JOÃO CALVINO NO BRASIL ou
CAMINHOS DA PROVIDÊNCIA
Valter Graciano Martins
Neste livro cativante, Valter Graciano Martins, incansável tradutor de Calvino, presenteia-nos com uma “autobiografia” teológica, apologética e polemista. Relembrando a sua história, escrita e predeterminada pelo Senhor Deus da História, o Rev. Valter discute os erros do romanismo, apresenta a gloriosa doutrina da predestinação e a ilusão do livre-arbítrio humano, e de igual modo nos narra como sua vida — envolvendo decepções, agruras e dificuldades as mais diversas — foi e continua sendo os Caminhos da Providência soberanamente concretizados na história. Ao final, ele ainda nos brinda com uma bela biografia de João Calvino. Duas coisas são claramente percebíveis ao longo dos capítulos: a honestidade do autor e seu amor pelo Reino de Deus. É comovente a descrição das tribulações e privações que enfrentou, tanto nos pastorados que exerceu quanto nas lides editoriais. Todavia, sem ocultar os próprios erros, o Rev. Valter mostra-nos, num olhar em retrospectiva, como o Senhor conduziu os seus passos pela sua santa e por vezes misteriosa Providência, fazendo com que todas as coisas concorressem para o bem de seu tradutor eleito. É, pois, não somente um prazer, mas uma honra publicar esta obra e tornar um pouco mais conhecido o divulgador do Reformador de Genebra em terra dos Brasis. E que as gerações futuras se inspirem nesse relato, sabendo que Deus escolheu as coisas pequenas deste mundo para realizar grandes feitos em prol do seu inabalável Reino.
— Felipe Sabino O Editor
Ter nas mãos um livro traduzido pelo Rev. Valter Graciano Martins é ter a certeza de lermos um texto cuja fidelidade é o máximo anelo desse tradutor que, ao contrário do que reza o dito italiano, não trai o autor do original. Suas traduções não são fruto do mero esforço de alinhavar palavras e sentidos de um idioma em outro, antes resultam do compromisso de servir a Deus em favor de sua igreja; é trabalho forjado no cadinho da oração aquecido nas chamas do zelo e da qualidade. Não obstante sua reconhecida modéstia, seu nome de tradutor avulta entre tantos e tão competentes pares do universo editorial reformado brasileiro por estar histórica e especialmente atrelado ao pioneirismo das traduções dos comentários bíblicos do reformador João Calvino, e mais recentemente à tradução da primeira edição de suas célebres Institutas — além de tantas outras obras de mesmo gênero. A história da tradução de Calvino no Brasil é, em grande medida (e bota grande nisso!), a história desse seu principal tradutor. Louvamos a Deus e somos-lhe gratos pela vida e labor desse seu precioso servo que no cumprimento de seu ministério profícuo e incansável tem legado à igreja lusofalante uma bênção cuja perenidade se estenderá ainda por muitas décadas além de sua própria existência. Só Deus poderá recompensar em justa medida seu servo fiel, Valter Graciano Martins, para a glória exclusiva de seu nome e edificação de seu povo. Soli Deo Gloria. — Marcos Vasconcelos Vasconcelos Tradutor juramentado
O século XVI, o da Reforma, foi também o século da imprensa, o século da produção em grande escala de livros através da prensa de Guttenberg. Neste tempo, o papel do editor impressor era tão importante que ele era considerado um verdadeiro artesão do livro, tendo seu nome honrado nas páginas de rosto dos livros exemplares produzidos. Ora, Valter Martins é um artesão do livro. Ele representa pra nós, hoje, o que esses heróis pouco conhecidos da Reforma representaram em seus dias. Da tradução à impressão, do projeto ao livro, do sonho à realidade, Valter fez Calvino falar português e fez redivivos incontáveis heróis da fé do passado através por meio de sua incansável produção literária. De uma inquietação tenaz, ao ponto da teimosia, faz ainda hoje, já perto dos seus 80 anos, um trabalho impressionante na produção de livros. Sem dúvida, uma inspiração e modelo para o povo de Deus em sua disposição de servir a igreja de Cristo e a causa do evangelho.
— Tiago Santos Santos Editor-chefe da Editora Fiel
Copyright @ 2019, de Valter Graciano Martins Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620 www.editoramonergismo.com.br 1ª edição, 2019 Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto Capa: Bárbara Lima Vasconcelos Desenhos da capa: Marcos Rodrigues Diagramação: Marcos Jundurian
PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), salvo indicação em contrário.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Martins, Valter Graciano João Calvino no Brasil ou Caminhos da Providência / Valter Graciano Martins — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019. ISBN 978-85-69980-88-9 1. Biografia — Valter Graciano Martins CDD 920
2. Biografia — João Calvino
3. Teologia cristã
I. Título
Sumário Prefácio Nota introdutória introdutória Primeira Parte: Primórdios 1. Meu primeiro primeiro mundo 2. Minha família família 3. Crenças religiosas 4. Primeira menção Primeira menção da Bíblia 5. Guardado Guardado e preparado pelo Espírito do Espírito do Senhor 6. Fragmentação da família 7. Dispersão Dispersão final da família 8. Encontro dramático Encontro dramático Segunda Parte: Descobrindo o Evangelho 1. A providência providência segue seu curso seu curso 2. A primeira primeira Bíblia 3. Primeira revista dominical 4. Cultura estagnada estagnada 5. Quanto aos aos sonhos futuros Terceira Parte: Estudante de teologia 1. Chegada a Chegada a Patrocínio 2. Primeiro contato Primeiro contato auditivo auditivo com as Institutas Quarta Parte: Experiência missionária 1. Histórico Histórico 2. O pastor pastor como como profeta de Deus Quinta Parte: Outra encruzilhada decisiva 1. Trajetória cultural de Cremilda 2. Meu encontro com a Comissão Executiva do Presbitério de Goiânia Sexta Parte: Impacto de cosmovisões 1. Erro que gera acerto 2. Igreja de Rialma Sétima Parte: Nascem Edições Parakletos 1. Primeiro computador 2. Primeiro Livro Oitava Parte: Perfil de João Calvino João Calvino — o homem João Calvino — Pastor e Pregador
João Calvino — o escritor João Calvino — o Reformador Nona Parte: De regresso a Goiânia 1. Novo impacto de cosmovisão 2. Tentativas inglórias Pós-escrito Sobre o autor
PREFÁCIO O caro leitor tem nas mãos uma grande obra. Sincera, franca e muito inspiradora. Sua publicação documenta uma realidade que precisa ser conhecida, reconhecida e divulgada. Realidade conhecida por poucos e talvez até desprezada por alguns desses poucos! Mas agora, por essas páginas impressas, a posteridade saberá esse assunto, e com convicção poderá divulgá-lo. Conhecer e reconhecer o que aqui está escrito têm sido para mim um sagrado privilégio. Desde o começo do meu ministério tenho sido privilegiado pelo autor das páginas desse livro. Sempre fui privilegiado com suas tantas traduções das obras que não podemos negligenciar, e nesses últimos anos tenho desfrutado de sua amizade que tanto me inspira. Conhecer e ser amigo do autor desse livro tem sido uma bênção na minha vida. Doravante esse privilégio que desfruto está estendido aos que absorverem o conteúdo dessas páginas. Por elas o caro leitor conhecerá melhor o grande Reformador genebrino e como ele veio a ser conhecido e tem sido influente em nosso rincão de fala portuguesa. Aqui nessas páginas se conhece como o grande Reformador veio a falar nossa língua, talvez até tardiamente, mas ainda em tempo para nossa geração e, com certeza, para os tempos vindouros. Essas páginas contam o percurso dessa trajetória que a providência divina tem usado para privilegiar a muitos. O Reformador genebrino no seu tempo nos enviou missionários que inclusive deram suas vidas em martírio aqui no nosso país, e não pôde ver tanto progresso no envio de seus compatriotas, e nem pôde presenciar a divulgação de seus escritos aqui em nosso território; mas, no tempo de Deus, Ele mesmo designou outro reformador nato, para que tornasse o Reformador Calvino acessível aos estudiosos da Sagrada Escritura — João Calvino no Brasil ou Caminhos da Providência agora documentados nessas linhas, onde o Reformador e seu intérprete divulgador nos são apresentados. Ler e reler essas páginas me foi até difícil. Algumas partes talvez não li direito, pois estava com mais intensidade revivendo os fatos, momentos esses que, além do texto, me envolvi com as cenas descritas, e aí o coração perde o compasso e os olhos embaçam em lágrimas e fica difícil continuar... Mas é muito proveitoso, através dessas páginas, conhecer o Reformador, sua pessoa e obra, e também o instrumento reformado que tem sido usado pelo
Deus providente que nos proporciona ler as grandes obras da Reforma. Aqui nesta obra o autor se apresenta com franqueza e sinceridade, com os acordes de seu coração inflamado pelo Reino de Deus e fascinado com o Reformador João Calvino, do qual tem sido intérprete fiel e labutador. Também nos impressiona a obra da providência divina em chamar o ferreiro matuto a abandonar o martelo e a bigorna, para empunhar o mais poderoso instrumento modelador; não de peças metálicas, mas de vidas e vidas para o reino de Deus — a Santa Escritura —, e isso nos moldes devidamente delineados pelo coração e mente santos do Reformador Calvino. Bendito momento foi aquele que o jovem ferreiro depositou o martelo sobre a bigorna, se despediu da antiga ferraria e seguiu na estrada longa e poeirenta rumo ao IBEL para ali começar o preparo que lhe faria no futuro o intérprete do Reformador! Somente os desígnios da providência divina podem realizar feitos assim, contrariando, inclusive, os pareceres da lógica humana. Neste mês em que comemoramos mais um ano da Reforma Protestante, somos presenteados com esse relato inspirador. Louvamos a Deus por João Calvino e também por seu intérprete para o povo de fala portuguesa. Cinco séculos separam os dois, mas a providência divina os une nessas páginas para nosso proveito hoje e para a posteridade. Dos instrumentos produzidos outrora pelo jovem ferreiro talvez não exista nenhum em uso, mas das obras tão antigas de Calvino e de outras tantas de cunho reformado, temos tantas em uso e atualizadas, na nossa língua, graças ao seu entusiasmado tradutor Rev. Valter. Vale a pena conhecer a história dessa história. Portanto, a Deus toda a glória, ao Reformador e seu intérprete, o sincero reconhecimento e a gratidão pela obra no Reino! Bendito seja Deus por nos proporcionar João Calvino no Brasil, para os brasileiros e os demais de fala portuguesa!
— Rev. Prof. Salvador Moisés da Fonseca Ministro do Evangelho, Teólogo, Escritor e Professor no Instituto Bíblico Eduardo Lane. E, sobretudo, meu leal e particular amigo. Outubro de 2018
NOTA INTRODUTÓRIA Há tempo que este tema — João Calvino no Brasil, ou Caminhos da Providência — vem ocupando minha mente e coração, impelindo-me dia e noite a escrever não uma mera autobiografia, o que seria de bem pouco proveito ou de quase nenhuma importância para os leitores; e sim o que o Senhor tem feito em minha vida e através de minha modesta pessoa como seu instrumento de um modo muitíssimo específico e quase único. Com certeza, eu jamais escreveria uma mera autobiografia. Quem iria lê-la? Que valor prático teria? Que importância os leitores veriam em minha história pessoal ou particular? O que escrevo, porém, visa a deixar impresso e expresso que foi através de minha instrumentalidade que o Reformador João Calvino praticamente foi introduzido no Brasil de modo legível e completo, como se ele mesmo estivesse conversando conosco. É verdade que tenho traduzido algumas dezenas de outras obras preciosas no campo da cultura teológica; porém, minha prioridade e foco sempre foi o Reformador genebrino. É verdade ainda que, quando comecei a traduzir suas obras, já havia uma tradução de suas Institutas, porém quase de nenhum valor real, porquanto sua leitura veio a ser totalmente inviável e ilegível para os leitores de língua portuguesa. Quando digo “minha prioridade e foco”, não é uma menção fortuita; senão que desde o ponto de partida de minha experiência com o evangelho nascia também em mim e comigo, de um modo muito acentuado, humanamente inexplicável, esse lampejo no tocante à pessoa e obra do Reformador; ainda quando nem tivesse qualquer noção de sua existência e suas obras. No entanto, isso jazia latente em minha mente e alma, só percebendo-o e interpretando-o mais tarde. Jamais pude e jamais terei como explicar esse fenômeno; faz parte das coisas que vão além da experiência, noção e explicação humanas. Na esfera divina, não existe meada sem ponta, porquanto ele é o próprio autor da meada; já na esfera humana, há muitas meadas cujas pontas se perdem em um emaranhado sem fim. Essa intuição surgiu e foi crescendo sem qualquer imposição nem influência vindas de fora, pois em minha trajetória nunca encontrei alguém que fosse admirador consciente e leitor assíduo do grande Reformador, mesmo porque ainda não havia nada dele no vernáculo. Sempre se falava e se celebrava Martinho Lutero, e com justiça, porém muito pouco ou quase nada no tocante a João
Calvino. A Casa Editora Presbiteriana publicou outrora um volume de Vicente Temudo Lessa, Calvino: sua vida e sua obra,[1] cuja data de publicação nem se acha impressa no livro. Lembro-me bem que, assim que esta obra apareceu em público, eu a adquiri e a li toda mais de uma vez. Meu sogro costumava dizer-me: “Sou admirador de Martinho Lutero, porém não de João Calvino. Não gosto dele”. E foi esta a influência e informação que ele recebeu desde o início de sua fé, através de seus pastores, pois ele sempre ouvia falar de Lutero, e quase nada de Calvino. Pior: o que ele ouvia do Reformador genebrino era quase sempre negativo e distorcido como é sua figura e fama em todo o Brasil. Nunca me assentei com algum erudito que me dissesse: “Estou lendo uma obra de João Calvino ou sua biografia”. Sempre estive, desde cedo, em contato direto com grandes teólogos de formação reformada, mas nenhum deles insistia comigo sobre o assunto. No íntimo, sua fé teológica era correta; mas, quanto a explanar suas convicções a respeito para a instrução de outros, omitiam totalmente essa sacra tarefa atinente a eles, pastores e mestres. E assim o povo evangélico brasileiro continuava jejuno do conhecimento da pessoa e obra do Reformador até há bem pouco tempo. Desde o início, já nos campos missionários, tomei ciência da história do primeiro missionário presbiteriano no Brasil — Ashbel Green Simonton. Mesmo assim, não havia aquela ênfase insistente sobre a formação teológica do missionário. Foi bem mais tarde que passei a ler e a ouvir que Simonton fora aluno do grande teólogo calvinista Charles Hodge. Entretanto, João Calvino nunca fazia parte do foco. A tônica era posta no evangelismo; mas, e a doutrina ministrada aos neófitos procedentes desse evangelismo? O que eles recebiam de sua instrução doutrinária? Muitas igrejas foram instruídas por seus pastores e mestres com base em uma fonte mais arminiana do que calvinista. Daí a miscelânea doutrinária com forte tendência para o anticalvinismo. As novas gerações de estudantes de teologia têm hoje o privilégio de já começar seu ministério compendiando João Calvino no vernáculo, caso o queiram; no entanto, isso se deve à insistência de um missionário caipira, sem “cultura acadêmica” e sem condição de efetuar tal proeza; mas que, praticamente sozinho, pôs a “mão na massa” e nunca mais se deteve, ainda que sem o apoio e o auxílio daqueles que são detentores da nata da cultura teológica.
De igual modo, desde cedo meus olhos focaram um texto que para mim, em particular, é muito especial, o qual retrata e enquadra bem o que o Senhor se propôs fazer em mim e por meu intermédio, ao longo dos anos. O texto se encontra na Primeira Epístola aos Coríntios 1.26-29. Ali o apóstolo chama a atenção dos cristãos coríntios, e extensivamente a atenção de todos os cristãos em todos os lugares e épocas, para a vocação divina de homens e mulheres com vistas à expansão de seu reino neste mundo. É verdade que o evangelho costuma atingir e lograr avanço nos corações e mentes de muitos “grandes”, “poderosos” e “nobres”, e a história o demonstra. É óbvio que muitos dentre essas classes abraçam o evangelho e são salvos pela mesma graça que penetra todos os níveis e camadas da sociedade humana como um santo levedo. Na história da Igreja têm havido muitos ricos, poderosos e eruditos que vieram a ser grandes no reino de Deus. Aliás, quando a cultura, a riqueza, o poder e a nobreza se aliam à verdadeira conversão e vocação cristãs, e introduzem a humildade nos corações dos “grandes”, esta costuma ser uma associação de grande valor e vantagem para a Igreja. Não obstante, estes nunca suplantam em número a grande massa daqueles que são destituídos de lustre. Ao contrário: Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo, para envergonhar as fortes; e ele escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são [ou que parecem ser].[2] E ele dá a razão para esse comportamento divino: “a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus”. Isto é, o que Deus almeja é que seu próprio Nome seja glorioso e glorificado em todo o orbe, especialmente pelos que o servem de todo o coração. Todo o programa de Deus visa à sua própria glorificação, e não à do homem; a do homem deve ser em decorrência da de Deus; pois o homem só será glorificado na pessoa de Cristo, no qual encontrará também a fonte da verdadeira e eterna felicidade. É assim que o Breve catecismo de Westminster se abre: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e desfrutar dele para sempre”. Portanto, “para que ninguém se vanglorie na presença de Deus”, é uma frase recorrente. Por quê? Porque todos são servos e servas, instrumentos e ferramentas nas mãos daquele que quer ser o único glorificado, porque ele é o único que é , a saber, o único eterno e auto-existente; ele é o único que pôde
e pode dizer “Eu Sou”. Caso eu passe a fazer uma obra de grande dimensão em seu reino, isso se deve à vocação soberana que se estende a quem ele quer, e não ao valor e importância intrínsecos ou pessoais. Ele é quem me chamou à realização de tal obra para que, por meio dela, ele mesmo seja ainda mais conhecido, temido, amado e engrandecido, e não aquele que a realiza, o qual não passa de instrumento de seu eterno propósito. Se bem que no último dia este mesmo ouvirá dos lábios do Supremo Juiz: “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor” (Mt 25.23). Mas este é o galardão e convite da graça que encobre os defeitos dos servos e do que estes fazem para ele, e não porque porventura mereçam tal galardão. Entendi isso desde cedo, olhando para mim mesmo e tentando ver em minha pessoa algo de valor extrínseco e intrínseco que justificasse a realização de uma obra a que chamo singular, em razão de sua perfeita excelência. Se há no mundo um homem ou uma mulher que jamais poderia vangloriar-se diante de Deus ou dos homens, esse alguém sou eu. Não existe em mim absolutamente nada que se possa chamar “grande” e “nobre”, nem mesmo quando alguns, equivocadamente, olhando só para meus feitos externos, chegam a chamar-me de “grande”. Porque, na verdade, a baixeza humana está sempre de espreita e se esgueirando ao meu redor, furtivamente, insinuando-se e me vigiando, dia e noite. E a lembrança de meu tenebroso passado me afunda no pó e na cinza. A única coisa em mim que tanto desejo que triunfe é que a glória de meu Senhor se sobressaia por meu intermédio; isto é, naquilo que faço; não propriamente em minha insignificância, mas na obra que ele mesmo me deu para fazer. Quanto ao resto, na verdade não passa de resto! No fim, somente ele receberá a glorificação de toda a Igreja. Pretendo revelar um pouco de minha própria história meramente visando ao foco principal, que é minha instrumentalidade nas mãos do Senhor, dentro de sua sapientíssima Providência, e não minha própria pessoa. Sem esse algo grande que o Senhor pôs em minhas mãos para fazer, eu seria mais um imerso em total anonimato. O que me projetou na história não foi e não é minha pessoa em si, mas aquilo que passei a fazer impelido pela Providência divina. Quando se pronuncia meu nome, ou quando se lê meu nome nos livros, meu real intuito é que a glória do Senhor da Igreja se realce; pois nunca tive outro propósito em minha vida atribulada, minha vida peregrina, senão que, por meu intermédio, o Senhor Jesus seja visualizado e glorificado. Creio ser esta a razão de não me sobrepor a ninguém; ao
contrário, o que se sobressai em mim é a insignificância e, pela graça em mim, se sobressai a grandeza de Deus e de sua obra na edificação de sua Igreja. Aprendi isso no Santo Livro e com João Calvino. E o grande mistério em tudo isso é que o grande se associou ao equeno formando um todo no quadro dos milagres do Senhor da Glória. Pois, como veremos no lugar próprio, humanamente falando, era impossível que eu fizesse o que passei a fazer no âmbito da história e das obras do grande Reformador genebrino. Sem dinheiro, sem cultura, com poucos amigos, um homem avulso, sem quase nenhum apoio humano, estou deixando para a Igreja de nosso Senhor um legado imenso, perpétuo e único; um tesouro para o qual a Igreja, hoje, ainda não tem qualquer critério de avaliação para julgar. Creio que, após minha partida deste mundo (a qual pode estar bem perto), vai ser possível uma visão mais nítida da grandeza que o Brasil e os países de língua portuguesa estão recebendo por intermédio do pequeno que o Senhor tomou para concretizar o grande e, assim, exaltar o Supremo. Com essa visão no espírito, vejo, sim, os momentos de glória que sempre cercaram meu obscuro ministério, porém vejo com mais nitidez meus momentos de humilhação, privações, carências e frustrações das quais o Senhor não quis me livrar totalmente. O Senhor sempre massacrou meu ego para que ele seja visto em mim e no que faço. E, assim, volvo meus olhos para o alto e noto, pela fé, que o Senhor da Igreja tem sido engrandecido através de meu duro empenho e desempenho em meio às fraquezas da carne que labutam contra o espírito. Sempre compreendi que não foi por mérito meu que venci, até então, todas as barreiras postas por Satanás e os homens; e sim pelo mérito da ação constante do Espírito de Deus, usando este vaso de barro, trincado, sim, para a consecução de seu eterno desígnio em usar o instrumento que ele quer usar e soberanamente usa. E, no tocante a mim, o vaso é não só de barro, mas também envolto de rachaduras e escoriações, sem qualquer vislumbre de arte e beleza externas a fascinar os usuários ou os colecionadores de antiquários. Este é o método de Deus! E é isto que espanta os homens que são chamados para seu serviço: o mistério da Providência que permeia a vida e a vereda dos que o servem com alegria. Outro texto bíblico que se tem identificado comigo se encontra na Segunda Epístola aos Coríntios 12.7-10. Ali Paulo nos informa que labutou com muito empenho para livrar-se de um espinho solerte que sempre o
importunava; e que por três vezes rogou ao Senhor que o livrasse dele. Mas a resposta divina, sempre recorrente, era que sua graça é suficiente e se sobrepõe quando um espinho atrapalha seu servo ou sua serva. Então, o apóstolo se gloriava nas fraquezas para que a graça fosse nele mais abundante e exuberante e se sobressaísse com mais glória, e seu poder aperfeiçoasse sua vida em santificação. Em comparação a mim, o apóstolo foi privilegiado, pois labutava contra um espinho; enquanto que, no que toca a mim, vejo a digladiarem comigo diversos espinhos. É por isso que sempre respondo à pergunta, “Como vai?”, com esta afirmação, “Estou melhor do que mereço!”. O que seria de mim se o Senhor me desse o que realmente mereço?! Que o leitor responda para si. Então, se me vejo vitorioso em meio a tantos percalços, para quem olharei? Para os montes? Para mim? Para algum objeto valioso? Não! Jamais! “Olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus”, a quem tenho servido ao longo de mais de meio século (Hb 12.1-3). E neste livro meu desejo mais profundo é mostrar o quanto a ação divina é misteriosa nas vidas de seus servos e servas em quem nada se vê que fascine aos que olham só o exterior. E, assim, não venhamos a desesperar-nos, porquanto sua Providência está no comando. No entanto, proponho-me deixar impressa e expressa, nesta nota introdutória, a estrita razão por que desejo tanto registrar minha história com o Reformador genebrino. É muito simples: quem dentre os doutos se disporia a escrever minha história? Se até então ninguém se dispusera a traduzir as obras do grande Reformador, por achá-las destituídas de relevância, por que alguém se disporia a escrever minha história relacionada com João Calvino? É provável que, para os doutos, isto nem se qualifique como “história”, senão uns alinhavos sem um arremate calcado na elegância. Tenho certeza que, se João Calvino falasse nosso idioma através de um erudito no pleno desfrute de prestígio e capacidade no meio dos grandes, membro de uma academia de eruditos, esta história seria relevante e certamente seria lida e apreciada por milhares. Como não pertenço e jamais pertencerei a uma academia de eruditos, tudo quanto eu fizer no campo literário, mesmo que eu consiga fazer bem feito, contudo terá sido feito por um amador isolado ou avulso, sem aquela “formação acadêmica” tão necessária na evolução cultural dos indivíduos e da sociedade. Por isso mesmo, crendo na relevância de se ter uma história escrita dessa façanha, eu
mesmo decidi fazê-lo, talvez sem vê-la um dia publicada. E, como costuma ocorrer com frequência, pode ser que, após minha partida deste mundo, alguém descubra a relevância de se publicar um livro como este para que o Brasil saiba que João Calvino ficou conhecido em nossa pátria através de um homem sem expressão, sem ser membro de uma academia de eruditos, nem mesmo sendo ele erudito, e sim um perene leigo; porém que desde o início creu na grande relevância de João Calvino ser lido pelos estudiosos de fala portuguesa como uma fonte direta de pesquisa, informação e instrução. Esta é e será minha gloriosa recompensa! Aliás, em parte já desfruto a antevisão deste milagre! A ele somente toda honra e glória.
— Valter Graciano Martins Goiânia, outubro de 2018 O menor servidor de Jesus Cristo
Dedicatória Ao Instituto Bíblico Eduardo Lane, abençoada escola que, partindo dali, redirecionou toda minha vida.
PRIMEIRA PARTE: PRIMÓRDIOS
1. Meu primeiro mundo Poderíamos chamar este capítulo A origem de uma vida aparentemente sem importância, mesclada com outras vidas evidentemente muito mais importantes, e que deu origem a algo de suma importância e relevância no seio da Igreja de nosso Senhor. Que importância teria a vida de um garoto que nasce e cresce perambulando pelos campos, usando apenas um short puído e sujo, cabelos cortados a zero, que a própria mãe cortava a esmo, usando apenas a tesoura, todo queimado do sol, pés descalços, atolados na poeira ou na lama das estradas, das trilhas e do brejo lamacento? Quase sempre era visto com um estilingue no pescoço e os bolsos cheios de pedrinhas para atirar nas aves que existiam aos bandos. A sorte das aves estava na péssima pontaria do atirador. Raras vezes ele conseguia acertar uma rolinha, uma pomba descuidada que comia dos restos da colheita de milho e arroz, ou outra ave não comestível, só pelo gosto de vê-la cair por terra para depois contar aos colegas a façanha com detalhes e acréscimos exagerados. Aquele garoto se irmanava com outros e assim perambulavam a esmo pelos campos em busca de frutas silvestres, que havia em abundância na região. No tempo de mangas, então, que existiam até pelos campos abertos, voltavam para casa completamente lambuzados e empanturrados. Isso durante os fins de semana, pois durante a semana ele e os irmãos estavam com o pai no cultivo da terra, fosse plantando, fosse carpindo as ervas daninhas que infestavam a lavoura, e durante o período da safra. O quanto pudesse, corria com alguns irmãos para o ribeirão a fim de nadar em algum poço largo e fundo. No tempo das chuvas, ele e os irmãos pescavam bagres, enguias e lambaris nos fundos da casa. De vez em quando voltavam para casa com uma boa fieira de peixes que fritavam e comiam com a gulodice própria de menino. Não havia preocupação com as coisas, com a vida, com o futuro. Sonhos? Só depois de alguns anos é que começariam a incomodar sua mente adolescente e jovem. Ambição? A vida que a família levava era boa e suficiente para não pensar muito em posses, em estudos, em romances, em estabilidade. O problema é que aquela terra era alheia. O pai não era o proprietário. Mais dias, menos dias, a família teria que sair dali em busca de
outra terra onde morar e trabalhar. Mas aquele menino nem mesmo sabia desse detalhe. Para ele, aquela era sua terra e viveria ali para sempre.
2. Minha família Manoel Graciano Martins (conhecido por todos da região pela alcunha “Mané Cota”) e Joana Rosa (ambos há tempo falecidos) geraram nove filhos: um faleceu logo após o nascimento; os outros, de cima para baixo, trazem o prenome: Maurício (já falecido), Maurílio, Maria, Valter, Marcely, Marcelúcio, Manoel (também já falecido) e Marília. Cada um constituiu sua própria família, em seu próprio universo: Maurício casou-se com Alzira, gerando Marilda, Márcia, Mara e Maurício; Maurílio casou-se com Lourdes, gerando Silvânia, Tânia e Jane; Maria casou-se com José Magalhães, gerando Wellington, Draile, Débora e Deise; Valter casou-se com Cremilda, gerando Sóstenes, Wânia, Simonton, Eline e Wander; Marcely casou-se com Maria Inody, gerando Marcos (já falecido) e Marcelo; Marcelúcio casou-se com Wânia, gerando Fernando, Daniela e Lucas; Manoel casou-se com Andreia, gerando Jean e Laura; Marília casouse com José Natal, gerando Leandro, Leonardo e Tunísia.
2.1. Cada um tecendo sua própria história Cada irmão foi aos poucos tecendo sua própria história, de formação, de família, de profissão e de religião. Ainda que, em questão religiosa, Valter e Marcelúcio tomaram outro curso, os outros seguiram em frente e buscaram a concretização de seus ideais pessoais e conservaram-se na prática de sua religião do berço. O grande mistério é que cada ser humano que vem ao mundo já existia eternamente na mente e propósito do Criador. Ninguém vem à existência sem seguir a predeterminação do Senhor da vida. Isto é, ninguém nasce por conta ou vontade própria nem traça seus planos sem o concurso do Criador; daí a nulidade do livre-arbítrio humano e o ilusório dístico “querer é poder”. Estritamente falando, estes dois conceitos só existem na ilusão humana. Quando pensamos que nossa vontade está se concretizando, na verdade é a vontade do Eterno que está dando forma e curso aos seus próprios desígnios. Quem poderia querer vir à existência antes que seu ego fosse criado pelo Eterno? Se querer é poder, então não ficaríamos doentes, não ficaríamos pobres, não teríamos problemas familiais, não seríamos infelizes,
impediríamos a chegada da velhice e da morte. Quem quer essas coisas para si? E quem não possui, em alguma medida, essas coisas? Temos poder para impedi-las? Nosso ilusório livre-arbítrio pode impedi-las? Quantas vezes ocorre que justamente o que não queremos é o que nos acontece? Quantas vezes exclamamos: “Ah! Se eu pudesse! Se estivesse em mim!”. Por isso, toda a Santa Escritura nos incita à confiança na Providência do Eterno. Na verdade, nossa impotência é alarmante! Os cristãos sabem que existe oculto um tremendo e misterioso poder que nos mantém vivos e em pé. Assim, quando cada um de nós é registrado no livro dos vivos, de antemão a mão do Criador dera forma à sua vontade decretiva e criativa. No dizer de um amigo: “Cada um vem ao mundo nu, sem dentes e chorando”. Significando que ninguém nasce feito e decide sua própria sorte. Esta já está dinamicamente determinada pela sapiência do Eterno. Mesmo os pais são impotentes quanto à sorte de cada filho. Por mais que recorram aos adivinhos ou falsos profetas para conhecer sua vida futura, esta é uma caixinha de segredo que depende inteiramente do eterno, infinito e onipotente Criador. E assim descobrem que os adivinhos ou falsos profetas na verdade não sabem nada, nem mesmo sobre sua própria vida. Não têm conhecimento nem a respeito de si próprios. Vivem enganados, enganando a si próprios e aos outros. Já nascemos totalmente dependentes: em termos imediatos, visíveis e tangíveis, dependemos totalmente do cuidado dos pais; se deixados à deriva, certamente perecemos. Em termos mediatos, invisíveis e intangíveis, dependemos, querendo ou não, crendo ou não, do Criador que destina cada um à sua individualidade e ao seu modo de existência. Ninguém pode dizer com sabedoria: “Eu sou o senhor de meu próprio destino”. É verdade que muitos dizem isso, porém sem qualquer laivo de sabedoria e discernimento. Esses podem ser considerados dementes. Esta é uma crassa ilusão; e é uma ilusão mui prejudicial. Mais cedo ou mais tarde vamos descobrir que a plena verdade é que “Deus tem o mundo em suas mãos” e faz dele segundo seus sapientíssimos desígnios. Deveríamos, antes, seguir o conselho do grande santo de Deus, Tiago: “Atendei, agora, vós que dizeis: Hoje ou amanhã, iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos, e teremos lucros. Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por um instante e logo se dissipa. Em vez disso, deveríeis dizer: Se o Senhor quiser, não só viveremos, como também
faremos isto ou aquilo” (Tg 4.13-15). Porquanto, nosso “destino” lhe pertence; somos guiados por sua sapientíssima Providência. Particularmente, dou graças a ele por isso ser assim. Levantamo-nos cada manhã sem sabermos absolutamente nada do que vai acontecer-nos durante a trajetória do dia. Presumimos, planejamos, e podemos e devemos fazer isso. No entanto, não temos certeza alguma do sucesso de nossos planos e da continuação de nossa vida. Quantos se levantam, elaboram seus planos para o dia, em meio ao percurso caem por terra e a morte os arrebata! Estritamente falando, não podemos dizer, como fazem muitos, “tenho certeza absoluta” de que será assim. Ninguém tem como nutrir certeza absoluta de nada, a não ser de uma única coisa: a morte. Mesmo assim, ninguém sabe que tipo de morte terá ou em que dia ela virá. Quem tem a morte sob seu controle?! Somente o Deus eterno. A morte também obedece à Providência divina.
2.2. Local de origem Eu e meus irmãos nascemos e crescemos numa região denominada Boqueirão, a qual é cortada por um ribeirão que nasce na base de uma serra no município de Tupaciguara, no Triângulo Mineiro, entre esta cidade e a de Itumbiara, Goiás, cuja divisa maior é delineada pelo Rio Paranaíba. Aquele foi nosso primeiro mundo. Ali aprendemos as primeiras letras e a fazer contas numa escolinha rural; ali tivemos nossas primeiras experiências de vida. Foi ali que minha consciência existencial acordou para o mundo e a vida. E aquele era um mundo encantador. No tocante particularmente a mim, não tinha nenhuma noção do futuro. Meu futuro era o amanhecer de cada dia. Se alguém me perguntasse o que gostaria de ser quando crescesse, não saberia que resposta dar. Talvez alguém me fizesse essa pergunta, porém não guardo disso a menor lembrança. Provavelmente, gostaria de continuar vivendo ali mesmo até o fim da vida. E por que não? Ali tínhamos de tudo para a sobrevivência e uma vida feliz. Mas o querer não equivale poder. Nosso pseudo livre-arbítrio é frustrado continuamente. Nascemos e morremos querendo muita coisa sem jamais adquiri-la. Temos que querer, porém não temos os elementos indispensáveis para podermos ser ou ter o que almejamos. O Criador tem o mundo em suas mãos; ele é quem governa o mundo físico e o mundo vivo, bem como o mundo metafísico e intangível.
Considero nossa vida terrena como um grande e misterioso milagre divino. A uns ele mantém a saúde até o fim; a outros, ele manda doenças variadas. Uns nascem sadios e viçosos; outros nascem com deformidade. A uns ele dá a bênção da longevidade; a outros, arrebata a vida ainda no útero, ou com poucos anos de vida, ou na mocidade etc.
2.3. Princípios ou normas de vida A despeito da vida campestre e muito modesta, tínhamos fartura; pois nosso pai, embora homem pobre, que nem sequer era o proprietário daquelas terras, trabalhava de sol a sol e colhia mais que o suficiente para a manutenção da família de dez pessoas e a família do próprio dono da terra. Mal soletrava as palavras mais simples e fazia umas contas básicas. Nossa mãe era dinâmica em providenciar nosso alimento, nossas roupas e calçados, os quais ela mesma comprava com o dinheiro que ganhava na venda de frangos e ovos, escolhendo o que era da máxima singeleza. Muitas vezes usávamos aquilo que era feito no tear que muitas famílias ainda possuíam em casa. Plantava-se o algodão; colhia-o; retirava as sementes; cardava-o; fiavao; tecia-o no tear de madeira. Era um processo formidável; rústico, porém funcional e providencial. Ela era completamente analfabeta. Não lia nem escrevia nada. Mas ambos nos passaram certos princípios de vida em comunidade, e esses princípios norteariam em boa medida nosso modo de viver. Primavam pela honestidade, pela palavra franca; sem o saber, passavam-nos um princípio básico do bom viver, ou seja, o respeito que se deve ao próximo. Daí crescermos sem a discriminação social e racial de preto, branco, mulato, rico ou pobre; todos são igualmente seres humanos. O que importava e importa é que cada um seja íntegro e viva fazendo o bem. Sempre tive como algo muito estranho a barreira que a sociedade cria entre uns e outros. Por exemplo, uma raça é mais pura, mais importante que outra. O rico é maior que o pobre e o letrado mais importante que o analfabeto — esse tipo de coisa. Não consigo ver nenhum sentido nessas tolices humanas. Um só é o Criador de todos os seres humanos e todos nós formamos uma sociedade de humanos; e todos nós, igualmente, prestaremos contas diante do tribunal divino. Eles nos criaram fomentando o respeito paterno, materno e fraterno. Assim que levantávamos, nos dirigíamos a eles com reverência: “a bênção,
pai; a bênção, mãe”. E eles, por sua vez, respondiam também com reverência: “Que Deus o abençoe, meu filho!”. Isto é, eles evocavam a bênção divina sobre os filhos. Em minha opinião, esta é uma das coisas mais benéficas que o cristianismo legou à família. Nós evangélicos perdemos de vista estes preceitos preciosos oriundos da Santa Bíblia. Infelizmente, hoje os filhos se dirigem aos pais: “Bom dia a você, pai; bom dia a você, mãe”. Isso, quando o fazem. Em muitos lares, nem existe “bom dia!”, pois se deitam malhumorados e se levantam pior ainda. Eles se sentem em pé de igualdade com os pais. A hierarquia foi banida. O respeito filial desapareceu de vez. Sem o percebermos, cultivamos hábitos que solapam aos poucos o respeito que a Santa Escritura ensina que se deve praticar entre os pais e entre os irmãos. Nós evangélicos deveríamos ponderar seriamente sobre essas coisas e perguntarmos: Como Deus quer que procedamos para com os pais? E para com os irmãos entre si? Por que, embora crentes e salvos pela graça divina, nossa família está desestruturada? Os filhos já não creem em nada? A aliança divina foi rejeitada e ignorada? As novas gerações se sentem orgulhosas de ter a “liberdade” de fazer o que bem querem de sua vida! Daí a falência da sociedade moderna, porque não cremos e nem praticamos as coisas simples da vida em família ensinadas no Livro Divino.
2.4. Cultura caipira Nunca imaginei meu pai usando um terno completo com um bom par de sapatos. Era o matuto nato. Para mim, meus melhores momentos eram aqueles quando me assentava com ele e o ouvia em seu linguajar caipira. Sua expressão era simples, natural, sincera e sem embaraço. Eu puxava conversa só para ouvi-lo em silêncio em seu jeito de matuto. Achava fascinante seu vocabulário próprio, fluente, despreocupado com a correção gramatical. Como apreciava aquilo! Aliás, embora eu haja perdido a origem do linguajar caipira com os estudos, nunca deixei de apreciar o modo caipira de falar e viver das pessoas do campo. De certo modo, o caipira se expressa melhor que os que usam uma linguagem correta e empolada, pois ele não se preocupa se o que fala gramaticalmente é ou não correto. Há mais hipocrisia na sociedade urbana e culta do que na sociedade rural e inculta.
2.5. Vida rústica Quer nas lavouras durante a semana, quer nos campos aos sábados e domingos, quer frequentando a escolinha da vizinhança, a vida passava sem que eu tivesse a menor noção do amanhã. Meu irmão malungo, Marcely, estava sempre comigo, quer nas diversões, quer nas brigas. Éramos os mais próximos em idade, pois acima de mim havia uma irmã, com quem não podia brincar e pouco falávamos; e abaixo de Marcely nascera o Marcelúcio, bem mais novo que nós. Por isso, estávamos sempre juntos mesmo que fosse para brigar.
3. Crenças religiosas Eu sabia, por informação religiosa da família e vizinhos, que existia um Deus, existiam santos, anjos e espíritos desencarnados que assombravam as pessoas e desciam nas seções espíritas. Eu aprendi mais sobre os santos, anjos e assombração do que de Deus mesmo. A ideia de Deus era muito vaga, obscura e remota. Ele estava embutido num misto de crenças confusas. Só se pronunciava a palavra “Deus” sem qualquer nexo, como uma mera expressão habitual: “meu Deus!”, “Deus me livre!”, “se Deus quiser!” etc. Na verdade, não recebi nenhuma noção de seu Ser, de sua Revelação, de sua vontade. Aliás, há em nossa natureza uma propensão natural ou inerente de crer e praticar os elementos da superstição, que é uma interminável mistura de crenças. A religião de Jesus não é um composto de crenças confusas; é um corpo de doutrinas bem delineadas. Somos naturalmente supersticiosos. Já nascemos prontos para a prática da superstição. Não a aprendemos numa escola; nem é preciso escola para aprendê-la; ela não demanda professores, pois ela é a própria mestra. Se não nascermos e crescermos sob a influência direta do ensino bíblico, toda nossa vida irá armazenar as influências nocivas e destrutivas da superstição sem Deus; e esta superstição constitui um universo escuro em nosso espírito, sem a luz de Deus. Ela é o produto de nossa alienação do Criador. A genuína fé em Cristo, oriunda da Santa Escritura, expulsa toda e qualquer superstição. Este Santo Livro é um jorro daquela luz que ilumina todos os cantos de nosso ser. Sem a Santa Escritura, o que aprendemos de religião é totalmente distorcido e contrário ao conhecimento real de Deus. Abençoados os filhos que nascem em um lar que mantém a Santa Bíblia aberta para ser lida e meditada constantemente. Esta é a suprema fonte daquele conhecimento de Deus que expulsa toda e qualquer superstição. Esse bendito conhecimento limpa o céu de nossa alma. Deixa tudo claro. A família praticava sofrivelmente duas religiões: para os batismos e casamentos, todos nós íamos ao templo da igreja romana; na prática cotidiana, de vez em quando tínhamos sessões espíritas em casa ou na vizinhança. Na região havia homens e mulheres médiuns, e eram eles que reuniam a vizinhança para essas práticas religiosas que nada ensinavam. Quando havia na família algumas doenças tidas como místicas, para isso
havia também os benzedores. Inclusive tive um tio que era perito nessa prática. Quantas vezes ele me benzeu de cobreiro, ao qual se dava o nome de “cobreiro brabo”, isto é, só se curava por meio dessas rezas; éramos benzidos também de ventre virado, mau olhado, quebranto etc. Por exemplo, o “cobreiro brabo” que não fosse benzido não sarava. A única cura era por meio do benzedor. Ninguém nunca ouvia o que ele dizia só com o movimento dos lábios. Ninguém sabia se ele invocava a Deus ou a algum demônio. Na exata acepção do termo e da ideia, aquilo não era uma oração. Era algo que ele aprendeu sabe-se lá quando, como e com quem. No caso do cobreiro, por exemplo, ele balbuciava aquela reza com um raminho de certa planta, o qual ele movia de um lado para o outro. De vez em quando quebrava o silêncio com a pergunta: “De que te corto?”. E o benzido respondia: “De cobreiro brabo”. Isso se repetia não sei quantas vezes. Na verdade, essa era uma prática de feitiçaria, porém tolerado e relevado pela Igreja de Roma, ainda quando ela condene tais práticas em seus livros. Ela não se preocupa em corrigir essas aberrações pagãs no povo, as quais se perpetuam como sendo a plena verdade de Deus. Para ela, quanto mais ignorante for o povo, mais estará sob seu domínio. Em tudo isto existe um terrível pragmatismo: “O que importa é que funcione”. E assim o povo nasce, cresce e morre na prática dessas coisas. Se um demônio fizer algum milagre, então nos valhamos dele. Não importa quem o faça, contanto que o milagre seja feito. Ao mesmo tempo, na temporada de congada, esse mesmo tio fazia parte dela com um pandeiro e vestido a caráter. Se alguém lhe perguntasse qual era sua religião, a resposta seria: sou católico romano. Da religião de Jesus, propriamente dita, como se encontra na Sagrada Escritura, ele não conhecia praticamente nada, além de uma mínima e precária noção. Assim também nós da família. De Jesus, o que sabíamos vinha da tradição da festa de Santos Reis. Essa tradição, comparada com o ensino bíblico, não passa de um paganismo mascarado. Tem muito pouco de cristianismo. Por exemplo, nela se pede esmola para Santos Reis. Ora, se eles foram reis, por que precisariam de esmolas? Eles é que deram presentes a Jesus. Mas, na congada, eles recebem doações dos “fiéis”. Se as chuvas tardavam e a seca prejudicava as pastagens e as lavouras, havia uma procissão promovida pela vizinhança, em determinado lugar onde
houvesse um cruzeiro (cruz de madeira fincada em algum lugar); caminhando e rezando com cânticos plangentes, levando cada um uma pedra pesada sobre a cabeça, portando uma garrafa de água para ser derramada aos pés do cruzeiro, depondo também ali aquelas pedras, simulando um sacrifício para que Deus mandasse chuva. Na verdade, para a crença popular, quem manda chuva não é Deus, e sim São Pedro. Quantas vezes eu ouvi meu pai, no preparo da terra para o plantio, olhar para o céu sem nuvem e sol escaldante, e de repente formavam no horizonte nuvens promissoras de chuva, elevava ao céu um grito bem alto: “Manda chuva, mãe de Deus”; ou “Manda chuva, São Pedro”. E se a chuva chegava, rezávamos, atribuindo a bênção a algum santo, principalmente a São Pedro, o santo que faz chover; o santo portador das chaves que abrem todas as portas — do céu e da terra. Ninguém atinava para o fato de que, antes que São Pedro ou a “mãe de Deus” viessem ao mundo, quem mandava chuva? Quem fazia chover? E assim Deus era privado do louvor daquelas bênçãos que promanam unicamente dele como o onipotente Criador e Mantenedor de todas as coisas, e não dos anjos ou dos santos que são meras criaturas. E assim as criaturas são glorificadas no lugar do Criador, contrariando todo o ensino da Santa Escritura. A Bíblia afirma que essa blasfêmia é imperdoável. Lemos no profeta Isaías que Deus não permite que sua glória seja dada ou atribuída a outrem, a saber, a uma criatura (Is 42.8). No entanto, sem o Santo Livro aberto e lido não é possível discernir estas grandes verdades a fim de espantar as trevas da ignorância. Minha alma exulta quando me vem à mente aquele dia em que comecei a ler e a conhecer a Santa Escritura e bani de vez as superstições pagãs de minha vida. Por exemplo, gostava de ver os religiosos traquejados desfiarem o rosário. Iam passando as contas e rezando “padre” nosso, Ave Maria, Salve Rainha etc. Achava admirável ver a habilidade desses religiosos que repetem essas coisas como papagaio. Sem o conhecimento da Santa Bíblia, eu não tinha a menor noção se aquilo era de fato legítimo na religião de Jesus. Eu cria que sim. Somente quando vim a conhecer a revelação divina nos patriarcas, nos profetas e nos apóstolos é que cheguei à conclusão da brutalidade desse costume inserido numa religião que é tida como a única e verdadeira Igreja de nosso Senhor. Então tentei visualizar os apóstolos desfiando o rosário, passando cada conta e rezando “Padre” nosso, Ave
Maria, Salve Rainha. Só de pensar causa estupor. As orações deles eram simplesmente feitas ao Deus Eterno em nome do Senhor Jesus. Foi assim que o povo de Deus aprendeu dos patriarcas e dos profetas. Sobretudo do próprio nosso Senhor. Quando os apóstolos sentiram a necessidade de orar corretamente, pediram e o Senhor atendeu, passando-lhes um modelo de oração simples e de extrema beleza e exatidão. Sem mistura, sem sequer um laivo de superstição, aprenderam simplesmente a dizer: “Pai nosso que estás no céu” etc. Que crime medonho mesclar aquela tão bela oração com a invenção dos homens sem escrúpulos. Mais ainda: “os romanistas rezam “Padre” nosso, mantendo a forma latina da palavra Pai, com o intuito de manter seu povo impressionado com esta forma da palavra para assim a identificarem com os ministros da religião romana com o fim de atrair para si mais misticismo e autoridade. A palavra para nós, brasileiros, não é “Padre”, e sim Pai. No dizer de Paulo: “Abba, Pai!”, isto é, “Papai ou Paizinho”. Isso revela a origem da religião romana; a cristã é totalmente diferente. Em certo velório, para surpresa minha, os filhos do pai falecido solicitaram-me que abrisse a Santa Bíblia, lesse, falasse e, por fim, orasse. Com muito tato, terminei solicitando a todos que me acompanhassem na repetição do Pai nosso. Ao terminar, ouviu-se uma voz afetada pela indignação, quase aos gritos, rezando a Ave Maria. Para aquela mulher, em sua plena ignorância da Santa Bíblia e com os vícios pagãos do romanismo, terminar aquele momento só com o Pai nosso ensinado por Jesus era revoltante. Sem saber, ela praticava ali uma das invenções pagãs mais revoltantes do romanismo. Passando os olhos de raspão, vi algumas mulheres desfiando cada uma seu rosário. Com isso, sem o saber, estavam desprezando a Palavra de Deus lida e explicada e a própria oração que Jesus ensinou aos discípulos e, extensivamente, a todos nós. Sem tecer muito comentário acerca da “semana santa”, cuja prática do povo, principalmente naquela época, estarrece até mesmo àquele que possui um elementar conhecimento da Santa Bíblia, vou apenas mencionar o trivial. Em minha infância, na “sexta feira da paixão” não se banhava, não se cortava unha, não se penteavam os cabelos, não se varria a casa, não se ordenhavam as vacas, pois a crença era que, em vez de leite, saía sangue das tetas das vacas; não se podia assoviar, muito menos cantar as canções da época; não se podia matar sequer uma pulga. Sem falar de comer carne, pois nem se podia
imaginar tal monstruosidade. Todos tinham que comparecer à procissão do “Senhor Morto”. Os mais carolas exibiam todos os tipos de mortificações ou flagelações, inclusive percorrer longa distância se arrastando de joelhos. Aquelas procissões constituíam um verdadeiro teatro. A igreja romana manteve o povo nessa cegueira por séculos e mais séculos, até hoje. E, assim, aquele não era um “dia santo”, e sim um dia de tortura, pois ninguém sabia ao certo que “lei de Deus” estaria transgredindo. Ninguém sabia que aquela não era a lei de Deus, e sim uma tradição romana. Mas, o que mais afetava o povo era a espera do “sábado de aleluia”. Aliás, toda a sexta feira santa transcorria como se fosse um pesadelo. Era um período pesado demais! O que todos queriam mesmo era aquele sábado em que se queimava o “Judas”. Fazia-se um boneco ao qual davam o nome de “Judas”. Fazia-se uma grande fogueira em torno daquele boneco e festejavase em torno dele com instrumentos e danças, com gritos e xingamentos contra a pobre figura que nem mesmo podia responder. Era uma turba em algazarra que outra coisa não era senão “Judas”, pois não possuíam o verdadeiro Jesus que salva, e por isso seguiam em frente como o Judas da história que se foi e se perdeu para sempre. Ao queimarem o “Judas”, queriam dizer que jamais teriam vendido o Senhor Jesus. É preciso uma ignorância muito intensa para chegar-se a tal conclusão. Ninguém aprendia que, na verdadeira história, Judas foi uma figura que arranca do leitor do Santo Livro comiseração e não folguedo. Nossa vontade é de saltar aquelas páginas que falam dele. E por quê? Porque cada um de nós tem um pouco do Judas bíblico que traiu e vendeu nosso Senhor. Quando passei a ler a Santa Bíblia e cheguei a essas páginas, qual não foi meu susto! Então percebi em que oceano de cegueira e iniquidade os religiosos são mantidos pela Igreja de Roma — e eu era um deles! Em vez de lerem o Santo Livro, de se quebrantarem, de se penitenciarem genuinamente, de buscarem o perdão divino, seguem em frente em sua ignorância, praticando aquelas tradições com suas aberrações que não levam a nenhum conhecimento cristão que edifica a alma.
3.1. Pouca noção de Deus e nenhuma da Bíblia No entanto, esse foi o substrato religioso que eu e toda a família recebemos desde a infância. Não tínhamos nenhum conhecimento consistente
de Deus e de sua religião na Bíblia. Na verdade, era tudo muito nebuloso e sem explicação. Estritamente falando, ninguém orava, apenas repetia, como papagaio, as rezas que haviam aprendido sem qualquer discernimento, só porque essa era a “tradição” da igreja; só porque todos faziam as mesmas coisas. Se uma prática é antiga, então é verdadeira. Nos dias de Jesus, os udeus também tinham suas tradições, as quais tinham como sendo verdadeiras por sua antiguidade, e ele as condenou severamente: “E assim invalidastes a palavra de Deus, por causa de vossa tradição” (Mt 15.6). De fato, quando depositamos nossa confiança nas tradições humanas, o ensino do Santo Livro é substituído e destruído. O homem natural odeia a Palavra de Deus e põe todo seu coração nas invenções religiosas. O romanismo é sinônimo de “tradição”, e o que o mantém em pé é essa “tradição”, e não a viva Palavra de Deus. Ela substituiu a verdadeira Palavra de Deus constante nas páginas do Santo Livro e manteve somente a tradição, levando o povo a amá-la como sendo a verdade de Deus, quando não passa de mentira engendrada ao longo dos séculos! Os religiosos não suportam a Palavra de Deus, pois esta é frontalmente contra as invenções humanas no campo da religião. E assim não passam de escravos de um sistema romano de religião. Aquela era uma genuína miscelânea religiosa. A verdade, propriamente dita, continuava sepultada nesse amontoado de crença e prática religiosa. O fanatismo religioso sem o conhecimento racional da verdade é desastroso e destrutivo. Não é sem motivo que alguém chamou a ignorância de “a mãe da superstição”. Aquele era o mundo religioso que não deixava nenhuma cultura realmente cristã na vida do povo. Todos se aferravam a essas crendices, praticadas todos os anos, e criam que elas eram a plena expressão da verdade divina. Todos nós íamos para a cama, levantávamos de manhã, labutávamos o dia inteiro, numa rotina sem fim, sem jamais conhecer e praticar sequer uma frase do Santo Livro. Os sacerdotes não estimulavam o povo a ler este Livro maravilhoso. Hoje, pelo menos, distribuem-se porções selecionadas da Bíblia. É óbvio que não é suficiente, pois eles mantêm o povo fora da Palavra de Deus em sua totalidade, porém o povo tem o que não tínhamos naquele tempo.
3.2. Ausência de curiosidade
Desde cedo comecei a indagar por que os religiosos não perguntam se o que creem é certo ou errado. Não fazem certas perguntas básicas cujas respostas corrigiriam suas aberrações religiosas. Com o tempo, eu aprenderia que seu comportamento é oriundo do ensino da igreja romana; a saber, o “fiel” não precisa indagar sobre nada existente na religião, pois a igreja romana é infalível; não pode errar; o que ela ensina é a plena verdade. Quando ela ensina uma coisa, cabe ao “fiel” obedecer sem fazer pergunta se é certo ou não, pois tudo o que ela ensina é correto. Ela tem a inspiração do Espírito Santo para ensinar o que quiser; e o que ela quer, isso é compulsório. A Igreja de Roma chama isso de “fé implícita”, isto é, fé na igreja. Aliás, aprendem que a curiosidade na esfera da religião é pecaminosa. Quando alguém se mostra curioso, significa que Satanás está por trás insinuando a dúvida. Este é um dos artifícios da Igreja de Roma para manter os “fiéis” em seu redil, cegados e enganados. À luz da Santa Escritura, aprendi que tal ensino é diabólico, pois barra o religioso de ir direto à fonte — a Santa Escritura. Basta ler Atos dos Apóstolos 17.10-15, o que fizeram os bereanos quando ouviram Paulo pregar o evangelho. E o apóstolo não os teve por desrespeitosos para com sua pregação. Ao contrário, aquelas pessoas foram tidas por “nobres”. Querer saber e aprender o certo não é blasfemo; pelo contrário, é nobreza de espírito gerada pelo Espírito de Deus. Blasfemo é aferrar-se ao erro sem querer aprender o certo. Esse é um ensino terrível perpetrado na e pela igreja romana, pois elimina da pessoa o interesse em aprender o certo e expurgar os erros religiosos de sua vida. E assim o religioso segue seu caminho mergulhado nas trevas espirituais, sem nunca aprender aquela verdade bíblica que a igreja romana diz possuir, porém não pode dar, porque de fato não a possui e ainda veta o acesso direto à Santa Escritura. Sim, as porções bíblicas que hoje são distribuídas com os praticantes da religião são bem selecionadas, cujo intuito é manter os “fiéis” afastados da inteireza do Santo Livro, pois neste Livro há doutrinas que esmagam a crença dos meros religiosos. E assim o ensino dos patriarcas, dos profetas, dos apóstolos, particularmente de nosso Senhor Jesus Cristo, em sua inteireza, é em grande medida barrado pelas trevas da ignorância. O Senhor quis tirar-me de lá e guiar-me por um caminho totalmente diferente e novo: o conhecimento de sua Palavra diretamente da fonte. Era a divina Providência que guiava meus passos.
4. Primeira menção da Bíblia
4.1. Formação religiosa de Tupaciguara Tupaciguara, que significa “terra da mãe de Deus”, como até hoje, é uma cidade que segue estritamente o ensino da Igreja de Roma. Seu templo é uma verdadeira obra de arte. Depois que nos mudamos para a cidade, esporadicamente eu frequentava as missas, as quermesses, as procissões, as quais não me ensinavam praticamente nada de valor realmente espiritual e perene. A única vez que ouvi e guardei algo durante uma missa foi a leitura bíblica e explanação que um jovem padre fez da parábola da ovelha perdida. Minha necessidade espiritual era tão profunda e desértica, que nunca esqueci até mesmo a aparência e os gestos daquele jovem sacerdote. No entanto, nada entendi do propósito daquele santo ensino de nosso Senhor, porque nunca mais ouvi ali uma leitura e explanação como aquela. Toda a missa era feita em latim. O povo permanecia jejuno da verdade bíblica. Certa vez, quando menino, ouvi a menção da “Sagrada Escritura” — “como está escrito na Sagrada Escritura” —, porém não entendi o que a expressão significava. Repito, minha carência espiritual era tão intensa, que aquela simples menção jamais saiu de minha mente, ainda quando nada entendesse e não houvesse nenhuma outra referência a ela e ninguém abrisse a boca para explicar-me, uma vez que também ninguém o entendia. Fiquei com a expressão bailando em meu espírito — “Sagrada Escritura”. Por que Sagrada? Por que Escritura? Se é sagrada, por que ninguém conhecia esse livro e nem mesmo o via? Por que ninguém o possuía em casa? Na verdade, na concepção da cúria romana, basta que a igreja possua o santo volume, fechado como um talismã mágico; ele é tão sagrado, que mesmo fechado abençoa e espanta os males da casa e das pessoas. Isto constitui uma crassa superstição. E assim o povo não tem como entender seu conteúdo e continua possuindo um conceito supersticioso da Bíblia. Ensinava-se que somente os sacerdotes têm acesso a esse santo conteúdo — e é suficiente. E o povo aceitasse isso como suficiente. Tive que conviver com essas indagações até aos dezoito anos, quando pude ter diante dos olhos e em minhas mãos a “Sagrada Escritura” e lê-la pessoal e livremente. Mas ela não me foi dada pela Igreja de Roma, que é
sempre tida como a única e verdadeira religião de Jesus Cristo, a única depositária da verdade eterna, a única que pode, com toda veracidade, explicar o conteúdo desta “Sagrada Escritura”. Certamente, se eu permanecesse nela, jamais teria conhecido a plena verdade como conheço hoje! Portanto, toda a herança espiritual e bíblica que recebi foi fora dos muros da Igreja de Roma. Bem mais tarde, quando já me encontrava sozinho, certo crente mencionou a Sagrada Escritura para condenar-me por ser cantor de música caipira. Ele me disse: “A Sagrada Escritura diz: Ai dos cantadores e encantadores”. Até hoje estou à procura deste texto bíblico, e ainda não o encontrei. Os crentes devem ter o máximo cuidado de não citar erroneamente algum texto da Sagrada Escritura. Esse descuido gera confusão na mente de quem ouve. Mas a Providência guiava meus passos.
4.2. Profundo e inerente senso religioso Vale dizer ainda que eu sempre tive acentuado senso religioso. Havia na religião coisas que me assustavam; mas é como se eu quisesse aprofundarme nos estudos da religião. No entanto, o tempo passava e eu não conseguia deparar-me com algo direto e consistente no campo de alguma religião. De muitos ouvia coisas que para mim nunca se tornavam concretas e reais e não me satisfaziam plenamente. Era como aquela ciganinha criada por uma família não cigana, a qual subia a uma elevação próxima à casa para olhar ao longe e meditar sobre algo que ela mesma não conseguia discernir. Pois não sabia que era cigana. Em seu ser inerente, ela sentia saudade de algo que lhe era totalmente desconhecido das cognições mentais, mas que lhe era conhecido das cognições da alma e natureza.
5. Guardado e preparado pelo Espírito do Senhor Mais tarde passei a ponderar sobre o grande mistério de Deus não ter pressa que alguns aprendam logo a verdade de sua revelação. A pergunta: Por que Deus demorou tanto? Resposta: É porque “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu” (Ec 3.1). Nesse ínterim, ele me poupava de cultivar ou de devotar-me a uma religião humana qualquer, que não proviesse de sua ação direta e de seus eternos propósitos. Daí, até então eu não aderira a nenhuma seita religiosa. Todavia, ele não permitiu que eu continuasse na obscuridade e ignorância de seu Ser e de sua Verdade revelada. Outro detalhe importantíssimo: quando me deparei com a verdade divina, não procrastinei por causa de minhas crenças anteriores, como muitos fazem, me apegando teimosamente às crenças de meus pais e às tradições da Igreja de Roma. Creio que desde a infância ele me preparava e também preparava o solo de meu futuro para desenvolver em mim algo consistente e perene. Digamos que tudo me encaminhava para a realização de algo muito grande, mas eu teria, antes de tudo, que decidir sobre algo supremo. E que algo grande seria esse? Ser o tradutor de obras teológicas de cunho reformado, principalmente as do Reformador João Calvino. E que algo supremo seria esse? Conhecê-lo como ele é na revelação divina; conhecê-lo na salvação pessoal e no serviço a ele prestado. No entanto, nesse tempo eu não tinha e nem poderia ter a menor noção dessas duas coisas.
5.1. Preparação para a vida O adágio, “ninguém nasce feito”, certamente é o produto da ponderação dos antigos. Usando um exemplo, Moisés viveu 40 anos no palácio de Faraó, mais 40 anos no deserto como pastor dos rebanhos de seu sogro Jetro, antes de assumir, por mais 40 anos, o pastoreio do povo de Israel pelo deserto até as proximidades da Terra Prometida. Jesus chamou homens que o acompanhassem por três anos como seus alunos; depois disso tiveram que ser revestidos pelo poder e sabedoria do Espírito Santo, antes de saírem pelo mundo anunciando o evangelho e as doutrinas do divino Mestre e arrebanhando outros alunos. Eles mesmos
tiveram em sua escola alunos que aprendessem os profundos mistérios da religião de Jesus. Saulo de Tarso teve que frequentar o seminário do deserto da Arábia, antes de ser o grande Apóstolo dos gentios (Gl 1.17, 18). Aquele que se diz chamado e sai logo para a realização de algo no reino de Cristo, sem o devido amadurecimento, não passa de leviano e equivocado. É outra voz que o chama, e não a do sapientíssimo Espírito do Senhor.
5.2. Separado para uma obra especial Outro detalhe de muita relevância foi o fato de que, quando a verdade veio ao meu encontro e entranhou mente e coração, saturando minha alma, eu não tive ninguém que contestasse a reversão de meu novo caminho. Enfrentei críticas esparsas. Não estava na companhia de alguém que porventura alegasse e dissesse, com autoridade, que eu não devia fazer aquilo. Isto é, eu não tinha em meu caminho nenhum empecilho que obstruísse meus passos rumo ao Cristo verdadeiro e à sua eterna Palavra revelada e escrita. É óbvio que o Espírito do Senhor pode remover qualquer obstáculo imediatamente, e isso às vezes ocorre, como no caso de seus primeiros discípulos; em meu caso, porém, nada foi imediato; houve a preparação do caminho. A Providência estava sempre permeando minha trajetória aparente ou humanamente confusa. Pois as operações divinas costumam ser feitas no meio das confusões humanas.
6. Fragmentação da família
6.1. Ponto de partida Para se compreender melhor o que digo, meus pais não conseguiram continuar juntos. Assim que nos mudamos do campo para a cidade, então começou também a desastrosa descida morro abaixo rumo ao esfacelamento irreversível da família. Ele alugou uma casa, nos colocou ali e voltou sozinho para o campo. Sua vida solitária, distanciada de esposa e filhos, foi desagregando paulatinamente também os laços e afetos familiais. A princípio, ele abastecia a casa; mas, com o passar do tempo, isso foi rareando cada vez mais, até que já não tínhamos o que comer, pois nenhum de nós tinha ainda uma profissão certa, definida e rentável. Com isso, houve também a desagregação dos laços fraternos entre os irmãos, pois os mais velhos foram saindo de casa, um após o outro, em busca de sustentação e da composição da própria história. Três saíram de casa e cinco ficaram com a mãe que lutava de todas as formas para dar aos filhos o pão de cada dia. Estritamente falando, às vezes nem mesmo o “pão de hoje” nos era dado.
6.2. Empregos e desempregos Nesse ínterim, eu me sentia à deriva; trabalhei numa frutaria, e o patrão me despachou para não continuar comendo suas frutas, pois a fome me forçava a isso. Trabalhei em um mercado, cujo proprietário também me despachou quando me apanhou enfiando a mão na gaveta do dinheiro. Foi então que um colega que trabalhava numa ferraria me aconselhou que procurasse o proprietário e lhe pedisse emprego. E assim passei a trabalhar naquela oficina onde aprendi o ofício de ferreiro. Trabalhei ali durante cerca de seis anos. Ganhava muito pouco. De vez em quando chegava em casa e não encontrava nada para comer. Voltava para a oficina de estômago vazio, acabrunhado e sem esperança. Às vezes um colega ou outro me dava alguma coisa para comer. Então, foi nesse tempo que meu pai veio à nossa casa para propor à nossa mãe separação definitiva.
7. Dispersão final da família Esse foi um tempo de desfibramento psicológico e existencial. É quando um adolescente não consegue ver nada de positivo diante de si. Então, costuma-se tomar o caminho que conduz à destruição por meio dos ambientes nocivos, das drogas e tantos outros vícios que corrompem e destroem toda a natureza. Se bem que tentei o vício da bebida, do tabaco e da gatunagem. Aliás, eu tive tudo para seguir o caminho da marginalidade e delinquência. Naquela encruzilhada, eu poderia seguir qualquer das três direções que jaziam diante de mim. Nunca tive dúvida de que em tal encruzilhada a mão do Senhor estava me envolvendo de todos os lados para que não tomasse um rumo irreversível. Ele tinha um propósito para minha paupérrima vida, e assim torná-la uma vida virtuosa e frutífera no caminho do bem. Eu era dele, sem que o soubesse. Uma multidão vive assim até encontrar a definitiva via de salvação. Outra multidão segue em frente e continua sua via de completo esfacelamento da vida.
7.1. Senso de horror Quando os dois discutiram e decidiram, à revelia, pela ótica deles, como viveriam doravante, e o que fazer dos filhos, até hoje me lembro disso com horror. Uma coisa é que os filhos fiquem com um dos dois; outra é que não possam ficar com nenhum. E isso se deu com dois dos filhos. Naquele momento, foi como se minha alma morresse dentro de mim. Foi o momento mais tenebroso de minha existência terrena. Os três acima de mim, Maurício, Maurílio e Maria, já viviam suas vidas mais ou menos independentes; dois, Marcelúcio e Manoel, ficariam com o pai; e Marília, a caçula, ficaria com a mãe. Era o máximo que podiam fazer.
7.2. O que fazer dos outros dois filhos? Sim, e os dois filhos do meio — Valter e Marcely? O que fazer deles? Provavelmente confabularam sobre isso. Marcely era aprendiz do ofício de sapateiro; e Valter, do ofício de ferreiro. No entanto, nenhum dos dois tinha subsistência própria e suficiente. Ambos eram componentes da família;
ambos necessitavam do apoio paterno e materno; ambos eram ainda adolescentes. Como não podíamos viver com o pai nem com a mãe, ele se ajeitou na cidade e eu fui levado para uma fazenda, à revelia, sem poder tomar parte na decisão, sem propriamente ser consultado, sem nem mesmo expressar sua opinião e vontade. O pai combinou com o fazendeiro e fui deixado ali, sem qualquer orientação e planejamento; na verdade, sem entender nada. Fui deixado naquela casa estranha, entre pessoas que não tinham nada a ver comigo, como um intruso. Nem mesmo éramos conhecidos. Obviamente, nada havia que contribuísse para dar certo; e realmente não deu certo. Aquele homem, com razão, sem nenhuma cultura para compreender o garoto, disse a meu pai que me levasse dali. Mas, para onde? Ele havia encontrado meu ex-patrão na cidade, informando-lhe que gostaria que eu voltasse. Temerariamente, peguei minha “trouxa”, tomei um ônibus e voltei para a cidade. Até hoje me estarreço só em lembrar o que aconteceu na trajetória. Naquele tempo, criança não pagava passagem. Mesmo adolescente, minha estatura era pequena para a idade. Entrei e me sentei em uma poltrona da “jardineira” — designação que naquele tempo se dava a um ônibus de pequeno porte. Então, veio o cobrador e foi me entregando a passagem. Estremeci. Disse-lhe que não tinha dinheiro. Então, gritou ao motorista que parasse o ônibus para eu descer. Estávamos em pleno cerrado. Não se via nenhuma casa. Tomei minha “trouxa”, levantei-me e me dirigi à porta do ônibus já estacionado. Nesse ínterim, uma voz masculina ecoou dentro do veículo. “Um momento! Vocês vão deixar esse menino sozinho na estrada deserta?” O cobrador respondeu: “Isso é problema dele. Devia ter trazido dinheiro para pagar a passagem”. Então, aquela voz ecoou pela segunda vez: “Sigam a viagem, porque eu pago a passagem desse menino, pois me sinto envergonhado com o ato de vocês”. Olhei pela primeira e única vez aquele benfeitor, ao qual nem pude dizer “obrigado”, pois estava profundamente aterrado. Nunca mais eu veria aquele homem.
7.3. De volta à ferraria Ao chegar à cidade, procurei o dono da oficina de ferraria e pedi que me deixasse trabalhar ali novamente, e lhe expliquei minha situação. E assim acertei com ele certo salário. Muito bem, e onde comer e dormir?
Inicialmente, um colega de oficina me levava para tomar refeição em sua casa, aborrecendo sua bondosa e caridosa mãe. Nesse ínterim, encontrei uma pensão onde podia pelo menos dormir. Sem dúvida, era impossível que aquele colega continuasse fazendo aquela caridade perenemente; então passei a tomar refeição também naquela modesta pensão sem condições de quitar o valor mensal da hospedagem. Tive que emendar o dia com a noite, com trabalho extra, a fim de ressarcir a dona da pensão. Como meu salário ainda não era suficiente para cobrir toda a despesa, meu patrão, informado de minha situação, sentindo pena de mim, “esticou” meu salário, completando o que faltava para a despesa da pensão. Eu haveria de trabalhar naquela oficina mais ou menos de 1954 a 1960. Residi naquela pensão de 1955 a 1960. Meu patrão era um homem muito promíscuo e sovina, porém o Senhor vergou seu coração para que usasse de bondade para comigo. Quantos na história, ainda que péssimas pessoas, o Senhor moveu e move o coração para estender a mão a alguém que era ou é alvo dos planos divinos?! A imagem daquele homem ainda está impressa em minha mente como parte desse misterioso plano. Eu não sabia; tampouco ele! São as misteriosas veredas da Providência, previamente desconhecidas daquele que é alvo da misericórdia divina.
7.4. Amigo Zico Trabalhava duro e imerso numa profunda mágoa existencial e total desilusão. Meu único amigo era o Zico, vizinho, o qual exercia a mecânica com o padrasto. Era um moço muito simples, muito religioso; desde garotos cultivamos amizade, indo eu para sua casa todo fim de semana a fim de fazermos alguma coisa juntos. Aos domingos, saíamos para os campos, ou passeando, ou procurando frutas silvestres, ou pescando em algum ribeirão, ou simplesmente gastando o tempo, pois ele também tinha sua cota de reclamações da vida, porquanto tinha por pai o padrasto e vivia sua adolescência destituída da compreensão inclusive no seio da própria família.
7.5. Dupla caipira Nesse ínterim, resolvemos aprender viola e violão e formar uma dupla caipira. Nossa voz era boa, bem afinada, ele fazendo a primeira e eu a
segunda voz. E assim fizemos. Ele comprou uma viola muito simples e eu, um violão, mais simples ainda. Treinamos muito, entoando canções caipiras da época. Agora tínhamos algo mais concreto para fazer. De sábado para domingo, fazíamos serenata para algumas moças que conhecíamos e não tínhamos coragem de declarar nosso místico afeto. Creio que elas nunca souberam nem ouviam aquelas serenatas. Os seresteiros continuavam no anonimato, cantando para as estrelas! De vez em quando cantávamos nos comícios políticos e nos “pagodes” da zona rural. Fazíamos tudo isso de graça; ninguém pagava nada. Só paramos quando abracei a nova fé. E assim a casa do Zico se tornou a minha casa, além da pensão. E ele se tornou meu irmão mais próximo que meus próprios irmãos. Na época, eu não tinha vivência com nenhum de meus irmãos. A mãe mudou-se, o pai vivia na zona rural; e os irmãos, cada um lidava com sua cota pessoal de dificuldades em busca da sobrevivência e de um futuro mais promissor. Quantas vezes eu tive vontade de encontrar um deles para rirmos ou chorarmos juntos! Mais tarde aprendi aquele adágio que reza: “Onde o filho chora e a mãe não vê”. Com toda a certeza, minha mãe também chorava por lá e eu não via! E eu chorava por cá, e ela nem mesmo ficava sabendo. Quanto ao pai, raramente o via na cidade; e, quando acontecia de vê-lo, era muito rápido. Não me lembro de sequer uma vez ele pôr em minhas mãos algum dinheiro.
8. Encontro dramático Sentindo muita tristeza e saudades da velha mãe, certo dia eu resolvi sair às cegas à sua procura e da irmã caçula. Soube que moravam na cidade goiana chamada Morrinhos. Tomei um ônibus e cheguei lá. Não havia a mínima referência de endereço. Teria que procurar a esmo. Havia certa perplexidade e inclusive temeridade, porém forte esperança de que conseguiria. Uma vez em Morrinhos, teria que fazer duas coisas, e uma delas me convencia de que iria facilitar minhas buscas. A primeira etapa era procurar a estação de rádio para noticiar à minha mãe que eu estava à sua procura. Chegando ali, escrevi a mensagem: “Dona Joana Rosa, seu filho Valter está à sua procura”. Quando ia pagar o custo da mensagem, saiu o diretor e me olhou atentamente, e disse: “Eu me lembro de você; é o Valter filho do senhor Manoel Cota (era o apelido de meu pai onde era conhecido)”. Meu susto foi tamanho, que nem sabia o que responder. Estava atônito. Como era possível alguém ali me conhecer? Naquela cidade eu era totalmente estranho. Quem é você? — perguntei. “Eu sou seu colega de infância, lá no Boqueirão, filho de fulano de tal. Não se lembra? Eu sou o Valterly.” Aquilo era demais para meu coração e mente. Sem articular sequer uma palavra, nos abraçamos com intensa emoção e não consegui sufocar o pranto. Então lhe expliquei minha presença ali. Foi logo dizendo à moça do guichê: “Este é meu velho amigo. Ele não paga! E esta mensagem deve ser transmitida com urgência e repetidamente até que ele encontre sua mãe”. E me levou para sua sala a fim de conversarmos, pois ele tinha também sua própria cota de aventura, e queria que eu o ouvisse. A segunda coisa a fazer era um depósito bancário. Entrei na agência do Banco do Brasil, fiz a transação e me sentei, porque lá fora caía um pesado “pé d’água”. Enquanto a chuva descia torrencialmente do céu, sentou-se unto a mim um senhor de uns cinquenta anos de idade, que me dirigiu a palavra: “Perdoe-me, moço, sou daqui e conheço quase todas as pessoas; você me parece estranho. Sem querer ser indiscreto, posso perguntar de onde você é e o que faz em Morrinhos?”. Quando me encontro só não costumo falar com estranhos, mas havia naquele homem algo indecifrável que me encorajava a atender à sua indagação. Então relatei por alto de onde era e o que viera fazer naquela cidade.
Nenhum dos dois tinha pressa, pois a chuva continuava renitente. Aprofundamos a conversa, e contei-lhe que minha mãe morava com um homem que era funcionário de uma empresa de construção de rodovia. Ele disse que conhecia aquela empresa, e que me levaria lá a fim de encontrar aquele homem. Cedi à minha natural timidez e entrei em seu carro e lá fomos nós. Chegando lá e indagando, ele descobriu que minha mãe morava numa das casas de sua propriedade. Então, perplexo, disse-me emocionado: “Moço, esta história mexeu comigo; eu o levarei à casa de sua mãe”. Assim que chegamos à casa, ela vinha atravessando a rua em nossa direção, saindo da casa de sua amiga vizinha, onde ouvia o rádio e chorava, lamentando que fazia tanto tempo que não via nenhum de seus filhos. Enquanto lamentava e chorava para a vizinha, com o rádio ligado, ouvindo músicas antigas e saudosas, num estalo, se noticiou: “Dona Joana Rosa, seu filho Valter está na cidade à sua procura”. Atônita, ela saiu correndo para sua casa e já nos encontrou no meio da rua. A vizinha também veio para conhecer o misterioso filho que aparecia de uma maneira tão prodigiosa. E foi assim que, depois de tanto tempo, encontrei minha velha mãe e minha irmã caçula, Marília, em meio aos milagres da vida. E digo ainda que narro isto sem exagero, pois tenho que resumir a história para não ocupar muito espaço. Nuca mais veria aquele misterioso homem, que fora instrumento da Providência. Só me lembro que ele era empresário, proprietário de uma cerâmica. Mas posso dizer que nunca mais iria ver uma pessoa totalmente estranha chorar comigo como se fosse meu velho amigo ou irmão. Despedimo-nos com ele me afirmando que contaria a história à sua família e acertaria uns impasses difíceis em sua própria casa. Eu nunca soube do resultado.
8.1. A mão do Eterno Hoje, fazendo um retrospecto, percebo que o Deus eterno abençoava a mim e a meus irmãos. Apesar de tantas peripécias, nenhum de nós mergulhou nos vícios destrutivos deste mundo tenebroso. Todos buscaram viver e vencer as dificuldades no exercício de sua profissão. Um de um modo, o outro de outro, sendo todos abençoados e guardados pelo Onipotente juntamente com suas famílias. Mui raramente nos encontrávamos. Em nome da verdade, se nos encontrávamos era porque eu me esforçava para ir ao encontro deles. Eu
procurava estar presente com eles quando alguém se casava, quando alguém adoecia, quando alguém morria. Misteriosamente, não estive presente na morte de meu pai e de minha mãe; mas isso se deu por força de circunstância. Nenhum deles, exceto Marcelúcio, que um dia passou a fazer parte de minha família e minha fé, me conhecia realmente. Até hoje, eles são perenes desconhecidos meus e eu um perene desconhecido deles. Alguns deles nunca entraram e jamais entrarão em minha casa. Nunca conheci seus caminhos, nem eles os meus.
8.2. Isolamento Deixo impresso ainda nestas páginas um fator muitíssimo doloroso. Em razão do afastamento quase completo, todos nós não conseguimos fomentar ou cultivar amizade e muito menos o amor fraterno. Nunca houve em nós afeição real de irmão para com irmão, mesmo nos esforçando. Por exemplo, certa vez minha irmã caçula, Marília, lamentou-me que não sentia nenhum afeto filial por nosso pai. Ela não tinha consciência da razão para tal disparidade, pois nunca teve vivência com ele. Ela sempre vivera com nossa mãe. Significando que ela, na prática, nunca teve um pai presente. E isso mexia com ela, pois não tinha tal coisa como normal. Ela queria amar ao nosso pai comum, porém não conseguia. Enquanto falava, notei nela uma terrível perplexidade. Encontrar um irmão era pouco mais que encontrar um amigo, e logo sentia que já não havia assunto nem interesse de continuarmos juntos. Para se ter uma ideia, quando me casei, nenhum irmão ou irmã, nem pai e nem mãe estava presente. Com a chegada da nova fé, então, o quadro piorou ainda mais, pois todos eles me tinham como um religioso que traíra a verdadeira religião, que abandonara a religião dos pais e dos antepassados. A princípio, meu pai foi o mais observador. Passou a notar que minha religião não podia ser ruim. Chegou a falar com alguns dos filhos a respeito. Mas isso foi nos bastidores; eu só soube bem mais tarde.
8.3. Os desígnios divinos Hoje, retrocedendo ao tempo, percebo nitidamente que o Senhor me encaminhava para um universo completamente diferente. Ele me abria uma
porta inesperada e totalmente nova. Esta porta me levaria a caminhar por uma estrada também nova e grandiosa. Lemos em Provérbios que “o coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do S ENHOR” (Pv 16.1). Nenhum escolhido escapa à mão diretora do Supremo Criador. Ele dirige a todos sem exceção, porém conduz os eleitos de um modo totalmente exclusivo. Ele governa toda a raça humana com mão e propósito soberanos, porém conduz os eleitos pela mão, até que alcancem sua meta final e não se percam pelo caminho. Enquanto imaginamos que estamos sozinhos e longe do Senhor, seus anjos, de diversas maneiras, sempre às suas ordens, estão ao nosso redor cumprindo seu mando a nosso respeito (Hb 1.14). Mesmo nos piores momentos, não estamos sozinhos nem longe dele. Não somos nós que vamos ao seu encontro, pois não saberíamos fazer isso; antes, é ele mesmo que vem encontrar-se conosco tanto nas estradas aplanadas como nas cheias de curvas e ásperas.
8.4. “O Senhor é o meu Pastor” Retrocedendo a um passado já longínquo, nebuloso, meio apagado, compreendo que ele me conduzia o tempo todo. Ele me preparava o tempo todo. Ele tinha algo grande e importante para eu fazer, quando eu sequer tinha a mínima consciência disso. Durante um tempo em que nem mesmo esperava por ele, ele velava por mim e me conduzia pela mão a fim de tornarme maduro para uma grande obra. Todos os percalços que eu enfrentava vinham dele, como seu aluno em sua divina escola, e ele como meu Supremo Professor. Como está escrito: “O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará” (Sl 23.1). Ora, nos faltam tantas coisas; como entender esta declaração de fé? Significa que, tudo quanto nos basta para a sobrevivência, ele no-lo dá, pois, na realidade, necessitamos apenas de uma coisa: que o Senhor eterno seja o nosso Deus! E ele era o Deus do salmista. De que mais ele necessitava? Tendo o Senhor como o nosso Deus, temos tudo! Seu pastoreio é zeloso e leal. Ele não falha.
