francesa, que evita isso, é na linha do “ ver na b orra de café nào é 1er hieróglifos” que m e é preciso reconvocar a seus principios uma técnica cujas vias, fora da visada do inconsciente, nada pode justificar. Convém dizer que só se aceita isso com dificuldade, e que o vicio mental denunciado ácima goza de tamanho prestigio, que podemos esperar que o psic analista de hoje admita que decodifica, em vez de se decidir a fazer com Freud as paradas neces sárias (de a volta na estátua de Champollion, diz o guia) para compreender que ele decifra: o que se distingue de decodifiCar pelo fato de que um crip to gra m a só tem todas as suas dim ensoes quando é o de uma lingua perdida. Faze r essas paradas, no entanto, é apenas continuar na Traum deutung. A Entstellung, traduzida por transposigào, onde Freud mostra a precondigao geral da fungao do sonho, é o que designamos anteriormente, com Saussure, como o deslizamento do significado sob o significante, sempre em agáo (inconsciente, notese) no discurso.
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Mas as duas vertentes da incidencia do significante no significado encontramse nela. A Verdichtung, condensagao, é a estrutura de superposigáo dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse n^ecanismo com a poesía, a ponto de envolver a fungáo prop ri ámen te tradic ional desta. A Verschiebung ou deslocamento é, mais próxima do termo alemao, o transporte da significagáo que a metonimia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura. O que d istingue esses d ois mecanismos, que. desem penham no trabalho do sonho, Traumarbeit, um papel privilegiado, de sua fungáo homologa no discurso? — Nada, a nao ser urna condigao imposta ao material significante, chamada Rücksicht a u f Darstellbarkeit, qu e conv ém traduzir por “ considerag áo para com os meios da encenagáo” (sendo por demais aproximativa, aqui, a tradugao por “ papel da figurabilidade” ). Mas essa con digáo constituí um a limitagáo que se exerce no interior do sistema da escrita, longe de dissolvélo numa semiología figurativa em que ele se alie aos fenómenos da expressáo natural. É provável que com isso pudéssemos esclarecer os problemas de alguns modos de pictografía que nao estamos autorizados, pelo simples fato de eles terem sido ab andonad os como im perfeitos na escrita, a considerar como estádios evolutivos. Digamos que o sonho se parece com o jogo de saláo em que se deve, estando na berlinda, levar os espectadores a adivinharem um enunciado conhecido, ou uma variagáo dele, únicamente por meio de uma encenagáo muda. O fato de o sonho dispor da fala nao modifica nada, visto que, para o inconsciente, ela é apenas um elemento de encenagáo como os demais. É justam ente quando o jogo e também o sonho esbarrarem na falta de material taxémico para representar as articulagóes lógicas da causalidade, da contradigao, da hipótese etc., que eles daráo provas de ser, um e outro, uma questao de escrita, e nao de pantomima. Os processos sutis que o sonho revela empregar para, mesmo assim, representar essas articulagóes lógicas, de maneira muito menos artificial do que aquela pela qual o jogo de saláo costu ma contornálas, sao objeto , em Freud, de um estudo especial, onde mais uma vez se confirma que o trabalho do sonho segue as leis do significante.
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O restante da elaboragáo é designado por Freud como secun dária, que adquire seu valor a partir daquilo de que se trata: fantasías ou sonhos diurnos, Tagtraum, para empregar o termo de que Freud prefere servirse para situálos em sua fungáo de realizagáo do desejo ( Wunscherfüllung). Seu trago distintivo, dado que essas fantasias podem permanecer inconscientes, é ele fato sua significagào. Pois bem, destas, Freud nos diz que seu lugar no sonho é, ou serem retomadas a título de elementos significantes para o enunciado do pensamento inconsciente (Traumgedanke), ou servirem para a elaboragáo secundária aqui em questào, isto é, para uma fungáo, diz ele, que nào há por que distinguir do pensam ento vígil (yon unserem wachen Denken nicht zu unterscheiden). E impossível dar uma idéia melhor dos efeitos dessa fungáo do que comparála a placas de argamassa que, aplicadas lá e cá com um molde, tendessem a reintroduzir na aparència de um quadro figurativo os grosseiros clichés do rèbus ou dos hieróglifos. Pego desculpas po r parecer estar eu mesmo soletrando o texto de Freud; nao o fago apenas para mostrar o que se ganha ao simplesmente nào recortálo, mas para poder situar em balizas primárias, fundamentáis e nunca revogadas, o que aconteceu na psicanálise. Desde a origem, desconhéceuse o papel constitutivo do significante no status que Freud fixou de imediato para o inconsciente, e segundo as mais precisas modalidades formáis. E isso por duas razoes, das quais a menos percebida, naturalmente, é que essa formalizagào nào bastava, por si só, para que se reconhecesse a instancia do significante, já que, quando da publicagào da Traumdeutung, antecipavase em muito às formalizagòes da lingüística, para as quais sem duvida poderia mos demonstrar que, por seu simples peso de verdade, eia abriu caminho. A segunda razào, pensando bem, é apenas o avesso da pri meira, pois, §e os psicanalistas ficaram exclusivamente fascinados com as significagòes destacadas no inconsciente, foi por elas retirarem seu atrativo mais secreto da dialética que lhes parecia imánente. . Em meu seminàrio, mostrei que é na necessidade de corrigir os efeitos dessa parcialidade, em eterna aceleragào, que se compreendem as aparentes guiñadas, ou, melhor dizendo, as
