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JURANDIR, Dalcídio. Ponte do Galo. São Paulo: Martins; Rio de Janeiro: INL, 1971.176p. 1 [3] I
De volta ao chalé, pelas férias, Alfredo escancara a janela, enxota o morcego, quarenta noites durou a morte do irmão, o chalé no meio d’água, o pai: oh que aspérrimo dezembro! Carregando as quarenta noites na direção do céu-dos-embuás, a arca do Major Secretário navegava; dentro, latindo na escada dos fundos, como se investisse contra o pontual barqueiro, a cachorrinha Minu; junto ao fogão as três galinhas salvas da enchente. Na varanda a tipografia dormindo, sonha o prelinho imprimir convites de casamento das moças de Cachoeira; e o velório: palhoças de baixo, pardieiro dos Saraivas, balcão do Salu, sala da Duduca, casa do seu Cristóvão, a 1
Nota do livro: “ PONTE DO GALO é o sétimo volume da série de romances de Dalcídio Jurandir, variações em torno do mesmo tema, dos mesmos personagens, das mesmas paisagens, seres e terras de Marajó e Belém do Pará. Na primeira parte, Alfredo reaparece em Cachoeira [em férias] e em novas situações de que participam o Major Alberto e a D. Amélia no chalé, o Salu na beira do trapiche, Dadá e Didico, os dois irmãos Saraivas da casa velha de Lucíola e do São Expedito, as visões de Edmundo no búfalo, a Sabá Manjerona, a Isabel escamando peixe, a velha Marciana com os seus fantasmas, tio Sebastião, o caçador de onça, batendo os lavrados com a Dolores na garupa e ao som da viola do Ramiro, o cantador de chula. A segunda parte se passa em Belém: ainda a busca de Luciana, a desabençoada, o mirante da moura do contrabando, o velho Liceu, trabalhos e penas da avó D. Santa Boaventura, a aparição de Esméia, a do jasmineiro, velórios de Ana, manhãs e noites de Zuzu debaixo da jaqueira.” Personagens: Cristóvão, Duduca, Felícia, Irene, Luciana, Lucíola Saraiva (morre), Edmundo Menezes, Salu (taberneiro), Mariinha, Dadá (Odaléa) Saraiva, Bita (filha de seu Cristóvão), etc.
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talvez da D. Graziela, ajeitou na cabeça diante do espelho, cobriu-se das rendas que encontrou na caixa — “olha a mucura enfeitada — cochichou, usando o colar, desdobrou o corte de tafetá sobre ombro e colo e foi assim até a varanda espiar a cristaleira, já puxada pelo braço, para enfiar-se no vestido de tule — quem sabe de Luciana? — e cochichando: noiva ou normalista? Obscuro instante da auréola, colação de grau e noivado, tudo no espelho francas só espuma, do rosto escuro brotava o da secreta visitante, desconhecido, desfeito pela distância, lá da janela às tardes. Esméia se mirava. Volveu à sala num passo de jovem esposa, dona da mobília, do lustre, do rapaz a quem deu a mão e o colo um instante, agora à janela, figa entre os dedos, apanha a cauda do vestido, abafa um riso na dobra do braço, se deixa cair na cadeira de balanço, não demorou, na alcova recolhe o tule, as rendas, o chapéu, o colar, as suas auréolas, fecha-não-fecha o guarda-roupa como quem se despede, virou-se, olhou: alto, ao peso do cortinado, aquele jazigo, a cama do casal “macio macio este” ia dizer do travesseiro tão de repente apanhada pelo cúmplice, logo sobressaltados: abriam a porta da rua, alguém chegava, sim, entravam, estão no corredor, as malas no corredor, os dois ladrões correram para a janela, ninguém na calçada, já todos tinham entrado, era a família? e os dois saltam, a moça jasmineiro adentro e Alfredo a espiar pelo portão de ferro, luz na varanda, luz na cozinha e aqui fora mais se assustou com esta voz, escura: [175] — Botaram vocês dois pela janela? — Ana... Ana recuou num salto, cruzando os braços: — Pela janela? Foi? A família? Cuspiu no passeio da família sumindo-se pela beirada onde gaiolas do Amazonas apodrecem e a velha barca de além-mar, agora na lama, recebe os seus primeiros moradores.