SEGUNDA PARTE: DESCOBRINDO O EVANGELHO
Depois de viver naquela pensão cerca de três anos, passei a aceitar aquela casa como minha própria casa, e cheguei à conclusão de que aquela pensão seria minha moradia por muito tempo. Quero dizer que esta ideia se aninhou em minha alma. Às vezes ocorria que no fim do mês eu não tinha o suficiente para quitar completamente a mensalidade. Às vezes ficava devendo um pouco; e às vezes a dona da pensão tinha que lembrar-me da dívida. Na verdade, dona Carmelinda (“Bilinda” para a família) era mui paciente para comigo. O sustento de sua família dependia daquela hospedaria. Então eu tinha que fazer uma tarefa extra na oficina para também ganhar um dinheiro extra. E assim se passaram cerca de cinco anos, de 1956 a 1960. Tudo estava encaixado em Os caminhos da Providência. E esta Providência me impelia sempre para frente. Esses foram anos longos e difíceis. Mas o Senhor tinha minha mão bem firmada na sua. No momento, porém, eu não via nada de positivo. Não conhecia o exercício da verdadeira fé e a Providência era um elemento totalmente estranho em meu viver. Era tudo escuro e indefinido. Mais tarde aprendi que o Senhor nos guia no escuro sem que o percebamos. Ele está conosco, porém não o sentimos. Para seus filhos, não existem túneis sem um filete de luz no final, nem beco sem saída, a menos que eles sejam míopes. Daí ser impossível que alguém tire a própria vida quando sua mão está segura na mão divina e confia em sua bendita Providência. Somente um desespero incontrolável e dolorosa cegueira para com essa Providência levam alguém a dar cabo da própria vida. Para os filhos de Deus, sempre há um fio de esperança que acaba sendo seu livramento. Eles não têm razão para se deixar dominar por um desespero extremo.
1. A providência segue seu curso
1.1. Retrospecto Mas, recuando um pouco, logo descobri, com muito desgosto, que aquela família era evangélica. Quase toda a família pertencia a uma pequena congregação da Igreja Presbiteriana do Brasil, fundada e sustentada pela missão norte-americana denominada Missão Oeste do Brasil. A metodologia desta Missão era o uso de evangelistas leigos; homens formados em um colégio bíblico denominado Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL); o qual mantinha um curso bíblico de preparação para esse tipo de ministério insipiente, porém eficiente, o qual revelou seu valor na implantação e preparação de novos grupos para que, no futuro, viessem a ser igrejas bem constituídas. E isso aconteceu em várias partes do país, inclusive comigo mais tarde. Nesse tempo, a Missão assumira a responsabilidade daquela congregação com um missionário sediado na cidade de Ituiutaba, também no Triângulo Mineiro, e um evangelista leigo sediado em Tupaciguara. Não conheço bem os primórdios daquela igreja. Assim que cresceu e assumiu a forma constitucional de igreja, então um pastor também assumiu o comando e a Missão a entregou ao presbitério mais próximo. Em meu tempo, passaram por aquela congregação quatro evangelistas (se minha memória não me trai): Armando Bonilha, Francisco Maia, Jair Pires e Waldemar Rose. O primeiro pastor ordenado a assumir aquela igreja foi o Rev. Abel Corte. Mas isso aconteceu quando eu já não estava ali. Portanto, creio que o Evangelista Armando Bonilha foi o primeiro deles. Era um homem realmente evangelista e mais pastor do que muitos pastores. Tão zeloso era, que bem cedinho batia à porta dos membros da igreja para uma visita com cafezinho, oração e leitura da Santa Escritura. Era um homem expansivo, brincalhão e muito simples. Tanto que chegava às raias do exagero. Não o conheci bem durante aquele tempo, pois quando me ingressei na igreja ele já havia saído, e fora substituído pelo evangelista recém-formado no IBEL, Francisco Maia, natural de Ituiutaba, cidade vizinha de Tupaciguara. No entanto, de vez em quando eu via o vulto de Armando Bonilha
entrando naquela pensão para sua visitação rotineira. Assim que o via, eu saía pelos fundos e só voltava depois de calcular bem que ele já havia ido embora. Tão profunda era minha timidez e aversão por qualquer religião que não fosse a católico-romana. Digo isso para que ninguém conclua que o que eu fizera, mudando de religião, foi um impensado ato de leviandade ou de interesse escuso. De tal modo que nunca o encontrei em nenhuma de suas visitas àquela pensão. Só o conheci e me relacionei com ele bem mais tarde, quando das reuniões anuais da Missão, e isso depois que eu também já era evangelista.
1.2. Encontro “fortuito” com dois livrinhos Certo domingo, os dois filhos da proprietária da pensão chegaram da igreja com dois livrinhos, os quais me entregaram para que eu os lesse — o Evangelho de São João e o Evangelho de São Marcos — era o que se lia nas capas. Não me lembro precisamente como, mas desde criança eu aprendera que havia certa “reza braba” que os benzedores usavam — assim diziam — chamada “Oração de São Marques”. Evidentemente, essa reza não fora extraída de São Marcos, o segundo Evangelho canônico que compõe os quatro Evangelhos que abrem o Novo Testamento, mas eu ainda não tinha tal conhecimento; e assim misturei os dois “santos” e senti medo daqueles dois livrinhos. Imaginei que poderiam ser livros de feitiçaria ou coisa parecida, muito embora desde criança eu vivesse envolvido com essas coisas religiosas. Aqueles meninos nunca souberam, mas às escondidas joguei fora os dois livrinhos sem ler sequer uma vírgula em seu interior, nem mesmo os folheando; só li o que constava na capa. Mais tarde compreendi que quem distribui alguma literatura bíblica precisa cultivar muita paciência e habilidade ao passar o evangelho às mãos das pessoas que vivem em profunda superstição e pertencem a uma religião que não ensina a verdade divina, retendo o povo na ignorância. O fanatismo religioso cega os olhos da alma dos incrédulos, mantendo-os na escuridão.
1.3. A paciência e persistência divinas O fato doloroso é que continuei na ignorância da Palavra de Deus, pois ainda não havia chegado o tempo. Segui em frente sem imaginar, nem de
leve, que meu “destino” era justamente aquele — aprender e ensinar o conteúdo dos Evangelhos. Na verdade, o que aqueles meninos fizeram não foi em vão. Com seu gesto, eles deixaram em minha alma uma marca indelevelmente impressa em minha consciência. Mais tarde eu tomaria posse do conteúdo de São Marcos e São João e os ensinaria com largueza a milhares de pessoas. Desde cedo compreendi o quanto Deus é paciente para com seus eleitos ainda perdidos, aqueles que na eternidade foram destinados à salvação eterna, cujos nomes já estão escritos no Livro da Vida, mas que, no curso do tempo, continuam ainda nas densas trevas da ignorância e perdição. Já são candidatos à glória eterna, porém não o sabem e inclusive relutam por algum tempo em aceitar. Para quem conheceu de antemão Saulo de Tarso, era impossível prever que ele já fosse um predestinado de Deus para a glória eterna e para tornar o cristianismo mui glorioso sobre a terra e, assim, glorificar o Nome de Jesus Cristo. Naquele tempo, se alguém profetizasse que eu viria a ser um servo de Cristo, eu gritaria que tal coisa amais aconteceria.
1.4. Perseguição Como aconteceu nos primeiros dias do cristianismo, quando o mundo inventava todo tipo de conceito absurdo acerca dos cristãos primitivos, assim também um dos recursos diabólicos da religião subjacente, nos dias de minha uventude, era que os crentes evangélicos são seguidores do diabo; por isso e por outras razões, eu fomentava em meu íntimo profunda aversão pelos “crentes”; melhor, eu nutria profunda aversão pela religião deles. Foi-me ensinado diretamente, com todas as letras, por minha família, meus amigos e pela Igreja de Roma, que ficasse longe dessa praga maldita. Aprendi que não existe religião verdadeira fora da Igreja de Roma. De vez em quando chegava às minhas mãos folheto difamando e caluniando os “protestantes” (assim então conhecidos). Os sacerdotes escreviam coisas horríveis sobre os “protestantes” para manter seus paroquianos longe da verdade cristalina da Santa Bíblia. Sempre encontrei alguém que afirmasse de uma maneira contundente que a única religião verdadeira, que existia, existe e existirá para sempre, séculos após séculos, é a Igreja Católica Apostólica Romana. Não importa se você sabe muito ou nada de religião; o que importa é que você creia na Igreja Romana e lha obedeça como nossa mãe, porquanto ela é nossa
única mãe espiritual. Aprendi ainda que fora dela é impossível que alguém encontre a salvação. Pior, aqueles que me falavam essas coisas eram pessoas perdidas em densas trevas, que não tinham nada de verdadeiro para me ensinar. Eram pessoas que nada sabiam do Jesus Cristo dos Evangelhos. O Cristo que conheciam era o do crucifixo, eternamente pendente da cruz. Era como o Cristo do Corcovado, eternamente de braços abertos, porém sem ser outra coisa além de um bloco inerte de pedra. O Cristo vivo, proclamado pelos apóstolos e depois pela Igreja Primitiva, lido nas páginas da Santa Bíblia, era um perene desconhecido, como o Deus anunciado por Paulo em Atenas: “O Deus Desconhecido” (At 17.23). Esse mesmo Deus continua sendo desconhecido em todo o Brasil. Infelizmente, nossa pátria é pagã, com pouca exceção. Não é a maioria que segue a Igreja de Roma, e sim a minoria.
1.5. O doloroso efeito da superstição Eu ainda não havia tomado ciência da verdade de Deus contida na Santa Escritura. Só mais tarde é que penetrou em minha mente a luz do Espírito Santo. Eu não sabia que a superstição destrói qualquer conhecimento da revelação escrita de Deus. Ela é inimiga da verdade divina. Não havia atinado ainda que o romanismo é sinônimo de superstição e de adulteração da religião de nosso Senhor Jesus Cristo. Para o romanismo, a religião de Jesus Cristo, em sua pureza, não representa a verdade revelada de Deus na Santa Escritura e em Jesus Cristo; para ele, esta não é a religião pura de nosso Senhor. Para ele, a religião de Jesus é a Igreja Católica Apostólica Romana e suas tradições; ponto final. Ao longo dos séculos, o romanismo foi perdendo a herança da verdade. O que inventou no campo da religião foi aos poucos substituindo a verdade pura registrada na Santa Escritura. Com o passar dos séculos, ele foi deixando de ser o cristianismo apostólico. A verdade cristalina é que eu vivia fugindo da verdade real que liberta, que sara, que ilumina, que guia na vereda certa e que nos conduz ao Senhor Jesus. Viver em densas trevas espirituais é viver sem Jesus Cristo, que disse: “Eu sou a luz do mundo”. Ele não disse “eu sou um dos luzeiros do mundo”; ele usou os artigos definidos a e o: a luz, o caminho, a verdade, a vida. Ele não disse: Busquem a luz, ou o caminho, ou a verdade, ou a vida em minha igreja; somente ela pode conceder essas
gloriosas verdades. Mas eu não sabia disso; tampouco a Igreja de Roma me ensinou isso. Tive que esperar o tempo de Deus para aprender e degustar isso pessoalmente nas páginas da Santa Escritura.
1.6. Instrumento de Deus O fato é que vivi naquela pensão sem nunca deixar-me “contaminar” por outra crença, além do espiritismo e romanismo, estreitamente irmanados, até o dia em que a irmã da proprietária da pensão, Avelina, me surpreendeu com o convite para acompanhá-la à sua igreja, pois estava sem companhia e ela não queria fazer aquele percurso sozinha. No momento, não podia perceber que ela usava de um artifício sugerido pelo Espírito de Deus para levar-me ao templo onde ela e sua igreja cultuavam ao Deus vivo. Aquela moça veio a ser para mim uma irmã que eu não tinha presente. Na verdade, eu tinha duas. Uma já havia desaparecido há muitos anos; só a encontrei depois que eu já era estudante de teologia. A outra era bem pequena e vivia com a mãe. Mais tarde nos encontramos umas poucas vezes. A única vez que ela e minha mãe entraram em minha casa foi depois que eu já era obreiro de Deus, já nos campos missionários e já casado. Aliás, alguns de meus irmãos nunca entraram em minha casa. Sem falar nos sobrinhos, de minha parte, dentre os quais poucos entraram uma vez e outra em nossa casa. Portanto, dizer não para a Avelina me parecia uma rematada ingratidão e descortesia, ainda quando havia aprendido muito pouco destas duas virtudes. Eu lhe respondi com um sim. Era um sábado à noite; a reunião era da mocidade da Igreja Presbiteriana, pois quase toda aquela família era presbiteriana. Lembro-me bem que senti muita dificuldade em adentrar aquele ambiente. Antes de tudo, sempre fui muito tímido — até hoje! Em segundo lugar, eu não queria entrar ali. Não cria que aquele fosse um ambiente saudável. Tinha receio de ser mal influenciado e desencaminhado de minha religião (a qual eu cria ser minha religião!). Então acompanhei Avelina torcendo para que o templo estivesse fechado, ou que não comparecesse ninguém, ou que minha amiga resolvesse voltar no meio do caminho. A Providência iluminava minha vereda; impeliame para frente a contragosto. Nem de longe imaginava que aquela seria a primeira vez e para sempre! Ali estava o que eu procurava, sem saber o que procurava.
1.7. O primeiro encontro com jovens crentes A custo entrei ali e me deparei com um salão nos fundos com um bom número de jovens. Fui apresentado por Avelina. Todos vieram cumprimentarme com alegria bem estampada em seus rostos. O embaraço foi constrangedor, pois todos eram alinhados e eu nem mesmo tinha roupa e calçados decentes para aquele encontro. Isso se deu em meados de 1958, com meus dezenove anos de idade. Portanto, o evangelho veio ao meu encontro, em vez de eu ir ao encontro dele. Ele não ficou à espera de minha reação e decisão ou de minha iniciativa. Enquanto procurava a verdade, ela veio ao meu encontro. Esse é sempre o procedimento de Deus, e não podemos mudar esta ordem. Deixada à sua vontade ou livre-arbítrio, ninguém tem como preparar-se para abraçar a verdade divina. Foi assim que mais tarde li no Evangelho de João estas palavras ditas diretamente por nosso Senhor e as quais abracei como sendo a plena verdade, inclusive para minha experiência pessoal: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37). Mais: “E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu” (Jo 6 .39). Mais:“ Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.44). A causa de irmos a ele é a eleição. Somos impelidos a ir a ele pelo Espírito Santo; a iniciativa não é nossa, é sempre dele. Espiritualmente, estamos, por natureza, mortos em delitos e pecados (Ef 2.1). Se o Espírito não nos vivificar primeiro, jamais teremos disposição de ir a ele e abraçar sua salvação.
1.8. A vontade regenerada Tudo isto li e aprendi bem mais tarde, quando já consciente da soberania do Deus que salva a quem quer, onde quer, como quer e quando quer. Tudo isto se encaixava perfeitamente enquanto a verdade divina se solidificava em minha alma. Costumo dizer que nasci de novo já “calvinista”; ou seja, já com aquela convicção e visão da Santa Escritura que Calvino tanto enfatizou. Aquela experiência foi tal que não conseguiria crer de outra forma.
Daí, a interpretação e abordagem que Calvino fez da Santa Escritura foram de tal contundência, que dificilmente algum outro conseguiria, em razão de sua experiência da impossibilidade humana de o pecador, por si só, crer sozinho, com ou sem o auxílio do Espírito Santo. Para ele, e para tantos outros como ele, o ato da salvação é soberanamente divino e independe da vontade do pecador. O pecador não tem como tomar parte nele, porquanto sua vontade está morta para com Deus. Ele tem a liberdade e vontade de buscar muitas coisas na esfera terrena, porém é totalmente impotente de querer e poder salvar-se sozinho sem a intuição e ação do Espírito de Deus. Tudo isso é muito forte e contrário aos nossos conceitos humanos, mas é a perfeita interpretação do estado do ser humano antes que sua vontade seja regenerada. O mesmo Deus que ordenou e tudo foi feito, é o Deus que ordena a salvação de seus eleitos e a vontade humana não consegue resistir. Creio plenamente que o Espírito do Senhor é soberano no chamado de pecadores para abraçarem a salvação. O que suplanta na aceitação do evangelho por pecadores não é a vontade do homem, e sim a vontade soberana do Eterno sobre a vontade do homem. Louvo a ele por ser assim, pois, do contrário, eu amais teria abraçado o evangelho. O pecado começou na vontade do homem e partiu daí, a qual foi espiritualmente morta já no paraíso. O ser humano continua querendo muita coisa, porém sem querer e poder adquirir por si só a salvação eterna. A regeneração operada pelo Espírito de Deus também começa e parte da vontade humana que é transformada para querer o que antes não queria e poder adquirir o que antes não podia. Aliás, a regeneração espiritual restaura a vontade humana para escolher corretamente o que não poderia fazê-lo antes dessa regeneração. Em outras palavras, a imagem divina, implantada no homem na criação, foi destruída ou danificada pelo pecado. Na regeneração espiritual, operada pelo Espírito de Deus, essa imagem é restaurada em conformidade com a imagem do próprio Filho de Deus (Rm 8.29). Aliás, ser regenerado é justamente ter a imagem outrora deformada, agora transformada em conformidade com a própria imagem do Filho de Deus. Cem por cento, o ato de conversão de Saulo de Tarso foi um ato exclusivamente do Espírito. Ele não tomou parte em sequer um por cento. Como ele poderia participar do ato de sua própria conversão, se sua fúria contra os cristãos o impedia de querer tal coisa? Pelo contrário, se o Espírito não agisse, regenerando-o interior e completamente, ele jamais teria crido,
partindo dele. Seria um rematado equívoco afirmar que o Espírito Santo violou a vontade de Saulo? Deixado por conta própria, ele teria crido, ou destruído a religião de Jesus como tanto desejava? Aliás, sua vontade maligna foi esmagada e transformada para que dali nascesse uma vontade nova e santa. Somente depois é que ele poderia querer fazer a vontade do Senhor da Igreja. Antes, ele queria destruir; agora, ele quer construir o que tanto desejara destruir. E isso sempre pesava em seu espírito: “Porque eu sou o menor dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser chamado apóstolo, pois persegui a igreja de Deus” (1Co 15.9). Que glorioso milagre! Guardo ainda aquela experiência, a qual chamaria de estranha experiência. Aquela era uma encruzilhada determinante, de onde teria que decidir minha vida: se continuaria em frente, ou se tomaria uma decisão para a qual não haveria volta. Senti que aquele viria a ser meu novo universo gerado pelo Espírito de Deus. Era impossível retroceder. Tinha que seguir em frente. Agora, eu queria seguir em frente. Vale dizer que, daquela experiência em diante, toda aquela gama de superstição que cultivara desde minha infância foi sendo aos poucos demolida até desaparecer completamente. Entendo isso como que uma lavagem que o Espírito Santo opera para que o passado ceda lugar a um agora e doravante. Desde que aceitei o evangelho e abracei a Cristo tudo foi se encaixando e começou-se uma nova construção e surgiu daí um novo edifício.
1.9. O terreno estava pronto Na verdade, eu não tinha absolutamente ninguém a tolher meus passos: tinha apenas um amigo, o Zico, mas ele não barraria meu caminho; minha família já não me representava nenhum empecilho, pois nem sequer sabiam por onde eu andava ou como vivia; se era um santo ou um diabo; se era um bandido ou um homem bem encaminhado. Aliás, se me tornasse um marginal, quem poderia censurar meus atos? Fui deixado entregue ao meu próprio destino. Na verdade, alguém tinha meu destino na palma de sua mão. Sua providência permeava todo meu viver. É que o tempo ainda não estava maduro. Então, eu já não tinha, por assim dizer, um cordão umbilical a ligarme ao passado. Tinha somente a Providência a guiar meus passos sempre para frente. Digo isto porque, daquele momento em diante, não mais queria deixar
de frequentar aquelas reuniões de jovens. Também fui associando-me a alguns deles de um modo mais pessoal. Entrelacei-me de tal forma com a família Faria, a família Pereira, que se tornaram como minhas próprias famílias. Houve um jovem que se interessou por mim e quis ajudar-me a entender o sentido da nova “religião”. Ele sabia bem pouco, porém sabia muito mais que eu. Ele me ensinou o abc do manuseio da Bíblia, isto é, ensinou-me como encontrar com rapidez os livros e as passagens mais vitais para meus começos. Ele fazia parte da Providência divina. Certo dia, resolvi ir à escola dominical e ao culto vespertino, pois até então frequentava somente as reuniões dos jovens. Tudo era muito simples, mas havia uma ordem e vivacidade que jamais encontrara em qualquer outro ambiente. Quem entrasse ali via bem de frente um pequeno quadro na parede com a frase: “Silêncio e oração”. Outro quadro: “Guarda o teu pé quando entrares na casa de Deus”. E isso era praticado pela igreja. Aquele ambiente me convidava à meditação e reverência. Inspirava o sossego da alma. Todos entravam pé ante pé e se sentavam. Se alguém orava em voz alta ou se fazia uma leitura bíblica, quem entrasse se detinha até que terminasse a oração ou a leitura. Ouvir a exposição de uma lição bíblica dominical e o sermão no culto vespertino me fez raciocinar e ver a vida de outra perspectiva. A Providência divina triunfava.
2. A primeira Bíblia Ainda não possuía uma Bíblia. Olhava ao redor e via os crentes manuseando suas bíblias com destreza. Então, desejei ter minha própria Bíblia. O pastor, Rev. Francisco Maia, costumava ter bíblias disponíveis para quem quisesse adquirir uma. Eu não tinha dinheiro, mas ele fez questão de me passar às mãos uma Bíblia e receber o pagamento quando eu pudesse. E assim a aquisição de minha primeira Bíblia foi à base do “fiado”. Foi assim que tomei em minhas mãos, pela primeira vez, uma Bíblia que doravante seria a minha Bíblia. Quando me vi sozinho, eu a abri a esmo, com uma atitude quase adorativa. Folheava-a, imaginava como seria quando tomasse posse dela inteiramente. Havia sofreguidão em minha alma. Era muita coisa para aprender e, depois, ensinar. Era um ponto de partida absolutamente zero. Deus sequer pôs em minhas mãos dinheiro para começar minha nova vida! Nem mesmo me lembro como quitei a dívida. Só tenho certeza de que a quitei, e com certeza foi à base de sacrifício financeiro, pois do salário mensal não me sobrava quase nada. Mas a Providência agia nos bastidores.
2.1. Ponto de partida zero É difícil imaginar um começo mais humilde que esse. Razão por que desde então passei a considerar o reino de Deus como absolutamente gracioso e misericordioso. Tudo quanto fizermos nele ainda é pouco diante da incomensurabilidade da misericórdia de Deus. Ele não quer que ninguém se ufane de algo! Nunca consegui visualizar algo em mim de que pudesse me vangloriar, e me causa estranheza que haja pessoas que se vangloriam de tanta coisa. Atribuo tudo quanto sou e tenho como vindo absolutamente de Deus, como a única fonte dos bens temporais e eternos. Desde cedo aprendi que tudo quanto eu viesse a ser ou a fazer seria pela mera mercê de Deus. Portanto, eu nasci de novo já “calvinista”, pois foi assim que ensinou o Reformador João Calvino, em cuja companhia eu viveria até o fim da vida terrena anos depois. Minha vida foi tomada nas mãos do Eterno para ser um vaso de barro, moldado por ele, trincado, sim, e arranhado, mas que, por intermédio dele
mesmo, ele fosse o único glorificado. Nada mais importava e importa! E digo mais: ainda hoje eu nutro o mesmo sentimento, ainda que mais intensificado, pois considero minha vida atual como que destituída do amparo humano; sem prestígio, sem muitas amizades, sem um púlpito donde ensinar as sãs doutrinas; vagando de uma igreja a outra, sigo minha peregrinação praticamente sem nada! Mas a Providência continua agindo.
2.2. O conhecimento da Bíblia produz profunda tensão O fato é que aquela primeira Bíblia me trouxe uma profunda tensão de ansiedade e expectativa. Ansiedade, porque não sabia manuseá-la; expectativa, porque via os jovens treinando seu uso da Bíblia com uma desenvoltura que eu estava longe de adquirir, mas que queria chegar lá. Em suas reuniões, havia o momento de perguntas e respostas. Por exemplo, qual é o menor capítulo da Bíblia? Qual o maior ou o menor versículo? Quantos capítulos tem o livro de Isaías? Quantos livros tem o Antigo Testamento? E o Novo? Eu sentia uma dolorosa ansiedade, porque não os acompanhava; sentia uma ansiosa expectativa, porque não desistia de esperar o dia em que me igualasse a eles. Sinto-me estarrecido vendo e ouvindo os crentes modernos afirmando que não leem muito sua Bíblia por ser um livro extenso e complexo demais e lhes falta tempo. Naquele tempo, os crentes amavam e liam a Bíblia, e por isso tinham tempo para ela; hoje, os crentes não amam a Bíblia, por isso não a leem para tomar posse dela. Todavia, eles sempre têm alguma desculpa covarde e culposa em defesa de sua negligência. Certo dia alguém me abordou durante o estudo bíblico, perguntando por que o Deus eterno mandou escrever somente este livro — a Bíblia. Perguntou ainda por que o Senhor não nos deu informações mais extensas e detalhadas. Então lhe perguntei: Meu jovem, quantas vezes você já leu esta sua Bíblia, que ora se encontra em suas mãos? Não respondeu de imediato. Fiquei esperando a resposta. Então, respondeu honestamente: “Nem uma vez completa”. Por minha vez, lhe perguntei: Você está reclamando do quê, meu ovem, se não leu nem esse pouco que o Senhor lhe deu para ler? Houve um silêncio desconcertante. O doloroso fato é que os cristãos modernos têm tempo para tudo do que gostam, menos para o Livro do Senhor, porque não o amam o suficiente.
2.3. Professor do abc bíblico Aqui, volto àquele amigo já citado. Ele exerceu importante papel em meu rudimentar início. Com paciência, ajudava-me a achar os textos mais belos, a memorizá-los, a encontrar novos. Foi ele quem me ensinou a usar uma régua e uma caneta fina para sublinhar esses textos. Esse hábito me ajudava, nos lapsos da memória, a situar os livros, até que aos poucos eu pudesse mentalizar onde encontrar cada um deles. Quando terminava meu dia de suado trabalho na oficina, refugiava-me em meu quarto da pensão e ali abria minha Bíblia, folheando-a, repetindo mentalmente ou vocalmente os nomes dos livros. Era ali que ia memorizando os versículos prediletos até têlos na ponta da língua. Por exemplo, jamais poderia esquecer onde se encontrava o versículo: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho” (Sl 119.105). “Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará” (Sl 37.5). “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). Para qualquer membro veterano da igreja, esses textos já não exercem tanto impacto quanto exerceram em meu mundo espiritualmente árido. À medida que esses textos foram aumentando em número e os repetia sem cessar, as ideias contidas neles foram se entranhando em minha mente, coração e alma. Até meu corpo experimentava suas benéficas influências, pois sentia que iame tornando mais sereno e confiante, situando-me no universo de Deus e conscientizando-me de que eu era dele. Uma das ideias mais diabólicas que ouvi logo no início de meu convívio com a Bíblia foi esta: “Ler muito a Bíblia deixa a pessoa louca”. Tal blasfêmia me abominava. Ao contrário, a verdade é que quanto mais lemos a Santa Bíblia nossa alma cresce em serenidade e paulatinamente nos tornamos mais sábios e confiantes. O fato é que Satanás tentava todos os meios para me dissuadir de tomar posse do Livro de Deus. Mas a Providência divina cuidava de mim.
2.4. O hábito de frequentar o templo Aquela primeira Bíblia foi o ponto de partida para algo muito grande, algo que nem de longe conseguia imaginar a dimensão. Às quartas feiras tomava minha Bíblia nas mãos e seguia rumo ao templo para o estudo bíblico
com o Rev. Francisco Maia. Naquele tempo, não tive um curso sistematizado de doutrina ou de discipulado, comumente chamado catecúmeno. Não me lembro de haver naquela igreja uma classe de catecúmenos, que é de extrema necessidade. A diferença da catequese da igreja romana é que esta é ministrada para ensinar o sistema católico-romano de religião; a nossa visa a ensinar o conteúdo da Santa Escritura. No domingo, de manhã e à noite, de novo tomava minha Bíblia e entrava no templo para cultivar mais conhecimento prático. De manhã era a Escola Dominical e à noite era o culto de adoração.
2.5. Conhecimento elementar e deficitário Aliás, que o leitor atente bem que em minha trajetória nunca obtive nenhum conhecimento sistematizado. Tudo girou em torno do ensino autoadquirido. Nunca tive um começo doutrinário segundo as normas de ingresso à membresia de uma igreja local. Nunca tive cultura secular de alto nível, ou seja, cultura acadêmica. Nunca tive acesso a um seminário de nível acadêmico na qualidade de aluno. Nunca fiz um curso de música. Nunca fiz um curso de datilografia. Nunca fiz um curso de línguas; portanto, nunca fiz um curso de tradução. Resumindo, nunca tive cultura teológica nem “experiência acadêmica”. Passei a fazer tudo isso sozinho: meu gabinete pastoral (a que chamo de “oficina”) passou a ser meu seminário. Foi ali que aprendi meu próprio idioma, inglês e espanhol; foi ali que aprendi teologia; foi ali que aprendi música em um instrumento presenteado; foi ali que aprendi datilografia numa máquina que comprei a duras penas; foi ali que aprendi tradução. Minha “oficina” veio a ser minha universidade. Sou autodidata em tudo. Sinto pesar, porém não vergonha. Quisera ser doutor em diversas ciências, principalmente em teologia. Por isso vivo entre muitos doutores mesmo sem ser um deles. É difícil imaginar um doutor em tradução que tenha traduzido mais livros que eu, um mero autodidata. Em minha ótica, tudo isso é muito estranho; é novelesco e inclusive milagroso. Quanto mais tento entender o que o Senhor fez comigo e de mim, mais penetro em um universo fantasmagórico. Eu lutei com todas as forças por isso? Na verdade, não. Veio naturalmente, sem que eu forçasse nenhuma porta. Creio que foi consequente de uma determinação em aprender a Santa Bíblia e tudo em torno dela, como
tanto desejei em meus humildes começos. Na verdade, nunca me imaginei no ponto em que cheguei. Nunca me vi envolto por uma nuvem de tanta realização. Mas a Providência guiava meus passos.
2.6. As honras humanas são terrenas Uso esta frase, “experiência acadêmica” entre aspas de propósito, pois este “estigma” me perseguiria a vida inteira: o homem que realiza uma grande obra literária, porém não tem “experiência acadêmica”; isto é, um homem sem o devido preparo e que faz uma coisa própria de “gente grande”; portanto, esse homem jamais pode ser condecorado com algum título honorífico, nem visualizado como um entre os “grandes” e olhado de viés. Sempre me esbarrei nesse obstáculo que me impediria de receber alguma honra elevada. Por quê? Porque tudo indica que o Senhor me quer assim: que termine minha peregrinação sem as honrarias humanas, para aprender a depender dele e a ser honrado somente por ele, porquanto esta é a honra de todas as honras. As honras humanas são entremeadas de hipocrisia. Daí eu aceitar isso sem tergiversar e sem rancor, pois meus olhos estão postos na Providência divina.
3. Primeira revista dominical Foi nesse período que recebi pela primeira vez uma revista de estudo bíblico usada na Escola Dominical. Recebi aquela revista com um senso místico. Tudo era muito novo para meu espírito. Nunca vira antes algo semelhante. Eram periódicos trimestrais. Minha cultura era muito elementar para absorver as lições. Havia tarefas que não conseguia assimilar. Fui aprendendo aos poucos com a participação dos jovens da igreja com quem eu tinha convivência constante.
3.1. Papel primordial da família Faria Depois da jovem Avelina, a Elza Faria foi minha amiga mais de perto e mais constante. Andávamos juntos, quer visitando pessoas interessadas em nossa fé, ou os próprios membros da igreja. Elza era um esteio naquela igreja, e mais tarde eu soube que ela continuou assim numa das igrejas de Uberlândia. Aliás, sua mãe passou a ser minha mãe. Dona Olga teve uma fulminante experiência de conversão antes da minha. Como gostava de assentar-me com ela para ouvi-la contar suas histórias! Ela nutria uma sólida convicção cristã. Amava a igreja. Amava e lia sem cessar sua Bíblia surrada. Então, aquela casa veio a ser também minha casa e minha família. Ela e Elza me ajudaram muito a compreender melhor as coisas da igreja. Havia outros membros da família, por exemplo, a Selma, a Dijanira, o Sílvio, e outra irmã cujo nome já não recordo bem, mas esses não me eram tão achegados.
3.2. Primeira lição Conservo ainda algumas daquelas revistas: Revista do Curso Popular de 1959, primeiro semestre, lição 1: Deus, o Criador. Soletrando, fui aos poucos dominando as ideias contidas nessas revistas. Ao longo do tempo, mandei encadernar aqueles preciosos periódicos. Hoje, tenho um grande acervo deles lindamente encadernados e completos. Mal sabia que um dia eu também faria parte na produção desses periódicos. Mas isso foi muito depois. Naquele tempo, era algo impossível de se imaginar; era absurdo até mesmo visualizar a não ser pelo prisma da Providência divina.
4. Cultura estagnada Por falar em soletrar, esse foi um de meus mais dolorosos dramas — não tinha nem o primário completo. Pior, havia estudado na zona rural. Quando fomos morar na zona urbana de Tupaciguara, nunca mais frequentei escola. O pouco que aprendi na zona rural foi quase totalmente tragado pelo desleixo na cidade. A única literatura que eu lia era gibi ou revista em quadrinhos. Aliás, nem mesmo tinha qualquer aspiração em direção ao cultivo intelectual. De que me serviria estudar mais? — pensava. Isso também fazia parte da Providência divina.
4.1. A igreja como escola Como costuma acontecer, conheci e conheço muitas pessoas, como eu, que adquirem boa cultura na igreja, lendo e relendo sua Bíblia, soletrando, ouvindo os sermões, os estudos bíblicos, observando a bela redação bíblica e lendo livros e revistas. Então descobri que a religião de Jesus, além da salvação eterna, traz benefícios múltiplos na esfera social e cultural. A fé realmente evangélica é imensamente rica. Até alguns analfabetos costumam dominar o conhecimento geral da Bíblia; outros costumam sair do analfabetismo e adquirir uma razoável cultura própria e prática. Na Bíblia, me familiarizei com geografia, história, aritmética, gramática entre outras ciências. Logo meu estado bruto foi sendo lapidado e burilado, e de repente até eu mesmo me surpreendia com os avanços. As pessoas de meu relacionamento não queriam acreditar que fosse eu mesmo. Com muita economia, cheguei a comprar calçados e roupas mais decentes, e meu visual externo foi também aos poucos mudando (não mudou mais porque não havia eito!).
4.2. Período de imitação Eu via duas coisas nas pessoas da igreja, principalmente no pastor: o modo de se vestir e a maneira de falar. Pessoas simples, a maioria pobre, mas havia uma diferença notável das pessoas de minha convivência diária. A linguagem era agradável e saudável; não usavam a linguagem indecente que
meus ouvidos se acostumaram a ouvir; falavam com uma fluência que ia além do meu costume ver e ouvir. O pastor, então, em meu paupérrimo discernimento, falava sem erro gramatical. Além de aprender a Bíblia com ele, aprendi também um pouco de gramática. Aquele era um período de imitação. Até então, eu imitara o que era de má qualidade; doravante, eu imitaria o que é da melhor qualidade, instrutivo e edificativo.
4.3. Timidez inerente Tenho ainda que colocar a tônica em minha timidez. Desde menino, eu me escondia das pessoas estranhas, principalmente do sexo oposto. Até hoje sinto-me embaraçado na presença do outro sexo, vendo-o como um ser místico, mais distante. Na igreja, então, meu embaraço era visível. Assentava-me separado dos outros, em um lugar bem discreto. Levei tempo para articular a primeira oração pública. Em uma visita com os jovens, um deles pediu-me que orasse. Senti o chão fugir de debaixo de meus pés; a vista se ofuscou e a voz não saía. Todos ficaram esperando a oração. O tempo passava, e então articulei algumas palavras, e os demais disseram amém. Em seguida, não conseguia erguer a cabeça, tal era a frustração e vergonha. Fiquei horrorizado quando me escalaram para dirigir uma reunião; e mais horrorizado ainda quando me escalaram para lecionar uma classe infantil. Era o fim do mundo. A igreja não pode fazer isso. Isso não pode dar certo. Mas tudo isso fazia parte dos componentes da Providência divina.
5. Quanto aos sonhos futuros
5.1. Estava sendo burilado Por mais que eu me pusesse a sonhar com algo, era impossível imaginar mesmo de leve que tipo de futuro me aguardava. Invejava as outras pessoas que tinham sonhos e ideais; quanto a mim, não tinha nem de leve uma ideia mais nítida de meu futuro. Desde então, um texto passou a ser minha meta e me fez compreender um pouco que o Espírito Santo é quem burila uma pedra bruta até que se torne uma gema útil na composição dos trabalhadores na Seara do Senhor Jesus. Esse texto se encontra na Primeira Epístola aos Coríntios 1.26-29.
5.2. Esse é o meu texto predileto Irmãos, reparai, pois, em vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se glorie na presença de Deus.
5.3. Sem motivo para vanglória Deus determinou consigo não chamar muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. É claro que ele chamou e tem chamado para servi-lo alguns sábios, alguns nobres e alguns poderosos. Isto consta na história. Mas esses são apenas exceção à regra. A grande maioria se compõe de coisas loucas, coisas fracas, coisas humildes, desprezadas e que nem mesmo têm aparência de ser. E assim ninguém terá motivo justo para se gloriar, senão na cruz de nosso Senhor (Gl 6.14). Quem faz a diferença é o Eterno. Eu absorvi isso desde cedo: tudo o que eu sou e tenho, sou e tenho pela doação graciosa do Eterno. Daí, como me gloriar de ou em alguma coisa como se sua origem estivesse em mim mesmo? Todo dom vem dele e
devemos doar-lhe tudo em serviço que o glorifique.
5.4. A múltipla função da salvação Sempre me considerei parte das coisas que nem mesmo são. Isto é, são zero. Quando faço um retrospecto, vejo que sou o produto do “lixo”, da “borra”, “matéria repugnante”. Sem dúvida, por conta dos homens, eu jamais seria chamado para compor o quadro dos mestres da Santa Escritura. Daí, desde cedo não poderia conhecer outra teologia, senão aquela a que dão o nome de reformada ou calvinista. A teologia arminiana não se enquadraria no perfil de um jovem anulado pela pobreza; pela ignorância; pelo isolamento; pela incredulidade; pela impotência; e pela teimosia de não querer aquilo que deveria ser exatamente o objeto de minha fé. Quem poria os olhos em mim para alguma realização nobre, como é o ensino do evangelho de nosso Senhor? Mas a igreja me recebeu e me deu guarida e me ajudou a mudar os rumos de minha figura. Aliás, isto não poderia ser de outro modo, pois o papel da igreja é buscar a salvação não só da alma para a eternidade feliz, mas também do corpo temporal e transitório. A fé em Cristo traz mudanças materiais, físicas e na linguagem. A fé em Cristo espanta os vícios deletérios que são a causa da destruição de pessoas que, de outro modo, poderiam ser uma bênção para outros.
5.5. Salvação integral Não aprecio a designação “salvação da alma”, embora figure em nossas versões portuguesas da Bíblia; pois o dever da igreja é lavar a sujeira e alimentar os Lázaros da vida terrena, aplicando o sangue de Jesus Cristo, tanto no corpo como na alma. Haja vista a ressurreição do corpo no último dia, pois este sozinho não compõe o indivíduo, nem a alma sozinha é independentemente completa. Hoje, o céu das almas ainda não é aquele céu eterno e definitivo em que viverá o indivíduo completo após a ressurreição. Agora, o céu das almas desencarnadas é “o seio de Abraão” e “embaixo do altar”. Do último dia em diante, ele será “o novo céu e a nova terra”, o lugar ou estado permanente da pessoa completa. Hoje temos uma situação transitória tanto do corpo como da alma. Os dois se separam e jazem separados até o último dia. O corpo jaz inerte no túmulo e em estado de
paulatina putrefação; a alma jaz consciente na presença de Deus em delicioso repouso (Ec 12.7), porém anseia tomar de novo seu corpo para a vida plena na eternidade celestial. Não suspiramos por morrer, e sim por viver! Nossa alma não aspira viver sem seu corpo, mas que este enfim ressuscite para que seja de novo seu glorioso e eterno recipiente.
5.6. Paradoxo O que aquele jovem que acabara de se ingressar na igreja, que ainda continuaria junto de uma bigorna e com um martelo em punho, malhando ferro; sim, o que aquele jovem teria a ver com a literatura, principalmente a literatura reformada, e mais particularmente a literatura clássica de João Calvino? Pelo mero esforço humano, daquele jovem sairia alguma coisa boa? O texto de Paulo não se enquadra com justeza em meu caso? O Senhor se apossou de um zero, que sozinho significa nada, para fazer dele uma multiplicidade, como planejara e determinara na eternidade. É verdade que continuei e ainda continuo sendo pouco mais que zero, em minha pessoa, em meu ser intrínseco; mas um dia ele tomaria esse zero e dele produziria algo mui grandioso que glorificaria seu santo Nome e enalteceria a Igreja do humilde Nazareno, que a partir de sua ressurreição passou a ser o Senhor da Glória. Ele faria de mim não um homem glorioso, e sim um servo valioso. Comigo ninguém aprenderá a exaltar-se, e sim a humilhar-se, porquanto minha história não possui nada que me torne exaltado. Pois se hoje eu sou “santo”, “justo” e “íntegro”, isso se deve ao que aconteceu perante o tribunal divino, perante o qual eu recebi minha justificação naquele que disse no Gólgota: “Está consumado!” Desde então, sua justiça veio a ser minha justiça. Eu não tenho justiça própria, quer no âmbito da caridade, quer no âmbito da equidade. Pois a ustiça que o Eterno exige de mim, para ser válida, é a justiça perfeita, sem mancha, sem transgressão. Para os salvos pela graça em Cristo, o cumprimento da lei de Deus não é a causa da salvação, e sim o efeito dessa gloriosa e gratuita salvação. Ele não cumpre a lei para ser salvo, e sim porque já está salvo. Ele glorifica a lei de Deus, sim, e com prazer, porém glorifica acima de tudo a graça divina em Cristo que o salva para sempre. A lei de Deus é a norma do viver cristão; mas o salvo vive perenemente pela graça de Deus em Cristo. Quem quiser se justificar pela lei terá perenemente
o senso de estar perdido. Somente quem descansa na graça de Deus em Cristo é que poderá dizer que está salvo para sempre a fim de obedecer aqui e agora à santa lei de Deus. É a Graça que nos possibilita o cumprimento da Lei. E o que falta nesse cumprimento da Lei a Graça supre.
5.7. A mercê que nos sublima De fato, nossa grandeza não é inerente à nossa própria natureza; ela está jungida à grandeza de outro. Na realidade, esse outro é toda nossa razão de termos sido destinados à glória eterna. É um doloroso equívoco imaginar que o Senhor da Glória veja em um ser humano belezas que o encantem e o façam escolher-nos para a vida eterna. Segundo essa ideia, não somos nós que nos sentimos fascinados por ele, e sim ele é que se sente fascinado por nós. Para muitos, Deus lhes tira seu chapéu. E assim a ordem bíblica é invertida e equivale a inverter os papéis: somos suficientemente bons e maravilhosos para constranger Deus a nos aceitar. O que nos deixa perplexos é exatamente o oposto: ele não vê em nós absolutamente nada que o encante e o faça escolher-nos e salvar-nos. Aliás, ele nos escolheu quando nem mesmo existíamos concretamente. Somos produtos de seus decretos e de sua divina Providência. A visão que o mundo tem de Deus é completamente distorcida, porquanto ele não pode perceber o ensino bíblico acerca do pecado que matou e conspurcou o ser humano desde o Éden. Espiritualmente, o mais glorioso dentre os seres humanos está morto e não pode decidir seu destino eterno. Daí eu renunciar o arminianismo como um modo de rebaixar Deus e elevar ao céu o ser humano por sua própria virtude. É verdade que Deus quis descer ao nosso nível e elevar-nos a si, porém isso se deve à sua infinita mercê em transformar nossa miséria em glória. Ele fez isso na pessoa de seu Filho Jesus Cristo. Ele quis transformar-nos à imagem de seu bendito Filho. É absurdo pensar que o Deus infinitamente perfeito visualize beleza perfeita no homem irremediavelmente imperfeito. O glorioso é que o Deus perfeito queira para si um ser inerentemente abjeto e ofereça em sacrifício a seu próprio Filho, que é Deus perfeito, para gerar vida num ser alienado dele. O mérito não é do homem; é daquele Deus cujo amor infinito se deu para dar vida eterna a um ser perdido e longe dele. Não foi o homem que o buscou; foi ele mesmo, movido por seu amor perfeito, que quis graciosamente buscá-lo.
A iniciativa não pode ser do homem; tem de ser de Deus mesmo. É por isso que eu o tenho glorificado e o glorificarei para sempre com minha pobre vida que ele mesmo quis enriquecer.
VOCAÇÃO DIVINA 1. Reversão vertiginosa O que pode levar uma pessoa a gostar do que antes detestava; a mudar de rumo sem um planejamento prévio, seguindo a direção oposta e indesejada; a interessar-se pelo que antes desconhecia completamente; a descobrir que a felicidade não estava onde pensava estar; e que seu futuro lhe era completamente diferente daquele que outrora almejara? Resposta: A Providência divina.
1.1. O ser humano possui realmente livre-arbítrio? livre-arbítrio? Se eu fosse deixado à minha própria decisão quanto ao futuro com Deus, que o leitor pondere comigo, certamente não teria escolhido a verdade divina como se acha registrada na Santa Escritura. Deixado à revelia de meu “livre-arbítrio”, o que eu seria hoje (o só pensar me estremece e estarrece!)? É verdade que algumas pessoas viram as costas para a felicidade e a buscam onde ela não está e se destroem, quando, seguindo em frente, teriam se salvado para sempre. Elas voltam atrás e seguem o caminho da perdição depois de algum tempo haver seguido a vereda da salvação eterna. A conversão deles era falsa e temporária. Pois é mais fácil perder-se do que salvar-se, pois nosso Senhor disse que a porta e o caminho da perdição são largos e espaçosos; e a porta e o caminho da vida são mui estreitos e difíceis. Ninguém tem que se esforçar para escolher o caminho da perdição, pois já nascemos nele. Esse é um raciocínio que contraria a muitos. Ninguém precisa se esforçar na prática do mal; isso é natural a todos desde a geração uterina. A maioria certamente discorda dessa afirmação; pois para esta o ser humano nasce no caminho do bem ou nasce bom, e depois segue o caminho do mal se tornando mau. No entanto, a plena verdade está do lado oposto, pois o que causa dor e muito esforço em todos nós não é praticar o mal; isso vem naturalmente; e sim praticar o bem, que é contrário à nossa natureza. Já nascemos com a inclinação natural para o mal; quão difícil é a escola do bem!
Quando aspiramos ao bem, significa que o Espírito do Senhor já opera em nosso ser interior. Esta verdade pode ser auferida pela própria observação da experiência, sem necessidade de examinar as páginas da Santa Escritura, a qual a ensina isto do começo ao fim. O caminho da salvação só pode ser achado por nós pelo dedo de Deus que aponta nitidamente o rumo que não queríamos nem ora queremos seguir. Deus me dera a infinita graça de passar a querer o que antes não queria; a descobrir que a fonte da felicidade estava justamente onde eu me recusava recorrer. Pois, se o Espírito de Deus não mudar a disposição interior de uma pessoa, esta jamais tomará, pela própria iniciativa, a decisão certa em relação a Deus e ao seu destino eterno. O segredo está na Providência divina. O ser humano é muitíssimo inteligente. Existem, inclusive, gênios que nos causam espanto com sua singular inteligência. Tomemos como exemplo, a esfera da ciência. Tecnologicamente, a humanidade deu um grande salto no campo do progresso humano. Na esfera das descobertas astronômicas, ou da medicina, ou dos inventos práticos que facilitam tanto a vida da sociedade, por exemplo, a internet, é assustador quando analisada pelas pessoas de uma geração mais antiga. Para tanto, a ciência se vale da mente privilegiada de homens e mulheres que trabalham incansavelmente inventando e aperfeiçoando o modus operandi da sociedade para sua sobrevivência. A visão calvinista dessas coisas é que a providência divina faculta aos inteligentes meios e introspecções para facilitar, com seus inventos, a vida da raça humana. A medicina moderna tem feito “milagres” espantosos. Dentre os que lutam arduamente pelo bem estar da saúde humana se encontram muitos agnósticos. Para eles, não estão a serviço de nenhuma divindade, e sim da mera humanidade. Nem mesmo acreditam no Criador do universo, do qual são servos sem que o saibam. No entanto, o fato real é que estão a serviço do Deus que inspira homens e mulheres para sanear a sociedade e estabelecer seu bem estar. Do contrário, a humanidade há muito já teria perecido. Chamamos isso de Providência divina. Todavia, com toda a capacidade tecnológica dos seres humanos, ninguém consegue interessar-se naturalmente pelas coisas espirituais de Deus, especialmente pela salvação eterna, se o Espírito Santo não transformar e iluminar suas mentes nesse rumo, para que vejam o que antes não viam. Espiritualmente, esses gênios estão mortos em delitos e pecados na prática de um agnosticismo exacerbado; entregues à sua própria iniciativa, jamais
achariam o caminho da vida eterna. Entregues ao seu “livre-arbítrio”, nenhum deles encontraria esse bendito caminho. São servos de Deus no que tange ao serviço que prestam à sociedade pelo impulso do Espírito Santo na área das coisas terrenas, de acordo com os desígnios de Deus. Porém, jamais serão conscientemente servos de Deus no que tange às coisas espirituais e eternas. Para isso, eles têm que contar com o concurso direto do Espírito de Deus. Muitos cientistas são cristãos convictos porque o Espírito de Deus lhes abriu os olhos da alma e agora veem o que jamais veriam deixados à sua vontade. O calvinismo glorifica o Espírito Santo na regeneração do pecador.
1.2. O livre-arbítrio divino Foi isso que aconteceu ao meu universo interior. O Espírito de Deus abriu os olhos de minha alma e me fez ver o que antes não via; mudou minha mente, para que eu pudesse pensar o que nunca pensara; mudou minha sensibilidade, para que eu pudesse sentir o que jamais havia sentido; mudou minha vontade para querer o que até então eu não queria. Oh! glorioso milagre! Nenhum milagre físico se compara a este. O milagre físico é temporário; o espiritual é eterno. Por exemplo, a ressurreição de um corpo morto não impede que esse corpo torne a morrer. A verdadeira ressurreição é aquela que faz voltar à vida um corpo antes morto para viver eternamente. Saulo de Tarso queria de todo o coração e vontade destruir os cristãos completamente. Jamais havia imaginado que um dia ele passaria para o lado desses seres repugnantes com o fim de corroborar não seu extermínio, e sim seu triunfo. De repente, de destruidor ele passou a ser o glorioso construtor da igreja. Doravante, Saulo surgiu como Paulo o apóstolo dos gentios. Ao amar Jesus Cristo, ele o fez com todas as forças de sua nova natureza! Deus, porém, não fez isso com todos os inimigos de seu povo. Ele deixou que muitos deles seguissem seu velho caminho e caíssem no abismo da destruição eterna. Por quê? Porque ele não podia fazer com que quisessem? Não, ao contrário, ele não quis fazê-lo. É terrível pensar assim de Deus? Sim, é terrível em nossa ótica; porém, mais terrível ainda é fazer dele um Deus impotente que não pode salvar o pecador que não quer ser salvo. Se realmente ele é onipotente, e todos nós sabemos que sim, então ele pode salvar ou deixar de salvar. “Agindo eu, quem o impedirá?” (Is 43.11). Não é que ele não possa salvar o pecador que não queira; a verdade plena é que
ninguém, como está, pode querer ser salvo, se o Espírito do Senhor não transformar sua mente, coração e vontade. A causa da salvação eterna não está no querer humano, e sim no querer divino, isto é, na eleição divina. Essa é uma doutrina plenamente bíblica. Os que não a aceitam se deve ao fato de não suportarem a ideia de nossa vontade ser violentada por Deus. Para eles, nossa vontade é intocável. Deus não pode violentá-la. Pois, em minha ótica e fé bíblica, intocável, imutável e absolutamente soberana é a vontade do Eterno. Longe de mim crer que a vontade do homem não pode ser violentada nem mesmo pelo Criador! Longe de mim crer que a vontade do Eterno pode e é violentada pela criatura morta em delitos e pecados. Não conheço tal doutrina, e jamais poderei crer nela. O fato é que a Bíblia é um livro terrível! Seus leitores vivem tropeçando em afirmações que ela faz e que o assustam. Não é fácil crer na Bíblia pela ótica humana. Crer na Bíblia é penetrar um universo antes desconhecido. Somente uma mente renovada pelo Espírito de Deus pode confessar crer em seu conteúdo. No caso de Saulo de Tarso, o Espírito fez uma reviravolta em seu interior para que ele não tivesse como continuar resistindo ao Espírito Santo. Todo pecador que continua resistindo à ação do Espírito, isso se deve ao fato de que o Espírito, por alguma razão secreta, não quis mudar sua disposição como fez com a de Saulo de Tarso. É possível que algum leitor feche este livro, o dê de presente ou o jogue no lixo por não suportar esta exposição, como sendo absurda e até mesmo blasfema. Em minha ótica, blasfêmia é afirmar que Deus não pode salvar a quem não quer. Não é blasfêmia, muito pelo contrário, dizer e crer que o Criador do universo é onipotente, infinito, justo, verdadeiro, que possui uma vontade irresistível e que pode destruir todo o universo para criar outro sem cometer a mais leve injustiça. Tudo é dele, e ele faz o que bem quiser do que lhe pertence. Blasfêmia é limitar o Deus infinito em seu Ser em respeito a um ser que não passa de pó e cinza. De que vale os teólogos fazerem volteios no tocante a Isaías 6.9-10? Pois o que o profeta diz ali revela justamente a soberania absoluta de Deus em mudar a quem quer mudar, e a não mudar a quem não quer mudar. Eu creio nisso e o adoro. Pois nosso Senhor Jesus Cristo citou este texto, como autoritativo, em seu discurso sobre as parábolas, em Mateus 13.14-15, abonando a palavra profética do profeta.
1.3. A vontade divina esmaga a vontade humana
Reiterando, num ponto bem pequeno, eu não queria, e de repente quis. Ele poderia continuar a manter-me não querendo. E isso me estremece até a medula. Conheço uma multidão que segue seu caminho sem querer a graça salvadora de Deus, até o fim. Morrem assim. São indiferentes e insensíveis. Nossa visão superficial conclui que o Espírito não pôde fazê-los querer, porque a vontade humana é superior à vontade divina. Longe de mim tal pensamento! Nunca pretendi ofender assim meu eterno Senhor! Prefiro o próprio inferno do que concluir que a vontade do meu Deus seja inferior à vontade de seres humanos mortos em pecado e delito (Ef 2.1). A profunda e misteriosa verdade é bem outra. Em vez de Deus não poder, o fato indiscutível é que ele não quer segundo o teor de seu eterno decreto (Rm 9.15,16). Isto estarrece nosso pobre raciocínio? Claro que sim. Sempre estarreceu o meu. Nunca tive facilidade em entender ou em aceitar tal coisa. Principalmente nestes tempos em que predomina um humanismo agnóstico. Há coisas na Santa Escritura que nos estarrecem e escandalizam (Is 6.10). Por isso muitos estão, hoje, tirando da Santa Bíblia aquilo que os aborrece. De que adiantará? Com a Bíblia completa, ou mutilada, sem a regeneração espiritual do Espírito de Deus ninguém se salvará, mesmo que a decore e a recite, pois sempre estará faltando alguma coisa para que creiam, adorem e aceitem a Escritura na íntegra. Então, os adeptos do “livre-arbítrio” humano declaram que Jesus Cristo veio ao mundo para salvar a todos os seres humanos, igualmente, sem exceção. E ele sofre muito quando tantos negam sua graciosa salvação. É como se seu sacrifício fosse frustrado. Muitos chegam a proclamar que ele inclusive chora de tristeza quando vê os pecadores dizendo “não” à sua graciosa oferta de salvação. Aliás, imagino que a maioria dos cristãos crê assim. Eles têm dificuldade com certas afirmações do próprio Jesus. “Porque muitos são chamados, e poucos escolhidos” (Mt 22.14). E o que dizer dos muitos que nem mesmo são chamados pelo evangelho? Terrível, sim, é a declaração serena do Supremo Salvador em Mateus: “Toda planta que meu Pai não plantou, essa será arrancada” (Mt 15.13). E ele não disse isso chorando, mas com um espírito sereno e saturado de majestade divina. Pela ótica da eterna eleição, Jesus veio buscar e salvar somente aqueles cujos nomes se encontram registrados no Livro da Vida. Fora isso, é inventar doutrina ou modificar a sã doutrina.
Vemos soberania em Jesus enquanto faz declarações desse tipo. Portanto, cabe-nos ler o capítulo 10 de João, o qual gera em nosso íntimo um conflito profundo. O calvinista lê, louva e adora com naturalidade; o arminiano lê e inventa argumentos para sair de seu marasmo criado por ele mesmo. “O bom pastor dá a vida pelas ovelhas” (v. 11). “Conheço as minhas ovelhas” (v. 14). “Dou minha vida pelas ovelhas” (v. 15). “Vós não credes, porque não sois de minhas ovelhas” (v. 26). Este último versículo é muito contundente e estarrecedor. Aliás, assusta aquele que o lê. Nosso Senhor faz a fé salvadora depender da eleição. Aqui, a causa não é a fé, e sim a eleição. Através da proclamação do evangelho, um cabrito eleito se transforma numa ovelha do Bom Pastor, crendo nele e sendo eternamente salvo. “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço [conhecimento eletivo e salvífico], e elas me seguem [mente, coração e vontade transformados pelo Espírito Santo]” (v. 27). “Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará de minha mão” (v. 28). “Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar” (v. 29). Além da eleição, aqui se proclama a eterna segurança dos salvos na palma da mão do Pai. A eleição não vem da vontade do homem, nem a perseverança na salvação. Tudo isso vem do próprio Pai. O que triunfa não é a vontade do homem pecador, e sim a vontade livre e soberana do Deus Eterno. Deixadas à vontade de seu suposto livre-arbítrio, as ovelhas não teriam como vencer todos os seus inimigos: a carne, o pecado e o diabo.
2. Contexto do pecado 2.1. O parâmetro supremo Infelizmente, as ovelhas do Bom Pastor continuam inseridas no contexto do pecado. Elas terão que lutar contra o pecado a vida inteira, durante toda sua peregrinação. Deus quis salvar-nos assim. Por isso, a vida terrena é uma grande escola. Eu mesmo continuei com minhas imperfeições de antes, porém como aluno do divino Professor. Cheguei a crer que elas desapareceriam com o tempo. Com uma grande diferença: agora eu tinha um parâmetro ou padrão para seguir ou confrontar com meus erros, e minha consciência foi iluminada pelo Espírito Santo. Antes, eu não tinha nada. Quem não tem a Santa Escritura como parâmetro de vida, não sabe o que
fazer de sua vida. Este santo Livro é o dedo de Deus que aponta o rumo certo e o juiz que julga nossos erros. O Senhor tirou seu povo do Egito; ele o fez andar pelo deserto como peregrino rumo à Terra Prometida; porém não eliminou o joio do meio do trigo nem eliminou de cada um a natural propensão para o pecado. Confesso que, desde cedo, este fato me deixou atordoado. Eu via nos outros e em mim forte tendência para errar. No início, cheguei a pensar que os crentes não mais errariam depois da conversão. Que decepção! Que ilusão!
2.2. Campo de batalha Este seria um tremendo campo de batalha. Paulo diz em Gálatas que “a carne milita [luta] contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne” (Gl 5.17). No entanto, o Espírito de Deus me deu as armas com as quais eu pudesse combater meus hábitos ruins formados desde o nascimento. Sempre que lia a Bíblia, o dedo do Espírito indicava uma arma de combate contra algum hábito que havia se formado em meu interior. Em certo sentido, minha vida piorou, pois agora os indicadores bíblicos abriam meus olhos e fustigavam cada vez mais minha consciência. Agora havia um parâmetro de confronto entre o mal e o bem. Ao ler os livros da lei, minha alma se sentia condenada por não poder cumprir cem por cento a santa lei do Senhor; ao ler os Salmos, eu sentia lenitivo para a alma; ao ler os profetas, eu via sempre um dedo em riste a acusar-me e a exortar-me a retornar para o Eterno. Ao ler os Evangelhos, passei a conhecer a história do glorioso Nazareno que a si mesmo se deu para salvar míseros pecadores — e eu era o pior de todos; ao ler as Epístolas, passei a conhecer a sã doutrina que me norteava em minha peregrinação. Ilustrando, elas são como os sinais de trânsito às margens das rodovias. Se forem lidos e observados com presteza, dificilmente haverá acidente. Ao ler Apocalipse, eu vi que há neste mundo uma grande batalha do Dragão contra o Rei dos reis e Senhor dos senhores; um se digladiando para sua destruição e o outro, para sua conservação. Ali eu tomei ciência de que a história humana terá um fim e o temporal cederá ao atemporal. Passei a ver que minha vida não se limita a este mundo tenebroso — “esperamos nova terra e novo céu”. Então, valia a pena lutar até o fim, pois estava inserido na Providência divina.
3. Pressão vinda do mundo 3.1. Críticas Outro fator agravante eram as críticas dos colegas de pensão e de oficina, não só com o intuito de humilhar-me, mas também para dissuadir-me de prosseguir na nova fé. Inventavam todo tipo de brincadeira jocosa e indecente, quer diretamente, quer por meio de insinuações. Eram instrumentos do Inimigo, mesmo sem o saber. Confesso que aquilo era para mim como a própria morte. É preferível ser preso por causa do evangelho do que ser ridicularizado por sua causa sem chance e sem argumento de defesa. Sozinho, sem nenhum defensor, tive que enfrentar tudo e todos sem qualquer proteção humana. De vez em quando eu mesmo me perguntava se porventura eles não tinham razão e eu estava de fato errado. Quem sabe eu me enganara e comecei a trilhar um caminho falso!
3.2. O argumento da Palavra Meu refúgio era abrir o santo Livro e ler principalmente os Salmos. Que argumento eu usaria contra aquelas investidas diabólicas? Nunca fui bom no manejo de argumentos. Naquele tempo, minha língua era muito mais trôpega que hoje; as palavras não eram bem articuladas e, quando nervoso, elas não fluíam, só gaguejava. Pior, ainda não tomara posse de um sólido conhecimento bíblico; era pouco mais que zero. O desamparo era terrível; era como se Deus nem me visse e se pusesse longe de mim ignorando minhas misérias. Quando sozinho com a Bíblia aberta, então entendia claramente que ele estava comigo e cabia-me enfrentar os dardos do diabo com a força do Espírito, com paciência e calado, exercitando a paciência e a perseverança.
3.3. Artimanha do diabo Quando ainda professava a religião “romana”, ninguém citava minha crença como a razão de meus erros; agora, porém, que era “crente”, havia sempre um dedo em riste a apontar para meus erros e uma palavra acusativa a condenar-me porque ainda errava. “Você não pode fazer isso”, diziam; “agora você é crente, e os crentes não podem errar” — mas eles podiam! O
incrédulo tem o direito de errar e viver sem ser interpelado e importunado; o crente, porém, não tem esse direito e nem liberdade para isso. Logo passei a entender que essa era uma das indicações de que agora eu trilhava o caminho certo. Tive que lidar com isso durante todo o tempo em que continuei naquela pensão e naquela oficina. Ninguém tinha olhos para as diferenças positivas, embora fossem poucas.
3.4. Trajetória para o templo Para ir ao templo, eu tinha que percorrer a rua em que se situava a zona de meretrício. Com a Bíblia na mão, olhar firme, eu fazia minha trajetória rumo ao templo, ou para a escola dominical, ou para o culto vespertino. Eu notava que nenhuma mulher me importunava. Certo dia soube que a razão disso era que elas, além de acharem belo meu comportamento, também me respeitavam por eu ser praticante sincero de uma religião. Algumas delas, inclusive, foram membros de alguma igreja evangélica no passado, como me segredou uma que queria ouvir minha opinião e para chorar seu desditoso destino. Nasceu em um lar evangélico, porém a dureza do pai presbítero a empurrou à vida de promiscuidade. Não muito tempo depois disso, ela foi encontrada pendurada no galho de uma árvore do bosque. Nem sempre era assim, pois de vez em quando eu tinha que me defrontar com os blasfemadores diabólicos que me afrontavam com o peso máximo das palavras escarnecedoras. Enquanto era respeitado por meretrizes, os tidos por religiosos me escarneciam e blasfemavam da Bíblia. Nem mesmo posso mencionar o que eles referiam acerca do santo Livro. Eu teria que aprender que não há meio termo: ou a pessoa é temente a Deus, ou ela odeia a Deus e as coisas de Deus, principalmente a Bíblia e a Igreja. Em minha ótica, existe o ódio passivo e o ativo. O passivo é a indiferença para com a Bíblia e a fé cristã; simplesmente as despreza como algo destituído de valor real. Não assalta com violência, mas vira as costas e segue adiante com descaso. O ódio ativo age e responde com violência furiosa. Enquanto o ódio passivo diz: viva e deixe-me viver, o ativo quer destruir e matar a quem quer viver bem.
4. Afastamento da família e dos amigos
4.1. Ataques verbais Tive que enfrentar ambos esses ódios no seio da própria família que, embora por muito tempo distante de mim, agora ficou ainda mais distante. Eu ainda tinha uma família, mas, embora algum laço familial ainda existisse, doravante foi de vez rompido. Por algum tempo, eu tive vivência mais próxima com minha mãe. Nesse período, ela me dizia com indignação, vociferando que não podia viver bem com quem não cria em “nossa senhora”; era como se não tivesse mãe. “Ela é nossa mãe”, dizia-me ela com fúria. Ela nada sabia de religião, mas aprendeu a lição ensinada por outros. Um “amigo” disse que quem muda de religião não tem caráter; é leviano; não tem firmeza em nada. É como mudar de roupa. Amanhã pode abraçar outra religião. Ainda outro disse que uma religião recente não pode ser verdadeira, e que a religião “romana” é a mais antiga; portanto, a verdadeira. Aprendiam tudo isso dos lábios de outros, sem qualquer convicção real. Eles mesmos não tinham religião. Não sabiam estavam sendo instrumentos do Inimigo de nossas almas.
4.2. Instrumentos de Satã Todos esses falavam essas coisas como papagaio; decoravam e declamavam, sem qualquer profissão de fé real. Não tinham consciência de que eram atiçados invisível e imperceptivelmente pelo diabo. Eles mesmos não tinham nada de bom em seu mundo interior. Não passavam de conchas vazias. Não tinham nada para dar em troca. Os perdidos costumam amaldiçoar os abençoados por Deus. São piores que o falso profeta Balaão que não quis amaldiçoar Israel por ser este um povo já abençoado por Iavé. Ele dizia que era um “homem de olhos abertos”, pois Iavé havia aberto seus olhos para que visse com clareza. Enquanto os incrédulos de nosso tempo têm seus olhos fechados para a verdade divina. Só sabem acuar os que têm os olhos abertos pelo Espírito do Senhor. E não pode ser diferente, pois os incrédulos não podem avaliar corretamente o que procede do Deus que eles não conhecem.
4.3. A participação da igreja romana
Era assim que os padres ensinavam ao seu povo, desde o potente altofalante na torre da igreja até o altar de seus templos; e as freiras, nas escolas, ensinavam discretamente todo tipo de perversão contra os “protestantes”, assim denominados na época, praticando o que hoje se denomina de bulling, porquanto os alunos crentes eram martirizados, satirizados e estigmatizados nas escolas pelos próprios professores, mesmo que dissimuladamente. Cremilda conta que seus colegas de escola gritavam para ela e seus irmãos: “Protestante, cara de elefante” — entre outras coisas que não é possível referir; enquanto todos os demais gargalhavam de modo diabólico. E não eram corrigidos pelos professores. E isso era feito pela maioria. Pode-se chamar isso de martírio espiritual, moral e psicológico. O pecado do povo é perdoável, mas o pecado dos que o lideram é imperdoável, pois bem sabiam e sabem que estão mentindo para seus paroquianos com o fim de proteger seu rebanho contra o som do evangelho que ecoa com o poder do Espírito. E assim a Providência seguia seu curso.
5. As exceções O fato é que todos aprendiam esses “argumentos” ou nos sermões dos sacerdotes, diretamente, ou com os mestres nas escolas, indiretamente, ou com os parentes e carolas, frontalmente. Já meu pai ponderava que uma religião que muda o comportamento só pode ser boa e verdadeira; e aconselhava que era preciso observar com atenção a religião do “Valter”. Há muito mais sabedoria neste último argumento, e creio que o Espírito Santo já falava por intermédio dele, visto que mais tarde meu velho pai viria também a tornar-se membro da igreja; e que o diabo inspirava e se refestelava no que o povo religioso inventava. Pois os sacerdotes sempre ensinaram ao povo que mentir para o bem e proteção da igreja não é pecado, e sim um ato que merece o louvor e a bênção de Deus. Esse ensino diabólico é muito antigo. A Igreja de Roma sempre usou tais artifícios diabólicos e conseguiu grande vitória entre aqueles que nunca tiveram a propensão de crer e abraçar a plena verdade do evangelho. Há na história do evangelismo no Brasil casos terríveis de perseguição com paus, pedras e fogo. Igrejas eram destruídas e os cristãos evangélicos eram escorraçados. Sem falar nos pastores que eram estigmatizados de uma forma cruel e diabólica e às vezes tinham que fugir para não serem mortos. No futuro eu iria ter essas mesmas experiências.
6. Conhecimento e vocação 6.1. Um novo caminho se descortinava Tudo isso constituía o abc de minha vocação ministerial. À medida que lia aquela Bíblia que comprei “fiado”, ia convencendo-me paulatinamente que eu também poderia tornar-me pastor ou intérprete da Bíblia para outros. Conhecer os patriarcas, os profetas, os apóstolos e, sobretudo, o Senhor Jesus, e aprender com eles e deles, é o anelo mais santo e primoroso que uma pessoa pode experimentar e fomentar. Além de a vocação vir secretamente do Espírito de Deus, ela é também adubada pelo conhecimento bíblico e testada pelos servos de Satã, pois a cada dia descobria que eu estava certo. Todos os engodos do Inimigo foram ficando às margens do caminho. Ainda não tinha consciência de que dava os primeiros passos numa trajetória reta e sem volta. Uma vez mergulhado nas santas páginas, já não havia mais volta. Muitos fazem, posteriormente, uma desditosa guinada, voltando atrás. Eu, ao contrário, aprendi o abc bíblico com um jovem da igreja que, depois, abandonou tudo, retrocedeu e seguiu o caminho de outrora. Esse é um mistério da divina Providência.
6.2. O exemplo de Judas Iscariotes Infelizmente, isso acontece com muita frequência! É difícil um relato mais sombrio e doloroso de se ler do que o de Judas Iscariotes. O crente chega ali e sente vontade de saltar as páginas, principalmente quando lê que “o diabo entrou em Judas”, um apóstolo chamado diretamente pelo próprio Senhor Jesus. E Pedro diz com todas as letras que a porca depois de bem lavada volta ao espojadouro lamacento; e que o cão volta a deglutir o que regurgitara (2Pe 2.22). Eu continuava a sublinhar esses grandes textos bíblicos que avisam bem àqueles que tomam a vereda da fé e do serviço do Senhor. Eu mesmo me sentia avisado, e até mesmo importunado por textos tão severos. Foram escritos para que servissem de outdoors à margem das ruas e estradas, e ser lidos pelos transeuntes.
6.3. Os indicadores divinos
Tudo o que lia na Bíblia e na revista dominical me encaminhava para a vocação ministerial, que não foi uma vocação verbal, direta e repentina, mas como que uma secreta insuflação do Espírito. Olhava para o pastor, olhava para os autores das lições bíblicas daquele tempo, como, por exemplo, Rodolfo Anders, Waldemar Gomes de Figueiredo, Antônio Almeida, Galdino Moreira, entre outros grandes vultos da igreja. Iniciava-se um período de querer imitar outros, de ser igual àqueles que nem mesmo conhecia, tampouco jamais conheceria pessoalmente. Em minha vida de isolamento, desejava conhecer o que nunca imaginara que existisse. Isso tem seus riscos, pois muitos passam a imitar pessoas que mais tarde se revelam falsas e perniciosas. Vemos isso não só nas páginas da Santa Escritura, mas também em nosso próprio contexto existencial. Grandes homens, grandes mulheres, que no momento transpiram confiança, logo depois revelam que não eram o que pensávamos ser. Daí, minha advertência: cuidado com as aparências. “Não atentes para sua aparência, nem para sua altura, porque o rejeitei; porque o SENHOR não vê como o vê o homem. O homem vê o exterior; porém o SENHOR, o coração” (1Sm 16.7), falando da casa de Jessé quando da escolha de Davi. Muitos atentam demasiadamente para o elemento humano. Sempre ensinei: não atente demais para o pastor, sua esposa, um líder influente. Tenha Jesus como sua visão perene. O melhor dos seres humanos costuma nos enganar e decepcionar. Quantos saem da igreja e quantos até mesmo perdem sua fé porque foram decepcionados por alguém na igreja a quem tanto admiravam e em quem tanto confiavam. Por esse mundo há grandes luminares que vivem a fascinar as multidões. São homens e mulheres que fascinam e atraem outros para si, e não para o Senhor Jesus. São ouvidos sem qualquer reserva. São esses aqueles referidos por nosso Senhor quando de sua volta: “Senhor! Senhor!... Não vos conheço”; isto é, “vocês não fazem parte de meu verdadeiro rebanho”.
6.4. Diretrizes Sou emotivo e romântico de nascença; com os atropelos da vida, meus sentimentos ficavam confusos entre o pesar, a tristeza e a desesperança. Era uma sensação terrível. Agora, ao encontrar o evangelho, ou, melhor, ao ser
encontrado pelo Espírito de nosso Senhor, meus sentimentos foram se amainando e encontrando uma esperança sólida e bem consciente. O Santo Livro foi me dando aos poucos uma nova diretriz, ainda que não muito clara, do futuro. Nascia em minha alma uma nova aspiração, ainda que indefinida ou imprecisa. O Espírito operava através de minha ignorância. De certo modo, a vida cristã é como a vida de uma criancinha em sua geração, gestação, nascimento e progresso. E isso não se dá sem o devido esforço. A salvação eterna provém da divina graça; mas a vida cristã depende de muito esforço e luta de nossa parte, com a assistência do Espírito Santo. A vida cristã se desenrola como que numa escola. Somos alunos na escola de Jesus. O Espírito Santo é nosso supremo Professor. A Providência é a força motriz na vida secreta de cada um de nós.
7. Apego à denominação Deixo registrado que desde o início meu coração se encheu de afeto pela denominação. De início aprendera a amar a todos os que professam e amam a verdade de nosso Senhor. Sentia profunda alegria quando conhecia crentes de outras denominações cristãs. Havia “comunhão dos santos”. O calvinismo nos ensina essa santa atitude. Mas meu coração se arraigava, cada vez mais, nos irmãos da própria denominação. Eu queria conhecer ao máximo aquilo que levaria anos até que minha percepção pessoal atingisse maior maturação. Eu me informava na penumbra, pois vivia em quase total reclusão. Como gostaria de conhecer aqueles vultos, homens e mulheres, que constituíam a “nata” da igreja, segundo minha ótica. Quando algum desses vultos visitava nossa igreja, sentia-me fascinado e recebia deles influências profundas e perenes. Alguma coisa se movia em meu universo interior que eu não conseguia dar nem rosto nem nome. A cada dia, minha vocação amadurecia de modo imperceptível. Tudo apontava na mesma direção. Eu era um perene aluno na escola de Jesus da qual nunca receberia um diploma e nunca deixaria de ser aluno. É assim que age a divina Providência.
8. Ano do centenário da Igreja Aquele era o ano do primeiro centenário da Igreja Presbiteriana do
Brasil — 1959. Recebíamos as informações do andamento das festividades através de nosso pastor, Rev. Francisco Maia. Aprendemos a cantar com entusiasmo o Hino do Centenário (NC 59, Hino de Gratidão), da autoria de Renato Ribeiro dos Santos e arranjos de Norah Bayers. Nunca conheci pessoalmente estes dois proeminentes vultos da igreja. Como desejei conhecê-los! Através das palavras e da música tão bela do hino, percebia que havia muita sabedoria e conhecimento nessas duas pessoas.
8.1. Revista informativa Na época, a IPB publicou uma preciosa revista informativa, ilustrada, contendo o avanço do presbiterianismo no Brasil desde seus primórdios — os templos, as instituições, a obra missionária, os grandes vultos que comandavam a igreja nacional; ainda conservo esta revista e de vez em quando a manuseio. Minha pergunta era se um dia eu viria a ser um vulto da igreja que merecesse algum encômio. Mas isso era algo fora de meu alcance. Ainda vivia em meio ao nevoeiro inicial de uma nova experiência. Olhava para mim e só via zero! Depois de velho, chego à conclusão de que, no tocante à minha pessoa, tudo não passava de ilusão, pois continuo sendo a mesma pessoa reclusa e avulsa no reino de Cristo, sem projeção, cuja história, creio eu, jamais seria escrita por um bom escritor. Durante anos estive entre os grandes vultos da igreja, sim, porém nunca me associei a eles, pois meu passado nunca me abandonou, até mesmo em meu aspecto externo; talvez por isso esses “grandes” me discriminavam, e hoje continuo discriminado. Vivíamos juntos, porém nunca fui sócio de seu clube, pois bem sabiam que eu era um homem completamente destituído de “experiência acadêmica”. Querendo nós ou não, até na igreja existe bairrismo cultural, social e econômico; nesse aspecto, a igreja não é diferente do mundo, pois ela se compõe de seres humanos reais. O membro da igreja que não tenha esta visão corre o risco de soçobrar em sua fé.
8.2. Uma sombra sempre a perseguir Sempre me vejo ao lado daquela velha bigorna, com aquele martelo ainda em minha mão, malhando ferro e consertando máquinas agrícolas, todo lambuzado de graxa e outras sujeiras. Pode ser que algum psicólogo me
convença por a+b que estou equivocado. Possivelmente, mas assim é e assim haverá de ser em toda minha trajetória. No entanto, ainda hoje entendo que o Senhor determinou que eu o servisse sem nenhum adorno de cultura e importância humanas. E dou-lhe graças por isso, porquanto sua glória me basta e será minha eterna glória.
9. Manuseio prático da Bíblia Eu frequentava assiduamente os cultos vespertinos. Ouvia as pregações do pastor com atenção, embora, a princípio, não entendesse quase nada por falta de embasamento e orientação. Com a Bíblia na mão, de início não encontrava os textos dos sermões lidos pelo pregador. Ficava nervoso e frustrado. Olhava, e sentia inveja dos outros. Encantava-me ver os jovens e até mesmo as crianças folheando sua Bíblia com habilidade e agilidade e encontrando os textos citados. De vez em quando alguém se sentava junto a mim para orientar-me, pois via meu embaraço. Aos poucos, fui melhorando e me familiarizando com o Santo Escrito. Meu profundo desejo era dominar de tal forma o uso de toda a Bíblia, que um dia pudesse ensinar isso a outros. E assim se deu, porque mais tarde passei a exercer esse domínio de modo invejável. Mas para isso houve sacrifício, constância e persistência. A Providência não soltava minha mão.
10. A vocação se intensifica 10.1. Visão angustiante Foi assim que, aos poucos, nascia o profundo desejo de um dia ser ministro da Palavra. Angustiava-me, pois olhava para frente e divisava uma trajetória longa e difícil demais. A jornada era acidentada e tortuosa. Não conseguia ver o final dela. Isso nascia e aumentava paulatinamente pela observação que eu mantinha de nosso pastor, Rev. Francisco Maia, homem polido, de linguagem correta e fluente. Ainda pela observação de que havia poucas pessoas para ensinar o conteúdo do Santo Escrito. Mas, como fazer isso se meu conhecimento dele era pouco acima de zero? Mas tudo isso fazia parte da Providência divina.
10.2. Escola penosa Declarei isso ao pastor e a outras pessoas de destaque na igreja. Alguns se calavam; outros me estimulavam; e ainda outros tentavam tirar-me desse rumo, e humanamente tinham razão. Era testado na escola do supremo Professor. Sem oposição não há amadurecimento. Nenhuma criancinha se desenvolve dentro de uma redoma. Não existe cristão genuíno com seus braços cruzados. Estão redondamente enganados os que creem que, se de fato existe eleição ou predestinação, então os eleitos ou predestinados podem viver sempre com seus braços cruzados. O Senhor jamais elegeria ou predestinaria alguém para viver no ócio. Aliás, os que vivem no ócio, ou estão testificando que nunca foram eleitos ou predestinados para a vida eterna, ou que ainda lhes falta a experiência da conversão. Sempre que a Bíblia fala dos eleitos ou predestinados, também fala que são homens e mulheres responsáveis diante do Senhor que elege ou predestina. A meta do eleito é longa, espinhosa e envolve muito sacrifício. O eleito também deseja profundamente viver para aquele que o elegeu para a glória eterna. O eleito, após sua conversão, passa a ser aluno na escola de Jesus, em preparação para o serviço. É impossível imaginar um eleito que não se torne também servo. O cristão que não é servo precisa ser evangelizado de novo a fim de integrar-se no serviço do Senhor. Não existe cristão verdadeiro que também não seja um servo verdadeiro dedicado ao serviço de expansão do reino de nosso Senhor. Quando o eleito abraça o evangelho, seu coração é inflamado de amor pela causa de nosso Senhor e é guiado pela Providência divina.
10.3. Obstáculos de difícil remoção Em certo sentido, os últimos tinham razão mais lógica, porque, humanamente, eu não possuía nada que levasse as pessoas a acreditarem em mim. Eu vinha de um universo vazio de valores e saturado de dramas tenebrosos. Nesse tempo já fazia cinco anos que vivia sozinho, longe dos pais e irmãos. Então, eu era um jovem quase sem referência existencial. Inclusive, era difícil explicar e indicar quem eram meus pais e irmãos. Evidentemente, não tinha o menor embasamento financeiro para meu custeio no seminário. Minha igreja era pequena e pobre, mal conseguia custear o básico. Minha
“cultura” era quase nula, porque, depois de estudar em escolas rurais, não tive mais contato com escolas. A lógica dizia que eu era um aspirante ao seminário cuja vocação morreria na praia. Nessas condições, não encontraria quem me abonasse, nem tutor que me acompanhasse. Eu tinha diante dos olhos o impossível que só podia ser removido por um milagre celestial. E é claro que o milagre veio! A Providência divina estava em ação.
11. Visita de um Anjo 11.1. Uma mão se estende Esse desejo aumentava dia a dia, até que a igreja recebesse a visita de uma missionária, professora no Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL), de nome Vivian Hodges, que, dialogando comigo sobre o assunto, sentiu-se interessada por minha pessoa e futuro; ao voltar para Patrocínio, ela agilizou minha ida para aquele santo colégio. As portas iam aos poucos se abrindo e as imagens confusas e nebulosas do futuro começavam a tomar forma. Minhas expectativas foram se despertando e, como janelas bem amplas, faziam-me ver com mais otimismo que, possivelmente, Deus estava me direcionando para o ministério da Palavra. Seria uma trajetória alucinante. Se olhasse para o horizonte distante ou ao redor, como fez Pedro, minha coragem se esfriaria e eu desistiria no próprio ponto de partida, por isso eu decidi olhar firmemente para frente sem ignorar o presente.