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bruscas viradas do leme que Freud, através de sua preocupado prim ordial de garantir a sobrevivencia de sua descoberta com as primeiras reformulagoes que eia im punha aos conhecimentos, julgou ter que dar em sua doutrina ao longo do percurso. É que, na situagáo em que ele se encontrava, repito, de nao dispor de nada que, correspondendo a seu objeto, estivesse no mesmo nivel de m atuíidade científica, pelo menos ele nao deixou de manter esse objeto à altura de sua dignidade ontologica. O resto foi obra dos deuses e correu de tal maneira que, hoje em dia, a análise busca suas balizas nessas formas imaginárias que acabo de mostrar como desenliadas à parte sobre o texto que mutilarci — e que é a elas que se ajusta a mira do analista, misturandoas, na interpretagào do sonho, com a libertagao visionària do aviàrio hieroglífico e, de um modo mais geral, buscando o controle do esgotamento da análise numa espécie de scanning 24 das formas em que elas aparecem, com a idéia de que elas sao o testemunho do esgotamento das regressòes e da remodelagem da “relagao de objeto” em que o sujeito deve supóstamente se tipificar.25 À técnica que reivindica essas posigoes pode ser fértil em efeitos diversos, muito difíceis de criticar por trás da ègide terapèutica. Mas urna crítica interna pode provir da flagrante discordancia entre o modo operatorio por meio do qual essa técnica se autoriza — qual seja, a regra analítica, cujos instrumentos da qual, a partir da “ associagáo livre” , se justificam todos na concepgao de inconscie nte de seu inventor — e o completo desco nhecim ento que nela impe ra sobre essa concepgao do inconsciente. C oisa de que seus adeptos mais ferrenhos créem livrarse com uma pirueta: a regra analítica deve ser observada tào mais religiosamente quanto mais é apenas fruto de um feliz acaso. Em outras palavras, Freud nunca soube muito bem o que estava fazendo.
24. Sabemos que é por esse processo que uma pesquisa se assegura de seu resultado, através da cxploragao mecánica de toda a exténsáo do campo de seu objeto. 25. A tipologia, por se referir apenas ao desenvolvimento do organismo, desconhece a estrutura em que o sujeito está preso, respectivamente na fantasía, na pulsao e na sublimagao — estrutura cuja teoría eu elaboro (1966).
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O retorno ao texto de Freud mostra, ao contràrio, a coerencia absoluta de sua técnica com sua descoberta, ao mesmo tempo que permite colocar seus procedimentos no devido lugar. Eis por que toda retificag ao da psicanálise impoe que se volte à verdade dessa descoberta, impossível de obscurecer em seu momento original. Pois, na análise do sonho, Freud nao pretende darnos outra coisa senáo as leis do inconsciente em sua extensao mais geral. Uma das razoes pelas quais o sonho foi mais propicio a isso está em que, justamente, como nos diz Freud, ele nao é menos revelador dessas leis no sujeito normal do que no neurótico. Mas, em ambos os casos, a eficiencia do inconsciente nao se detém no despertar. A experiencia psicanalitica nao é outra coisa senao estabelecer que o inconsciente nào deixa fora de seu campo nenhuma de nossas agóes. Sua presenta na ordem psicológica, ou, em outras palavras, ñas fungoes de relagào do individuo, merece um esclarecimento, contudo: eia de modo algum é coextensiva a essa ordem, pois sabemos que, se a motivagao inconsciente se manifesta tanto em efeitos psíquicos conscientes quanto em efeitos psíquicos inconscientes, inversamente, é um lembrete elementar assinalar que um grande número de efeitos psíquicos que o term o inconsciente designa legítimam ente, a título de excluir o caráter da consciencia, nem por isso deixa de ter alguma relagào, por sua natureza, com o inconsciente no sentido freudiano. É somente por um abuso terminológico, portante, que se confunde o psíquico com o inconsciente nesse sentido, e que assim se qualifica de psíquico um efeito do inconsciente no somático, por exemplo. Tratase, pois, de definir a tópica desse inconsciente. Digo que é justamente eia que se define pelo algoritmo v
S s
O que ele nos permitiu desenvolver sobre a incidencia do significante no significado ajustase a sua transformagào em: / ® 7
Foi da copresenga, no significado, nao só dos elementos da cadeia significante horizontal, mas de suas contigüidades verti
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cais, que mostramos os efeitos, distribuidos, de acordo com duas estruturas fundamentáis, na metonimia e na metáfora. Podemos simbolizálas por: / (S...S’) S h S ( - ) í
ou seja¡, a estrutura metonímica, indicando que é a conexáo do significante com o significante que permite a elisáo mediante a qual o significante instala a falta do ser na relagao de objeto, servindose do valor de envió da significagáo para investila com o desejo v isando essa falta que ele sustenta. O sinal — , colocado entre ( ), manifesta aqui a manutengao da barra —, que marca no prim eiro algoritmo a irredutibilidade em que se constituí, ñas relagoes do significante com o significado, a resistencia da significagáo.26 Eis agora 'S A
/
v J a estrutura metafórica, que indica que é na substituido do significante pelo significante que se produz um efeito de significado que é de poesia ou criagáo, ou, em outras palavras, do advento da significagáo em questáo.27 O sinal +, colocado entre ( ), manifesta aqui a transposigáo da barra — , bem com o o valor constitutivo dessa transposigáo para a emergencia da significa gao. Essa transposigáo exprime a condigáo da passagem do significante para o significado, cujo momento asslnalei, mais acima, confundindoo provisoriamente com o lugar do sujeito. É na fungáo do sujeito, assim introduzida, que devemos deternos agora, pois ela está no ponto crucial de nosso problem a Pensó, log o existo (cogito ergo sum ) nao é somente a fórmula em que se constituí, com o apogeu histórico de uma reflexáo sobre as condigóes da ciencia, a ligagáo da sua afirmagáo existencial do sujeito com sua transparencia transcendental.
