DALCÍDIO JURANDIR
MARAJÓ
CEJUP 1992
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Na grande boca do rio das Amazonas está atravessada uma ilha de maior comprimento e largueza que todo o reino de Portugal... ........................... .................................... ... É a ilha toda composta de um confuso e intrincado labirinto de rios e bosques espessos; aqueles com infinitas entradas e saídas, estes sem entrada nem saída alguma... Padre Antônio Vieira — “Carta ao Rei”
À Luciana Vieira
[9] — Missunga, ó Missunga! Coronel debruçara-se no parapeito. Um sossego no casarão. D. Ermelinda tinha ido ver a doente no Araraiana. Um pica-pau martelava a velha macacaubeira. Com a cisma de haver tatu perdido ou alguma cotia nas toiças, Missunga entrava no capoeiral vizinho, seguindo o cão. Exibia ao ombro a espingarda e espreitava os esconderijos mais próximos. As tocas desertas, os ocos de pau vazios. Detinha-se, vencido, diante do mato virgem. — Missunga, ó Missunga! A terra parecia subir pelos homens, bichos e árvores com o calor. Solidão. Famaleal farejava entre as folhas moídas. Missunga voltou. O casarão do Paricatuba, com o seu escuro telhado entre coqueiros e bacabeiras, lhe dava uma impressão de fadiga e de quase ressentimento. — Bem que podia comer carne de cotia hoje. Não sei como tirar esta caninga. Benedito já vinha ao seu encontro e Famaleal caçava borboletas. Arriou a espingarda na mesa grande, como se também arriasse o azar e o medo do mato, soprou o calorão, estirou-se no banco. Cruzou as mãos sobre o peito, cerrou os olhos. Fechar os olhos assim era, em alguns dias do seu tempo de menino, sentir [10] as mãos viscosas daquele cego do Arapinã, apalpando-o. O escuro que havia nos olhos do cego avançando sobre ele. O menino sentia ao mesmo tempo como que uma febril necessidade de experimentar a cegueira, certo de que podia, com delícia, abrir os olhos, de repente, afastar as mãos do cego, e ver. As antigas folhinhas que seu pai
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— Cata, prima... Estou na igreja. Me marcaram. — Tu estás comigo, mana. Ninguém te faz mal. Estás comigo e eu te defendendo, mana. Mas me conhece. Olha, é a Alaíde. Me ouve! Nhá Felismina voltou e falou alto: — Minha filha, é a Alaíde que tu chamava tanto, minha filha. A doente abriu os olhos, obscuramente via a torre da igreja, seu corpo marcado, o sacristão a levava, quando deu por si quis correr pela escada da torre, ele a segurou, era mesmo um demônio e ela tombou aterrorizada. Uma escuridão desceu, a torre pesava sobre o peito. — Mamãi [sic], cante... o acalanto. A mãe curvou-se e cantou: Cavaleiro do meu pai, Me dá um jarrito d’água Se te der água, Silvana Tenho a cabeça degolada O acalanto misturava-se às vozes de muita gente mostrando a marca do corpo na torre. Silvana prisioneira da torre. Ela e Silvana nas mesmas torres que se confundiam. Suas cabeças, como Santo Ivo, degoladas. O corpo agarrado no chão da torre. Sombras e ruídos, cavalos galopando surdamente e, logo em silêncio, suspensos sobre uma escada negra que oscilava entre morcegos e altares. Um véu já sem cor os envolveu e os arrastou entre vagos [363] rostos para uma lama espessa e total, para aquela matéria que inchava sempre e invadia o mundo. Orminda tentou erguer a cabeça. As torres estavam negras, os cavaleiros passavam, o manto de Nossa Senhora era negro sobre o chão desabando. — Um sono... Alaíde amparou-a e os cabelos da enferma desmancharam e se
derramaram pela borda da rede. Deitou-lhe a cabeça num rolo de panos, cantou o acalanto bem baixinho e murmurou: — É Alaíde que está aqui, mana. Dorme que amanhã tu me conhece. Dorme... Mana... Durante a noite, dali não se afastou, veio a manhã, Orminda continuou adormecida e já passava do meio-dia, Alaíde rapidamente apanhou a cera de cima do oratório, nhá Felismina chamando: Orminda, mea filha. Orminda... — deixava cair as suas lágrimas pelo rosto da morta.