11.2. O mistério da vocação divina Em minha experiência pessoal, a vocação para o ministério da Palavra é um mistério profundo e insondável; não dá para explicá-la racionalmente. Não se vê nada de concreto. Em nossa ótica, ela é como uma colcha de retalhos, como o tabuleiro do jogo de xadrez. É uma encruzilhada em que se pode tomar um rumo equivocado. É aqui que muitos fracassam, pois acreditam que são vocacionados, quando de fato não o são. E os realmente vocacionados têm dificuldade em discernir por que sentem esse estranho, constante e irresistível impulso. Nossa vocação é diferente daquela dos antigos profetas e apóstolos. Pois seu chamado era direto, verbal e pessoal. Hoje não é assim. Não discuto
se esse processo divino se repete hoje em alguém. Conheço alguns que fazem essa reivindicação e logo depois a realidade se revela diferente, pois não permanecem nessa vocação sobre a qual põem tanta ênfase. Repetidas vezes somos enganados pelas percepções humanas de nossa alma. Em meu caso, a vocação não foi imediatamente perceptível. Houve luta e relutância. Vivia num contexto mais de impossibilidade do que de possibilidade. Prefiro a vocação que vai aos poucos amadurecendo até ser sazonada, para não dizer ilusoriamente: “estou sendo chamado”, quando, na verdade, não passa de percepções carnais equivocadas. Aquele que chama manterá inviolável e irreversível sua vocação. Nesse universo tem havido dolorosos prejuízos para a Igreja de nosso Senhor. É preferível uma vocação que enfrenta conflitos àquela que é fácil e de pouca duração. E a verdadeira vocação não se constitui primeiramente de elementos externos; ela se revela com o tempo mediante aqueles elementos internos e invisíveis que vão se exteriorizando aos poucos em nossa intuição. E os realmente vocacionados costumam demonstrar externamente motivos para dúvida da parte daqueles que têm convivência com eles. A perseverança dos que são vocacionados é o elemento preponderante em sua vocação. Labutam em meio aos elementos negativos e os vencem. O Senhor põe obstáculos em nosso caminho para testar-nos; ele costuma dificultar nossos passos, porém estará sempre conosco a segurar-nos pela mão e a guiar-nos sempre em frente. Sua Providência pode delongar, porém é infalível!
11.3. Exemplos nos profetas Haja vista aquela genuína vocação do profeta Jeremias. Ele relutou de todas as formas para convencer a Deus de que ele não podia exercer o ofício de profeta, porque não passava de uma criança, já que não sabia falar (Jr 1.6). Retrocedendo a Êxodo, vemos Moisés se digladiando com Deus contra a vocação divina. Primeiro, ele diz “quem sou eu?” (Êx 3.11); segundo, “que lhes direi?” (Êx 3.13); terceiro, “mas não crerão, nem acudirão à minha voz” (Êx 4.1); quarto, “Ah! SENHOR! Eu nunca fui eloquente, nem outrora, nem depois que falaste ao teu servo, pois sou pesado de boca e pesado de língua” (Êx 4.10); quinto, “Ah! SENHOR! Envia aquele que hás de enviar, menos a mim” (Êx 4.13). É preferível este que procrastina e reluta, do que aqueles a quem
Jeremias se reporta: “Não mandei estes profetas, todavia eles foram correndo; não lhes falei a eles, contudo profetizaram” (Jr 23.21). Resumo: É preferível “brigar” com Deus do que ser leviano para com ele e brincar com vocação divina.
12. Prós e contras Rev. Francisco Maia veio a ser meu espelho, meu referencial, e o Espírito de Deus usou aquele moço para injetar em mim, aos poucos, um profundo anseio de ser como ele, de aprender a pregar como ele pregava. Francisco acabara de sair do IBEL, onde se formara para o serviço de evangelista leigo sob o patrocínio da Missão Presbiteriana no Brasil, com a qual eu mesmo trabalharia por quatorze anos no futuro. Ele me falava muito desse IBEL, despertando em mim profundo anseio de ir lá e fazer o curso que ele fizera. Eu queria mudar de cidade, mudar de vida, experimentar algo bem diferente. Ali eu revivia minha vida pregressa; trabalhava na mesma oficina; mantinha vivência com as mesmas pessoas; era criticado por pessoas perversas e ignorantes, as quais me conheciam bem e as quais tentavam convencer-me de que eu estava num barco furado; que a religião que ora abraçava era vazia de toda a verdade, fabricada por homens perversos, inventada não há muito tempo. Mas tudo isso era parte da Providência divina.
12.1. Astúcia de Satã Um padre chegou a dizer-me que deixar a santa igreja católica era assinar a própria condenação eterna; que mudar de religião equivale a desgraçar a vida. Jesus não estava em nenhum outro lugar senão na santa madre igreja católica. Que o papa era nosso pai, o pai da igreja, a igreja romana, que é nossa mãe. Permanecer nela é viver na cidade de Deus. Sair dela é viver sem Maria, a Mãe Celestial, sem o Papa, nosso bendito Pai; portanto, era o mesmo que conhecer de antemão o inferno eterno. No entanto, enquanto permaneci nela, eu vivi sem Jesus Cristo, o único Salvador; sem a Bíblia, a única verdade escrita; sem a verdadeira igreja, que é de fato nossa mãe; enfim, sem a vida real e eterna, sem a verdade e sem a luz da vida. Não conhecia o Pai celestial nem seu Filho Jesus Cristo. Eu lhe perguntei: Se eu morrer hoje, para onde eu vou? Ele me disse que ninguém
podia saber. E lhe perguntei de novo: Se a igreja romana é nossa mãe, então ela deve garantir-nos que jamais nos perderemos, permanecendo em seu seio. O padre ficou sem assunto.
12.2. Confronto Certo dia, recebi um folheto de um colega de oficina, com o título: “Por que não posso ser protestante”. Na igreja, eu havia recebido uma réplica desse mesmo folheto, com o título: “Por que não posso ser católico romano”. Então troquei figurinha com aquele amado colega. Disse-lhe que havia lido atentamente seu folheto, e que ele lesse o meu. Assim fizemos. Ele nunca mais tocou no assunto.
12.3. Amigo na outra barricada Enquanto no IBEL, escrevi uma carta ao bom amigo Francisco, o do folheto, católico fervoroso, porém aceitou minha sugestão de ter sua Bíblia e lê-la com afinco. Anos depois, eu o visitei e então me mostrou aquela carta que guardara com carinho, dizendo-me que passara a ler sua Bíblia e veio a ser o líder do grupo de estudo bíblico de sua paróquia. O fato é que meu colega de oficina, Francisco, veio a ser meu grande amigo, deixando-se influenciar por mim e minha fé, mesmo sem deixar a igreja papal. Naquele momento, ele me confessou que eu fora uma grande bênção em sua vida; que lhe ensinara a amar e a ler a Bíblia com toda seriedade e sinceridade; que tinha por mim elevada consideração; que, para ele, eu era seu irmão; que sempre me citava nas reuniões de casais que ele dirigia; que um dia gostaria de convidar-me a ministrar um estudo bíblico a seu grupo. Naturalmente, isso não aconteceu e jamais aconteceria, pois teria que enfrentar os padres de sua paróquia.
13. Transição Meu bom amigo e orientador, Francisco Maia, foi transferido de Tupaciguara e para lá, em seu lugar, foi outro evangelista, Jair Pires. Homem estudioso, também inteligente, cuja esposa muito generosa, cujo irmão, José Silvério, mais tarde seria meu companheiro de campo missionário. Vendo
minha situação, e tendo em sua casa um cômodo nos fundos onde eu pudesse morar por algum tempo, convidaram-me e eu aceitei residir ali. Aquele foi meu melhor tempo em minha cidade. Rev. Jair e dona Maria do Carmo amais terão a devida noção do profundo bem que me fizeram. Eram carinhosos comigo e de vez em quando eu me sentava com eles em torno de sua abençoada mesa de refeição. Foi dali que saí rumo ao IBEL. Sendo ambos ex-ibelinos, passaram então a incentivar-me a que fosse lá para um dia ser também evangelista. Depois de Francisco, aquele casal passou a ser em minha vida um marco decisivo. Sou muitíssimo grato a eles e rogo ao Supremo Senhor do universo que os abençoe e os guarde na palma de sua mão. Pois eles também eram instrumentos da Providência.
14. A vocação continua se intensificando 14.1. Definição Então assentei firme e resolutamente no coração que também seria ibelino, e que um dia também haveria de servir ao Senhor Jesus. No entanto, me faltava literalmente tudo para alcançar esse santo ideal, como já disse. Mas uma coisa não me faltava: ânimo, um sonho e ideal, a vontade, a visão de fé e um coração palpitante de amor pelo reino de Deus, a despeito da imensa ignorância que ainda persistia em mim. Tal ideia me impelia cada vez mais. Passou a ser uma obsessão. Dia e noite me via ali, estudando, saturando-me de conhecimento, preparando-me bem para ser um obreiro de Jesus Cristo. Eu havia decorado aquele versículo de Paulo a Timóteo: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2.15). Como naquele momento eu era completamente despreparado, sem saber nem mesmo ler a Bíblia para alguém, de falar de Jesus Cristo como nossa eterna e infalível esperança, eu tinha que me preparar bem para isso. E a Providência guiava meus passos.
14.2. Preparação Uma jovem professora, cuja mãe crente, dona Diva, um vivo exemplo de dedicação cristã, se ofereceu a ajudar-me com algumas aulas extraídas de
um livro intitulado Exame de admissão . Naquele livro havia todo o programa do ensino básico. E assim ela me instruiu em algumas matérias básicas que, provavelmente, seriam parte da prova inicial que o IBEL costuma dar aos novos alunos. No entanto, aquelas poucas aulas não me ajudaram totalmente, pois ainda continuava extremamente carente de cultura básica. Sinto-me pesaroso por haver esquecido o nome daquela jovem professora para citá-lo aqui. A misteriosa Providência usa meios estranhos.
15. Destino: Patrocínio 15.1. Festa de despedida Por fim, chegou o tempo próprio da concretização de meu sonho. Apesar do pouco recurso financeiro, a igreja foi amorosa para comigo. Fez uma festinha de despedida. Recebi de alguns irmãos coisas pessoais e práticas que viriam a ser de muita valia no primeiro período ali. Eu me senti muito emocionado com tudo aquilo, vendo pessoas enxugando as lágrimas e se despedindo de mim, crendo que nunca mais eu voltaria para ficar. Virar as costas para aquela família na fé era como rasgar o próprio peito. Aquela igreja não sabe, mas ela veio a ser para mim, perenemente, uma mãe que acalenta o filho que se desenvolve lentamente.
15.2. Acertos de contas E assim acertei com meu patrão, virei as costas para aquela modesta oficina que fora a fonte de meu sustento durante cinco ou seis anos, coloquei o martelo sobre aquela velha e surrada bigorna, acertei minha dívida com a pensão, onde morara por cinco anos, sobrou-me dinheiro suficiente para chegar a Patrocínio e quitar minha despesa inicial; acenei para minha igreja na rodoviária, entre lágrimas e orações, onde havia encontrado a felicidade e a paz com Deus; entrei no ônibus e parti rumo ao IBEL — para mim, um mundo totalmente desconhecido. No entanto, a Providência me guiava sem cessar.
15.3. Nunca mais
Aquela era outra encruzilhada em minha história que exigia de mim a tomada da direção certa. Era uma decisão irreversível. Se errasse, estaria tudo perdido. Jamais voltaria atrás. Jamais seria o mesmo. Minha história seria totalmente outra. Eu tinha tudo para abortar este ideal. Humanamente falando, eu não tinha nada para manter essa disparatada decisão. Era quase zero. Lá fui eu, um jovem que seria perenemente um vulto avulso, sem qualquer laço político com nenhum concílio da igreja. Aliás, nenhum presbitério tinha conhecimento de minha pessoa e de minha decisão. Aquela igreja era missionária. E eu era um anônimo; um completo desconhecido da Igreja nacional. Oficialmente, a Igreja nacional só teve contato comigo depois da ordenação.
15.4. Livre agência Fazendo uma retrospectiva, não existe em minha história e vida nada que fosse compatível com o suposto “livre-arbítrio”. Eu tive que decidir? Sim. Eu tive que agir? Também sim. Eu tive que querer? Claro que sim. Temos que fazer tudo isso. Esse é o lado humano. Não somos marionetes nem robôs. Somos seres dotados por Deus com livre agência. No entanto, nossa vontade não é soberana ou plenamente livre em tudo. Concernente a Deus, portanto, ela é cega e inoperante. Ela está jungida às circunstâncias da vida. Em razão do pecado, ela está morta para as decisões concernentes ao reino de Cristo. Todos nós devemos escolher e decidir. Temos a responsabilidade de fazer isso. Mas o resultado de todas as nossas escolhas e decisões remonta unicamente à decisão soberana de Deus, que é secreta, invisível e intangível e está jungida ao seu governo e às circunstâncias terrenas. Nosso ilusório livre-arbítrio se desvanece totalmente em meio à decisão secreta do Espírito de Deus. É a Providência divina que de fato governa. É o livre-arbítrio divino que real e finalmente decide.
15.5. Querer nem sempre significa poder Estritamente falando, querer não é poder. Obviamente, temos que querer e queremos. Mas somos impotentes em relação ao futuro e aos resultados. Não temos como determinar nosso futuro e os resultados. Estamos atados às contingências da vida terrena. Há uma infinidade de coisas
invisíveis que barram ou liberam nossa trajetória. Em toda minha ignorância, eu já entendia a essência disso. Então, desde cedo, pela própria experiência, nunca descansei sobre o ilusório livre-arbítrio humano, isto é, a soberania de nossa própria vontade. Nossa vontade está jungida ainda à nossa decadência moral e espiritual. Toda a tendência de nossa vontade é contra a vontade absoluta de Deus. Não temos a inclinação inerente de obedecer a Deus. Desde cedo aprendi a descansar na soberania da vontade e providência de Deus. Esta é a única vereda que nos conduz a um final feliz. E eu estava caminhando nessa direção. Daí poder sentir uma segurança que outrora não conheci.
15.6. Adeus vida pregressa À medida que o ônibus percorria a estrada poeirenta, aumentava a distância, mais me sentia adentrar um universo de onde jamais poderia achar o caminho de volta à velha vida. Adeus velha pensão, adeus velha oficina, adeus querida igreja, adeus minha Tupaciguara! Este seu filho parte para sempre! Estrada de chão, a poeira se elevando ao céu, densa, lenta e rubra como o sangue; via minha cidade sumir no horizonte; sentia minha vida pregressa se dissipar como fumaça; sentia minha alma ofegar; sentia um laivo de medo e confusão mental; olhava para frente, nada via senão um mundo desconhecido; no entanto a fé me impelia para frente, para nunca mais voltar atrás. Aquele moço de outrora morria e renascia um novo homem, cheio de uma esperança que não podia ser ilusão; aquela esperança bíblica que jamais morre havia de concretizar-se um dia. Meu coração se apertava e meus olhos marejavam movidos pela visão retrospectiva e pela visão prospectiva: nada voltaria a ser o que fora; o futuro me era totalmente desconhecido. Minha visão introspectiva era de total desamparo humano. Sentia-me levado por um caudal violento que me arrastava sem o concurso de minha vontade. Na verdade, era como se eu pairasse no ar, sem um ponto sólido onde repousar meus pés. Minha esperança se digladiava com a dúvida. Era um profundo e doloroso conflito existencial. Em silêncio, minha alma clamava ao Eterno com pavor.
15.7. Esperando contra a esperança
É assim que entendo as palavras de Paulo, “esperando contra a esperança”, falando do patriarca Abraão que se agarrara à providência divina como a uma âncora bem fincada numa rocha no fundo de um rio ou do mar. Mas, concretamente, ele não via absolutamente nada. Não havia algo concreto em que firmar sua esperança; daí, ele “esperava contra a própria esperança”, isto é, sua esperança aparentava impossibilidade e aparentemente absurda. Ela estava fundada unicamente numa voz que lhe falava. No entanto, ele deixou sua terra sem saber aonde ia. E foi em obediência à voz divina. Com quem falasse a respeito, seria tido como louco.
15.8. Rumo ao desconhecido Assim também eu. Partira e seguia rumo a um mundo desconhecido. Teoricamente, sabia onde ficava e o nome. Concretamente, era totalmente ignorante. Presumivelmente, muitos de meus conhecidos me tinham como louco; no mínimo, como um aventureiro inconsciente. Quem sabe alguém dissesse: “Isso não tem nada para dar certo. Logo o veremos de novo”. Tupaciguara, propriamente dita, nunca me viu, porquanto fui poucas vezes àquela igreja. Mas minha cidade nunca teve consciência disso. Nunca soube que seu filho pisou outra vez em suas ruas. No entanto, Abraão nunca mais nem mesmo pisou de leve as ruas de Ur dos Caldeus. Ao virar as costas para Ur, ele o fez uma vez para sempre. Bem sabia que nunca mais voltaria ao seu mundo e à sua família. Aliás, sua família doravante seria completamente outra.
15.9. Honra, e não desonra No entanto, o filho de Tupaciguara e daquela querida igreja saiu com o destino de honrar a ambas; saiu para ser não apenas um cidadão brasileiro, e sim um cidadão universal. O que ele faria haveria de ter uma repercussão em todos os países de língua portuguesa. Ele não saiu para denegrir sua cidade e igreja, mas para abençoar vidas. Tupaciguara não sabia disso; a igreja também não; muito menos ele mesmo. Partiu sem ter ideia do que sua vida viria a ser. Seu Senhor sabia, e isso era suficiente. E deu certo! A Providência divina seguia seu curso.
TERCEIRA PARTE: ESTUDANTE DE TEOLOGIA
1. Chegada a Patrocínio Aquele ônibus estacionou-se na rodoviária de Patrocínio; era o destino final da viagem. Enfim, eu chegava ao IBEL. Para mim, aquele era um novo universo. Minha mente e coração fremiam de ansiedade e curiosidade. Meu coração palpitava a mil. Até então, não havia visto nem experimentado nada parecido e jamais pensei em experimentar. O choque existencial foi terrível; o contraste, chocante. Ao deixar o interior do ônibus, empunhando uma malinha surrada e de péssima aparência, deparei-me com um bando de pássaros em algazarra: eram ibelinos de todos os recantos que ali chegavam para ou o início ou o reinício das aulas. Os veteranos festejavam o reencontro; os novatos se esquivavam emudecidos ante o inusitado. Ninguém era conhecido. Aos poucos, fui avistando alguns dos professores. Ao encontro dos alunos na rodoviária foram a missionária Frances Hesser e a professora Ana Alvarenga. Aquela, a psicóloga de todos; e esta, a conselheira das moças. Há tempo que ambas viviam ali, e há tempo também que ambas abriram passagem rumo à morada dos santos, deixando para trás um rastro de luz que jamais deixará de refulgir. E assim a Providência me introduzia naquela santa casa de profetas.
1.1. Vultos eminentes Jamais imaginara que houvesse no mundo pessoas como aquelas. Na verdade, eram seres humanos como todos; eram pecadores como todos; não eram “santos”, como aqueles fabricados na forja da igreja romana e beatificados pelos papas. A diferença estava numa vida disciplinada, metódica e piedosa, otimista e alegre, de intimidade com Deus. Eram homens e mulheres dedicados ao Senhor da Igreja. James Woodson e sua esposa Jessie, Frances Hesser, Marta Little, Vivian Hodges, Ana Alvarenga, Nazaré Pimenta, Maria do Carmo de Castro, Saulo de Castro Ferreira, Bill Smith, Donald Kaller, Loyde Emerick, entre outros. Erravam também, porém suas vidas inspiravam nos alunos uma nova conduta, uma nova visão existencial, de amor pelo reino de Deus, pela Bíblia, pelas almas perdidas, de respeito mútuo, do desejo de ser santo e justo. É muito interessante o que li no livro de Frank L. Arnold, Uma longa jornada missionária.
1.2. Histórico Já mencionamos o Dr. Alva Hardie como o missionário que, em 1926, reuniu rapazes e os treinou, tanto em classe como no campo, para serem evangelistas leigos e professores. Hardie vivia em Patrocínio naquela época e, a partir daquele modesto princípio, nasceu um forte instituto bíblico. Ele tem formado centenas de jovens, rapazes e moças, como evangelistas e professores para as Missões e para a Igreja Presbiteriana do Brasil. Um pastor destacado disse o seguinte sobre o trabalho dos evangelistas leigos em seu campo: “Não existe escola igual à de Patrocínio para preparar obreiros para evangelizar o interior do Brasil. Esse é o tipo de escola que precisamos”. O Dr. Edward Epes Lane, filho do missionário pioneiro Edward Lane, junto com a missionária Srta. Frances Hesser, mais tarde consolidou a pequena escola, transformando-a no Instituto Bíblico que leva o seu nome.[3]
1.3. Eduardo Lane e James Robertson Woodson E o Rev. Wilson Castro Ferreira escreveu o seguinte: Destaca-se na obra missionária do casal Lane a fundação definitiva do Instituto Bíblico, em Patrocínio, velho sonho que a Missão alimentou por muitos anos adiando sua realização, em várias oportunidades, em virtude de dificuldades, tais como escassez de obreiros, mas que, afinal, teve seu início em 1933, dois anos após a chegada do casal a Patrocínio. Como já vimos, o Rev. James Woodson lançou as bases da escola com seu curso para evangelistas, ministrando-o em sua própria casa; mas coube ao casal Lane o estabelecimento e consolidação da obra em alicerces permanentes, dando à
instituição dez anos, nos quais o Instituto se agigantou. Hoje o nome Eduardo Lane se perpetua na escola a que tanto zelo e esforço consagrou o casal.[4]
1.4. Diretores Seus diretores, até o presente momento, foram os seguintes: Eduardo Lane (1933-1941); George Hurst (1942-1959); James Woodson (19601963); Donald Kaller (1964-1972); Olson Pemberton, Jr. (1972-1973); e Roberto Brasileiro (1988 até hoje). De todos estes, foi com o Rev. James Woodson que tive uma experiência de ampla dimensão, a qual redirecionou minha vida de uma vez por todas. Sobre a pessoa do Rev. James Woodson, a observação do Rev. Wilson Castro Ferreira se coaduna precisamente com minha experiência pessoal.
1.5. Caráter de James Woodson Destaca-se em James Woodson sua piedade, seu zelo missionário, sua humildade, sua paciência e sua tolerância em face de sofrimentos morais e humilhações. Estudioso e culto, sempre informado do pensamento teológico no mundo, bom pregador — eloquente e às vezes dramático —, reunia ao saber a piedade, ao trabalho dinâmico o amor à Causa. Recebi dele muitas lições, aprendi muito da convivência com os Woodson; trago comigo a lembrança grata do varão de Deus que aprendi a admirar.[5]
1.6. Minha experiência pessoal com ele Minha experiência pessoal com o Rev. Woodson é descrita neste capítulo em lugar próprio, corroborando a experiência pessoal que o Rev. Wilson teve também com ele. Como veremos, Rev. Woodson, com sua índole de intensa piedade, foi quem me tolerou no IBEL quando despido de qualquer possibilidade real de fazer aquele curso. Em parte, ele é a razão que
me levou a sentir que seria justo dedicar este modesto livro ao Instituto Bíblico Eduardo Lane. No tocante ao corpo docente e administrativo do IBEL em meu tempo, digo que todos esses e os outros eram homens e mulheres largamente cultos, experientes e comprometidos com “a fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 1.3). Sua fé teológica era calvinista, reformada, ortodoxa, exemplar, sólida e de profunda convicção. Os alunos não saíam de lá com algum conhecimento confuso ou distorcido da Bíblia. Eles incrementavam a busca por um conhecimento profundo da fé cristã. Suas aulas eram inspiradoras. Sua vivência era amorosa e dinâmica. Sua moralidade era exemplar. Vivi três anos intensos naquela instituição e na companhia dessas pessoas. Minha vivência ali haveria de ser de valor perene. Aquele ambiente moldaria minha vida de maneira irreversível. Desde seu nascedouro, muitas igrejas foram plantadas que hoje constituem um movimento missionário de difícil equiparação. Todos os anos se formam jovens vindos de todas as partes do país em busca de conhecimento e habilidade para o serviço do Senhor da Igreja. O que era informal e pequeno veio a ser gigantesco e bem estruturado. Em quase sua totalidade, os jovens preparados ali passam a dar um testemunho robusto da fé cristã. São ensinados e aprendem o manejo da Santa Escritura quase nos moldes do puritanismo antigo. Seu conhecimento, habilidade, conduta moral e estrutura espiritual são reconhecidos por todos os rincões do Brasil. Dali saíram muitos homens e mulheres que se tornaram figuras proeminentes nos vários setores da sociedade, não só da igreja. Na cidade de Patrocínio, os ibelinos desfrutavam e creio que ainda desfrutam de muita regalia e confiança por sua conduta honesta, com rara exceção. Aquela entidade não tem como aquilatar com exatidão o volume de influência benéfica que passou a semear desde então. Os que são aprovados se estabelecem nas cidades onde ou ainda não há igrejas, ou existem, porém sem estrutura. Aquelas cidades que ainda recebem em seu seio aqueles moços ou moças preparados no IBEL recebem também sua benéfica influência de saneamento moral, espiritual e intelectual. Em muitos lugares se tornaram e ainda se tornam figuras eminentes em vários setores da cidade. Por exemplo, o primeiro aluno ali, Rev. Dr. Divino José de Oliveira, além de um grande político, chegou a ser prefeito da antiga Cidade de Goiás. E assim muitos outros deixaram marcante influência de vidas retas numa sociedade
depauperada pelos vícios morais. Cerca de trinta anos depois de seu nascimento cheguei ali com o mesmo ideal. Minha vivência era com muitos moços e moças que haviam deixado para trás suas famílias, igrejas, profissões e círculos sociais para se prepararem com o fim de servir ao reino de Deus com mais habilidade. A impressão que tive dos moços veteranos é indescritível. José Siqueira, Clovis, Benjamim, Amadeu, Orlando, Samuel, Arnaldo, Frederico, Valdevino, Belmiro, entre tantos outros, sem mencionar nominalmente as mulheres, que eram tantas, e a memória já não ajuda muito, pois já se passaram 55 anos. Todos esses já haviam estudado bastante, já haviam enfrentado diversos campos. Eu os invejava por já serem pessoas com um preparo do qual eu ainda estava muito longe de atingir (e de alguns nunca consegui nem chegar perto). Eram polidos, simpáticos, amigos, crentes, estudiosos, muito diferentes de mim. Falavam de suas realizações nas igrejas durante as férias. No início do ano letivo, apresentavam relatórios fascinantes. Falavam de suas leituras e aulas de teologia. Sua conversação era de gente instruída, séria e idealista. Falavam e articulavam seus pensamentos com fluência. Perguntava-me: Será que vou chegar lá? Diante deles, minha timidez era alarmante. Como quando criança, eu queria esconder-me. Só de tentar visualizar-me naquele ambiente, perdia o fôlego, não conseguia acreditar que tivera a coragem de chegar ali sem a mínima condição. Não estou empregando nenhuma hipérbole; é a pura realidade. Aliás, creio que a realidade mesma era ainda mais profunda. Sentia isso de tal modo que procurava viver afastado de todos. Quase não falava, nem com os colegas de quarto. A timidez era avassaladora e a dicção pior ainda. Comparava-me à coruja que fica a observar quase o tempo todo. A expectativa era angustiante. Houve momento escuro e cheio de desesperança e até mesmo de desespero. Mesmo diante de meus colegas de classe, todos se avantajavam a mim. Eles já tinham certa cultura, enquanto que eu não possuía quase nada.
1.7. Nosso dormitório O prédio dos moços fora apelidado de “fariseu”. Na verdade, era uma antiga residência transformada em internato. Ao lado ficava o campo esportivo, onde se jogava futebol, voleibol e outras diversões. Também ao
lado ficavam algumas jabuticabeiras, as quais propiciavam uma verdadeira festa no tempo de frutas, com a atenta supervisão de miss Frances Hesser. Junto a elas havia um lindo flamboyant, extasiante no tempo de flores. Antes de meu tempo, não guardei o nome, uma das alunas escreveu uma composição que ficou na história por muito tempo, com este título: “Quando o flamboyant florir é tempo de partir”. Ainda tenho fotos tiradas com a árvore ao fundo coberta de flores. Havia no prédio principal uma sacada acima da cozinha e refeitório onde me postava todos os dias após o jantar, ao pôr do sol, sozinho a meditar. Lá embaixo havia muita gente em algazarra, contudo eu me sentia sozinho. Era tudo muito belo, porém me trazia profunda lembrança e nostalgia. No tempo do flamboyant florido, eu olhava demoradamente para o pôr do sol, sumindo por detrás da serra, e para aquela árvore. Havia também um caramanchão lindo e aconchegante com alguns bancos rústicos embaixo. Era ali que, depois de meditar naquela sacada, me recolhia à fraca luz de lâmpadas para minhas leituras. Enquanto os alunos festejavam no salão do pingue-pongue, com seus furtivos e deliciosos flertes, eu estudava ou a matéria da ocasião ou um livro escolhido a esmo ou indicado por um professor.
1.8. Nossa classe Minha classe, começando pelos homens, era composta de Albertino, Edvar, Wilson, Antonio, Benedito, Eunício, Floramante e, evidentemente, eu. Desses, dois já faleceram: Antonio faleceu na função de pastor; Benedito faleceu na função de um mísero famigerado, mergulhado no mundo do crime. A última notícia de Edvar é que se tornou pastor batista; não tenho certeza de sua veracidade; Floramante veio a ser um vigoroso pastor; de Eunício nunca mais tivemos notícia (como gostaria de saber seu paradeiro!); Albertino e Wilson se tornaram presbíteros ativos. Das mulheres: Cremilda, Diva, Domingas, Celcina, Claudete, Ivaneide, Luzia, Aparecida, Maria Cruz, Aldaíza, e algumas outras que não ficaram até o fim do curso. A maioria das mulheres perdeu para sempre o contato conosco. Foi com Cremilda que mais tarde me casaria. Fui eleito o presidente de minha classe, a despeito de toda minha timidez e despreparo. Mas tudo aquilo fazia parte de meu preparo e amadurecimento para a vida de obreiro de Cristo — fazia parte da
Providência que se mantinha em constante atividade.
1.9. Duas mulheres excepcionais 1.9.1. Frances Hesser Uma das pessoas mais extraordinárias que conheci em toda minha vida era então a mentora da instituição: miss Frances Hesser. Haver conhecido aquela mulher foi para mim uma das experiências mais ditosas. Era a mãe do equilíbrio, da simpatia, da serenidade, da percepção da alma humana, de uma simpatia singular e de uma boa dose de perspicácia. Ela olhava para dentro da gente. Nunca se alterava; nunca perdia aquele sorriso místico, com uma gargalhada discreta e breve. Quando ficava séria, era dura e calculista. Suas perguntas pausadas e bem colocadas deixavam o aluno mudo, desconcertado e indisposto a tergiversar. 1.9.2. Ana Alvarenga Outra mulher singular foi dona Ana Alvarenga. A pessoa que a teve por mestra e desfrutou seu convívio deveria considerar-se altamente privilegiada. Eu me considero assim. Sua matéria muito prática denominava-se A montanha. Ali se encontrava tudo o que é prático e conveniente a alguém que quisesse formar-se bem para o serviço da Igreja. A gente aprendia como se portar no púlpito, desde o sentar-se até o postar-se por detrás dele; como sentar-se à mesa de refeição e como usar os talheres. Ai do grupo que durante a semana a tivesse encabeçando a mesa. Era uma penúria quase interminável — e insuportável. Era difícil até mesmo para comer. Lembrome que no início queimei a boca várias vezes com comida ou com o leite com café. Muito do que aprendi com dona Ana Alvarenga veio a ser um hábito perene. Por exemplo, até hoje não consigo sentar-me ao púlpito e cruzar as pernas. Não consigo ministrar um estudo ou pregar no púlpito sem usar pelo menos a gravata. O moto de toda a matéria era: “Hei de encarar este monte difícil de transpor com o coração cheio de coragem”. E, quando se sentava ao piano para os prelúdios e poslúdios do culto e acompanhar os louvores, ela dedilhava suas músicas prediletas com uma maestria só dela! Eu chegava mais cedo, sôfrego, a fim de meditar (e frequentemente chorar) aos sons
daqueles acordes divinais que revolucionavam minha alma. Se o culto fosse interrompido ali, sentia que já havia adorado o Senhor do universo. A gente via em dona Ana Alvarenga um ar místico, com seu sorriso misterioso, quando não queria responder a uma pergunta despropositada. Ah! como gostaria de conhecer mais a fundo sua história pessoal! Espero que um dia um historiador escreva um livro sobre ela.
1.10. Investigação preliminar Assim que cheguei, miss Frances Hesser passou a assediar-me discretamente, fazendo-me perguntas acerca de minha pessoa, família, cultura e finanças. Com certeza ela passava para o diretor o que ia colhendo de minhas respostas. Mais tarde foi a vez do próprio diretor, que quis saber quem era meu tutor, quem iria pagar a conta e como eu pensava vencer a falta de cultura: queria saber qual fora meu embasamento cultural. Com ingenuidade quase simplória, eu respondia a tudo: não tinha nenhum tutor — aliás, nem mesmo conhecia o sentido de tal palavra; não tinha dinheiro nenhum, e contei parte de minha vida; minha cultura era quase uma nulidade. Estava ali porque senti profundo desejo de aprender a ganhar almas para Cristo e de edificar a Igreja com o ensino da Santa Escritura. Então perguntou: “Valter, como é possível você permanecer aqui nesse estado? Esta escola sobrevive com o dinheiro dos alunos; cada um tem alguém responsável como seu orientador e acompanhante da vida e dos estudos; o aluno que não tem cultura básica não pode suportar a carga de aulas programadas. Sinto muito, mas tenho que mandá-lo de volta para casa”. Com estremecimento causado pela emoção, lhe respondi: Rev., eu entendo tudo isso; se o senhor me despedir daqui, tenho que lhe dar razão. No entanto, há algo que o senhor precisa saber: se hoje me despedir desta instituição, não terei para onde ir. Ninguém me espera em lugar nenhum! Já estou afeiçoado a esta escola: como será minha vida sem ela? Expressei isso com a mais profunda emoção já com os olhos ofuscados pelas lágrimas. Era o grito de uma alma desesperada que vê algo escapar-lhe da mão, impotente para reter. Nunca fui informado satisfatoriamente sobre o Rev. James Woodson; ele estivera em Tupaciguara uma vez e eu o vi de relance. Naquele tempo, era para mim um total desconhecido. Era homem de coração extremamente
sensível. Explosivo, sim, porém sentia e chorava facilmente com outros. Naquele momento, ele chorou comigo! Pediu-me que aguardasse uns dias. Mas a Providência continuava seu curso.
1.11. Situação decisiva Chegando ao quarto, informei aos colegas que estava fazendo a mala para deixar aquela bendita escola que já se tornara meu lar. Disse isso em total desespero. Os colegas choraram comigo. De mãos dadas, oramos para que o Senhor da Igreja provesse para mim uma maneira de não sair dali. Aquele tempo foi para mim uma eternidade cheia de sombras e medo. Sair dali para ir aonde? Não tinha dinheiro, não tinha destino definido. De fato, ninguém me esperava em lugar nenhum. Como sobreviver se minha profissão era extremamente humilde e dificilmente encontraria uma oficina que me recebesse para trabalhar e assim prover meu sustento? Cerca de uma semana após aquele diálogo, ele me chamou outra vez ao seu gabinete. Então eu disse a meus colegas: Hoje é o dia de minha despedida do IBEL. Vou sentir muito a falta de vocês. Falei isso à beira do pânico; segurava para não gritar. Tentava imaginar minha vida lá fora outra vez. Em minha simplicidade, nem mesmo conseguia orar devidamente sobre o assunto. Era um jovem sem norte. Ao adentrar o gabinete do diretor, minha surpresa foi chocante. Com muita emoção, com um sorriso largo, ele me disse: “Valter, você já não precisa ir embora! Consegui-lhe uma bolsa para dois anos. O restante deste ano eu mesmo pagarei de meu próprio bolso”. Amei aquele homem; aprendi muito com ele! Em meus campos de trabalho, no futuro, muitas vezes transigi demasiadamente em relação a alguém em situação semelhante por lembrar-me dos gestos e atos daquele homem tão extraordinário. Ele me passou a ideia de que quem serve a Cristo deve cultivar a solidariedade, a compreensão, a sensibilidade; seu coração tem de ser tangido pelo coração do Senhor da Igreja; seu coração tem que bater com o dos outros.
1.12. Memorização do Breve Catecismo Como substrato teológico, o diretor promoveu a memorização do Breve Catecismo, com um prêmio no final, dado por ele mesmo, Rev. Dr. James Woodson. Meu afã foi tão intenso, que em poucos dias sabia o livrinho na
ponta da língua. Enquanto caminhava, enquanto descansava, enquanto todos se divertiam eu estava com o livrinho aberto diante dos olhos e repetindo cada pergunta e cada resposta. Depois de decorado, repassei muitas vezes seu conteúdo. Toda a classe reunida, ele perguntou: Quem está pronto a recitar o Breve Catecismo? Não me lembro bem, mas creio que eu fui o único aluno a pôr-se de pé e ir à frente. Trêmulo, gaguejante, cuja excitação me sufocava, recitei-o em público, para a classe, e depois para todo o IBEL. Ele fazia as perguntas e eu respondia. A coisa foi feita com tanta precisão, que arrancou aplausos e emoção de todos. Havia uma contagiante alegria estampada nos rostos e olhos a marejar. Aquele moço matuto e desnorteado, de condição quase zero, praticara aquela façanha! Creio que meu benfeitor Rev. Woodson percebeu que valera a pena confiar e ajudar aquele jovem desnorteado.
1.13. Prêmio Como prêmio, recebi das mãos do diretor, emocionados ele e eu, sob o olhar perplexo de todos, contagiando toda aquela santa assembleia de estudantes e mestres, o livro Salmos e Hinos com músicas sacras, com a rubrica de próprio punho, com a data: 15 de junho de 1961, um dia após meu aniversário: 22 anos de idade. Eu conservo íntegro esse livro de cânticos, bem encadernado, até hoje. Foi nele que eu aprendi os primeiros acordes e rudimentos da música sacra, cujos hinos mais tarde seriam entoados nas igrejas de meu pastorado e sob minha execução e regência. Conservo também aquele mesmo livrinho cujo conteúdo um dia memorizei para nunca mais esquecer. São dois símbolos preciosos que me acompanham como emblemas de meu modesto desenvolvimento nas lidas da Igreja de nosso Senhor — um deles, o fundamento da sã doutrina; o outro, um oceano de cânticos de louvor ao Deus eterno e trino. Repetir essas coisas sempre me foi motivo de alegria, emoção, saudade e gratidão, de como o Senhor da Igreja nos conduz passo a passo na grande escalada da vida cristã. Ao recordar estas coisas tão especiais, para mim constitui um castigo para meus pobres olhos, os quais eu tenho que esfregar vezes sem conta para estancar as lágrimas quentes e saturadas de saudade de uma vida que ficou tão longe. Considero a lembrança dessas coisas como um milagre divino, com meus 79 anos de idade.
Costumo testificar que, depois de memorizar e recitar o Breve Catecismo, jamais poderia crer diferente. O livrinho moldou e determinou para sempre meu pensamento teológico. Dou-lhe um valor extremo. Creio que, se toda igreja o ensinasse a partir da infância, aos novos crentes que se ingressam nas igrejas, aos oficiais, aos professores da Bíblia para toda idade; e se todo ministro da palavra o soubesse de memória, o povo de Deus seria outro. Ao contrário disso, após jurar fidelidade à Confissão de Fé e Catecismos, o ministro da Palavra não só esquece que fez tal juramento diante de Deus e da igreja, mas cada um deles passa a ensinar o que quer e ainda declara, como um deles fez a mim há muito tempo, sem corar de vergonha: “Que tenho eu com Confissão de Fé e Catecismos? Meu compromisso é com a Bíblia”. A verdade, a plena verdade, é bem outra: tal ministro não tem compromisso nem mesmo com o conteúdo da Santa Bíblia, porquanto quem comete perjúrio dificilmente tem qualquer relacionamento com o Deus da Bíblia e da Igreja, e o que ele ensina no lugar não é de melhor qualidade; ao contrário, geralmente é de péssima qualidade, porque é fruto de uma mente desleal e soberba, visto que não tem nem mesmo coragem de confessar sua indolência. De antemão afirmo que jamais me desviei para outro caminho, nem jamais pensei ser isso necessário. O calvinismo haveria de perenizar em minha vida e ministério pastoral. Mais tarde eu mostraria, em termos práticos, que essa era a plena verdade, pois a Providência me encaminhava para trazer João Calvino para o Brasil.
1.14. A programação do Instituto O IBEL tinha um programa bem traçado para os alunos, quer para fins de semana, quer para os períodos de férias. A cada fim de semana, todos saíam para alguma região a realizar algum programa em alguma igreja. Estive em várias igrejas da região em meus fins de semana. E fui para igrejas distantes em julho ou de dezembro a janeiro. Trabalhava com as crianças, com os jovens e com toda a igreja. Às vezes ia para uma grande igreja ajudar em alguma área dela; às vezes ia para uma pequena congregação ou para um trabalho totalmente insipiente. Era muito penoso tentar fazer o que ainda não aprendera. Duas igrejas que me marcaram muito foram Lagoa Formosa e Paracatu. Muito embora fosse ainda muito “verde”, aquelas igrejas me receberam bem e me trataram acima do que eu merecia. Tudo aquilo era
muito inusitado para mim, que até então vivera em um mundo pequeno e mesquinho. Mas fazia parte da escola da vida e determinaria meu futuro como obreiro de Cristo. Era a Providência em ação. Todos nós tínhamos um grande envolvimento com a igreja local. O pastor era o grande vulto de nome Saulo de Castro Ferreira. Era também nosso professor. Ouvir aquele homem me fazia um profundo bem à alma, mas também me arrancava inveja e fazia com que eu me visse pequeno demais. Da igreja me lembro de poucas pessoas. Uma das marcas profundas foram meus atritos com um jovem líder da mocidade local, chamado Silas Brasileiro. É claro que o culpado dos atritos era eu mesmo, turrão e ignorante. Mas tenho uma grata lembrança daquele bom e nobre irmão. Creio que ele nem se lembra que eu existo. Ele tinha um irmão menor, garoto naquele tempo, chamado Roberto Brasileiro. Olhando para aquele garoto, quem de nós diria ou mesmo imaginaria que ele seria o que é hoje? Há muitos anos ele passou a ser patrimônio não só do IBEL, como seu diretor, mas da própria IPB, como reiterado presidente do Supremo Concílio. O quanto o presbiterianismo nacional deve a esse seu vulto tão eminente e fiel! A Providência sempre guiou seus passos, em um rumo, como os meus, em outro rumo.
2. Primeiro contato auditivo com as Institutas Foi ali no IBEL, logo no início, que ouvi pela primeira vez a menção da grande obra do Reformador João Calvino, As Institutas. Enquanto os veteranos comentavam entre si sobre a aula teológica que tiveram e a menção deste grandioso livro, eu estava por perto ouvindo aquele diálogo. Foi então que me acendeu um profundo interesse de lê-lo. Ainda hoje fico a analisar aquele misterioso interesse por uma obra literária que no futuro viria a ser o empreendimento máximo de minha vida. Aquele fato ficou muito longe e já meio apagado, como que numa penumbra nos recônditos da memória; mas é impossível ignorá-lo, pois faria parte integrante e perene de toda minha vida. Era quase que uma menção “profética”. Isso mostra quão misteriosa é a Providência divina! Ao solicitar aos colegas que me mostrassem tal livro para que eu o pudesse ler, todos se puseram a rir de minha ingenuidade; e responderam que esse livro não fora traduzido para nosso idioma, que eles mesmos nunca o viram nem leram sequer uma frase. Horrorizado, perguntei: Como?! Esse livro não está disponível em nosso idioma? Aquilo me soou muito estranho. Como é possível que tal livro não esteja ao nosso alcance, dada sua fundamental importância? Acaso ele não é a principal obra do presbiterianismo? A partir de então meu coração sentia um profundo pesar por não poder compendiar As Institutas e pessoalmente conhecer o pensamento teológico do Reformador. Mal sabia que aquele jovem rústico, de conhecimento muitíssimo insipiente e precário, sem nenhum futuro delineado e garantido, era o predestinado para fazer Calvino falar nosso idioma. Eu, um ibelino, o mais bronco de todos, estava destinado a levar os brasileiros a lerem as obras de João Calvino. Se alguém ali profetizasse que eu seria tal homem, sem a menor sombra de dúvida o chamaria de “falso profeta”. Quão misteriosa é a Providência divina! De fato, este foi o ponto de partida de minha longa caminhada futura lado a lado com o maior dos Reformadores protestantes. Ainda levaria tempo até que me defrontasse com as obras do Reformador genebrino. Mas aquele abrupto começo, numa escola tão abençoada como o IBEL, determinaria minha jornada como obreiro leigo, ansioso por adquirir cultura,
principalmente o conhecimento teológico. Hoje percebo nitidamente que aquele encontro tão informe com o Reformador me levou a cultivar a leitura dos livros que, a duras penas, eu adquiriria para mim mesmo, sem qualquer condição financeira para adquirilos. A família sofria as consequências dessa minha “obsessão”. Chegava a trazer desconforto principalmente à minha esposa que sentia mais que qualquer outro membro da família as carências da cozinha ou de vestuário e outras necessidades. Mas eu tinha que fazer isso! Cheguei a juntar uma boa biblioteca. Com o tempo fui adquirindo o apelido de “o homem do livro”. Isso me valeu muito para o futuro, um futuro incerto, nebuloso, aliás, eu mesmo nada via. Só com o passar do tempo é que pude compreender que o Eterno não tem pressa. Além de intrinsecamente eterno, ele está dentro da eternidade e da temporalidade e as governa de modo perfeito. Minha vida foi pautada dentro deste padrão divino. Eu seria um perene aluno de sua escola. Nunca seria um aluno destacado pela inteligência, nem pelos aspectos externos de minha pessoa. Seria sempre um aluno discreto, tímido e sem projeção, porém persistente. O Espírito seria meu perene Professor; a Santa Escritura seria minha cartilha; o mundo seria meu campo de semeadura; a igreja seria minha escola, meu seminário, minha academia que por diversas vezes me desanimaria, me irritaria e me levaria quase a retroceder.
3. Um colega chamado Benedito Em minha classe havia um aluno muito especial chamado Benedito Meneses; esse homem viera das bandas do Rio de Janeiro. Estava ali como uma tentativa de se transformar em um homem de Deus. Fora grande celerado, chefe de gangue, preso muitas vezes, abraçara o evangelho não sabemos como, pois sua história pregressa permaneceu numa penumbra distante e indecifrável. No peito esquerdo faltava-lhe uma costela, arrancada por uma facada de inimigo, isso dentro do próprio presídio, rezava o pouco que conhecemos e o que ele pessoalmente me segredou. Eu via nele uma grande vontade de superar o passado. Aproximei-me dele e fizemos uma forte amizade. Ele, porém, criava problemas com todos os alunos. Todos tinham medo dele e o evitavam. Quando furioso, víamos em sua face um lampejo de fúria só contida pelo temor de Deus que então cultivava.
3.1. Fúria contida Certa vez, Rev. Woodson pediu minha opinião sobre o Benedito, porquanto eu era o presidente da classe. “Valter, meu desejo é mandar o Benedito de volta para casa, pois tenho medo que esse homem crie um caso muito grave para esta instituição. Quero sua opinião como presidente da classe”. Lembro-me como se fosse hoje da resposta, ingênua, porém sincera, que lhe dei acerca do amado colega. Rev. James, mandar o Benedito de volta para que casa? Ele é como eu; ele também não tem casa! Para onde esse homem irá e o que será dele fora dos “muros” do IBEL? Ele ficará sem qualquer proteção espiritual. Faça com ele o que o senhor fez comigo. Vamos aguentar um pouco mais para o bem dele. O fato é que o Benedito não foi despachado do IBEL. Eu era então o livreiro. Houve um contratempo com a conta do Benedito, pois sempre fui péssimo em matemática. Não me lembro mais se a causa estava em mim ou nele; já faz muito tempo. Aconteceu de discutirmos acirradamente, e ele partiu para cima de mim como uma fera enfurecida. Quando me deparei com aquele enorme muro de carne vindo para cima de mim, e eu franzino e sem traquejo, vi meu barco fazer água. Sucedeu de o Rev. Woodson estar por perto e interveio em tempo. Pondo-se entre nós, gritou que ele não fizesse nada contra mim. Por sua vez, ele gritou que eu era o protegido do diretor. Então este lhe contou o que até então ele não sabia: que ele ainda estava no IBEL porque eu havia intercedido por sua permanência. Ao ouvir isso, ele se empalideceu, recuou e foi para seu quarto. Fui após ele. Ao entrar em seu quarto, porquanto vivia sozinho, pois ninguém se atrevia a morar com ele, o encontrei em pranto. Ao me ver ali, me abraçou, dizendo que se sentia um miserável, pois tinha em mim seu único amigo e não levou isso em conta. “Valter, eu sou um homem desgraçado!” Juntos choramos abraçados. Então ele orou aos gritos que Deus o perdoasse e que usasse de misericórdia (pois a palavra literal foi essa) para com ele, pois não passava de um grande crápula.
3.2. O destino do Benedito Benedito deu tanto trabalho à direção daquela escola, que a cadeira em que se assentava diante do diretor com tanta frequência passou a chamar-se
“Benedita”. Dizem que até hoje aquela cadeira conserva a memorável alcunha. Pode ser que hoje ninguém ali conheça a história original da “Benedita”, porém é uma história bem minha, porquanto me assentei também várias vezes ali e vivi bem junto do próprio Benedito que lhe emprestou o nome. O doloroso fato é que Benedito não se acertou nos campos das igrejas que tentaram ajudá-lo. Por fim, deixou tudo e veio morar em Goiânia e se envolveu de novo na vida bandida e morreu nas ruas da capital goiana, assassinado por um anônimo, cujo crime nunca foi desvendado. Guardo ainda em meus arquivos o jornal noticioso com sua foto. Então se levanta a hipótese: Benedito era ou não um dos eleitos de Deus? Teria ele confessado a fé salvífica no último momento, como fez diversas vezes em vida? Por exemplo, ele teria dado aquele mesmo grito que deu junto a mim naquele dia de fúria, “Ó Deus, tem misericórdia de mim”? Para nós, seres finitos, é impossível afirmar com certeza, nem temos que fazer isso, já que o Eterno é que nos tem na palma de sua mão e usa para conosco de juízo ou de salvação. No entanto, quero deixar registrado nestas páginas que a figura do Benedito nunca desocupou minha mente.
4. Minha luta com os livros Ciente de minha grande carência de cultura, de experiência, de traquejo para o ministério, isso me proporcionou o intenso desejo de adquirir, ali, o máximo de conhecimento e de experiência. Tinha que aproveitar cada instante de minha permanência naquela casa. Enquanto todos se espaireciam nos intervalos, eu me aferrava aos livros e às lições de classe. Não porque eu amasse a leitura; aliás, minha mente nem estava afeita ao hábito da leitura. Até hoje os velhos colegas de IBEL, quando me encontram, se lembram desse cenário: em geral debaixo de um caramanchão aconchegante e de uma ramagem sempre florida e perfumosa, sozinho, sobraçando um ou outro compêndio, aberto, e de lado umas folhas em branco para anotações. Embora não tivesse a mente sempre disposta à leitura, às vezes nem queria ler, mas era movido pela necessidade de superar o tempo perdido sem o convívio com alguma literatura. Sabia muito bem que meu tempo era limitado naquela santa casa, e esse tempo se escoava e cada vez mais se encurtava. O que viria depois? Não tinha a menor ideia. Meu futuro continuava obscuro. Sabia
ainda que, para que desfrutasse alguma confiança da parte de quem me quisesse para algum trabalho em sua igreja, era preciso que estivesse o mais bem preparado possível.
4.1. Problemas com minha língua Infelizmente, nasci com certo defeito na língua, o qual dificultava a articulação das palavras, principalmente de algumas delas. Por exemplo, não conseguia pronunciar com desembaraço as palavras três, treze, templo, exemplo etc. Desde menino, era alvo de riso de adultos e crianças, principalmente de meus irmãos. Na escola, a professora tentou todos os meios para ajudar-me a corrigir tal defeito. E assim minha dicção era inviável para ser orador. A Prof.ª Loyde Emerick, nossa mestra de português, lutou muito comigo para corrigir esses vícios de linguagem. “Valter, o pregador não pode falar assim!” Eu nasci assim, professora, e vou morrer assim. “Não é verdade. Todos nós corrigimos os defeitos de nascença. Se você tiver paciência, e deixar-me ajudá-lo, garanto que terá sucesso.” De fato, aqueles insistentes conselhos da Prof.ª Loyde deram resultado positivo: consegui corrigir muitas coisas. No entanto, as pessoas mais atentas notarão que ainda conservo esta grande dificuldade. Creio ser este um dos tantos espinhos que os servos de Deus conservam para que não se exaltem. Depois de velho, esse defeito piorou muito, a ponto de levar-me a desistir de falar em público.
4.2. Problema com a inveja Tenho que confessar aqui um de meus dolorosos pecados, a saber, a inveja. Ao ouvir uma pessoa prendada na oratória, de dicção perfeita, com um verbo fluente e postura atraente, sinto-me tomado de dolorosa inveja, pois gostaria tanto que o Criador me dotasse desse bendito pendor. Sinto certo pesar que às vezes se converte em tristeza por não ser um orador prendado, porém o Senhor me compensou com outros dons que trazem um bom equilíbrio para o que me falta. Era a mão da Providência.
5. Dura “profecia”
Quando preguei meu sermão de prova — chamar aquilo de “sermão” é mera hipérbole! —, Rev. Saulo de Castro Ferreira era nosso professor de homilética. Durante a crítica, ele me afirmou com todas as letras: “Valter, vou lhe dar cem anos para você aprender a pregar, e sinceramente sinto que nem assim vai conseguir tal proeza”. Ele exprimiu isto com certa indignação. Era uma reprovação literal. E ele estava certíssimo, porque nunca aprendi a arte da oratória. Procurei sublimar essa carência com outros recursos. Anos depois, tive o grande privilégio de tê-lo como companheiro de concílio. Um dos homens mais nobres, piedosos e extraordinários que conheci. Mas aprendi que não devemos nos dirigir às pessoas em fase de prova fazendo uso de termos tão escabrosos. Se possível, façamos menção de alguma vantagem que porventura haja. Se não, maneiremos o peso da crítica. No futuro, durante os concílios, quando havia algum candidato à ordenação, ao ouvir seu sermão procurava mais o que era de bom nele a fim de injetar-lhe ânimo, caso o sermão não contivesse alguma heresia. Até hoje, alguns desses colegas ainda se lembram de minhas críticas dosadas com uma boa palavra.
6. A música em meu ministério Sempre fui cultor da música, e a usei como um desses recursos. Aprendi os rudimentos da arte para empregar nas igrejas. Formamos ali no IBEL um quarteto masculino, com Albertino, como regente, Edvar, Wilson e eu. Chegamos a viajar para cá e para lá cantando nas igrejas. Havia muito entusiasmo e sonhos para quando saíssemos dali. Aferrei-me de tal modo a esta arte que, no final, o diretor, Rev. James Woodson, me informou que do dinheiro da bolsa havia sobrado certa quantia. Quando chegasse no campo, o missionário me passaria às mãos aquele dinheiro para a compra de um instrumento.
6.1. Meu primeiro instrumento musical Assim se deu, pois o primeiro missionário com quem trabalhei, Rev. Robert Litton, de saudosa memória, recebeu aquele dinheiro, trouxe de São Paulo um catálogo de Harmônios de fole e disse que eu escolhesse o tamanho que quisesse. Escolhi o médio, um lindo instrumento, porém o preço era bem superior à quantia que havia sobrado. Ele mesmo completou
aquele dinheiro e comprou o número de que gostei, ele mesmo o transportou em seu veículo e deixou o instrumento dentro de nossa casa. Ainda me lembro bem da emoção que aquilo me causou. Era um sonho do qual não queria acordar. Que som lindo ele tinha! No dizer do salmista, fiquei como quem sonha! Agora podia dedicar parte de meu tempo e desenvolver meu dom para música, o que me valeu a alcunha de “evangelista cantor”. Naquele tempo, a IPB usava o livro de hinos emprestado dos metodistas, Hinário Evangélico. Aprendi a tocar e a cantar todos os 500 hinos. Quem ouvisse esta história, costumava expressar dúvida, e com razão, pois eu mesmo nunca ouvira que alguém conseguisse tal proeza. Era também parte da Providência que guia os servos de Deus.
6.2. O ateu que gostava de ouvir hinos Muito depois, já pastor no campo de Paraíso do Norte (atual Tocantins), tivemos um vizinho ateu confesso, senhor Rondon, que se assentava todas as tardes à porta de sua casa, enquanto todas as tardes eu também me punha ao harmônio, tocava e cantava a peito aberto os grandes hinos. Certa tarde ele acenou para que me achegasse à porta de sua casa, onde jazia assentado. Então me perguntou: “Pastor, você sabe por que todas as tardes eu me assento aqui?” Claro que sei, senhor Rondon; é para refrescar-se do intenso calor. “Errado”, disse ele. “Eu me assento aqui fora para ouvi-lo tocar aquele instrumento e cantar! Você deve ser parente de canarinho.” Sem dúvida, era exagero dele. Que proveito concreto teria o senhor Rondon extraído daquelas cantorias? Só o Eterno sabe! Esse detalhe também fazia parte da divina Providência.
6.3. Louvor que nasce na alma De fato, eu sempre cantava não só com o peito e a boca, mas com o coração e com a alma. Hoje eu só recordo de tudo aquilo, porque já nem canto com a boca, e sim só com a alma! Tudo passa e os impulsos da vida vão se escasseando e desabando; de repente, o que mais gostávamos de fazer, deixamos de lado. Só vai ficando um rastro de dolorosas reminiscências. O vigor da vida murcha e o sofrimento forma calosidade, e tudo vai ficando tão longe, que só resta o distante eco de uma vida que não volta mais. Olhamos
para o horizonte distante e só vemos sombras já indistintas, e o que recordamos não passa de retalhos desconexos.
6.4. Descaso que fere Muitos daqueles com quem tivemos vivência já partiram, e a nova geração nem sequer se esforça para conhecer a história de sua comunidade cristã. Se no culto há algum idoso, já não recebe nenhuma atenção; já não canta; já não é notado; já não é ouvido; emudece e jaz no esquecimento, enquanto toda a juventude canta jubilosa para a glória de Deus! Aos setenta e nove anos, muita água já passou por debaixo da ponte! O vigor juvenil se foi em boa medida e poucos se detêm para ouvir minhas reminiscências. Ali está apenas um velho, uma velha, não um arsenal de história e experiência e que merece atenção. Ninguém para a fim de indagar de um idoso qual o hino que mais gostava de cantar. Nunca vi em culto de adoração ao Deus Eterno um dirigente se reportar aos idosos e perguntar: que hino antigo o senhor (ou a senhora) quer que cantemos? Primeiro, vamos ouvir a voz somente de nossos irmãos idosos; depois, todos nós, até as crianças, vamos unir nossas vozes numa só, entoando este belo hino para o louvor do Deus de todas as idades — no dizer do grande hino: ele é o Deus dos Antigos.
6.5. O louvor que agrada a Deus — indagações metafísicas Seria esse o louvor que o Senhor do universo espera que lhe entoemos? Tenho muito receio de que aquilo a que chamamos “louvor” seja uma mera vazão de nossa natureza carnal e satisfação de nossas predileções musicais. Quando alguém diz que frequenta tal igreja porque o “louvor” ali é muito deleitoso e caloroso, então percebo que é deleitoso e caloroso para nossa natureza humana, e não porque sentimos que Deus fica satisfeito. Aliás, os compositores e cantores modernos nunca perguntam se Deus está satisfeito com a expressão musical da igreja moderna. Refletir sobre isto é da máxima importância, pois pode acontecer que Deus não esteja recebendo nem aceitando nosso “louvor”. Estamos tentando impingir-lhe o que é de nosso gosto, e não o que é de seu gosto. Acho isso muitíssimo sério. A quem estamos de fato louvando? Ao Deus Eterno ou aos nossos gostos e predileções? Se os cristãos atuais buscassem em Apocalipse 4 e 5 o modelo
litúrgico para os cultos de adoração aqui e agora, creio que muita coisa se encaixaria nesta área da vida cristã. Quando nos reunimos para o culto, a quem queremos agradar — os nossos gostos, ou os gostos do Senhor Eterno? Estamos louvando à nossa própria natureza, ou ao nosso Eterno Deus?
QUARTA PARTE: EXPERIÊNCIA MISSIONÁRIA
1. Histórico No final de 1963 eu recebia o diploma de evangelista leigo e voltava as costas àquela abençoada casa que veio a ser minha casa e minha família durante aqueles três anos tão felizes. Em razão ainda da pouca cultura, levava para o campo pouco recurso. Mesmo assim, procurei cultivar, ampliar e intensificar tudo quanto aprendera ali. No entanto, assim que parti com o convite da Missão Oeste do Brasil para assumir um campo de trabalho ainda de caráter missionário, tive a nítida noção de que não estava preparado para tal empreendimento. Tive medo. Essa consciência me valeu muito, pois me forçou a buscar o cultivo da humildade (virtude que andava e ainda anda longe de mim!) e do estudo sem trégua, porém desordenado, pois não podia contar com alguém que me desse a devida orientação sobre a metodologia de estudo e trabalho de modo bem ordenado e frutífero. Tive que criar minha própria meta e metodologia, ainda que muito imperfeita. Vale dizer que o missionário norte-americano com quem o obreiro trabalhasse não lhe passava nenhuma instrução propriamente dita, só exigia dele resultado prático; ainda mais que nem mesmo dominava o idioma brasileiro; a única coisa que a Missão esperava do obreiro era que produzisse os devidos frutos, isto é, números de novos membros; sem resultado concreto, era dispensado. Isso me levou a programar a vida cotidiana, quer pessoal, quer familial, quer ministerial. Levantava-me de manhãzinha e lia a Bíblia durante horas, memorizando e sublinhando textos; lia também outros livros, mas, além de poucos, eu não tinha ainda uma disciplina de assuntos; por isso me vi forçado a comprar livros e mais livros, pois os que eu levara do IBEL eram pouco mais de uma dúzia, contando com a Bíblia. Um dos livros que me acompanharam a vida inteira, até hoje o examino, foi o dicionário bíblico de John Davis, adquirido durante a vida no IBEL; hoje, anotado, sublinhado e sovado de tanto uso, porém ainda em bom estado, já o aposentei, pois adquiri uma versão atualizada dele, e muitos outros dicionários e enciclopédias bíblicos, nos quais faço pesquisa contínua. Naquele tempo, os auxílios que hoje temos em mãos eram muito raros, caros e de curto alcance. Devorava tudo o que vinha às minhas mãos. Dava o maior valor a qualquer livrinho, porém ainda não tinha a devida diretriz no que diz respeito à qualidade teológica, pois ainda não havia recebido
nenhuma orientação sobre literatura reformada, e naquele tempo era ainda raridade. Todos os professores do IBEL eram de convicção reformada, porém não davam a devida ênfase sobre a matéria. Ao sair de lá, não podia afirmar verbalmente que era calvinista, pois não recebera a devida orientação a respeito. E assim procurei preparar-me bem, fosse para o sermão, fosse para o estudo, tendo sempre em mente a advertência “profética” do Rev. Saulo de Castro Ferreira de que, possivelmente, em cem anos eu aprenderia a pregar. Com o passar do tempo descobri que não havia nascido com o dom da oratória, e que jamais seria um pregador fluente e atraente. O antigo mestre estava certo. Contudo, sempre tive em mente que cada um tem seus dons divinos. Para realizar uma obra consistente e duradoura não precisa ser um orador de primeira linha. O que cada um de nós tem a fazer é preparar-se bem para que não ensine heresia e faça o povo entender claramente sua interpretação bíblica. Portanto, nunca me envergonhei de não ser um orador fluente e eloquente; só queria ser convincente. Sim, o que me importava era convencer os ouvintes com a exposição da verdade de Deus.
2. O pastor como profeta de Deus E assim eu li e estudei muitos livros importantes, particularmente de oratória. Li minha Bíblia até consumi-la, dezenas de vezes, e então comprava outra. À tarde saía a dar assistência “pastoral” ao rebanho e interessados no evangelho. Para isso, estudava livros sobre “como ganhar almas para Cristo”. Preparei vasto acervo de estudos bíblicos; e para isso escarafunchando toda a Bíblia. Adquiri um grande traquejo no manuseio prático da Bíblia e na citação de memória de muitos textos relacionados com diversos assuntos. Costumava decorar quase tudo o que marcava nela. Sempre tive a nítida visão de que um obreiro eficiente tinha de ser o homem mais bem preparado da comunidade. Ele representava a igreja na sociedade em que esta estava inserida. Ou a enobrecia, ou a empobrecia de vez; ela estava nele, homem de Deus, como seu profeta, mestre e representante. Se a representasse mal, então ela sucumbiria ou permaneceria no anonimato. Este era meu lema: a igreja estava incorporada em minha vida e ministério. O pastor, quando sobe ao púlpito, tem de ter a consciência de ser profeta de Deus. Aquele que não tem o elemento profético de interpretar corretamente a Bíblia e aplicá-la à vida do rebanho deve procurar outra coisa para fazer na igreja. Muitos hoje estão pastoreando igrejas sem que sejam realmente pastores. O rebanho vê seu pastor no púlpito. Durante a semana ele desaparece. Nem mesmo responde aos telefonemas das ovelhas que enfrentam algum problema. O verdadeiro pastor conhece bem suas ovelhas; conhece sua problemática; conhece bem as que geram dificuldades ao seu pastoreio. Há as descuidadas, as agressivas, as que mais parecem bodes que ovelhas. Ele não pode gastar mais tempo com algumas ovelhas favoritas do que outras que lhe são desagradáveis. Aliás, se tiver de fazer discriminação, que seja gastando mais tempo com as problemáticas. Em sua maioria, as igrejas modernas são rebanhos que não têm pastores. Muitos dos pastores são meros profissionais que cumprem uma tabela e no fim do mês recebem seu salário. Isso é desastroso! Algumas ovelhas podem até mesmo crescer em conhecimento, porém seu espírito vai definhar desnutrido do pão celestial. O conhecimento tem de estar associado à função pastoral de apascentar as ovelhas. Ele lhes ministro conhecimento e o conforto que nos advém do pão da vida e da água viva.
3. O pastor como apologeta de Deus Uma área do pastorado que naquele tempo exigia muito do obreiro de Cristo era a apologética. Isso me preocupava, pois me faltava o devido traquejo para lidar com as seitas que já se proliferavam com extrema rapidez e com indivíduos de espírito polêmico em prejuízo do rebanho. Eu os encontrava nas ruas, nos lares, no templo durante os estudos semanais, no período de escola bíblica dominical e nos cultos vespertinos. Quase sempre eles estavam aí para testar o ministro da Palavra com suas indagações sofísticas e capciosas, com seu intuito diabólico e solerte, principalmente se o ministro mantinha ainda a aparência de neófito. Não pertencem à Igreja de nosso Senhor; não nutrem o menor interesse pelo avanço do reino de Deus, porém o Senhor da Igreja os deixa em nosso caminho e em nossa faina para forçar-nos ao estudo da sã doutrina. O joio força o trigo a manter sua identidade como tal. Os apóstolos tiveram que enfrentar os mesmos tipos de pessoas. Elas estavam presentes durante o ministério dos profetas, de Jesus e dos apóstolos. Lemos na história da igreja que esses indivíduos estavam sempre presentes enquanto a igreja se desenvolvia teológica e eclesiasticamente. Deus sempre deixou essas ervas daninhas em sua igreja como um terrível teste para os obreiros e a própria igreja; ou, no dizer de nosso Senhor Jesus Cristo, o maldito joio no meio do bendito trigo, com o intuito de destruir a obra do Senhor, sempre associado ao trigo de maneira solerte. Por exemplo, por que ele não impediu nem impede o surgimento e crescimento das seitas heréticas que trazem tanto dano e perturbação à igreja genuína? Para manter a igreja desperta e preparada para enfrentá-las e instruir com profundidade na sã doutrina o verdadeiro rebanho do Senhor. E também para servir de teste aos falsos e aos verdadeiros crentes. De vez em quando é bom que haja sangria, para que o sangue contaminado drene e o resto seja purificado e conservado. Quero dizer que o afastamento voluntário de certas pessoas do seio de uma igreja local pode ser saudável para esta. Ruim é quando tal afastamento visa e consegue levar consigo outros e tumultue todo o rebanho. Eu tinha consciência de que meu dever era esse. No entanto, eu estava muito aquém de um obreiro bem preparado no manejo da palavra da verdade. Aliás, um de meus textos prediletos era justamente este de Paulo a
Timóteo: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2.15). Memorizei-o bem e o repetia dia e noite. Em minha primeira Bíblia de obreiro, que durou pouco em razão do constante uso, sublinhei este versículo e fiz dele como que um pivô em meu preparo para instruir a igreja e para confrontá-la com os membros de seitas heréticas ou os aventureiros avulsos que não amam, nem creem, nem nutrem interesse algum pelo conteúdo da Santa Escritura. Seu intuito é envergonhar e confundir os obreiros de nosso Senhor. Se bem me lembro, nunca fui vergonhosamente derrotado por essa plêiade de ministros do erro. Repito, eu usava toda a manhã para a leitura da Bíblia, para a leitura de livros teológicos e para a leitura de livros de auxílio que nos ensinam como enfrentar os membros de seitas. E aprendi cedo que muitos desses representantes de seitas se preparam bem; falam bem; são de boa aparência. Subestimá-los é cometer um sério erro de cálculo; é agir com leviandade. Foi para isso que adquiri já naquele tempo muitas “ferramentas”, até formar uma boa biblioteca. Muitos perguntavam à minha esposa se eu tinha na mente a Bíblia de cor e se tinha bom salário para adquirir tanto livro. Tive que enfrentar os membros da Congregação Cristã do Brasil, outros indivíduos da mesma linha que naquele tempo eram muito mais proselitistas do que hoje. Outro grupo de atitude sutil eram os adventistas, na pessoa de seus vendedores ambulantes, principalmente das obras de Hellen G. White e sobre saúde. A princípio, eram “irmãos”; “arranchavam-se” em nossa casa, comiam à nossa mesa e nos tratavam como se fôssemos seus irmãos em Cristo, e faziam isso para economizar a hospedagem em um hotel; no final, tentavam dar o golpe sectário. Se eles entravam em casas de presbiterianos, por exemplo, sussurravam secretamente em seus ouvidos o mandamento do sábado, alertando que quem não guarda esse mandamento perfeitamente está perdido para sempre. Ao descobrir essas artimanhas, eu os espantei de nosso convívio e instruí minha igreja sobre essa matéria. A Providência usava todos esses indivíduos como meus professores. Eles me forçavam a estudar com afinco. Vale dizer que muitos dentre os adventistas são pessoas crentes e boas; que a própria Igreja Adventista possui muito de positivo no campo social e musical. Generalizar é correr o risco de cometer injustiça. Aqueles que creem em Cristo de todo o coração, mesmo com um ensino bíblico legalista e
prejudicial, certamente fazem parte da Igreja de nosso Senhor. Conheci muitos deles com quem eu me detinha por bom tempo em colóquio bíblico e fraterno e creio que deixei neles boa influência. Fiz amizade com alguns espíritas, doutos em seu sistema religioso. Fiz amizade com o João da farmácia, atencioso e prestativo, correndo à minha casa até mesmo para aplicar uma injeção num doente. Espírita confesso, ele tentava provar que a Bíblia era um livro extremamente falho e pouco confiável; que sua origem era meramente humana, e que não possui nenhum valor para estabelecer doutrina. Com habilidade e sem destruir nossa amizade, mostrei ao João que a Bíblia era o livro mais miraculoso de toda a história humana. Resultou que ele passou a marcar em sua Bíblia o que eu ministrava, e sussurrava à minha esposa que não conseguia “dobrar-me”. Pode ser que ele morreu sem conhecer e abraçar a graça de Deus em Jesus Cristo; se for assim, no último dia não poderá dizer que eu não o avisei. Mas também pode ser que ele tenha feito isso e se salvado eternamente; e espero de todo o coração que seja assim. Tive amigos ateus que tentavam provar que Deus é uma quimera inventada pelas mentes religiosas. Eu os enfrentava com dois livros: a Bíblia e a Natureza. Já que não criam na veracidade da Bíblia, então os volvia para a natureza, procurando saber deles como é possível toda esta grandeza inexplorada vir à existência sem uma Mente suprema a dar-lhe origem. Deixei alguns deles desnorteados com seu ceticismo. Reitero: todos estes foram, de certo modo, meus professores. Eles me forçavam a ler, reler e memorizar os textos correlativos a todas essas seitas e ideias heréticas. O Senhor me deu a graça de não me envergonhar nem envergonhar o evangelho e a igreja por meu intermédio. Ainda que não fosse um ministro ordenado, sem a devida autoridade para exercer o santo ministério completo, contudo eu agia como pastor. Não ministrava a Ceia, nem batizava os recém-convertidos e seus filhos, nem impetrava a Bênção Apostólica; todavia, dava uma genuína assistência pastoral a todo o rebanho. Levantava-me a qualquer hora da noite para dar assistência aos afligidos por algum mal físico ou espiritual. Fiz isso durante toda minha vida pastoral, pois creio que o homem que não age assim dificilmente pode ser denominado de “pastor”. Não existe pastor que só atende em seu gabinete. O que age assim não passa de profissional religioso. Não obstante, não pretendo que o leitor creia que meu ministério foi
perfeito. Errei em muitas coisas. Aliás, sempre digo que o que mais ocupa minha mente não são os acertos, e sim os erros de minha pessoa e meu ministério. Deixei para trás um grande número de pessoas que não gostariam de sequer ouvir a menção de meu nome. Escandalizei alguns, decepcionei outros, feri o coração de muitos. Bem sabemos que a mesma pessoa que é “anjo de Deus” para alguns, é “anjo do diabo” para outros. Quando faço um retrospecto, meu coração transborda de tristeza e pesar por não ter realizado um ministério mais perfeito. Até mesmo alguns colegas de ministério guardam perene mágoa de mim. Muitos deles me evitam até hoje. Tudo isso constitui um pesado fardo que tenho de carregar dia e noite até o fim de minha modesta vida. Ah! como gostaria de fazer o relógio do tempo retroceder! No entanto, bem sei que tal coisa é impossível; e, mesmo que fosse possível, quem sabe eu iria corrigir uns erros e cometer outros? Sou um homem com incrível facilidade de errar. Se Paulo tinha tristes lembranças de seu passado, o que me sobra?!
4. Primeiro campo Meu primeiro campo missionário foi Iturama; naquele tempo, uma cidadezinha do pontal mineiro, o último município (em 1964) do Triângulo Mineiro. Quase todo o predomínio religioso ali era romanista. O padre da paróquia era antigo ali e dominava a consciência religiosa de quase toda a população. Bitolado, sem cultura sólida, mas com a mesma sanha da “santa inquisição” da igreja romana, mantinha os “fiéis” na máxima ignorância religiosa. Com isso, o evangelismo era dificultado e o povo seguia seu caminho ignorante da plena veracidade da religião de Jesus registrada na Santa Bíblia. E a Providência me colocou ali. Em um encontro entre nós dois, aquele padre me disse com aspecto de senhorio, olhando de cima para baixo, que a maior desgraça na vida de uma pessoa é ela mudar de religião. E eu lhe respondi que a maior desgraça na vida de uma pessoa é ela morrer sem a luz da verdade de Cristo; e que, se eu não tivesse deixado o romanismo e não tivesse abraçado o evangelho límpido, então, sim, minha vida teria sido uma desgraça. O assunto morreu ali. Para manter os “fiéis” sob o jugo do Vaticano, a igreja romana engendrou um artifício diabólico: “Mentir para o bem da igreja não constitui
pecado”. Portanto, para proteger o rebanho contra os “lobos” — antigo conceito para levar o rebanho a crer que os cristãos que não fazem parte do redil da igreja romana são os lobos que procuram matar o rebanho —, os sacerdotes podiam, sem nenhuma culpa diante de Deus, torcer a verdade. No entanto, nós cristãos bíblicos aprendemos nas santas páginas que essas artimanhas não passam de engodo do Inimigo. Os que ensinam isso são justamente os falsos profetas que querem destruir o rebanho do Senhor. São lobos travestidos de sacerdotes do Senhor.
CASAMENTO Nesse ínterim, há um elo que liga meu ministério inicial com um fato de suma importância: assumi aquele ministério insipiente ainda solteiro, para logo depois ir à casa da noiva e voltar casado. Ainda no IBEL, amei uma jovem da mesma classe, Cremilda, e ela correspondeu. Então nos comprometemos de unir nossas vidas para seguirmos juntos no trabalho do Senhor. Tudo foi feito com muito critério e ponderação, de cá e de lá, e nada se fez com precipitação. A ação da Providência divina nos introduzia ali juntos, na mesma classe, para estarmos constantemente em contato um com o outro. Na primeira metade do curso nem percebemos isso. 1. Encontro inesperado Ela era mineira, natural de Lagamar, Minas Gerais, e ora residente em Formosa, uma das cidades goianas mais antigas, limítrofe com o Distrito Federal. Em fevereiro de 1961, ela saía de seu lar em Formosa rumo a Patrocínio, Minas, e eu saía de Tupaciguara, também Minas. Nenhum dos dois nem mesmo tinha a mínima noção da existência do outro. Duas vidas completamente estranhas e de formação completamente adversa. Como chamaríamos de coincidência esse tipo de acontecimento? Coincidência fala de acontecimentos fortuitos, sem nenhum planejamento ou propósito. É evidente que de nossa parte não houve planejamento; no entanto, houve propósito e planejamento da parte do Senhor do Universo, o qual governa tudo com seu desígnio sapientíssimo. Para com Deus, nosso encontro não foi fortuito ou casual. O grande hino que entoamos nas igrejas declara: “Para mim, o acaso não haverá”. Nem acaso, nem destino, e sim Providência sábia
e perfeita. Para nós, nada é fortuito, nada é coincidente, nada é casual. Já na eternidade o Eterno nos destinou um para o outro. Esta é a visão que mantém um casal unido até o fim, a despeito das grandes diferenças, dificuldades e choques existenciais. Os que ajuntam o que o Eterno não ajuntou verão seus planos dolorosamente desfeitos.
2. Origem e formação Senhor Clarindo Fernandes Caixeta e dona Rosa Araújo, ambos de Lagamar, se casaram em 1940, gerando dessa união Otávio, Cremilda, João, Antônio, Nilson e Nilda. Esta faleceu ainda na infância e Cremilda ficou sendo a única mulher no rol de irmãos. Sua formação cultural tem seu ponto de partida com seus sete anos de idade, quando a família se mudou para o município de Unaí, Minas Gerais, passando a residir nas proximidades da Fazendo Ribeirão, propriedade de José Mariano, ele e família já crentes, onde a Missão Oeste do Brasil fundara uma escola primária. Foi nessa escola rural e evangélica que Cremilda aprendeu as primeiras letras. Nisso há semelhança entre ela e eu, pois também aprendi as primeiras letras numa escola rural. Com a diferença que ela começou numa escola evangélica e eu numa escola católico-romana.
3. Primeira professora Sua primeira professora, de nome Ana Correia, cuja influência norteou profundamente sua vida futura, e cuja vida foi dedicada inteiramente ao trabalho do Senhor desde jovem, deixou naquela região rural uma marca indelével de exemplo e influência cristã. Cremilda conta que Ana Correia era uma moça linda e meiga. Ela cuidava de todos os que vinham de fora e moravam em cabanas que chegaram a formar uma pequena vila. Vale dizer que naquela escola rural estudaram, ao mesmo tempo, pessoas de renome no trabalho do Senhor; por exemplo, José Gonçalves de Siqueira, Otávio Alves Caixeta, Alcy Barros, entre outros. Esta estudou no IBEL antes de nós; já nosso querido “Siqueira” (assim chamado pelos amigos e colegas) e meu cunhado Otávio foram nossos contemporâneos. São vidas cuja história se entrelaçam desde a infância e depois se estreitam ou se afastam para sempre. Por exemplo, Cremilda conta que bem mais tarde ela e Ana Correia, já
então Ana Correia Marçal, pois se casara com Manoel Marçal, nosso colega de lidas missionárias, encontraram-se no Acampamento Boa Esperança, Goiânia, numa reunião de professores da Missão Oeste do Brasil; ela, diretora da escola da Missão em Uruana, Goiás; e Cremilda, também diretora da escola da Missão, em Paraíso do Norte de Goiás, hoje Paraíso do Tocantins. Ambas se abraçaram e se lembraram emocionadas daquele tempo em que esta, ainda menina, fora aluna daquela. Num amplexo repassado de emoção, lembraram-se daquela bendita influência que Cremilda recebera, na infância, desta mestra cuja vida fora inteiramente devotada ao serviço do Senhor durante toda sua vida. O reino de Cristo é maravilhoso e congraça pessoas com laços inquebráveis de uma perene e bendita união. No reino do Senhor, um influencia o outro, numa corrente ininterrupta. Daí ser especialmente abençoada a vida que se dedica inteiramente ao serviço do Reino. Senhor Clarindo era um homem de espírito cigano, arrastando a família de um lado para o outro, quase sem cessar. Talvez nem ele mesmo tivesse noção de todos os lugares onde moraram. O fato é que no contexto desta história de casamento eles moravam em Formosa, e foi ali que os conheci e foi ali que nos casamos.
4. Fascinante descoberta Recuando um pouco, começamos e terminamos o curso bíblico juntos, em novembro de 1963. Sua formação cultural e doméstica era muito superior à minha. Pai, mãe e quatro irmãos homens, todos crentes e sempre juntos, formando uma abençoada família. Enquanto que eu, há anos vivia sozinho, longe de pai, de mãe e dos sete irmãos. Uma formação completamente oposta à outra. O desejo dela era preparar-se bem e ser uma auxiliadora apta na igreja; à semelhança de Ana Correia Marçal, sua mãe espiritual, essa aspiração se concretizou, não do modo como ela imaginara, e sim como o Eterno lhe delineara imperceptivelmente. Ela não teve nenhuma dificuldade em passar no teste inicial do IBEL ministrado aos novatos; enquanto que eu não fui bem sucedido no mesmo teste, mas fui ajudado pela mão divina e pela simpatia humana. Eram duas vidas completamente opostas. Não havia nada em nós e em nossa história para esse consórcio dar certo, exceto a graça divina que sempre assiste aos carentes e dependentes dela. Até então, nunca
tinha havido uma demonstração visível de qualquer interesse um pelo outro, porém sentíamos certa atração secreta, imperceptível, inexplicável, indecifrável. Este é um dos mistérios da Providência, e é assim que esta triunfa.
5. Fisgado por um par de olhos negros Em meado de 1962, com um olhar furtivo e místico, ela de lá e eu de cá, sem qualquer intenção velada, nasceu entre nós um amor profundo e perene. Comparo isso a um pescador hábil que fisga o peixe de tal modo que este faz tudo o que pode para escapar, porém nada consegue, senão que o anzol finca cada vez mais fundo e firme na boca do peixe. Ela me fisgou; e eu a fisguei. Então entendi que essa era a moça de meus sonhos; eu jamais conseguiria entender o que ela viu em mim. Eu, feio e desengonçado de nascença, tímido e sem qualquer atrativo; ela recebeu de herança da parte do Criador uma forma belíssima, contornos perfeitos, sorriso largo e encantador. Senti-me totalmente cativado, fisgado, de repente, por sua beleza externa e interna, ou seja, beleza de corpo e alma. Uma vez iniciado assim, nosso namoro durou o resto do tempo no IBEL, isto é, um ano e meio. Ao percebermos que nosso “destino” fora ligado e selado pela mão celestial, então procuramos nos conhecer melhor, esperando com paciência e sabedoria na boa mão de Deus. Passamos a orar no sentido de um dia nos unirmos para seguirmos juntos pelo resto de nossa vida. E esse sonho era extremamente difícil. Ela tinha poucos recursos; e eu não tinha nenhum.
6. Regime severo Quando digo “paciência e sabedoria”, tenho em vista o duro regime do IBEL em nosso tempo no tocante ao namoro em seus recessos e as consequências. Era um regime nos moldes “puritanos”, sem chance nem meios termos. Quem transgredisse tal regra era “convidado” a pegar suas coisas e voltar para casa. Minha agravante é que nem casa eu tinha. Curiosamente, naquele mesmo tempo a congregação do IBEL resolveu fazer um teste com os alunos. Durante certo período, os namorados podiam encontrar-se na casa de um dos professores a fim de discutir e ampliar seus
planos futuros. Sem auto-bajulação, nós dois cumprimos à risca a regra, porém outros transgrediram; além de voltarem para casa, a regra perdeu a validade e voltou com mais rigor.