26. O sinal = designa a congruencia. 27. Como o S’ designa no contexto o termo produtor do efeito significante (ou significan cia), v é-s e que esse termo é latente na metonimia e patente na metáfora.
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Talvez eu seja apenas objeto e mecanismo (e portanto, nada além de fenom eno), mas, certamen te, na m edida em que o penso, eu sou — de modo absoluto. Sem dúvida, os filósofos introdu ziram ai importantes corregoes, nominalmente a de que, naquilo que pensa ( cogitans ), nu nca fago senào constituirme como objeto (cogitatimi). O fato é que, através dessa extrema depuragao do sujeito transcendental, minha ligagáo existencial com seu projeto parece irrefutável, pelo menos sob a forma de sua atualidade, e que “cogito ergo sum” ubi cogito, ibi sum
supera a objegao. E claro que isso me limita a só estar ai em meu ser na medida em que penso que sou (estou) em meu pensamento; em que medida eu realmente o penso, isso só diz respeito a mim, e, se eu o digo, nao interessa a ninguém.28 Eludilo, no entanto, a pretexto de suas aparencias [ semblants ] filosóficas, é simplesmente dar mostras de inibigào. Pois a nogáo de sujeito é indispensável ao manejo de uma ciencia como a estratégia, no sentido moderno, cujos cálculos excluem qualquer “subjetivismo”. Equ ivale também a proibirse o acesso ao que se pode cham ar de universo de Fréud, tal como se fala do universo de Copérnico. Com efeito, foi justamente à chamada revolugáo coperniciana que o pròprio Freud comparou sua descoberta, ressaltando que ai estava mais urna vez em pauta o lugar que o homem confere a si mesmo no centro de urn universo. O lugar que ocupo como sujeito do significante, em relagào ao que ocupo como sujeito do significado, será eie concèntrico ou excèntrico? Eis a questào, Nào se trata de s a b e r se falo de mim de contormidade com aquilo que sou, mas se, quando falo de mim, sou idèntico àquele de quem falo. E nào hà aqui nenhum inconveniente em fazer intervir o terrno pensamento. Pois Freud designa por esse termo
28. A situafào é totalmente diversa se, por exemplo, formulando uma pergunta como “Por que filósofos?”, fafo-me mais ingènuo do que é natural, já que formulo nào apenas a pergunta que os filósofos se fazem desde sempre, mas aquela pela qual talvez se interessem mais.
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os elementos que estáo em jogo no inconsciente, isto é, nos mecanismos significantes que acabo de reconhecer nele. Nem por isso deixa de ser verdade que o cogito filosófico está no cerne dessa miragem que torna o homem moderno táo seguro de ser ele mesm o em suas incertezas a seu próprio respeito, até atraivés da desconfianga que há muito aprendeu a praticar quanto as armadilhas do amorpróprio. De igual modo, se, voltandome contra a nostalgia a que ela serve, a arma da metonimia, eu me recuso a buscar qualquer sentido paraalém da tautología, e se, em nom e de “ guerra é guerra” e de “ um vintém é um vintém” , decidome a ser tao somente aquilo que sou, como desvincularme, aqui, da evide ncia de que sou nesse ato mesmo? Tanto quanto, ao me desloca r para o pólo oposto, m etafórico, da busca significante, e ao me devotar a tornarme o que sou, a vir a sélo, nao posso duvidar de que, mesmo ao me perder nisso, é ai que estou. Pois bem, é exatamente nesses pontos em que a evidencia é subvertida pelo em pírico que jaz o fulcro da conversáo freudiana. Esse jogo significante da m etonimia e da metáfora, incluindo sua ponta ativa que fixa m eu desejo num a recusa do significante ou numa falta do ser e ata minha sorte á questáo de meu destino, esse jogo é jogado, até que a partida seja suspensa, em seu inexorável requinte, ali onde nao estou, porque ali nao me posso situar. Isto é, poucas foram as palavras com queTpor um momento, desconcertei meus ouvintes: pensó onde nao sou, logo sou onde nao pensó. Palavras que, para qualquer ouvido atento, deixam claro com que ambigüidade de jogodoanel escapa de nossas garras o anel do sentido no fio verbal. O que cumpre dizer é: eu nao sou lá onde sou jogu ete de meu pensamento; pensó naquilo que sou lá onde nao pensó pensar. Esse mistério de duas faces ligase ao fato de que a verdade só é evocada na dim ensáo de álibi pela qual todo “ realism o” na criagáo retira da metonimia sua virtude, e ao fato de que o sentido só fornece seu acesso nos dois ramos da metáfora, qua ndo se tem a chave úhica de ambos: o S e o í d o algoritmo saussuriano nao estáo no mesmo plano, e o homem se enganaria ao se crer situado no eixo comum a ambos, que náo está em parte alguma.
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Isso, pelo menos até Freud haver feito sua descóberta. Pois, se o que Freud descobriu nao é exatamente isso, nao é nada. Os conteúdos do inconscien te nao nos fornecem, em sua enganosa amb igüidade decep cionan te, ne nhum a realidade mais consistente no sujeito do que o ¡mediato; é da verdade que eles extraem sua virtude, e dentro da dim ensáo do ser: Kern unseres Wesen, termos que sao de Freud. O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se determina o sintoma no sentido analítico. Entre o significante enigmático do trauma sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a centelha que fixa num sintoma — metáfora em que a carne ou a fungáo sao tomadas como elemento significante — a significagáo, inaces sível ao sujeito consciente onde ele pode se resolver. E os enigmas que o desejo prop oe a toda “ filosofía natural” , seu frenesí que imita o abismo do infinito, o conluio íntimo em que ele envolve com o gozo o prazer de saber e o de dominar, nao decorrem de nenhum outro desregramento do instinto senáo sua captagáo nos trilhos — eternam ente estendidos para o desejo de outra coisa — da m etonimia. D aí sua fixagao “ perversa” ñas reticencias da cadeia significante29 em que a Iembranga enco bridora se imobiliza, onde a im agem fascinante do fetiche se erige em estátua. Nao há outro meio de conceber a indestrutibilidade do desejo inconsciente — como nao há necessidade que, ao ver proibida sua saciagáo, estiole, em último caso consumindo o próprio organismo. É numa memoria, comparável ao que é chamado por esse nome em nossas modernas máquinas de pensar (baseadas num a realizagáo eletrónica da com posigáo significante), que jaz essa cadeia que insiste em\se reprodüzir na transferencia, e que é a de um desejo morto. E a verdade do que esse desejo foi em sua historia que o sujeito grita através de seu sintoma, como disse Cristo que teriam feito as pedras, se os filhos de Israel nao Ihes houvessem emprestado sua voz.
29. Poi nt de su spen sio n de la ch aîne sign ifia nt e, que equivale às reticências (...) em uma frase. (N.E)
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É também por isso que somente a psicanálise permite diferenciar, na memòria, a funçâo da rememoraçâo. Enraizada no significante, eia resolve, pela ascendència da historia no homem, as aporias platónicas da reminiscència. Basta 1er os Très ensaios sobre a teoria da sexualidade, revestidos para as massas de tantas glosas pseudobiológicas, para constatar que Freud faz todo acesso ao objeto derivar de urna dialética do retorno. Havendo assim partido do nostos holderliniano, foi à repetiçâo kierkegaardiana que chegou Freud, menos de vinte anos depois, ou seja, seu pensamento, por se haver submetido na origem apenas às conseqüências humildes mas inflexíveis da talking cure, nunca pôde livrarse das vivas servidôes que, a partir do principio règio do Logos, levaramno a re pensar as mortais antinomias empedoclianas. E como conceber de outra maneira, senâo nessa “outra cena” de que eie fala como sendo o lugar do sonho, seu recurso de homem cientista a um D eus ex machina menos derrisório, por se haver revelado ao espectador que a máquina rege o pròprio regente? Figura obscena e feroz do pai primevo, a se redimir, inesgotável, na eterna cegueira de Edipo, como conceber, a nao ser por ele ter tido que curvar a cabeça sob a força de um testemunho que ultrapassava seus preconceitos, que um sábio do século XIX tenhase apegado, mais do que a tudo em sua obra, a esse Totem e tabu diante do qual os etnólogos de hoje se inclinam como ante o crescimento de um autèntico mito? Igualmente, è nas mesm as necessidades que o mito, atendendo a imperiosa proliferaçâo de criaçôes simbólicas particulares, que se encontram os motivos, das compulsôes do neurótico inclusive em seus detalhes, bem como as chamadas teorías sexuais infantis. Assim é que — para situar vocês no ponto exato em que atualmente se desenrola em meu seminàrio meu comentário de Freud — o Pequeño Hans, abandonado aos cinco anos pelas carencias de seu círculo simbólico diante do enigma de seu sexo e sua existência subitamente atualizado para ele, desenvolve, sob a direçâo de Freud e de seu pai, discípulo deste, em torno do cristal significante de sua fobia, sob urna forma mítica, todas as perm utaçôes possíveis de um núm ero lim itado de significantes. Operaçâo em que se demonstra que, mesmo no nivel individual, a soluçâo do impossível é trazida ao homem pelo esgota