7. Peço a mão de sua filha Nesse ínterim, porém, terminava nosso tempo ali e voltamos para casa, porém já com planos e preparativos para o casório. No período de namoro, ainda nos recessos do IBEL, fui a Formosa conhecer os futuros sogros e cunhados. Ainda naquele tempo, havia um costume muitíssimo salutar e respeitoso, a saber, o noivado só era “sacramentado” quando o moço ia à casa da moça pedir a seus pais sua mão em casamento. Era quase que um sacramento. Quase toda a juventude moderna dirá que tal costume era muito “brega” ou ridículo. Ele foi substituído por qual costume? Um muito melhor? É claro que não! Hoje os pais nem tomam conhecimento dos “planos” dos filhos. De repente, as coisas já aconteceram e descobre-se que não haverá casamento, e sim “ajuntamento”. Resultado? Há poucas famílias bem estruturadas e felizes, porque muitos valores foram substituídos por outros destrutíveis. Quanto aos filhos, é impossível que sejam bem ajustados e se sintam ladeados pelo pai e pela mãe. O que é ainda mais pavoroso, isso se dá no seio da Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo! Sem a bênção e participação paternas e maternas, a formação de um bom lar é quase impossível. Os jovens leem a Bíblia; meditam nela; estudam-na; confessam com os lábios que creem nela. Na prática, porém, creem em alguma parte dela, e não em sua totalidade. Então, todos reunidos na modesta casa em Formosa, pais e irmãos, o pastor da igreja, Rev. Manoel Cavalcante de Melo, no espírito de culto divino, com o coração aos saltos, solicitei verbalmente da família o direito e liberdade de casar-me com sua filha e irmã, com o fim de fazer parte da mesma família. “Senhor Clarindo e dona Rosa, desejo muito casar-me com sua filha Cremilda. Ambos, com o endosso dos filhos, concordariam e abençoariam nossa união? Todos já sabem que eu não possuo materialmente nada. Não tenho dinheiro nem para as alianças. No entanto, já tenho compromisso de campo para trabalhar e sustentar nossa vida inicial. Não prometo nada, senão que serei um membro respeitoso e afetuoso desta família.”
Inicial e naturalmente, houve certa relutância e constrangimento. Quem era esse moço que não tinha dinheiro nem mesmo para comprar as alianças? Quem era ele que só tinha casa para morar porque a Missão já o havia convidado para um campo que já possuía casa pastoral? Quem era esse moço que sequer tinha dinheiro para comprar a mobília da primeira moradia? Quem era esse moço de cuja família nem mesmo ele tinha sequer notícia? Quem era ele senão um moço estranho, sem ponto de referência ou procedência, como um “João Ninguém” que chegou para fazer o curso no IBEL como aventureiro, vindo do nada? Criaram aquela filha única dentre quatro filhos homens para entregá-la a alguém de existência tão duvidosa? Pus-me no lugar deles e compreendi o drama. Creio que eu só tinha uma vantagem em tudo isso: Otávio, seu irmão, foi cursar o IBEL um ano depois de nós, em 1962. Embora entre nós não houvesse qualquer semelhança além da fé em Cristo, o resto de nossas personalidades e histórias era totalmente diferente; contudo, ele já sabia um pouco a meu respeito: que eu era um moço estudioso, determinado, idealista, que já tinha um campo para exercer seu ministério leigo, que sempre desfrutou o respeito e estima do corpo regente e docente do Instituto, e inclusive da estima de boa parte do corpo discente. O fato é que, naquele momento, nos recessos daquela casa modesta, porém bem estruturada, recebi “sinal verde” para ingressar-me na família — a mão de Cremilda me foi dada em meio a orações e leitura da Santa Bíblia. No entanto, tive que seguir à risca o regime severo daquela família. Nem podíamos sair sozinhos para curtir nosso namoro. Daí haver, inicialmente, alguns atritos e decepções.
8. Substituição difícil Já era fim de ano, e tínhamos que nos casar logo, pois nosso primeiro campo nos aguardava — Iturama. Cabe-me dizer, neste ponto, que iria substituir um obreiro muito dinâmico e querido, já com certa experiência e prestígio — senhor Vicente Almeida. Casado com dona Eva, aquele casal realizara ali um trabalho de profundas raízes que durou cinco anos. Aliás, eles foram os obreiros fundadores daquela congregação, isto é, os pioneiros, já com uma escola primária, que era uma das metas da Missão Presbiteriana no Brasil: em cada igreja, uma escola. Eles iriam para outro campo e nós assumiríamos seu lugar, como “marinheiros de primeira viagem”, tanto na
vida conjugal quanto na vida ministerial. Bem mais tarde, eu e aquele abençoado obreiro nos encontraríamos em outras circunstâncias. Chegou fevereiro de 1964 e já me encontrava instalado no campo de Iturama. Logo depois retornei a Formosa a fim de retornar ao campo tendo ao lado aquela moça que seria minha companheira por mais de meio século. Solicitei de meu sogro um empréstimo para a aquisição das alianças. Mais tarde um de meus cunhados me lançaria isso em rosto como desabafo: “Você não é nada, pois nem dinheiro teve para comprar as alianças”. De minha parte, não houve nenhuma contribuição nas despesas da festa. Houve, sim, muito constrangimento. Festa? Que festa? Meu sogro fez mais um hercúleo esforço e deu à filha uma modesta festinha de casamento naquele dia 08 de fevereiro de 1964.
9. Beleza na singeleza Creio ser impossível imaginar uma cerimônia mais modesta que a de nosso casamento. No entanto, havia certa beleza e solidez que já não se veem hoje. O que se vê hoje é um aparato que ofusca os olhos físicos dos presentes; aparato que custa o que o casal às vezes nem possui. Muitos já começam a vida a dois casados também com dívidas; e quase sempre essas dívidas são deixadas para os pais pagarem. O predomínio não é da fé e compromisso, e sim da impactante beleza externa. Esta nada garante que a união seja abençoada pelo Eterno! Pelo contrário. Desse fato advém que muitos casamentos não são abençoados pelo Eterno. Ao longo de minha trajetória, vi e participei de muitos casamentos sem esta bênção divina que a tudo cimenta. Como ministro do evangelho, nunca fui propriamente contra certa ofuscação de beleza nos casamentos, a qual dá vazão à vaidade humana natural, desde que tudo seja feito dentro do racional e na dependência da bênção do Altíssimo. Infelizmente, os lares não se estruturam bem porque o que se busca primeiramente não é o reino de Deus e sua justiça, e sim as enganosas fascinações deste mundo alienado de Deus, com o intuito de mostrar aos presentes uma importância quimérica. Até os cristãos caem nesta esparrela do maligno. Quantas cerimônias nupciais eu realizei e que foram de pouco ou nenhum efeito duradouro. Mais tarde, o grande número de paraninfos testemunha um lar desfeito. Isto é de grande peso negativo na vida de um ministro do evangelho e de uma igreja local.
O ministro de nossas núpcias foi um dos homens de Deus que mais me influenciaram e me abençoaram em toda minha vida pessoal e ministerial. Nunca conheci bem a história do Rev. Manoel Cavalcanti de Melo e sua esposa dona Odete. Mas o pouco que conheci dele valeu a pena. Raramente se vê hoje pastores como aquele. Coração amplo, alma transparente, palavra franca e direta, porém entremeada de discernimento, sabedoria, prudência e mansidão. Aquela família nos marcou profundamente. Para Cremilda, eles eram como que segundos pais e vieram a ser assim também para mim. O outro detalhe foi a presença maciça de três grupos: os amigos, os parentes da família dela e a igreja propriamente dita. Portanto, nosso casamento foi ladeado por uma multidão invejável, pois social e economicamente sua família era modesta.
10. O que aconteceu com o fotógrafo? Para que fique registrado com mais propriedade no tocante à modéstia de nosso casamento, no momento não havia nem mesmo um fotógrafo amador para tirar algumas fotos; e não estava presente ninguém de minha família; literalmente, ninguém! Ainda literalmente, eu era um moço completamente destituído de amparo da família e de amigos. Por isso, doravante a família Caixeta veio a ser minha família. E provamos isso ao longo de nosso convívio. Embora houvesse diferenças marcantes entre eu e os irmãos de Cremilda, inclusive seus pais, todavia sempre vencemos essas diferenças e conseguimos dar sequência à nossa trajetória como bons amigos e companheiros. Tudo isso devemos à Providência divina. Esta estava sempre em ação a nosso favor. Não quero estender-me muito sobre a mobília doméstica com que começamos nossa vida a dois. Além de ser uma descrição penosa, não há muito que descrever, pois era tudo tão pouco e modesto, que causaria constrangimento até mesmo nos leitores desta história. Foi depois de casados que fomos aos poucos adquirindo coisas mais dignas e completando o básico que nos faltava. Pela primeira vez, tive um salário mais digno da parte da Missão, e Cremilda teve seu salário proveniente da escola da igreja. Vale lembrar ainda que não havia ninguém por perto, seja família ou amigos de outrora, que nos apoiasse no que faltava no tocante ao sustento. Nada podia ir além da receita mensal.
11. Abençoados a despeito das falhas No entanto, a despeito de tudo isso, Deus abençoou nossa união que, através do tempo, não obstante tantas fraquezas e falhas, mais minhas que dela, ultrapassamos meio século de vida a dois, irmanados no mesmo ideal cristão: servir juntos ao Senhor da Igreja. Ao longo de todo esse tempo, iríamos experimentar muitos solavancos da parte de colegas de ministérios e de membros de igreja. Nosso campo de batalha não seria lá fora no mundo; seria no interior do corpo de Cristo, a igreja, como nosso Senhor experimentou da própria igreja que ele veio salvar: “veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1.11). Nunca fomos perseguidos pela sociedade na qual fomos inseridos. Toda nossa peleja foi e seria no interior dos muros da cidadela de Deus.
12. Retalhos de história da família de Cremilda Como eu já disse, Cremilda é filha de Clarindo Fernandes Caixeta e Rosa Alves Caixeta; e irmã única de Otávio, João, Antônio e Nilson. Mais tarde Otávio e Antônio seriam também pastores. Em sequência, registro a composição das famílias de seus irmãos. Otávio casou-se com Fleurilene, gerando Clarirose, Vívian, Éber, Otávio Jr. e Marcos. João casou-se com Maria, gerando Jônatas e Varlete. Antônio casou-se com Laura, gerando Aline, Alisson e Ailane. Nilson casou-se com Benedita, gerando Jefster Farlei e Jefster Fania. É oportuno registrar que Otávio ficou viúvo e casou-se segunda vez com Sheyla sem deixar filhos. No entanto, todos os filhos de seus irmãos constituíram suas próprias famílias.
12.1. Tela de fundo No tocante à dona Rosa, filha de Jerônimo Alves de Araújo e Amélia Alves de Araújo, naturais de Lagamar, Minas Gerais, sua história pessoal se perde nas brumas do tempo, cuja memória é difícil até mesmo para eles. Desde a adolescência, ela já se afeiçoara ao Clarindo, também adolescente, e era correspondida. Em certa festa de romaria na cidade da Lapa, posteriormente Vazante, que era e continua sendo sede de garimpo e de romaria, aproveitando a visita do sacerdote que residia em outra cidade,
resolveram casar-se — ela com dezessete e ele com dezoito anos.
12.2. Conversão de Clarindo Fernandes Caixeta No tocante ao senhor Clarindo, sua história mereceria ser escrita com mais detalhes, o que ocuparia um espaço além do permitido neste livro. Ele era filho de Antônio Fernandes Caixeta e Augusta Rangel da Silveira. Como já disse, ele nasceu em Lagamar, Minas Gerais, conheceu o evangelho mais ou menos com 21 anos de idade, em 1942, já casado e já pai de Otávio e Cremilda. Esse conhecimento do evangelho se deu através de um obreiro leigo chamado Francisco Tolentino Caixeta, também professor numa escola rural. No entanto, só professou sua fé seis anos depois, em 1948, pela ministração do Rev. Augusto Silva Dourado, professando sua nova fé e batizando seus três filhos, Otávio, Cremilda e João. Quando Cremilda nasceu, a mudança espiritual de seu pai já havia ocorrido. Tanto que na ocasião ela nem pôde ser batizada pelo ministro evangélico, e sim pelo padre da paróquia por imposição da mãe e da avó paterna. E assim ela nasceu em plena guerra doméstica e religiosa. De um lado e do outro imperava um romanismo exacerbado regido pela superstição, sem aquele glorioso conhecimento que provém da leitura da Santa Bíblia. Nem o sacerdote nem sua mãe, nem seus avós e nem qualquer outro tinham a visão nítida da Providência divina. Quiseram abortar essa Providência. Mas quando o Senhor age, nenhuma tentativa humana pode intervir. E assim seus esforços de nada valeram para desviar o curso da história daquela família, especialmente de Cremilda. Estava escrito que ela seria minha companheira na mesma fé, no mesmo testemunho genuinamente cristão e no trabalho do Senhor. Como está escrito: “Agindo eu, quem me impedirá?” (Is 43.13). Não há força humana nem diabólica que anule os propósitos do Eterno! Sua aceitação do evangelho foi muito abrupta e incomum, quando ninguém nas duas famílias ainda era evangélico. Além do mais, havia uma antipatia feroz da parte do romanismo nutrida contra os “protestantes”. Naquela época, quem era “protestante” estava sujeito até mesmo a ser apedrejado, cuspido, escorraçado da família e da roda de amigos. Senhor Clarindo teve que enfrentar a fúria da família e de amigos. Certo farmacêutico chamado José Rego poetou com ironia: “Lagamar, terra distante, reduto dos protestantes, onde não se adora Maria. Vai mudando
desta terra, mancando de uma perna, o profeta João Elias”. Naturalmente, a alcunha de “profeta” se devia ao fato de ser ele “protestante”. Era sinônimo de alegria para a cidade quando um crente se mudava do lugar para outro. Por exemplo, falando-se de perseguição, lemos no registro histórico da Igreja Presbiteriana de Lagamar o seguinte relato: Em 1942 tentou-se a construção de um templo em proporções maiores, numa área cedida pela Prefeitura de Presidente Olegário. Na época, o prefeito... orientado pelo pároco... embargou a obra, uma vez que ela se daria em terreno público. Foram duras tentativas de obtenção do terreno, porém em vão. Consciente de que a prefeitura e o pároco não cederiam espaço para a construção do novo templo, José Américo adquiriu um terreno ao lado da igrejinha original, e por conta própria iniciou essa construção. Aos pouco, conseguiu o apoio de outros fazendeiros locais. E o registro segue informando que a prefeitura, aliada ao sacerdote, continuaram sua perseguição, tentando de todos os modos barrar os “protestantes” de terem seu próprio templo, porém não conseguiram, pois cada vez mais surgia e aumentava o interesse dos fazendeiros em favor dos “protestantes”. E assim o novo templo pôde ser concluído e o legítimo povo de Deus pôde também ter seu santuário para os cultos de adoração e para o ensino da Palavra. Naquela época ocorria coisa muito pior dirigida aos protestantes. Mas era mui proveitoso, pois a perseguição tornava a igreja forte e com muito menos cizânia, a qual é semeada hoje com muito mais proficiência e então prospera. Hoje já não somos chamados protestantes, não somos perseguidos como outrora, porém perdemos em grande medida a qualidade e vitalidade da vida cristã. Hoje, os escândalos campeiam livre e abertamente no seio da igreja. Outrora havia diferença em ser “protestante”; hoje, pode-se dizer com doloroso pesar que quase não há diferença, quando não ocorre que esta diferença seja em detrimento da fé cristã. A luz se ofuscou e o sal perdeu seu sabor.
13. O Evangelho em Lagamar Como em Ceres, Goiás, a história da igreja e da cidade se entrelaça por laços tão fortes, que as duas histórias não podem dissociar-se sem que uma seja danificada. Por exemplo, sintetizando uma pesquisa feita pelo Rev. Salvador Moisés Fonseca, a pedido, homem que, além de professor no IBEL, é profundo conhecedor de toda aquela vasta região, lança mão de uma monografia de Viviane Ribeiro e Carlos Henrique de Carvalho. Então, Rev. Salvador fornece abaixo o seguinte informe: Os primeiros documentos referentes às terras, onde se situa o município de Lagamar, datam de 1931, época em que o local pertencia a Patos de Minas. Antes denominada fazenda Carrapato, Lagamar recebeu tal denominação pelo fato de ter havido nas proximidades do município uma lagoa de água salobre. O desenvolvimento da Vila de Lagamar se deu a partir de 1938, quando ali se instalou o Sr. Porfiro Rodrigues Rosa, que objetivava abrir uma estrada que ligasse o povoado de São Pedro da Ponte Firme a Vazante, passando pela fazenda Carrapato... Em dezembro de 1938, o povoado foi elevado à categoria de distrito... com o nome de Lagamar; passando assim a pertencer ao município de Presidente Olegário. Sua emancipação ocorreu em 30 de dezembro de 1962... Para a instalação do município, foi nomeado intendente o Sr. José Américo Ferreira, até que se realizassem as eleições para eleger oficialmente um prefeito. O Sr. José Américo Ferreira era um fazendeiro influente na região e foi o fundador da comunidade presbiteriana em Lagamar.[6]
13.1. Dr. Alva Hardie Como em muitos lugares, a história do evangelho em Lagamar é fascinante e daria um livro volumoso. Como ficou registrado muito pouco
dessa história, a não ser palidamente nos livros de atas da igreja que se radicou ali, os mais antigos fazem alusões provavelmente corretas. Por exemplo, alguns se lembram da história de boca a boca de que o primeiro missionário que andou por ali fazendo picada para posterior proclamação do evangelho foi o Dr. Alva Hardie, grande e vigoroso missionário da Missão Oeste do Brasil que passou a residir em Patrocínio e percorria toda aquela ampla região mineira. Um relato feito pelo Rev. Wilson Castro Ferreira parece endossar tal probabilidade. Por exemplo, ele registra que Em 1922, Alva Hardie, em companhia de Robert Daffin, empreendeu uma longa viagem pelos campos do Presbitério de Minas... a vasta região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, estendendo-se até Patos de Minas, Carmo do Paranaíba e Paracatu.[7] Tudo aponta para a possibilidade de que o Dr. Alva Hardie passou pela região de Porto de Pilar segunda vez na década de 30. Isso é corroborado pelo registro histórico da IP de Lagamar após sua organização. No entanto, valendo-me da pesquisa criteriosa feita pelo Professor supracitado, Rev. Salvador, capto a seguinte informação: Como vimos anteriormente, o trabalho religioso no Triângulo Mineiro e no Alto Paranaíba teve início com John Boyle. No entanto, sua atuação neste campo, incluindo Lagamar, foi efêmera... Houve então um intervalo de mais ou menos 20 anos, em que o trabalho religioso no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba ficou por conta da população recentemente convertida. A segunda fase do trabalho missionário tem início em 1923 com a chegada de novos missionários norte-americanos na cidade de Patrocínio, que retomaram o trabalho religioso na região. Contudo, durante a fase de interregno, os crentes do município de Lagamar se uniam para ler a Bíblia e orar. Mas a consolidação da comunidade presbiteriana no município de Lagamar só ocorre após a conversão do fazendeiro José Américo Ferreira.
Portanto, há probabilidade de que o Dr. Alva Hardie e Rev. John Boyle tenham passado por ali em tempos mais remotos do que a fundação da igreja propriamente dita. É apenas cogitação, mas há elemento bastante comprobatório para se pensar assim.
13.2. Antonio Leão Mas, antes de abordarmos a epopeia em torno dessa figura histórica, isto é, José Américo Ferreira, fala-se também de um homem fugitivo da guerra chamado Antonio Leão que teria se radicado naquela região. Ele teria se casado com uma irmã de Antonio Fernandes Caixeta, pai de Clarindo Fernandes Caixeta. Sendo crente, passou a distribuir literatura evangélica e a pregar o evangelho às pessoas dali. Esse homem teria sido o primeiro a lançar as sementes do evangelho no coração do fazendeiro José Américo Ferreira antes de sua decisão definitiva que teria sido feita através do professor residente em sua fazenda, Francisco Tolentino Caixeta. Possivelmente, ele teria encontrado por lá os efeitos discretos da passagem do Dr. Alva Hardie e John Boyle em tempos idos. Esses são os caminhos da Providência no uso dos meios para a disseminação do evangelho que é como semente em terra boa que logo germina e frutifica. E nenhuma cizânia é capaz de impedir a proliferação da boa semente e a implantação de comunidades realmente evangélicas. Isso se coaduna bem com a história daquela igreja; e assim os efeitos do evangelho cumpririam com perfeição a parábola de nosso Senhor acerca do fermento que aos poucos leveda toda a massa. Pois com o passar dos anos surgiu naquela região uma das igrejas mais fortes do que até mesmo muitas das existentes nas grandes cidades. E isso tem a intervenção daquele homem que a Prof.ª Viviane diz ter sido “intendente do município” e “fazendeiro influente”. Até hoje naquela região fala-se desse homem um tanto misterioso e de sua conversão à fé presbiteriana, cuja história se estende um pouco mais.
13.3. Francisco Tolentino Caixeta Após receber no coração a semente do evangelho através de Antonio
Leão, o senhor José Américo teria tido com o senhor Francisco Tolentino Caixeta, professor em sua própria fazenda e crente notável, um diálogo determinante. Ouvindo ele a pregação do evangelho através de Francisco Tolentino em um culto em sua própria casa, veio a crer, com sua família, em um clima dramático, pois lemos no livro do Evangelista João Soares Branquinho, Dias abençoados, que aquele encontro de Francisco Tolentino com José Américo foi de caráter novelesco. Porque, após ouvir a mensagem, José Américo quis ter com Francisco Tolentino um diálogo reservado. Abriu uma gaveta, retirou dela uma caderneta com o nome de três fazendeiros, e em seguida lhe perguntou: Senhor Francisco, será que depois que eu matar estes três homens, Deus ainda me aceita como crente? Senhor Francisco Tolentino lhe respondeu incisivamente: O que eu vou lhe dizer é muito duro; mas não tenho nenhuma outra alternativa. Se o senhor matá-los, Deus não o aceitará jamais. E vou lhe dizer mais: o Espírito Santo tocou profundamente seu coração e lhe mostrou a salvação em Jesus Cristo. Se o senhor adiar a aceitação de Jesus como seu único Salvador, cometerá o pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo. E Jesus ensina que este pecado não tem perdão. Portanto, o que o senhor tem a fazer é queimar essa caderneta e aceitar a salvação que Jesus está lhe oferecendo agora, e assim se tornará uma nova criatura: um homem pacífico, humilde, manso etc. O senhor está numa encruzilhada: a esquerda conduz ao inferno; e a direita, aos céus. A decisão é sua. “Sendo assim”, disse o senhor José Américo, “eu vou para a direita”. [8] Isso mostra quão preciosa tem sido na história da igreja a participação de alguns leigos, homens e mulheres, os quais se envolvem na propagação do evangelho da graça de Deus de um modo direto e eficiente. Quantos têm recebido o perdão eterno em Cristo pelo serviço prestado por esses modestos servos de Deus! Em todo meu longo ministério sempre dei muito valor à participação do elemento leigo na igreja. Os leigos precisam se despertar e se
preparar para que o Espírito do Senhor os use em larga escala. Isso sucedeu a José Américo e foi determinante, pois este homem seria na história da igreja em Lagamar um fator histórico no desenvolvimento do evangelho em toda aquela região. A Providência divina usou esse homem como uma bênção. Vejamos isso com atenção.
13.4. José Américo Ferreira O senhor José Américo se ingressou na igreja com a família e permaneceu nela até sua morte. Eu o conheci, pois era tio de Cremilda. Através de sua aceitação da fé evangélica, muitos daquela região também aderiram à igreja através de seu esforço. Dali em diante, a história da igreja é quase que a história daquele fazendeiro que não aposentou sua arma de fogo “a serviço do evangelho” nem abandonou totalmente os lados obscuros de sua vida pregressa. Digo “a serviço do evangelho” entre aspas porque ele passou a defender os crentes contra os esquemas assassinos do padre que insuflava seus adeptos contra os crentes os quais às vezes se negavam a ceder aos gritos do sacerdote, se mostrando mais humanos que o próprio líder da igreja. Ele custeava do próprio bolso as despesas do trabalho presbiteriano numa vasta região, espalhando congregações, adquirindo terreno para a construção de salão e depois do próprio templo. A Providência divina estava no comando na implantação de uma grande igreja na região de Lagamar. No entanto, prosseguindo com a pesquisa feita pelo Rev. Salvador, ele conclui com esta nota: Portanto, o Sr. José Américo Ferreira foi o responsável pelo desenvolvimento da comunidade de Lagamar, durante o período em que as Missões estiveram ausentes deste campo. E, por conta própria, em favor da “nova” religião, passou a criar escolas no meio rural, alfabetizando crianças e adolescentes, inclusive de pais “incrédulos”.
13.5. Primeiros obreiros O fato é que aquela igreja se agigantou, sendo implantada e
disseminada até mesmo antes que a própria igreja romana fosse instituída ali. Ela atraiu missionários e obreiros leigos que vieram e deram-lhe assistência com empenho dobrado. Por ali passaram os missionários Estevão Sloop, James Woodson, Milton Daugherty, Joseph Wood; e os pastores brasileiros, Augusto Silva Dourado, Nelson Armando Bonilha (o mesmo que estava em Tupaciguara antes que eu viesse a conhecer o evangelho), Saulo Miranda e Wilson Castro Ferreira. O primeiro evangelista leigo a residir ali teria sido Adão Bomtempo, meu “velho” amigo, e o primeiro pastor brasileiro que pastoreou aquela igreja foi o Rev. Graciano Chagas dos Reis, cujo pastorado tão efêmero terminou logo com sua morte prematura. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente durante meu tempo no IBEL.
13.6. Clarindo Fernandes Caixeta Cremilda nasceu quando o senhor Clarindo se ingressava naquela igreja. Assim que foi recebido à comunhão da igreja, também foram batizados Otávio e Cremilda pela ministração do Rev. Augusto Silva Dourado, pastor da igreja de Patos de Minas. Obviamente, dona Rosa ficou fora por algum tempo. Mesmo em meio a tanta perseguição, aquela igreja vicejou e veio a ser uma igreja numerosa e forte. A história do senhor Clarindo e sua família é muito complexa e dramática. Com ele falecido, se torna mais difícil descrever aqueles transes que marcaram sua trajetória. Tenho-me valido da privilegiada memória de Cremilda para restaurar um pouco da história da família. Mas uma coisa é indubitável: sua experiência de conversão mostra o quanto é verídica a doutrina da eleição divina. Aliás, em minha opinião pessoal, creio que, se os cristãos fossem instruídos e sinceramente conscientes e gratos por sua eleição e predestinação, a igreja de nosso Senhor seria muito mais forte em fé e obras. Ter consciência de que o meu e o seu nome estão registrados no Livro da Vida gera em nosso ser um turbilhão de sentimento e reação. Ser grato pelo sustento material é um dever de cada cristão; mas, ser grato pelo destino eterno, bem definido e seguro nas mãos do Eterno, constitui uma bendita reação oriunda da graça do Deus soberano.
13.7. Evangelista dinâmico
Houve um período em sua vida que o senhor Clarindo trabalhou comigo como evangelista no campo de Rialma, enquanto eu era o pastor da igreja de Ceres, ambas em Goiás, apenas divididas pelo Rio das Almas. Impetuoso, e às vezes chegando às raias da temeridade, ele me causou alguns problemas administrativos e doutrinários. Certo dia, ele chegou à minha casa, nervoso e agitado, dizendo que ia pular uma lição bíblica dada na Escola Dominical, porque na verdade, para ele, não era bíblica, e que aprendera a ensinar somente o que estava na Bíblia. Foi avisar-me que não ensinaria aquela lição, pois discordava daquela doutrina. E qual era mesmo a doutrina? Predestinação. Ouvi toda sua queixa em silêncio e respondi-lhe com firmeza: Senhor Clarindo, eu o tenho na conta não de mero sogro; para mim o senhor tem sido meu segundo pai; e o tenho tratado assim. Caso o senhor queira ser franco e sincero comigo, então tem que me ouvir. O senhor diz que esta doutrina é antibíblica, enquanto que, se ela fosse removida da Santa Bíblia, esta perderia todo seu sentido, pois esta doutrina é a coluna dorsal de toda a Bíblia; ela começa no céu e termina no céu. Creio nesta santa doutrina, e para mim ela é mui cara, não apenas porque a IPB crê nela e a confessa, mas porque ela está em toda a Santa Bíblia; em alguns lugares, gráfica e enfaticamente. Se o senhor não quiser ensinar esta doutrina na igreja de Rialma, então não serve para ser meu auxiliar neste trabalho tão abençoado. O senhor pode procurar outro campo, pois não trabalho com quem nega uma doutrina tão explícita em toda a Santa Bíblia, pois eu creio e confesso aceitar a totalidade da Bíblia, sem qualquer reserva. O senhor não tem qualquer autoridade para escolher a doutrina em que quer crer. Este tem sido o pecado de grande multidão de cristãos, mas não pode ser nosso pecado. Resumindo, ele se retratou e continuou comigo por mais uns tempos. Ele realizou um bom trabalho na região de Rialma, de Palmital e, mais tarde, na igreja de Campinorte. Posteriormente, ele me confessaria que aquele tempo em Rialma foi um dos períodos mais felizes de sua vida. Muitas pessoas evangelizadas por ele vieram para a igreja e permanecem fiéis até hoje. O que quero dizer é que o senhor Clarindo repensou sobre a doutrina da predestinação e passou a crer nela e a ensiná-la.
13.8. Conselho pastoral
Meu conselho pastoral sempre foi que ninguém negue uma doutrina claramente bíblica só porque não a entende e a vê pela ótica carnal e pessoal. Sempre ensinei à igreja e principalmente aos neófitos que se ingressam na igreja que o dever do cristão genuinamente evangélico é abraçar toda a Bíblia, incondicionalmente. Não cabe a nenhum de nós, mesmo os mais sábios, escolher na Bíblia aquilo em que quer crer. Foi o Espírito do Senhor quem inspirou toda a Bíblia para que seu povo a tivesse como normativa e diretiva. Conheço “cristãos”, e inclusive denominações “cristãs”, que odeiam esta santa doutrina. Por que a odeiam? Porque ou não a entendem ou a entendem mal. Uma doutrina distorcida é suficiente para que o resto da Bíblia seja comprometido e visto de modo também distorcido. A teologia reformada é biblicamente sólida porque não permite qualquer negação doutrinal. Ela parte da soberania absoluta de Deus. O seu Deus é que é soberano, e não o homem. Portanto, negar e odiar a doutrina da predestinação equivale a violentar a revelação divina dada pelo Espírito Santo. Equivale a dar-me um direito que não me pertence. Meu dever sagrado é crer e abraçar toda a Santa Escritura como a revelação escrita de Deus. Tudo o que se encontra nela procede do Deus que quis revelar-se ao seu povo. Tudo o que se encontra nela provém de sua soberana graça.
14. Um fim doloroso Bem mais tarde, perdendo as forças e a saúde, passando a residir em Aparecida de Goiânia, estando Cremilda já aposentada de sua função no Instituto Mackenzie, e eu, sem igreja, e podendo fazer minhas traduções em qualquer lugar do país, com o advento da internet, combinamos então sair da capital paulista e vir morar em Aparecida de Goiânia para que ela pudesse assumir todo o cuidado de seus pais.
14.1. Filha que se converte em mãe Fomos morar vizinhos, podendo assim prestar-lhes assistência constante. Foi essa mesma filha única que passou a ser a “mãe” dos próprios pais até sua morte. Senhor Clarindo morreu em nossa casa, num quarto préhospitalar, e dona Rosa poucos anos depois, também sob o intenso cuidado de sua filha. Fui testemunha ocular de uma vida que é consumida pelo
cuidado dos pais, dia e noite, sem cessar e sem reclamar. Há em toda esta história final na vida do casal detalhes que prefiro deixar sem nenhum registro em meus arquivos; e gostaria inclusive que fossem apagados dos registros de meu próprio cérebro; e espero ardentemente que o Deus de misericórdia já tenha apagado todos eles dos livros de registros das obras dos santos com seu infinito perdão baseado no sangue de nosso Senhor Jesus Cristo; porquanto são detalhes mui dolorosos e sombrios para que sejam lembrados.
14.2. Cumprimento do dever Acompanhei dia e noite o grande esforço de minha querida esposa para amenizar o sofrimento dos velhos pais. Eu tinha que continuar meu trabalho literário que naquele tempo era volumoso. Com muita fadiga, ela conseguiu cumprir com seu dever até o fim. Frágil, quase sempre com problema de saúde, heroicamente seguiu em frente até que tudo se consolidasse. Em tudo damos graças ao único que é perfeito: o Deus de toda a glória e de sapientíssima Providência. E esta Providência nos assistiu dia e noite. Muitas de minhas traduções, feitas naquele período, poderiam testificar quão grande luta foi aquela, do lado dela e do meu lado. Para isso, tivemos que passar por alto muita coisa.
15. Otávio Alves Caixeta Este veio a ser um grande evangelista, inicialmente leigo, mais tarde sagrado ao ministério completo. Por todos os lugares por onde perambulou como missionário, ele deixou um trabalho de raízes bem fincadas e duradouras. Espírito missionário nato, naturalmente espirituoso, seu nome e sua história mereceriam ser escritos até mesmo com detalhes. Creio que o nome e obras missionárias do Rev. Otávio Alves Caixeta se acham registrados, primeiramente, no Livro da Vida; e, em segundo lugar, nos livros dos feitos daqueles que consagraram suas vidas para a expansão do reino de nosso Senhor Jesus Cristo, ainda quando não se escreva aqui sequer uma linha sobre ele.
16. Antonio Caixeta Neto
Antonio Caixeta Neto veio a ser teólogo culturalmente mais avançado que Otávio, pois fez seminário, se doutorou em psicanálise e seu nome está inserido numa amplitude mais completa no campo da cultura humana e divina. Sobre este cunhado, porém, deixo um registro muito particular em conexão com minha vida pessoal e ministerial. Foi ele quem me presenteou, quando no Seminário Presbiteriano do Sul, com um livrinho muitíssimo precioso editado pela Editora Fiel, intitulado Deus é soberano. Li e reli aquele livro e senti o desejo de partilhar minha experiência com a própria Editora Fiel. Jamais imaginaria que minha carta fosse traduzida para o inglês e convertida num tipo de circular em muitas igrejas relacionadas com a Editora Fiel. Isso me pôs em contato direto com o fundador daquela Editora, Dr. Richard Denham, de quem me tornei amigo e, no futuro, companheiro nas lidas literárias. Significando que aquele livrinho, presenteado por meu cunhado Rev. Dr. Antonio Caixeta Neto, mudaria os rumos de toda minha vida, como se poderá ler no capítulo sobre a Editora Fiel e eu. Digo ainda que esse cunhado doou boa parte de sua biblioteca pessoal à minha, tornando-se esta ainda mais rica de obras de muita relevância. Além de preciosas, elas têm me propiciado um arsenal de pesquisas constantes em minhas lidas literárias. De um modo particular, tenho para com esse cunhado uma dívida perene; e desejo, como sempre desejei, que ele termine sua trajetória terrena sempre abençoado e guardado pelas mãos do Eterno. Apesar das grandes diferenças de temperamento, personalidade e formação que houve e há entre nós, sou eternamente grato à família de minha esposa Cremilda. Na verdade, o beneficiado sempre fui eu mesmo, e sinto no âmago de minha alma que o Senhor da Igreja me tirou do nada para usar-me numa grande obra e me deu pessoas que me trouxeram muita riqueza espiritual. Minha vida e meu ministério nada seriam sem elas. Esse é o método do Eterno: usar seres humanos como bênçãos uns para os outros. Ninguém pode ser uma ilha, se quiser servir bem ao Eterno. Aliás, servir ao Senhor aqui é servir a pessoas como nós.
MINISTÉRIO EM ITURAMA Após o casamento viajamos rumo a Iturama, nosso primeiro campo.
Não houve tempo e dinheiro nem mesmo para um período de lua de mel. Na verdade, nossa lua de mel foi consumada em plena atividade. Nossa mudança foi levada em uma Kombi. O que faltava compramos aos poucos com nossos salários de evangelista e de professora. Nossa permanência em Iturama durou cinco anos. Durante esse tempo nasceram nossos primeiros três filhos: Sóstenes, Wânia e Simonton. Havia na congregação uma escola primária, e Cremilda era a diretora e professora, além de me acompanhar na assistência à congregação, inicialmente a pé, mais tarde numa vespa e em seguida numa lambreta, e terminamos nosso tempo numa moto enguiçada. O fato é que aquela escola rendeu muito para nosso trabalho. Através dela, muitas pessoas vieram para a igreja e eram instruídas na sã doutrina, embora o mestre fosse um mero novato, porém um novato esforçado.
1. Perseguição O grupo cresceu e tivemos que quebrar algumas paredes. No entanto, enfrentamos os inimigos da fé, como já relatei previamente. Pode parecer incrível, mas não foram os romanistas nossos algozes, e sim os membros da Congregação Cristã do Brasil. Tudo faziam para minar nosso esforço, afastando os interessados e arrebatando-os para si; conseguiram levar uns poucos, porém não muitos, porquanto me esmerei para confrontar as seitas com a igreja genuína. E aquela seita conta com duas armas terríveis, à primeira vista eficazes, embora de modo algum bíblicas. A primeira arma é o uso que a igreja faz do dízimo. Ela condena o dízimo na dispensação da graça. Proclama abertamente que os dízimos das igrejas dizimistas são para o uso pessoal dos pastores, com o fim de viverem na pompa. E a outra arma é a inexistência de pastor na igreja. A Igreja do Novo Testamento, dizem eles, não tem pastor, e sim cooperador e ancião. Pastor é invenção de homens que querem escravizar pessoas para seu próprio proveito. Ora, os “cristãos”, que por algum motivo passam a detestar os pastores e o dízimo, vão correndo para essas seitas, sem saberem que lá também existem liderança e contribuição financeira. Artimanhas de Satanás! Mas venci tudo isso com as armas da Verdade. E o verdadeiro povo de Deus também vence esses inimigos da fé genuína.
2. Cristãos fortes Encontramos na congregação de Iturama crentes fortes e viriam outros também de fé robusta. O primeiro contato foi com uma senhora chamada Terezinha, mãe de quatro filhos, Esdras, Éder, Edson e Édina, e cujo esposo, José Prudência de Queiroz, mais conhecido em toda a região pela alcunha José Carneiro; este ainda não era crente professo, porém frequentava a igreja com sua família. Aquela família e a minha estavam destinadas a uma amizade perene, mais de cinquenta anos transcorridos. Ele faleceu membro professo daquela igreja; ela continua ali como um marco de fé com seus quatro filhos. A outra família foi a de Josafá, comerciante liberal que ajudou muito com suas rendas na edificação principalmente do templo de Iturama. Família numerosa, porém, até onde eu sei, só sobrou uns poucos dela no aprisco do Senhor. Esta é uma nota dolorosa, porém real! “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos.” A outra família, também numerosa, porém muito humilde, se compunha de Iraci e seus filhos; seu esposo nunca abraçou o evangelho. Aquela senhora e alguns de seus filhos persistiram na igreja até o fim. Outra família que veio já em nosso tempo, e que rendeu bem, foi a de Salvilina e alguns filhos. Numa quarta-feira, culto doutrinário, aquela senhora entrou no templo com uma ou duas filhas. Assentaram-se e participaram do estudo bíblico. Ela veio com Bíblia em punho. Surpreendentemente, no final do culto ela pediu a palavra para dar seu testemunho. Disse que determinara em sua mente e coração ser crente e serva do Senhor. Saiu em busca de uma igreja que satisfizesse seus anseios. Visitou várias delas, porém não se sentiu devidamente convicta. Ao entrar ali, sentiu que doravante aquela seria sua igreja. Isso nos trouxe espanto, perguntando se havia algo de verdadeiro no relato. Aquela senhora de vida ardorosa tem sido até hoje um dos arrimos daquela igreja.
3. José Inocêncio Tivemos outra experiência chocante com um homem chamado José Inocêncio. Era pedreiro, seus filhos passaram a ser alunos de nossa escola, por isso Cremilda e eu fomos visitá-los. Não sabíamos que ele era espírita
confesso. Ele já ficou armado para o caso de surgir o assunto religioso. Mas ficou surpreso por não termos tocado nesse assunto. Outras visitas se sucederam. Numa delas, perguntei-lhe se era religioso e qual era sua religião. Ele disse: Eu sou espírita, declarou com toda a ênfase; e buscou uma pilha de livros espíritas e pôs em minhas mãos, dizendo: Eu sou espírita, vindo de Uberaba, discípulo direto de Chico Xavier. Manuseei os livros e os devolvi, dizendo: tudo bem, senhor José, podem ser livros bons, mas noto a ausência do livro mais precioso. Ele perguntou: Qual? A Bíblia, respondi. Meio desajeitado, respondeu que possuíra uma, mas que, por ser de letra muito miúda, a presenteara a um amigo. Senhor José, o senhor pode ler qualquer livro, mas se não ler o Livro dos livros, nunca irá aprender a plena verdade de Deus. Se eu lhe der de presente uma Bíblia de letra mais graúda, o senhor aceita? Aceito, respondeu. E assim eu fiz; dei-lhe uma Bíblia e dei-lhe as coordenadas de como lê-la com proveito. Ele começou a frequentar os cultos de quarta-feira, portando sua nova Bíblia. Em nossos estudos, chegou o momento de falarmos sobre a ressurreição dos mortos. Para aquele homem, isso soou como uma bomba. A leitura foi de 1 Coríntios 15. Questionou a veracidade da doutrina, e disse que havia aprendido que não existe ressurreição dos mortos, que é um absurdo e uma impossibilidade; existe, sim, reencarnação. Em pleno estudo, ele levantou-se e foi embora, murmurando que não creria naquilo que contrariava sua crença desde a mocidade. Que não iria aprender uma coisa nova que até então havia crido ser falsa. Naquele momento, a congregação reunida sentiu certo desconforto. Eu mesmo tive dificuldade em concluir o estudo e encerrar o culto. À tardinha da semana seguinte, estando eu em casa, vi chegar à porta aquele mesmo senhor, perguntando se podia entrar e falar comigo. Assentouse e me falou mais ou menos assim: O senhor começou a “bagunçar” minha vida, e agora precisa endireitar. Há muitos anos aprendi que a doutrina correta é a reencarnação; e agora o senhor ensina que reencarnação é invenção humana, e que a doutrina que Cristo e os apóstolos ensinaram é a ressurreição dos mortos. Para mim, esta doutrina é absurda. Então lhe disse que não podemos crer corretamente nas coisas de Deus senão pelo Livro que ele nos entregou através dos patriarcas, dos profetas e dos apóstolos como sendo a revelação suprema de Deus ao seu povo. Mostrei-lhe que o espiritismo não é a religião de Jesus; é uma religião criada
pela mente humana que não aceita a revelação divina. Se de fato ele quisesse aprender a verdade de Deus, teria que mudar de fonte. Em vez de beber da fonte contaminada e cavada pelos homens, precisava beber da fonte que Deus mesmo criou, água límpida de uma fonte pura, que é a Santa Escritura. Fora desta fonte, ele iria terminar muito mal. Para conhecer a eterna salvação em Cristo, esta é a única fonte divina. Ele levantou-se em pranto e disse: Tudo isso é forte demais para mim; não sei se vou suportar. Despediu-se e se foi. A única coisa que podia fazer no momento era orar e esperar. Na próxima quarta-feira, eis que entrava o senhor José, agora com sua família. Durante o estudo, ele pediu a palavra para dizer que agora cria na Santa Escritura e queria ser membro daquela igreja com toda sua família. E assim se deu; preparei a família e a recebi: ele, sua esposa e seus filhos. Agora passou a ser meu discípulo, não mais de Chico Xavier; deixou de seguir Allan Kardec para seguir Jesus Cristo. Ajuntou seus livros e os pôs em minhas mãos, declarando que nunca mais os leria. Aquela congregação ganhava mais uma família numerosa em seu seio. Homem muito pobre, com imensa dificuldade para sustentar tantos filhos, tivemos que ajudá-lo a vencer; ele passou a ser uma bênção para a igreja e vice-versa. Ele exercia a profissão de pedreiro, que não é pouco rentável, porém não era suficiente para uma família numerosa. Pelo menos boa parte de seus filhos permaneceu na igreja. Bem mais tarde encontrei um dos filhos, o Carlos, cursando o Seminário Presbiteriano do Sul de Campinas, São Paulo.
4. Dr. Lourenço Martins Maia Naquele ínterim, de vez em quando aparecia em nossos cultos um senhor bem aparentado vindo de Carneirinhos, a uns 60 quilômetros de Iturama, para participar do culto, pois ali ainda não existia igreja. Dr. Lourenço Martins Maia se radicara naquela região e era o único protético conhecido num raio de muitos quilômetros. Ele viveu muitos anos dando sua assistência científica nas vilas e campos. Seu nome se agigantou e passou a ser uma das principais figuras por toda aquela região, não só por seus serviços, mas sobretudo por sua integridade. De certa forma, ele foi um dos fundadores da Vila Carneirinhos. Esse homem viria ser um dos vultos que mais marcaram minha vida de ministro do evangelho. Para mim, ele é irmão
duas vezes — na carne e no espírito. A Providência usou aquele irmão e sua família como uma lâmpada resplandecente que lança chispas de luz para todos os lados. Certo dia visitamos Carneirinhos para conhecer melhor o Dr. Lourenço e sua esposa dona Clarinda, e planejar a fundação de uma congregação ali. E tudo foi acontecendo de tal maneira que um membro da família Carneiro, senhor Marcondes, não evangélico, doou um terreno para a construção do templo. Quem o construiu? O senhor José Inocência e nós com ele como serventes. Praticamente, não havia mulher crente ali; mas a esposa do Dr. Lourenço, dona Clarinda, que veio a crer mais tarde, juntamente com umas parentas, nos proveram de alimento e outras comodidades. O fato é que não muito depois disso o templo estava erguido e já estávamos cultuando o Senhor em sua modesta nave. Aquela congregação foi fundada sobre lágrimas e orações e leituras da Santa Bíblia. É muito difícil descrever certas coisas e escrever sobre elas. O espírito fica tumultuado, o coração se derrete e a mente fica confusa ao retroceder a um tempo que ficou tão longe!
5. A família Carneiro A origem desta vila remonta a uma grande e famosa família da região intitulada “os Carneiros”. É uma história imensa, antiga e complexa. Apenas menciono uns poucos dados para falar um pouco da Congregação Presbiteriana ali. Esta é justamente a família de José Prudência de Queiroz, nosso amado irmão José Carneiro, já mencionado. Senhor Juvenal, o pai, com quem muitas vezes eu me privei em diálogos preciosos sobre sua vida e história, pai de muitos filhos, dentre os quais destaco três: José Carneiro, que se tornou membro da congregação de Iturama com esposa e quatro filhos; senhor Marcondes, que nos doou o terreno para a construção do templo, o qual nunca confessou a fé evangélica, mas era de espírito caritativo; e a irmã deles, dona Ovídia e seu esposo, senhor Emídio, em cuja casa nasceu aquela congregação, quando eles mesmos jamais chegaram a ser membros dela. Ele continuou católico romano e ela abraçou uma crença criada por certo padre, chamada “Santa Avó Rosa”. O único crente na família era o senhor José Carneiro, e foi ele um dos que nos ajudaram a plantar aquela congregação. Portanto, aquele grupo de crentes nasceu dentro da casa de uma família “Carneiro” e o terreno doado por outro dessa grande família, mas que
somente um deles abraçou a fé presbiteriana. Como já disse, o pivô de tudo isso foi o Dr. Lourenço Martins e Maia e sua esposa dona Clarinda. E assim, irmanados com fé e grande vigor, aproveitamos o terreno doado pelo senhor Marcondes Carneiro, a casa de dona Ovídia e senhor Emídio, o entusiasmo do Dr. Lourenço, do senhor José Carneiro, senhor José Inocêncio e outro senhor, de quem só me lembro o pré-nome, senhor Manoel, com a disposição da esposa do Dr. Lourenço, dona Clarinda, para nos prover alimento e descanso, começamos a construir o templo de Carneirinhos. Isso se deu em meio a muita tribulação, pois nossa semeadura era seguida pela Congregação Cristã do Brasil, cujos líderes vinham e tentavam arrancar ou danificar o que íamos plantando. O fato é que, a despeito de tudo, quem logrou vitória foi o Espírito do Senhor. Ali ficou plantada uma congregação que existe até hoje. Quando se conta uma história antiga e sem registro, é impossível evitar as omissões. E essas omissões costumam gerar profundas raízes de frustração e queixa. Nossa história já ultrapassou 50 anos. Nem eu nem aqueles cristãos antigos ainda vivos conseguimos trazer à tona a memória de tudo o que aconteceu naquele tempo. Mas o fato é que, ao longo de cinco anos, Cremilda e eu, sempre lado a lado, conseguimos, em meio a mais erros do que acertos, pela graça do Eterno, deixar uma congregação forte em Iturama e outra nascente em Carneirinhos; que hoje é uma pujante cidade do Triângulo Mineiro e a igreja continua viva.
OUTROS CAMPOS 1. Pirapora Expirado o quinto ano no campo de Iturama, de 1964 a 1968, em 1969 a Missão me transferiu para Pirapora, Minas Gerais, às margens do Rio São Francisco. Cidade portuária, dali descia e subia o rio uma frota de barcos a vapor; com isso, ela veio a ser, de certo modo, uma pequena cidade cosmopolita. Ali nasceu uma igreja cujos primórdios se perderam nas brumas do tempo, pelo menos em minha ótica e conhecimento.
1.1. Manoel Ferreira
Por ali passara um dos homens mais humildes, sofredores e conhecedores da Santa Escritura que já conheci. Falo do evangelista (mais tarde Rev.) Manoel Ferreira. Meu conhecimento de sua pessoa e obra missionária é muito pouco. De vez em quando nos encontrávamos nas reuniões da Missão e mais demoradamente quando ele foi obreiro na cidade de Formosa, Goiás, onde foi ordenado pastor. Foi aí que participei de alguns estudos bíblicos ministrados por ele. Voz mansa e pausada, passeando pela Escritura com maestria, revelava que era um atento estudioso do Santo Livro. Vale dizer que este homem era quase cego. Ele lia livros e, sobretudo, a santa Escritura com uma lupa. Manoel Ferreira é um dos tantos servos do Senhor que a igreja não tomou e jamais tomará conhecimento. Há uma multidão de homens e mulheres de vida consagrada ao Senhor que até mesmo seus rastros são apagados e seus nomes jamais figurarão em algum livro. Todavia, lemos no livro do Apocalipse: Depois destas coisas, vi, e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos; e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação (Ap 7.9, 10). Eu pergunto: realmente importa que nosso nome seja conhecido aqui e agora? O que realmente importa é que os nomes dos santos sejam conhecidos do Eterno e estejam escritos no Livro da Vida do Cordeiro (Lc 10.20; Ap 21.27). Seja-me suficiente que meu nome se misture com os nomes daqueles milhares de milhares que no último dia prorromperão em louvores ao ocupante do trono e ao Cordeiro a quem pertence nossa salvação. Um desses nomes glorificados pelo Cordeiro eterno está o de Manoel Ferreira, que de vez em quando chegava à casa de meus sogros e pedia asilo, juntando-se a eles à mesa para saciar sua fome. Há anos que sua alma se juntou às almas que se acham debaixo do altar celestial (Ap 6.9-11), ou no seio de Abraão (Lc 16.23), ou no paraíso (Lc 23.43) em pleno repouso consciente e feliz, até o dia da ressurreição de seus corpos mortos. Há uma vasta multidão de grandes homens e mulheres cuja história terrena a igreja não consegue tomar ciência, pois não houve e não há quem a
escreva. Meu intuito neste livro é, além do mais, pelo menos mencionar alguns desses santos personagens com os quais esbarrei pelas andanças e lidas missionárias. Por isso, menciono com honra, ainda que pouco, a pessoa e obra desse gigante da fé — Manoel Ferreira —, que passou por Pirapora antes de mim, e voltou depois de mim, deixando ali uma influência secreta com seus candentes sermões e estudos bíblicos. Mesmo em meio aos seus mais cruciantes sofrimentos, ele manteve sua fidelidade a Cristo até o fim.
1.2. Sofrimento e fraqueza Em Pirapora, eu e família estávamos destinados a sofrer provações e privações terríveis e perenes em decorrência do juízo de pessoas inescrupulosas arroladas àquela igreja. Ali, nossas tribulações chegaram às raias do desespero. Neste mundo, há coisas que o melhor a fazer é esquecêlas, para que no futuro nossa vida não continue amarga e não guardemos na memória aquilo que é preferível esquecer do que lembrar.
1.3. Enquanto neste mundo, a Igreja é mista Ali experimentaríamos o quanto a igreja terrena tem um misterioso misto de santidade e perversidade; no dizer de Jesus, de trigo e cizânia. Os santos batem em seus peitos com horror de si mesmos, sem ter ciência de que são os santos de Deus; e os perversos se arvoram de ser os santos de Deus, contudo não têm ciência de que são perversos e que estarão à esquerda do Supremo Juiz, e não à sua direita. Não temos como julgar com exatidão os santos e os perversos com base em sua vida exterior, pois nossa ótica é extremamente falha. Por exemplo, pela ótica moderna, quem diria que o Lázaro da história, contada por Jesus, fosse filho de Abraão? Externamente, o abençoado era o rico, e não Lázaro. O que havia na vida exterior de Lázaro que fizesse dele um filho de Abraão, isto é, filho da fé herdada por Abraão ou filho de Deus? No entanto, nosso Senhor esmaga o ego do ser humano para mostrar que a salvação de cada um de nós é secreta, misteriosa e surpreendente. Ela depende unicamente da eleição da graça, no dizer de Paulo aos Romanos (Rm 11.5). Todavia, Jesus fala ainda dos frutos ou de um coração mau ou de um coração bom, isto é, regenerado pelo Espírito Santo. Até certo ponto, é
possível sabermos se uma pessoa é de Deus ou não. No entanto, o melhor a fazer é nos abstermos de julgar àqueles que nos cercam.
1.4. Fatores determinantes Nosso tempo em Pirapora foi muito curto em razão de dois fatores: o primeiro consiste no que certas pessoas fizeram de mal a nós. Essas pessoas quase destruíram minha vida de obreiro e a de minha família. E a outra razão foi a morte do missionário e quase toda sua família num acidente aéreo, quando de regresso da América do Norte no desfruto de suas férias. Ficou em seu lugar um pastor brasileiro. Então, a Missão concordou que eu não deveria ficar ali e me transferiu para João Pinheiro, cidade que margeia a BR Brasília/Belo Horizonte. 1.5. Anjos de Deus Não obstante, vale muitíssimo trazer à lembrança alguns benefícios que recebemos em Pirapora. Primeiro, veio justamente da esposa de um presbítero paranoico, enfermeira habilidosa e generosa, juntamente com outra enfermeira, Onã, que foram os anjos de Deus quando nossa filha Eline nasceu. Enquanto seu esposo nos massacrava inexoravelmente, dona Maria de Oliveira, prima do Rev. Dr. Divino José de Oliveira, que mais tarde seria meu tutor ministerial em Goiânia; sim, dona Maria, um dos primeiros alunos do Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL), mulher santa e mui caridosa, foi um anjo de Deus em nossa vida, cuidando de Cremilda e Eline, recémnascida, quase abortada pela violência de seu esposo. 1.6. Amigos especiais 1.6.1. Osvaldo Outra bênção em nossa vida ali foi um jovem de nome Osvaldo, que conseguiu fazer-me sentir um obreiro de Deus. Moço crente, humilde, de vida retilínea, em grande medida foi instruído por mim. Hoje mora em Goiânia e é membro de uma das igrejas presbiterianas e prossegue na vereda da vida eterna.
1.6.2. Nátson
Outro elemento que para mim veio a ser muito gratificante, a saber, fui pastor de um menino, cujo nome é Nátsan P. Matias, filho de Natalino e Sandra. Hoje ministro do evangelho em Goiânia, homem estudioso, habilidoso observador dos problemas sociais não só da igreja, mas também da própria sociedade humana, passou a escrever livros sobre assuntos momentosos. Hoje, Rev. Nátsan é um homem posicionado na barricada da verdade, e uma eminente figura no Seminário Presbiteriano Brasil Central como um de seus professores. E sinto que de alguma forma eu tenho um pouco a ver com a formação deste talentoso ministro da Palavra, de uma maneira secreta, misteriosa, como a somatória do ministério da Palavra. Quando cremos que nosso ministério foi de nenhum valor em determinado lugar, estamos enganados, pois existe nele o lado implícito, secreto, o qual só pode ser visualizado pelo Espírito Santo. Aliás, o próprio Espírito é o autor de tudo isso.
1.6.3. Gecy Gecy foi criado em Pirapora com uma irmã e seu cunhado. Em razão da incompreensão de seu cunhado e por possuir um defeito físico, tornou-se um adolescente revoltado, dominado pelo senso de inferioridade e briguento. Ele mesmo conta que “aos treze anos, para não ser expulso da escola onde estudava, em decorrência de meu comportamento violento, pois brigava com todos e até mesmo com as professoras, passei um período sem estudar. Foi quando tive a oportunidade de estudar na Escola Presbiteriana da igreja local”. Ele continua narrando que foi ali que pela primeira vez teve contato com o evangelho, e aos poucos foi recebendo “mudanças radicais em meu comportamento pessoal e social”. “Em 1966, tive o privilégio de me formar na escola primária, recebendo meu primeiro diploma.” Ele conta que essa vitória se deveu, em primeiro lugar, ao “meu Deus”; e, em segundo lugar, ao Rev. Estevão Sloop, missionário americano e pastor daquela igreja. Este homem “foi usado como instrumento nas mãos de Deus para meu encontro com Cristo”. Ele diz que isso se deu em 1968, no Acampamento Boa Esperança, em Goiânia. Vale lembrar que eu estava presente naquele evento que se deu no ABE e me lembro bem daquele encontro com ele em virtude
das músicas que ele tocou no violão e entoou. Para Gecy, seu impulso inicial para ser pastor surgiu das pregações de Manoel Ferreira, então obreiro leigo naquela igreja, e esse sentimento aumentava paulatinamente até se tornar um sonho mais estruturado. E foi nessa época que ele conheceu a missionária Martha Little, supervisora das Escolas da Missão. Em seus primeiros contatos com esta santa missionária, surgiu da parte dela interesse pela situação e pessoa de Gecy com seus problemas existenciais e físicos. Ela providenciou meios para que Gecy fosse operado das pernas. E foi ela ainda que, combinando com Rev. Estevão Sloop, programou a ida de Gecy para o IBEL. Foi nesse tempo que fui transferido de Iturama para Pirapora, 1968, campo de minhas mais renhidas lutas como obreiro de Cristo. Numa programação dos jovens, ele ficou incumbido de falar da vida de Estevão, primeiro mártir da Igreja Primitiva. Ele tinha que apresentar uma mensagem sobre aquele santo varão. É ele que conta de minhas palavras expressas após sua mensagem: “Olhe, o que você fez foi um verdadeiro sermão”. Resumindo, Gecy conta que havia desistido de fazer o IBEL porque não tinha nada. Ele não revelou que esse nada era nada mesmo. Então, se tornou inviável e impossível realizar seu sonho de cursar o IBEL. Cremilda, liderando as senhoras da igreja, promoveu uma festinha de despedida de Gecy e outra jovem da igreja, Marlene, que também faria o IBEL. Naquele programa, ambos receberam tantas coisas e dinheiro, que possibilitaram a concretização de seu sonho. Ainda hoje ele conta isto com visível emoção. Finalmente, ele foi cursar o IBEL em 1969, e eu continuei em Pirapora até meados de 1970, quando da morte do missionário Robert Litton. Durante esse tempo, acompanhei a vida de Gecy no IBEL com orientação e assistência espiritual. Ele conta essas coisas; em minha mente, porém, nada ficou gravado. Depois de terminado seu curso bíblico, seu primeiro campo foi Inhumas, onde se casou com Maria, cuja celebração foi feita por mim. Sempre estivemos juntos, quer física, quer espiritualmente. Tanto é que mais tarde ele foi assessorar-me na Editora Cultura Cristã quando eu era seu diretor editor. Concluindo, afirmo que o Rev. Gecy Soares de Macedo se tornou um grande ministro do evangelho, superando a mim em projeção, integridade e cultura. Desde a instituição de Edições Parakletos e publicação de algumas das obras de João Calvino, ele sempre esteve comigo em meio às maiores
lutas existenciais e ministeriais que tive de enfrentar. Foi sempre um amigo discreto e até silencioso quando eu caminhava pelo vale da sombra e da morte. Tenho poucos amigos como ele. Aliás, posso contá-los nos dedos das mãos e pode ser que ainda sobrem dedos.
1.7. O efeito de uma acusação injusta É muito difícil quando você é acusado de um delito do qual absolutamente não é o autor, nem mesmo teve consciência de sua existência nos bastidores, porém passa para a história como sendo seu autor. Não há nada que você faça para provar sua inocência. Seus argumentos são nulificados ante a aparência externa dos argumentos contrários. Tudo concorre para a “verdade” do outro lado. Ver a mentira prevalecer e triunfar causa um profundo abatimento na alma. Você se sente impotente e tem que observar as pessoas olhando como que para uma pessoa indiscutivelmente culpada. Davi fugia de Absalão, seu filho, e à margem do caminho Simei seguia “xingando” e amaldiçoando Davi. Quando um de seus oficiais perguntou se o rei queria que ele fosse lá e cortasse o pescoço do agressor, Davi respondeu: Se o Senhor lhe ordenou que faça isso comigo, quem sou eu para o impedir? Davi falava da soberania de Deus que pune os santos quando estes pecam, fazendo uso dos filhos de Belial para trazer-lhes amargura, arrependimento e restauração. Esta é uma dura disciplina divina na escola da vida. 1.8. O que temos a imitar O que nos alenta é que no dia final se lerão os relatórios sobre a vida dos santos e a verdade será clarificada. Então, o que fazer no ínterim? Depois que nosso Senhor, no estertor do Gólgota, rogou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, o que nos sobra ou nos cabe fazer? Menos que isto? Não há como ou por que não perdoar as ofensas que nos são feitas aqui, pois nós também temos nossa cota de ofensa lançada sobre outros. É isso que os teólogos chamam de “solidariedade do pecado”. Você é pecador e eu também! Se aquele que não conheceu pecado perdoou e perdoa os pecadores, por que não devo, sobretudo, perdoar os que erram contra mim? Visto que eu também desejo ser perdoado pelos ofendidos por mim. Infelizmente, não há como apagar da memória as coisas negativas que
nos aconteceram mesmo em um passado já longínquo. O coração já não odeia, porém a mente se recusa a esquecer. Paulo se lembrava das perseguições que lançara sobre a Igreja de Deus; no entanto, ele diz: “esquecendo-me das coisas que para trás ficam”, sem cometer qualquer contradição sobre “lembrar” e “esquecer”. Lembrar é um ato da memória; esquecer significa já não levar em conta o que passou. A lição que fica é que o melhor a fazer é não condenar a ninguém por seus erros, porquanto nem mesmo sabemos definir “erros”, sejam os nossos, sejam os de outros.
1.9. Provação particular Com sua morte prematura, o missionário Robert Litton foi substituído por um brasileiro, cujo nome omito por conta da justiça, pois aquele homem foi um grande servo de Deus, e o mal que nos fez pensava ser bem. No entanto, eu nunca soube a que ele mais se dedicava: se à Igreja de Jesus Cristo, ou à Maçonaria. Lançou mão de todos os meios para “converter-me”. Como minha filosofia, desde que me ingressei na Igreja de Jesus Cristo, era servir a ele só, de todo o coração, e nunca me envolver nas coisas deste mundo, por isso nunca me tornei membro do Rotary, nem do Lyons, nem da Maçonaria. Tampouco me envolvi com partidos políticos. Sempre vi nessas entidades a promoção do bem social da comunidade aqui e agora; nunca as condenei, nem do púlpito e nem em particular. No entanto, sempre cri que os filhos de Deus não precisam de tais expedientes ou muletas; aliás, quase sempre são prejudicados quando tentam harmonizar tais elementos profanos com o santo reino de Deus. É costumeiro ocorrer que são mais fiéis à entidade profana do que à santa igreja, e a parte mais prejudicada costuma ser a igreja. Esta tem todos os recursos para a prática do bem, com mais completude, em conformidade com as normas bíblicas. Ela é plena; possui elementos que nenhuma outra entidade humana possui. Ela deve ser abraçada neste mundo, de tal modo, que todos encontrem nela algo a imitar. Se uma igreja local for pior que alguma outra corporação social não religiosa, então ela deixa de ser Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo. Mesmo a igreja de Laodiceia foi denominada pelo próprio Senhor Jesus de “minha igreja”. Fui pastor de muitos membros da Maçonaria, sócios de Lyons e Rotary; nunca tivemos desavença, porque minha visão estava em outro rumo, era voltada para o alto, e eles eram adultos e aptos a prestar contas ao Supremo Juiz.
Mas aquele nobre pastor não se conformou com minhas recusas. Aproveitou uma brecha e me denunciou à Missão, porque decidi aprimorarme um pouco mais na escola secular. Uma das leis da Missão era que o obreiro não tinha o direito de fazer isso. Então ela, na pessoa de seu presidente, me intimou e disse: “Ou você desiste do estudo, ou será demitido!”. Minha resposta pronta e direta foi: “Então que me demitam, pois não vou recuar-me agora. A Missão não se importa com o futuro de seus obreiros, mas eu me preocupo com o futuro meu e de minha família. E quando eu alcançar o que tanto desejo, não vou poder dizer-lhes: Muito obrigado!”. Havia algo de profético nesta última expressão; mas, naquele momento, não passou de mero desabafo. O fato é bem outro: quando alcancei aquilo pelo que anelava, ainda que indefinida e inconscientemente, não deixei de ser grato àquele nobre servo de Deus nem à Missão. Esta foi muito humana para comigo. Meu coração só tem boas lembranças na companhia daqueles nobres irmãos de outros rincões. Aprendi muito com eles. O lado fraco da Missão era coisa dos homens, praticada por todos em todos os países crendo ser o certo. O equívoco daquele nobre colega de ministério é bem comum em todos nós. Eu mesmo já o cometi várias vezes contra alguém, mesmo quando a intenção não fosse prejudicar. Bem mais tarde, eu e ele nos encontramos numa situação bem adversa, quando eu estava no comando e ele carecia de ser comandado; então lhe mostrei que nunca deixara de amá-lo e de respeitá-lo em Cristo, estendendolhe a destra de companheiro e dando-lhe campo. No momento da posse, eu disse à igreja: Eis aqui um homem valoroso que merece ser amado e respeitado. Tenho certeza que ele realizará aqui um grande ministério. Penso que os pastores de almas devem agir assim uns para com os outros. Quando aquele colega faleceu, confesso que senti profundo pesar. Ele fora um homem valoroso na Igreja; merece ser bem lembrado e deveria ter sido mais valorizado pelo comando supremo da Igreja. Ele tinha certas qualidades positivas que eu nunca possuí, e nisso fui influenciado por ele.
2. João Pinheiro Com a morte do missionário Robert Litton, repito, a Missão me transferiu para João Pinheiro, Minas Gerais, ficando em Pirapora apenas um
ano e meio e em João Pinheiro um ano e meio. Meu senso ministerial ia diminuindo paulatinamente. Era mais ou menos como o profeta Elias quando buscou asilo numa caverna. Se porventura alguém me perguntasse por que estava ali, não saberia que resposta dar. E se alguém me perguntar, hoje, se houve ali algum fruto proveniente de meu pobre ministério, minha dificuldade em responder seria a mesma. Creio que hoje ninguém ali se lembra de mim e e da minha família. Creio ainda que nada ficou registrado nos anais daquela igreja a respeito de nosso ministério e nossas vidas. Meu ministério ali só teve sentido nos desígnios do Altíssimo.
2.1. João Batista Um dos membros daquela igreja era o Dr. João Batista, advogado, professor de francês em um dos colégios, portanto meu professor desse idioma ali. Havia cursado o IBEL antes de mim e Cremilda. Também sua esposa, Maria Pacheco, era ibelina, ambos bons amigos; ele, porém, uma pedra em meu sapato; não que assim o quisesse, mas porque era muito mais culto que eu. Não só uma vez, mas diversas, com polidez, elegância e traquejo corrigia meus equívocos na interpretação de algum texto bíblico. Jamais conseguiria esquecer aquele casal tão ilustre e amigo.
2.2. Amadeu Rocha Outro ibelino, contemporâneo nosso no IBEL, foi Amadeu Rocha, bom companheiro, tesoureiro da igreja, o qual mais de uma vez me socorria em minhas aperturas financeiras. Salvo engano da memória, no natal de 1970, surpreendi nosso filho Sóstenes observando um menino da vizinhança pedalando pela rua seu velocípede novo. Sem ser visto, notei que Sóstenes gostaria de fazer o que aquele menino fazia, porém seu pai não podia adquirir-lhe nem mesmo um velocípede velho em uma sucata. Senti o coração trucidado e contei para Amadeu. Ele chorou comigo e me deu dinheiro extra para passar o natal. Sempre nutri por aquele colega profundo respeito e admiração. É difícil imaginar alguém mais reto na vida. Ele também já abriu caminho para a glória.
3. Goiânia
Acusado pelo pastor do campo perante a Missão, então esta resolveu dar-me uma última chance, transferindo-me para Goiânia a fim de ser vigiado bem de perto pelo missionário Rev. Sherwood Taylor. Fui colocado em duas congregações, Betel e Vila União. Em Pirapora, eu tinha uma bicicleta para subir e descer os morros; em João Pinheiro, eu realizava o trabalho a pé. Também em Goiânia, por algum tempo, realizei o trabalho das congregações valendo-me de ônibus. O velho missionário, Sherwood Taylor, era o mesmo diante de quem professara minha fé em 1959, quando pastor da igreja de Ituiutaba, Minas Gerais. Rev. Taylor era um homem muito íntegro, porém de difícil relacionamento, em decorrência de sua austeridade e meticulosidade. Não sei qual de nós dois ganhava do outro nessas “virtudes”. Mas tudo indica que tais “virtudes” comuns nos uniram. Surpreendentemente, ele foi generoso para conosco, nos socorrendo diversas vezes com recurso financeiro extra. Sua esposa, dona Mirian, era mulher de coração amplo, voz linda, perene participante do trabalho nas igrejas ao lado do marido. Quando terminaram sua trajetória missionária no Brasil, e voltaram para sua pátria, eles moravam em Ceres já conosco ali; portanto, éramos vizinhos. Misteriosamente, em 1959 ele me recebia na igreja em profissão de fé; agora eles se despedem definitivamente de nós depois de muitos anos, quando eu também exercia o ministério sagrado em pé de igualdade com ele, em se tratando do ofício.
3.1. Igreja Presbiteriana União Meu irmão congênito, Marcelúcio, membro dessa igreja há quarenta anos, nos informa que esta grande igreja teve seus primórdios no espírito bem missionário, debaixo de uma árvore, com a assistência de um membro da primeira igreja chamado Abimael, moço dinâmico, de coração aceso para a obra do Senhor. Aos domingos, ele reunia crianças para ouvirem as histórias bíblicas, distribuindo balas e outras guloseimas, atraindo assim muitas crianças. Com a ascensão daquele trabalho, a Missão Presbiteriana no Brasil resolveu construir ali uma capela, sob o comando do Rev. Ângelo Scarel e sob a direção profissional do pedreiro senhor Talmo Gonçalves Medeiros. Isso se deu em torno dos anos 1969 a 1971. A primeira Ata do Conselho da Igreja Presbiteriana União reza que o primeiro obreiro daquela igreja foi o Rev. Ângelo Scarel e o segundo foi o evangelista Valter Graciano Martins,
enquanto ainda no caráter de congregação. No entanto, fazem parte da história desta grande igreja uma plêiade de obreiros, começando com missionários da Missão Presbiteriana no Brasil: Revs. Sherwood Taylor, Paul Long, Bill Rawlins (engenheiro), Ethelbert Gartrell; o apoio maciço da Igreja Presbiteriana Central com seus pastores. Os dois obreiros brasileiros efetivos foram Ângelo Scarel e Valter Graciano Martins. Substituí o Rev. Ângelo Scarel em 1972, isto é, no ano seguinte à fundação daquele trabalho, e permaneci ali até 1974, quando fui ordenado ao ministério sagrado pelo Presbitério de Goiânia. Tenho na lembrança que quase nada produzi com meu modesto ministério. Não creio que naquele período houvesse acréscimo numérico no rol de membros. Lembro-me bem que a Congregação já era dinâmica e numerosa. Estava pronta para ser organizada em pessoa jurídica.
3.2. Igreja Presbiteriana Betel Na mesma época fui incumbido de outra congregação de nome Betel. Esta é de história menos conhecida, cuja origem se perde nas brumas do tempo. Mas foi aí que gastei dois anos e meio de minha vida ministerial. 3.2.1. Reminiscência No entanto, há algo que posso registrar em sã consciência: nunca dividi igreja; nunca causei prejuízo a qualquer setor da igreja; nunca trabalhei contra qualquer das sociedades domésticas; nunca criei atrito com os presbíteros e os diáconos. Minha filosofia de trabalho sempre foi que nenhum pastor tem o direito de destruir ou substituir um órgão instituído pelo Supremo Concílio. A lei menor nunca deve sobrepujar a maior, do contrário o que impera é a anarquia. Muitos tentam suprimir ou a SAF, ou a UPH, ou a UMP, ou algum outro órgão interno, dando-lhes outros nomes ou criando algo muito diferente; ou eliminando de vez, crendo que estão trazendo uma grande contribuição para o bem da igreja. Nunca deixei de dar meu apoio a cada um desses órgãos. Uma de minhas más famas é que sou inimigo desses órgãos internos da igreja. Uma dolorosa calúnia. Já fui secretário presbiterial e sinodal do trabalho feminino. Estive presente em muitos conclaves de homens. Meu ministério sempre foi abençoado pela participação dessas
sociedades internas. Sempre tive a SAF como de vital importância em meu ministério pastoral; e esta sociedade sempre me honrou em todo o estado de Goiás por onde passei outrora. E em minha filosofia pastoral defendo ainda que qualquer pastor que tenta desenvolver seu programa ministerial ao arrepio do Conselho, seria preferível que ele fizesse suas malas e procurasse outro campo. Igreja nunca se divide quando pastor e Conselho trabalham em conjunção e em boa sintonia. Logo se verá que sempre pratiquei esse sistema nas igrejas por onde passei. Se alguém me perguntar se fiz algo relevante nessas duas congregações, não saberia responder. Minha tendência é lembrar mais do negativo do que do positivo no que diz respeito a mim e ao meu ministério. E em todo meu ministério cometi muitos erros. Aliás, creio que nem somos lembrados pelos membros antigos dessas duas igrejas. Somos quase totalmente desconhecidos delas. Nossa passagem por aqui mais se assemelha à fumaça que se dissolve no ar. No entanto, foi aqui que nos aconteceram grandes coisas. Goiânia veio a ser uma de minhas encruzilhadas.
3.2.2. Rev. Ângelo Scarel No entanto, deixo registrado, de memória, uma experiência pessoal que serviu e tem servido para humilhar o espírito de um ministro do evangelho que sente que realmente foi vocacionado para o ministério sagrado. E creio que este relato servirá de advertência a qualquer que queira servir bem ao Senhor da Igreja. Se este fato não servisse para nada, certamente não o escreveria para que alguém o leia. Isto se deu entre mim e o Rev. Ângelo Scarel, o pastor fundador da Congregação União. Avizinhando-se o aniversário daquela congregação, os líderes propuseram que o orador da ocasião fosse o Rev. Ângelo, e com muita razão, pois era um homem muito querido e respeitado por todos. De minha parte, porém, cabia-me lembrar aos líderes que não fazia muito tempo houve atrito do mencionado pastor com a Missão, e que esta congregação ainda era supervisionada pela Missão. Não seria o caso de a Missão se sentir ofendida com tal escolha? Todos garantiram que não. Foi só isso; nada mais que isso. Sempre tive esse pastor na máxima estima e admiração. Eu mesmo redigi a carta/convite, fui à sua casa na qualidade de embaixador. Mas alguém
á havia noticiado ao nobre pastor aquela decisão, dando aos fatos uma versão distorcida. Sem esticar muito, é óbvio que ele não me recebeu bem. Aquilo caiu sobre minha cabeça como uma grande e esmagadora pedra; como uma bomba destrutiva. Mais uma vez fiquei desarmado, sem argumento em defesa própria. Chegando o dia da ordenação de meu cunhado Antônio Caixeta, no templo da Igreja Presbiteriana Maranata, lá estava o amado pastor, Rev. Ângelo. Chamou-me de lado e disse: “Valter, naquele dia eu o ofendi em minha própria casa, injustamente. Só mais tarde me inteirei da veracidade dos fatos. Você poderia perdoar-me?”. É muito difícil fazer isso. Meu Deus, como é difícil! Nosso orgulho pecaminoso é avesso a esse tipo de atitude. Por isso, Jesus e os apóstolos insistiram muito sobre o assunto. Eu, em particular, tenho muita dificuldade em fazer isso. É preciso um poderoso revestimento do Espírito de Deus. Nosso orgulho tem de ser esmagado. Nossa natureza não combina bem com essa atitude cristã. Nosso Senhor deu o exemplo, bem o sabemos, porém relutamos contra essa virtude tão bela. Não sei bem o que é mais difícil: pedir perdão ou perdoar. Já que pedir causa mais humilhação, então perdoar se torna mais fácil, pois não envolve humilhação, e sim nobreza. Como réplica, respondi-lhe: Rev. Ângelo, é verdade que sofri muito por aquela injúria que não foi o senhor quem fez, e sim outro; mas, naquele mesmo dia, entrando em escritório, de joelhos dobrados em terra, com lágrimas e profunda tristeza, eu o perdoei; por isso, não posso dizer que agora o perdoo, pois já fiz isso. Abraçamo-nos ali e passei a tê-lo em minha admiração mais que antes.
3.2.3. Tal pai tal filha Tanto é que sua filha, Dra. Ângela Scarel, veio a ser, aqui em Goiânia, uma boa amiga e companheira de Cremilda no trabalho feminino. Acompanhada de outra amiga, Dra. Ana Lúcia, de vez em quando nos visitam em nosso lar, quando ocorre de nos confidenciarmos reciprocamente as dificuldades e bênçãos comuns de cá e de lá. Aliás, digo mais: essas duas senhoras têm contribuído para amainar as asperezas de nossa jornada nesta cidade, onde praticamente somos hoje desconhecidos e onde me sinto um exilado. Suas visitas se constituem numa bênção mui preciosa, quer na
alegria quer na tristeza. Principalmente Dra. Ângela que me denomina de “meu pastor”. Ela nunca saberá o quanto é positivo o efeito dessa atitude cristã.
3.2.4. Dois fatos inesquecíveis Caso alguém exija de mim pelo menos um fato positivo ocasionado por minha passagem por aquelas duas congregações como obreiro, duas coisas me marcaram profundamente e de modo irreversível: primeira, Marcelúcio, meu irmão, que há tempo passara a morar conosco, como parte da família, e abraçara a mesma fé, conheceu Wânia, filha do senhor Talmo e dona Lindaura, e com ela se casou e são felizes até hoje, gerando três filhos e três netas. Ele passou a ser não só membro da igreja, mas também presbítero e um dos mestres de teologia naquela grande igreja. A outra é que em Betel encontrei dois homens que foram meu arrimo financeiro: Wilson de Castro e Eduardo Quirino. Todo mês punham dinheiro em meu bolso, sem saber que este estava vazio e também nossa despensa! Isso nos poupou de dolorosos constrangimentos. Somente coração generoso se porta assim para com os impotentes. São “anjos” de Deus a amenizar o sofrimento de alguém. 4. Igreja Presbiteriana de Novo Horizonte Foi nesse tempo que nasceu a Igreja Presbiteriana de Novo Horizonte, bairro de Goiânia. O primeiro culto foi celebrado na casa de um presbítero vindo de São Paulo, taxista, chamado Hélio. O missionário com quem eu trabalhava nesse tempo era neófito no Brasil e não dominava bem nosso idioma; seu nome era Jaime Revis, de quem ganhei meu primeiro volume das Institutas de João Calvino em inglês. Com um pequeno harmônio portátil, de pedal, presenteado pela missionária miss Frances Hesser, entoamos os primeiros cânticos e preguei o primeiro sermão. Nem me lembro o tema e texto do sermão. Creio que ninguém hoje se lembra disso; é bem provável que já esteja sepultado no esquecimento, como sucede com tanta frequência. O curioso é que hoje de vez em quando participo dos cultos e escolas dominicais daquela mesma igreja. Foi nesse tempo que nasceu nosso quinto e último filho, Wander. E foi nesse tempo que conheci o grande homem e ministro do evangelho, Rev. Dr. Divino José de Oliveira, cuja irmã, enfermeira, dona Berenice, entraria para
nossa história como grande benfeitora e amiga. Escrever e descrever o que ela representa em nossa vida é uma tarefa que reclamaria a composição de outro livro. Outro grande amigo foi o Presbítero Luiz Mateus. Certo dia aquele bom homem supriu miraculosamente nossa despensa, sem nem mesmo saber que naquele momento ela estava vazia!
QUINTA PARTE: OUTRA ENCRUZILHADA DECISIVA
Foi em Goiânia que minha vida ministerial sofreu uma forte e decisiva guinada. E toda guinada que ela sofria visava a preparar-me para um empreendimento de dimensão gigantesca: minha vida com João Calvino. E foi aqui que tive o primeiro contato com as Institutas em inglês, supramencionado. Até então, eu fora obreiro leigo da Missão Oeste do Brasil — onze anos. Durante todo esse tempo, estive sujeito à supervisão de um missionário norte-americano. Não tenho boas lembranças da totalidade da vida missionária que tive durante todo esse tempo no que tange à vida pessoal e familial. Embora fosse muito gratificante, contudo foi muito penosa e saturada de carência e constrangimento. Minha vida sempre esteve envolta por variadas carências. Cinco filhos; sete pessoas ao todo. O salário de evangelista sempre fora muito diminuto; para um casal, até que daria para viver convenientemente; mas, para sete pessoas, carecia do milagre divino da multiplicação. Esse foi o método divino direto nos dias dos profetas e de nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje, seu método é indireto e um tanto velado, se desenrolando imperceptivelmente. Vem um novo dia, entramos em uma nova noite, a vida segue seu curso e os milagres são efetuados nas entrelinhas de nosso livro. Daí a profunda tensão que enfrentamos em nossa peregrinação. Tensão, digo, o paradoxo do aqui e agora com toda sua gama de realidade. Hoje somos dirigidos pelo Espírito invisível e pela Escritura visível. Dependendo dos traumas, nossa vista espiritual é ofuscada e parece que estamos à deriva. Olhamos ao redor e nada vemos de positivo. Somente na dependência do Espírito e da Escritura é que sobrevivemos e continuamos nutrindo a esperança que não pode morrer. A não ser que queiramos envolver-nos com as ondas do misticismo “evangélico”. Ao olharmos para trás, percebemos nitidamente que o Senhor segurava nossa mão e indicava a vereda certa a seguir. Mais que o milagre físico, carecemos do milagre psicológico; isto é, otimismo em meio ao marasmo do cotidiano.