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mentó de todas as formas possíveis de impossibilidades encontradas no equacionamento significante da solugáo. Demonstragao cativante, para iluminar o labirinto de urna observagáo da qual só se fez uso até hoje para déla extrair materiais de demoligao. E também para levar a compreender que na coextensividade do desenvolvimento do sintoma e de suare solug áo curativa revelase a natureza da néurose: fóbica, histérica ou obsessiva, a neurose é urna questáo que o ser coloca para ó sujeito “ lá de onde ele eslava antes que o sujeito viesse ao mündo” (essa subordinada é a própria frase de que se serve Freud ao explicar o complexo de Édipo ao Pequeño Hans), Tratase aqui daquele ser que que só aparece no lampejo de um instante no vazio do verbo ser, e eu disse que ele formula sua questáo ao sujeito. Que significa isso? Ele nao a coloca diante do sujeito, pois o sujeito nao pode vir para o lugar onde ele a coloca, más colocaa no lugar do sujeito, ou seja, nesse lugar, ele coloca a questáo com o sujeito, tal como se enuncia um problema com urna cañeta e como o homem de Aristóteles pensava com sua alma. Foi assim30 que Freua rez o eu entrar em sua ooutrina, definindoo pelas resistencias que lhe sáo próprias. Que elas sao de natureza imaginária, no sentido dos engodos coaptativos, qué a etologia nos demonstra has condutas animais da exibigáo e da hita, é o que m e tenho empenhado em fazer apreender, no tocante áquilo a que esses engodos se reduzem no homem, ou seja, a relagáo narcísica introduzida por Freud e tal como a elaborei no estadio do espelho. Ainda que Freud, ao situar nesse eu a síntese das fungóes perceptivas em que se integram as selegóes sensoriomotoras, parega ser pródigo na delegagáo que lhe é tradicionalmente feita de responder pela realidade, essa realidade só faz ser ainda mais incluida na suspensáo do Pois esse eu, inicialmente distinguido pelas inercias imaginarias que concentra contra a mensagem do inconsciente, só funciona revestindo o deslocamento que é o sujeito de urna resistencia essencial ao discurso como tal.
30. Os dois parágrafos que se seguem foram reescritos (dez. 1968), em prol de um simples tornar mais leve seu discurso.
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É por essa razào que o esgo tame nto dos mecanism os de defesa, por mais que um Fenichel nolo torne sensível em seus problemas de tècnica, por ser um clinico (ao passo que toda a sua redugào teorica das n euroses ou das psicose's. a anom alías genéticas do desenvolvimento libidinal è o pròprio lugarcomum), manifes tase, sem que eie disso de conta nem tampouco se de conta, como um avesso do qual os mecanismos do inconsciente seriam o direito. A perífrase, o hipérbato, a elipse, a suspensào, a antecipagào, a retratagào, a denegagao, a digressào e a ironia sào as figuras de estilo (as figurae sententiaru m de Quintiliano), e a catacrese, a litotes, a antonomàsia e a hipotipose sào os tropos cujos termos se impòem à pena como os mais adequados para rotular esses mecanismos. Será possivel ver nisso apenas um simples modo de dizer, quando sao exatamente essas as figuras que estao em ato na retórica do discurso efetivamente proferido pelo anali sado? Ao se obstinarem em qualificar por uma permanencia emocional a natureza da resistencia, para tornála estranha ao discurso, os psicanalistas de hoje apenas mostrarti sucumbir ao impacto de uma das verdades fundamentáis que Freud resgatou através da psicanálise. É que a uma nova verdade nao podemos contentarnos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata. Eia exige que nos mexamos. Nao se pode atingila por um a simples habituagáo. Habituamonps com o real. A verdade, nós a recalcamos. Ora, é especialmente ne cessàrio ao erudito, ao mag o e m esmo ao médico31 que ele seja o único a saber.__ A idéia d e que, no fundo das almas mais simples e, ainda por cima, doentes, haja alguma coisa prestes a eclpdir, vá lá que seja, mas, alguém com je ito de saber tanto quanto eles sobre o que se deve pensar a esse respeito... acudi em nosso socorro, ó categorías do pensamento primitivo, prélógico, arcaico, ou até do pensamento mágico, táo cómodo de imputar aos outros! Pois nao convém que esses plebeus nos deixem sem fólego, a nos proporem enigmas que se revelam maliciosos demais.
31. Lacan usa o termo me ge , proveniente do francés antigo meg ier, cuja origem é o m ed icar e do latim. Do sáculo XIII em diante, essa forma resultou em meg ei s e no francés atual m ég is, que designa o banho em que se mergulham os couros para curti-los. (N.E.)