1. Trajetória cultural de Cremilda Cremilda nem sempre exerceu o ofício pedagógico. No entanto, foi aqui em Goiânia, em meio a duras penas, que a missionária Vivian Hodges, a mesma que me ajudara a ingressar no IBEL em 1960, a ajudou e a estimulou aos estudos. Colhi do Rev. Wilson Castro Ferreira a seguinte afirmação sobre essa mulher solitária e misteriosa: Miss Hodges tinha facilidade singular de fazer amizades com brasileiros e colocar-se ao lado deles, quando sentia que com eles estava a verdade. [9] Na verdade, foi ela, miss Vivian Hodges, quem custeou, aqui em Goiânia, a conclusão do curso médio de Cremilda, provando seu espírito humanitário. E Cremilda faria a faculdade de pedagogia em Ceres, e em seguida faria também pós-graduação na PUC de Belo Horizonte. Conto isto por ser da mais vital importância em nossa dolorosa trajetória, pois não muito tempo depois ela estaria enga jada no Instituto Mackenzie. Foi daí que chegamos a adquirir um apartamento na capital paulista, pois até então nenhum nômade ganharia de nós em questão de mudança; cada ano fincávamos nossa tenda em outro lugar: só na grande São Paulo, seis vezes e mais onze vezes nos campos missionários. Genuína vida peregrina. Portanto, devemos à miss Vivian Hodges nossos triunfos estudantis em Goiás. E aproveito o gancho para informar mais uma vez o quanto a Providência cuidou de nós em todas as nossas trajetórias. Sempre tínhamos um “anjo” de Deus a estender-nos a mão. Enquanto sufocávamos um gemido incontido víamos a seguir uma manifestação sutil da condução divina. Por isso, aprendemos a buscar o socorro divino nos piores momentos de nosso viver. Cremos e nos deleitamos em todas as sãs doutrinas da Escritura, de todo o coração; mas foi a Providência divina que sempre se mostrou mais real em nossos momentos de aperturas.
1.1. Duas faces da mesma história E foi aqui em Goiânia que minha história foi então dividida em duas
etapas distintas: até então e a partir de então. Pois até então eu servira ao Senhor Jesus na Missão Oeste do Brasil durante onze anos completos. Em todo esse tempo, eu estivera sob o comando de missionários estrangeiros; não tinha liberdade de ação e o ministério era incompleto: não podia celebrar os sacramentos. Quando a Missão queria e lhe era conveniente, ela remanejava seus obreiros leigos, à revelia, sem consulta prévia a eles. Querendo ou não, com gosto ou desgosto, chegava a ordem e cada um obedecia. Com frequência, isso gerava algum distúrbio. Em geral, um missionário se engraçava com um obreiro e o queria em seu campo. Se ele se desgostasse de um deles, esse tal ficava prejudicado; como se deu comigo em Pirapora, já narrado. Deu-se o mesmo também em Iturama, pois eu sentia que o obreiro não queria sair de lá, e teve que sair. Se não queria sair, o obreiro se indispunha com o colega que chegava para ocupar seu lugar. Aconteceu comigo e aconteceu com muitos colegas. Sem interferência de minha parte, a Missão me transferiu de João Pinheiro para Goiânia, com vistas a trabalhar com estas duas congregações: União e Betel. Digo isto porque foi de vital importância em minha trajetória rumo ao pico mais alto de minha vida com o Reformador João Calvino.
1.2. Visita do Dr. Divino José de Oliveira A outra etapa, nessa dramática trajetória, é a partir de Goiânia. Certo homem chamado Divino José de Oliveira, pastor e advogado, visitou-nos juntamente com sua esposa, dona Filhinha, florescendo daí uma rica e promissora amizade. Uma disparidade, pois ele era grande e importante, e eu era pequeno e destituído de qualquer importância. Já não me lembro dos detalhes por que o casal nos fez aquela visita; quase ninguém me visitava, pois era quase totalmente desconhecido. Ele era um homem muito influente: o primeiro aluno na história do Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL); pastor por muitos anos; chegou a ser prefeito da antiga capital goiana, Cidade de Goiás; era muito conhecido em Goiânia nas lidas políticas e grande vulto nas igrejas goianas. Resumindo, era um homem mui eminente para adentrar nossa modesta moradia. Mas isso aconteceu.
1.3. Mudança de trajetória
Naquela visita misteriosa, ele quis conhecer meu “gabinete pastoral” — designação que ele mesmo dera à minha “oficina” — pois esse foi sempre o título que dei a este cômodo, em nossas moradias — “oficina”. Entrou em minha oficina e ficou em silêncio por vários minutos, olhando os livros nas estantes. “Fantástico!”, por fim exclamou. “Poucos pastores possuem uma biblioteca tão rica. Você quer ser ordenado ministro do evangelho, Valter? Se você quiser, vou providenciar.” Na verdade, houve muitos rodeios neste diálogo, mas tenho que resumir. Expliquei-lhe que gostaria muito, porém não nas condições em que me achava naquele momento. Como evangelista, eu me saía mais ou menos; como pastor, é preciso muito mais do que ora possuía. Disse-lhe mais que, para ser pastor, teria que cursar teologia num seminário. O fato é que os dois se foram e eu continuei minha rotina diária e esqueci aquela visita.
1.4. Minha visão pessoal do ofício pastoral Sempre olhei o pastor de modo ascendente. Em minha ótica, sempre o via num ponto muito elevado. O pastor deve ser o supra-sumo da sociedade em que vive. Ele representa a igreja em todos os quadrantes das lidas humanas. Não só sua vida moral e espiritual deve ser muito elevada, mas também sua cultura. Ele tem de exercer predomínio na sociedade, ao menos de um modo geral, em todas as áreas do conhecimento humano. Quanto a mim, não me via muito mais alto do que quando deixei o IBEL. O evangelista leigo exercia sua função em campos missionários, tendo vivência somente com os missionários e com o povo da terra; os missionários não se interessavam pela cultura do obreiro, e sim por seu trabalho. Por isso, meus estudos eram irregulares e informais, sem seguir uma meta mais acadêmica. Já possuía e lia compêndios de teologia, porém não seguia uma diretriz bem coordenada de suas várias ciências. Eu seria sempre considerado um homem sem “experiência acadêmica”. Em toda minha vida, eu não passaria disso e jamais seria visto de outro modo. Enfatizo isso por causa do que um dia eu viria fazer. Resumindo, aquele preclaro pastor não se deixou convencer por minhas escusas. Em uma das reuniões da Executiva do Presbitério de Goiânia ele falou de mim; tanto é que, não muito depois, recebi um convite da Executiva para apresentar-me no caráter de visitante. Queriam me
conhecer melhor, falar comigo e me ouvir. Vale dizer que não movi sequer um dedo para chegar a esse ponto. A Providência cuidava de tudo.
1.5. Arranjos políticos Aliás, nossa meta sempre foi nunca forçar uma porta para ter acesso a outra situação, em prejuízo de alguém. Sempre cultivei horror pelo que via nos bastidores da igreja: pastores fazendo finca pé para não deixar seu pastorado para outro colega; pastores politicando nos bastidores para assumir o pastorado de uma igreja importante, tudo fazendo para remover dali seu próprio colega de ministério; conselhos se reunindo secretamente para traçar metas às costas do pastor em exercício; pessoas politicando nos bastidores para assumir algum cargo na igreja etc. Minha visão bíblica da ação do Espírito de Deus que governa a igreja me leva a reagir a esse estado pecaminoso nas igrejas de nosso Senhor. Sinto-me indignado com o jogo de cintura, “arranjos” e ação política. Muita coisa se consegue por meios pouco recomendáveis; para piorar as coisas, costuma-se dizer que foi o Espírito de Deus que conquistou a vitória. Ora-se rogando que o Senhor faça sua vontade, presidindo às decisões humanas; no entanto, nos bastidores, por meios escusos, os arranjos humanos é que prevalecem. “Senhor, elege aquele que tens em mente” — é nossa oração em nome de Jesus. Todavia, nos bastidores, já elegemos aqueles que queremos. Sempre encarei esse comportamento nas igrejas com muita dificuldade. Vejo tudo isso com muito escrúpulo. Considero-me um grande pecador, mas esse tipo de atitude me causa estranheza, quando nossa confissão é que o Senhor age por meio de sua Providência nas tramitações de uma igreja local, de um concílio ou de uma entidade da igreja. Quando agimos nos bastidores para que nossos desejos sejam satisfeitos, estamos pecando contra o Espírito do Senhor que governa a igreja. É óbvio que temos de avaliar e julgar e decidir. É óbvio que no ínterim temos de investigar e fazer consultas. Mas temos que fazer isso no temor de Deus. Nos bastidores, quando alguém menciona alguém, devemos orar para que a vontade do Senhor seja feita. Os complôs, os cochichos, as visitas eleitoreiras equivalem a uma atitude que contraria a ação providencial do Espírito Santo na igreja. Naturalmente, eu falo isso em termos gerais. Não estou envolvendo toda a igreja. Aliás, quero crer que o elemento negativo é a exceção, e não a regra. Mas essa exceção, se
não for corrigida, pode contaminar e prejudicará todo o corpo, como aconteceu no deserto com Coré, Datã e Abirão. Como aconteceu com os filhos do sumo sacerdote Arão, Nadabe e Abiú, que ofereceram fogo estranho no altar do Senhor, trazendo ruína a todo o povo.
1.6. Minha filosofia pessoal Sempre odiei esses expedientes profanos e pecaminosos, os quais são próprios de um mundo sem Deus. O ministro da Palavra não pode seguir essa vereda promíscua. Ele tem de confiar plenamente na Providência divina, na diretriz do Espírito de Deus. Muita coisa nas igrejas não produz bom resultado em razão da atitude pecaminosa de ministros, conselhos e demais líderes. Deus pune esse pecado. Em meu caso com aquela Executiva, não houve tal expediente e nem poderia haver. Apenas oramos, de cá e de lá. Eles queriam, e eu não queria. No entanto, o Espírito de Deus me deu discernimento para entender que jamais poderia cursar teologia em um seminário em razão da família já numerosa e de minha cultura ser incompleta. Iria acarretar um grande volume de inquietação e transtorno.
2. Meu encontro com a Comissão Executiva do Presbitério de Goiânia Isso se deu em meado de 1974. Não me lembro de todos os membros do concílio; eu já conhecia o Rev. Divino José de Oliveira, o Presbítero José Costa, o Rev. Álvaro Almeida Campos e o Rev. Jairo Gomes de Miranda. Fui interrogado sobre o desejo de ser pastor. Respondi de novo que não podia aceitar essa incumbência antes de ir ao seminário, informando que fizera somente o IBEL e que minha cultura era muito deficitária para dar um passo como aquele. O que os cativou foi minha exposição do que eu pensava do ministério pastoral. Eu tinha bom conhecimento disso, porém não podia pôr em prática sem o devido preparo. De fato, não passava por minha mente que naquele momento eu já estivesse preparado para tão terrível responsabilidade. Nunca fora leviano a esse respeito. Repetindo, eu via o pastor como a pessoa mais importante, mais culta, mais visada da sociedade humana. Não era o prefeito, nem o médico, nem o professor, nem o juiz, nem o advogado; é o pastor que exerce predomínio em todos os setores da comunidade. Eu ainda não possuía os requisitos indispensáveis para tanto.
2.1. Decisão da Comissão Executiva Nada os demoveu da ideia de me fazer pastor. A despeito de todas as minhas justificativas, fui recebido como candidato à ordenação pelo Presbitério de Goiânia; nomearam o próprio Rev. Dr. Divino José de Oliveira como meu tutor e me deram a incumbência de elaborar uma tese (designação que naquela época se dava a uma monografia moderna), a exegese de um texto bíblico, um curriculum vitæ e um sermão pregado no púlpito da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia perante a ordinária do Presbitério. Meu mundo virou de ponta cabeça. Sobreveio-me profunda ansiedade. Recebendo um prazo limitado para tanto, fui dispensado dos trabalhos das igrejas, por certo período, a fim de elaborar esses trabalhos. Alan Mullins era então o diretor do Acampamento Boa Esperança (ABE), e me ofereceu suas dependências para ali isolar-me. E assim fiz.
2.1.1. Monografia Dentre os temas da Confissão de Fé, escolhi O juízo final. Se porventura alguém ler este relato, certamente me qualificará, e com razão, de “sem juízo”. Como alguém de tão pouco preparo cultural e teológico podia dar-se ao luxo de desenvolver uma tese sobre tal assunto? Eu tinha bastante material para isso, e a incumbência me forçou a empregar toda minha capacidade e conhecimento nisso. Nesse tempo já não conseguia seguir lado a lado com os conceitos escatológicos vigentes, porquanto havia desenvolvido o hábito de questionar à luz da Bíblia e dos conceitos presbiterianos qualquer tema teológico, principalmente escatológico. O conceito que já predominava nas igrejas era vários tipos de pré-milenismo, e já percebera que a teologia calvinista não comporta os conceitos quiliásticos. Além do mais, nunca me vi como um homem inteligente, mas simplesmente esforçado e persistente. Creio que consegui o intento, visto que eu mesmo cheguei a gostar do resultado, quando dificilmente gosto do que faço. É oportuno dizer que não tive a assistência de nenhum professor em teologia. Havia muitos em Goiânia. O seminário de Goiânia só veio à existência mais tarde. Os pastores, muito mais bem preparados do que eu, cada um tinha suas tarefas ministeriais. Não tinham tempo disponível para assessorar-me. Tampouco recorri a um deles para ajudar-me. Ainda não havia as ferramentas que o povo de Deus possui hoje, quer na forma de livro físico, quer na forma tecnológica da internet. Hoje você clica as teclas de uma “maquininha” e encontra ali todo tipo de recurso acadêmico e tecnológico. Nas dependências do Acampamento Boa Esperança, só podia contar com a assistência do Espírito de Deus e da literatura que fui acumulando através do tempo e levei comigo para lá.
2.1.2. Exegese Quanto à exegese, é evidente que não poderia usar os recursos acadêmicos, porquanto pouca noção tinha de hebraico ou de grego como hoje tenho. Escolhi para isso Hebreus 1, texto que sempre atraía minha atenção e me causava forte impacto por sua grandeza. Eu queria discorrer sobre a deidade de Jesus Cristo, aquele a quem amo e sirvo; aquele que eu teria que engrandecer na função de pastor. As duas experiências foram
profundas para minha modesta pessoa. Paulo dizia que nada mais lhe importava senão a pessoa e obra do eterno Filho de Deus. “Para mim o viver é Cristo”. Esse era também meu profundo desejo — viver com Cristo; viver em Cristo; viver por Cristo; viver para Cristo.
2.1.3. Curriculum Vitæ As duas obras estavam prontas; mas, como elaborar um curriculum vitæ sem experiência escolar e sem diplomas? Até mesmo minha história era ainda muito pobre. Os currículos que havia lido eram riquíssimos, detalhados, longos, pomposos. Há currículos que levam a gente a desistir da leitura. E eu estava destinado a nunca ter um currículo acadêmico. Ainda hoje não conseguiria compor meu currículo. Daquela época para cá sou quase o mesmo homem. Aliás, meu único currículo e diploma são minhas traduções e meus escritos. Não posso colocá-los em uma bela moldura e afixá-los numa parede; se encontram nas prateleiras. Continuo sem “experiência acadêmica”. Aproveito o “gancho” para dar conta de minha “cultura” (ou, melhor, minha falta de cultura!) naquela época. Na infância, estudei em escolas rurais, o equivalente ao primeiro grau. Mais tarde, fiz o supletivo do segundo grau. Passei em todas as matérias, menos em matemática. Por isso, não recebi o diploma. Nunca pude fazer um curso acadêmico, por mais que fosse essa minha aspiração. Não deixei de explicar isso ao Presbitério de Goiânia. Aliás, nunca escondo isso de ninguém, nem vejo razão plausível para ocultálo. Sentia-me pesaroso, porém não envergonhado. Só mais tarde eu faria um curso teológico por extensão (COSE) assessorado pelo eminente teólogo e meu amigo Rev. Dr. José Martins, que me visitava periodicamente. O que fazer, então? Assim, decidi contar minha modesta história, documentando, com ilustração, o quanto podia, os transes de minha vida peregrina. Deu uma apostila razoável.
2.1.4. Sermão de prova Ainda faltava o último trabalho: o sermão de prova que seria enunciado perante o Presbitério reunido em sua Reunião Ordinária no final de 1974, nos recintos da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia. O texto escolhido com muito critério foi Colossenses 1.27: Cristo, a esperança da glória. Outra
loucura! Durante a avaliação, um dos pastores me aconselhou a jamais pregar aquele sermão em qualquer igreja. Obedeci sem nunca procurar saber o porquê. Nunca soube se o sermão foi erudito ou teológico demais, ou se foi confuso, e mais parecido com aquele que preguei no IBEL no final de 1963, como sermão de prova; ou se foi herético (o que dificilmente teria se dado, visto que nunca abracei qualquer heresia, e o Presbitério teria então me reprovado). Ele não disse, e eu não perguntei. O fato é que o sermão desapareceu e nunca mais preguei naquele texto. Não me lembro nem do esquema nem do conteúdo do sermão. Registro ainda que, naquele tempo, é óbvio, não havia computador. Tinha uma maquininha datilográfica de onde eu extraía meus escritos. O texto ficava bem feio com as correções feitas através de uma fita corretiva. Todos os escritos eram rascunhados e, depois, datilografados. Inclusive minhas traduções, posteriormente, no início, foram feitas com o uso deste critério.
3. Aprovação Aprovado, o concílio descobriu que eu não podia ser ordenado sem primeiro passar pelo crivo da Comissão Especial de Seminário da IPB. Minha ordenação foi adiada, e fui encaminhado à Reunião da Comissão Executiva do Supremo Concílio em Brasília. Uma pessoa que sempre esteve comigo de modo carinhoso e solícito foi o Presbítero José Costa; e vale dizer que nunca havíamos tido qualquer afinidade prévia. Ele era então tesoureiro do Supremo, e fez questão que eu fosse a Brasília em sua companhia. “Deixe tudo comigo. Vou falar diretamente com Rev. Boanerges Ribeiro sobre você.” (É assim que as coisas funcionam na cúpula da IPB, e às vezes dão certo!) Aquele homem poderoso, Rev. Boanerges Ribeiro, se deparou comigo nos corredores do prédio e me disse com voz de trovão (até então não o conhecia pessoalmente): “Já me falaram de você, e falaram bem; fique tranquilo que tudo vai dar certo.” Aquele vozeirão me deixou ainda mais tímido. Muitos anos depois, lhe referi aquele momento, e então se calou por alguns segundos, e declarou de modo pausado e com emoção: “Eu me lembro; tempo bom aquele!” Aproveito o “gancho” para informar ao leitor que meus sucessos nunca se deram como que num passo de mágica. Todos eles vieram no meio de um
torvelinho e de “ventos contrários”. Sempre houve milagres em minha trajetória, mas esses milagres nunca foram ostensivos; sempre vieram discretamente e às vezes até mesmo com aparência contrária. Eles estão acontecendo e eu estou me debatendo diante do trono da graça às vezes com indignação porque as coisas não me acontecem como ocorrem com outros. Se você se encontra no meio de um tsunami e não é tragado por ele, saindo dali ileso enquanto os demais são mortos, então pode considerar isto como um milagre divino. É a mão divina que o arrebata das guelras da morte. Para comigo, os milagres divinos são assim. No entanto, a Providência não falhava para comigo.
4. Comissão especial de Seminário Então chegou o momento de me defrontar com aquela temível Comissão. Havia uma mesa enorme, circundada por figuras as mais eminentes e imponentes, não só na sociedade brasileira, mas a própria nata da IPB. O presidente era o Coronel Renato Guimarães. Havia até General (Jardim). Eu mais parecia Davi diante de vários Golias, com a diferença que me faltava sua coragem, não portava nenhuma funda, nem pedrinhas do ribeiro, nem espada emprestada, e aqueles Golias não eram inimigos da Igreja de Jesus. Minha única visão era da Providência celestial. Minha surpresa se converteu em espanto, quando o presidente falou aos companheiros que lera meus escritos (pois tinha leitura dinâmica), e me perguntou onde encontrara tantos livros para bibliografia tão rica. “Emprestados?” Não! Todos pertencem à minha modesta biblioteca! “Como conseguiu isso? Pelo que sei, você é um obreiro caipira.” Respondi: Quase deixando de comer. Ele fez menção de meu currículo: “Nunca li nada igual!” De novo respondi: Tenho certeza de que o senhor jamais lerá algo igual! Ele se interrompeu com voz embargada e enxugou as lágrimas, e manteve um minuto de silêncio, dizendo depois: “Há muita coisa aí que se parece com minha própria história.” Não conseguia continuar. E a reunião quase acabou aí. O Coronel declarou aos componentes da mesa que estava profundamente impressionado com tudo aquilo. Houve naquela mesa profundo e comovente silêncio. Lembro-me que o Rev. Osvaldo Hack me dirigiu perguntas de cunho teológico, torcendo de propósito, para me provar, um dos pontos do TULIP, o que corrigi de modo franco e simples, dizendo que meu modo de
ver o assunto tinha o seguinte reparo, e o expus como cria. Estava aprovado com aplausos. Aproveito outro “gancho” para declarar que, possivelmente, o leitor vai se identificar de tal modo comigo, como se eu estivesse discorrendo sobre sua própria história. Pois meu intuito não é contar uma história novelesca como se fosse única. Eu me pareço com você em muitas coisas, pois vivi uma vida comum e me considero um homem comum. Não existe em mim nada de especial; o que faço é que é especial. Sempre me vejo no espelho da realidade, e não da fantasia. Tenho tendência para a megalomania, sim, mas o Senhor também sempre me deu o dom de refrear tal fantasia. Sempre me vejo no meio da multidão comum como um homem avulso e anônimo. Se você é pessoa comum, então pense em mim como também um homem comum. Por isso, procuro não perder de vista minha verdadeira identidade com o passado: minha procedência rural, o exercício de uma das profissões mais humildes que existem, a de ferreiro, a luta penosa por uma cultura fragmentária e destituída de adornos, minha trajetória em quase total anonimato.
ORDENAÇÃO E PROSPECTO 1. Retrospectiva Até então, eu havia passado por quatro campos — Iturama, Pirapora, João Pinheiro e a própria Goiânia. Os quatro últimos foram quase infrutíferos. A história nos narra com frequência que alguém enfrentou determinada circunstância em que não conseguiu perceber quase nada de importância concreta. É como atravessar um deserto cujo percurso deixa rastros que logo se apagam e nada fica para contar a história. É como perder parte de sua própria vida. É um hiato que poderia ser excluído de nossa biografia sem fazer falta alguma. Às vezes me pergunto por que exerci parte de meu ministério em quatro lugares onde nunca consegui ver praticamente nada. Iturama foi de grande proveito. Em Pirapora e João Pinheiro não deixei rastro. Meu período em Goiânia por fim terminou com algo que me faz ver a razão de ter vivido aqui. No calendário do Eterno pode ser que houvesse razão plausível para esse período aparentemente estéril. É só lembrar o glorioso texto de Isaías:
Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o S ENHOR; porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos. (Is 55.8, 9) Crendo e experimentando pessoalmente esta antítese, então não posso afirmar que minha vida nesses quatro campos de trabalho foi inútil, pois o Senhor me preparava para algo de valor imenso, porém eu não sabia. Daí viver dois anos e meio em Goiânia sem ver frutos como vira em Iturama e veria em Paraíso, e daí em diante. Forçando um pouco, hoje consigo ver a razão por que passei por esse período aparente desértico. O mistério da Providência é imprevisível.
2. Prospectiva Então, chegou a ocasião da ordenação ao sagrado ministério. Pessoalmente, eu visualizava tudo aquilo como grande demais para mim. A visão daquela bigorna e daquele martelo, naquela modesta oficina, nunca me deixou, e o futuro me mostraria que tal visão jamais me deixaria; assemelhava-se a Paulo que sempre se lembrava que fora perseguidor da Igreja de Deus. Na verdade, eu tinha medo da dura realidade do ofício pastoral. Sentia-me inseguro, e com razão. Tinha medo de fracassar e levar uma igreja ao fracasso. Minha timidez natural e a responsabilidade chegavam ao ponto de me atormentar. Às vezes queria voltar atrás. Vencer é muito bom; fracassar é preferível morrer. E ainda me perseguia a perene tendência de desistir facilmente. Eu teria que aprender que “todo aquele que desiste de lutar nunca tem razão”. Como evangelista, eu poderia parar a qualquer momento; mas, como pastor, entendia que não há meia volta ou volta completa. Em meu conceito pessoal, a ordenação divina não permite retroceder. Eu teria que seguir em frente; e o futuro é misterioso, secreto e velado; é inesperado. Não visualizamos nada através do nevoeiro do tempo. Depois de assumir o pastorado eu teria que mostrar determinação e resistência. Tentava ver a dimensão de minha fé e
não conseguia; inclusive me perguntava se realmente estava exercendo fé no Senhor da Igreja e confiança em mim mesmo, e a resposta tendia para a negativa. Na verdade, nunca me vi como um homem de fé vigorosa; de amor profundo; de conhecimento abrangente; confiável à igreja e à sociedade. Viame mais como pusilânime do que como corajoso e determinado. Mas uma força misteriosa não me deixava parar no meio do caminho. Lembrei-me de ler sobre aquele ministro novato que assomou o púlpito de um pastor ancião, crendo que iria “arrasar”. Terminado o culto, desceu do púlpito “arrasado”. Então indagou do pastor ancião: “Por que sinto o sabor do fracasso?”. E o ancião: “Se você tivesse subido como desceu, então teria descido como subiu”. Procurando conhecer-me, percebia claramente em mim a presença de forte tendência para a megalomania. Sim, eu sempre fui alvo de minha própria grandeza. Havia lido que o complexo de inferioridade na verdade não é mais que a luta contra o espírito de superioridade. O que fazer com isso? O viver diário de pastor, entre as ovelhas, me ensinaria esta lição de casa. E tive que aprendê-la a duras penas, contudo ainda não sou mestre, pois continuo com a mesma tendência, só que mais calejada, desiludida, mortificada.
3. Ordenação As igrejas de Betel e União solicitaram do Presbitério de Goiânia que a cerimônia de ordenação fosse realizada no templo da Igreja União, por ser o maior. Em 9 de fevereiro de 1975, um dia após o décimo primeiro aniversário de casamento; reunidas as duas igrejas e fazendo-se presente uma comissão de ordenação; com uma cerimônia muito bela e de profunda espiritualidade, recebi do Presbitério de Goiânia a imposição das mãos, e a declaração de que, doravante, eu seria o Rev. Valter Graciano Martins. Habituei-me a tratar os pastores evangélicos com o título Reverendo. Nunca trato assim somente os pastores presbiterianos, mas também os pastores de outras denominações realmente evangélicas; tampouco somente os mais velhos, mas a quantos já receberam a imposição das mãos de um Presbitério, quer mais idosos, quer mais jovens. Entendo que o tratamento visa ao título e ofício, e não à pessoa que os recebe. Creio que esse título de reverência é justo naqueles cujas vidas são consagradas à proclamação do
santo evangelho. Todavia, no que diz respeito à minha pessoa, tal título é pomposo demais. Em vez de sentir-me exaltado, senti-me esmagado por ele. Em meio aos sorrisos de todos, às orações, aos louvores e, sobretudo, à proclamação da Palavra de Deus, eu estava sagrado ministro da Palavra de Deus pela imposição de mãos. Nem me lembro quem foi o orador, nem do texto bíblico e o tema do sermão. Tudo ficou tão longe, que a memória já não retém os detalhes. As duas congregações estavam juntas naquele evento. Boa parte do Presbitério se fez presente. O único parente meu que se fez presente nesse evento foi meu irmão Marcelúcio, e isso porque também havia abraçado a mesma fé e nesse tempo morava conosco. Minha família, estritamente falando, nunca se empenhou em estar comigo nas ocasiões de celebração. Aliás, meus irmãos, com a exceção de Marcelo, não conhecem nada de minha história. Neste sentido, sou para eles um perene desconhecido. Caso lhes seja indagado: “Quem é o Valter?”. A resposta certamente será: “Sabemos que temos o mesmo sangue, mas nada sabemos a respeito de sua vida e história”. Para eles, sou quase que um proscrito.
4. Emprestado à Missão Oeste do Brasil A Missão Presbiteriana no Brasil tem uma história mais que centenária. Começou com o Rev. Ashbel Green Simonton e chegou até nós. No entanto, esta Missão se dividira no passado com o intuito de atender melhor aos reclamos de um país cujo território físico é imenso. A nós coube receber a ação daquela parte que se chamou Missão Oeste do Brasil. Até este ponto de minha história no trabalho do Senhor, já se passara onze anos. Até então, servira ao Senhor como evangelista leigo, semeando, plantando e fazendo crescer igrejas que hoje são grandes e bem estabelecidas. No entanto, meu serviço missionário é totalmente ignorado pela Igreja atual. É como se não existisse no quadro de obreiros missionários. Como eu, muitos outros ficaram sepultados em um passado ignoto. Somente o Senhor da Seara é quem os conhece. E já de antemão a Missão solicitou do Presbitério de Goiânia que, assim que eu fosse ordenado, este me emprestasse a ela a fim de preparar a congregação de Paraíso do Norte de Goiás (hoje Paraíso do Tocantins) para a organização eclesiástica. Estipulou o tempo de três anos para o empréstimo.
Aquela mesma Missão que se agastara com minha pessoa e trabalho, dando ouvidos a um homem equivocado, agora quer minha pessoa e meu trabalho, com todo apreço, empenho e confiança. O Presbitério assentiu ao pedido, cedendo-me à Missão Oeste do Brasil com vistas à Congregação Presbiteriana de Paraíso, de 1975 a 1977. De repente, minha condição e trajetória se reverteram, vendo-me assim investido de autoridade e de mais autonomia. No dizer do apóstolo Paulo, senti um peso de glória e nova responsabilidade. No mesmo dia da ordenação, recebi minha Carteira de Ministro, preenchida e assinada por um dos vultos mais proeminentes da IPB, que sempre fora alvo de meu mais profundo respeito, e que mais tarde se tornaria meu amigo íntimo e companheiro de trabalho a nível de Supremo Concílio, Rev. Álvaro Almeida Campos. A despeito do júbilo de poder doravante exercer o ministério completo, nunca deixei que a megalomania inerente à minha personalidade subisse à minha cabeça e me tornasse arrogante e presunçoso, exteriormente, de acordo com minha natureza latente. Ao longo de minha vida, cunharam-me de “arrogante”. Essa falsa fama campeou por toda parte. Desenvolvi o senso de autocrítica, e nunca escondi meus defeitos, porém nunca consegui ver-me como “arrogante”. O dicionário diz que o “arrogante” é soberbo, atrevido, presunçoso, insolente, altaneiro, que menospreza os demais e não admite estar errado. Se me chamarem de franco, às vezes até rude, concordo; se disserem que sou um homem “esquisito”, digo que também me vejo assim. Tem sido difícil acostumar-me com essas coisas. O arrogante não se reconhece como miserável, e eu me reconheço como o pior dos homens. No meio dos colegas de ministério, vejo-me como “o menor em Cristo”. Certo dia um amigo me advertiu, dizendo: “Se você quiser ser respeitado; se quiser impor-se; se quiser ser visto como grande, então terá que impor-se para se sobressair; do contrário, será sempre visto de cima para baixo. Se quiser ser respeitado e valorizado, terá que aceitar os títulos que você granjeou através do tempo”. Por mais verossímil fosse aquele conselho, não o pus em prática. As pessoas me dão títulos; mas nunca assino qualquer escrito ou documento prefixando meu nome com título. Ajo assim somente comigo; nunca com os outros.
5. Aluno do Professor João Calvino
Aprendi com João Calvino que deu ordem sobre seu túmulo: que fosse sepultado junto aos túmulos mais comuns da cidade. Obedeceram. Até hoje ninguém sabe onde seu corpo está sepultado; somente no dia do Juízo Final, quando ocorrer a ressurreição de todos os corpos já sepultados, é que talvez se saberá o local onde jazem seus ossos. É verdade que seu corpo físico desapareceu; mas desde então seria perenemente impossível reter a fama daquele homem. Enquanto seu corpo físico jaz, usando sua própria linguagem, “recôndito”, sua pessoa e influência eclodiram pelo mundo todo. Aprendendo com ele e dele, digo que a única coisa que gostaria que ficasse de mim não é minha fama, que não possuo e jamais possuirei; e sim o produto de minha vida peregrina — um legado imperecível que deixo à Igreja de nosso Senhor, na qualidade de servo! Nossa vida terrena é envolta de ilusão. O real não se manifesta a olhos nus em sua plenitude. A cada dia me sinto imbuído da realidade humana. A velhice nos desencanta e nos esmaga com o terrível peso da realidade. Vestuário, riqueza material, fama, beleza física — tudo isso não passa de quimera. No dizer de um filósofo, “a beleza é um esqueleto bem vestido”. A única riqueza real; a única beleza perene; a única fama que vale a pena possuir, serão as glórias por vir após a ressurreição deste corpo fantasmagórico que nasce, cresce, envelhece e então escapa à visão dos vivos com a chegada e transporte da morte. A vida terrena não passa de um frágil fio que de repente arrebenta. Aqueles que se gloriam em seu exterior deveriam ter em mente, indelevelmente, que a qualquer momento sua vida terrena será extinta. Segundo a bela descrição poética do escritor de Eclesiastes: “antes que se rompa o fio de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço, e o pó volte à terra como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (Ec 12.6,7). Calvino sempre usa uma ideia recorrente em suas obras: nosso corpo é um doloroso peso e apodrece facilmente; com a morte, a alma se liberta e voa para o “seio de Abraão”.
6. Tempo de ministério Sempre contei o tempo de trabalho leigo como sendo um ministério legítimo. Quando alguém me pergunta quanto tempo tenho de ministério pastoral, respondo que ele começou em janeiro de 1964, muito embora não
pudesse, nesse tempo, ministrar os sacramentos e outros deveres do pastorado pertinente exclusivamente ao ministro da Palavra. Trabalhei cinco anos em Iturama, um ano e meio em Pirapora, um ano e meio em João Pinheiro e três anos em Goiânia, somando 11 anos de ministério leigo. Durante esse tempo, estive à frente de igrejas, ajudei a fundar congregações, preguei centenas de sermões em cidades, vilas, fazendas e em lugares quase inacessíveis, dormi em cabanas cheias de todo tipo de insetos; celebrei dezenas e mais dezenas de cerimônias (bênção nupcial, ofício fúnebre e outros eventos); atendi a diversos convites para conferências em igrejas pequenas e grandes, sempre com a fama de “evangelista cantor”; pois, naquele tempo, desenvolvi um rico ministério de música tendo ao lado minha esposa Cremilda, duetando e tangendo meu instrumento portátil pelas regiões campestres. Certamente, naquele tempo não se usava a parafernália de sons eletrônicos modernos. Cantávamos com o peito e garganta abertos, acompanhados pelo som de um harmônio de fole que eu mesmo tocava.
7. Pastorado modesto, porém leal Nunca fui um obreiro talentoso, eloquente, como dizem hoje, explosivo na proclamação do evangelho. Sempre lutei pela unidade das igrejas, pela coesão dos conselhos e pelo aprofundamento na sã doutrina. Nunca suportei ver e ouvir distorção de qualquer doutrina sem uma reação fulminante. Nunca fiz igrejas crescerem explosivamente, mas também nunca dividi igrejas. Sempre tive horror a essa epidemia que infesta a igreja moderna. Sempre me firmei na sã doutrina pela ótica da Igreja Presbiteriana do Brasil, em sua confissão da fé reformada ou calvinista. Nunca proclamei: “a igreja vê e pensa assim; mas eu vejo e penso diferentemente; não concordo com a igreja neste ponto, para mim ela está errada”. Pensar ou declarar isso seria genuína presunção, pois eu estaria sendo mais sábio que a igreja, e o que penso e ensino seria mais perfeito do que o pensamento e o ensino da igreja. Muitos querem corrigir os “erros” doutrinários da igreja sem a mínima cultura teológica e filosófica para isso. Pior, evocam o Espírito do Senhor como sendo o co-autor desses disparates. Longe de mim tais coisas! Gostaria de partir deste mundo sendo conhecido como o homem plenamente fiel à sã doutrina. Um homem compromissado com a plena verdade revelada na Santa Escritura, sem dobrar ou para a direita ou para a
esquerda; mas que seguiu em frente como um verdadeiro soldado de nosso Senhor Jesus Cristo. Sou um homem de muitos defeitos, porém defeitos de cunho humano. Por isso nunca defendi minha pessoa quando acusado; porém vezes sem conta fui visto defendendo com unhas e dentes a sã doutrina. Sempre mereceu meu repúdio quem se mostra desleal para com a estrutura da igreja. Mais de uma vez desejei abjurar a IPB por questões políticas e administrativas. De vez em quando me sinto injuriado com certas coisas existentes nela em razão de seu lado humano. Mas sempre superei esses momentos de delírio e segui em frente resolutamente. Quando se discute a respeito da IPB, sempre a defendi; sempre que se discute a respeito do Supremo Concílio, nunca o vitupero; nunca vilipendiei os governantes da Igreja do púlpito; nunca saí de lar em lar difamando os que governam a Igreja; nunca escrevi um documento e o pusesse na internet para execrar os dirigentes dos concílios ou algum pastor em particular. Tudo quanto faço no seio da Igreja visa a enobrecer toda ela. Desejo que ela seja abençoada e aperfeiçoada e toda minha luta é para vê-la enriquecida. É somente isso que quero! Que o Eterno me perdoe quando, cedendo à indignação ante os erros humanos dos que regem a igreja nacional, sou levado a censurar e a me expressar indevidamente contra essas autoridades eclesiásticas.
8. Convicção reformada Meu ser é tão entranhado do espírito reformado ou calvinista de pensar e sentir, que não saberia ser outra coisa. Sou visceralmente contra indivíduos que abjuram o calvinismo para criar “monstros” no lugar de igrejas. Certa vez alguns colegas me sugeriram que criássemos nossa própria denominação. Minha resposta contundente foi: “Que este seja o último pecado que eu cometeria contra o meu Deus”. Portanto, nunca usei o púlpito para denegrir a Igreja de nosso Senhor em defesa própria. Sempre vi a Igreja em seu aspecto duplo: a igreja visível, tangível, humana, portanto falha, que ainda peregrina por este mundo; e a igreja real, invisível, intangível, divina, composta não só de presbiterianos, mas de todos os eleitos que compõem as diversas denominações realmente cristãs e de muitos que jamais terão a chance de desfrutar a “comunhão dos santos” neste mundo, em razão das circunstâncias e em seu aspecto externo. Esta Igreja se compõe de ex: covardes, incrédulos, abomináveis, assassinos, impuros, feiticeiros, idólatras, mentirosos (Ap 22.8).
São eleitos e destinados à glória eterna no lar de nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 14.2).
9. Luta contra a megalomania Visto que guardo ainda em minha personalidade muito de megalomania, declaro que dificilmente alguém chegou a um conhecimento mais pleno e profundo da interpretação bíblica pela ótica do calvinismo do que eu. E isso tem contribuído para um doloroso senso de mágoa e tristeza de ver o estado atual da igreja, no campo da doutrina, do governo e da liturgia. Há negação discreta e pública da sã doutrina; há distorção no governo da igreja; a liturgia, em minha visão, tem sido feita de modo irresponsável, sem perguntar se o Criador do universo concorda ou não com a “cantoria” que ecoa nas igrejas. Em minha visão, as igrejas não estão louvando a Deus, e sim a si mesmas. Não estão buscando primeiramente seu reino e sua justiça, mas o agrado de sua própria natureza humana e ainda depravada, ou seja, a carne. Não temos Apocalipse 4 e 5 como modelo para nossas liturgias. De que vale encher um templo de pessoas por meio dos cânticos, se não houver a unção do Espírito nem o ensino perfeito da sã doutrina? Se não houver aquela fé dos santos que ultrapassa a todo entendimento? De que vale encher um templo quando o centro é o louvor e não o púlpito como a bigorna e a Palavra proclamada a partir dele como o martelo que esmiúça a penha? Uma igreja que não tem a Palavra de Deus como o centro de sua existência, dificilmente pode ser chamada de “Igreja de Deus”. Tudo o que acontece na liturgia são componentes que adornam a proclamação da Palavra. Reunir-se para cantar “louvores” sem a centralidade da Palavra de Deus é de pouco valor, a menos que os cânticos estejam recheados de elementos doutrinais.
10. O sacro dever da Igreja A igreja tem que lutar e relutar contra aquela ímpia dicotomia que confessa a Cristo com os lábios e o nega com suas obras. Ela tem que confessar com a vida o que Jesus nos preceituou no Sermão do Monte: “Sim, sim, não, não; o que passa disso vem do maligno” (Mt 5.37). Há muita leviandade na esfera litúrgica das igrejas locais. As seitas têm sido mestras das igrejas genuinamente cristãs. Elas têm sido fontes donde emana todo tipo
de vícios e costumes que se têm introduzido em nossos cultos. Até mesmo os pastores aderem a essas coisas que ontem estavam ausentes, só porque contribuem para fazer crescer o número de pessoas que vêm para a membresia das igrejas. Não importa o que façamos; o que importa mesmo é que elas cresçam em número. Essa é uma temeridade que deveria ser repelida com todas as nossas forças. Somente três coisas deveriam fazer uma igreja crescer: o evangelho puro, proclamado segundo o teor bíblico, convidando os pecadores a abraçarem a eterna salvação; a sã doutrina que nos ensina como viver vidas puras para o Senhor da Igreja; e a genuína celebração dos sacramentos. Somente estas coisas é que produzem um verdadeiro culto praticado de acordo com as normas bíblicas de adorar o Senhor em espírito e em verdade (Jo 4.23,24). Muitas pessoas têm toda razão de me censurar por questões pessoais; mas creio que ninguém poderá se apresentar em público e dizer com plena razão que estou crendo e ensinando heresia. Meu grande “mal” é que não nasci com aqueles talentos que abrilhantam a tantos homens e mulheres no seio da igreja. No entanto, ele me tomou como sou para a glória de seu Nome, e tenho tentado corresponder. Cada dia que passa só me importa uma coisa: engrandecer meu glorioso Senhor e Deus. Minha pessoa pode e deve ser descartada.
PRIMEIRO PASTOREIO COMPLETO 1. Paraíso do Norte de Goiás (hoje do Tocantins) 1.1. Cidades e igrejas Com a construção da rodovia Belém/Brasília, BR 153, foram nascendo vilas às suas margens e proximidades, das quais algumas vieram a ser cidades florescentes. Paraíso foi uma dessas, hoje uma grande e importante cidade do Estado do Tocantins. A Missão Oeste do Brasil, com sua metodologia de se valer de obreiros leigos para a expansão do evangelho onde ele ainda não fora ouvido e implantado, acompanhou o nascimento e crescimento dessas cidades para implantar igrejas e escolas. Ceres/Rialma, Nova Glória, Rubiataba, Uruaçu, Campinorte, São Miguel, Formoso,
Porangatu, Gurupi, Paraíso, Miranorte, Colinas, Araguaína entre outras. Obreiros de renome fundaram igrejas naquelas regiões; e outros, em seguida, passaram por elas, dando-lhes forma e estabilidade. Alguns deles eu nem mesmo cheguei a conhecer, exceto de nome; outros, eu conheci, e bem.
1.2. Igrejas e seus pastores Lembro-me bem que meu colega de IBEL, José Gonçalves de Siqueira, saiu de lá e já foi pastorear a Congregação de Paraíso e ser professor na escola que nasceu com a igreja. Em seguida também nossa colega de IBEL, Rute, terminou seu curso e foi ser professora em Paraíso. E foi assim que se casaram e se tornaram um abençoado casal missionário. Sua história em Paraíso daria um livro massudo. No entanto, sei que muitos outros obreiros passaram por lá antes e depois. Lembro-me bem do casal Rev. Joaquim de Brito Cabral e Prof.ª Nicolina, sua esposa. Mas fui informado, e ainda me faltam os dados reais, que o primeiro obreiro que andou por lá foi o grande homem de espírito missionário e meu colega de outrora, Rev. Silas Ramos. Tenho lembrança de que ele mesmo deu-me algumas informações sobre suas andanças pelo norte de Goiás, hoje o Estado do Tocantins. No entanto, essas informações ficaram no espaço sem serem escritas na época. Cheguei ali para substituir meu pai na fé, Rev. Francisco Maia. Era ainda uma congregação, embora um tanto crescida. No mesmo mês de minha ordenação, fevereiro de 1975, eu e família entramos em Paraíso com a mudança. Paramos no alto, de onde se tem uma vista exuberante da cidade, e então, em meu coração, orei para que o Senhor da Igreja me desse a bênção de pastorear não só a igreja, mas também a cidade. E foi isso que aconteceu.
1.3. Problemas colaterais Fomos chegando e os problemas vieram ao nosso encontro como um torpedo. Como pastor, agora podia enfrentá-los com mais autonomia, porém me vali de alguns líderes com os quais constituí uma mesa diretora, sem respaldo constitucional, apenas para que eu não assumisse sozinho todas as decisões. Em alguma medida, esse expediente me valeu muito. Pela determinação da Missão, Cremilda seria doravante a diretora da escola. Todavia, esta escola já tinha sua diretora, cujo tempo ali já se
expirava; no entanto, ela não recebeu bem a pessoa de Cremilda e criou sério embaraço. Agora, como a única autoridade escudada pela Constituição da Igreja, eu podia decidir. Confesso que não soube nortear bem a situação e houve um rompimento desconcertante, com ofensas de ambos os lados. Até hoje sinto o sabor amargo de meus primeiros erros no exercício pastoral. Havia outra via, mas não soube tomá-la. É muito difícil quando temos de forçar as circunstâncias que envolvem pessoas que merecem nossa honra e participamos de seu constrangimento. Certamente, deixei ali uns desacertos que me valeram a perda de amizade e prestígio. Renascem tristezas e pesares o só recordar alguns detalhes dos impactos. Não era para ser assim. Com isso, a trajetória teve um início difícil, porém me ensinou grandes lições para um futuro incerto. Eu teria que vencer; teria que exercer o pastorado como sempre idealizara: visitando todos os membros da igreja; visitando as cidades e vilas vizinhas; ouvindo queixas e ensinando a palavra a partir do púlpito e nos lares. Criei uma classe de catecúmenos, da qual um dos alunos era um adolescente de nome Jadiel Bispo de Souza, que mais tarde faria história entrelaçada com a minha.
1.4. Igreja e escola aos olhos da cidade Descobri que a cidade considerava muito aquela igreja e a escola em razão do respeito adquirido pelos pastores e professores anteriores e atuais. Eles viveram em constante contato com a polícia, com a prefeitura, com a liderança das escolas e de outras instituições. A título de exemplo, tive que comprar alguns móveis e o dinheiro não era suficiente para compra à vista. Entrei numa loja de móveis e me apresentei, perguntando se o proprietário confiaria em vender-me com parcelamento. Ele então me perguntou: “Você quer comprar toda esta loja fiado?”. Não quero tanto, respondi. Por que o senhor me venderia toda a loja fiado? Então explicou: “Todos os pastores presbiterianos que estiveram em Paraíso eram homens da mais fina educação e trato. Sempre me compraram e nunca deixei de receber”. Essa era a tônica em toda a cidade. Ao chegar, incluíram-me no rol da liderança da cidade. Portanto, não confiavam propriamente em minha pessoa que era ainda estranha, e sim na pessoa dos que representaram bem o evangelho de nosso Senhor em toda a região. Essa era a visão que todos tinham dos ministros do evangelho na cidade de Paraíso. Por isso, minha filosofia prática é que todos
os ministros do evangelho, no exercício de pastorado, têm de agir no seio da sociedade com a máxima lisura. Se ele fizer isso, toda a igreja será também respeitada pela sociedade que a circunda.
1.5. Homenagem Ficamos ali três anos, durante os quais eu e minha esposa Cremilda, entre cooperação e perseguição, exercemos um grande ministério, na área eclesiástica e na área escolar, pois aquela igreja possui até hoje uma grande escola anexa ao templo; aliás, hoje ela ocupa todo um quarteirão e se tornou uma escola de renome. Tanto é que, no final, a prefeitura me conferiu o título e diploma de “cidadão paraisense”. Isso se deu porque, querendo a prefeitura celebrar os 14 anos de emancipação da cidade, sendo que até então esse evento nunca fora realizado, por isso reuniu a liderança eclesiástica e escolar para a formação de uma comissão do festejo. Evidentemente, eu e Cremilda representamos nossa escola. O prefeito explicou o desejo e objetivo da prefeitura de realizar esse evento. No final, propôs que se formasse uma comissão. Lembro-me bem que uma freira se levantou e propôs que eu fosse o presidente da comissão. Estava sentado, senão teria caído. Estar presente ali era uma obrigação nossa, mas era somente isso. Protestei com veemência. Sem rodeios, ignorando meu protesto, aquele auditório aplaudiu a proposta da freira e minha nomeação foi unilateral. Resumindo, aquele festejo teve sucesso redondo. Eu havia composto um cântico para ser entoado durante as festividades da primeira celebração do aniversário da cidade de seus 14 anos de emancipação. No final, a prefeitura solicitou cessão dos direitos autorais sobre esse cântico para que viesse a ser doravante o hino oficial do município. Eu e minha esposa nos tornamos importantes e perenes figuras em Paraíso do Tocantins. Hoje quase ninguém nos conhece, embora nos perpetuássemos na história e nos arquivos do município. Isso se deveu à vida consagrada de vários servos de Cristo antes de nós, estrangeiros e brasileiros. Sem me lembrar de todos, talvez os que mais marcaram aquela igreja e escola tenham sido o Rev. José Gonçalves de Siqueira e sua esposa Prof.ª Rute Siqueira. Ambos são ainda lembrados e intitulados de Professor e Professora. Então aprendi que a melhor coisa que
possa acontecer na vida de um servo ou serva de Deus é substituir pessoas que só deixam um rastro fulgurante de vida e testemunho no serviço prestado a uma comunidade, no santo nome de Jesus Cristo. Isso nos impele a fazer o mesmo. A maior parte de minhas substituições foi assim: meus antecessores viveram uma vida de testemunho sólido e indisputável. Quanto a mim, não posso dizer o mesmo. Creio que deixei para trás, para meus sucessores, mais motivo de tristeza e queixa do que de alegria. Quando faço uma retrospectiva, vejo meu caminho entulhado de falhas que foram encobertas pela infinita graça do Senhor da Igreja e o perdão das pessoas ofendidas. Com certeza, algumas jamais me perdoaram e jamais me perdoarão — e com razão!
2. Miranorte Rev. Francisco Maia havia iniciado uma congregação na cidade de Miranorte, mais ao norte de Paraíso, à margem da rodovia BR 153. Dei continuidade àquele bom trabalho que resultou numa igreja ativa. Senhor Francisco Mendes, farmacêutico, e sua bondosa esposa, dona Maria, eram meus anfitriões. Eles não aceitavam que algum outro hospedasse o pastor; era um compromisso deles junto com Deus. Senhor Francisco me passou um raro exemplo de reverência prestada aos ministros do evangelho. Eu sentia que ele estava sempre emocionado e gratificado em hospedar-me debaixo de seu teto. Sua polidez era singular. Nunca mais encontrei um exemplo igual. O que se vê, mesmo no seio da igreja, é uma atitude de indiferença para com os ministros da Palavra. De vez em quando se vê até mesmo um modo agressivo, e inclusive desdenhoso. Quantos eu encontrei que acreditavam que o ministro da Palavra tem pouco conhecimento teológico. Por isso, não raro me deparei com cristãos que quiseram corrigir-me em algum ponto doutrinário, falando com uma autoridade que não possuíam. Em certa congregação rural, enquanto eu ensinava a Palavra na Escola Dominical, um senhor se pôs de pé e virou-se para o grupo reunido e disse: “O pastor está errado. A doutrina correta é assim”. Nunca permiti que passasse impune tal atitude para com a autoridade do ministro da Palavra. Além de corrigir severamente aquele senhor, repeti aquele ensino pausadamente e repetindo que aquele senhor, além de crer erroneamente na
doutrina, era desrespeitoso para com quem possui a autoridade de ensinar. Para isso, o ministro da Palavra precisa possuir autoridade “real”. A pergunta que sempre me fiz tem sido: Qual a fonte ou causa que levaria tantas pessoas a nutrir tal atitude para com os ministros do evangelho? A causa está nas pessoas, ou no próprio ministro da Palavra? A igreja tem de olhar para o ministro da Palavra como sendo um homem que detém conhecimento autoritativo. Para isso, o ministro tem de ser um homem muito estudioso e atento ao seu dever. Certo dia eu dava assistência pastoral à congregação de Miranorte, e certo jovem me parou à porta do templo e me dirigiu a seguinte pergunta: “Você é o pastor da igreja?”. Respondi que sim. Então me falou: “Abra sua Bíblia e me mostre algum texto, e eu lhe direi se é verdadeiro ou falso”. Respondi-lhe de chofre, impelido por meu temperamento nato: “Moço, você não diz nenhuma novidade, porque o diabo já tentou de tudo para convencerme disso, e muitos servos humanos dele têm feito o mesmo”. Quando subi ao púlpito, olhei para os presentes e vi aquele moço assentado em um dos bancos diante de mim, acompanhando em silêncio o estudo da Palavra. Tempos depois, convidado para um dos aniversários daquela igreja, descobri que aquele mesmo homem figurava em seu rol de membros. Se você tentar entender e explicar fatos desse gênero, descobrirá que eles não têm explicação racional ou natural. São coisas do Espírito do Senhor.
3. Nova Rosalândia Da mesma forma, demos continuidade aos trabalhos de Nova Rosalândia, uma vila cortada pela rodovia BR 153, Belém/Brasília, cujo lote fora doado pelo proprietário de toda aquela terra em que a vila fora construída. Ali nasceu uma escola dirigida pela de Paraíso, com duas professoras e uma boa assistência. Construímos um templo junto ao prédio escolar. Assim, ali passou a funcionar escola e igreja. E então se cumpria o propósito da Missão: em cada igreja, uma escola. Infelizmente, não era assim em todas as igrejas. Somente em umas poucas a escola prosperou.
4. Miracema Havia também em Miracema, às margens do Rio Tocantins, um médico
crente, Dr. Franklin Sayão, com uma família numerosa e todos crentes, os quais saíam de lá para congregar conosco em Miranorte. Esse homem era notável por seu espírito filantrópico e missionário. Seu sonho era ser médico/missionário. Mais tarde se cumpriu seu ideal, tornando-se médico na antiga e grande Missão Caiuá, como era sua aspiração. Foi numa de minhas visitas a Miracema, à sua casa, que me deparei com um adolescente de férias, sobrinho daquele médico, que se sentou comigo para discutir teologia. Adolescente, já membro de uma igreja batista, o ardor pelo conhecimento bíblico havia se assenhoreado de seu coração. Seu sonho era tornar-se teólogo. Fiquei impressionado com aquele garoto inteligente, crente, questionador, bem adiantado à sua faixa etária em questão de fé e conhecimento bíblico. Certo dia eles passaram por minha casa em Ceres, Goiás. Lembro-me que, ao entrar em meu gabinete pastoral, depareime com aquele jovem escarafunchando alguns livros. Jamais iria imaginar que aquele mesmo garoto seria mais tarde o grande hebraísta já de renome, figurando em muitos livros, de nome Luiz Alberto Sayão. Mal sabia que aquele adolescente um dia seria meu próprio mestre, porquanto sou ledor de sua boa literatura, ouvinte de suas conferências, recebendo de sua produção teológica orientação prestimosa. Aquele adolescente viria a ser um vulto de fama internacional. É muito gratificante passar pela vida e experimentar casos como esse. O missionário da Missão que correspondia comigo em Paraíso era o grande homem de Deus chamado Robert Camenisch. Homem admirável por seu zelo e ardor missionário, justo, generoso, diligente, porém irascível ou, como se costuma dizer, de “estopim curto” (e quem me conhece sabe que me enquadro bem nessa categoria!). Tive uma grande experiência no convívio com esse homem franco e sincero. Certo dia ele passou por Paraíso enquanto eu visitava o campo. Ele viu algo que o desagradou e deixou para mim um bilhete muito incisivo. Ao chegar e ler o bilhete, respondi-lhe por carta que meu cargo pastoral naquela igreja estava à disposição, porquanto não aceito as grosserias de missionário que não toma conhecimento dos fatos e me deixa bilhete atrevido. Quando tomou pé da situação real, ele me respondeu pedindo mil perdões. Mais tarde, passando por sua casa, antes de dizer “bom dia”, ele me abraçou e, chorando, reiterou o pedido de perdão. Esse tipo de atitude é muito difícil de praticar. Eu mesmo tive que
praticá-lo muitas vezes, porém com muita dificuldade. E assim eu passei a conhecer mais uma virtude daquele homem admirável: a humildade. Esta virtude é que contrabalança e tempera aqueles que sofrem de suscetibilidade, como é meu caso. Conta-se que um aluno de um grande sábio lhe perguntou: “Mestre, qual é a principal das virtudes?”. Ele respondeu prontamente: “A humildade”. Então o aluno tornou a perguntar-lhe: “E a segunda?” Ouviu a mesma resposta: “A humildade”. E, finalmente, perguntou-lhe de novo: “E a terceira?”. E ouviu a mesma resposta: “A humildade”. Nosso Senhor disse que era “manso e humilde de coração” (Mt 11.29). E ele provou isso na prática. O orgulho humano sempre impede que uma pessoa aja com humildade e, assim, vença. Essa é uma das tarefas cristãs que mais me desafia. Não nasci humilde e continuo debatendo em meu interior para cultivar essa virtude. Creio que vou partir deste mundo sem haver alcançado este ponto da grande montanha da vida cristã.
5. Porto Nacional Passei a visitar esta cidade ribeirinha por causa de uma família já conhecida de longa data. A providência punha em meu caminho, mais uma vez, um membro da grande família Tolentino, agora uma filha. Dona Maria Tolentino, residente em Porto, reclamou minhas visitas pastorais. Atendi e foi muito bom. Celebrei alguns cultos naquela casa durante meu pastorado em Paraíso.
6. Rastro da providência 6.1. Evangelista Joca Em Paraíso fui indelevelmente marcado pelo envolvimento com algumas pessoas em particular. Uma delas foi o senhor José Joaquim de Oliveira, “Joca” para os íntimos, meu companheiro inseparável, nos trabalhos da Igreja. Homem humilde, chefe de uma família numerosa, cuja esposa, dona Eurides, mulher prestimosa e crente, todos firmes na Igreja e na leitura da Bíblia. A esse homem devo muito de meus sucessos naquele grande campo. Ele era meu substituto nas lidas missionárias. Visitava o
campo e eu ficava na sede, ou ele ficava enquanto eu dava assistência pastoral àquele grande campo. Guardo boas lembranças de meu amigo e companheiro Joca.
6.2. Companheiro Roque Outra família numerosa, impossível de esquecer, é a do senhor Roque e sua esposa, dona Levina. Composta de pessoas muito humildes, porém de uma dignidade ímpar, cristãos muito raros de se ver, foram nossos companheiros durante aqueles três anos ali. Ainda hoje tenho a visão nítida daquelas pessoas que tanto marcaram nossa vida. Dentre aquelas crianças, de vez em quando encontro alguns bons líderes na igreja.
6.3. Guilherme Bispo de Souza Havia uma família também numerosa na Igreja de Paraíso, a do senhor Guilherme Bispo de Souza, esposo e pai daquela grande família. Antes de tudo, sua filha Aldenir foi professora naquela escola. O preparo e profissão de fé de seu filho de quinze anos, Jadiel, se deram sob minha ministração. No mistério da providência divina, Jadiel morreu ainda jovem, chegando a cursar o mestrado em teologia, a ser diretor do seminário de Goiânia e a escrever um livro. Eu fui o editor de seu livro quando possuía ainda Edições Parakletos — Charles Finney e a secularização da Igreja . Dessa fonte surgiu muita polêmica contra ele e contra mim que o editei. Maria Helena, sua esposa, veio a ser para mim outra filha e seus filhos, meus netos. O casal Bispo de Souza gerou ainda outro filho pastor, Rev. Guilherme. Hoje, ele e eu pertencemos ao mesmo Presbitério. O ministro da Palavra se envelhece e se depara continuamente com esses frutos de seu ministério pregresso. É esse tipo de coisas que não nos deixa soçobrar na trajetória, pois tudo isso nos faz ver que vale a pena seguir avante nossa vocação divina. Gostaria muito, neste ponto, de falar de todos os homens e mulheres que não só conheci naquela vasta região, mas com quem tive larga experiência. São tantos, que a tentativa seria abortiva, e correria o grave risco de cometer omissão, o que às vezes é pior que ignorar a todos. Digo isso porque sempre cultivei profundo afeto pelos colegas de ministérios, e seria injusto dizer que não houve da parte deles algum tipo de contribuição em
minhas lidas pastorais. Mesmo assim, disponho-me a correr esse risco, vasculhando minha memória, com a ajuda de algumas fontes de informação, faço menção pelo menos de seus nomes.
7. Colegas de ministério Naquele tempo, minha convivência mais próxima foi com estes grandes pastores: Joaquim e José de Brito Cabral; José Gonçalves de Siqueira; Silas Ramos; Jurandir Orestes de Meneses; Waldemar Rose; José Gonçalves (nosso querido Zezé); Edson e seu irmão Ostílio Souza; Gecy Soares de Macedo; Anésio Martins; Amadeu Rocha; Gidelson Firmo; Antil de Moura; Vicente Almeida (ordenado sob minha tutela); Crisogno Coelho; Antônio Olímpio dos Reis (também ordenado sob minha tutela); Saulo de Castro Ferreira; Wilco Antônio; Carlito Silva; Cláudio César de Melo; Celso Soares de Oliveira; Adolfo Potenciano; Robert Camenisch; Sherwood Taylor; Ricardo Taylor; Carlos Cobb; George Hurst; Luiz do Lago; Adão Bontempo; Manoel Marçal; Davi Bastos; Crispim Pires; Osmar Dias da Silva; David Rosa de Oliveira; José Silvério; Ângelo Scarel; Sebastião Tillman; Amador Meneses; Serafim da Rocha Barbosa; Adalberto Borges Faria; Eurípedes Flogêncio; Anézio Cunha; Samuel Vieira; Washington Ferreira da Silva; José Bessa Macedo; Edson Souza Gonçalves (os dois últimos, meus tutelados); Lourival Luiz do Prado; meus cunhados, Antônio e Otávio Caixeta. Alguns tiveram comigo um relacionamento muito rápido e não consigo lembrar nem mesmo de sua fisionomia, muito menos os nomes. Outros, bem mais recentemente, e não fizeram parte daquele grande quadro de meu passado. Naturalmente, estes homens (extensivamente suas esposas) são aqueles que caminharam comigo nas veredas do ministério sagrado ao longo de muitos anos. De um modo ou de outro, foram meus companheiros no que chamo “campo santo”. Estou citando alguns nomes de homens que nem mesmo sentiam ou sentem simpatia por mim. Talvez nem mesmo gostassem que seus nomes figurem aqui. O que faço, não o faço por predileção, e sim por justiça e verdade, pois foi assim que aconteceu e foi assim que aprendi a proceder. E se porventura ocorrer de haver omitido alguém que deveria ser citado aqui, que o mesmo perdoe a oscilante memória de um idoso.
7.1. “Pastor briguento” No entanto, vale rememorar que naquele tempo recebi a alcunha de “pastor briguento”, em razão de meu zelo pelo bem-estar das igrejas. Para muitos, essa alcunha era um emblema negativo; para outros, era mais uma expressão de carinho e reconhecimento. Enquanto na Comissão Executiva dos Presbitérios, eu ia longe com o intuito de resolver “encrencas” suscitadas principalmente na administração eclesiástica das igrejas. Creio que muitos dos envolvidos ainda não gostam nem mesmo de lembrar meu nome. Fiquem sabendo que eu os perdoo em nome de Jesus, nosso Senhor, como também espero que me perdoem no mesmo santo nome. 7.2. Casal Mullins Sou impelido a citar um casal que, por amor à justiça, embora ele não seja pastor, contudo ambos exerceram (e ainda exercem) um ministério tão rico na área de evento cristão, que supera ao ministério de qualquer pastor. Refiro-me ao casal Alan e Ézia Mullins. Foi com eles que meu filho primogênito, Sóstenes (Tote, para os íntimos) aprendeu a fazer o que hoje faz na mesma esfera e com a mesma maestria. As igrejas evangélicas têm uma dívida irresgatável para com este abençoado casal e obreiros do Senhor. Que sempre foram abençoados, isso se pode ver nos ricos e concretos resultados por onde eles têm passado. Eu, particularmente, tenho um perene gesto de gratidão por sermos amigos desde quando ainda eram solteiros. Mas esta é outra história.
7.3. Colegas mais recentes Posteriormente, vieram outros pastores, em grande número, cujos nomes ainda não constavam no rol de meus companheiros de ministérios. Seria meu dever citá-los nominalmente, mas só iria meter-me em um enorme labirinto, tentando descobrir seus nomes, e ainda cometeria o pecado da omissão. Deveria citar nominalmente os grandes presbíteros daquele tempo, companheiros nas reuniões dos concílios; as grandes mulheres missionárias que serviram também, de todo o coração, na Seara do Senhor, cujos nomes eu deveria citar aqui, porém só cometeria injustiça, pois alguma ficaria sem ser lembrada. Além do mais, toda essa grandiosa história já é tão remota, que não
me lembro bem dos detalhes.
7.4. Esposas heroínas Juntamente com esses denodados obreiros estão suas esposas, verdadeiras guerreiras e heroínas. Por falta de espaço, e pela complexidade do relato, deixo de citar seus nomes, porém estão em nossa mente de maneira indelével. Muitas delas se tornaram viúvas, e muitas dentre elas também já partiram para a glória e já desfrutam o descanso perene no “seio de Abraão”. Outras, já envelhecidas, ainda se encontram nas lidas do reino de nosso Senhor com a mesma fidelidade. Todas elas merecem que sua história fosse escrita — e bem escrita!
8. Dolorosa omissão De outros omito propositadamente os nomes; pois minha consciência não me permite exaltá-los como servos de Cristo em pé de igualdade com os fiéis; porquanto abandonaram sua primeira vocação e abraçaram uma vocação equivocada, carnal, em detrimento da religião genuína, a qual eles não tiveram a competência, sensatez e hombridade de conhecer e manter impoluta em seus corações. Pior ainda: alguns cometeram perjúrio, porquanto renegaram por escrito o solene juramento que um dia fizeram perante Deus e a Igreja em sua ordenação por um presbitério; outros apostataram de vez. Alguns renunciaram a fé presbiteriana com reverência e respeito, porém outros o fizeram com atitude de menosprezo, desdenhando sua profissão de fé e seu ofício de ministros do evangelho. Todos os profetas e todos os apóstolos, principalmente nosso Senhor Jesus Cristo, tiveram que enfrentar essa falange de apóstatas. Quando um pastor peca, meu coração chora; isso ainda se dá porque todos nós somos pecadores e inclinados aos mesmos feitos da carne. Mas, quando um comete apostasia, além das lágrimas de tristeza vem também a santa indignação.
9. Heróis esquecidos Alguns jazem envelhecidos e encostados em algum canto sem que sejam nem mesmo lembrados para receber uma visita cordial de um amigo
de outrora. Não me agrada ofender àqueles que estão acima de mim em autoridade e posição; apenas provoco neles emulação, para que sejam mais precavidos na administração da Igreja de nosso Senhor. Não me refiro à liderança suprema, e sim à liderança local. É inadmissível que um concílio descuide de seus heróis e heroínas na área de sua administração. Deve haver uma programação de assistência constante. Creio que alguns concílios fazem isso; quem sabe todos já estão praticando essa caridade! Se esse é o caso, então minha observação fica sem efeito! Mas que fique bem gravado em nossa memória que ninguém até hoje conseguiu descobrir quem foi o autor da Epístola aos Hebreus, um dos escritos mais notáveis de toda a Bíblia. Com certeza, sendo muito mais humilde que eu, ele não quis ser lembrado nominalmente, para que a glória fosse unicamente do Senhor da Igreja. Nenhum servo de Cristo é ou será ignorado no céu! Não só o Senhor tem nossos nomes inscritos no Livro da Vida, mas os próprios anjos nos conhecem, são nossos companheiros e labutam em nosso favor e ao nosso lado, ainda que invisível e imperceptivelmente (Hb 1.14). Que os esquecidos pela Igreja perdoem nossa negligência e ingratidão. Todavia, saibam eles que estão eternamente gravados na memória celestial.
10. Querido professor de teologia Um homem em particular deixou em mim marcas profundas e indeléveis: o Rev. Dr. Joseph Martin, para nós, seus conhecidos e amigos, o mui querido professor de teologia José (ou Joe) Martins. Ele foi aquele que me deu assistência no COSE (Curso de Seminário por Extensão). Em nossos encontros, eu pude beber daquela fonte imensurável de conhecimento, e um excelente conhecimento, pois ele sempre foi um homem de convicções fiéis à fé reformada. Talvez sem o saber, com isso ele me fez ainda mais calvinista. Até hoje mantemos correspondência. Sua personalidade íntegra entranhou-se na minha, de modo que grande medida do que sou devo àquele homem extraordinário. Bendigo ao Senhor da Igreja por ele, porquanto faz parte de minha vida com João Calvino.
11. Presbitérios
Foi nesse tempo que o Presbitério de Goiânia se desdobrou, formando o Presbitério de Anápolis (PANA). Fiquei vinculado ao novo Presbitério, e passei para sua história como um de seus fundadores. Não me lembro bem, mas creio que fui um de seus secretários, portanto participante de sua organização. Mais adiante veremos que minha história em desdobramento de Presbitérios não parou aqui, pois no futuro eu faria parte da organização do Presbitério de Ceres, do qual seria secretário executivo e presidente. Já no ocaso de minha lida em Goiás, compus a comissão que desdobrou o Presbitério de Ceres, criando o Presbitério do Tocantins. Este também foi organizado em 1987 por uma comissão de cujos componentes eu fazia parte. Além disso, fiz parte da organização eclesiástica de várias congregações em igrejas. Portanto, faço parte da história de várias igrejas por estes vastos estados de Goiás e Tocantins. Portanto, antes de envolver-me com as obras de João Calvino, formei um grande e forte lastro histórico no desempenho de meu modesto ministério, congraçando-me com muitos outros obreiros do Senhor em abrir picadas, em arar a terra, em plantar a semente e em colher o produto da lavoura. Bendigo o Senhor que nos irmana nessa sagrada tarefa. Considero-me igual a todos eles. Quero deixar registrado que sempre os amei como fiéis ministros do Senhor e que sem eles eu não teria história para contar ou escrever. Mais ainda, eu os tenho como superiores a mim em tudo: em fé, em moral, em cultura e no exercício do ministério.
11.1. Reminiscência O tempo passa e creio que não mais sou lembrado. Isso não me magoa, pois a memória de todos nós se arrefece e já não nos lembramos de muitas coisas e pessoas que mereceriam ser lembradas com mais justeza. Por onde andei, depois disto, nunca me esqueci do labor humilde, porém vigoroso, na disseminação do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Nunca fui visto como plantador de igrejas nem como orador, mas como adubador, a saber, aquele que fortalece e forma os trabalhadores da Seara. Esse foi sempre meu dom. Não nasci para sobressair-me ante as multidões nem para arrancar seus aplausos. Minha “paixão” particular é dissecar as grandes doutrinas, todas elas, sem exceção, e demorar-me sobre sua análise, ensinando-as como oriundas do Supremo Espírito Santo. Fui antipático a muitos que detestam
certas doutrinas bíblicas; por exemplo, a doutrina dos decretos eternos, tanto da eleição como da predestinação. No passado, andei longe, a convite, para discutir estas doutrinas. Hoje, talvez devido à idade, já não sou lembrado para falar delas. No entanto, sinto-me venturoso quando vejo jovens ministros, saindo dos seminários e recebendo a imposição das mãos do Presbitério, empenhados em ensinar zelosamente todo o Santo Livro (At 20.20). Espero ver ainda, antes de minha partida, a Igreja de nosso Senhor empenhada não só em evangelizar, mas também em doutrinar principalmente os neófitos que vêm para a igreja local e são treinados nas doutrinas mais profundas do Santo Livro, ministradas não apenas pelos ministros zelosos, mas inclusive por leigos estudiosos e bem treinados no ensino da sã doutrina. Espero ver ainda todos os pastores ensinando todas as doutrinas, sem pôr em dúvida nenhuma delas. Que o calvinismo triunfe não só nas igrejas históricas, mas em todas as novas denominações que nascem para o serviço do Senhor, cujo interesse seja o conhecimento de Deus que deve encher o mundo como as águas cobrem o mar. Que se descubra que o único sistema genuíno de doutrina é o calvinismo. Essa tem sido minha meta franca e publicamente confessada. Não tenho dado trégua a quem confessa o calvinismo e logo a seguir nega o calvinismo, negando doutrinas enfatizadas pelo calvinismo e ao implantar suas próprias ideias, as quais estão longe da qualidade da interpretação que a fé calvinista faz da Santa Escritura.
11.2. Confrontação Certa vez um moço se levantou furioso e me contestou enquanto explanava a doutrina da predestinação. Afirmou com profunda indignação que, se de fato esta doutrina existe, então Deus é muito injusto, e ele não cria em um Deus injusto que faz acepção de pessoas; por isso mesmo renegava tal doutrina como não sendo realmente bíblica e inspirada pelo Espírito Santo. Ao terminar, eu lhe disse que ele estava olhando para a pessoa errada, que volvesse os olhos para o céu e falasse tudo isso ao Autor da doutrina, que é o Espírito Santo, porquanto eu não sou o autor da Bíblia; simplesmente creio em tudo o que está escrito nela. A partir desse momento, aquele moço não disse sequer uma palavra. Minha esperança é que tenha crido na inteireza do Santo Livro. Deploro a existência de cristãos que acreditam ter a liberdade de escolher em que creem ou não creem no Santo Livro.
Ao falar dessas doutrinas, sempre me escudei no fato de que a Igreja Presbiteriana, e muitas outras denominações cristãs sérias, creem nelas e as ensinam, porque fazem parte integrante de toda a Bíblia. Nós as encontramos nitidamente grafadas nas páginas de Gênesis a Apocalipse. Negar estas doutrinas equivale negar toda a Bíblia. Aliás, é desmantelar a Santa Bíblia, no dizer de um grande teólogo: “A eleição é a coluna dorsal de toda a Bíblia”. Se for removida dali, nada fica em pé. Sim, de fato a doutrina da eleição ou predestinação é a causa de todo o propósito divino na história da raça humana, particularmente da Igreja.
11.3. Apologia Minha apologia sempre foi que nosso dever é crer na totalidade da Bíblia, mesmo quando não entendamos muitas coisas nela escritas. Ninguém tem o direito de erguer-se e contestar uma doutrina claramente expressa e impressa na Bíblia. Custa aos servos de Cristo um preço elevado ser fiéis ao conteúdo da Santa Bíblia e ensiná-lo com reverência. Este é o dever sagrado de todos os que se autodenominam de “servos de Jesus Cristo”. Somos servos e não inquisidores. Quem escolhe doutrina para ensinar e ignora o resto, ou omite doutrinas intencionalmente, vai criar igrejas sem estrutura sólida e vai inspirar outros a fazer o mesmo, além de um dia ter que prestar contas ao Supremo Juiz. Esses tais se arvoram como mais sábios ou tendo mais autoridade que o Espírito do Senhor. Sem a devida consciência, na verdade estão negando é a Bíblia toda. E quem nega a Santa Bíblia, em matéria de religião, não tem nada a ensinar como sendo a plena verdade de Deus. Na verdade, esses tais estão transmitindo suas próprias ideias, e não o ensino bíblico. Ao tomar a Santa Bíblia pela primeira vez em minhas mãos, eu disse ao Senhor: “Meu Deus, desvenda-me os profundos mistérios deste Livro e eu o ensinarei tal como ele é”. Não suporto diante de mim aqueles que se acham acima do Espírito Santo e se arvoram em juízes do Deus Trino. Nem mesmo o falso profeta Balaão se atreveu a tanto! Aliás, aquele falso profeta se revelou muito mais reverente para com Iavé do que muitos dos israelitas e muitos dos chamados cristãos. O fato é que eu já estava me avizinhando daquela encruzilhada que determinaria outra fase de minha vida dentro da qual eu labutaria para fazer
João Calvino falar português. Creio que todo meu passado me “empurrava” para esse ponto de suprema importância. Todavia, eu ainda não tinha a menor noção do que estava por vir. Mas o próprio Senhor preparava meu caminho para essa suprema realização de meu modesto ministério.
IGREJA PRESBITERIANA DE CERES É impossível pensar e falar da Igreja Presbiteriana de Ceres sem falar da própria cidade de Ceres, porquanto ambas nasceram juntas e se entrelaçaram por laços fortes e se desenvolveram lado a lado como dois elementos corroborantes. Tanto é que o majestoso templo da Igreja se encontra bem no centro daquela linda cidade. Por isso sou impelido a escrever um resumo bem sucinto de ambas — cidade e igreja.
1. Breve histórico Para a geração mais antiga da região, falar de Ceres é falar de Bernardo Sayão. E escrever sobre Bernardo Sayão é um dos maiores desafios que enfrenta qualquer escritor, pois sua história é quase interminável e cheia de meandros. Quem saberia o início e o fim dela? Pois foi no início dos anos 40 que ele, com sua equipe, desbravou a região do Vale de São Patrício, cortado pelo Rio das Almas. Ele fez com que Ceres viesse a ser a sede da CANG — Colônia Agrícola Nacional de Goiás. Mas há um personagem na história de Ceres que precede a pessoa de Bernardo Sayão e é determinante em sua história. Extraio do livro de um filho de Ceres, Dr. Valter Melo: Um ceresino, de sua própria autoria, o texto inicial de seu livro: “Dr. Pedro Ludovico Teixeira, interventor de Goiás, assina o decreto-lei nº 3.704 de novembro de 1940, doando as terras do estado de Goiás para a criação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás — CANG — nas matas do Vale do São Patrício”. [10]
2. Três gigantes É então que Bernardo Sayão entra em cena para implantar aquela Colônia. Mas ele recua ainda mais e narra que quem implantou a CANG como autoridade máxima foi o “interventor brasileiro, Getúlio Dorneles
Vargas”. Daí, na ordem descendente, seguem estas três autoridades na história de Ceres: Getúlio Dorneles Vargas, Pedro Ludovico Teixeira e Bernardo Sayão.
3. Ceres — Deusa da Agricultura Foi em 1953 que a Colônia foi emancipada, recebendo o nome de “Ceres — a Deusa da Agricultura, conforme a mitologia greco-romana”. [11] Uma pena que fosse glorificada uma deusa grega no lugar do Deus Criador do universo! É ele quem abençoa a terra para produzir nosso pão de cada dia. É ele que fez surgir Ceres no mapa brasileiro. Mas é possível que seus idealizadores não tivessem a intenção de ofender o único e verdadeiro Deus do universo, atendo-se simplesmente a um emblema antigo.
4. Grandes personagens Falar de Ceres é falar de grandes personagens que, como colunas de sustentação, surgiram no cenário da Colônia a corroborar sua bela história. Na esfera cultural, surge no cenário de Ceres o grande vulto de Álvaro de Melo, perpetrando seu nome e fama na grande e abençoada escola “Colégio Álvaro de Melo”; Helena Andrade Araújo e Walter Marques Dourado, grandes educadores que deixaram sua indelével imagem e influência na vida das gerações futuras. Na esfera científica, nomes como Domingos Mendes da Silva e Jair Dinoah Araújo, fazendo parte da história do Hospital Pio XII. Na esfera humanitária, uma mulher de nome Úrsula Hautp, cuja história já se acha um tanto apagada da memória dos ceresinos, e o nome de Mirma Maria de Moura. Em torno de cada esfera surgem vultos eminentes que entreteceram os liames da história de Ceres. E aqui certamente vou cometer o “crime” da omissão, pois há grandes vultos misturados aos citados que compuseram a grande orquestra cujo Maestro com certeza não foi Ceres, a deusa grecoromana, e sim o Eterno Criador e Sustentador que mantém e rege soberanamente a história da humanidade como uma sinfonia celestial. Especificamos adiante.
4.1. Na esfera científica
4.1.1. Dr. Jair Dinoah Araújo O Dr. Jair nasceu em Fortaleza, Ceará, no dia quinze do ano de 1916. Aos doze anos, ele mudou-se para Recife, Pernambuco, onde estudou o ginasial no Colégio Salesiano. Em 1937, ele se ingressou na Faculdade de Medicina do Recife, concluindo seu curso em 1942. Em 1944, ele recebeu o convite do Dr. Bernardo Sayão para conhecer a recém implantada Cang, a fim de estudar e detectar que espécie de epidemia grassava em toda a região. E, posteriormente à análise, o Dr. Jair descobriu que era a febre amarela e malária. No dia dez de março de 1945, sentindo-se encantado com a região, fundou o primeiro ambulatório em uma pequena casa de madeira, onde atendia toda a região com a assistência de três enfermeiras formadas. Em 1946, inaugura-se a primeira etapa do hospital da Cang (hoje o Hospital Pio Décimo), que realizava pequenas cirurgias. O hospital foi concluído em 1950. Casado com a Prof.ª Helena Andrade de Araújo, oriunda da família Gueiros, tradicionalmente presbiteriana, nascendo dessa união cinco lindos filhos: Lenir, Liane, Lúcia, Luiz Roberto e Jair Júnior. Em 1953, com a Colônia no processo de emancipação, o hospital foi entregue à Diocese da Cidade de Goiás, permanecendo assim até hoje. Sendo o Dr. Jair presbiteriano de convicção e de formação, afastou-se definitivamente do mesmo. A partir de então, ele iniciou a construção de seu próprio hospital — Hospital São Lucas —, o qual veio a ser uma grande bênção para toda a região. Homem de vida simples, não se preocupava com luxo, pregava muito a integridade e dignidade humanas. Ele veio a ser um dos membros fundadores da Igreja Presbiteriana de Ceres.
4.1.2. Dr. Domingos Domingos Mendes da Silva Folheando o livro organizado e editado pela Prof.ª Nair Leal de Andrade, Memórias e depoimentos, descobri que o Dr. Domingos, um dos fundadores da Igreja Batista de Ceres, fundou também o Hospital das Clínicas Centro Goiano. Foi um grande líder político, um grande cristão e um grande médico. Tive com ele as experiências mais notáveis de minha vida. Era meu hospital. Ele era meu amigo pessoal. Falar dele por completo é uma
tarefa praticamente impossível. Na ata de organização da IP de Ceres, Livro I, página 2, do ano de 1950, registra-se a presença do Dr. Domingos Mendes da Silva como representante oficial da Igreja Batista de Ceres.
4.2. Na esfera filantrópica 4.2.1. Mirma Maria de Moura Esta, embora fosse membro da Igreja Presbiteriana, portanto minha ovelha; mesmo tendo com ela uma longa vivência, descuidei e não guardei bem sua história. Mas era chamada “a dama dos pobres”. Grande política, mas se destacava como a mulher que dia e noite cuidava literalmente dos necessitados. Dona Mirma fazia parte do alto escalão político e era conhecida por toda a Goiânia no que diz respeito à medicina, pois trazia para cá pessoas com todos os tipos de problemas epidêmicos. Cidadã ceresina, deixou um nome e renome por toda a região. A cidade, principalmente os pobres, chorou sua morte.
4.2.2. Úrsula Hautp Cujas histórias no campo da filantropia daria um livro, porém que as fontes de informação me foram tão escassas que não pude estender sua história como bem merece.
4.3. Na esfera cultural 4.3.1. Walter Marques Dourado “O senhor chegou em Ceres, quando?”, pergunta o Rev. Edson e o Prof. Walter responde numa entrevista: “Vim da Bahia, primeiro para Anápolis, mas depois para Ceres, e fiquei hospedado no Hotel Beira Rio, que ficava perto da antiga Estação Rodoviária de Ceres. Cheguei aqui em 21 de abril de 1948. Uma curiosidade: no mesmo dia de minha chegada, fui convidado pela Diretora Geral da Escola da CANG, Prof.ª Helena Andrade Araújo, para fazer uma palestra alusiva à data, a saber, ‘Dia de Tiradentes’”.
[12]
Portanto, seu desempenho cultural não se limitou à esfera secular, pois seria superintendente da EBD e professor da Santa Escritura e até mesmo pregador e um dos fundadores da Igreja Presbiteriana ali. Mas é preciso registrar ainda, com muita honra, que ele foi por cinco mandatos Secretário de Educação do município ceresino; e a nível estadual, ele foi Delegado de Ensino que abrangia vinte e cinco municípios.
4.3.2. Helena Andrade Araújo Segundo relato do Prof. Walter Marques Dourado, Prof.ª Helena, esposa do Dr. Jair Dinoah Araújo, exerceu vasta influência na esfera cultural da região de Ceres, ocupando o cargo de Diretora Geral da Escola da CANG, por ocasião da chegada do Prof. Walter.[13] Em meu tempo de pastorado ali, ela ainda exercia a função de professora de cultura inglesa na Faculdade de Filosofia Vale do São Patrício, foi inspetora de ensino na Cang, professora e diretora de colégios ceresinos; crente fiel, era ativa no trabalho feminino da Igreja.