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Para interpretar o inconsciente como Freud, seria preciso, como ele, ser urna enciclopédia das artes e das musas, além de leitor assíduo das Fliegende Blätter*2. E essa tarefa nao nos seria mais facilitada por nos colocarmos ä mercé de urna trama de alusöes e citagöes, trocadilhos e equívocos. Teremos nos de nos ocupar de quinquilharias remediadas? No entanto, é preciso se decidir. O inconsciente nao é o primordial nem o in stintivo e, de elem entar, conhece apenas os elementos do significante. Os livros que podem os dizer canónicos em m atéria de inconsciente — a Traumdeutung, a Psicopatologia da vida cotidiana e O chisté (Witz) em suas relagöes com o inconsciente — nao passam de um tecido de exemplos cujo desenvolvim ento sé inscreve ñas fórmulas de conexáo e substituido (só que decu plicadas por sua complexid ade particular, e sendo seu contexto äs vezes dado po r Freud fo ra do texto) que sao as que fornecem os do significante em sua fungäo de transferencia. Pois, na Traum deutung, é no sentido de urna fungäo dessa ordem que se introduz o termo Übertragung ou transferencia, que, mais tarde, daria nome ä mola operante do lago intersubjetivo entre o analisando e o analista. Tais diagramas sao constitutivos nao somente na neurose, no tocante a cada um de seus síntomas, como sao os únicos que perm item abarcar a tem ática de seu curso e sua resolugäo. Com o demonstram admiravelmente as grandes observagöes de análises fornecidas por Freud. E, para nos limitarmos a um dado mais reduzido, porém mais manejável para nos oferecer o último lacre com que selar nossa exposigáo, citarei o artigo de 1927 sobre o fetichismo, bem com o o caso que Freud relata nele de um paciente33 para quem a satisfagäo sexual exigia um certo brilho no nariz (Glanz a u f der Nase), e cuja análise mostrou que ele devia isso ao fato de seus_ primeiros anos, anglófonos, haverem deslocado para um olhar para o nariz (atglance at the nose, e nao a shine on the nose,
32. Pasquim, editado de 1844 a 1944 por Braun e Schneider (Munique), ilustrado com caricaturas de renomados humoristas da época sobre as relagöes sociais da burguesía alema. (N.E.) 33. Fetischism us, GW , XIV, p.311 [“Fetichismo”, ESB, XXI].
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na Iíngua “esquecida” da infancia do sujeito) a ardente curio sidade que o prendía ao falo da mae, ou seja, áquela eminente faltaaser da qual Freud revelou o significante privilegiado. Foi esse abismo aberto ao pensamento de que um pensamento se fizesse ouvir no abismo que provocou, desde o inicio, a resistencia á análise. E nao, como se costuma dizer, a promogáo da sexualidade no homem. Esta é o objeto que mais predomina na literatura através dos séculos. E a evolugáo da psicanálise conseguiu, por um cómico passe de mágica, fazer déla urna instancia moral, bergo e lugar de expectativa da oblatividade e da amáncia. A montaría platónica da alma, agora bendita e iluminada, vai direto para o paraíso. O escandalo intolerável, na época em que a sexualidade freudiana ainda nao era santa, foi ela ser táo “ intelectual” . Foi nisso que ela se mostrou a digna com parsa de todos os terroristas cujos complós iriam arruinar a sociedade; No m omento em que os psicanalistas se dedicam a remodelar urna psicanálise bempensante, da qual o poema sociológico do eu autónomo é o coroamento, quero dizer aos que me ouvem em qué eles háo de reconhecer os maus psicanalistas: é no termo de que eles se servem para depreciar qualquer pesquisa técnica e teórica que siga a experiencia freudiana em sua linha auténtica. Tratase da palavra intelectualizagño, execrável para todos os que, vivendo eles mesmos no temor de se exporem á prova de beber o vinho da verdade, cospem no pao dos homens, sem que sua baba, aliás, jamais possa exercer ali senáo a fungao de um fermento. III. A letra, o ser e o o u tro 34 O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro e u l Acaso a descoberta de Freud representa a confirmagáo, no nivel da experiencia psicológica, do maniqueísmo?35
34. Perde-se na traduçâo a peculiaridade das sonoridades francesas: la lettre, l ’être et l ’autre. (N.E.) 35. Um de meus colegas chegou a essa idéia ao se perguntar se o Is so (Es) da doutrina ulterior nào seria o “ eu mau” . (Jà se vê com quem tive de trabalhar, 1966.)
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Nenhuma confusaci é possível, com efeito: a investig ado de Freud näo nos introduziu a casos mais ou menos curiosos de uma segunda personalidade. Mesmo na época heroica que aca bamos de citar, na qual, como os bichos do tempo dos contos de fadas, a sexualidade falava, o clima de sortilègio que tal orientado teria gerado nunca se delineou.36 A finalidade proposta ao homem pela descoberta de Freud foi definida pori ele, no apogeu de seu pensámento, em termos comoventes: W o\E s war, soll Ich werden. Là où fu t qa, il me fa u l advenir. Là onde isso foi, ali devo advir. Essa finalidade è de reintegrado e acordo, ou, diria eu, de reconciliado (Versöhnung). Mas, quando se desconhece a excentricidade radicai de si em si mesmo com que o homem é confrontado, ou, dito de outra maneira, a verdade déscoberta por Freud, falhase quanto à ordem e aos caminhos da mediagào psicanalitica e se faz dela a op er ad o de compromisso a que eia efetivamente chegou, ou seja, aquilo que è mais repudiado pelo espirito de Freud e pela letra de sua obra: pois, visto que a nodo de compromisso é incessantemente evocada por ele como estando na base de todas as misérias que sua aháli se socorre, podem os dizer que o recurso ao com promisso, seja ele explícito ou implícito, desnorteiá todà a agao psicanalitica e a mergulha ñas trevas. Mas tampouco basta entrar em atrito com as tartufices moralizantes de nossa época e éncher a boca com a “personalidade total” , apenas para dizer alguma coisa articulada sobre a possi bilidade de m ediado. / A heteronomia radical, cuja hiäncia no homem foi mostrada pela descoberta de Freud, já nao pode ser encoberta, sem que se considere uma desonestidade intrínseca tudo o que nisso é empenhado. ■ .Qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seiö mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?