4.3.3. Martha Little Leio ainda no livro do Rev. Frank L. Arnold que “em 1959, o fim do período que está sendo considerado aqui, a Missão mantinha 37 escolas primárias, com 52 jovens professoras que ensinavam aproximadamente 2.000 alunos. A partir de 1947, a Prof.ª Martha Little, cuja carreira com a Missão Oeste do Brasil se estenderia por 40 anos, supervisionava todas essas escolas de maneira muito eficiente”. [14] Além de minha professora no Instituto Bíblico Eduardo Lane, Prof.ª Martha Little morou conosco em Ceres, supervisionando muitas escolas, principalmente a de Palmital, parte de meu pastorado, quando terminou sua lida missionária e regressou de vez para os EUA. Tivemos juntos uma longa trajetória de muita e gratificante experiência.
5. História do presbiterianismo na Região de Ceres Mas, falar de Ceres sem falar da Igreja Presbiteriana inserida na
história da região é como mutilar uma história e uma cidade. Igualmente, falar da Igreja Presbiteriana ali sem mencionar a Missão Oeste do Brasil é tentar fazer sobreviver um corpo sem cabeça. Tentar fazer isso é ignorar por completo aquela divina Providência que governa o cosmo e a história da humanidade, particularmente a história da Igreja do Cordeiro. Ao ler dois livros, Pequena história da Missão Oeste do Brasil, do Rev. Wilson Castro Ferreira, e Uma longa jornada missionária, de Frank L. Arnold, minha vontade foi escrever uma história por demais longa, pois minha história pessoal está entrelaçada com a história de muitos dos missionários estrangeiros e pastores brasileiros narrados nestes dois livros. A bem da verdade, gastei quatorze de meus anos lado a lado com esta Missão, cuja consumação se deu comigo em seu seio. Esse tempo começou em Iturama e terminou em Paraíso, não o celestial, porquanto já se passaram muitos anos de lá para cá, mas Paraíso do Tocantins (hoje, pois naquele tempo ainda era Paraíso do Norte de Goiás).
5.1. História complexa Falar ou escrever sobre a Missão Presbiteriana Oeste do Brasil é uma tarefa tão complexa, que eu teria que escrever um livro à parte. Sua esfera de trabalho é tão ampla que envolve muitos estados brasileiros. O que ora nos cabe é falar daquela parte que se radicou em Goiás; e assim mesmo nem tudo o que ela fez neste grande Estado, pois é muito grande; mas somente aquela parte que se radicou na Colônia Agrícola Nacional de Goiás, fazendo dali um grande centro de irradiação do evangelho na implantação e expansão de igrejas mais para o norte do Estado.
5.2. Igrejas e missionários entrelaçados com IP de Ceres 5.2.1. Rev. James Woodson No entanto, recuando um pouco, causou-me forte impacto quando li no livro do Rev. Wilson Castro Ferreira, Pequena história da Missão Oeste do Brasil: “Rev. Jaime, que foi providencialmente guiado por Deus na sua decisão de ir para Goiânia, aceita o desafio dos novos campos que se abriam em Goiás”.[15] E: “O casal Woodson, no entanto, viveu ainda dois anos
(1955-1956) em Uruana, completando mais uma etapa no trabalho frutífero daquela parte de Goiás”.[16] Ele está falando de Uruana, nossa cidade goiana próxima de Ceres, nacionalmente conhecida como a capital da melancia, cujo seio recebeu o evangelho antes mesmo da implantação da IP de Ceres. E ele está falando de um casal que marcou minha vida pessoal de modo profundo e decisivo — Rev. Jaime Robertson Woodson e dona Jessie, sua esposa; aquele mesmo homem que em 1961 se condoeu de mim em minha miséria quando resolveu despachar-me do IBEL pela carência de cultura, de dinheiro, de família, de tutor e de referência! Ele me deu uma chance irrecusável de permanecer ali e concluir meus estudos, desde que estudasse incessantemente. Como gostaria que ele estivesse vivo para declarar-lhe: o que o senhor fez por mim valeu a pena; e estou retribuindo na forma de uma literatura de valor perpétuo para os obreiros e as igrejas de nosso país. A Providência continuava no comando do povo de Deus e particularmente em minha pessoa. No mesmo livro, Rev. Wilson narra: Talvez se possa dizer que a ação missionária pioneira da WBM [West Brazil Mission ou Missão Oeste do Brasil] se encerrou com o extraordinário avanço realizado por Rev. Jaime Woodson em Goiás, e alguns de seus bravos sucessores, partindo de Uruana em direção a Ceres, cobrindo Mata Azul, atingindo Morro Agudo, Rubiataba, Xixá etc., onde em curto espaço de tempo surgiram igrejas fortes e consolidadas. Dentre os continuadores dessa arrancada heroica contamos os Revs. Paulo Coblentz, Ricardo Taylor, Paulo Smith, Etelberto Gartrell entre os outros.[17] Todos estes pioneiros foram meus conhecidos e companheiros nas lidas missionárias, além do mui querido Rev. Robert Camenisch e Sherwood Taylor. Todos esses homens e mulheres estavam solidamente inseridos naquela divina Providência que permeia toda a história do povo de Deus.
5.2.2. Escola Bandeirante Para que houvesse adequação nos estudos escolares dos filhos dos
missionários, a Missão Oeste construiu uma escola para seus filhos com professores da própria Missão — Escola Bandeirante. Lemos no relato de Frank L. Arnold: Anos mais tarde, a Missão Oeste do Brasil fundou em Ceres, Goiás, uma escola de língua inglesa para filhos de missionários que oferecia o Ensino Fundamental e Médio, e tinha internato. A Escola Bandeirante era amplamente utilizada pelos missionários, mesmo por alguns que moravam muito longe de Ceres. Muitos filhos de missionários presbiterianos e outras denominações passaram por suas portas até o ano de 1982, quando o número de crianças que precisavam da escola se tornou muito pequeno para justificar sua existência.[18] Fiz parte da vida daquela escola já em seu final, lecionando matérias atinentes à cultura brasileira e pastoreando aqueles alunos, como pastor e amigo deles. De fato, testemunhei o encerramento da escola com a formatura de apenas dois alunos: Joyce e Michel. A primeira presbiteriana e o segundo batista.
6. Acampamento Presbiteriano de Ceres Portanto, vale dizer que esta Escola fechou suas portas quando eu ainda era o pastor da Igreja, relacionando-me bem com os alunos daquela época, inclusive filhos do autor do livro Uma longa jornada missionária, o Dr. Frank L. Arnold, com o qual mantive boa amizade. A propriedade dessa mesma Escola veio a ser mais tarde, também em meu tempo ali, o Acampamento Presbiteriano de Ceres, propriedade doada pela Missão à IPB, e atualmente à Igreja Presbiteriana de Ceres. Fui seu primeiro presidente, enquanto o casal Mullins, Alan e Ézia, era o diretor do mesmo. Valendo-me de três boletins elaborados pelo pastor atual da Igreja, Rev. Edson Souza Gonçalves, dois contendo uma entrevista feita com o casal Prof. Walter Marques Dourado e Prof.ª Wanda de Oliveira Dourado, e o outro um histórico elaborado pelo mesmo pastor, extraí o que segue.
7. Como nasceu a Igreja Presbiteriana de Ceres
A Igreja Presbiteriana de Ceres teve início na Colônia Agrícola Nacional de Goiás em 1942. Ocasião em que o evangelista Waldemar Rose, obreiro da Missão Oeste do Brasil... residindo em Uruana, viajando a pé, visitou a Colônia Agrícola em 2 de fevereiro de 1942. Com culto e pregação da Palavra de Deus, na residência do Sr. Joaquim Alcides, teve início o trabalho presbiteriano nesta Colônia, futura cidade de Ceres. Daí em diante seguiram-se visitas mensais e regulares pelo evangelista. Com o desenvolvimento da Colônia, especialmente Ceres e Rialma, a Missão resolveu designar o evangelista Waldemar Rose e sua esposa Maria Litoudo, que fixaram residência em definitivo na Colônia, no final de 1949. No dia 5 de fevereiro de 1950, em um salão alugado, com a presença de 206 pessoas, incluindo missionários, um coral de Anápolis e visitantes de outras denominações, foi oficialmente inaugurado o trabalho presbiteriano em Ceres. Em 12 de agosto de 1950, foi inaugurada a Escola Dominical, sendo eleito para a superintendência o jovem Walter Marques Dourado. Em 23 de setembro de 1950, a congregação foi emancipada, ou seja, organizada em Igreja, com 83 membros comungantes com os primeiros presbíteros: Astolfo Portes Sandeville, Álvaro Gonçalves Chaves, Waldemar Rose e Walter Marques Dourado. Primeiros diáconos: Daniel Francisco Rosa, Tenório Marques Dourado, Gamaliel Castro Dourado e Joaquim de Souza. Somente em 29 de agosto de 1952 é que a Igreja Presbiteriana de Ceres teve seu primeiro pastor residente, o Rev. Reichardt Taylor, que recebeu o trabalho com cerca de 400 membros, sendo que somente 100 eram membros da IP de Ceres; o restante [eram membros] das congregações que ficavam nas imediações; muitas das quais se tornaram igrejas que compõem nosso presbitério atual. Nesse mesmo dia (29 de agosto de 1952), o Evangelista Waldemar Rose e família mudam-se para Uruaçu, a fim de iniciar o trabalho presbiteriano na região. A construção do templo teve início em 8 de março de 1956, orientada por uma comissão de construção que trouxe um arquiteto de Anápolis com a planta do sonhado templo. [Esse templo ainda em construção figura na revista de O presbiterianismo no Brasil.[19]] O novo templo começou a ser utilizado em julho de 1959. Porém, somente em 23 de setembro de 1965, após 15 anos de organização e várias obras complementares, foi oficialmente inaugurado o novo templo, em cuja
cerimônia festiva pregou o Rev. Benon Wanderley Paes. Reformada e sempre se reformando, ampliando e caminhando no Senhor, [esta Igreja] tem alcançado abençoados objetivos, para o desenvolvimento do Reino de Deus, e para a honra e glória do Senhor Jesus. Tudo foi feito com a máxima dedicação. Da rodovia, quem passa e olha para a cidade do outro lado do Rio das Almas, contempla, majestoso e imponente, aquele templo que muitos o confundem uma catedral católico-romana. A Igreja Presbiteriana de Ceres tornou-se mãe de muitas outras igrejas que [outrora] foram suas congregações. Centenas de crentes convertidos e preparados por ela serviram e ainda servem a Jesus em outras igrejas, principalmente na capital do estado. Estes dariam para formar uma gigantesca igreja.
7.1. Pastores filhos da IP de Ceres Alguns filhos de nossa Igreja são hoje pastores; por exemplo, Rev. Edson Souza Gonçalves, Rev. Júlio César Dourado [sendo eu tutor de ambos], Rev. Euclides Oliveira, Rev. Gilvânio Castro Barbosa, Rev. Renato Duarte e alguns missionários. Não tenho conhecimento que algum deles envergonhasse a vocação para o ministério. Creio que todos ainda se encontram na ativa.
7.2. Igrejas filhas da IP de Ceres “A Igreja Presbiteriana Central de Ceres organizou recentemente mais duas novas igrejas na cidade, a saber, Igreja Presbiteriana do Jardim Sorriso e Igreja Presbiteriana do Jardim Petrópolis.” [20]
7.3. Pioneiro abençoado Falar de Ceres e da Igreja Presbiteriana de Ceres sem falar de Walter Marques Dourado é omitir uma das peças que compõem o tabuleiro do jogo de Xadrez e equivaleria ignorar aquela Providência que permeia toda a história do povo de Deus. Segundo o boletim de 18/09/16 da Igreja Presbiteriana Central de Ceres, na entrevista feita pelo Rev. Edson ao casal de professores Walter e
Wanda, ele veio da Bahia, inicialmente para Anápolis, e em seguida para Ceres, chegando no dia 21 de abril de 1948. Curiosamente, no mesmo dia de sua chegada, ele foi convidado pela Diretora Geral da Escola da CANG, Prof.ª Helena Andrade Araújo, para fazer uma palestra alusiva ao “Dia de Tiradentes”. Ele veio na qualidade de professor de história. Ao lado de sua esposa, Prof.ª Wanda, o Prof. Walter M. Dourado chegou a ser não só uma figura proeminente na região ceresina, mas também a nível nacional. Foi condecorado por grandes vultos do governo brasileiro como um herói nacional. Hoje ele conta com 94 anos de idade, ainda de mente lúcida e de corpo e palavra firmes. Ele foi o primeiro superintendente da Escola Dominical e um dos primeiros presbíteros da IP de Ceres. Em meu pastorado de 1978 a 1985, ele ainda era um presbítero ativo ao lado de outros grandes presbíteros: Edward Barbosa (Sr. Divas), Marcos Antônio Argôlo, Adão José de Oliveira, Edson França, Norival Monteiro, Xisto Correia da Silva, Geraldo Rocha. Digo isto porque tive o privilégio de fazer parte da longa história deste homem extraordinário, e tenho sua maravilhosa família como se fosse minha própria família. Fui tutor eclesiástico do filho Rev. Júlio César Dourado durante todo o período de seu curso teológico no Seminário Presbiteriano de Campinas, SP.
7.4. Galeria de pastores Falar da Igreja Presbiteriana de Ceres é falar do grande elenco de pastores que compõem sua história: Waldemar Rose (1942-1948, itinerante; e 1949-1952, evangelista residente); Reichard Taylor (efetivo, 1952-1955 e 1958-1963); Robert Camenisch (efetivo, 1956-1957 e 1968); Ângelo Scarel (efetivo, 1964-1967); Amador A. de Meneses (efetivo, 1968-1971); Sebastião Tillman (efetivo, 1972-1977); Valter Graciano Martins (efetivo, 1978-1985); Otávio Alves Caixeta (efetivo, 1986-1990); Dalzir R. Silva (efetivo, 19911992); Jadiel Martins Souza (efetivo, 1993-1997); Antônio Caixeta Neto (efetivo, 1998-2001); Romildo da Silva (auxiliar, 1998-1999); Hebert S. Gonçalves (auxiliar, 2000-2001; 2009-2012); Eliaquim Félix Batista (auxiliar, 2000); José Joaquim Pereira (auxiliar, 2005-2006); Renato Duarte Silva (auxiliar, 2009); Douglas Boaventura (efetivo, 2002-2012); Hugo Machado (efetivo, 2013); Júlio César Dourado (auxiliar, 2015). Pastor atual:
Edson Souza Gonçalves (auxiliar, 1995, e efetivo, 2014-2016); Hassen Borges Jamaleddine (auxiliar, 2016).
6.5. Waldemar Rose Em minha visão missionária e pastoral, procuro fazer justiça principalmente aos esquecidos. Nunca conheci a história e trajetória desse homem tão vigoroso nas lidas missionárias. No passado cheguei a privar-me com ele para ouvir um pouco de suas histórias ministeriais. No entanto, por negligência, deixei escapar o fio da meada, e hoje desejo tanto resgatar um pouco da pessoa e história desse obreiro do Senhor e me faltam dados. Em nossos diálogos, lembro-me da menção de sua cidade: Santa Rita de Viterbo. Não consigo lembrar-me de sua origem racial. Se der ouvido a um sininho em meu cérebro, que pode soar falso, ele é de origem dinamarquesa. O fato é que ele veio a dedicar sua vida ao evangelismo brasileiro, passando por muitas cidades e sertões e plantando muitas igrejas. Lembro-me dele em Tupaciguara (minha cidade), Lagamar, Brasília, Waldelândia — ele mesmo me narrou sua odisseia nessa cidade, que leva seu nome e o nome da filha do prefeito da época em razão de um casamento projetado entre os dois. Crendo o pai que a filha por fim se casaria com o evangelista Waldemar Rose, por isso mesmo deu à cidade o nome de Waldelândia, uma associação de Waldemar e Orlândia. Conta-se história dele em Formoso das Trombas, quando da revolução projetada por Jango. Não sei se ele mesmo ou se foi um missionário, mas fiquei sabendo que, inclusive, ele viajou uma distância astronômica, a pé, para avisar o missionário que uma guarnição de soldados se dirigia para lá a fim de prendê-lo; e o missionário teve tempo de fugir e escapar. Os crentes antigos daquela vasta região ainda se lembram dele visitando e plantando igrejas. Em meu tempo em Ceres propus ao Conselho da Igreja que convidássemos o Rev. Waldemar Rose para estar conosco um fim de semana, porquanto foi ele que deu forma àquela igreja em seus primórdios. Ele aceitou e pregou durante aquela semana. Na próxima reunião do Conselho, um dos presbíteros censurou minha iniciativa e perguntou se não havia alguém melhor para estar em um importante evento de aniversário da igreja. O que senti foi como que um coice de mula. Não queria acreditar que
na igreja haja tanta ingratidão para com seus velhos heróis. Aquele homem merecia uma medalha de honra ou mesmo que lhe fosse erigida uma estátua. Em vez disso, hoje ele é um total desconhecido. Minha pergunta inquietante é: esse sentimento ou falta dele tem sua origem no ensino do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo ou em outra fonte? Temos muito que aprender com o “velho” Paulo nas cartas pastorais sobre a gratidão que se deve nutrir pelos que servem ao Senhor da Igreja. A igreja romana deifica seus “santos” e “santas”; a igreja protestante os ignora e às vezes os injuria. Os extremos sempre são danosos e procedem do trono de Satã. Hoje sinto na pele o mesmo espírito de ingratidão que permeia a igreja moderna.
7.6. Falta de espaço Torna-se impossível, devido ao espaço limitado deste livro, mencionar nominalmente todos os oficiais que têm composto o grande Conselho desta Igreja e a Junta Diaconal. Muitos deles já repousam no “seio de Abraão”. E se fosse mencionar toda a grande liderança leiga desta Igreja, careceria ainda de mais espaço, desde a liderança infantil, juvenil, de homens e mulheres (UPA, UMP, UPH e SAF). Uma das entidades internas da IP de Ceres mais dinâmicas sempre foi a Sociedade Auxiliadora Feminina (SAF). É praticamente impossível registrar todo o trabalho dinâmico que essa sociedade realizou e ainda realiza naquela cidade e região. Senhoras de várias faixas etárias, todas irmanadas em um só pensamento: fazer o nome e a obra de nosso Senhor Jesus Cristo conhecidos e amados por todos. Durante meu pastorado ali, essa entidade seguiu comigo de mãos dadas em todos os trabalhos da Igreja.
8. Eu e a IP de Ceres Sinto-me honrado de fazer parte de um elenco tão vasto e rico de ministros da Palavra que passaram e têm passado por esta grande Igreja. Deixado à minha vontade, certamente eu estaria residindo em Ceres e frequentando esta igreja até o fim de minha modesta vida. Minha história com a IP de Ceres começa com o Rev. Sebastião Tillman, venerando pastor de larga experiência na Seara do Senhor. Suas experiências, se contadas, dariam um bom livro. Muito antes de conhecê-lo,
ouvi histórias estupendas a respeito de sua pessoa e de seu ministério. Pessoalmente, eu o conheci numa das reuniões da Missão Oeste no Acampamento Boa Esperança (ABE), Goiânia. De imediato me impressionou seu porte sereno e majestoso, bem como seu modo pausado de falar; era diferente dos demais. Havia reverência e nobreza em seu porte e gestos. Esse homem me encantou, porém secretamente. Não obstante, nunca nos assentamos de frente para discutir algum assunto. Em meu conceito, ele sequer tinha consciência de que eu existisse. No entanto, eu estava muito enganado.
8.1. Convite Chegando o tempo de sua jubilação, Rev. Tillman resolveu voltar para sua terra, Araguari, Minas Gerais, e o Conselho da igreja solicitou dele a indicação de um pastor apto para substituí-lo no pastorado. Era meado de 1977, sendo ainda pastor em Paraíso, quando recebi daquele Conselho, representado por seu pastor, convite para pregar ali e ser conhecido e confrontado sobre minhas convicções e procedimentos. A carta/convite estava assinada pelo venerando pastor. Aceitei o convite e permaneci ali um fim de semana. Preguei, lecionei, discuti acaloradamente com um dos presentes sobre a pessoa de Chico Xavier, o grande guru espírita de Uberaba, Minas Gerais. Falei com uma franqueza que dissuadiria qualquer Conselho de ter no pastorado de uma igreja um homem sem papas na língua. Não obstante, o Conselho se reuniu comigo e ouvi suas exigências, falando-lhe com franqueza e espírito aberto sobre mim e meu ministério, sem subterfúgio, o que sempre foi uma de minhas marcas registradas. Voltei para minha casa em Paraíso crendo que o assunto estava encerrado. O que eu possuía para estimular aquele Conselho a confiar em mim para seu pastorado? No entanto, posteriormente aquele Conselho comunicou-me que estava aceito para o pastorado a partir de 1978. Não obstante, narro que naquele ínterim, estando eu hospedado em sua casa, indaguei do Rev. Tillman: “O senhor nem mesmo me conhece; o que leva o senhor a assumir tal risco?”. Eis sua resposta direta e franca: “É engano seu; eu o conheço muito bem; e, no momento, não vejo outro pastor com perfil mais apropriado para este delicado pastorado. Vejo em você o
perfil de um homem sério e estudioso. Creio que você pode fazer isso muito bem”.
8.2. Ministério intenso Uma opinião como esta injeta no pastor o profundo senso de que não pode fracassar. E pastoreei aquela igreja durante oito anos frutíferos, de 78 a 85. Teria que escrever um livro para descrever meu ministério ali. Além de pastorear uma grande igreja local, dei assistência pastoral, interinamente, a diversas outras igrejas da região na vacância de pastor: Formoso das Trombas, Nova Glória, Rubiataba, Rialma, Rianápolis, Minaçu e suas vastas regiões. Se porventura alguém ler estes alinhavos, não pense que fiz tudo muito certinho. Ao contrário disso, o Senhor da Igreja sempre aceitou meu modesto ministério com base em sua mercê e a graciosa operação do Espírito, e não na perfeição do realizador. Muito ao contrário, em sua graça ele teve que aperfeiçoar minha vida e ministério, não só ali, mas em todo lugar por onde eu passava.
8.3. Professor de teologia Fui professor de teologia na Faculdade de Filosofia de Ceres por quase oito anos. Nosso livro-texto era a própria Bíblia. Centenas de pessoas estiveram diante de mim na qualidade de mestre da Bíblia. Muitos se converteram. Tornei-me conselheiro de muitos deles, pessoalmente ou via telefone. Dessa forma fiquei bem conhecido em toda aquela vasta região. Como sempre, sentia-me pastor não só da igreja, mas também de toda a cidade e região. Minha esposa Cremilda vivia assoberbada na área da educação. Fez ali o curso de Pedagogia e depois fez especialização em Belo Horizonte. Nossos filhos cresceram e se educaram ali. De minha parte, jamais deixaria aquela cidade e região. Amo Ceres até hoje. Usando as palavras do Dr. Sandro Dutra, “deixei Ceres, porém Ceres não me deixou”. Mas o verdadeiro pastor não é dono de sua vida e obra. Chega o dia em que baixa a fronte, verte lágrimas, porém tem que partir. Isso aconteceu comigo!
8.4. Pastorado incansável
Em Ceres e região celebrei dezenas e mais dezenas de casamentos, a ponto de ser apelidado de “pastor casamenteiro”. Batizei dezenas e mais dezenas de criancinhas em meus braços, pois era assim que eu fazia, porquanto sempre cri que o P de Pastor é o mesmo P de Pai. Aqueles pequeninos seriam objetos de minha assistência pastoral. Eu, como seu pastor, acompanharia seu crescimento e desenvolvimento. Muitos e muitos dos filhos da igreja e outros que vieram de fora professaram sua fé em Cristo diante de mim. Visitava periodicamente todas as famílias, especialmente os idosos. Eu era o conselheiro de crentes e descrentes. Jovens saíam dali para cursar ciências humanas e teológicas, eu os acompanhava e, quando voltavam de férias, eu tinha que aparar as arestas que traziam de seus estudos acadêmicos. Hoje há deles pastores, médicos, dentistas, professores pedagógicos, entre outras coisas. Fui tutor de alguns seminaristas que, depois, vieram a ser bons pastores, como o Rev. Edson Souza Gonçalves, Rev. Júlio César Dourado, Rev. Antônio Olímpio dos Reis, Rev. Vicente Almeida, os quais se encontram engajados nos labores da Seara. Tive, porém, que despachar a alguns tutelados, granjeando com isso inúmeras e amargas inimizades da parte deles e de seus familiares. Creio que há muitas pessoas, por toda parte, que jamais iriam querer rever meu rosto nem ouvir meu nome. Aliás, a simples lembrança de minha pessoa os desgosta. No entanto, nunca me expulsaram como fez Genebra a João Calvino! É muito difícil, para não dizer impossível, agradar a todos com uma administração imparcial.
9. Congregação de Palmital Havia na zona rural uma boa congregação com uma boa escola primária, numa região chamada Palmital. Justamente dona Martha Little (que, no dizer do Rev. Wilson Castro Ferreira, “Marta Little, porém não tão little, mas, na realidade, grande” [21] — porquanto a palavra little significa pequeno ou pequena), minha professora de outrora no IBEL, era a supervisora daquela escola. Ela residia em Ceres, nossa vizinha de lado. Fosse na Escola Dominical, ou no culto noturno, chegava a hora e surgiam de todos os lados crentes que deixavam suas casas para aquele santo momento. Guardo com saudade aqueles tempos de vivência com aqueles cristãos ruralistas, simples, francos, leais, responsáveis. Parece que ainda
vejo as luzes despontando no crepúsculo, de todas as direções, lanternas, lampiões e até mesmo candeias. Aquela igreja e escola foram sustentadas por duas mulheres admiráveis: Marly Luzia de Oliveira Azevedo e Susete Maria dos Santos Xavier. Aquela região deve muito a essas mulheres especiais. Suas vidas dariam uma boa história. Sem elas ali, há muito só haveria vestígio daquela igreja e escola. Aliás, conta-se que hoje realmente só existe um tênue vestígio daquela igreja e escola depois que elas saíram. Nunca mais voltei lá para não ter o coração toldado com profunda tristeza e dolorosas lembranças. Sempre tive por aquelas duas professoras o mais profundo apreço e respeito. Para mim, são irmãs duas vezes. Vão viver perenemente em meu coração. E espero que o Eterno jamais deixe de tê-las sob a proteção de sua dadivosa mão.
10. Samar Em Rubiataba, não distante de Ceres, há uma instituição da igreja chamada Samar. Aquela entidade foi por muito tempo governada por um conselho, cujo presidente fora outrora obreiro da Missão Presbiteriana no Brasil chamado José Macedo, um dos presbíteros pioneiros do conselho da igreja daquela cidade. Este homem gastou boa parte de sua vida lutando pela sobrevivência daquela entidade. Ali se abrigavam muitas crianças daquela vasta região. Durante todo meu tempo em Ceres, estive de algum modo envolvido com aquela entidade.
10.1. Antônio Olímpio dos Reis Nesse tempo veio de Minas, para ser diretor da SAMAR um homem que fora pastor da Assembleia de Deus e que havia renunciado aquela convicção e se tornara presbiteriano. Antônio Olímpio dos Reis dedicou seu tempo ali por diversos anos, vindo a ser recebido pelo Presbitério de Ceres como ministro presbiteriano, sob minha tutela. Creio não ser fácil de ver a mudança que operou naquele homem, no tocante à sua convicção doutrinária. É difícil ver um presbiteriano tornar-se tão consciente e apto, mesmo nascido nos arraiais de nossa denominação. Mais difícil ainda é tornar-se convicto de um pensamento que não era o seu. Rev. Antônio
Olímpio (para mim, em particular, Rev. Toninho) é um desses raros casos. Hoje é um paladino da fé reformada, não só porque decidisse sê-lo, e sim por conhecimento de causa. Não são muitos os presbiterianos que conhecem a fé reformada como aquele homem. Fui seu tutor, e ele se lembra ainda do que eu lhe disse na época: “Se você não se tornar um presbiteriano de verdade, minha mão será a primeira a levantar-se contra você”. Parecia a imprecação de Farel lançada contra João Calvino. Só que eu não era Farel, nem ele João Calvino.
10.2. Amizade perene Há uma boa coleção de textos em Provérbios que fala da verdadeira amizade. Por exemplo, “O olhar de amigo alegra o coração” (Pv 15.30); “Em todo o tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão” (Pv 17.17); “O homem que tem muitos amigos sai perdendo; mas há amigo mais chegado que um irmão” (Pv 18.24); “Como o óleo e o perfume alegram o coração, assim o amigo encontra doçura no conselho cordial” (Pv 27.9). Tudo isso faz crer que essa foi a experiência constante do proverbista. Igualmente todos nós temos mais ou menos essa mesma experiência com pessoas que nos dedicam uma amizade incondicional. Dentre os amigos que se enquadram nesse perfil considero o Rev. Antônio Olímpio dos Reis. É um amigo a toda prova. Ele não é meu amigo porque eu seja bom para com ele; é amigo porque é amigo! Louvo ao Senhor por essa amizade tão salutar. Ele deu prova disso em meus mais dolorosos percalços. Como exemplo, no dia de meu aniversário, ele liga bem de manhãzinha para ser o primeiro. Deixo isso registrado como exemplo a outros para que cultivemos um círculo mais amplo de boas amizades enquanto os “anjos do abismo” atormentam a sociedade humana dia e noite.
11. Presbitério e acampamento presbiteriano de Ceres Fui fundador intelectual e burocrático do Presbitério de Ceres, como seu primeiro secretário executivo, e do Acampamento Presbiteriano de Ceres, como seu primeiro presidente. Até hoje me chamam o pai dessas duas entidades. Anos depois recebi daquele presbitério uma comenda honorífica pelo vasto serviço prestado à região. De vez em quando volto lá para alguma
conferência. Todavia, nunca deixei de ser um homem polêmico. Nunca consegui ser uma pessoa agradável, sociável, popular; sou mais antipático do que simpático; retraio mais do que atraio. Infelizmente, nasci assim, e a má formação desde o ventre materno me trouxe muita ruína e prejuízo à personalidade e à execução de meu ofício pastoral. Tento ser diferente, porém não consigo. Quando menos, resvalo o pé. Paulo tinha um espinho na carne; julgo que os meus são inúmeros. Por isso, minha vida pastoral nunca foi expansiva. A despeito de tudo isso, sou muito conhecido por todo o estado de Goiás como o homem que sustenta a doutrina reformada com unhas e dentes — um ferrenho calvinista. Não significa que as igrejas me preferissem como seu pastor, pois continuo sustentando por lá a alcunha de “pastor briguento”. Quase todas me rejeitariam, se houvesse uma indicação ou eleição. Mas uma coisa é indiscutível: desfruto o respeito de quase todos, mesmo dos que não nutrem simpatia por mim. Sempre levei o trabalho da igreja muito a sério. Sempre vivi para a igreja, sendo pastor de todos. Como já disse, levo o estigma de ser “arrogante”, porém nunca deixei de voltar atrás sempre que errava e sempre que erro, e faço isso publicamente, quando público é também meu erro. Uma deficiência real que, infelizmente, eu tenho é a suscetibilidade, a excentricidade e, daí, a precipitação no agir e falar. Isso me tem custado um alto preço. De vez em quando deixo marca funda em decorrência desse borrão em meu caráter. Essas qualidades são danosas na vida de um servo de Cristo. Com frequência lastimo possuí-las em meu ser intrínseco. Queria arrancá-las com todas as raízes, mas é como se ainda mais se aprofundassem no subsolo de meu ego! É um pesadelo do qual você quer acordar e não consegue. Você sabe que está ofendendo a Deus e às pessoas. Por isso mesmo passei a admirar em outros aquelas qualidades das quais o Senhor da vida me privou, certamente em reparo de minhas dolorosas tendências. O que me consola é o que está escrito no Santo Livro: “para que somente o Senhor seja glorificado”. O Senhor me ama e me quis a despeito de mim. Isso basta!
12. Lição de casa Certa vez ofendi um membro da igreja ceresina com meu modo
desajeitado; obviamente, toda a família se pôs contra mim. E essa família, além de grande, era e ainda é vital na vida daquela igreja. Depois de pensar muito e de modo isento, resolvi entrar na casa daquele homem e falar com ele olho no olho. Quando me viu chegar, disse-me laconicamente: “Minha família não está; volte outro dia”. Então lhe disse: Eu vim falar é com o senhor mesmo. Senti nele perplexidade. Olhou-me demoradamente por sobre os óculos. Cheguei a pensar que iria me expulsar. Passados uns segundos, convidou-me a entrar e perguntou o que eu queria lhe dizer. Então lhe disse que meu modo para com ele, naquela manhã dominical, foi impróprio para um ministro do evangelho. Portanto, lhe pedia encarecidamente que me perdoasse. O impasse foi doloroso. Houve silêncio e comoção. Ficou pasmo por um instante e então me falou: “Olha, pastor, o que você está fazendo é muito difícil de fazer; não sei se eu o faria. É verdade que você me ofendeu profundamente, a ponto de pensar que jamais o perdoaria. Não só está perdoado, mas, se o admirava antes, doravante o admirarei mais ainda”. Ali nos abraçamos e oramos juntos. Realmente é muito difícil fazer essas coisas. Nunca tive inclinação nem dom para praticar estas duas virtudes cristãs. Se a graça não nos preceder e não nos fortalecer, com certeza não as praticaremos. Mas creio que é assim que a igreja é abençoada. Depois que nosso Senhor foi ao Calvário, ele eliminou de nós todo e qualquer pretexto de isenção ou escape. Se ele, o Senhor, rogou que o Pai perdoasse a seus algozes, porque não sabiam o que faziam, se bem que o sabiam, o que nos sobra senão beijar o pó? Se bem que está escrito que, depois de agirmos corretamente, nos sobrevém a paz. No entanto, não quero que o irmão ou irmã pense que tenho facilidade de agir bem neste território tão espinhoso. Meu coração não é natural e inerentemente humilde! Acrescento ainda que na próxima oportunidade eu dirigi à Igreja em culto público minha confissão do que aconteceu entre mim e aquele homem. O maior problema do ser humano pecador não é errar, e sim permanecer no erro.[22]
SEXTA PARTE: IMPACTO DE COSMOVISÕES
1. Erro que gera acerto Em meado de 1985, o Conselho da Igreja de Ceres me fez um grande agravo que gerou em mim profundo desgosto e indignação. Talvez outro não houvesse se ofendido tanto com aquele procedimento, mas para mim foi terrível devido às minhas confusas idiossincrasias. Conheço pastores que fazem finca pé por um problema muito mais forte e grave do que o que me ocorreu ali. Conheço alguns que teriam ficado e dividido Conselho e Igreja. E ainda arrotam que tudo fazem para a glória de Jesus Cristo. Certo ministro me afirmou: “Meu colega, se eu não ‘embirrar’, a igreja não será prejudicada”. Ele não sabia, ou fingia não saber, que era ele quem prejudicava a igreja com sua megalomania. Sempre nutri horror por esse comportamento. Tanto que até hoje aquela igreja não compreendeu o que me levou a renunciar prematuramente meu último pastorado ali. Fiz isso não só uma vez, mas diversas. Faltava um ano para o final de meu terceiro mandato de três anos cada um, isto é, nove anos. Lavrei um documento de renúncia em caráter irreversível e acertei com o Conselho a vinda de outro pastor. No momento, todos ficaram atônitos e constrangidos. Creio que não esperavam aquela reação. O pastor escolhido foi meu próprio cunhado, Rev. Otávio Alves Caixeta, que realizou ali um grande ministério. Ao aceitar substituir-me no pastorado, é óbvio que ele também cria que o errado era eu. Fiz tudo o que me cumpria fazer para terminar bem o ano. Com minha discrição, mantive a Igreja e o Conselho unidos. Fechei aquele ano, afastei-me em silêncio e quase ninguém mais me via em público, uma vez que tive de permanecer em Ceres por questão familial. O Conselho, preocupado, indagou se eu já tinha um campo em vista para tomar aquela medida tão drástica. Minha resposta foi “não!”. Estava disposto a ficar sem os proventos necessários do que servir de estorvo à igreja local.
1.1. Mudança dramática Ainda não tinha nada de concreto com a Editora Fiel; havia até mesmo esquecido daquele breve começo; e não havia nenhuma perspectiva de novo campo. Deus costuma usar esses fatores para gerar um profundo e decisivo
impacto. É nas tensões psicológicas que aprendemos as lições de casa. Ele se ofende com nossos males? É evidente que sim. Se ele está no meio temperando tudo, então não existe motivo algum para rancor ou retaliação. É ele que fecha uma porta para que entremos por outra aberta também por ele. Nesse processo, ele usa pessoas de nosso relacionamento, para o bem e para o mal. Ora, se ele é o Autor supremo, por que eu iria guardar mágoa de alguém a quem ele usou? Por que eu iria perseguir a alguém a quem ele deu ordem em prol de meu bem futuro? A ferida dói no momento em que é feita, mas o resultado posterior nos acalenta e nos leva a dar graças diante do Trono da Graça. Segundo o provérbio popular: “O tempo cura até mesmo as feridas mais profundas”. Eu teria que aprender isso no desenrolar misterioso da Providência divina. Essa Providência é a escola do Espírito Santo na qual, como seus alunos, aprendemos a paciência.
1.2. Em nome da verdade Mas é preciso deixar expresso e impresso meu conceito pessoal daquele Conselho. Composto de homens crentes, sérios em seu ministério administrativo daquela grande igreja, querendo acertar, e não errar, se deparou com um pastor de “pavio curto”; infelizmente, chegaram o fogo perto demais e irrompeu uma grande explosão. Tanto que nunca ficamos inimizados. Hoje ainda há naquela igreja e naquele Conselho remanescentes daqueles grandes homens. A Providência está sempre no comando.
1.3. Resultado pacífico Houve muito abalo de ambos os lados, porém procurei ser leal no cumprimento de meus deveres até o fim. Creio que consegui. Aliás, foi assim que sempre concebi o pastorado: enquanto tudo corre bem, que o pastor fique quieto; mas, se for conveniente, é preferível rasgar, lacerar, prejudicar alguma parte, do que insistir em ficar para “o bem da igreja”, como fazem tantos “embirrados”, quase sempre prejudicando o todo. Tampouco narro essas coisas com outro intuito, senão para deixar registrado como Deus usa homens e mulheres frágeis para a expansão de seu reino. O lado humano da igreja é sempre assim. Mas o que a torna vitoriosa é seu lado divino e eterno na operação de sua Providência.
2. Igreja de Rialma Não conheço os primórdios históricos daquela igreja, mas creio que sua história e a de Ceres são praticamente a mesma. O fato é que ali se ergueu um belo templo e já existiu uma grande igreja. A Providência divina nos encaminhou para a IP de Rialma. O Acampamento cedeu-me uma de suas moradias que no momento jazia desocupada dentro de seu perímetro fechado. O Presbitério, em concordância com a Igreja de Rialma, deu-me esta igreja para pastorear em 1986. Aquele foi um ano sereno. Aquela igreja me tratou com o máximo respeito e apreço. Uma igreja sofrida; e na verdade tinha diversas razões pregressas para sentir antipatia por mim, como era o caso na maioria das igrejas. No entanto, misteriosamente, ninguém protestou contra, ao menos que eu soubesse; ninguém a abandonou por minha causa; todos mantiveram firmeza até o fim. Tanto que passei a amar aquela igreja perenemente. Lembro-me daquele convívio com gratidão. Não fiz nada de extraordinário ali. Creio que minha breve passagem por aquela igreja só é lembrada por um pequeno remanescente, que aos poucos vai desaparecendo. Mas a Providência tinha algo diferente para nós.
3. Decisão inesperada Foi nesse tempo que a Editora Fiel voltou à carga para que eu trabalhasse com ela na esfera literária. Nesse tempo eu já era assíduo às conferências teológicas daquela Editora. Fui lá e discuti o assunto com seu fundador, Dr. Richard Denham. Mas ainda não era o tempo certo de nossa parceria. Para que algo dê certo em nossas decisões, é preciso que atentemos bem para o andamento do propósito divino. Nas grandes ou pequenas decisões, a leviandade é uma terrível inimiga nossa. Ela nos leva a cometer equívocos que costumam ser irreparáveis e desastrosos. Quantos dentre nós se equivocam crendo que uma porta se abre quando continua fechada e não percebem. Expressões, “O Senhor está mandando”; “sinto-me chamado por ele para tal obra”; “uma porta está se abrindo”; “tenho que obedecer à voz do Senhor”, etc. costumam ser meras ilusões. O Senhor permite que essas vozes nos enganem e nos desorientem. Se nos parece ouvir uma voz da parte dele,
não precipitemos; não o ofendemos se tivermos dúvida. Quantos dos antigos profetas tiveram dúvidas? Todos ou quase todos eles relutaram antes que compreendessem que realmente o Senhor os chamava. Esta é uma questão extremamente vital. Creio que nos lembramos bem do texto de Jeremias: “Não mandei esses profetas; todavia, eles foram correndo; não lhes falei a eles; contudo profetizaram” (Jr 23.21). Eles ouviam um chamado? Claro que ouviam. Todavia, não era o chamado do Senhor. Então, de quem era? Que o leitor mesmo pondere e responda. Em geral, as seitas surgem dessa maneira: seus líderes tiveram uma “revelação” ilusória.
4. Visita à Editora Fiel O fato é que o presidente e fundador daquela obra, Dr. Denham, convidou-me a ir a Atibaia, onde estavam sediadas a Editora e as conferências teológicas. Ele mesmo apanhou a mim e à Cremilda na rodoviária e conduziu-nos a Atibaia. Não tivemos despesas. Só tivemos solidariedade e afeto. Fomos lá como estranhos, porém fomos recebidos como se já fôssemos conhecidos e amigos. Sentimos profundo conforto. Vimos braços abertos e sorrisos francos e fraternos. Sentimo-nos em casa. Esse foi o primeiro contato pessoal que tive com o eminente fundador daquela Editora, Dr. Denham, extensivamente com sua esposa, dona Pérola. Ali nascia uma perene amizade que mais tarde redundaria em muitos frutos para o reino de Deus.
5. A mão da providência Em meu quarto de hotel alojou-se também um homem muito amigo do presidente do Supremo Concílio, de nome Deneval Lizardo. Aqueles foram uns dos momentos mais deleitosos para minha alma. Éramos totalmente desconhecidos até então. Entre tantas outras coisas, falei-lhe de meu interesse em trabalhar na Editora Fiel. Ele ouviu atentamente e me afirmou com convicção plena: “Você não irá trabalhar nesta Editora. A nossa precisa de você mais do que esta. Vou falar com o presidente do Supremo; ele é meu amigo e não me negará um pedido desses. Vou lutar para ver você como um dos diretores da Casa Editora Presbiteriana”. (O “nome fantasia” da Editora Cultura Cristã; este título só veio à existência posteriormente, já em meu
tempo ali; fiz parte de sua escolha.) Tudo isso me soou como uma bomba. Ouvi atentamente, porém com espírito cético. Meu novo amigo estava dizendo coisas absurdas, sem nexo. Mas a Providência estava no comando.
5.1. Desacertos Defrontando-me com o Dr. Denham, logo descobri que aquele não era, e talvez nunca, o tempo de Deus. Não via nenhum encaixe para mim nas exigências daquele homem austero. Na verdade, descobri que não era ele que queria meus serviços, e sim o casal que me visitara em Ceres, Ronald e Thaís. O Dr. Denham já tinha sua equipe bem formada. Por que iria querer a colaboração de um homem sem qualquer experiência no ramo de fazer livros? Discutimos, argumentamos, confrontamos e decidimos não continuar com as tentativas. Para mim, aquele seria um mundo totalmente desconhecido e chocante; para ele, eu tinha “problemas” que ele não admitia na vida de quem trabalhava com ele naquela Editora: eu pertencia a uma igreja que batiza crianças e tolera em seu seio a maçonaria. Insistir seria tentar misturar água e óleo. Mas a Providência não dormitava. Voltei para casa, ponderei com Cremilda os prós e os contras, víamos mais contras do que prós. Escrevi-lhe uma longa carta, explicando ser impossível um consórcio pacífico. Não concordava com a maçonaria na igreja, porém, de fato, pertencia a uma igreja que batiza crianças. Entre uma e outra convicção havia pouco para se esperar boa concórdia. Nesse caso, conservaríamos apenas a amizade. Esqueci a Editora Fiel, nesse sentido. Mas aconteceu algo muito especial — na conferência seguinte, veio-me um comunicado da parte do Dr. Denham que queria ver-me lá com as despesas pagas. Fui. Abraçou-me efusivamente, como era seu costume com todos os seus amigos pessoais. Nossa amizade ficou selada. Doravante, aquele homem seria um dos vultos que mais me influenciaram em minha dura peregrinação, porque a Providência está sempre no comando. 5.2. Resposta dramática Nesse ínterim, eu recebia uma carta do irmão e amigo Deneval Lizardo, que me chamava a São Paulo para avistar-me com o presidente do Supremo e as autoridades daquela entidade, a saber, a Casa Editora Presbiteriana. Obviamente, senti-me atônito. Fiquei como quem sonha. Passei
aqueles dias, trêmulo e confuso. Cremilda também quase não tinha o que dizer. Não sabíamos o que pensar. É em momentos como esses que costumamos recorrer ao Trono da Graça com mais frequência e com o coração saturado de angústia e dúvida. Essa encruzilhada nos assustava. Havia a possibilidade de dizer “não” e seguir em frente, e havia a de dobrarmos à esquerda ou à direita. Uma pergunta bailava em nossas mentes: É razoável dizer “não” a uma chance que pode mudar nossas vidas totalmente e para sempre? Ainda outra pergunta surgia: Se dissermos “não”, haverá outra chance semelhante a esta? Tínhamos uma vaga ideia do que seria vermo-nos diante de uma cosmovisão completamente diferente da atual, e tínhamos medo daquela, pois já estávamos acostumados com esta.
5.3. Mediadores providenciais Há muito na história da humanidade e da Igreja, em particular, de uma pessoa que surge como o pivô de uma grande mudança na trajetória de um povo, de um indivíduo ou de uma entidade. Farel é um exemplo disso, na história de João Calvino e da Reforma Protestante em Genebra e no mundo. Deneval é outro exemplo disso na mudança não só de minha vida, mas também da vida de minha família e de função dentro do corpo eclesiástico para o benefício ou prejuízo do mesmo. Há aqueles que, com suas sugestões, contribuem para a desgraça; e há aqueles que contribuem para o triunfo da graça na sociedade e, particularmente, na igreja. Tudo é dirigido pela Providência. Entre uma correspondência e outra, em meio a temores e esperança, de repente minha trajetória sofreu a mais determinante de todas as guinadas que até então experimentara. Até então, eu fora um simples pastor de igrejas locais. Minha intenção era seguir em frente sem retroceder até a velhice. No entanto, nem mesmo cheguei a pressentir que aquele apego aos livros me resultaria em algo tão determinante. Tampouco poderia imaginar que aquele livrinho presenteado por meu cunhado, Rev. Dr. Antonio Caixeta Neto, seria o pivô de uma vertiginosa mudança. Sentindo-me fraco e sem cultura, aliás, sem a devida “experiência acadêmica”, na verdade era visto como alguém que realmente era de muita cultura, porém foi essa a ideia que prevaleceu na mente de quem me conhecia; aliás, que mal me conhecia. É preferível ser tido como inferior, estando na realidade mais alto, do
que ser tido como superior, estando na realidade mais baixo. Eu sofria com este último preconceito. Muitos me olhavam de baixo para cima, quando, na realidade, deveriam visualizar-me de cima para baixo. Se porventura eu for visto como inferior, estando um pouco acima, então tenho como provar o equívoco; se for o contrário, então eu fico sem recurso para provar que sou um pouco mais. Digo isto porque, em parte, fui levado para Editora oficial da Igreja por ser tido como mais apto do que na verdade o era.
5.4. “O homem do livro” Em Goiás, cheguei a ser apelidado de “o homem do livro”. Não tanto porque eu sentisse demasiada fome e aptidão à leitura, mas, sobretudo, porque sentia perene e profunda necessidade de aprender para o bom desempenho do pastorado e, assim, compensar minha falta de “experiência acadêmica”. Não obstante tudo isso, jamais imaginara que um dia seria produtor de livros, para nunca mais voltar atrás. Mais sério ainda, estava destinado a verter as obras do Reformador João Calvino para nosso idioma, quando o Senhor fizesse de mim “doutor” em João Calvino, ainda quando não fosse doutor em qualquer ciência acadêmica. Estava destinado a exercer um papel preponderante na formação da fé reformada do povo evangélico brasileiro. Sem o imaginar, faria notável contribuição para a formação teológica de nossos pastores, mesmo quando continuasse sendo um homem sem a devida cultura. Creio que essa será uma alcunha perpétua.
5.5. Predestinado O Senhor da Igreja havia me predestinado para algo muito grande, muito maior que eu mesmo. Com toda franqueza e sinceridade, para tudo isso não movi sequer um dedo com o fim de alcançar o alvo, pois, naquele tempo, este não era de fato meu alvo. Tudo foi fluindo de modo muito natural. Portas foram se abrindo, as quais jamais eu nem sequer imaginara que existissem. Elas iam se abrindo pela mão do Senhor da Igreja. E não foi algo abrupto, precipitado, fruto de leviandade, impulso da vaidade humana. Quando me abdiquei do pastorado de Ceres, nem mesmo tinha qualquer certeza de que houvesse tal possibilidade em nossa vida. Nada foi montado ou maquinado; não houve conchavo de minha parte; houve, sim, do outro lado da barricada.
De lá, a política funcionava; de cá, funcionava um espírito simplório, sem malícia. Desde o início, não houve nenhuma maquinação de minha parte, nem mesmo poderia ter havido. O que eu buscava era continuar a vida pastoral em algum lugar.
5.6. Acertos finais E assim fui a São Paulo avistar-me com o presidente do Supremo Concílio e os diretores da Casa Editora Presbiteriana. Deneval Lizardo foi meu cicerone. O presidente, Rev. Edésio Chequer, chegou a cogitar que eu assumisse a Superintendência de Educação Cristã da IPB. Eu disse “não!”. Tudo era fabuloso demais para inventar alguma outra coisa; cada lance me apavorava; fiquei literalmente aturdido; era como um sonho do qual não se consegue acordar. Sentia que não podia recuar, nem retroceder, a despeito do temor, para não dizer assombro. Se eu dissesse “não”, teria desmantelado tudo. E todos nós sabemos que ninguém pode frustrar os desígnios do Altíssimo. Mesmo uma leve tentativa resulta em ruína e desventura. Em sua providência flexível, maleável, dinâmica, ele costuma deixar nossa insistência prevalecer para punir nossa temeridade. No entanto, em sua providência imutável ou decretiva, ele não permite nossa interferência. Esses fatos da revelação divina escrita ainda me deixam atemorizado.
5.7. A família Rocha Em nossa chegada a Ceres, em janeiro de 1978, um casal, Geraldo e Terezinha Rocha, nos recebeu de madrugada e esteve conosco até o fim de nossa permanência ali. Durante todo nosso tempo em Ceres, esse mesmo casal não se apartou de nós. Aguentavam os solavancos ombro a ombro. Nunca nos dirigiram sequer uma palavra de arrepio ou agravo. Agora, de novo, ali estava conosco o mesmo casal na partida de Ceres para a capital paulista, os quatro abraçados, orando, chorando e nos despedindo. Temos este casal no número dos que mais nos marcaram naquela querida cidade e igreja. Sempre que voltamos lá temos que beber o café de dona Terezinha e papear com o querido presbítero Geraldo e seus queridos filhos. De nossa parte, sentimos como se fôssemos uma só família.
5.8. Rastros saudosos Deixamos para trás amizades, vínculos estreitos, uma vidinha serena e segura, em um mundo de estilo campestre. Agora, com a nova cosmovisão, sentíamos medo, insegurança, porém não conseguíamos agir de outra forma, pois tudo parecia muito forte e bem delineado para voltarmos atrás. Nada fazíamos sem depositar nossos planos ante o Trono da Graça. Eu e família cultivamos um perene hábito de confiar na Providência todas as circunstâncias da vida. Nunca nos deixávamos empolgar com demasia. Quando surgia algo muito grande, recorríamos ao Trono da Graça e ali depúnhamos nossa preocupação e esperávamos. Agora não era diferente; pelo contrário, nos esforçamos ainda mais para que recebêssemos do Senhor um filete de luz orientadora. E ele assim fez. Esteve sempre conosco, a despeito de nós. Deu-nos perene assistência mesmo quando agíamos contrário à sua vontade. Cada vez mais, experimentávamos os efeitos dessa divina Providência.
5.9. Sacrifício financeiro É oportuno dizer que, para a mudança, gastamos quase tudo o que tínhamos. Vendemos nosso primeiro veículo para custear as despesas de mudança. O que sobrou era muito pouco. No lugar próprio relatarei a dolorosa experiência quando apresentei a conta de reembolso ao presidente da Editora, segundo o combinado com o próprio Supremo Concílio. Conto as venturas e desventuras com o intuito de o leitor se inteirar de como nossa vida foi difícil antes daquela determinante encruzilhada donde tomamos o rumo de publicar as obras de João Calvino, porque a Providência estava no comando.
PEREGRINAÇÃO PELAS IGREJAS PAULISTANAS 1. Santo André Acordados por antecipação, adentramos a capital paulista rumo diretamente a Santo André, cidade imensa que compõe a Grande São Paulo.
Paramos diante de uma casa que seria nossa residência durante aquele ano de 1987. Antes de apresentar-me à diretoria da Editora, apresentei-me ao pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Santo André. Aquela igreja pagaria meu aluguel em troca de meus serviços que lhe seriam prestados. Isto fora acordado entre mim, o pastor e o conselho. Naturalmente, a igreja foi informada e já nos aguardava. Até poderia imaginar que tipo de informação aquela igreja recebera: “Está vindo aí um pastor caipira para ajudar-nos; vamos recebê-lo como gente boa; embora não seja nosso ideal, contudo esperamos que dê certo”.
1.1 Choque existencial Enquanto ajeitávamos nossa mudança naquela casa, não somente eu, mas toda a família, sentimo-nos atordoados com o terrível impacto entre duas cosmovisões tão opostas — a anterior, pastoreio campestre; e a nova, pastor e diretor numa selva de pedra. Esta seria uma longa trajetória de adaptação. Este seria um tempo de pesado desgaste emocional. Começávamos como novos alunos de uma nova escola. Evidentemente, logo esposa e filhos se adaptariam. Quanto a mim, “pastor caipira”, acostumado às cidades pequenas em Minas e Goiás, viveria todo o tempo futuro, cerca de vinte anos, sem amais acostumar-me plenamente. Na verdade, aquela foi uma vida em que “o filho chora e a mãe não vê”. E praticamente foi assim. Terrível escola seria aquela! Ninguém é professor sem que antes seja aluno. No entanto, a Providência estava no comando. A sensação que tivemos a princípio foi de estarmos numa grande floresta, formada não de rios, bela fauna e flora, a céu aberto e límpido, sentido aquele aroma que promana da abençoada natureza. Era, sim, uma floresta de prédios, de veículos se cruzando velozmente, de naves aéreas descendo nos aeroportos, de fumaça fétida e todo tipo de poluições. O ruído dos motores começava de madrugada para depois misturar-se com todos os demais tipos de estrondos, só diminuindo de madrugada, porque São Paulo é a cidade que nunca dorme. 1.2. Cremilda sem trabalho e filhos sem escola Cremilda já não tinha uma escola onde trabalhar; os filhos já não tinham uma escola familiar onde estudar; eu tinha que viajar quilômetros e
mais quilômetros rumo à Editora no Bairro do Cambuci. Eu sentia na família certo espanto e angústia. Os únicos conhecidos eram o pastor e sua família, mas era como se fossem desconhecidos, pois ficaram de longe.
1.3. Meio de transporte Havia outro fator que agravava ainda mais a situação. A Editora tinha veículos para os trabalhos próprios dela. De manhã e à tarde aqueles veículos serviam para distribuir muitos dos funcionários. Não houve a menor cogitação sobre minha locomoção. Era como se eu não existisse; não estava no programa de distribuição de funcionários. Tinha que me valer de ônibus ou trens. Esse detalhe me trouxe um profundo desgaste emocional e psicológico. Confesso que minha sensação era de quase desespero total. Sentia-me num deserto sem socorro. Mais ainda, sentia-me no meio de uma multidão para a qual ninguém é ninguém, composta de indivíduos avulsos sem qualquer familiaridade ou afinidade. Era menos arriscado estar numa grande e densa floresta cheia de animais ferozes. 1.4. Discriminação e isolamento Nesse início traumatizante tive vontade de desistir e voltar para meu Goiás. Eu estava sujeito ao horário como todos os funcionários. A única exceção era quando a diretoria se reunia, não podendo fazer isso sem minha presença e participação. No tocante às decisões, meu voto era praticamente nulo: era um contra dois. Quanto ao mais, era tratado como um mero funcionário. Aos poucos tomava pé de minha situação: aquela diretoria protestou contra minha inclusão nela; para os dois colegas, minha função tinha de ser meramente a de funcionário. Quando o Supremo prevaleceu, então descontaram em mim, fazendo-me sentir que realmente não passava de um funcionário entre os demais. Eu teria que enfrentar esse clima até que expirasse nosso mandato de quatro anos, quando aqueles dois colegas saíram e eu fiquei. Não quero narrar com detalhes que dura escola foi aquela para mim e família. O bulling ainda não tinha sido normatizado!
1.5. Atividade na IP de Santo André Sobre minha função na Primeira Igreja Presbiteriana de Santo André, de início fui informado que eu iria ajudar o pastor nos cultos semanais de
estudos bíblicos. Então ele me avisou: “Os crentes desta igreja gostam de fazer perguntas. Eu não dou brecha. Vá logo cortando esse costume. Não atenda às suas indagações e insinuações. Esse é o meu modo de agir, e quero que você faça o mesmo”. Eu não lhe disse que minha metodologia era justamente oposta à dele. De certo modo, isso contribuiu para certa divergência dissimulada entre ele e eu. Aos poucos, isso foi se agravando.
1.6. Política eclesiástica Quanto à Editora, fui posto ali pelo Supremo Concílio, contra a vontade dos outros dois diretores. E eles tinham razão: eu não era conhecido de ninguém ali, não tinha as devidas qualificações, e eles mesmos tinham seus próprios candidatos. Portanto, nada havia para um consórcio feliz. Assim descobri que tudo ali funcionava pelo impulso da política e conveniência. Por isso fui tratado como mero funcionário, de modo ríspido, às vezes com uma ponta de desdém mal dissimulado. Por exemplo, quando falavam das questões atuais da igreja ou da nação, usavam um vocabulário próprio e empolado, olhando um para o outro, sem incluir-me em seus diálogos. Quando cercados pelos amigos também eruditos, eu procurava uma brecha para afastar-me discretamente, porquanto notava que não fazia parte de seus assuntos. Eles pouco falavam de teologia; seu assunto predileto era política civil e eclesiástica. Citavam os grandes vultos que comandavam a sociedade e aqueles que comandavam a Igreja. E assim eu me sentia um peixe fora d’água. Quando citavam os grandes vultos da Igreja, faziam isso com desdém e deboche. As críticas que faziam detonavam com minha visão simplista do reino de Deus. Cheguei a pensar que, se ficasse muito tempo ali, me tornaria totalmente cético. De pronto entendi que estava ali como uma figura decorativa, porém já não havia como retroceder. Perguntava ao Trono da Graça: “Senhor, o que de fato está acontecendo? Qual a finalidade de estar aqui?”. Minha firme esperança é que estes relatos não sejam confundidos com desabafo e rancor. Hoje não tenho nenhum motivo para desabafo contra empresa e contra pessoas. Tudo era direcionado pela mão do Altíssimo para minha formação em seu propósito de fazer João Calvino falar português. Esta era minha universidade; teria que lutar antes de receber a colação de grau sem receber qualquer diploma. No entanto, ao registrar tudo isso (e
grande parte é omitida por falta de espaço e por não ser conveniente), espero que sirva de lição a alguém que também seja aluno de sua própria universidade, porquanto serviu a mim e à família. Então me lembrei com profunda reflexão do profeta Eliseu, quando ia passando e os garotos apupando: “Sobe, calvo! Sobe calvo!” (2Rs 2.23). Por quê? Porque Eliseu era uma figura deprimente à vista dos grandes da sociedade e da cultura e, como profeta, atacava frontalmente a política da época. Além do mais, naquele tempo eu já era membro do clube dos calvos. Com a diferença que eu não tinha o poder nem me era permitido ordenar a ursos que exterminassem garotos brincalhões! Cremilda já não tinha seu emprego para aumentar os proventos; os filhos precisavam de escola; eu precisava de transporte; o pastor da igreja, conhecido de muitos anos, não se revelou amistoso e solidário; ditava as normas, e esperava resultado. De repente me vi trabalhando para os dois, ou, melhor, para os três (diretores e pastor), sem afinidade, sem ter neles amigos solícitos para com minha sorte. Estávamos sozinhos naquela selva de pedras. Todavia, o divino Professor nos ensinava as lições de casa e sua Providência estava sempre no comando. Ela me preparava para algo muito grande!
1.7. Renda insuficiente Meu salário de diretor não era tão pequeno, mas se tornou pequeno, por ser o único a trabalhar e porque os gastos foram multiplicados. Quando apresentei a conta da mudança ao diretor-presidente, atrás da mesa a escrever, ali ficou sem nem mesmo me olhar. Respondeu fria e rispidamente: “Olha, moço, esta Editora nunca ressarciu mudança de ninguém, e você não será o primeiro”. Então eu disse que o Supremo Concílio havia prometido. Sua resposta foi: “Aqui quem manda sou eu, e não o Supremo Concílio”. Continuou a escrever e eu voltei para minha sala profundamente abatido. Para mim, não era pouco dinheiro. Sem aquela quantia, não tinha a menor ideia de como resolver meu grande problema financeiro. Não tinha nenhuma fonte à qual recorrer. Se o dinheiro acabasse, a família enfrentaria a escassez. Há detalhes terríveis nesta história. Prefiro omiti-los. Aqui, meu intuito é mostrar quão difícil é ser aluno na escola do Senhor da Igreja, visto que os piores inimigos são os próprios colegas de escola. Todavia, em meio às tempestades, ele não deixa o aluno sem assistência; no fim de ano, a nota dá
para passar para o outro ano! A Providência nunca descuida dos filhos e servos de Deus.
1.8. Subserviência De diretor, passei a ser mero revisor do editor. Este passava às minhas mãos todas as revistas e livros e me ensinava, sem muito rodeio, como revisar os textos. De vez em quando devolvia tudo como estando ruim (e de fato estava!). Eu tinha que refazer tudo. Algumas vezes censurava meu trabalho de modo ríspido. Aquele novo ambiente passou a ser um deserto solitário destituído de oásis; aquela distância a percorrer de manhã e à tarde me assombrava; o ambiente da igreja era totalmente novo e vago; o dinheiro se escasseava: cinco filhos, a esposa e eu mesmo para comer, vestir, suprir de remédios, custear os transportes etc. Nenhuma mão se estendia. Nenhuma boca me perguntava como estava a saúde da família: nem o pastor, nem os colegas de Editora. Na igreja, todos eram desconhecidos e estranhos. No ínterim, Cremilda tentava enquadrar-se em alguma escola como pedagoga. Por sua vez, recebeu da direção de muitas escolas uma recusa desdenhosa: “Você vem da cultura goiana? Não; você não se enquadra em nossa cultura” — e daí por diante. Voltava para casa arrasada. Sentia-se tratada como uma criatura desprezível. É nesse tipo de encruzilhada que a gente se sente pior que vermes. Toda a auto-estima se evapora e vira lixo. Aquela nova cosmovisão nos esmagava. Se na esfera do mundo as pessoas costumam vencer, por que não nós, que estamos na esfera do reino de Cristo? Esse era nosso modo de filosofar diante das dificuldades. Mas o que vence é a Providência.
1.9. Guiados pela Providência Neste espaço, deixo expressa e impressa, mais uma vez, nossa confiança se firmava nesta prodigiosa Providência. Desde o início minha casa aprendeu a confiar tudo a esta Providência. Minha esposa e meus filhos se anuíram a mim nesta mesma confiança, ao longo de toda nossa vida difícil. Por isso mesmo nunca forcei nenhuma circunstância para tirar algum proveito. No dizer de Paulo, “dos pecadores, eu sou o principal”; porém, nunca consegui fazer certas coisas que se veem praticadas no seio da Igreja de nosso Senhor. Não por ser melhor que os outros, mas por questão de
escrúpulo, princípios e consciência bíblica. Uma dessas coisas é o uso de manobra em benefício próprio e de alguém de seu círculo, em prejuízo de outrem. Eu estava ali, naquela entidade da igreja, porém Deus é minha testemunha de que nunca forcei uma circunstância para algo dar certo. Eu sabia, e minha esposa também, que estávamos ali pela Providência, e essa mesma Providência nos socorreria. Não passamos fome, não nos faltaram os recursos necessários para o básico da vida. Mantive a serenidade e marchei adiante. Nosso socorro viria de alguma fonte e de alguma maneira. Em toda nossa peregrinação sempre surgiu alguém com mão estendida. Mais ainda, nossa experiência não é única. Uma multidão de pessoas experimentou e tem experimentado os efeitos da Providência divina, vencendo todos os obstáculos até que se veja radiante diante de si o Sol da Justiça e um tempo mais promissor.
1.10. Casal amigo e inesquecível De fato, o Senhor nos deu um casal da igreja de Santo André: Osmar e Marília, ambos filhos de pastores, portanto bem escolados sobre a penúria dos que servem a Deus na obra de seu Reino. Ambos se propuseram a aproximar-se de nós com afeição sincera. Iam à nossa casa, convidavam-nos a ir à sua. No primeiro natal, chegaram à nossa casa com uma grande cesta composta de tudo. De vez em quando ele punha algo em meu bolso: era dinheiro! Quando eu tinha que pregar em algum lugar distante e desconhecido, ali estavam eles se oferecendo e me levando sem nunca receber reembolso. Aqueles dois irmãos e amigos jamais saberão, enquanto aqui na terra, o quanto nos confortaram em tempo de grandes aflições. Enquanto os companheiros de trabalho e de vida me ignoravam e me negavam o de direito, eles iam além do direito e exerciam a misericórdia e a fraternidade. Esses são os genuínos representantes da igreja, não aqueles. Muitos estão na igreja como meros administradores; são outros que a edificam.
1.11. O perigo da insensibilidade Corremos um grande risco de perder a sensibilidade quando tudo nos corre bem, deixando de ver e sentir a situação miserável de nosso próximo.
Ainda mais, o Senhor com frequência nos deixa enfrentar o que nosso próximo enfrenta para derreter o gelo de nosso coração indiferente e aprendermos a solidariedade. Não devemos fazer o que reprovamos em outros. Daí, aquela escola era extremamente necessária no preparo para o futuro, pois encontraríamos em pessoas amigas a mesma disposição que há em nosso Senhor de abençoar os desesperados e desesperançados. Aos poucos iríamos encontrar pelo caminho aqueles com quem nos privaríamos na grande obra de fazer João Calvino falar nosso idioma. Para alguns, o sofrimento petrifica os corações; para outros, ele amolece e serve de lição prática. Para os que ainda não passaram pela experiência da conversão, ele é petrificante; mas, para os que já conhecem o coração de nosso Senhor Jesus Cristo, ele amacia e apara a aspereza dos espinhos pontiagudos.
1.12. Conflitos administrativos Os conflitos administrativos chegaram bem cedo, na área da igreja em Santo André. As pessoas foram se afeiçoando a nós; gostavam de ouvir o “pastor caipira”; a reunião semanal para estudo bíblico começou a crescer em número. O salão provisório não cabia mais. Meus métodos de estudo agradavam às pessoas em geral, porém causou desprazer naquele que deveria ser meu amigo. No entanto, eu tive que suportar por muito tempo um presbítero que se sentava nos fundos do salão para torcer o nariz durante meu estudo, provavelmente por ouvir minha sofrível gramática e dicção. Com o passar do tempo, aquele mesmo presbítero — José André — viria a ser meu amigo e meu colaborador nas revisões de minhas traduções de João Calvino. Portanto, cabe-nos parar e observar o quanto a vida nos prega peça. Há uma canção popular brasileira que diz: “Hoje é o meu dia, amanhã será o seu”. Isto é, ninguém conhece sua história futura; ninguém conhece de antemão quais serão as lições da vida. E eu sempre fui um aluno que aprende depressa as lições de casa; e, como já disse, desde cedo cultivamos a confiança na divina Providência. 1.13. Decisão bem definida No meio daquele primeiro ano, fiz um documento para o pastor, extensivo ao conselho, dizendo que em 1988 declinaria a permanência ali. Tive que enfrentar uma forte tempestade. Para amenizar o estado de ânimo,
voluntariamente me comprometi a dar assistência a duas congregações daquela igreja. Fiz isso durante o ano inteiro, com despesas de meu próprio bolso. Ninguém me perguntava quanto gastava com as viagens. Tudo era muito longe. Em silêncio, nunca deixei de visitar e dar assistência àquelas congregações sem qualquer vínculo eclesiástico. Nesse ínterim, eu já estava vinculado à igreja de São Bernardo do Campo. Tinha que me desdobrar em razão da grande distância que tinha que percorrer. Porém, venci com a graça do Senhor e impelido pela Providência. Na Editora, continuava a enfrentar o mesmo espírito de retaliação e indiferença. Vendo o exemplo dos diretores no tratamento que me davam, alguns funcionários me ignoravam como autoridade. Tive que conviver com esse espírito todo aquele tempo em que permaneci subalterno a eles. Quando a Comissão da Bíblia de Genebra veio ao Brasil para negociar sua publicação, eu era então o diretor-editor por direito do ofício. O presidente os recebeu, começou a acertar o modus operandi de sua publicação, sem me chamar. Só fui chamado porque a própria Comissão norte americana perguntou se a Editora tinha um editor. Aprendi uma grande lição da fragilidade dos cristãos quando se trata da religião prática. Muitos, quando se encontram nos templos, são santos; quando saem fora, são diabos. Mas a Providência havia, mais uma vez, tomado a dianteira. Portanto, a publicação daquela Bíblia começou comigo como editor. Graças ao Eterno, eu saí para a entrada de um editor de fato capaz para dar sequência àquele trabalho tão delicado.
2. IP São Bernardo do Campo São Bernardo do Campo é outra das grandes cidades satélites da capital paulista. Acompanhando o relato do Presbítero Lauro Benedito Medeiros da Silva, a pedido, com a pergunta: “Como o presbiterianismo chegou a São Bernardo do Campo?”, faço uma síntese histórica desta Igreja.
2.1. Família Lalli Como tantas outras igrejas, a de São Bernardo do Campo tem seu ponto de partida com a conversão da família do senhor Cármine Lalli e sua esposa dona Palmira, residentes em Sorocaba, em meado de 1930. Católicos
praticantes, bem conhecidos do bispo, ele moveleiro, cuja oficina funcionava em um salão cedido pela paróquia. Ambos, cada um com sua própria história e com reação diferente, têm contato com o evangelho por meio de uma amiga de dona Palmira. Com a firme decisão de se tornarem presbiterianos, ele perdeu o direito de usar aquele salão para sua oficina. O bispo, enfurecido, além de não mais ceder aquele salão, impedia as pessoas de usar os serviços da família “quebra-santo” — era o apelido dos crentes naquela época. Foi assim que, em face das dificuldades financeiras, “o senhor Cármine se viu obrigado a vender suas máquinas e a mudar-se de localidade”. A graça divina assistiu aquela família, que veio a instalar-se em São Bernardo do Campo e se tornaram membros da Igreja Presbiteriana de Santo André, porquanto, na época, ainda não havia igreja em São Bernardo do Campo.
2.2. Família Bergamaschi No entanto, o ponto de partida preciso da existência daquela grande igreja se deu com outra família, por volta de 1945, a saber, senhor João e dona Guilhermina Bergamaschi, os quais vieram a ser os membros pioneiros daquele trabalho insipiente. Mas, assim que o senhor Cármine se instalou em São Bernardo do Campo, e tendo contato com a família Bergamaschi, ele e esposa resolveram fazer de sua casa um ponto de pregação com a família Bergamaschi. Logo a seguir se deu a conversão da família de Mauro Lalli, e o trabalho, então elementar, veio a ser uma promissora congregação, com a adesão de outras pessoas da vizinhança.
2.3. Nasce uma congregação Com o empenho de todos, logo a congregação passou a ter suas atividades normais de igreja, com estudos bíblicos às terças feiras e cultos aos domingos, num salão alugado e com a assistência do licenciado Francisco Cruz; mas, por questão financeira, tiveram que reunir-se na casa do senhor Calvino Sales, até que pudessem adquirir um terreno para construção de seu templo, o que se deu em 1950, com o lançamento da pedra fundamental e a construção do templo pelo pedreiro João Bergamaschi. A celebração de inauguração do templo se deu em setembro de 1950, presidida pelo pastor da
IP de São Caetano do Sul, Rev. Gerson Meyer. A congregação permaneceu ali até 1961.
2.4. Organizada a IP de São Bernardo Em 16 de abril de 1961, o Presbitério Paulistano organizou a Congregação Presbiteriana de São Bernardo do Campo em Igreja, com os primeiros presbíteros: Nicola Lalli, Onofre Nelas Neto, Antônio do Amaral Campos Jr. e José Ferreira Sobrinho; e os diáconos: Azôr Frutuoso de Campos, Ercílio Soares de Almeida, João Bergamaschi e Joaquim Ribeiro de Almeida. Sendo os Bergamaschi a primeira família fundadora e os Lalli a família que acolheu em sua casa o trabalho insipiente. Portanto, estas duas famílias são de importância vital na história desta grande igreja.
2.5. Primeiros pastores Os primeiros pastores indicados pelo Presbitério Paulistano (de 1961 a 1970): Revs. Oscar Chaves, Daniel Silveira, Manuel Barbosa de Souza e Jacob Silva. Os primeiros eleitos pela igreja (a partir de 1970): Revs. Sebastião Bitencourt dos Passos, Ataídes da Costa, Magnus Galeno Felga Fialho, Wilson Roberto Bonadio, Alceu Davi Cunha e Donizeti Rodrigues Ladeia (pastor atual).
2.6. Meu ingresso na história daquela igreja É aqui que entro na história da IP de São Bernardo do Campo. Durante o período em que permaneci na IP de Santo André como pastor auxiliar, eu soube que o pastorado da Primeira IP de São Bernardo do Campo ficaria vacante em 1988. Não conheço bem a história desse impasse. O grande e piedoso ministro do evangelho, Rev. Ataídes da Costa, homem que sempre exercera em mim profunda impressão e influência, estava deixando aquele pastorado, e o Conselho não encontrara em tempo hábil outro com o perfil adequado ao pastoreio daquela grande e forte igreja. Informado disso, liguei para o vice-presidente do Conselho a fim de consultá-lo da possibilidade de eu prestar colaboração oficiosa aquele ano. Como houve demora na resposta, tornei a telefonar, dizendo que estava desistindo daquela pretensão, uma vez que eu era um homem desconhecido
daquela igreja; e, possivelmente, estava causando embaraço aos membros do Conselho que queriam encontrar um pastor qualificado. Então, o vicepresidente respondeu que já ia ligar confirmando nosso encontro com vistas a um acordo. De fato, houve o encontro e acertamos que eu ajudaria a igreja durante aquele ano em troca de moradia. Para mim, era suficiente. Como ninguém ali me conhecia, deixei-os livres para indagar a meu respeito. Esse era meu segundo ano na Editora Cultura Cristã. Então, foi alugada uma casa e nos mudamos para ali. O vice-presidente é quem coordenava nossa mudança, pois fora ele que assumira a responsabilidade do aluguel. Ocorreu um dos casos mais estranhos em toda minha vida. Chegamos com a mudança, introduzimos a chave na fechadura, a porta se abriu e começamos a despejar as coisas. Não muito depois, chegou o vice-presidente do Conselho, correndo esbaforido e assustado, dizendo que a casa não era aquela, e sim a vizinha. Ficamos atônitos. Fomos com a mesma chave, introduzimos na fechadura e a porta se abriu. Abreviando a história, a igreja teve que arcar com as consequências para com o dono da primeira casa, que se aproveitou para reformá-la toda. Em seguida, apresentei-me à igreja na qualidade de mero coadjuvante. Nunca seria o pastor titular. No momento da posse, o vice-presidente soprou em meus ouvidos que eu dissesse à igreja que minha presença ali seria oficiosa e somente aquele ano. Esse tipo de atitude me deixa fulminado. De fato, eu disse à igreja que ficaria ali somente aquele ano, não só em razão do pedido do presbítero (e repeti verbal e enfaticamente as palavras do pedido e seu nome por extenso), mas porque essa sempre foi também minha conduta. Nosso acerto foi que eu colaboraria somente um ano, e assim foi.
2.7. Entrosamento afetivo A igreja não tinha pastor efetivo, mas apenas um pastor presente ali a dar-lhe assistência e suporte pastorais. O Conselho sempre me convidava a presidir suas reuniões. E assim nasceu entre nós um forte laço de amizade e confiança recíproca. Tínhamos pela frente uma longa história juntos, uma história que duraria treze anos. Daí nascer em mim um forte afeto para com aqueles irmãos, afeto profundo e perene. Boa parte de minha história e de minha família, na capital paulista, gira em torno daquela grande igreja. Como veremos, foi ali que nasceu a história de João Calvino falando nosso idioma.
Aquela igreja foi generosa para comigo e minha família. Foi um ano de muita luta, porém de sucesso. Em meado do ano, era preciso prover a igreja de pastor efetivo; então o Conselho me consultou se eu não gostaria de permanecer ali mais um ano. Minha resposta foi que o vice-presidente insistira que eu fizesse aquela declaração, por isso eu a manteria: não ficaria! Repeti à igreja, com todas as letras, aquela solicitação, com o cidadão presente.
2.8. Virtude ou defeito? Compreendo ser este um dos tantos borrões de meu caráter. Creio que outro, em meu lugar, teria reavaliado a situação, e por certo teria agido bem. Mas quando afirmo uma coisa, costumo não voltar atrás, principalmente se houver certa relevância. Não que eu goste disso. Não uma só vez ocorreu de haver prejuízo para ambas as partes. Entre dar prejuízo e ter prejuízo, prefiro esta última alternativa. É possível que alguém denomine isto de orgulho, e é possível que realmente seja; mas este comportamento é uma de minhas marcas registradas. Quem poderia concordar com isso? Nem os filhos nem a esposa! Sem dúvida, sempre fico sozinho! Consequentemente, a família, de alguma forma, sempre sofreu os efeitos negativos de tal comportamento! Como veremos, voltaríamos para aquela igreja mais tarde.
3. IP São Caetano do Sul A Igreja Presbiteriana de Vila Paula, fundada pelo “velho” plantador de igrejas, Rev. Ludgero de Moraes, grande vulto no seio da IPB, me descobriu e queria que eu fosse seu pastor efetivo, não cooperador ou auxiliar. Aliás, a bem da verdade, quem me apresentou àquela igreja foi seu próprio pastor que ora deixava vacante seu pastorado, o Rev. Fôlton Nogueira, o qual nem mesmo tinha ideia que eu existisse neste mundo. Em minha opinião, ele estava cometendo uma temeridade.
3.1. Eleição Este homem e eu estaríamos juntos em outras encruzilhadas. Ele nunca soube o quanto o admiro profundamente como um homem nobre e probo e
dentre os mais inteligentes que conheci em meu caminho. Houve negociação e acerto para 1989. Mudamo-nos de São Bernardo para São Caetano, terceira mudança em dois anos. O acerto é que eu ficaria ali como seu pastor apenas aquele ano. No entanto, foi um ano tão bem-sucedido, que permiti que a igreja fizesse eleição. Nunca havia sucedido comigo, nem me lembro de haver sucedido assim com outro, de uma igreja votar em massa em favor de um pastor, sem sequer um voto contrário. Estava eleito para os anos 1990 e 1991. Mas, quando atingimos meado do ano 1990, percebi que minha permanência ali seria prejudicial à igreja. O trabalho da Editora era intenso e exaustivo. Reuni o Conselho e apresentei minha carta/renúncia relativa a 1991. Houve muito aborrecimento por parte do Conselho e da igreja, crendo estar sendo lesados em sua confiança depositada em minha pessoa. Mesmo assim persisti em meu propósito, e apresentei um pastor já amigo de longa data, Rev. Ruben Castro. Esse consórcio foi tão bem-sucedido, que a igreja perdoou-me de minha retirada prematura. Abençoamos aquela igreja, e ela, por sua vez, nos abençoou.
3.2. Contratempo no Presbitério Deixo registrado ainda que os concílios pelos quais passei nunca foram amistosos comigo, com pequena exceção. Foram sempre arredios, e eu ficava ali ocioso, porquanto nenhum me dava qualquer encargo. Somente um resolveu me nomear secretário de educação religiosa. Fiz amizade com alguns indivíduos desprendidos que me aceitavam com minhas idiossincrasias. A impressão que tenho é que nenhum daqueles presbitérios se lembra de mim.
3.3. Carta anônima Certa vez, no Presbitério de São Caetano, surgiu uma carta anônima dirigindo ofensas ao concílio. Eu estava presente, quando discutiram o assunto com agastamento. Quando me deram a palavra, pronunciei minha estranheza que um cristão escreva algo sem apor sua assinatura. Minha tese sempre foi esta: ou eu escrevo e assino, ou não escrevo e não digo nada. Rev. Fôlton era o presidente e estava presidindo. Após minha
declaração, eis a surpresa: ele se ergueu, e me falou assim: “Valter Martins, quero que o concílio registre minhas palavras sobre o senhor. Eu cria piamente que o senhor fosse o autor da carta. Por isso, peço que me perdoe”. Foi um momento constrangedor e embaraçoso, e eu estava surpreso. Então eu disse ao concílio: Isso prova o quanto os senhores me desconhecem. Sou um homem simples e de difícil relacionamento, porém não covarde. Sou sempre leal à igreja a que sirvo e ao concílio a que pertenço. Nunca escrevi algo que não pudesse assinar, pois essa atitude é imprópria até mesmo para o mundo; muito menos para os filhos de Deus. Ele me abraçou e doravante nos tornamos bons amigos. O que aquele homem fez é digno de menção honrosa. Esse tipo de confissão é próprio das pessoas sinceras, corajosas e ilibadas. Aliás, é a única atitude que biblicamente se enquadra nos cristãos. Guardar rancor e fomentar desavença têm trazido grande prejuízo ao povo de Deus.
4. De volta a São Bernardo do Campo Sem igreja, eu e Cremilda resolvemos voltar para São Bernardo do Campo como meros visitantes, sem qualquer compromisso. Era longe, mas já tínhamos filhos ali, e a igreja já era muito amiga. Naquele tempo, passaram por aquela igreja dois pastores que não cumpriram seu mandato completo. Cada um deles tinha sua própria cota de problemas pessoais. Como eu disse, voltamos a frequentar aquela igreja porque era composta de amigos. Não tínhamos muitos amigos. Não deixamos amigos nas outras igrejas. Nossa passagem era sempre rápida. E estava registrado na Providência que ficaríamos por muito tempo naquela igreja (cerca de treze anos ao todo). Ali tive uma grande classe composta de adultos na nave do templo para estudos teológicos de minha escolha. Lembro-me que durante um ano inteiro estudei o livro do Apocalipse com aquela classe. E ali tive boas histórias.
IMPASSE NA EDITORA CULTURA CRISTÃ 1. Avaliação positiva Nesse ínterim, a vida na Editora era ativa e cheia de percalços.
Participava das reuniões da diretoria timidamente. Fazia em silêncio aquilo que o editor me mandava. Na realidade, as decisões eram feitas a dois, pois que adiantaria a palavra de um só? Lutei muito para não ceder ao desânimo. Há lances em toda esta história que, registrados, aumentariam muito a extensão deste livro e trariam desgosto aos parentes e amigos do lado de lá. Depois de muito tempo enfrentando as dificuldades de transporte, senhor Agnaldo, funcionário da empresa e presbítero na Primeira IP de São Caetano, por ordem do presidente, assumiu o comando de um dos veículos da empresa e então me apanhava e me deixava em casa. Houve um grande avanço. A hostilidade dos colegas se abrandava com o passar do tempo. Perceberam que eu só queria trabalhar e não causar-lhes dificuldade. Já havia me acostumado com o novo ambiente. Filhos e esposa á estavam mais ambientados. Eles conseguiram matricular-se nas escolas próximas de casa. O arrocho financeiro ainda era forte. Na Editora, eu já tinha minha sala específica onde lia, estudava, revisava para o editor e treinava tradução. Há coisas que passo por alto em razão de sua complexidade e porque são detalhes mais meus que do leitor.
2. Retrospecto Neste ponto é preciso retroceder um pouco para compreender-se o que veio depois. Em 1986, enquanto curtia a angústia da saída prematura da igreja de Ceres, e labutava na igreja de Rialma, decidi traduzir um precioso livro presenteado pelo amigo já citado, Rev. Ronald Edmonds, que fora discípulo de Martyn Loyd-Jones na Capela de Westminster, ora nos Estados Unidos como pastor de uma Igreja Batista da Reforma. Ele me enviara muitos livros dos grandes teólogos reformados, William Hendriksen e Simon Kistemaker entre outros. Essa amizade e esse gesto mudariam vertiginosamente minha vida particular. Dentre os livros, encontrava-se um em especial, Mais que vencedores, estudo no livro do Apocalipse. Devo muito àquele casal, Ronald Edmonds e sua esposa Thaís. Em meus ermos, li e muito apreciei aquele livro. Com a ajuda do casal Mullins, Alan e Ézia, amigos de longa data, residentes em Ceres e diretores do Acampamento Presbiteriano de Ceres, fui traduzindo e eles, retraduzindo. No final, o livro ficou razoável (por causa deles). Esta foi minha primeira “tradução”, e foi aprovada pelo editor e publicada pela Editora
Cultura Cristã; uma publicação muito deficitária, por isso mais tarde o livro foi re-traduzido com primor pelo grande ministro do evangelho e meu amigo, Rev. Dr. Wadislau Gomes.
3. Rev. Sabatini Lalli — amigo e mestre Neste ponto, tenho que fazer justiça a um homem em especial, citandoo nominalmente, o que tenho evitado até então. Rev. Sabatini Lalli era um homem muito culto. Poliglota, exímio escritor, tradutor e polemista invejável e respeitado, às vezes se excedia e se deixava levar pelos amigos, prejudicando-se a si próprio; a despeito de tudo isso, era um homem bom e justo. Suguei dele o máximo que pude. Aprendi com ele muita coisa vital para o que faço hoje. A ele devo o que me tornaria no futuro, inclusive sua influência em meu estilo literário. A despeito de toda a luta que travamos juntos naquela instituição, positiva e negativa, nunca deixei de nutrir para com ele afeição e respeito. Depois que nos separamos de modo tumultuoso, sempre que o encontrava lhe perguntava como estava vivendo. Certo dia, ele me olhou demoradamente e me perguntou, já dentro de seu veículo, à porta da 1ª IP de São Bernardo do Campo, sua igreja de origem: “Valter, eu sinto que você de fato se importa comigo”. Minha resposta foi: E o senhor ainda tem alguma dúvida? Vi lágrimas brotarem de seus olhos. E certa vez o visitei em São José dos Campos, guiado por seu irmão Presb. Paulo Lalli e outros. A despeito da dificuldade que eu causo aos que mantêm vivência comigo, em decorrência de minhas idiossincrasias um tanto complexas, tenho tentado sublimar isso, não guardando rancor de ninguém e sendo um amigo leal. E digo mais: nunca persegui a alguém; nunca busquei solapar o prestígio de alguém; nunca me alegrei quando algum desafeto fracassa. Se puder, lhe estendo ambas as mãos. Já fiz isso várias vezes. Com isso não estou tentando justificar-me nem engrandecer-me como se eu fosse bom e perfeito, pois tenho muitos outros defeitos, voluntários e involuntários, que enfeiam minha vida, os quais me têm causado muito prejuízo, e com isso tornando minha fama muito ruim. Mais afasto as pessoas de mim do que as atraio. Nunca consegui muitas amizades. As que tenho, isso se deve ao bom coração dos que não se afastam de mim e me aceitam como sou. Reiterando, a despeito de muitas dificuldades de relacionamento, Rev. Sabatini e eu conseguimos ser amigos. Creio que ele não faleceu com mágoa
de mim. Eu lhe dedicava grande admiração e afeto pelo que ele era e fazia. Sua esposa e filhos eram e são pessoas maravilhosas e íntegras. Na manhã do falecimento de sua esposa, uma das filhas me ligou e me disse: “Papai me pediu que não me esquecesse de avisá-lo que minha mãe acaba de falecer”. Lá fui eu. Ao chegar, ele me abraçou e me disse: “Valter, que bom vê-lo aqui conosco neste momento dramático”. Choramos juntos em silêncio e abraçados. O coração de Jesus Cristo triunfava mais uma vez. Quando seu filho Flávio, casado com uma irmã de Ayrton Senna, morreu por acidente de moto, mais uma vez choramos juntos.
4. Transição dramática O ano de 1990 foi dramático para a Editora. Era a reunião ordinária do Supremo Concílio. Os dois colegas foram exonerados por razões de incompatibilidade entre eles e o Supremo; e eu fiquei por não ter nenhuma incompatibilidade com eles e porque foram solidários comigo, visto que eu não teria nenhuma fonte de renda, pois não exercia o pastorado. Os dois compreendiam, porém não aceitavam os fatos, e me envolveram no mesmo “pacote”. Eu havia tomado parte na elaboração do hinário com músicas como integrante da Comissão do Hinário; havia participado também na edição da gramática grega do Dr. Waldir Carvalho Luz; igualmente na edição das Institutas, traduzidas por ele. Fui alijado completamente das comemorações e lançamentos dessas obras. Nem informado fui. Nos convites, apunham somente seus nomes como se fossem os únicos diretores. Os dois lançavam mão do que queriam para si e para presentear aos amigos. Até funcionários recebiam livros de presente. No tocante a mim, só depois que haviam saído é que consegui exemplares dessas obras por direito do ofício. Suportava tudo em silêncio, porém com a alma amargurada. A princípio, eu os acompanhava nas viagens que a diretoria fazia às igrejas e concílios. Uma vez lá, ninguém ficava sabendo que eu era também diretor. Os dois eram celebrados, subiam aos púlpitos, discursavam, enquanto eu, incógnito, nem sequer era mencionado nem por eles nem pelos pastores das igrejas locais. Para todos, a diretoria se compunha dos dois. Mais tarde, iam os dois, e eu ficava. Mesmo assim, não me faziam nenhuma recomendação. Havia um funcionário que agia como diretor e tinha nas mãos todo o controle
da empresa. Esse mesmo funcionário, em virtude da atitude dos dois diretores, agia como se eu não existisse ou se fosse outro funcionário. Não me dava ordem porque era bem esperto; agia daquela forma porque era recomendado pelo presidente. Deixo registrado, não por mágoa ou retaliação, e sim como lição oportuna, que naquele tempo minha fé, se não fosse um dom provindo do Trono da Graça, teria soçobrado e se definhado de vez. Costuma-se haver no mundo mais respeito às hierarquias do que na Igreja do Deus vivo. Se alguém me perguntar por que não reagia, até nisso fui impossibilitado, pois aqueles a quem eu poderia recorrer como que desapareceram de minha vista e de meu alcance. Sempre soube que havia na Igreja do Deus vivo muita maldade, mas nunca havia experimentado tanta na própria pele. Esse é o lado humano da igreja; não é a igreja propriamente dita. Toda a história da igreja nos apresenta este quadro em cores vivas. O Senhor faz isso para provar-nos e burilar os eleitos. No entanto, digo que este quadro histórico não representa realmente a igreja como um todo. A igreja era conduzida de modo justo e honesto. Sua liderança se compunha de homens e mulheres tementes a Deus. Daí ser este fator de muita relevância em minhas vitórias ali. Difícil é quando a maioria se conspurca. Digo ainda que nunca fui maltratado pelos membros do Supremo Concílio. Aliás, estes nem mesmo sabiam o que ocorria nos bastidores daquela Editora. O que me chama a atenção em todo esse marasmo, é que os homens tentam obstruir nosso caminho com uma infinidade de obstáculos. Não ponderam que o caminho de cada um é traçado pelo Eterno e que de nada vale tentar impedir o avanço de alguém que está sob o comando da Providência. Em primeiro lugar, Deus não impede que nosso caminho seja entulhado de obstáculos que outros põem; em segundo lugar, ele mesmo remove esses obstáculos para desimpedir nossa trajetória. Por isso, quando eu quiser barrar a passagem de alguém, deveria antes ponderar sobre a Providência em relação a esse alguém. Como quero que a Providência me abençoe, devo querer igualmente que ela abençoe os que andam próximos a mim ou estejam relacionados comigo. Creio que parte do temor de Deus é não impedir o avanço de outros; ao contrário, minha mão deve ajudar alguém a ter seu caminho desobstruído. Digo isso porque muitos dos que quiseram barrar meu caminho já partiram deste mundo ou foram arredados do caminho, e eu continuo seguindo em frente. Isso se dá comigo como também
se dá com você e com todos nós. Nossa mão não deve ser usada para lançar obstáculos no caminho de alguém. Está escrito: “Abençoai os que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis” (Rm 12.14). Nossa função neste mundo é sempre abençoar, e nunca amaldiçoar.
5. Crise na literatura pedagógica Aquele foi também um período de crise na literatura pedagógica da Igreja. Um superintendente entrava e logo saía; vinha outro e não ia longe. Houve momento em que eu tive que assumir de vez a responsabilidade de todo o preparo das revistas. Não há necessidade de dizer muito que toda a literatura didática da igreja nacional se empobreceu e quase se definhou de vez. Só depois que eu saí e assumiu meu posto o Rev. Dr. Claudio Marra é que toda a literatura foi caindo nos eixos. Afirmo que a sala dos Superintendentes de Educação Cristã era anexa à minha. Daí eu acompanhar todo o drama desse departamento da Igreja. Poderia citar de memória todos os Superintendentes de meu tempo, mas prefiro manter silêncio sobre isso. Todo meu tempo na Editora Cultura Cristã esteve envolto por decadência, principalmente o segundo período, de meado de 1990 a meado de 1994, quando aquela diretoria foi deposta pelo Supremo Concílio. 6. O hinário com letras Ocorreu que, quando foi lançado o hinário só com letras, os erros foram tantos, que as igrejas não puderam usá-lo. Foi quando se decidiu chamar a Prof.ª Atenilde Cunha para, comigo, o editor, corrigir tais erros. Ela veio do Recife e, juntos, ela e eu, trabalhamos incansavelmente vários dias. Assentados em torno de uma mesa, fomos corrigindo, lentamente, estrofe após estrofe e hino após hino até que ficasse plenamente certo. Ficamos assustados com tantos erros. Terminado nosso trabalho, o hinário corrigido foi de novo impresso e permanece até hoje, intocável, como deixado por nós. E assim pude conhecer de perto aquela mulher extraordinária e fazer parte da história do hinário da igreja.
7. SAF em revista A publicação da SAF em revista estava longe da revista moderna e em
tudo bela que o trabalho feminino compendia hoje. Tudo era feito artesanalmente. Não havia computador na empresa. Havia, sim, uma boa equipe de artistas que elaborava revistas e livros com o que tinha em mãos. E a direção máxima do trabalho feminino, a nível nacional, que me visitava periodicamente, era composta de senhoras “fechadas”. Não lidavam comigo de modo amistoso como companheiros de uma mesma equipe. Elas me viam de cima para baixo. Tudo era de caráter profissional. Algumas nem permitiam que eu fizesse qualquer mudança na estrutura e texto para melhorar. Nenhuma daquelas senhoras jamais me disse “obrigado” por me empenhar em prol de sua modesta revista. Aliás, a cúpula do trabalho feminino atual nem mesmo tem ciência de que ainda estou vivo e que fiz parte de sua trajetória; mais ainda, nem sabem quem eu sou. O que guardei em meu coração foi uma dolorosa lembrança que tenho tentado apagar pela graça do Senhor. No entanto, uma figura aparou bem muitas arestas — Prof.ª Mirthes Silva, membro da Primeira Igreja Presbiteriana de São Bernardo do Campo. No final do culto, quando eu pregava, ela costumava dizer: “Volto para casa com a alma nutrida”. Das senhoras, membros da cúpula nacional do trabalho feminino, lembro-me de todas, mas foi esta grande dama que mais me marcou positivamente. Vou repetir o que já afirmei em outro lugar: o Senhor sempre põe em nosso caminho alguém que produz em nós profundo conforto. É a ação daquela Providência que nos impele para frente e nos impede de desistir.
8. Rev. Álvaro Almeida Campos Um dos vultos mais proeminentes postos ali pelo Supremo, como Superintendente de Educação Cristã, foi precisamente o homem que em 1975 preenchera e assinara minha carteira de ministro: Rev. Álvaro Almeida Campos. Aquela Editora foi palco do horrível tratamento que aquele humilde homem sofreu ali. Penso que o Supremo Concílio nunca teve ciência disto e não tem pleno conhecimento da grandeza e nobreza daquele “varão sem dolo”, bem como do sofrimento que enfrentou ali. Até hoje costumo denominá-lo de “Natanael”. Foi ele que me ajudou a re-traduzir a Confissão de Fé e os Catecismos e de programar essas obras como se encontram hoje. As referências bíblicas por extenso e numeradas, como contêm hoje, foram
organizadas e inseridas por mim, com a ajuda do Rev. Álvaro. Tenho certeza que ninguém hoje conhece esses dramas, daí eu registrá-los para que não pereçam, pois além de ser testemunha ocular dos mesmos, eu mesmo estava vivamente presente naquele palco; aliás, fazia parte de seu elenco. Seu programa para as escolas dominicais era ótimo, porém foi rejeitado. Aquele nobre homem tentou realizar uma obra impossível, porquanto foi completamente alijado. Vê-lo sendo ridicularizado, inclusive com deboche, me causou, além de náusea, um profundo conflito de fé e credibilidade no que tange ao lado humano da igreja. Precisei desenvolver técnica pessoal para vencer tais conflitos, ou seja, jamais confundir indivíduo com entidade ou corporação. A igreja, como corporação, é instituição divina, porém é composta de indivíduos distintos que, com frequência, agem como se estivessem a serviço de Satã e não de Jesus Cristo. Mesmo assim, sentia como se minha alma fosse aos poucos secando. Foi quando me deparei com o texto de Isaías e demorei-me em sua meditação, o qual sempre me assustou: Pelo que o direito se retirou, e a justiça se pôs de longe; porque a verdade anda tropeçando pelas praças, e a retidão não pode entrar. Sim, a verdade sumiu, e quem se desvia do mal é tratado como presa. O SENHOR viu isso e desaprovou o não haver justiça (Is 59.14,15). E também Habacuque: Por esta causa, a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta; porque o perverso cerca o justo, a justiça é torcida (Hb 1.4). Para nossa advertência, os dois profetas não se referem ao mundo pagão que não tem o temor de Deus. Está em pauta a própria igreja de Israel que havia apostatado do Senhor. Vale dizer que Israel não percebia nem admitia que estava agindo contra o Senhor. Quando os profetas surgiam como arautos do juízo parcial do Senhor, eram desdenhados e perseguidos como sendo injustos para com a Igreja de Iavé e mentirosos quanto ao seu modo de julgar a nação.
9. O temor do Senhor Cabe dizer ainda que nem todos agiam injustamente. Em minha visão, esses compunham a minoria. A maioria persistia em viver no temor do Senhor. E esses são a razão de a igreja continuar sendo a Igreja do Senhor. Quando nosso Senhor veio, havia em Israel um remanescente bem pequeno que representava o povo de Iavé. Esses eram mais raros no alto escalão do que entre a plebe. Os do alto escalão podiam ser contados nos dedos da mão. Sabemos ainda que entre os sacerdotes, os ministros dos sacrifícios e da instrução do povo, havia bem poucos que eram tementes ao Senhor. Graças ao Senhor, hoje, em minha ótica, é a maioria que persiste fiel. Infelizmente, nossa atenção quase sempre está voltada para o lado negativo, a saber, as ações da minoria, pois às vezes são ações por demais fortes. Posso estar equivocado, mas não vejo a totalidade da Igreja como conspurcada pela apostasia. Concordo que a maioria tem brincado de religião. Os concílios e conselhos precisam trabalhar esse setor. Portanto, isto é motivo para crermos e esperarmos que dias melhores ainda virão. É possível lutar e diminuir a cizânia entre o trigo? Creio que sim. A cúpula de cada setor da igreja corre um grande risco de perder a sensibilidade espiritual. A tendência é o endurecimento. Os que lideram precisam ter em mente que são vistos como o exemplo de piedade cristã para o povo que é liderado. Se a liderança crer e ensinar errado, é certo que os liderados também seguirão esse exemplo. Quando se mostram insensíveis, os liderados são afetados e passam a agir da mesma forma. Quanta necessidade há hoje de piedade cristã entre os líderes do povo de Deus!
CREMILDA NO MACKENZIE 1. Três gigantes da fé Vale dizer que foi nesse período dramático que passaram a assessorarnos três vultos importantíssimos no seio da igreja — doutores/presbíteros: Dr. Éder Acorse, Dr. Hélio Conceição e Dr. Ciro Aguiar. Eram todos homens tementes a Deus e da mais ilibada seriedade, pelo menos em minha ótica. Enquanto alguns amargam a vida de outros, pessoas como estes três
homens amenizam suas asperezas; e há muitos deles na Igreja. São de um tipo que faz a gente ver o reino de Deus como algo real pelo qual vale a pena lutar. Além do mais, os três me viam e me tratavam como merecedor de respeito. Recebi deles o que não havia recebido de outros. Um deles, o Dr. Hélio Conceição, de vez em quando ainda me telefona só pelo gosto de ouvir minha voz e falar comigo. Sempre que me liga, me saúda nestes termos: “Grande mestre!”. Então, sei que é ele. Aqueles três homens nunca poderiam ter uma visão concreta da influência que exerceram sobre mim. Machucado, estropiado, quase já calejado e insensibilizado pelo sofrimento, eles surgiram como se fossem um oásis em pleno deserto. Sua polidez, cultura, espírito solidário e fraterno, devoção ao reino de Cristo, eles passavam nitidamente uma confiança e lealdade que eu vira pouco naquele ambiente. Eu sentia que eles se interessavam em falar comigo. Não eram como alguns que tudo faziam para ignorar-me e alijar-me em meu próprio universo.
2. Dr. Ciro Aguiar Logo o Dr. Ciro Aguiar foi convocado a assumir a presidência do Instituto Mackenzie, e deixou nossa companhia. Pouco depois, numa de suas visitas à Editora, ele me fez a seguinte pergunta: “Valter, há algo que eu possa fazer por você ou sua família?”. Então lhe respondi: Minha esposa Cremilda é pedagoga e procura trabalho, porém é rejeitada pelas escolas, só porque seus diplomas são de Goiás e de Minas Gerais. Ela inclusive fez especialização na área da pedagogia; mas, para São Paulo, tudo isso não passa de lixo. Então respondeu de modo sucinto e cortês, como lhe era peculiar: “Encaminhe-me seu currículo o mais depressa possível”. Resumindo, poucos dias depois, Cremilda passou a ser funcionária do grande Instituto Mackenzie, e lá permaneceu por mais de dezesseis anos. Agora seu salário era maior que o meu. Em termos financeiros, nossa vida mudou consideravelmente. A figura do Dr. Ciro Aguiar se projetou no cenário de nossa vida familial de uma maneira gigantesca. Nunca nos inteiramos de sua grandiosa história pessoal, porquanto residia em Piracicaba e era presbítero de uma das igrejas ali. Nossa oração sempre foi que ele e família fossem abençoados pelo Senhor da Igreja. Nem sabemos se ele ainda é vivo.
3. Sob o domínio de ímpios Cremilda e eu nem de longe imaginávamos em que campo de batalha ardente ela se ingressava. A cosmovisão em que ela vivera até então como professora sofreu uma terrível reviravolta. Ali ela viveria outro universo cultural; provaria as amargas setas da perseguição, da discriminação feita pelos ímpios, os quais eram postos acima dos justos; esses se aproveitavam de seu posto superior para massacrar, anular e destruir os que pensavam diferentemente, em particular os que professavam a fé evangélica. Naquela escola de origem tão gloriosa e edificante, calcada nos moldes e princípios evangélicos, jamais pensamos que vicejasse e dominasse todo gênero de mal. Ali os santos eram massacrados pelas mãos férreas dos perversos que eram postos como seus superiores. Não era a instituição propriamente dita que agia assim, e sim alguns dos que ela punha em postos de grande culminância. Dito com propriedade, a direção não se componha de pessoas de real temor de Deus. No entanto, Cremilda deixou ali uma profunda influência de retidão e perseverança na vereda do bem e do testemunho cristão. Aqueles algozes que tanto a pisaram tiveram seu tempo de punição. Tudo indica que o Mackenzie aprendeu a dura lição de deixar suas rédeas nas mãos de pessoas perversas e as entregou nas mãos de homens e mulheres tementes a Deus. Aprendemos nas histórias dos reis de Israel que, quando se levantava um rei perverso e que pervertia a religião e o direito da nação, todo o povo gemia; e quando se sentava no trono um rei piedoso e temente a Deus, a nação também descansava e prosperava pela regência da boa mão de Deus.
4. Retoque oportuno Cabe-me afirmar com justiça que o Mackenzie, como instituição, veio a ser uma grande bênção em nossa vida. Além do mais, com o salário razoavelmente bom que Cremilda recebia, ela economizou para a aquisição de nossa primeira moradia. Adquirimos nosso apartamento na Rua Clélia, no grande bairro da Lapa, e isso com o abençoado salário que ela recebeu dos cofres do Mackenzie. Somos gratos a Deus, acima de tudo, ao Dr. Ciro Aguiar, ao próprio Instituto Mackenzie, pela grande oportunidade que ela
teve ali de dar testemunho de uma fé robusta e genuinamente cristã, desconhecida de tantos. Somos gratos ainda porque nossa filha Wânia continua ali como professora, com a mesma arma da fé e bom testemunho com que ela tem exemplificado. Hoje nossa filha Eline é também funcionária do Mackenzie do Tamboré e três de nossos netos são alunos naquela abençoada instituição. O lado negativo que narrei não se deve à instituição, e sim a funcionários que ela manteve ali no passado e que coube à Cremilda enfrentar como parte da escola de nosso Senhor Jesus Cristo. Ao universo Mackenzie tiro o chapéu com reverência. Quer no Instituto, quer na Universidade, tenho alguns amigos. Quero crer que nas bibliotecas daquelas entidades figuram algumas de minhas traduções, as quais são compendiadas pelos alunos principalmente do Andrew Jumper. Sendo assim, minha colaboração com a educação teológica chega também aos grandes centros educacionais do país. Isso foi sendo feito pela divina Providência que nunca é insone para com os que esperam por ela.
FALÊNCIA DA EDITORA CULTURA CRISTÃ 1. Transição conturbada 1.1. Declaração necessária Cumpre-me confessar que o presidente do período anterior conduzira a casa com muita habilidade administrativa. Saiu deixando tudo em ordem. Inclusive voltou atrás e me reembolsou da mudança de Goiás para São Paulo, depois que coloquei as cartas outra vez sobre sua mesa, numa circunstância bem distinta e favorável. 1.2. Nova diretoria Então o Supremo nomeou para a presidência da editora um homem de muitos requisitos, doutor em administração, porém de um comportamento extremamente estranho na gerência da casa. Posso viver mil vidas que jamais conseguiria compreender a filosofia e administração daquele preclaro
homem, e nem como o Supremo teve a ideia de colocá-lo como diretor/presidente daquela casa. Quando pensava ver a casa prosperar, eu a via soçobrar. Depois de estar ali por quatro anos, sabia suficientemente bem do que ela precisava para prosperar. Nossas reuniões eram pesadas. Ver o diretor/comercial se digladiando com o presidente, e eu no meio do tiroteio, para mim era um verdadeiro martírio.
1.3. Importante papel da política eclesiástica A administração de qualquer instituição sem o uso da política é praticamente impossível. Política em si é uma ciência, é boa e necessária. Aliás, o dicionário diz que política é a “ciência de governar; governo, administração”.[23] O mal da política é quando de ciência administrativa ela se converte em manejo da instituição para benefício particular. É uma lógica massacrante que uma instituição mal administrada, em vez de prosperar, mergulha no caos e, por fim, se esfacela. De onde se tira sem repor pelo menos o equivalente tirado, é impossível evitar que o rombo aumente. E isso foi o que sucedeu com a Editora Cultura Cristã em minha última etapa ali. Ainda quando eu fosse o diretor/editor, não posso eximir-me de igual culpa em sua falência. Ainda quando eu visse que o barco fazia água, contudo estava indo para o fundo juntamente com os outros diretores e toda a casa.
1.4. Honestidade sem capacidade Cabe-me dizer com justeza que aquele homem não era malintencionado nem desonesto. Não era incapaz. Era visionário e não conhecia a realidade da empresa. Ele interpretou mal a instituição a que ia governar e deu-lhe uma diretriz totalmente errônea. No dizer de Jesus, ele não se assentou para calcular bem a capacidade real da instituição. Ele agiu como um autocrata e ignorou a participação dos outros diretores. Por exemplo, antes de chegar, por telefone passou-me ordem como seu subalterno. Isso nunca funciona positivamente. Pois assim que chegou já me encontrou indisposto para com ele. O fato é que ali mesmo teve início o declínio daquela abençoada instituição, declínio que continuou com sua destituição e a nomeação de outro. Este também não teve capacidade nem condição de aprumar as
finanças da editora. Quase só cuidava de manejo político. Tudo o que fazíamos servia para piorar ainda mais a situação, até que veio a bancarrota completa, e a Editora Cultura Cristã faliu fragorosamente. Na verdade, não fechou suas portas, mas ela teve que destituir-nos como seus diretores e nomear outros, começando da estaca zero. Não houve improbidade administrativa, e sim incapacidade de dirimir seus erros acumulados. A única coisa viável que o Conselho Administrativo da Editora tinha que fazer ele fez: reportar-se ao Supremo Concílio para que fôssemos destituídos. Até aí, tudo bem.
1.5. Novo personagem em meu caminho Naquele período conturbado, porém, uma figura de destaque em minha vida e ministério, desde muitos anos, foi a pessoa do Rev. Gecy Soares de Macedo. Quando de minha passagem pela igreja de Pirapora, Minas Gerais, lá estava ele, querendo cursar o IBEL, e fez isso com todo nosso apoio. Desde então, passamos a ser um para o outro não apenas amigos, mas irmãos. Celebrei seu casamento; acompanhei-o no seminário; acompanhei-o em seus campos; levei-o a trabalhar comigo na Editora, como meu auxiliar. É difícil conceber uma pessoa mais constante em sua meta do que o Rev. Gecy. Mesmo depois de minha saída daquela casa, ele continuou lado a lado comigo em minhas tribulações — e que tribulações! Ele nunca levou em conta minhas rudes ofensas contra sua pessoa, em meus momentos de desvario e desterro. Ele ajudou-me a sair de um dos piores problemas que podem atingir a vida de um homem, particularmente a vida de um homem que está a serviço do Eterno. Em meus momentos mais escuros, lá estava ele, sempre com uma palavra de ânimo, sem jamais me recriminar. Ele sempre acreditou em minha idoneidade. Nunca soube que ele buscasse meu descrédito. 1.6. Membro do Conselho de Imprensa Durante aquele período escuro, eu chegara a ser membro do Conselho de Imprensa. O jornal Brasil Presbiteriano também sofrera uma refrega desastrosa. Ficou de mãos em mãos, sem encontrar solução plausível. Passou a ser usado como mero instrumento de uma política ruim. E eu, o diretoreditor sertanejo, fiquei aí no meio do tiroteio. Se não houvera aprendido a
olhar para mais longe, para o futuro e para o alto, teria sucumbido. Mas sempre me afeiçoei à história de José, que olhava para o futuro em todos seus transes desesperadores, esperando dias melhores e mais claros. Posso chamar aquele período de penosa escola onde se aprende os deveres de casa. Não posso e nem quero entrar naqueles detalhes que destroem não só uma instituição, mas os próprios indivíduos. Estes costumam perder perenemente seu prestígio. E quando se perde este tesouro, chamado prestígio, perde-se quase tudo. Se os bons feitos costumam ser esquecidos, os malfeitos costumam ser lembrados para sempre. O perdão perfeito só tem uma fonte — o Deus infinitamente compassivo. Ninguém perdoa perfeitamente, porquanto somos imperfeitos ao longo de toda nossa trajetória terrena. A Santa Escritura afirma que Deus perdoa e esquece (Sl 103.3,12). Mesmo assim, o Senhor perdoa para sempre a culpa do pecado, e não suas consequências. Essas nós levamos conosco para o futuro como alunos de sua escola. No tocante aos seres humanos, seu perdão é demasiadamente deficitário, pois estes não esquecem o mal recebido. Dizem: “Está perdoado”. Porém não param de se queixar daquelas ofensas que declaram haver perdoado. Digo isto porque, depois daquelas coisas, fiquei estigmatizado para sempre à vista de um grande número de pessoas importantes.
2. Algo grande jazia à minha espera Eu sentia que tudo aquilo não era meu “destino” definido e final; era apenas uma transição passageira; o Senhor da Igreja me preparava para algo maior, ainda que não o compreendesse no momento. Vivia constantemente tentando responder a este tipo de perguntas: Por que fui empurrado para cá? Teria sido por acaso? Porventura não há uma razão definida para tudo isso? O sofrimento humano tem um fim em si mesmo? Pois me sentia como que em um cadinho a derreter-me, a consumir-me, sem entender imediatamente o porquê de tudo aquilo. No entanto, quando deixei aquela instituição, as coisas já estavam em melhores mãos. O Senhor tinha um propósito para a Editora e igualmente para cada um de nós, diretores e funcionários.
3. O substrato de minha preparação
3.1. Antecedente editorial Depois de passar a ser o editor legalmente autorizado, procurei realizar aquilo que não conseguira até então. Foi quando dei início a um programa de obras reformadas, partindo da publicação da coleção de Comentários do Novo Testamento, de William Hendriksen. Cheguei a traduzir e publicar Romanos, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses (traduzido por Ézia Cunha Mullins), Tessalonicenses (com participação de Hope Silva) e Pastorais, e deixei traduzido Mateus (2 volumes). Traduzi ainda seu livro de estudos escatológicos, A vida futura segundo a Bíblia. Depois de minha saída ainda traduzi Lucas (2 volumes) e Apocalipse de Simon Kistemaker e revisei o Evangelho de João para o novo editor que me substituiu. Lembrando que minha primeira tradução foi Mais que vencedores. Fiquei animado quando soube que o editor que me sucedeu, muito mais apto que eu, graças ao Senhor da Igreja, dera seguimento ao meu programa. Hoje me emociona contemplar na estante toda a obra do NT completada, dos grandes teólogos William Hendriksen e Simon Kistemaker. Valeu a pena meu empreendimento tão elementar. 3.2. Confissão necessária Deixo registrada aqui minha confissão de que jamais pensei que estava apto para a tarefa de fazer livros. Saí do nada, fiz minha trajetória no quase total anonimato; comecei a produzir livros como um homem totalmente às sombras. Apenas sei que o Senhor me chamou para realizar algo grandioso, e não para ser conhecido e reconhecido. Sempre me considerei um leigo e trabalhador braçal. É assim que me denomino até hoje. Mas sempre nutrira e ainda nutro um ideal que suplantava ao de todos os editores daquela Editora até então: publicar as obras de João Calvino.
3.3. Falta de respaldo Sim, havia algo que eu queria fazer e nunca tive o respaldo de alguém para fazê-lo. Todo livro que eu publicasse, ou mesmo traduzisse, ainda não me acalentava. Havia outro livro a ser publicado; e com quem falasse a respeito, era desestimulado, como que tentando o impossível e inclusive desnecessário. A própria Igreja nacional sempre viu isso como uma
impossibilidade. Mas eu estava destinado a cumprir essa minha meta depois que saísse dos domínios da Editora Cultura Cristã. Por isso sempre dei graças, e ainda faço isso, ao Senhor por minha saída daquela amada instituição mesmo sendo tumultuada. Aquela escola durou oito longos e dolorosos anos. Pior, nunca fui um bom aluno. No entanto, todos foram meus professores, quer bons, quer ruins!
3.4. Fim de curso sem diploma Retrocedendo a um passado já distante, compreendo que minha continuação ali já não era necessária; meu período de aprendizado chegava ao fim. Fui correta e ditosamente substituído por alguém que possuía e possui todas as qualificações de um genuíno editor; e eu, por minha vez, fiquei livre para fazer a última tentativa de ver concretizado meu antigo sonho. Como poderia eu guardar mágoa de alguém, se Aquele que estava acima de todos me destinara à concretização de um sonho acalentado há tantos anos, e que humanamente era impossível? E então chegou o tempo de Deus. A Providência conquistava a vitória.
4. Deposição tumultuada Foi nas dependências da Universidade Mackenzie que se reuniu a Ordinária do Supremo Concílio em meado de 1994, quando a diretoria da Editora Cultura Cristã, de 1990 a 1994, foi dissolvida e punida. Ao saber que eu estava sendo punido pelo Supremo por um crime que não havia cometido; isto é, não participara de nenhum esbulho do erário alheio, nem eu nem meus colegas; o que houve foi incapacidade administrativa de reverter uma situação já criada por outros, então decidi afastar-me do seio de minha amada Igreja Presbiteriana, entregando minha carteira de ministro, solicitando minha exoneração do ministério sagrado e a exclusão de sua membresia. Continuaria presbiteriano, sim, no coração, porém me afastaria daquela igreja que fora minha mãe desde meu encontro com o evangelho em 1958.
4.1. Punição injusta
O plenário já havia aprovado o documento punitivo: em quatro anos não poderíamos exercer nenhuma função em qualquer área da Igreja. Ao ser informado disso, gritei furioso que doravante continuaria presbiteriano sem ser membro da IPB, porquanto minha alma sentia repugnância de tamanha injúria. Não que eu pretendesse exercer alguma função futura em algum setor da Igreja, porquanto meu coração não está posto nessas coisas. Aliás, sou completamente avesso à política hierárquica. E assim, furioso, deixei o pátio do Mackenzie determinado a tomar uma medida drástica. Ao ser informada de minha reação, houve um reboliço na Mesa. O Plenário repensou e voltou atrás de sua decisão. E eu continuei na Igreja que um dia me acolhera e me abraçara na nova fé. Mesmo assim, doravante me tornaria ainda mais arredio e frustrado no que tange à política eclesiástica. Não obstante, deixo aqui expresso e impresso, para que minha amada Igreja tenha ciência, que nunca me vali do púlpito para desabafar-me contra sua direção máxima. Não sinto mágoa de ninguém, sinto tristeza por hoje ser tratado de modo discriminativo por quase todos, de viver uma vida cristã reclusa e quase proscrita, de viver como um exilado. Na verdade, fiquei para sempre estigmatizado.
4.2. Companheira solidão Vivo praticamente sozinho, em minha “oficina”, elaborando meus livros. Não sou o único. Lemos de Beethoven que morreu sozinho, tido como louco, enquanto produzia as mais belas e clássicas composições musicais que o mundo já conheceu. Talvez um dia perguntem: “Quem traduziu todas estas obras de João Calvino?”. Alguém responderá: “Foi um maluco!”. “Ele já morreu?”, perguntarão. “Ainda não, mas jaz em algum canto curtindo a velhice no anonimato como um exilado. Nem se tem notícia dele.” Ou: “Sim, morreu há muito tempo, mas nos deixou esse tesouro literário. Dele, só isto restou”. Os que tiveram comigo uma convivência mais estreita dirão que “aquele homem só era suportado pela esposa em cumprimento de seu ofício”. Uma das canções brasileiras mais belas que já ouvi e ainda ouço é aquela que veio a ser o hino da cidade de Piracicaba, SP, cujo compositor quase nem é lembrado: Newton de A. Mello. Em diálogo com um amigo
piracicabano deste homem, cujo nome se tornou famoso, o qual nos legou uma tão bela canção de amor à sua querida cidade, este amigo me afirmou que, já idoso, ele costumava caminhar pelas calçadas sem sequer ser saudado pelas novas gerações piracicabanas. Todavia, esta canção, uma das mais belas e dolentes já compostas, tem sido entoada por grande parte dos cantores do Brasil. Newton é hoje praticamente desconhecido, mesmo na cidade de Piracicaba, porém legou algo perpétuo, de eterna memória, não só à sua cidade, mas a todos os amantes da boa música: “Piracicaba que adoro tanto!”.
4.3. Senso de desespero Ao ver-me fora daquela Editora, todo o universo despencou sobre minha cabeça e bateu-me o desespero. A tendência era o cultivo do ostracismo. Então, experimentei o que significa ver o mundo com olhos céticos e de desencanto. Foi quando senti que a pessoa que exerce aquela fé única, cuja fonte de informação é a Santa Escritura; aquela fé que olha fixamente para Jesus; sim, esta é a única pessoa que pode contar com a vitória. O texto completo reza: Olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossas almas (Hb 12.2, 3).
4.4. A fonte divina que sara Costumo dizer que não existe depressão humana que resista a uma leitura detida e constante deste glorioso texto. Jesus suportou em si mesmo toda nossa carga de sofrimento no Gólgota e fora do Gólgota. Ele fez isso com o intuito de sarar-nos, restaurar-nos, suplantar todos os obstáculos do caminho. E alguém disse com razão que os períodos de serenidade não nos ensinam nada. Que somente as lições pesadas da vida é que nos deixam lições instrutivas. Estas são os crivos que tendem a burilar-nos o caráter. Dou
graças ao Senhor por esses crivos saudáveis, os quais, no momento, são difíceis de enfrentar e passar por eles. E esses crivos nos fazem entender o quanto somos frágeis. Aliás, nossa vida não passa de um fio mui fácil de arrebentar. É nos profundos conflitos da vida terrena que descobrimos se realmente procede o conceito de que o ser humano é glorioso, poderoso, inclusive soberano em sua liberdade e vontade. Alguém bate no peito, olha ao redor com olhares airosos e afirma com toda segurança e confiança: “Eu sou livre; faço de minha vida o que bem quiser; ninguém me impede; eu sou meu próprio senhor”. Logo adiante tropeça em um nada e morre. Na realidade, somos senhores de nada! Nada é realmente nosso. Nossa liberdade não passa de uma quimera, uma miserável ilusão. O que faremos de nossas glórias depois de mortos? Que poder temos sobre nossa vida depois que nosso corpo baixar à sepultura e nossa alma voar para Deus?
5. De volta a São Bernardo do Campo Como eu já disse, ao deixar a Editora, senti-me esmagado por um peso que me era impossível carregar. Se eu estava em casa, queria sair; se saía, queria voltar. Olhava para o horizonte, e nada via que me alentasse. Pior, sem salário, tinha que ver minha esposa sustentando a vida familial. Ela me passou às mãos cartão e talão bancários. Caducaram, pois nunca os usei. Quem pagava a conta do combustível era ela; quem pagava todas as demais contas era ela; quem punha o pão na mesa era ela. Economizei muito não comprando roupas e calçados novos. Deixei de fazer o que mais gostava — comprar novos livros. Tínhamos piano em casa. Eu passava horas a fio “arranhando” no teclado aquelas músicas que tanto apreciava. As que mais eu tocava eram aquelas que tangiam meu coração com mais profundidade.
5.1. Sustentáculo da Providência Foi nesse tempo que a Primeira Igreja Presbiteriana de São Bernardo do Campo me convidou para que fosse outra vez seu pastor auxiliar. Estive lado a lado com o Rev. Magnos, com o Rev. Wilson Bonadio; ambos renunciaram antes de completado seu pastorado. Em todos aqueles contratempos, eu estava ali conciliando as crises. Naquele meio tempo, o conselho chegou a convidar-me que fosse seu pastor titular. Recusei
terminantemente. Foi então que lhe sugeri que convidassem o Rev. Alceu Davi Cunha, que ora era pastor em Santo Amaro. Ele pastoreia aquela igreja até hoje. E foi assim que aquela igreja veio a ser meu lenitivo e refúgio. Fiz um vasto lastro de amizade com muitos; amizade que perdura ainda.
5.2. Amigos nas grandes crises O Conselho era composto de homens probos e amigos. Até hoje tenho aquela igreja como a minha igreja. Estivemos ali mais ou menos treze anos, e de vez em quando volto a receber convite para alguma preleção em seu púlpito só para estarmos juntos. Três desses presbíteros fariam história comigo. Primeiro, é Moisés Bergamaschi, daquela mesma família fundadora da igreja, que, órfão de pai e mãe, em um dia dos pais me abraçou e disse: “Pastor, decidi adotar o senhor como seu pai”. Tenho também a Lívia, sua esposa, como minha filha e suas filhas, Rebeca e Júlia, como minhas netas. Os outros dois são Lauro Benedito Medeiros da Silva e Denivaldo Bahia de Melo, que viriam a fazer parte do projeto João Calvino. Isto, porém, pertence a um capítulo específico.
SÉTIMA PARTE: NASCEM EDIÇÕES PARAKLETOS
1. Primeiro computador Salvo engano da memória, foi em meu aniversário de 1995 que Cremilda me presenteou com o primeiro computador. Evidentemente, era ainda uma máquina de muito menos recurso do que a de hoje. O modo de gravar era por meio de disquete, frágil e de pouca duração. Passei um bom período treinando como operar aquele inusitado tipo de máquina. Acostumado com a máquina datilográfica, operar naquele novo aparelho era algo assustador e um martírio. Aliás, foi um período de muita labuta, porquanto sou até hoje avesso à nova tecnologia com sua infindável complexidade. Mas, aos poucos, fui descobrindo que a mente humana não tem limite para a criatividade. Aos poucos fui dominando a operação daquela máquina. A Providência continuava permeando tudo e me encaminhando para o clímax.
2. Primeiro Livro Sempre nutrira o desejo de escrever um livrinho, porém sempre embaraçado pelo terrível pessimismo quanto à minha capacidade. Há na Bíblia uma metáfora que desde cedo me fascinara: a figura do Livro da Vida, no qual se acham registrados, desde a eternidade, os nomes de todos quantos haviam de ser salvos (At 13.48) pelo Cordeiro de Deus. Tudo o que lia sobre esta metáfora não me satisfazia. Não havia uma resposta para o amplo e profundo significado dela. Mesmo os reformadores não falam detidamente sobre ela. Sentia que havia muito mais a dizer sobre nosso nome estar ali registrado. Era aquilo que os teólogos chamam de “corolário”. (Proposição que deriva, em um encadeamento dedutivo, de uma asserção precedente, produzindo um acréscimo de conhecimento por meio da explicitação de aspectos que, no enunciado anterior, se mantinham latentes ou obscuros.) [24] Passei a esboçar e a desenvolver aquela ideia. De repente, ali estava um livrinho até razoável. Mas não tinha recursos para publicá-lo. Naquele momento, eu nem mesmo podia contar com Lauro e Denivaldo, pois ainda não haviam surgido em minha vida como associados. Edições Parakletos ainda não haviam vindo à existência. Cremilda, mais uma vez, economizou e custeou sua publicação. Assim, estava diante de todos nós meu primeiro livrinho. Como nunca desfrutara de popularidade e nunca inspirara confiança na maioria das pessoas, o livrinho foi ignorado. Levou tempo para esgotarse. Foi então que descobri o quanto era desconhecido, mas também o quanto era sem prestígio. Mas ali estava um humilde começo, usando a metáfora do profeta (Zc 4.10). Hoje eu o reescrevi e o reeditei com mais consistência e mais amplitude. No lugar certo abordarei o assunto com mais completude.
3. Primeira publicação de João Calvino 3.1. Motivação Sinto o dever de abrir este espaço com uma explicação oportuna e indispensável. Tenho que responder eu mesmo a uma pergunta que possivelmente baile na mente de algum leitor: Por que minha insistência em publicar as obras de João Calvino? É uma pergunta que eu mesmo fiz
durante tantos anos já passados. Com quem eu falasse a respeito, fomentavase a ideia de que eu sou fanático pelo Reformador genebrino. Por incrível que possa parecer, essa não é a resposta correta. Não me considero “fanático” por João Calvino. O dicionário define fanatismo assim: “facciosismo; adesão incondicional; partidarismo; devotamento; zelo excessivo; paixão desvairada; arrebatamento; frenesi; obstinação; teimosia”. [25]
Algumas definições se enquadram bem em meu desejo e empenho, porém outras são excludentes. Por exemplo, minha adesão à ideia desde cedo foi incondicional; e meu devotamento foi de corpo e alma. No entanto, não me lancei à obra de olhos fechados; nunca cri e ensinei que João Calvino fosse infalível em sua interpretação da Bíblia. Aliás, há muitos detalhes em sua visão bíblica e teológica que discrepam da investigação moderna, ainda que em detalhes irrelevantes. No entanto, essas discrepâncias em nada ferem seu ensino das grandes doutrinas. O mundo teológico ainda considera João Calvino como o teólogo por excelência, o exegeta ímpar, o apologeta irresistível. Considera-se que, depois de Paulo, ou, talvez, depois de Agostinho, Calvino foi o teólogo mais fiel ao sentido da Santa Escritura. Todos os que o contestaram tiveram e têm problemas em justificar sua tese. Um detalhe que sempre me impelia a ver as obras do Reformador em nosso idioma é seu aspecto controverso. Ninguém fala de Martinho Lutero o que falam de João Calvino. Ao longo da história, este homem foi alvo de todo tipo de acusações, desde as pequenas até as criminosas. Ele tem sido culpado de ser o assassino de Miguel Serveto, de ser o pai do capitalismo e de ser o inventor da predestinação. Em minha visão pessoal, essa é uma maneira mesquinha de focalizar o grande Reformador. Para que tenhamos fontes diretas em defesa de tais acusações, nada mais preferível do que o exame de suas próprias obras em nosso idioma. Eu o tenho como o maior teólogo depois de Paulo; considero-o como um dos cristãos mais piedosos e humildes que a religião de Jesus já produziu; vejo-o, ao lado dos demais reformadores, como um homem de caráter ilibado. Então, meu desejo lúcido sempre foi que o Reformador genebrino fosse lido na própria fonte a fim de que, quem quiser discordar dele, e para que todos tenham o direito de fazê-lo, então que o façam de acordo com o adágio popular e rústico: “Eu mato a cobra, e mostro o instrumento com que eu a matei”. Nem a história, nem suas obras e nem seus intérpretes abonam
invenções tão infamatórias. Este é um produto proveniente da mentalidade obsessiva e avessa de seus inimigos. Tenho ainda como justificativa a fé calvinista dos presbiterianos, de muitos batistas, por exemplo, existe no Brasil a Igreja Batista da Graça, que é tão calvinista como nós; a Igreja Cristã Reformada e muitos calvinistas avulsos, que se encontram em igrejas de confissão arminiana, porém já não conseguem crer dessa forma. Além do mais, faço isso com o intuito de dar oportunidade a muitos cristãos que, com a leitura do Reformador, poderão ver que nossa interpretação da Bíblia é a mais bíblica que existe. Por último, tenho sido acusado de ressuscitar “velharias”. Já me disseram que eu faria bem em deixar as coisas antigas em paz. Tudo isso me assusta pela estupidez de tais ideias, pois existem entidades que buscam restaurar as literaturas antigas, e fazem isso com um zelo e empenho admiráveis, e ninguém os censura. Para essas entidades, quanto mais antiga é uma obra literária, mais valiosa é. Além do mais, nunca vi alguém criticar o empreendimento da cultura brasileira por publicar no vernáculo as obras dos grandes pensadores antigos e modernos. Por exemplo, os pensadores gregos já estão editados em nosso idioma e têm corroborado com nossa cultura acadêmica. Nunca vi alguém criticar a igreja romana por verter as obras dos antigos teólogos, chamados “Pais da Igreja”, como Agostinho, Tomás de Aquino, entre tantos outros. Nunca soube de alguém que criticasse a Igreja Luterana por verter as grandes obras do gigante da Reforma, Martinho Lutero. Por que João Calvino deveria ser o único clássico a permanecer no cenário antigo, em silêncio, sem ser conhecido pessoalmente através de suas obras grandiosas? Tenho sabido que muitos dentre os sacerdotes romanos estudiosos têm compendiado João Calvino em português. Mais grave ainda, a crítica contra publicar as obras do Reformador é oriunda dos domésticos da fé reformada, a saber, os de casa! Portanto, creio que terei o endosso de todos os estudiosos cristãos e não cristãos por facultar a todos a leitura de João Calvino em nosso vernáculo. Quem me declarou isso foi um dentre os doutores da igreja, da máxima erudição e seriedade, agradecendo meu empenho e enaltecendo nossa época por poder ler o Reformador genebrino no vernáculo. Isso reforça minha declaração por toda parte neste livro de que meu pesar é que suas obras estejam sendo vertidas para o vernáculo não por mãos de eruditos, e sim de um leigo; não por uma editora oficial, e sim numa
“oficina de fundo de quintal”. Apesar das imperfeições de meu trabalho, creio que, mesmo assim, é uma grande bênção para os estudiosos já terem em suas estantes muitos volumes das obras do Reformador genebrino. Finalmente, tenho descoberto que no mundo inteiro de fala portuguesa milhões de pessoas estão compendiando João Calvino através do livro físico e da mídia. Minha esperança é cooperar para agigantar a fé dos calvinistas e servir de ponte para que os cristãos que pensam diferentemente façam um exame mais detido e demorado, e assim corrijam e melhorem sua visão teológica, a fim de que a sã doutrina ainda triunfe antes que o Senhor da Igreja venha! Na opinião de um erudito e grande amigo, o Brasil ainda será palco de uma grandiosa reforma através de João Calvino.
3.2. Primeiro passo Entrou o ano de 1995 e eu não tinha mais uma fonte de renda e nem compromisso fixo com nenhuma empresa ou igreja. E assim, vendo-me livre, idealizei traduzir o primeiro compêndio de João Calvino. O leitor perceberá que não houve de antemão nenhum projeto elaborado. No momento, não havia ninguém comigo. Não formei um conselho editorial para discutir futuras publicações. Simplesmente partilhei a ideia com alguns amigos íntimos, apenas com o intuito de revelar meu desejo. Não havia em mim nenhuma pretensão além de ver como ficaria em português uma das obras do Reformador, uma vez que a primeira versão das Institutas deixou a igreja como estava, a saber, jejuna das obras do Reformador. Quem aspirasse ler João Calvino, continuaria com a mera vontade. Não me assentei com ninguém para discutir e delinear o futuro. Nem imaginava que aquela tradução pudesse ser publicada um dia. Portanto, hoje, olhando para trás, percebo que, naquela informalidade, havia um perene começo que nenhum ser humano poderia nem de leve perceber. Era uma ideia e um ato isolados, quase que únicos. A igreja, propriamente dita, nem sonhava que algum aventureiro tomara a iniciativa para executar uma obra tão grande. Aquela iniciativa estava imersa na nulidade. Não havia nenhuma possibilidade humana que apontasse para esse rumo. Não havia a cultura necessária, nem poder aquisitivo, nem espaço suficiente, nem estímulo vindo de fora. Os poucos amigos que me ouviam, apenas ouviam em silêncio. Ninguém me falou ou sugeriu nada. Não havia um dedo a indicar o rumo a seguir.
Tampouco eu ouvia uma voz vinda do alto a dar-me as coordenadas. Havia simplesmente em meu interior uma vontade irrefreável de agir. Eu nunca disse: Sonhei! Ou: O Senhor me falou. Eu tive uma revelação! Alguém me profetizou! Não! Creio que o Espírito de Deus operava nas penumbras de minha mente e coração sem nenhuma manifestação miraculosa. Ele fertilizava minha vontade de fazer algo que ele queria que eu fizesse. Foi assim que nasceu o primeiro volume das obras do Reformador genebrino: como que do nada!
3.3. Segunda Epístola aos Coríntios Não sei exatamente por que, mas tomei o volume da Segunda Epístola aos Coríntios dentre alguns poucos comentários do Reformador que eu possuía nas estantes e comecei um arremedo de tradução; no entanto, sua linguagem era muito difícil, visto que a linguagem inglesa de suas obras é clássica, antiga e muito pesada. Como é uma das obras do Reformador menos extensas, concluí que iria cansar-me menos, pois meu inglês naquele momento era sofrível. Antes de tudo, abri aquele volume, passei os olhos nele por inteiro, ponderada e demoradamente, e imaginei pessoas e mais pessoas lendo-o no vernáculo. Lembro-me que a emoção foi dominando minha alma e de repente me vi chorando. Lembrei-me dos dias da infância, lendo um livrinho escolar, tendo numa das páginas três gravuras muito sugestivas, as quais jamais saíram de minha mente. Na primeira gravura, aí se veem dois burrinhos amarrados pelos pescoços, tentando alcançar uma moita de capim em cada extremo, cada um tentando arrastar o outro, mas eram impedidos pelo tamanho da corda — era muito curta. Na segunda, os dois burrinhos, de frente um para o outro, se põem a confabular para encontrar uma solução viável para um problema tão premente — saciarem sua fome. Na terceira, os dois, lado a lado, comem uma moita de cada vez — e assim sua fome foi saciada. Quanto a mim, a diferença é que eu era um burrinho sozinho, a moita de capim era uma só e a corda estava atada a um tronco, e não ao pescoço de outro burrinho. Era preciso uma mão forte para desatar a corda e juntar-se a mim naquele trabalho humanamente impossível. No início, eu não via ninguém perto de mim. Sentia-me em um ermo árido. Portanto, informo a todos os meus leitores que João Calvino em português nasceu na mais plena solidão
de um indivíduo que nem tinha condições e capacidade para a realização de sonho tão quimérico.
3.4. Entram em cena dois grandes amigos O empreendimento era de caráter amador, pois nem mesmo eu cria que um dia seria possível publicar aquele modesto trabalho. À medida que avançava, partilhava com os colegas presbíteros, Lauro e Denivaldo, minhas peripécias de tradução. Sem que eu percebesse, aqueles diálogos foram se entranhando neles e os motivando (ou, quem sabe, os apiedando de minha sorte!). Trocando ideias entre si, resolveram ajudar-me a publicar aquele volume. Na época, Denivaldo possuía uma livraria, o que facilitaria a estocagem e a vendagem. Certo dia, eles me chamaram para trocarmos ideia sobre aquela tradução. Então me disseram: Você traduz e nós custeamos. Financiaremos a despesa de gráfica.
3.5. Injeção de ânimo Aquela proposta me injetou um novo entusiasmo. Minha mente começou a idealizar um futuro mais promissor. Minha vista se alongou e pude ver um horizonte mais amplo e límpido. Meu coração se encheu de esperança. Até então, causava-me angústia ver que tal façanha era possível, porém me via impossibilitado pelo despreparo e pela escassez de recursos. O Senhor não me dera nem preparo intelectual nem recursos financeiros. Não estaria publicando livrinhos, e sim livros de grande porte. Os que podiam fazer este trabalho com perfeição não acreditavam em sua exequibilidade e utilidade. Já havia discutido com alguns doutores da Igreja, e eles viam minha ideia como simples quimera. Não riam de mim por mero respeito. O único valor, diziam, que poderia haver seria na esfera acadêmica, e mesmo assim muito pequeno. Quem produzisse um material como este ficaria com um estoque a apodrecer num depósito. Eu não via assim, porém não conseguia fazê-los ver com a mesma clareza que estava dentro de mim, pois nunca fui bom de argumento verbal. O inusitado é que aqueles dois colegas presbíteros acreditavam em mim e decidiram se irmanar comigo. O Senhor punha em seu interior a mesma visão que sempre tive. Eles são minhas testemunhas de que a iniciativa para tal empreendimento não procedeu de
nenhuma editora; mas de um homem avulso, desconhecido, de formação campestre e rude.
3.6. Impacto de cosmovisões Então, diante daquele pequeno computador, escarafunchando uma coisa e outra, dei início e avancei na tradução do comentário de Calvino, em inglês, da Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios. Foi-me aterrador compendiar um livro num idioma praticamente impossível de assimilar. Meu pobre inglês ainda estava longe de realizar tal façanha, muito embora já houvesse traduzido cerca de quinze volumes de outros livros. Visualizava meu pobre universo existencial e volvia os olhos para o universo da erudição do grande Reformador genebrino. Pensava: Sem um milagre divino, é impossível adentrar o universo desse gigante da Reforma. Viriam dias em que eu choraria com profunda tristeza minha carência de uma cultura acadêmica. Nem mesmo Cremilda assistia meu abatimento de espírito, pensando na amplitude das obras do Reformador genebrino. Era algo demasiadamente grande. Não era uma pequena coleção de livrinhos. Só os comentários bíblicos somam uma coleção de 22 volumes de cerca de mil páginas cada volume, fora seus tratados e sermões. É impossível descrever meu drama íntimo naquele começo lúgubre, nostálgico e absurdo. Sim, quem se opunha àquela façanha humanamente impossível estava coberto de razão. Daí alguns, plausivelmente, me chamarem de “maluco”. E eu concordava com eles. Somente um louco empreenderia, sozinho, uma jornada dessas. Literalmente, aquela estaca era literalmente o marco zero.
3.7. Chegada dos primeiros parceiros Passei a ler página após página; abri uma pasta no computador e comecei a verter linha após linha; página após página, lentamente. Primeiro, eu rascunhava manualmente; depois, digitava em minha máquina datilográfica. O trabalho era duplicado. Desmantelei vários dicionários inglês/português. Mostrava aquilo ao Rev. Gecy e aos dois presbíteros, Lauro e Denivaldo. Eles davam sua opinião e eu acatava. A luz de nossa fé e esperança ia aumentando o lume à medida que me familiarizava com aquela linguagem. Havia momento de profundo desânimo. Só prosseguia porque
visualizava alguém compendiando, no futuro, aquele precioso volume. Hoje, quem compendia aquele primeiro volume, não tem como fazer uma ideia precisa de minha jornada até vê-lo assim como o vemos hoje. O fato é que eu propiciava aos leitores a grande chance de compendiar João Calvino. Por meu intermédio, hoje quem quiser tem acesso à literatura clássica da Reforma do século XVI. E este era meu sonho antigo que ora se concretiza.
3.8. Minha sócia e companheira Eu mesmo traduzia e revisava a obra, lendo e relendo diversas vezes, mudando e ajustando. Não tinha dinheiro para pagar alguém que pudesse ou quisesse revisar meu precário trabalho. Minha filha Eline havia feito o curso de artes gráficas, e se juntou a mim para formatar aquele primeiro comentário de Calvino em português. Uma vez pronto, procuramos a Imprensa da Fé, cujo diretor, Mauro Wanderley Terrengui, já meu amigo, que se mostrou entusiasmado em ajudar, facilitando o pagamento. E assim, após uma dolorosa espera, vimos sair da gráfica aquele volume. Senti-me estonteado com o primeiro fruto de nosso mútuo empenho de “fazer João Calvino falar português”. E quem foi que apôs seu prefácio àquele primeiro volume? Rev. Alceu Davi Cunha. Ele corria o risco de comprometer seu nome e prestígio associando-se a uma obra tão elementar. Porém o fez com alegria e entusiasmo.
3.9. Produzida a primeira publicação Na quarta capa, registramos o moto de João Calvino: “O meu coração te ofereço, ó Senhor”. Extraí do livro do Rev. Wilson de Castro Ferreira, Calvino: vida, influência e teologia, Sua confissão — nós e Deus: Não nos pertencemos: portanto, não tomemos como nosso alvo supremo a busca daquelas coisas que nos são agradáveis. Não nos pertencemos: portanto, até onde nos for possível, esqueçamos de nós mesmos e das coisas que são nossas. Por outro lado, pertencemos a Deus: portanto, sua sabedoria e vontade dominem tudo o que é nosso. Pertencemos a Deus: a ele, pois, como o único, legítimo e
supremo alvo, sejam dirigidas nossas vidas em todos os seus aspectos. Nós e Cristo: Encontramos força em seu governo; pureza em sua concepção; indulgência em sua natividade; redenção em sua paixão; livramento em sua condenação; remissão na maldição de sua cruz; satisfação em seu sacrifício; purificação em seu sangue; imortalidade em sua redenção.
3.10. Primeiros associados É preciso registrar que desde o início surgiram amigos dentre os eruditos que nos animaram e acompanharam o desenrolar do trabalho. O primeiro foi o grande amigo Rev. Alceu Davi Cunha, que se prontificou em deixar seu aval escrito na forma de prefácio. E assim esse nobre homem fez parte e se fez presente desde o ponto de partida, demonstrando acreditar piamente que este era o caminho. Chegou a “profetizar” que João Calvino ainda seria o reformador do Brasil. Outro amigo que nos acompanhou, inclusive na divulgação, foi o Rev. Dr. Hermisten Maia, mais tarde prefaciando a tradução de Romanos, com um prefácio digno da nobreza e erudição do grande reformador genebrino. Este não se envergonhava de nosso modesto começo. Mais tarde surgiu até mesmo o Rev. Dr. Boanerges Ribeiro que prefaciou a tradução dos Salmos. Minha experiência pessoal com aquele gigante do reino de Cristo é até mesmo difícil de descrever. Ele se prontificou e até mesmo confessou que fez uma discreta tentativa de traduzir as Institutas durante seus dias de juventude. Estavam sempre conosco o Rev. Dr. Cleómenes A. de Figueiredo, prefaciando a Epístola aos Hebreus; Rev. Carlos Aranha Neto, prefaciando a Epístola aos Efésios; Rev. Álvaro Almeida Campos, prefaciando a Epístola aos Gálatas; Rev. Dr. Ademar de Oliveira Godoy, prefaciando as Pastorais. Cito ainda o Rev. Wilson Santana, Rev. Jamil entre outros, ministros e oficiais, sempre presentes nos lançamentos, cujos nomes já me fogem da lembrança. Um homem que muito ajudou-me até mesmo nas revisões foi o Presb. Dr. José André, membro da Igreja Presbiteriana de Santo André. Estava
sempre presente, demonstrando entusiasmo em poder participar dessa obra gigantesca. Seu nome aparece principalmente nos Salmos na qualidade de revisor.
3.11. Primeiras críticas O primeiro a fazer uma apreciação (ou depreciação?) de nosso modesto trabalho foi o Rev. Celcino Gama, a quem reputo como sendo um dos luminares da Igreja. Ao oferecer-lhe um exemplar de Segunda aos Coríntios, ele olhou demoradamente para o livro, o abriu e folheou, olhou bem para mim e me perguntou: “Valter, por que logo Segunda aos Coríntios? Esta é uma carta bem pouco comentada pelos doutos da igreja”. Havia em suas poucas palavras, na forma de pergunta, um universo de sentidos. Penso que entendi o que ele quis dizer, e lhe respondi com simplicidade e franqueza: “Talvez seja por isso mesmo!”. Mantendo em minha resposta outro universo de sentidos. Um presidente de Sínodo, portanto membro da Executiva do Supremo Concílio, nos devolveu o exemplar que lhe oferecemos, com desdém, se expressando mais ou menos assim: “Senhores, isto ficou muito longe, é muito antigo, já não tem qualquer validade ou relevância para hoje!”. É óbvio que nem formulamos qualquer resposta, em razão do inesperado. Outro, de modo chistoso, perguntou se estávamos psicografando João Calvino. Todos não tinham a devida coragem de perguntar direta e honestamente: “Quem é Valter Graciano Martins para aventurar-se a publicar João Calvino em português?”. Esses preclaros líderes agiriam assim se a iniciativa fosse de um órgão oficial da Igreja ou da parte de um erudito? Não oscilo em dizer que certamente não agiriam dessa maneira. Humanamente, eles tinham razão! Só não tinham razão em sua covardia, podendo eles mesmos fazê-lo, e não o faziam! Pior ainda: Taxavam de “maluco” àquele que sabia não possuir tal capacidade, porém que se aventurava a fazê-lo com o pouco que o Senhor da Igreja lhe dera. É muito difícil realizar uma grande obra sendo pequeno e destituído de prestígio. A grande obra é embaçada pela falta de lustre do realizador! Então aprendi o seguinte: Só tem o direito de criticar a quem faz, se o crítico fizer o mesmo ou melhor! Aquele que não faz o que faz o criticado, o tal não merece nem mesmo atenção. Aprendi ainda que a crítica é necessária, pois ela avalia
aquilo que carece de correção ou que já é perfeito, exprimindo-o publicamente visando ao bem do que é criticado. A crítica desdenhosa não cabe no cérebro nem na boca de uma pessoa nobre, muito menos daquele que se declara ministro da Palavra de Deus.
4. Reminiscência 4.1. Experiência no IBEL É justamente neste ponto que expresso minha honesta confissão a respeito desse empreendimento. Meu sonho de ver João Calvino falando português nasceu naquele dia em que meus colegas ibelinos falaram-me das Institutas. Desde então, em meu espírito, delineava-se algo informe, mas que persistiu durante todo meu percurso futuro. Por onde quer que eu andasse bailava em minha alma tal pensamento: é preciso fazer João Calvino falar nosso idioma; é preciso pôr nas mãos dos leitores a própria fonte. Não que eu mesmo quisesse fazê-lo, mas queria que meus ideais fossem concretizados através dos eruditos da Igreja. É a eles que cabe empreendimento desse vulto, e não àqueles em quem não há o devido preparo para tal. 4.2. Encontro com Dr. Odayr Olivetti Certa vez encontrei-me com um dos homens que mais influenciaram minha modesta trajetória. É claro que ele nunca teve consciência disso. O fato é que me achei diante do gigante Rev. Dr. Odayr Olivetti. Era um conclave da Missão Oeste, junto à qual trabalhei durante quatorze anos, no IBEL, Patrocínio, e estava lá com ele o Rev. Atael Costa, então diretor da Casa Editora Presbiteriana. Eu quis saber por que as Institutas de Calvino não foram ainda vertidas para o português. A resposta de ambos é que, além de ser uma obra de alto custo, era também de pouco valor prático, porquanto bem poucos tirariam tempo ou iriam dispor-se a ler tal obra, além da esfera acadêmica. Mais tarde eu ouviria muitas vezes esse mesmo argumento, o qual, para mim, não podia ser procedente. Ora, eu entendia que um dos homens da Igreja que poderiam realizar tal façanha era precisamente o Dr. Olivetti. Anos depois, a Providência nos uniria nesse bendito empreendimento. Havia muitos outros, porém nenhum tinha ou disposição ou condição ou
oportunidade. Muito mais tarde ficou registrada no prefácio aos Salmos de Calvino a declaração de que outro doutor da Igreja, Boanerges Ribeiro, desejou muito empreender tal obra, chegando a fazer um arremedo de tradução das Institutas, como confessou em seu prefácio aos Salmos.
4.3. Versão das Institutas em espanhol Enquanto pastor em Ceres, Goiás, eu recebi da Holanda as Institutas na língua espanhola. Consegui ler essa versão duas vezes consecutivas, sublinhando e memorizando. Isso aguçou ainda mais meu desejo que já era intenso. Por momentos e mais momentos eu ficava a fitar as páginas daquela versão, imaginando que estivesse diante de mim uma versão portuguesa; que estava lendo não em outro idioma, e sim em meu próprio idioma. Não só isso, mas que tantos outros leitores brasileiros seriam abençoados com aquela leitura. Cheguei a rascunhar um arremedo de tradução daquelas páginas. Mas não deveria ser eu a fazê-lo, e sim aqueles que realmente sabem fazê-lo. Quantos homens e mulheres no seio da igreja poderiam fazer uma tradução perfeita desta obra a partir de seu original francês ou latim. Certamente muitos brasileiros seriam beneficiados. Eu seria o primeiro a lêla, como fui um dos primeiros a ler, mais tarde, a versão do Rev. Dr. Waldir Carvalho Luz. 4.4. Institutas condensadas Nesse meio tempo, a PES (Publicações Evangélicas Selecionadas) lançou um belo resumo das Institutas elaborado por J. P. Wiles e prefaciado por J. I. Packer, por sinal muito bem feito. Adquiri meu exemplar e li, reli muitas e muitas vezes. Tive aí uma noção da grandeza da obra do grande Reformador. Isso ateava mais fogo na fogueira de minha mente e coração. Meu Deus, seria o caso de eu mesmo ter que realizar tal tarefa?! Não! Isso é impossível.
4.5. Tradução do Dr. Waldir Carvalho Luz Quando foi publicado o primeiro volume da tradução das Institutas feita pelo Dr. Waldir Carvalho Luz, eu ainda estava em Ceres, e o recebi pelo correio, e com sofreguidão o abri e passei a ler. O mundo foi
despencando sobre minha cabeça, pois comparava as duas redações, espanhola e portuguesa, sendo pouco a pouco dominado pela descrença, perguntando-me se era possível que a leitura em outra língua pudesse ser mais fácil que ler em meu próprio idioma. Passei a perceber que o Brasil continuaria jejuno da grande obra do reformador. Quando toda a obra foi concluída, eu já estava nos recessos da Editora Cultura Cristã como um de seus diretores. Vi a obra sendo lançada e o povo adquirindo e, logo a seguir, alguns vendendo aos sebos, alguns jogando fora, ou deixando, em seu estado virgem, na prateleira de sua biblioteca pessoal. Quanto a mim, tive que ler até o fim, pois tinha que responder às inquirições dos que desejavam ler aquela obra tão preciosa. Houve no seio da igreja um profundo desalento, pois ninguém conseguia ler as Institutas de João Calvino. Isso confirmava a crença de muitos de que a publicação das obras de Calvino era dispensável. Creio que, se ele ressuscitasse e se pusesse entre nós e lesse algumas linhas de sua grande obra, provavelmente teria dito: “Eu não escrevi assim. Eu escrevi para o povo leigo entender”.
5. João Calvino não estava em boas mãos O que sempre concebi de mim mesmo é catastrófico. Nunca me vi como a pessoa talhada para um empreendimento desse porte e nem de espírito diplomático. Nunca pensei de mim grande; sempre pequeno. E para traduzir as obras do reformador era preciso ser grande. Mas os grandes não faziam, porque não criam como eu cria.
5.1. Uma visão mais elevada Quando traduzi a Segunda Epístola aos Coríntios, meu intuito não era continuar, e sim convencer os eruditos da Igreja de que é possível e exequível publicar tudo de Calvino para o povo brasileiro. De repente me vi cercado por alguns eruditos, dando-me sua destra e seu aval, sem constrangimento, para que eu mesmo continuasse. Eram as pessoas certas, pois podiam avaliar bem as condições de meu trabalho. De cada um fui recebendo alento e estímulo.
5.2. Primeiro encontro com Rev. Dr. Boanerges Ribeiro Por exemplo, quando desejei que os Salmos fossem prefaciados pelo Rev. Dr. Boanerges Ribeiro, eu o procurei pessoalmente, um tanto cético, e lhe falei: Rev. Boanerges, o senhor não me conhece, nem sou um homem de seu nível, nem mesmo temos afinidade, mas gostaria muito de ver seu prefácio no comentário de Calvino sobre o Livro dos Salmos. Se o senhor responder na negativa, vou achar mais plausível do que se responder na positiva. Sua resposta foi pronta, surpreendente e memorável: “Você erra em pensar que eu não o conheça. Primeiro, eu o conheço e muito bem. Tenho acompanhado sua vida e labor. Segundo, você erra crendo que eu recusaria apor meu aval em sua tradução dos Salmos”. E escreveu no prefácio: “Eis que a providência divina chama o Rev. Valter Graciano Martins para traduzir Calvino, e dá-lhe um grupo dedicado de companheiros para editar suas traduções”. Mais adiante: “Graciano dá-nos Calvino simples, natural: sua tradução não é um labirinto, é clara fonte; descobrimos encantados que ler Calvino em português é, além do mais, agradável”. Hoje estou radiante em ver que a Editora Fiel conservou seu belo prefácio na reedição do primeiro volume dos Salmos. Ao ler tudo isso, não conseguia crer que eu fosse o predestinado de Deus para fazer João Calvino, um dos homens mais eruditos e eminentes de toda a história humana e cristã, falar nosso idioma através de suas obras. Eu me via por detrás daquela bigorna, ainda com martelo na mão, naquela humilde oficina, mais tarde nos campos missionários, sem traquejo, sem conhecimento suficiente, ignorado do mundo e da igreja. Como, meu Deus, é possível um leigo deficitário fazer isso? Ainda mais, teria que traduzir suas obras de tradução, porquanto nem mesmo domino o francês ou o latim para ir diretamente à fonte. Todas as críticas neste respeito procedem. Embora a fonte que eu uso seja aquela citada no mundo inteiro pelos próprios eruditos, por ser uma tradução estritamente fiel aos originais, porém foi feita por eruditos, homens que confrontaram sua tradução com outras obras do reformador, ou em francês, ou em latim. Deixaram apensas notas preciosas de cunho ou crítico ou elucidativo. Houve momento em que me arrependia de haver começado aquela atividade!
5.3. João Calvino segue em frente O fato é que a Providência não nos deixou parar aí; de repente, eis aí mais Calvino: além de 2 Coríntios, vieram Romanos, 1 Coríntios, Gálatas, Efésios, Pastorais, Hebreus, Daniel (2 volumes), Salmos (3 volumes — ficou faltando o 4º volume que mais tarde seria publicado pela Editora Fiel). E fomos vendendo. Romanos e 1 Coríntios se esgotaram, então reeditamos.
5.4. Registrada a empresa Registramos a empresa com o título Edições Parakletos. O conselho era composto pelos Presbíteros Denivaldo e Lauro, por mim e por minha filha Eline. A princípio, Denivaldo depositava tudo em sua própria livraria. Por fim, tornou-se impossível continuar assim: tivemos que alugar um depósito. A situação foi se agravando cada vez mais. O dinheiro arrecadado mal bastava para outra edição, e assim eu e Eline ficávamos sem dinheiro. Mais de uma vez, os dois colegas tiveram que enfiar a mão no bolso para socorrer compromissos com a imprensa, sem nem mesmo saberem se um dia eles seriam reembolsados.
5.5. Companheiros constantes Cabe-me falar aqui de uma pessoa de papel vital em Edições Parakletos: Eline Alves Martins, minha filha, assumiu a meu lado a função editorial e comercial. Ela fazia toda a parte de formatação, de arte e de vendas. Creio que, sem Eline, dificilmente Edições Parakletos teria surgido. Capaz e disposta, ela estava comigo todo o tempo. Não se queixava quando não sobrava dinheiro para nós mesmos. Pois tudo o que entrava era para pagar aluguel, gráfica e outros expedientes. Aquele foi um tempo de grandes provações para ela, sendo que, ao mesmo tempo, ela passaria para a história de Calvino no Brasil.
5.6. Edições Parakletos enfrentam dificuldades A dívida que contraímos com Denivaldo e Lauro foi perdoada por ambos. Esses dois leais companheiros nunca nos deixaram ao léu. Eles nos
deram perenemente a destra de apoio. No entanto, minha filha casou-se e veio a ser mãe, e a empresa começou a rolar morro abaixo. Nunca apareceu uma mão extra a socorrer-nos. Quando alguém solicitou de um grande empresário da igreja que nos socorresse, ele respondeu: “Não tenho dinheiro para essas coisas”. Nem digo isto com mágoa, pois sempre compreendemos que o que fazíamos era difícil de crer que tivesse um futuro seguro. E assim caímos num corredor que se estreitava cada vez mais. Nosso maior cliente nem eram os presbiterianos, e sim as Assembleias de Deus. Isso pode parecer surpreendente, mas é um fato comprovado de que muitos pentecostais estão lendo João Calvino mais que os presbiterianos. Outro grupo que sempre nos leu são os batistas das várias confissões. De vez em quando recebíamos expressões de apreço pelo trabalho tão dispendioso.
5.7. Viagens com João Calvino Esse período foi de muitas conferências. Eu era convidado para falar de Calvino. Nunca dizia que conhecia bem o grande Reformador genebrino, simplesmente ia lá para falar dele e falava. Só na capital paulista houve diversos confrontos, em igrejas, em presbitérios, em sínodos. Fomos a Salvador, a Governador Valadares, a Cachoeiro do Itapemirim, a Santos, a Rio Verde de Goiás, a uma cidade interiorana da Bahia, cujo nome já nem me lembro, entre outros lugares. Já faz muito tempo. Éramos quatro os componentes dessa caravana: Rev. Alceu Davi Cunha, Denivaldo, Lauro e eu. Eles não me deixavam na mão; eles me punham em um de seus carros e saíamos estrada fora. Nem se importavam com meus discursos sem qualidade. Acumulamos muitas histórias interessantes nessa trajetória. Enchíamos o carro de livros, ou por transportadoras; o fato é que levávamos Calvino conosco pelos rincões brasileiros. Juntos, arrostamos todo tipo de aventuras, as quais, se fôssemos narrá-las em livro, seria este de bom tamanho. Foi um tempo de muito movimento e experiência. Houve boas vindas e más vindas; houve aplauso e apupo. Em certa cidade, não apareceu ninguém para nos ouvir. O programa era de nível presbiterial. O pastor que fez o plano de nossa visita não sabia o que fazer com sua vergonha. De fato, o que me faltava era crédito. Calvino não estava em boas mãos. Muitos dentre os que agiram assim haverão de se
lembrar do dia em que, a despeito de sua atitude, João Calvino logrou êxito no Brasil. Creio que muitos dos que fizeram pouco caso de nosso humilde começo estão hoje lendo as obras do Reformador em nosso idioma.
6. Igreja Presbiteriana Unida Foi nesse período que resolvemos deixar a IP de São Bernardo e frequentar outra igreja em razão da distância e de outros detalhes. Experimentamos algumas e desistimos. A Igreja Presbiteriana Unida não ficava longe de casa. Cremilda e eu resolvemos fazer uma experiência. Já conhecíamos seu pastor, Rev. Carlos Aranha. Então, pela primeira vez, adentramos aquele santuário esplendoroso. Entramos a medo. Assentamonos bem atrás. De nada adiantou. Logo fomos vistos pelo pastor. Ele nos apresentou nominalmente à igreja e participamos de sua aula. A igreja mostrou-se afetiva e solidária. Resumindo, resolvemos ficar aí, e ficamos. Não muito depois de chegarmos, Rev. Carlos arranjou uma classe para eu lecionar e as senhoras estenderam os braços para Cremilda. Aquela foi uma das igrejas mais fraternas que encontramos. Logo o Presbitério Unido solicitou do Presbitério Sul Paulistano minha transferência para ele. Esta veio e chegou o momento de ser recebido no novo Presbitério. Qual não foi meu susto: fui recebido com aplausos, todos em pé e sorrindo para mim. Era algo assustador. Literalmente, senti-me perplexo e amedrontado. Na igreja, logo estava no púlpito com o pastor enfiado dentro de uma linda toga. Não ficou aí, pois fui feito seu auxiliar no pastorado daquela grande e histórica igreja. Ao notar que o pastor e igreja tinham planos mui elevados para mim e Cremilda, isso nos assustou e nos causou medo. Estavam olhando erradamente para nós: todos nos viam em um pedestal muito elevado e na verdade estávamos bem mais baixo. Foi quando Cremilda e eu resolvemos mudar-nos para Goiânia a fim de cuidar de seus velhos pais. Isso deixou frustrados aquela igreja e aquele bom pastor. Em certas circunstâncias, às vezes é preferível sermos desconsiderados do que considerados demais. Para menos, há recursos; para mais, ficamos sem recursos.
NOVAS EDIÇÕES DAS INSTITUTAS DE
JOÃO CALVINO 1. Grande Dilema Ao ver o fracasso da primeira tradução e edição das Institutas, meu espírito, além de atordoado, agitou-se com o acúmulo de ideias que passaram a fervilhar em minha mente. Perguntava o que eu poderia fazer para a solução do problema. Então, mesmo trabalhando de forma tão precária, maquinei fazer uma edição legível das Institutas de João Calvino. No entanto, havia dois entraves que antes de tudo eu tinha que vencer: um deles era a falta de condição financeira para um empreendimento desse porte; o outro, é que eu não era o homem talhado para tanto. Isso requeria a ação de uma mente erudita. Uma coisa é traduzir os comentários do Reformador; outra bem diferente é traduzir uma obra como suas Institutas. Em minha visão, aquela edição feita pelo Dr. Waldir e editada pela Editora Cultura Cristã traiu a confiança dos leitores na própria validade de se editar ou de se ler suas obras em nosso idioma. Era como se os que me recriminavam, em minha tentativa de produzir as obras do Reformador, tivessem toda a razão para agirem assim; eu é que estava errado em meus cálculos. Se as Institutas eram isso que a primeira edição mostrava, então era impossível lê-las mesmo que fossem vertidas por uma multidão de eruditos. Seria o caso de que elas fossem de fato ilegíveis? Elas foram escritas para ninguém ler? Eu mesmo me via como um visionário, e esse era o conceito dos que me conheciam. E por um longo período vivi desalentado em ver frustrado um empreendimento que teve tudo para dar certo. Ao pensar nos leitores de Calvino ainda jejunos de suas obras, a aflição me dominava, e até mesmo me desesperava. O que fazer? Via-me muito aquém da possibilidade de empreender tal tarefa. E eu via a liderança maior da igreja completamente desinteressada em resolver o problema. Não vislumbrava nenhum interesse em João Calvino. Como se quisessem dizer: a igreja sobreviveu até aqui sem Calvino; por que haveríamos de tê-lo em nosso idioma? Que diferença isso faria na estrutura da igreja?
2. O caminho certo
Certo dia adentrei a sala do editor da Editora Cultura Cristã e me assentei com ele e falamos diretamente do caso em pauta. “Dr., creio ser de vocês o dever moral perante o público leitor de produzir uma nova edição das Institutas. Foram publicadas por esta casa, e o Brasil continua jejuno delas. Se hoje o senhor me disser que não tem nenhum interesse nisso, então vou tentar produzi-las, sem saber como fazê-lo.” Ele me fitou pensativo, e respondeu que aquela era uma boa hora para uma séria tomada de decisão. “Sim, eu vou empreender essa grande tarefa, e você vai traduzi-las para mim”, disse-me com toda firmeza. Eu me recusei, dizendo que não havia ninguém mais apto para tal empreendimento do que o Rev. Dr. Odayr Olivetti. No outro dia, aquele editor me ligou para notificar que o Dr. Olivetti aceitara, eufórico, empreender a tradução das Institutas. Certamente, isso trouxe regozijo à minha alma. Com isso, conseguia três façanhas: uma, a de ver uma nova edição das Institutas; a outra, de envolver aquele grande erudito nessa tarefa tão grandiosa e tão necessária; terceira, então poderia ver o povo de Deus compendiando com entusiasmo a obra-prima do Reformador genebrino. Ergui as mãos para o céu e agradeci ao Senhor da Seara.
3. De novo frente a frente com o Dr. Olivetti E este foi o ponto de partida na história da edição vigente das Institutas traduzidas pelo Dr. Olivetti. Depois de muitos anos, eis de novo eu e o Dr. Olivetti envolvidos numa obra que, naquele tempo, naquela reunião da Missão Presbiteriana no Brasil, realizada no IBEL, em sua ótica era inexequível. Senti um forte alento vendo aquela grandiosa obra nas mãos de um homem do quilate do Dr. Olivetti. E aqui é preciso ressaltar bem que mais uma vez eu era usado pelo Senhor da Igreja para que João Calvino falasse nosso idioma.