36. Note-se, no entanto, o tom com que se podia falar, nessa época, das traquinagens do inconsciente: Der Zu fall u nd d ie Kobo ldstre iche des Un bewu ss ten [O acaso e as diabru ra s do inconscien te ] é um título de Silberer que, seria absolutamente anacrónico no atual ambiente dos gerenciadores da alma.
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Sua pre se nta só pode ser compreendida num grau secundàrio da alteridade, que já o situa, a eie mesmo, numa posigào de mediagao em relagào a meu pròprio desdobramento de mirti comigo mesmo como também eom o semelhante. Se eu disse que o inconsciente é o discurso do Outro com maiuscola, foi para apontar o paraalém em que se ata o reco nhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento. Em outras palavras, esse outro é o Outro invocado até mesmo por minha m entira como garante da verdade em que eia subsiste. Nisso se observa que é com o aparecim ento da linguagem que emerge a dimensào da verdade. Antes desse ponto, na relagào psicològica, perfeitamente iso lável na observag ào de um com portame nto animal, de vemos admitir a existencia de sujeitos, nào por alguma miragem pro jetiva, cujo fa nta sm a o psicòlogo està sempre golpeando com seu papo furado, mas em razào da presenta manifesta da inter subjetividade. Na espreita em que se esconde, na construgào da armadilha, na simulagào de atraso com que um fujào desgarrado da tropa des pista o rapiñador, emerge algo mais do que na eregao fascinante da parada ou do combate. Ali nào há, contudo, nada que transc enda a fungáo do engodo a servigo de uma necessidade, nem que afirme uma ptesenga no paraalémdovéu em que a Natureza in te ira pode ser questionada quanto a seu designio. Para que a pròpria questào venha à luz (e sabemos que Freud chegou a eia no Para-além do principio do prazer), é preciso que haja linguagem. Pois, se posso fazer meu advcrsário cair no engodo com um movimento contrà rio a meu plano de batalha, :esse m ovimento sò exerce seu efeito enganador justamente na medida em que eu o produza na realidade, e para meu adversario. Mas, nas,tproposigòes através das quais inicio com eie uma negociagào de paz, é num lugar terceiro, que nào é nem minha fala nem meu interlocutor* que o que eia lhe propòe se situa. Esse lugar nào é outro senào o da convengào significante, tal como se desrevela no comico desta queixa dolorosa do judeu a seu amigo: “Por que me dizes que vais a Cracovia para que eu ache que vais a Lemberg, quando na verdade estás indo a Cracovia?” É claro que, min ha movimentagào de tropas de há pouco pode ser compreendida nesse registro convencional da estratégia de
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um jogo, onde é em fungao de urna regra que engano meu adversário, mas, nesse caso, meu sucesso é avah ado na conòtagào da traigáo, isto é, na relagáo com o Outro garante da Boa Fé. Aqui, os problemas sao de urna ordem cuja heteronomia é simplesmente desconhecida quando é reduzida a qualquer “sentimento do outro” , nao im porta como ele seja denom inado. Pois, havendo a “ existenc ia do outro” conseguido, no passado, atingir os ouvidos do Midas psicanalista através da divisoria que o separa do conciliábulo fenomenólogo, sabemos que esta noticia passou a correr por entre os ju ncos:37 “ Midas, o rei Midas, é o outro de seu paciente. Foi ele mesmo quem disse.” Mas, afinal, que porta ele arrombou com isso? O outro, que outro? O jovem André Gide, ao desafiar sua senhoria, a quem a máe o confiara, a tratálo como um ser responsável, abrindo ostensivamente ante os olhos déla, com urna chave que só é falsa por ser a mesma que abre todos os cadeados iguais, o cadeado que eia pròpria julga ser o digno significante de suas intengoes educativas, a que outro visa ele? Aquela que irá intervir e a quem o menino dirá, rindo: “De que lhe adianta um cadeado ridículo para me fazer obedecer?” Mas, pelo simples ter ficado quieta e esperado a noite, para, depois da recepgào seca que convém, p assar um sermao no garoto, nao é ape nas de urna outra que eia lhe mostra o rosto indignado, mas de um outro André Gide, que desde entao já nao tem m uita certeza, m esmo ao voltai ao assunto no presente, daquilo que quis fazer: que está mudado até mesmo em sua verdade pela dúvida levantada contra sua boa fé. Talvez esse impèrio da confusáo, que é simplesmente aquele em que se encena toda a opera-buffa humana, merega que nos detenhamos nele, para compreender por quais camihhos procede a análise, nào apenas para restabelecer urna ordem nela, mas para instaurar as condigòes da possibilidade de restabelecèla. Kern unse res Wesen, o amago de nosso ser: nào è tanto a isto que Freud nos ordena visar, como fizeram muitos outros antes
37. Conforme a versao do mito em que, após um dito infeliz de Midas, Apolo faz nascerém-lhe na cabeja orelhás de asno, noticia que, depois revelada em segredo á térra, é sussurrada ao vento e assim divulgada pelos juncos. (N.E.)
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dele através do váo adágio do “ Con hecete a ti m esmo ” ; sao as vias que a ele conduzem que ele nos dá para revisar. Ou melhor, o isto que ele nos propoe atingir nao é o que possa §er objeto de um conhecimento, mas isto — acaso ele nao o diz? — que constituí meu ser, e sobre o qual ele nos ensina que eu ¡testemunho tanto ou mais em m eus caprichos, minhas aberragoes, minhas fobias e meus fetiches quanto em meu perso nagem vagamente policiado. LouCura, já nao sois o objeto do elogio ambiguo em que o sábio instalou a cav erna inexpugnável de seu medo. Se ali, afinal, ele nao está muito mal instalando, é porque o agente supremo que escava desde sempre suas galerías e seu dédalo é a própria razáo, é o mesmo Logos a que ele serve. Do mesmo modo, como irao voces conceber que um erudito táo pouco dotado para os “engajamentos” que o solicitavam em sua época ou em qualquer outra, como foi Erasmo, tenha tido lugar táo eminente na revolugáo de uma Reforma em que o homem estav a táo interessado em cada homem quanto em todos? É que ao tocar, por pouco que seja, na relagáo do homem com o significante, no caso, na conversáo dos procedimentos da exegese, alterase o curso de sua historia, m odifican do as amarras de seu ser. É por isso que o freudismo, por mais incompreendido que tenha sido e por mais confusas que sejam suas conseqüéncias, afigurase, ante qualquer olhar capaz de entrever as mudangas que vivemos em nossa própria vida, como constituindó uma revolugáo inapreensível, mas radical. Acumular os depoimentos é desnecessário:38 tudo o que interessa náo apenas as ciencias humanas, mas ao destino do homem, á política, á metafísica, á literatura, as artes, á publicidade, á propaganda e, através délas, á economía, foi afetado por ela.
38. Destaco o mais recente deles no que surge, muito simplesmente, sob a pena de François Mauriac, para se desculpar, no Fig ar o L itté ra ir e de 25 de maio, por sua recusa a nos “ contar sua vida” . Se ninguém mais pode engajar-se nisso com o mesmo ànimo, é porque, diz-nos ele, “hà meio século, Freud, nao importa o que pensem os de le” , passou por ai. E, depois de se curvar por um instante à idéia difundida de que isso é para nos sujeitar à “historia de nosso corpo”, eie volta rapidamente ao que sua sensibilidade de escritor nâo pôde deixar escapar: a confissào mais profunda da alma de todos os que nos sâo íntimos é o que nosso discurso divulgaría, ao querer se rematar.
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Mas, será isso outra coisa senào os efeitos desarmónicos de uma verdade imensa, na qual Freud tragou uma via pura? Há que dizer que essa via nào é seguida, em toda técnica que se valha apenas da categorizagào psicológica de seu objeto, comò é o caso da psicanálise de hoje, fora de um retorno à descoberta freudiana. Do mesmo modo, a vulgaridade dos conceitos a que sua pràtica recorremos alinhavos de pseudofreudismo que nela já nào passam de orn amento, e ainda o que realm ente convém ch amar de descrédito em que eia prospera, atestam em conjunto sua renegagào fundamental. Freud, co m sua descoberta, fez pen etrar no interior do círculo da ciencia a fronteira entre o objeto e o ser que parecía marcar seu limite. Que isso seja síntoma e o preludio de um novo questionamento da situagào do homem no ente, tal como o supuseram até hoje todos os postulados do conhecimerito, nào se contentem, rogo lhes, em catalogar o fato de eù dizèlo como um caso de heideggerianismo — mesmo que prefixado por um “ neo” , o que nào acrescenta nada ao estilo botanolixo pelo qual se costuma prescin dir de qualquer reflexáo através do recurso ao brechó de seus destrozos mentáis. Quando falo de Heidegger, ou melhor, quando o traduzo, esforgome por deixar à fala que ele profere sua significancia soberana. Se falo da letra e do ser, se distingo o outro e o Outro, é porque Fre ud os indica a m im como os term os em que se referenciam os efeitos de resistencia e transferencia com que tenho tido que me haver, de maneira desigual, nos vinte anos em que venho exercendo esta p ràtica — iffipossível, todos se comprazem em repetir com ele — da psicanálise. E é também porque preciso ajudar outros a nào se perderem nela. E para impedir que fique sem cultivo o campo cuja heranga eles detém e, tiesse intuito, para fazelos ouvir que, se o síntoma é uma metáfora, dizèlo nao é uma metáfora, nem tampouco dizer que o desejo do homem é um a metonimia. Porque o síntoma é uma metáfora, quer se queira ou nào dizélo a si mesmo, e o desejo é uma metonimia, mesmo que o homem zombe disso. E é também para que eu convide voces a se indignarem com o fato de, após tantos séculos de hipocrisia religiosa e fanfárronice
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