4. Traduzindo a tradução do Dr. Waldir Não passaram muitos dias, recebi uma ligação telefônica do editor da Editora Cultura Cristã, solicitando que eu fosse à sua sala para uma conferência entre os dois. Atendi e me pus diante dele novamente. Então me disse: “O Conselho Editorial da Cultura Cristã decidiu fazer justiça ao grande esforço do Rev. Dr. Waldir Carvalho Luz, reeditando sua tradução
das Institutas. No entanto, todos nós, com ele, concordamos que não seria possível fazer isso sem desembaralhar aquele emaranhado de vocábulos e construções gramaticais às avessas. Ele nos deu sua permissão, e então pensamos ser você a pessoa talhada para realizar tal façanha”. No momento, fiquei aturdido com a proposta. Talvez fosse o maior desafio que já enfrentei em minha modesta trajetória. Pedi uma semana de prazo para decidir. Aquela foi uma semana difícil, pois bem sabia que ali estava uma faca de duplo fio. Se fosse bem-sucedido, poderia vir a ser herói; se fracassasse, poderia tornar-me um terrível vilão, e teria que enfrentar o ridículo da incapacidade. No fundo, sabia que ali estava uma grande oportunidade de envolver-me ainda mais com João Calvino no Brasil. Quanto ao outro lado da mesma moeda, nunca me importei em ser visto ou tido como vilão. O que está em pauta não é minha pessoa, e sim o Nome de Jesus Cristo e seu reino. Tudo o que mais quero é que nosso Senhor seja cada vez mais glorificado através do labor de cada servo. A Cultura teve que digitar toda a obra, pois nada ficara de gravação da primeira edição. Uma vez digitada, assentei-me diante daquele modesto computador, e no espírito de oração, bem sabendo que grande e terrível tarefa me envolvia; passei a trabalhar aquele emaranhado confuso, frase por frase, parágrafo por parágrafo, capítulo por capítulo, até ver o primeiro volume terminado. E, usando o mesmo processo, até ver toda a obra completada. Notifico que usei duas versões para comparação: a versão inglesa feita por Henry Beveridge de 1957 e a versão espanhola feita por Cipriano de Valera de 1597.
5. O que foi feito Devo dizer francamente que sempre tive o Rev. Dr. Waldir Carvalho Luz não só como um dos homens mais doutos da Igreja, mas também como um varão íntegro e santo, de quem eu nunca seria digno nem mesmo de desatar os cadarços de seus sapatos. Creio que essa foi a dificuldade mais séria que tive de enfrentar: tocar aquela obra que levou anos para ser concluída pelo incansável labor desse santo varão. E qual seria de fato minha tarefa? Desembaralhar a difícil construção gramatical, retirando todos aqueles colchetes e italicando a matéria que estava dentro, substituindo todos aqueles termos já em desuso, retirando todas aquelas notas de rodapé que,
somadas, dariam para formar um livro à parte, e tantos outros detalhes que dificultavam a legibilidade da leitura.
6. Recompensa pelo trabalho prestado Levei cerca de um ano. Durante aquele tempo pequei muito contra o Senhor da Igreja e contra um homem muito mais santo do que eu, por aquela obra haver sido feita daquela forma, perdendo o autor uma grande chance de fazê-la da forma certa e definitiva. Sofri um grande desgaste emocional e mental. Foi um trabalho pior do que se fizesse uma tradução direta. Naquele tempo surgiu o adágio de que eu estava traduzindo Waldir Carvalho Luz. E os autores deste adágio não estavam longe da verdade. Se eu não escrevesse esta história, tudo isso ficaria no perene anonimato. E, no final, recebi da Editora Cultura Cristã um grande prêmio: a completa omissão, no prefácio, de como a coisa foi feita. Nem sequer fez a mais leve menção. Apareço meramente como revisor. Não fui mero revisor. Mas compreendo bem a razão para tal omissão: como poderia eu, um leigo e trabalhador braçal, figurar-me lado a lado com os doutores ali mencionados, os quais nem mesmo tocaram aquela obra? São coisas dos homens! Aos poucos aprendia que a igreja de fato é composta do lado humano e do lado divino durante todo o tempo de sua peregrinação terrena. Seu lado humano quase não é distinguível de qualquer outra entidade no seio da sociedade humana. Às vezes, uma igreja local perde em qualidade para uma entidade que nada tem a ver com o reino de Deus. Essa omissão continuaria em outras obras que eu faria para aquela egrégia instituição. Repito, não confundo indivíduo com a corporação. Repito ainda, não narro isto como mero desabafo ou mágoa, e sim como lição para todos no futuro. Aquele editor desfruta, de minha parte, o mais elevado conceito, seja em sua pessoa, seja na execução de sua profissão. Não faz muito tempo respondi a uma inquirição se aquele editor deveria ou não continuar naquela entidade em sua função de seu editor. Minha resposta categórica foi: “Vocês não podem tirar aquele homem daquele posto. A casa poderia desmoronar-se sem ele”.
7. Ferida efetuada pelo descaso
Em todas essas peripécias aprendi que o descaso fere mais radicalmente do que uma afronta direta, franca, aberta. A definição de descaso é “Procedimento próprio daquele que não dá importância ou atenção a; desconsideração, desdém, desprezo” (Dicionário de Houaiss). Por toda parte tenho sido alvo do descaso. E é muito difícil lidar com esse procedimento humano. Pela ótica de alguém de posição, você é quase nada. É discriminado; é ignorado; sua pessoa e nome são omitidos intencionalmente sem sequer pedir desculpas. Lamento, porém aceito a realidade de ser um homem avulso, isolado, desvinculado da política eclesial. O que importa é o fato de que o Senhor da Igreja decretou usar-me, tal como sou, na qualidade de seu instrumento na elaboração de uma obra de caráter único no Brasil. Se um dia você quiser ser usado da mesma forma, então terá que despir-se de si mesmo, sufocar seu ego, erguer a cabeça ao céu e dizer: “Eis-me aqui, Senhor, usa-me a mim como quiseres”. Se mantiver seus olhos fixos nos homens e esperar deles que o honrem de uma maneira justa, então você não irá longe. Logo desistirá. Os homens têm pouco a dar-nos em recompensa. Aliás, os homens nem mesmo sabem recompensar com equidade. Mas a recompensa do Senhor da Igreja é infalível e grande! Seja como for, o fato é que me senti e ainda me sinto feliz e generosamente galardoado por, mais uma vez, fazer o Reformador falar nosso idioma naquela versão das Institutas feita pelo Dr. Waldir. Pasma-me lembrar que, assim, tornei-me seu associado, porquanto seu nome continua figurando como o primeiro tradutor das Institutas de João Calvino. Digamos: ele começou, e eu dei meu empurrão. E deu certo, pois, hoje, há uma multidão lendo as Institutas na tradução do Dr. Odayr e do Dr. Waldir. Sem falar com expansão da versão publicada pela UNESP e patrocinada pelo Banco Itaú. Hoje só não lê as Institutas quem não quiser, pois temos delas três versões bem legíveis. E Deus me fez partícipe da história de João Calvino no Brasil. Com certeza, no futuro haverá tentativas de eliminar meu nome completamente desta obra tão bem-feita!
8. Celebração do aniversário do Reformador No ano de 2009 houve festividade por todo o Brasil pelo aniversário de 500 anos do Reformador genebrino. Fiquei sabendo que houve grandes reuniões em cidades estratégicas em que o Senhor da Igreja foi celebrado
como aquele que usa homens e mulheres em sua obra para o engrandecimento de seu Nome e maior expansão de sua Igreja. Senti-me feliz por saber que por lá minhas traduções do Reformador estariam presentes, a reforçar uma festividade tão oportuna. Certamente, não digo apenas que meu nome nem foi mencionado, mas nem mesmo foi lembrado pela humilde contribuição, não meramente com obras sobre o Reformador, mas, sim, com as próprias obras dele. Que o Senhor perdoe minha megalomania inerente! Mas tenho certeza de que, se esse gigantesco trabalho tivesse sido efetuado pela editora oficial da Igreja, ou por um dos muitos eruditos em seu seio, certamente teria sido especialmente convidado e enaltecido e condecorado pelo gigantesco empenho pela grandiosa colaboração com a fé reformada. O que está em pauta não é a mera pessoa de um homem ou mulher; é o que alguém fez ou tem feito que enobrece toda a sociedade. Um exemplo disso: há anos que o tradutor de João Calvino reside em Goiânia. No entanto, ele é perene desconhecido. Todo ano se efetua em Goiânia uma grande conferência da fé reformada. As obras de João Calvino já em nosso idioma, bem como tantas outras traduções de cunho teológico e reformado cobrem as mesas que se expõem muitas centenas de livros, inclusive as obras do Reformador. Ninguém nem mesmo cogita que seu tradutor reside nesta capital. O descaso é ferino! E por que isso é assim? Simplesmente porque o tradutor deste vasto material teológico é um mero leigo; um limitado autodidata; um homem sem envolvimento político; uma figura ambígua e sem lustre. Quantas vezes eu entro em uma grande igreja onde outrora era conhecido. Entro e saio sem que alguém o perceba. Sou uma figura avulsa e sem nenhum prestígio. Não faço parte do clube dos que realizam grandes coisas. Foi aqui que outrora prestei meus humildes serviços pastorais; foi aqui que recebi a imposição das mãos de um presbitério em ordenação para o sagrado ministério. É aqui que eu esperava pelo menos a destra de comunhão dos santos. E Goiânia veio a ser meu exílio!
EDITORA FIEL 1. Primórdios
Em meu profundo abatimento por ter que interromper meu precioso trabalho com João Calvino, desatinado e sem saber o que fazer, vendo o depósito de livros fechado e o aluguel sendo pago todo mês, certo dia o telefone tocou e atendi. Do outro lado soava justamente a voz do fundador da Editora Fiel, Dr. Richard Denham. Lembro-me como hoje que senti-me aturdido, pois não sou homem de frequentes sucessos grandes e repentinos. O Senhor age em mim e através de mim de maneira muito discreta e imperceptível. Não sou daqueles que têm sonhos e sensações frequentes e fortes. Muito menos daqueles que têm histórias mirabolantes para narrar acerca de suas pessoas. Conhecemo-nos na primeira Conferência Fiel para Pastores e Líderes em 1985. Aliás, naquela época ganhei a hospedagem naquele evento como uma tentativa entre as duas partes para que eu servisse àquela entidade na área literária. Na época já mencionada em um capítulo à parte, não surtiu nenhum resultado positivo. Aliás, foi dolorosamente frustrante. Em minha mente, ele não sentira por mim nenhuma simpatia, e com razão, pois ele estava cercado de homens e mulheres da mais elevada qualificação para o desenvolvimento de seu ideal literário. Aliás, ele teria visto em mim um mero aventureiro sem “experiência acadêmica” e pertencente a uma denominação que tem alguns detalhes discrepantes com sua filosofia pessoal e de trabalho. E assim procurei esquecer aquele episódio e seguir em frente. Creio ser importante, neste espaço, demorar-me um pouco nesta grande e consagrada Editora; não só na publicação de literatura de cunho reformado, mas também no campo da educação teológica e a profunda e benéfica influência que ela tem injetado nas vidas de milhões de pessoas no mundo inteiro, com suas publicações fiéis, suas conferências teológicas e distribuições gratuitas de literatura, aliás, aos milhares. Escrever a história, nem digo toda a história, do casal Denham, Ricardo e Pérola, mas ao menos a história da Editora Fiel é um empreendimento difícil até mesmo para os que estiveram e ainda estão diretamente envolvidos durante todo o período de empreendimento do Dr. Richard Denham e suas bem qualificadas equipes. Pois tudo na vida daquele casal é grande demais, e sinto-me constrangido até mesmo em mencionar. Mas, como tenho uma pequena parcela nesta história, por isso sinto-me impelido a expressar ao menos esse pouco a seu respeito. Para isso, além de me valer da memória de
minha experiência pregressa com o casal em Atibaia, SP, quando eu e Cremilda estivemos em sua estância, em meado dos anos 80, lanço mão também de um volume que foi editado em 2010 pelo Dr. Franklin Ferreira e publicado pela Editora Fiel, com o título A glória da graça de Deus, pelo aniversário dos 58 anos de ministério que este eminente casal desempenhou no Brasil.
2. Modesta participação O Senhor da Igreja me privilegiou com uma pequena participação nesse livro, escrevendo a segunda apresentação, a pedido do editor da Editora Fiel, Rev. Tiago Santos Filho. Em nome da franqueza, ao ler a primeira apresentação de seu próprio filho, Dr. James Richard Denham III, e o grande relato da lavra do Rev. Gilson Carlos de Souza Santos, meu impulso imediato foi pôr o cursor do computador na pasta desta minha pobre história e apagar tudo e esquecer que tenho uma história para contar, ou escrever, porém tão pobre que deveria continuar no anonimato.
3. Menção histórica O amado irmão e colega Rev. Gilson escreve: Em 1973 e 1974, a família Denham estava ocupada na construção do escritório e do depósito da Editora em Atibaia, São Paulo. Ali a Editora começou a ganhar força e crescer. [26] Quero entender que foi aí propriamente que a Editora Fiel estendeu sua fronde bem firmada sobre raízes fortes e profundas. Não foi da noite para o dia, mas seguiu uma trajetória penosa e longa. Em minha história pessoal de obreiro de Cristo, aliás, o menor de todos eles, passei a relacionar-me com esta Editora Fiel desde seus primórdios, adquirindo dela alguma literatura cujos títulos já não me lembro, e não os guardei na prateleira porque sempre formei o hábito de ler e logo em seguida doar aqueles livros que me edificavam, para que edificassem a outros. Daí, nosso relacionamento perene e pessoal viria alguns anos depois. Foi no início dos anos 80 que tive meu primeiro contato direto com a Editora Fiel e o Dr. Denham, através da leitura do livro Deus é soberano, de A. W. Pink. Mas vale a pena descrever abaixo a história de meu primeiro
contato com este livro. Quando ainda seminarista, meu cunhado Antonio Caixeta Neto leu o livro, empolgou-se e me presenteou com um volume. De igual modo, li, reli, escrevi uma carta ao Dr. Denham apreciando o livro e o efeito que ele me causara. Ele respondeu que tomara a liberdade de traduzir aquela carta para o inglês e enviá-la a várias igrejas nos Estados Unidos como um tipo de circular, e que me convidava para a primeira Conferência Fiel para Pastores e Líderes, com hospedagem paga de antemão. Tanto é que o Rev. Gilson se reporta a este evento, dizendo: Os preletores convidados foram Bill Clark e Edgar Andrews... Nesta primeira conferência, que contou com cerca de oitenta participantes, pregaram ainda os irmãos Francisco Solano Portela Neto e Valter Graciano Martins. [27] Significando que estou inserido tanto na história da Editora Fiel quanto na história da Conferência Fiel para Pastores e Líderes. Quando esta nasceu, eu estava lá. Tanto que a cada ano o Dr. Denham me convidava e pagava minha hospedagem para as conferências seguintes. Portanto, minha história e a da Editora Fiel têm um ponto em comum. Além de ser leitor assíduo e sistemático de sua literatura, a qual corroborou em grande medida para minha formação reformada, possuindo na época praticamente tudo o que ela editava, em certa encruzilhada nossa história haveria de misturar-se para sempre.
4. Licença Tendo da parte do Dr. Richard Denham III, atual presidente da Editora Fiel, e de seu editor, meu “velho” amigo e companheiro, Rev. Tiago Santos Filho, autorização para fazer uso de suas fontes de informação, valho-me de uma parte da própria apresentação que escrevi nesse livro, A glória da graça de Deus. “O homem que tem muitos amigos sai perdendo, mas há amigo mais chegado que um irmão” (Pv 18.24). “Em todo tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão” (Pv 17.17). Enquanto o “irmão” do primeiro texto é consanguíneo, o do segundo é “irmão” de crença, de fé, de bandeira. Enquanto o primeiro realce está no “amigo”, o segundo realce está no “irmão”. Ora, quem é o verdadeiro amigo? É aquele que se torna mais chegado que um irmão consanguíneo. Todos têm muitos amigos, porém nem
todos têm muitos irmãos. Amigo/irmão pode ser contado nos dedos das mãos, e pode ser que ainda sobrem alguns dedos. O cadinho que depura uma verdadeira amizade é a “angústia”, a adversidade, a tribulação, a encruzilhada penosa, a dependência. Foi assim que nasceu a grande amizade entre mim e Dr. Richard Denham. A “angústia” não era dele, e sim minha. Pois ela nasceu quando eu enfrentava uma terrível encruzilhada existencial. Eu precisava dele, e não ele de mim. Aliás, naquele tempo ele nem mesmo sabia de minha existência. Fui encaminhado a ele com o expresso pedido que me recebesse como cooperador em sua Editora. Não era então seu amigo nem um profissional habilitado para tanto. Ele não me recusou diretamente; porém impôs condição, pois intuiu minha inabilidade para o momento. Para mim, condição difícil de aceitar; para ele, era a única lógica. Foi duro, direto, sem rodeios, sem dissimulação; porém cordial, sincero, amoroso. Houve franqueza de lá para cá e de cá para lá. O acerto era impossível naquele momento. Mais tarde descobri que de fato aquele não era o momento de Deus. O de Deus foi prorrogado por mais vinte anos. Nesse ínterim, porém, nossa amizade deitou raízes, subiu como uma haste viçosa, expandiram-se os ramos e produziu-se uma bela fronde e vieram flores e frutos. Ele de lá e eu de cá. O esforço foi mais dele. Por meu natural temperamento e retraimento, se dependesse de mim aquela amizade teria se esvaído já no ponto de partida. É como se ele escrevesse meu nome em seu caderninho de amigos pessoais, orando e pensando em mim, convidando-me para suas conferências e me abraçando forte e amorosamente durante nossos poucos e breves encontros. Ele sempre se valia da seguinte expressão: “Eu amo o irmão”. E de fato amava! Esse homem deixou implantada em mim uma múltipla influência. Eu via nele uma fidelidade rara para com a obra do Senhor. Quando mergulhei no universo de João Calvino, então passei a ver Richard Denham como um Calvino no Brasil. Uma vida inteiramente devotada à obra de Jesus Cristo. Daí seu profundo interesse pelo reformador genebrino. Outra influência foi sua franqueza firme, porém leal e amorosa. Eu já era um homem franco, porém rude; com ele aprendi a ser franco transpirando afeto e respeito. A franqueza não é o mesmo que desabafo. Ele discordava de mim, e eu, dele. No primeiro minuto, fiquei chocado; com o passar do tempo, fiquei encantado. Desde então, ele passou a ser-me uma figura admirável e grandiosa. Ricardo Denham representa uma estirpe que surge no mundo aqui
e ali, sem se proliferar muito — infelizmente! Quando chegou o tempo de Deus, com encontros esporádicos neste intervalo, ele se manifestou interessado em trabalharmos juntos na elaboração e publicação de João Calvino em nosso idioma. Uma vez mais veio à tona a franqueza. Ele apresentou seus planos; e eu lhe disse: “Só me serve assim”. De repente, Edições Parakletos deixaram de existir, e a Editora Fiel assumiu a direção para “fazer João Calvino falar nosso idioma”. Ele, porém, me disse: “Eu gostaria que você continuasse traduzindo as obras de João Calvino para nós e que seja um dos conselheiros consultivos da Editora Fiel”.[28]
5. Gratidão perene Se o Senhor da Igreja me desse viver mil vidas neste mundo, jamais conseguiria compreender um coração e intuição tão imensos e profundos! E assim, de repente, a Editora Fiel passou a fazer por mim o trabalho que jamais eu poderia concretizar, muito embora sempre fosse esse meu sonho. Ela, na pessoa de Ricardo Denham, doravante passou a concretizar meu sonho de ver “João Calvino falando português” para o povo brasileiro. Eu amo o que faço, e jamais o faria sem a participação da Editora Fiel, na pessoa de Ricardo Denham. Meu sonho é concretizado através da equipe da Editora Fiel e, particularmente, da graciosa amizade do saudoso amigo Ricardo Denham. Além do mais, a Editora Fiel passou a endossar minhas modestas traduções, que hoje são vestidas com uma roupagem muito bela. 6. Encontro histórico Agora posso fechar o parêntese que abri no início deste capítulo. Do outro lado do fone, o Dr. Denham me convidava para um encontro com vistas a discutir a continuação das obras de João Calvino que eu havia interrompido. Combinamos dia e horário. Juntamente com Eline, filha e sócia, fomos a São José dos Campos para aquele encontro sem sabermos absolutamente nada do que se tratava especificamente. Na companhia do editor, Rev. Tiago Santos, os quatro, em torno de uma mesa de churrascaria, comendo e conversando, ele nos propôs um trabalho conjunto, dizendo mais ou menos isto: Valter, tenho acompanhado seu trabalho de fazer João Calvino falar português. Gostaria que esse trabalho não fosse
interrompido. Fale de suas dificuldades e eu, por minha vez, tenho uma proposta a fazer-lhe. Eu e Eline falamos longamente de nossa impossibilidade de dar sequência ao plano inicial de publicar as obras do Reformador. Finalmente, ele apresentou um plano de fazermos coedição. Então lhe disse: “Não quero envolver-me em coedição. Acho isso muito complicado. Na verdade, eu e Eline viemos aqui propor-lhe a venda de todo nosso estoque e a partir de então a Editora Fiel dará sequência à publicação dessas obras”. Senti no rosto do Dr. Denham e do Rev. Tiago um laivo de espanto. Creio que jamais esperariam uma proposta tão abrupta. Mas de início declarei ser aquela a única proposta viável que tínhamos a apresentar. Afirmei ainda que eu acreditava que ele, depois de pensar detidamente, descobriria que era possível e viável fecharmos o negócio. Ele alegou os grandes gastos que no momento enfrentava com a construção da sede da Editora. Alegou ainda que teria que continuar editando as obras do Reformador, embora isso se encaixasse bem na visão ministerial da Editora Fiel, que era publicar obras de cunho reformado. E publicar João Calvino equivale a publicar a própria fonte da fé reformada. Depois de trocarmos ideia a respeito, num dado momento ele propôs que levantássemos a quantidade de livros no estoque e a quantia envolvida para que ele pudesse avaliar seu orçamento. Rapidamente, fizemos tudo o que ele nos propôs. Depois de passar-lhe os valores do estoque, acertamos que seríamos reembolsados durante dois anos. E nossa resposta foi positiva.
7. Negócio fechado A partir de então, as publicações das obras de Calvino passaram para outra esfera. A Editora Fiel passou a reeditar as obras já editadas por Edições Parakletos: Romanos, Coríntios, Gálatas, Efésios, Pastorais, Hebreus, os três volumes dos Salmos e os dois volumes de Daniel. A partir daí, ela editou o quarto volume de Salmos, as Cartas Gerais e as de Paulo — Filipenses, Colossenses e Filemom —, bem como o Evangelho de João. Mas o processo era extremamente lento. Minha aflição era lancinante. Meu estímulo para dar sequência às traduções era seriamente ameaçado. Olhava para o horizonte e nada visualizava. Olhava para o grande volume de
obras ainda por publicar e me via dominado pelo desalento. Não contava com amigos íntimos que me injetassem ânimo ou que pelo menos me compreendessem, falando-me palavras de esperança. Olhava para a extensão da obra, olhava para cada uma delas e para o todo e sentia-me desfalecido. Não vou conseguir, pensava. Olhava no espelho e via a velhice estampada de modo inexorável. O tempo não para. Logo a morte chegará e me levará e não verei a totalidade do fruto de meu grande empenho. Porém, li em algum lugar que “aquele que desiste de lutar nunca tem razão”. O royalty que recebia da Fiel era muito pouco; não dava nem para a manutenção do computador. Com o uso contínuo e extremo, de vez em quando tinha que comprar outro computador; se estragava alguma peça cara, tinha que esperar algum tempo, pois minha aposentadoria é muito irrisória. Meu “velho” amigo de São Paulo, Dr. Lauro Benedito Medeiros da Silva e sua bondosa esposa, dona Conceição, enviavam-me dinheiro para a aquisição de algum equipamento. Era um trabalho totalmente solitário, e não solidário. Tenho poucos amigos com quem partilhar minha aventura. Como disse, Goiânia se tornou meu exílio. Quando um deles me visita, sofre o peso de minhas histórias e desabafos. Traduzir tanto para receber por ano tão pouco resultado. Ainda não vejo cem traduções prontas nas prateleiras, e já completei cerca de cento e cinquenta. Minha vida tem sido consumida nesse labor tão árduo. Mesmo assim sinto-me abençoado pelo Senhor da Igreja.
8. Calvino e outras obras É difícil e quase impossível descrever minha trajetória na tradução das obras de Calvino e de outras dezenas que eu entremeava. Cheguei a traduzir para a PES (Publicações Evangélicas Selecionadas); por certo tempo continuei traduzindo para a Editora Cultura Cristã, para a Editora Academia Cristã, que nem mesmo é de cunho reformado, e para a Editora Os Puritanos. Traduzi uma obra excepcional para a Editora Primícias, sediada em Goiânia, Calvinismo e arminianismo. Em meio a toda essa efervescência, encontrei no Senhor ânimo suficiente para não me deter sequer um dia. Mas a história completa jamais ousaria narrar, em razão do imenso volume de obras e do tempo que transcorreu até aqui. Minha querida esposa, Cremilda, foi sempre minha testemunha ocular e arrimo da grandeza da tarefa, mesmo que fosse empreendida por um homem de cultura equivalente à do Reformador e dos
muitos escritores com quem tenho mantido convívio. Quando olho para o volume de traduções e revisões, a emoção se extrapola. Em minha labuta, porém, o Senhor nunca soltou plenamente o freio de mão. Ele o mantém sempre puxado para que eu não desça ladeira abaixo sem controle. Minha natural e interior megalomania é muito acentuada. Eu mesmo tenho que corrigir conscientemente essa doença que atinge mais a uns do que a outros. Quando alguém declara que me vê como sendo um homem humilde, eu lhe respondo: “Na verdade, isso prova que você não sabe nada a meu respeito”. A realidade só é conhecida daquele que a tudo vê e perscruta. Então avalio este particular como a aumentar o “peso de glória” sobre alguém que não possui o menor vestígio de competência concreta, que nunca se assentou nos bancos de uma universidade. Costumo dizer que tudo o que tenho feito provém de um milagre divino. Sem este milagre, nada em minha vida teria sentido. Ora, ninguém deve vangloriar-se de merecer um milagre; se é milagre divino, então não pode ser merecido, senão que vem unicamente pela graça divina.
9. Editora Fiel e Editora Clire: confronto Registro ainda meu impasse com a Editora Fiel. Com profundo constrangimento expresso aqui meu ato de adesão à Editora Clire na publicação das obras de João Calvino. Há alguns anos recebi em minha casa, em Goiânia, a visita de dois queridos e preclaros amigos e irmãos, Dr. Manoel Canuto e Rev. Josafá Vasconcelos. Seu propósito era que a Editora Os Puritanos participasse também da publicação das obras do Reformador genebrino. Discutimos longamente os prós e os contras de tal parceria. Naquele momento isso era impossível, porquanto eu estava atado à Editora Fiel por meio de um compromisso de exclusividade. Disse-lhes que somente a Editora Fiel poderia romper esse compromisso. Então, daqui eles foram a São José dos Campos com vistas a negociar com aquela Editora. Resumindo, de sua parte, a Fiel não cedeu. Voltaram para casa e o caso foi quase esquecido. Os anos se passaram, e no ínterim eu era abordado pelo editor da Editora Clire, culminando em um telefonema de seu editor, Waldemir Magalhães, me apertando:
Gostaríamos muito de publicar suas traduções do Reformador genebrino. Já que não recebemos “bandeira branca”, resolvemos fazer nossa própria tradução e publicação. Já preparamos nossas equipas. Estou apenas comunicando o fato. Fiquei em polvorosa. Grande parte de meu trabalho já feito iria para o ralo. Aquele foi um momento de profunda indecisão e angústia. Passei o dia e a noite com a mente latejando. Meu apreço e gratidão pela Fiel são notórios a todos os que se relacionam com aquela Editora e comigo. Pedi ao querido irmão Waldemir uma semana de prazo para resolver o assunto. Depois de martirizar meu espírito durante aquela semana, então resolvi agir com extremo rigor para com a Fiel. As publicações de Calvino eram extremamente lentas e o volume das obras já traduzidas era imenso. Calculei que ainda levaria uns vinte anos para o término de todo o material. Meu maior conflito nem era o rompimento do compromisso, e sim meu apreço por aquela Editora, companheira de longos anos. Durante muitos anos formamos um laço de amizade e relacionamento muito forte. Por outro lado, minha vida está se esgotando. Não está longe de atingir oitenta anos de idade. Quase quinze anos envolvido com a Fiel. Passei a semana olhando para o céu e indagando: “Meu Deus, que devo fazer? Se eu perder essa chance com a Editora Clire, e esta porta se fechar, nunca mais verei outra porta aberta. Por outro lado, com toda probabilidade perderei a confiabilidade da Editora Fiel”. A luta interior foi muito grande e penosa. Por fim, decidi passar para a Editora Clire o Exateuco e os Profetas Maiores, enfeixando algumas obras extras do Reformador; por exemplo, Obras Seletas: A necessidade reformar a igreja , Réplica ao Cardeal Sadoleto, Psicopaniquia, Providência secreta de Deus e Catecismo e Confissão de fé de Genebra. Passei para ela ainda o Rei Davi, Jesus Cristo, Sermões em Efésios. Deixando com a Fiel os Profetas menores, o término do Novo Testamento, Breve tratado sobre a santa ceia e As Institutas versão de 1536. Então, escrevi decididamente à Editora Fiel e expus o que eu queria doravante. Entrei em contato com o editor da Clire, Waldemir Magalhães, e passei o que pensava ser possível. Ele concordou, com certas condições entre ambas as partes. Firmamos compromisso. Aquela editora já trabalha de vento em poupa na elaboração das obras do Reformador. A Diretoria da Editora Fiel me escreveu. Não satisfeita, veio a Goiânia
e entrou em minha casa. Em torno de uma mesa com suculento lanche preparado por Cremilda, Dr. Denham, presidente, Rev. Tiago, editor, e Waldemar, gerente, discutimos francamente o assunto. Foi muito saudável. No entanto, não cedi em minha resolução. Tenho consciência de que aqueles irmãos e companheiros de jornada cristã não sentem por mim a mesma amizade e confiabilidade. Creio, inclusive, que entre eles houve um rompimento definitivo. Hoje labuto interiormente com o sabor de um grande conflito que tudo isso me tem causado. Nem mesmo sei qual será o resultado final. O fato é que sinto minha vida terrena sendo rapidamente consumida pela exaustão de uma obra tão imensa.
OITAVA PARTE: PERFIL DE JOÃO CALVINO Em suas obras, na análise de outros e em minha visão pessoal
João Calvino — o homem Depois que este livro já estava praticamente terminado, senti um impulso natural de apresentar, em poucas penadas, minha ótica da pessoa, vida e obra de João Calvino, em minha longa e exaustiva experiência em sua companhia diurna e noturnamente. Ao esboçar a matéria, minha tendência foi desistir da tarefa, pois falar deste homem só é exequível a um especialista da matéria. No entanto, sinto que não posso recuar em traçar, mesmo que tortuosamente, um perfil dele em minha ótica ao longo desta trajetória de vertê-lo para o vernáculo. Andei com ele durante estes últimos anos de minha vida, passo a passo, folheando cada página de suas obras, vertendo cada sentença até chegar quase ao final de todas as suas obras escritas. E assim aventuro-me a traçar:
1. Seu caráter Como ponto de partida, desejo descrever seu caráter ou formação. Os especialistas têm dificuldade em tratar deste assunto, pela exiguidade de informação, sem entrar também na esfera da especulação, ou seja, ver o homem nas entrelinhas ou através da imaginação lógica. Porquanto, em suas próprias obras, ele quase não fala de si mesmo. Seu foco era bem outro: fazer conhecido o Eterno e explanar a Santa Escritura com a máxima inteireza, sem pôr em evidência a pessoa que servia de mero instrumento.
1.1. Seu mundo — Genebra antes de Calvino Genebra é um pequeno mundo muito antigo. Júlio César fez menção dela em seus comentários quando rodou o mundo de então. Quando Calvino veio à existência, ela já era governada por um sistema representativo, o qual era exercido “através de quatro concílios, a saber: (1) Pequeno Conselho, que se compunha de vinte e cinco elementos e que poderia atingir até sessenta, que a princípio eram eleitos pelo Conselho Geral ou Assembleia; (2) os Síndicos, pequeno Conselho de apenas quatro elementos, que resolvia as questões de Justiça Criminal. Julgavam os criminosos, à semelhança de nossos jurados modernos, quando constituídos em Tribunal do Júri.
Representava o Juiz um ‘Tenente de Justiça’, que também era eleito pelo Grande Conselho (Assembleia), com alguns auxiliares; (3) Conselho dos Duzentos, cujo nome já indica o número de sua composição. Ficava entre o pequeno e o grande Conselho. Este Concílio foi criado bem mais tarde, já em 1526. Quando foi criado, algumas atribuições do Grande Conselho passaram para ele: por exemplo, a eleição do Pequeno Conselho. O Pequeno Conselho, além de suas atribuições, que não eram muitas, executava as resoluções dos Concílios superiores. Era um tipo de ‘Poder Executivo’, falando-se em linguagem moderna; (4) o Grande Conselho, Conselho Geral, ou Assembleia, como era chamado. Era todo o povo reunido, exercendo sua autoridade suprema, ora legislando, ora elegendo outros concílios, outorgando-lhes poder para legislar. Era o poder supremo. Este Concílio, quer direta ou indiretamente, elegia todos os outros menores”. [29] E o mesmo autor continua afirmando que “João Calvino, com fundamento em sua teologia, aperfeiçoou e aprofundou esse sistema de governo com tanta perspicácia e eficiência, que até hoje é o sistema de governo presbiteriano; e, com algumas modificações secundárias, porém mantendo as mesmas bases, é o sistema de governo adotado por todos os países que realmente são democráticos”. [30]
1.2. Os pré-Reformadores — sua motivação João Calvino veio ao mundo num cenário de domínio católico absoluto, de guerras, de descobertas de novas terras, de invenções científicas (astronomia, imprensa etc.) e já com movimentos de reforma religiosa em vários países.[31] Não fazia muito tempo, a história assistiu o impacto de grandes vultos que buscaram reformar a igreja: Pedro Valdo, na Itália; João Hus, na Boêmia; Jerônimo Savonarola, também na Itália; tradutores da Bíblia, como John Wycliffe, Inglaterra; William Tyndale, Inglaterra. Esses homens foram eliminados pela Igreja de Roma, porém deixaram uma influência de relevância tão imensa, que a igreja papal não conseguiu destruir.
1.3. Devassidão da Igreja Além de guerras intermitentes, a busca de poder absoluto,
possivelmente o que mais abalava o mundo de então fosse a profunda devassidão moral e política não só do clero romano, mas inclusive do trono papal. A religião havia chegado ao ponto mais torpe de sua história. Não havia ficado praticamente nada da religião do sublime Nazareno. Aquela religião apostólica simples e poderosa em obras havia desaparecido. Em seu lugar, surgiu um cristianismo romanizado; ou, melhor, paganizado. Pois a igreja havia adotado todo o sistema religioso e político do Império Romano. Nesse tempo, a Igreja de Roma e a Bíblia tinham pouco em comum, para não dizer nada.
1.4. Decadência generalizada Lendo seu tratado sobre A necessidade reformar a igreja, deparamos com estas palavras: No tempo em que a divina verdade jaz sepultada sob esta vasta e densa nuvem de trevas — quando a religião foi conspurcada por tantas superstições ímpias —, quando por meio de horríveis blasfêmias o culto divino foi corrompido e sua glória, prostrada —, quando por meio de uma multidão de opiniões perversas o benefício da redenção foi frustrado, e os homens, inebriados com uma fatal confiança nas obras [humanas], buscavam a salvação em qualquer parte, menos em Cristo —, quando a ministração dos sacramentos foi em parte mutilada e rasgada, em parte adulterada pelo misto de numerosas ficções, e em parte profanada pelo tráfico lucrativo —, quando o governo da Igreja se degenerou em mera confusão e devastação —, quando os que se assentaram na cadeira dos pastores, primeiramente fizeram injúria mui vital à Igreja pela degradação de suas vidas, e, em segundo lugar, exerceram uma tirania cruel e nociva sobre as almas com todo tipo de erro, levando os homens como ovelhas para o matadouro —, então, ergueu-se Lutero, e depois dele outros, os quais com conselhos unificados buscaram os meios e os métodos pelos quais a religião pudesse ser purgada de todas essas conspurcações, a doutrina da piedade foi restaurada à sua integridade e a Igreja se ergueu de sua condição calamitosa para
uma condição um tanto mais tolerável. [32] E quando apresenta sua réplica ao Cardeal Tiago Sadoleto, ele diz: Deveras, ó Sadoleto, não negamos que aqueles aos quais presides sejam igrejas de Cristo, porém afirmamos que o pontífice romano, com todo seu bando de pseudobispos, que têm açambarcado o ofício de pastor, são lobos vorazes, cujo único empenho até aqui tem sido dispersar e pisotear o reino de Cristo, enchendo-o com ruína e devastação. Pois a iniquidade alcançou seu auge, e agora aqueles lúgubres prelados, por quem crês que a Igreja fica de pé ou perece, e por quem afirmamos que ela tem sido cruelmente rasgada e mutilada, e levada à beira da destruição, não se podem ouvir seus vícios nem curá-los. Pois em todos os lugares onde prevalece a tirania do pontífice romano, raramente verás outra coisa senão tantos becos e vestígios esparsos de defeitos, pelos quais poderás julgar que as igrejas jazem como que semi-sepultadas. [33]
1.5. Torpe superstição Calvino sentia horror de tudo quanto se podia denominar de superstição. Tudo quanto não se enquadra na revelação divina da Escritura, que viola a glória de Deus, que desvia a pessoa da verdadeira fé ele tinha, e com razão, como sendo superstição. A Igreja de Roma havia caído na mais torpe crendice que suplantava até mesmo as religiões pagãs. Naqueles dias, o povo se dispunha a crer em qualquer coisa. A igreja dizia que havia alguns cabelos de João Batista, um dente do Senhor, um pedaço de maná do Antigo Testamento, e algumas migalhas que sobraram da primeira multiplicação dos pães. Havia na catedral um fragmento da coroa de espinhos. Havia, também, relíquias de menor importância, tais como os restos de um tal Santo Elói. Os monges do mosteiro e os padres da catedral sempre discutiam sobre a verdadeira localização dos
ossos daquele santo: se no mosteiro ou na catedral. [34] Este era o cenário, descrito com muita parcimônia, do mundo e da igreja nos dias em que eclodiu a Reforma Protestante. Era impossível que os verdadeiros santos olhassem tudo aquilo com espírito impassível.
2. Sua formação doméstica Foi nesse cenário de revoluções e transformações sociais e religiosas que nosso Reformador nasceu e cresceu. Tudo o que lemos sobre este tema nos leva a entender que o menino Calvino vivia quase que direta e diariamente junto de sua mãe, em casa ou fora de casa, e muito pouco ou quase nada com o pai. Sua mãe, mulher íntegra e muito religiosa, e profundamente piedosa, criava seu filho Calvino com o mesmo teor de crença e piedade. Além dos deveres domésticos, ela atendia também e, sobretudo, aos deveres religiosos, conduzindo pela mão a seus filhos às missas e às orações domésticas. O fato é que toda a vida de Calvino esteve envolta por uma aura de misticismo religioso, sobretudo das superstições subjacentes. Recebia de seus pais, principalmente de sua mãe, o princípio de obediência a Deus e a eles. Essa formação seria de vital importância para aquele menino e para o futuro da Igreja de nosso Senhor.
2.1. Pais de Calvino Irwin tem um pequeno parágrafo que sumaria bem as ocupações do pai de Calvino: “Seu pai, Gerardo Calvino, era notário apostólico, procurador fiscal do condado, escrivão do tribunal eclesiástico e secretário diocesano. Era conselheiro do clero e da nobreza. Admitido como burguês em 1497, se casou com Jeanne le Franc, filha de um burguês da cidade. Era, pois, um homem de posição privilegiada”.[35] Com toda a certeza, não tinha muito tempo para sua família. Pergunta-se: Isso teria sido positivo na vida do Reformador?
2.2. Tela de fundo religiosa E assim Calvino nasceu e cresceu sob a atmosfera religiosa de seu lar
em virtude de sua mãe. Todavia, suas inclinações profissionais teriam tido a influência de seu pai. Conclusão: bebe da fonte religiosa de sua mãe e da fonte profissional de seu pai. Com sua mãe, ele recebe as influências religiosas místicas da época; com seu pai, ele recebe as influências da ambição material, como um profissional competente, abrangente e de espírito independente e anticlerical.[36]
3. Sua formação cultural 3.1. Aluno nas melhores escolas Neste ponto sua mãe desaparece e entra em cena seu pai, dominado pela ambição cultural e profissional que destinara ao filho. Calvino foi estudante em grandes escolas e esteve diante de grandes mestres das ciências humanas. A princípio, seu pai queria que ele estudasse teologia em razão das vantagens econômicas;[37] depois, resolveu que ele estudasse jurisprudência. E assim ele se aperfeiçoou na gramática latina, hebraica, grega, além de seu próprio idioma. Marturin Cordier “adotara métodos modernos para o ensino da língua, pois usava o que hoje chamaríamos o método direto, em que os alunos aprendiam a língua falando, conversando sobre coisas práticas, sobre assuntos da vida diária, versando sobre temas familiares. A ele se atribui a perfeição e elegância que Calvino exibia. Na opinião de Le Franc, professor do colégio de Paris, Cordier fez dele um clássico comparado a Rebelais. É ainda Marturin Cordier que fez de Calvino o latinista perfeito, igual aos clássicos dos tempos de Sêneca”.[38]
3.2. Primeiras influências protestantes E Thea segue dizendo que “havia em Orleans um homem chamado Wolmar, de origem germânica e com inclinações luteranas, excelente professor de grego. Calvino solicitou-lhe aulas na matéria. Aprendendo a língua do Novo Testamento, ele podia agora ler os seus livros na língua original. Lia com a mesma avidez outros escritos gregos”. [39] Ao embrenhar-se nos estudos de humanidades, isto é, filosofia, ao aperfeiçoamento de hebraico, latim e grego, além do aperfeiçoamento de seu
próprio idioma, Calvino se qualificava para algo que nem ele mesmo tinha, no momento, consciência do que seria. Todas as suas obras se acham calcadas na lógica filosófica com seus silogismos. Quando em suas obras ele faz menção “do maior para o menor”, ou vice-versa, ele está evocando os silogismos da lógica. E o estudo da jurisprudência lhe granjeou um grande potencial para sua interpretação e exposição das próprias leis mosaicas que se expandem por toda a Santa Escritura. Vale a pena ler seus poderosos e detalhados comentários sobre os quatro livros da lei, a saber, de Êxodo a Deuteronômio; e também sua exposição da lei em suas Institutas.
4. Sua experiência de conversão Quase sempre, numa experiência de conversão, subjaz uma tela de fundo significativa de influências variadas e vitais no cenário da vida cotidiana. O Senhor usa pessoas em nosso caminho para nos passar essas influências, as quais determinam nosso futuro e guiam nossos passos às vezes sem nem mesmo perceberem.
4.1. Novo Testamento na língua francesa No caso de Calvino, Briçonet influenciou a Lefèvre, que traduziu o Novo Testamento para o francês, que influenciou a Guilherme Farel, que começou a espalhar o santo Escrito entre o povo: “os cardadores de lã, os tecelões, os camponeses e os viticultores... liam e conversavam sobre a Bíblia. Suas igrejas se transformaram. Suas vidas também”. [40] Com esse substrato, Calvino teve também acesso aos escritos de Lutero, e sua vida sofreu uma profunda reversão. Enquanto os escritores se sentem aturdidos por falta de fontes que revelem os primórdios da conversão do Reformador, é ele mesmo que nos fornece essa chave, na dedicatória de seus comentários aos Salmos. ... mas Deus, pela secreta orientação de sua providência, finalmente deu uma direção diferente ao meu curso. Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus, por um ato
súbito de conversão, subjugou e trouxe minha mente a uma
disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida. Tendo assim recebido alguma experiência e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo tão intenso de progredir nesse novo caminho que, embora não tivesse abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei deles com menos ardor.[41]
5. Sua experiência de vocação Pelo que sabemos de seus biógrafos e suas obras, ele não sentiu um chamado definido para empreender algo também definido antes de sua hospedagem em Genebra e a visita que recebeu de Farel na hospedaria. Aliás, de sua relutância diante do convite de Farel a permanecer em Genebra, percebemos que seu intuito era aprofundar-se nos estudos para adquirir mero conhecimento intelectual e espiritual. Aliás, de seu “intenso e inflamado desejo de progredir nesse novo caminho”, ele está se referindo ao progresso nos estudos dos Pais da Igreja, porquanto fala do arrefecimento do ardor pelos estudos filosóficos. Tudo indica que ele se deixou inflamar pelo desejo de aprofundar-se no conhecimento da Santa Escritura, porém sem uma vocação definida para fazer algum empreendimento no reino de Cristo, além disso.
5.1. Encontro com Farel Ele mesmo, em sua dedicatória ao comentário dos Salmos, revela-nos como foi visitado por Farel e impactado pelas palavras candentes daquele homem impetuoso: Nisso, Farel, que ardia com um inusitado zelo pelo avanço do evangelho, imediatamente pôs em ação toda sua energia a fim de deter-me. E, ao descobrir que meu coração estava completamente devotado aos meus próprios estudos pessoais,
para os quais desejava conservar-me livre de quaisquer outras ocupações, e percebendo ele que nada lucraria com seus rogos, então lançou sobre mim sua imprecação, dizendo que Deus haveria de amaldiçoar meu isolamento e a tranquilidade dos estudos que eu tanto buscava, caso me esquivasse e recusasse a dar minha assistência, quando a necessidade era em extremo premente. Sob o impacto de tal imprecação, eu me senti tão abalado de terror, que desisti da viagem que havia começado. [42]
5.2. Relutância Ele segue dizendo que a decisão de ajudar Farel não foi tomada imediatamente, senão à vista do avanço dos problemas oriundos de um falso amigo e dos anabatistas. Deus foi canalizando os eventos de tal modo que ele passou a sentir que ali estava seu campo de batalha e que o Senhor o queria como seu obreiro.
6. Sua piedade É muito difícil falar da piedade de Calvino quando uma multidão o tem na conta de déspota, carrancudo, ou mal-humorado, um vulto impiedoso que reduziu o homem a nada, que acreditava e ensinava que o não eleito pode gritar junto dos portões celestiais, sem cessar, que jamais será ouvido. Esta é uma infame caricaturização da pessoa e teologia do grande Reformador genebrino. Somos informados (ou mal informados) que ele mandou matar um herege que não era tão mau assim; que dominou Genebra com punho de ferro; e que foi o inventor da predestinação e o pai do capitalismo. Ao longo dos anos, vertendo suas obras para o vernáculo, passei a ter com o Reformador uma convivência diurna e noturna. Estou com ele quando vou para o leito e quando me levanto. Estou com ele diariamente em minha oficina de trabalho e na rua. Estou com ele quando adentro os templos; quando assomo o púlpito como expositor da Santa Escritura, abrindo-a para alimentar o povo e anunciar o evangelho da salvação. Estou com ele quando dialogo com as pessoas a seu respeito. Enquanto verto seus escritos para o vernáculo, com frequência me
detenho, emocionado, olho para o alto e rendo graças ao Senhor pela interpretação e exposição daquele homem misterioso que via nas entrelinhas da Santa Escritura o que comumente os expositores desatentos não conseguem notar. Assento-me nos bancos da Igreja de São Pedro para ouvir seus ardorosos sermões; e que sermões! Olho ao redor e vejo todos estatelados nele; e de vez em quando alguém enxuga as lágrimas. Assento-me ao redor de uma grande mesa para receber de suas mãos o sacramento da Ceia e quando ele ministrava o sacramento do batismo. Tenho a permissão de assentar-me nas cadeiras da Universidade de Genebra para ouvir suas dissertações sobre assuntos variados e profundos, as quais contribuíram para mudar o modo de pensar do mundo. Durante aquele período, vejo jovens vindos das diferentes partes do mundo para estudar as ciências teológicas aos pés do próprio Calvino e de tantos outros grandes e santos mestres. Vou inclusive à sua casa, e ele deixa que eu adentre seu quarto, enquanto, em meio a dores lancinantes, recostado em travesseiros, escreve suas cartas e seus tratados, sem cessar; sua cama está sempre abarrotada de papéis espalhados e caídos à revelia pelo chão; era como se aquele momento lhe fosse o último de sua vida terrena. Ou me ponho ao lado de sua escrivaninha esfumaçada enquanto, à luz de um velho candeeiro ou velas, ele escreve, afoito, revirando seus compêndios encardidos; compondo seus comentários e revisando suas Institutas e demais escritos; preparando seus sermões e delineando teses em defesa da plena verdade. Ando pelas ruas, ao seu lado, enquanto os moradores instigam seus cães contra ele, chamando-os pelo nome do Reformador com o fim de insultá-lo e intensificar sua ignomínia. O que vejo? Seguindo sempre em frente, ignorando tudo, como se diante de seus olhos ele só visse a glória celestial de seu Supremo Senhor e sua missão de reformador de sua Igreja. Acompanho suas ardentes orações, feitas como se estivesse diretamente diante do tribunal divino. Orações candentes, saindo do coração de um profeta e se detendo diante do trono da Graça. Descobri que ele terminava cada sermão com uma oração, sempre chamando seu Deus de Onipotente. Inclusive, fiz uma boa caminhada com ele quando expulso de Genebra
e estabelecia temporariamente sua residência em Estrasburgo por três anos. Ali ele desenvolveu muitos de seus escritos. Ali ele encontrou aquele lenitivo que não tinha em Genebra e foi aí que ele decidiu casar-se com Idelete. Estava com ele quando uma delegação genebrina foi buscá-lo de volta. Que cenário dramático! Ainda ouço suas ardentes palavras de perplexidade e lamento, dizendo que não queria, mas tinha que obedecer ao impulso do Espírito Santo e regressar ao seu “inferno”, isto é, Genebra. Voltou e recomeçou sua obra sem dobrar para a direita ou para a esquerda. Eu estava lá quando ele pregou seu primeiro sermão, partindo do mesmo texto que interrompera com a expulsão. Eu estava lá, em torno da mesa do Senhor, quando ele se levantou e enfrentou os libertinos que queriam tomar a Ceia com extrema indignidade. Estava com ele quando pediu ao conselho da igreja que não sinalizasse seu túmulo para que ninguém jamais soubesse onde fora sepultado o mais indigno servo de Jesus Cristo. Porquanto dizia: “Não quero ser exaltado no lugar de meu único Senhor!”. Por meio da tradução de seus escritos, tenho sido testemunha quase ocular da piedade daquele santo varão genebrino. Cada página de seus escritos transpira sua piedade. Detenho-me com muita frequência para enxugar as lágrimas de emoção ao verter suas palavras tão candentes e repassadas de profunda compaixão e ardor. Ele sentia profunda e ardente paixão por seu Deus.
6.1. Ele já era piedoso — 6.1.1. Em sua infância : Podia-se ver sua piedade desde quando levado pela mão de sua devota mãe que frequentemente visitava os templos suntuosos. Seus primeiros passos na piedade foram junto de sua mãe, segurando sua mão: quando ela o instruía no lar, quando orava com ele, quando o aconselhava, quando o afagava no leito. Ela fazia isso dia e noite.
6.1.2. Em sua experiência de conversão : É em seus comentários aos Salmos que lemos de sua confissão quando
se converteu à fé evangélica. Aliás, os biógrafos dele têm dificuldade em encontrar material substancioso sobre sua experiência nesta área. Ele quase não falava de si mesmo. Temos aqui um exemplo de sua piedade, pois sua missão não era falar dele mesmo, e sim de seu bendito Senhor que o chamara para seu serviço. Não era sua pessoa que estava em pauta, e sim a Pessoa de seu Deus. Calvino seguiu a mesma meta dos profetas, cuja missão não era falar deles mesmos, e sim daquele que os enviara. Sua mensagem não visava à sua experiência, e sim à vontade de quem lhes confiara a tarefa de transmitir uma mensagem ao povo na qualidade de meros arautos da verdade celestial. Ele mesmo, falando de sua experiência de conversão, declara: Tendo-me assim recebido alguma experiência e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo tão intenso de progredir nesse novo caminho.[43] Ao comentar Gálatas 4.6, ele faz esta afirmação: O fundamento de nossa vocação [para a vida eterna] é a eleição divina gratuita pela qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos. Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de nossa salvação. Ele quer dizer que atribuía unicamente a Deus toda a causa de sua conversão e salvação. Em parte alguma ele atribui a si sequer uma partícula de mérito pessoal. E a vocação para o ministério sagrado depende de e segue a vocação para a vida eterna. Aliás, possivelmente este seja o gonzo em torno do qual girava toda sua vida cristã. Pois temer a Deus é justamente ver nele toda a existência e o governo de tudo. Eis suas próprias palavras: “Chamo piedade à reverência associada com o amor de Deus que nos faculta o conhecimento de seus benefícios”.[44]
6.1.3. Em sua consagração pessoal : “Porque sei que não sou meu próprio mestre, ofereço meu coração
como um sacrifício verdadeiro ao Senhor.” [45] E: “Meu coração te ofereço, ó Senhor, com prontidão e sinceridade”.[46] Todas as suas declarações escritas são de profunda devoção e piedade. Para ele, o que importa é Deus, e o que vem dele deve retornar para ele na forma de obediência, serviço e glorificação. Sua afirmação contínua era: “Duas coisas estão unidas... ensino e oração”. E: “doutrina sem zelo é como uma espada na mão de um louco; serve para uma ostentação vã e perversa”. [47]
Seus sermões começavam sempre com a oração: Concede-nos, ó Senhor, que meditemos sobre os mistérios celestiais de tua sabedoria, com verdadeiro progresso na piedade, para tua glória e nossa edificação. Amém. [48] E ensinou amplamente: Teologia é conhecer quem e o que Deus é; piedade é abraçar atitudes corretas para com ele e fazer o que ele quer. A verdadeira piedade consiste em um sincero senso de amar a Deus como Pai, enquanto o teme e o reverencia como Senhor, abraça sua justiça e teme ofendê-lo mais que a própria morte. [49] O homem pio confessa: Somos de Deus: vivamos, pois, para ele e morramos para ele. Somos de Deus: então, que sua sabedoria e vontade governem todas as nossas ações. Somos de Deus: então, que todas as partes de nossa vida se empenhem concomitantemente em prol dele como nosso único alvo legítimo.[50] Comentando Jeremias 26.4, ele declara: “... a única maneira de vivermos piedosa, justa, santa e retamente é deixando-nos governar pelo Senhor”.[51] E diz com muita frequência que a fé que não leva a uma vida de oração e piedade não pode ser a fé genuína.
6.1.4. Em sua visão de Deus :
Foi sua visão de Deus que fez dele um homem profundamente piedoso. Ao comentar o terceiro versículo do primeiro capítulo de seu comentário ao profeta Ezequiel, ele faz esta afirmação tão sublime: Daí requerer-se que todos os mestres da Igreja, antes de tudo, tenham sido estudantes e alunos, de modo que somente Deus retenha seus próprios direitos e seja o único Senhor e Mestre. [52] Como, pois, a suprema autoridade reside exclusivamente em Deus, quando os profetas desejam ser ouvidos, não professam oferecer seus próprios comentários, mas anunciam fielmente a mensagem de Deus.[53]
6.1.5. Em sua visão da Bíblia : A Escritura é a escola do Espírito Santo na qual nada se omite que não seja benéfico ou útil; nela nada há que devamos ignorar. [54]
Os pregadores devem ser como pais que dividem o pão, em pequenos pedaços, para alimentar os filhos. [55] E sabemos que nada é mais valioso e aprovado por Deus do que uma sincera atenção para com a piedade; daí a Igreja ser instruída, na primeira tábua da Lei, como ele deve ser cultuado. [56]
Ele costumava dizer, reiteradamente, que a Santa Escritura é a cartilha de Deus para que seu povo conheça aí sua eterna vontade. E diz ainda que toda novidade em questão de religião é falsa, porque nada, além da Bíblia, deve ser crido acerca da vontade de Deus.
6.1.6. Em sua visão de Reformador da Igreja :
Ele mesmo narra de quando, passando por Genebra, Farel o abordou para que ficasse na cidade e empreendesse ali uma reforma religiosa: William Farel me deteve em Genebra, movido por uma fulminante imprecação, a qual me fez sentir como se Deus pessoalmente, lá do céu, houvera estendido sua poderosa mão sobre mim e me aprisionasse. E, ao descobrir que meu coração estava completamente devotado aos meus próprios estudos, para os quais desejava conservar-me livre de quaisquer outras ocupações, e percebendo ele que nada lucrava com seus rogos, então lançou sobre mim sua imprecação: “Que Deus amaldiçoe seu isolamento e a tranquilidade dos estudos que você tanto busca”.[57]
6.1.7. Na defesa da fé e da sã doutrina : Calvino dizia que o pastor tem duas vozes: uma, para apascentar as ovelhas; a outra, para espantar os lobos. Esse grande Reformador era incansável na defesa da fé e na exposição da sã doutrina. Aliás, ele nada mais queria fazer senão uma exposição fiel da Santa Escritura que fizesse o povo de Deus volver-se para suas santas páginas, cresse, fosse edificado e a proclamasse aos outros. Por isso mesmo ele dizia que toda especulação fora das páginas do Santo Livro é blasfema e só serve para desviar os fiéis.
6.1.8. Em suas correspondências : Temos aqui um imenso oceano. Em toda sua azáfama, ele encontrava tempo para escrever a reis, a príncipes, a magistrados, a prelados, a papa, a colegas de ministério, aos mantidos nas masmorras por causa do Nome de Cristo. Ele escreve a Martinho Lutero: Ao excelentíssimo pastor da igreja cristã, Dr. M. Lutero, meu
respeitadíssimo pai.[58] A Melanchton: Quisera que o sentimento de solidariedade, que me permite compadecer de você e partilhar de sua aflição, tivesse também, de algum modo, o poder de aliviar sua tristeza. [59] A William Farel: A graça do Senhor seja com você, irmão, cujo coração é irrepreensível.[60] Aos presos por causa de sua fé. Ele descia também às masmorras para falar aos corações dos irmãos que foram lançados ali pelas mãos da “Santa Inquisição”: Meus irmãos: Passamos alguns dias em ansiedade profunda e tristeza inigualável ao ouvirmos sobre a solução tomada pelos inimigos da verdade. Aguardamos o evento conforme aprouver a Deus, suplicando-lhe que os sustente e não permita que apostatem.[61]
6.1.9. Em sua austeridade : 6.1.9.1. Quanto ao homem em si mesmo : Severidade quanto ao próprio ser humano em sua natureza decaída. Uma das coisas que desgostam os grandes pensadores acerca de João Calvino é como ele encarava e avaliava o ser humano. “A menos que haja alguma restrição, a condição das bestas selvagens é melhor e mais desejável que a nossa.” [62] Ao terminar cada obra com Soli Deo Gloria, ele não permitia que o homem recebesse qualquer glória, a não ser em Cristo. O homem sem Cristo é o ser mais abjeto da face da terra.
6.1.9.2. Quanto ao caso de Miguel Serveto : Aqui não há como estender-me sobre a experiência de Calvino no caso Serveto. É muito complexo e reclama uma abordagem específica. Apenas direi algumas coisas que provam a piedade do Reformador até mesmo em um caso que lhe granjeou a fama de “assassino e monstro”. Quando viu que o Pequeno Conselho não o atendia para mudar o método da execução, da fogueira para a decapitação, ele visitou Serveto e lhe disse: Creia-me, jamais tive a intenção de processá-lo por causa de alguma ofensa pessoal contra mim. Há dezenove anos, colocando em perigo minha vida, quis encontrar-me com você em Paris e ganhá-lo para nosso Senhor. E, depois, enquanto você vivia como um fugitivo, quis novamente mostrar-lhe o caminho certo através de minhas cartas, até que você começou a odiar-me por causa de minha firmeza. Mas peça perdão ao Deus perene contra quem você tem blasfemado. Reconcilie-se com o Filho de Deus, o Salvador. [63] Na introdução de suas cartas, traduzidas e editadas por Editora Cultura Cristã, lemos o seguinte: Calvino não foi mais culpado do que seus concidadãos, nem mais culpado do que as igrejas protestantes e a hierarquia católico-romana que exigiam a execução de Serveto.[64] É preciso lembrar bem que Calvino nunca fez condenar a nenhum católico romano por questão religiosa. No caso de Miguel Serveto, é indispensável perguntar: Por que o Reformador se mostrou tão feroz contra aquele homem? Havia algo terribilíssimo naquele blasfemo que era insuportável tanto para a igreja papal quanto para a Igreja Reformada: ele blasfemava da Trindade com palavras execráveis que reclamavam punição máxima.
6.1.9.3. Seu confronto com Tiago Sadoleto : Em sua réplica ao cardeal Tiago Sadoleto, encontramos no início expressões que revelam sua majestosa figura defendendo seu povo contra a investida de um inimigo astuto, poderoso e de grande erudição. Ali, ele diz: Confio que, depois de explicar a natureza de meu empreendimento, não só serei isentado de toda culpa, mas não haverá sequer um indivíduo que não admitirá que a causa que tenho empreendido não poderia, por essa conta, ser abandonada sem que vilmente estivesse desertando-me de meu dever. E, logo adiante, ele se expressa com todo o requinte de beleza literária e humildade de espírito: Todavia, se me houveras atacado em meu caráter privado, facilmente eu poderia ter perdoado o ataque em consideração de tua erudição, e em honra das letras. Mas quando vejo meu ministério, o qual estou certo de ser apoiado e sancionado pela vocação divina, ser ferido em meu peito, seria perfídia, não paciência, ficasse eu aqui em silêncio e conivência. Não foi sem razão que o grande teólogo Karl Barth escreveu sobre João Calvino: Calvino é uma catarata, uma floresta primitiva, um poder demoníaco, algo vindo diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho, mitológico; perco completamente o meio, as ventosas, mesmo para assimilar esse fenômeno, sem falar para apresentá-lo satisfatoriamente. O que recebo é apenas um pequeno e tênue jorro e o que posso dar em retorno é apenas uma porção ainda menor desse pequeno jorro. Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente com Calvino.[65]
Naturalmente, ele não se reportava somente à inteligência e capacidade do Reformador, mas também a todo seu caráter. Pois ele foi um gigante não apenas em sua capacidade literária, mas, sobretudo, em seu caráter de cristão piedoso e servo de Jesus Cristo.
7. Sua determinação Um dos aspectos em nosso Reformador é sua determinação gerada por uma profunda convicção de que ele fora chamado para ser o reformador de Genebra. Encontramos por toda parte de suas obras sua afirmação de que não podia retroceder. E ensinava aos seus leitores a que procedessem da mesma forma. Suas cartas estão saturadas desse espírito. Por exemplo, após retornar a Genebra depois de ser expulso, lemos que ele “abriu a Bíblia na mesma página em que havia fechado três anos e meio antes, tomou a página seguinte como seu texto e procedeu à exposição como se nada a tivesse interrompido”. [66] À luz desta determinação, notamos em suas obras algo inusitado: ele nunca permitiu que sua exposição fosse mais pobre em um lugar e mais rica em outro. Ele mantém um padrão uniforme em suas exposições. Com frequência, ele reitera o que diz em tantos lugares: “Sendo que já expus este assunto em outro lugar, não vou gastar mais tempo com ele, para não cansar os leitores”. E segue em frente sem ceder à exaustão. Ele não retrocedia diante de nenhum obstáculo. Nada e ninguém o faziam deter-se. Ao ser expulso pelo Conselho, saiu da cidade e se foi em seu caminho. Ao ser buscado, ele voltou e seguiu em frente no mesmo nível que havia começado. Não retrocedia diante das contradições feitas aos seus escritos. Quando afirmava uma doutrina, fazia-o de tal modo que não se retratava por não ter de que se retratar, pois seguia em frente com a mesma convicção de antes.
João Calvino — Pastor e Pregador Duas das facetas mais dramáticas e grandiosas na reforma empreendida por João Calvino são a do pastoreio e da nutrição do rebanho com a palavra da verdade conjugadas, pois é praticamente impossível exercer o ministério cristão sem o duplo exercício do cuidado do rebanho: assistência pastoral e nutrição com a exposição da Palavra. Ele levava ao extremo estas duas facetas de sua reforma genebrina.
1. O pastoreio do rebanho Especificamente, tratamos primeiro do pastoreio em si antes da exposição da Palavra, ainda que as duas funções estejam intrinsecamente ungidas uma à outra e a Palavra da verdade seja usada como remédio e alimento. O pastoreio consiste no governo e vivência constante com o rebanho; a exposição é feita do púlpito ou fora dele com vistas à orientação, conhecimento e aplicação das verdades bíblicas. Uma boa análise de João Calvino como pastor se encontra no livro de Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma, capítulos 12 a 14. Ali Wallace diz que o pastor é um curador de almas, um guia e conselheiro. Equivale dizer, o pastor é um médico de almas; ele pastoreia e apascenta o rebanho de Jesus Cristo. Ele busca, por todos os meios, a salvação eterna, a cura e a boa preservação das pessoas doentes, no mais profundo de seus seres. Ele diz que “o verdadeiro pastor tem duas vozes diferentes — uma para chamar a ovelha e a outra para espantar os lobos vorazes”. [67] Definindo termo. Comentando Romanos 15.16, Calvino afirma que: O sacerdócio do pastor cristão consiste em oferecer os homens em sacrifício a Deus, ao conduzi-los à obediência do evangelho, e não, como os papistas até agora arrogantemente ostentam, em oferecer Cristo [em sacrifício] para reconciliar os homens com Deus. Não obstante, Paulo aqui não faz referência aos pastores da Igreja simplesmente como sacerdotes, como se devessem
levar o título a eles referido perpetuamente, mas que tomou a oportunidade para fazer uso desta metáfora, posto que ele desejava enaltecer a dignidade e a eficácia do ministério. [68] Portanto, para ele, a suma do ministério pastoral é proclamar o evangelho ao mundo, arrebanhar os conversos por meio dessa proclamação, formar grupos ou igrejas para a ministração dos sacramentos, para o ensino da Palavra e a disciplina dos fiéis na fé. Aliás, ele sempre ensinou que há três marcas numa igreja genuína: o correto ensino da Palavra, a correta celebração dos sacramentos e a correta aplicação da disciplina aos membros da igreja. Os dois primeiros sinais cabem ao exercício pastoral; e o terceiro cabe ao conselho da igreja. Para ele, há na Santa Escritura quatro ofícios: pastor, mestre/doutor, presbítero e diácono. O pastor deve ser “um presbítero ordenado compromissado com a pregação e o ensino da palavra de Deus, com a oração intercessória e a supervisão da ministração dos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor”. E mais: O mestre/doutor tem de se concentrar no treinamento acadêmico dos pastores, provendo aulas regulares de teologia e resguardando a pureza doutrinária da igreja. O presbítero deve ser leigo ordenado e separado para oferecer supervisão à igreja, guiando e pastoreando o rebanho, ao mesmo tempo que se engaja em oração intercessória consistente e, quando necessário, implementa a disciplina. Calvino dividiu o ofício de diácono em duas ordens: uma gerencia os recursos da igreja e fornece supervisão administrativa; a outra cuida dos enfermos e necessitados, liderando a igreja no ministério de misericórdia. [69]
2. Vocação e preparo A conversão e a vocação ministerial de Calvino são bem pouco focalizadas. De sua conversão, lemos em seu prefácio ao comentário dos
Salmos: Por meio de uma conversão repentina, Deus subjugou e preparou minha mente para ser ensinada a respeito das coisas espirituais, o que aconteceu de forma mais intensa do que se esperaria de uma pessoa de minha idade. Tendo, desse modo, recebido uma amostra e algum entendimento da verdadeira piedade, fui imediatamente estimulado com um desejo tão intenso de fazer progresso neste conhecimento que, embora não tenha abandonado por completo os outros estudos, eu os buscava com menos fervor.[70] Tudo indica que sua vocação ministerial se achava atrelada à própria conversão, à semelhança de Saulo de Tarso que, logo após seu encontro com o Cristo glorioso, se sentiu também impelido ao ministério apostólico. O fato é que Calvino se converteu já com a “mão na massa”. Assim que seu coração se inflamou, não teve nada mais em mente senão tomar posse do pleno conteúdo da Santa Escritura e ensiná-lo com a máxima precisão. Poucos homens, no seio da Igreja de Cristo, tiveram o mais amplo domínio da Bíblia como Calvino o teve. A ponto de afirmar que “qualquer coisa que não estivesse alicerçada na Palavra de Deus era futilidade e ostentação efêmera; e o homem que não confia nas Escrituras deve ser destituído de seu título de honra”.[71] “O alvo de um bom professor é fazer com que os homens tirem os olhos do mundo a fim de olharem para o céu.” “O dever do teólogo não é entreter os ouvidos com algazarra, e sim fortalecer as consciências através do ensino de coisas verdadeiras, certas e proveitosas.” [72] Ele ensinava com muita frequência que “o pastor tem duas vozes: uma, para guiar as ovelhas; e a outra, para espantar os lobos”. Quanto a guiar as ovelhas com a voz profética, de fato raramente há um pastor, hoje, que guie tão bem seu rebanho, que o alimente, que o oriente, que lhe dê segurança neste mundo tenebroso, como fez João Calvino. Ele viveu intensamente não só em prol de seu próprio rebanho, mas escrevia suas cartas a pessoas desde o trono até os guetos, escrevia suas apologias, suas teologias, seus comentários fielmente bíblicos para o bem do rebanho universal do Senhor Jesus. Se houvera vivido mais teria comentado toda a Bíblia. Mas tão cedo silenciou-se a voz profética desse grandioso pastor. Sua
voz acalentou não só os rebanhos de seus dias, mas continua acalentando os rebanhos de todos os tempos. Ele escreveu suas Institutas principalmente para orientar bem seu rebanho. Por muito tempo, esse livro foi o parceiro da Bíblia nas mãos dos crentes leigos como um manual de devoção. Ele ajudou a formar crentes fortes e aguerridos no seio das igrejas. As pessoas individualmente e as igrejas eram fortes porque amavam o conhecimento de Deus nas Escrituras. Hoje as igrejas se divertem com entretenimentos variados, e os pastores se comprazem com teatro no lugar de culto, crendo que Deus se apraz com esses panegíricos. O culto bíblico foi substituído por formas religiosas ecléticas e o ensino bíblico genuíno e profundo foi substituído por mensagens que agradem os ouvidos de religiosos vazios de conteúdo bíblico. Quanto à voz que espanta os lobos, isso ele fez de modo exuberante. Em todos os seus escritos há poderosas faíscas que estilhaçam o poder dos perseguidores do rebanho de Deus. Seu primeiro escrito como pastor foi Psicopaniquia. Ali ele dissipa a antiga heresia de que, após a morte da pessoa, sua alma dorme com o corpo, até o dia do Juízo Final. E hoje enfrentamos a mesma heresia com uma máscara de veracidade, e é aceita e professada por milhares de pessoas. Mais tarde escreveu Réplica ao Cardeal Sadoleto, que queria repatriar o rebanho genebrino ao seio da Igreja Mãe, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. E o teria conseguido, se aquele feroz pastor, com o qual o Cardeal não contava, não saísse como que de sua torre de vigia, com cacete, com pedras, com gritos, com poder, com ferocidade, brandindo sua espada cortante de ambos os lados, bem longa, afiada ao máximo, espantando aquele lobo solerte e bem preparado, fazendo-o voltar assustado, com o rabo entre as pernas, para o meio de sua caterva (para usar a própria terminologia de Calvino). Respondeu às expectativas de seu rebanho contra a incredulidade do mundo, escrevendo sua tese sobre Jacó e Esaú, Eleição e reprovação; discutiu sobre A providência secreta de Deus (seus decretos eletivos); sobre a necessidade reformar a igreja; compôs uma Confissão de fé e Catecismos; defendeu a pureza dos dois sacramentos em Breve tratado sobre a santa Ceia; para mostrar o grande risco que o crente corre ante as tentações da carne, ele pregou sobre a Queda e restauração do Rei Davi; pregou vários sermões sobre A pessoa e obra de Jesus Cristo. Ele pregou 159 sermões em
todo o livro de Jó; 48 sermões em Efésios; 43 sermões em Gálatas. Calvino teve a máxima preocupação com o preparo dos ministros da Palavra. Para ele, o ministro é o arauto do reino de Deus; o embaixador de Cristo entre todas as nações; ele é o ministro, o sacerdote da Igreja de Cristo; o hermeneuta fiel e imparcial da Palavra de Deus escrita. Ele não tem vontade própria; sua vontade é a de Cristo, o Senhor da Igreja. Ele representa o eterno dentro do temporal. Todo conhecimento para o ministro do evangelho resulta sendo ainda pouco. Não há limite para seu conhecimento. E ele usa todo esse conhecimento na expansão da Igreja e a glória de Cristo. Ele leva consigo a majestade de Cristo. Quando sobe ao púlpito para explanar a Palavra de Deus, os cristãos reunidos devem perceber nele a mesma majestade que há no Filho de Deus. O homem que não tenha tal consciência deve exercer alguma outra ocupação na igreja, porém não a de ministro do evangelho. Seu preparo teológico deve ser o mais esmerado possível. Um ministro que não exerce pleno domínio do conhecimento bíblico traz mais desdita do que bênção à igreja e à sociedade em que vive, pois vai anunciar muita coisa equivocada. Ele deve ser excelente em todas as ciências teológicas. E quando prega do púlpito, ou de algum outro lugar, ele ou granjeia autoridade pela demonstração de conhecimento, ou denigre a si e ao seu próprio ministério. Pois ele não pode ensinar o que pense ou queira; sua função é ser um fiel e exato hermeneuta e exegeta da Palavra. À medida que você lê seus comentários, vai percebendo que de fato Calvino detinha a posse da Palavra de Deus. Descobrimos que, quando ele chegava a pregar um sermão, já havia lido, relido, revirado de ponta cabeça o texto de seu sermão, e isso nas línguas originais. Enquanto não tivesse pleno domínio daquele texto, ele não delineava sua mensagem. Hoje temos mais pregadores repentistas do que dominadores da Palavra de Deus. E ainda, cinicamente, alegam que têm o Espírito Santo em sua vanguarda, quando ele não vem nem na retaguarda. Além da incompetência, soma-se a ela o cinismo. Daí, os rebanhos estão famélicos, cambaleantes, dispersantes em busca de alimento; encontram refugos, e creem que agora estão sendo bem nutridos pelas bolotas das seitas, só porque não acham no próprio pasto, ou no próprio aprisco, quem os alimente, porque são poucos que estão de fato pastoreando e apascentando o rebanho de Cristo. “Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9.36). O que ocorre com tanta frequência é que as ovelhas se dispersam e
buscam lobos travestidos de pastores, pois nem mesmo sabem distinguir um pastor verdadeiro do falso. Se o verdadeiro não exerce seu ofício, e o falso o exerce, então a ovelha é fadada a perder-se ou, ao menos, a se danificar com alimento falsificado.
3. O arauto da Palavra A Editora Fiel lançou um excelente livrinho de Steven J. Lawson, intitulado A arte expositiva de João Calvino. É digno de ser lido e relido. O que ele expõe ali se acha esparso nas próprias obras do Reformador. Você vai lendo suas Institutas, seus tratados, seus comentários e suas correspondências e se depara com esses ensinamentos aqui, ali e acolá. Mas uma coisa é certa, o conceito que ele nutria pelo púlpito ou tribuna da Palavra de Deus é algo inusitado; hoje quase já não existe. O Rev. Abdias Nobre, em seu livro, Manual do pregador, traduziu bem o sentimento de Calvino pela mensagem divina que ecoava do púlpito: O púlpito é a Cátedra Sagrada, donde o pregador atira para o meio das multidões as preciosas mensagens do céu. [73] Baluarte da verdade, pedestal da justiça, tribunal das consciências, escola do bem, o púlpito deve refletir sempre os valores divinais e as virtudes celestiais. A tribuna sagrada tem sido, para todos os povos cultos, civilizados e cristãos o oráculo divino, donde tem ecoado a profecia inspirada e verdadeira a revelar a vontade de Deus em favor dos homens. [74] A tribuna sagrada é o escudo que mete terror a todas as tiranias, porque dela partem os raios que aniquilam o erro, dissipam as trevas, desfazem os grilhões dos cativos, rechaçam os inimigos da verdade eterna. Dela o pregador, à semelhança do semeador, vai lançando a semente das ideias que hão de germinar nos corações, nas mentes, nas consciências, para formar as opiniões, as correntes doutrinárias que conduzirão a humanidade a melhores dias e destinos definitivos. [75]
Assim era o púlpito de Genebra. Em seu prefácio, Lawson diz que “ir ao púlpito é pisar em terra santa”. [76] E que “a exposição da Palavra está sendo substituída por entretenimento, a pregação da Palavra, por espetáculos teatrais, a doutrina, por obras dramáticas e a teologia, por manifestações artísticas”. [77] E, ao conclamar uma reforma na igreja moderna, ele diz que “somente um púlpito reformado torna possível uma igreja reformada”.[78] E, falando do ministério dos grandes pregadores pós-Reforma, ele diz que “bem no centro destes ministérios extraordinários havia púlpitos firmados na Palavra”. [79] Ao volver-se para Calvino, Lawson diz que “ele é ainda hoje o mais influente ministro da Palavra de Deus que o mundo já viu. Nenhum homem antes ou depois dele foi tão prolífico e tão profundo no lidar com as Escrituras”.[80] Calvino costumava dizer que, “quando subimos ao púlpito, não levamos conosco nossos sonhos e nossas fantasias”.[81] Por quê? Porque “a Bíblia é a competente, inspirada, inerrante e infalível Palavra de Deus”. [82] E arremata: “qualquer professor da Bíblia, independentemente de ser humilde ou notável, que decide ‘misturar suas invenções à Palavra de Deus, ou que sugere qualquer coisa que não faça parte dela, deve ser rejeitado, por mais ilustre que seja sua posição’”. [83] “Ele só se via sob a autoridade da Palavra.”[84] Tinha consciência de que era seu ministro chamado do alto. Para ele, “a mensagem das Escrituras é soberana: soberana sobre a congregação e soberana sobre o pregador”.[85] Ele declarava que, “quando a Palavra é pregada, o próprio Deus está, de fato, presente”. [86] “Onde quer que seja pregado o evangelho, é como se o próprio Deus viesse para o meio de nós.”[87] Quando comenta os primeiros capítulos do livro de Ezequiel, ele faz esta declaração: Que os pastores enfrentem todas as coisas sem medo, por meio da Palavra de Deus, da qual foram constituídos administradores. Que eles reúnam todo o poder, toda a glória e excelência do mundo a fim de conferir a primazia à divina majestade desta Palavra. Que, por meio dela, comandem a todos, desde a pessoa mais notável até a mais simples. Que edifiquem o corpo de Cristo. Que devastem o reino de Satanás. Que apascentem as
ovelhas, matem os lobos, instruam e exortem os rebeldes. Que juntem e separem, que clamem com veemência, se for necessário, mas que façam todas as coisas de acordo com a Palavra de Deus.[88] E ao comentar sobre aquelas duas pedras que faziam parte do peitoral do sumo sacerdote, chamadas Urim e Tumim, ele diz que muitas coisas já não sabemos sobre aquelas pedras, mas uma coisa é certa: “o sacerdote portava os filhos de Abraão como que em seu coração, não só para os apresentar a Deus, mas também para manter a consciência de que eles existiam e para fomentar solicitude por seu bem-estar”.
4. O sacerdote dos sacramentos Calvino nutria o mais intenso respeito e apreço pelos sacramentos. Tanto que, quando teve de enfrentar o conselho de Genebra que queria que a Ceia fosse liberada a certos celerados, chamados “libertinos”, ele os enfrentou e disse: Vocês podem esmagar estas mãos, podem cortar estes braços, podem tirar minha vida, meu sangue é de vocês, podem derramá-lo, porém jamais me forçarão a dar as coisas sagradas ao profano e desonrar a mesa de meu Deus.[89] Seu apreço pela santa Ceia era tão imenso, que escreveu um compêndio em sua defesa. Um compêndio que, pelo título, Breve tratado sobre a santa Ceia, pareceria pequeno, na verdade é composto de umas 500 páginas. Ali ele discute com celerados, com blasfemos, com papistas, com luteranos, entre outros. Ele confronta a Escritura com as teorias humanas da transubstanciação, da consubstanciação, mantendo que o pão e o vinho não se transformam no corpo real de Cristo, nem existe ubiquidade do corpo real de Cristo que, na realidade, está assentado à destra do Pai. Isto é, seu corpo não pode estar sob, ou no meio, ou sobre o pão e o vinho na Ceia. Ele afirmava que, de fato, Cristo está presente na Ceia, porém em sua deidade transcendente. Nem concorda com Zuinglio, que afirmava que a Ceia não passa de uma mera memória. Enquanto que aqueles esvaziam o céu, trazendo Cristo
para a Ceia, ou o sacrificam num altar imaginário, este esvazia a própria Ceia, deixando Cristo lá e nos deixando cá sem ele. Ao comentar a instituição da Ceia, em 1 Coríntios 11, ele diz que a única Ceia verídica está calcada na autoridade do próprio Senhor Jesus. Por isso todo seu empenho foi descobrir nas entrelinhas a real intenção do Senhor ao instituir a Ceia e a interpretação que deram dela os apóstolos. Daí dizer: “Por isso, quando volvemos nossas costas às normas que os homens engendram, então a autoridade exclusiva de Cristo permanece inabalável”. E diz ainda que “o propósito do sacramento [da Ceia] é que sejamos confirmados na bênção que a morte de Cristo confere”. Para ele, o pastor é ministro da mesa do Senhor, é sacerdote, sim, não para sacrificar outra vez a Cristo, e sim para proclamar o Cristo já crucificado, redivivo e aclamado nos mais altos céus.
5. A autoridade na disciplina Para Calvino, todo escândalo no seio de uma igreja tem de ser corrigido pelo conselho da mesma, e que em certos casos é preciso levar o assunto para a assembleia. Tanto que ele tem este aspecto como sendo uma das marcas de uma igreja genuinamente cristã. No entanto, para ele há crimes que merecem uma disciplina sumária. Em primeiro lugar, ele se preocupa quando a pureza da própria religião é posta em xeque em razão de ser, de alguma forma, corrompida. Ao focalizar o capítulo 10 de Levítico, no caso de Nadabe e Abiu, filhos de Arão, diz ele que ali tentaram conspurcar o culto de Deus, oferecendo fogo estranho, isto é, um fogo não ordenado por Deus. “Seu crime é especificado, a saber, ofereceram incenso de uma maneira diferente daquela que Deus havia prescrito e, consequentemente, embora errassem por ignorância, contudo condenados, pelo mandamento de Deus, de haverem, negligentemente, apresentado o que era digno de maior atenção.” “ Fogo estranho é o oposto de fogo santo, o qual ficava perenemente queimando no altar; não miraculosamente, como pensam alguns, mas pela constante vigilância dos sacerdotes.” “Aprendamos, pois, a atentar bem para o mandamento de Deus, não corrompendo seu culto com quaisquer invenções profanas” — por mais agradáveis que sejam aos nossos sentidos. Ele censura a Igreja de Roma de apresentar a Deus “fogo estranho” em
suas missas. Se ele vivesse hoje teria que lançar suas abrasadoras invectivas contra o povo chamado “evangélico”, cujo culto quase não tem qualquer semelhança com o culto prescrito por Deus. Em seguida, ele focaliza a vida imoral dos cristãos, discutindo isso no capítulo 5 de 1 Coríntios, acerca do homem que vivia maritalmente com a própria madrasta. Nossa atenção se volve para o fato de que, numa igreja local, é possível gerar-se o crime mais hediondo, como a prática da sodomia, do estupro, da pedofilia, do incesto, como é o caso aqui. Esse é o lado humano da igreja que, intrinsecamente, é uma instituição divina. Primeiro, ele diz que a igreja e o conselho estavam desatentos, ainda quando o caso fosse notório a todos. Estavam ensoberbecidos, não choravam, e o profano continuava em plena comunhão com a igreja; assentava-se com a congregação para a celebração da Ceia do Senhor; participava das decisões administrativas. Ele une seu espírito com o espírito da igreja, isto é, une as duas autoridades, apostólica e eclesiástica, no uso do poder das chaves, para ele não o fazer sozinho e nem a igreja o fizesse sem o endosso apostólico, “no nome de nosso Senhor”, no poder dele, “seja entregue a Satanás para a destruição da carne”. Ele diz que, para que uma reunião seja celebrada “no nome de Cristo”, demandam-se duas coisas: (1) que a reunião tenha início com a invocação do nome de Cristo, o Senhor da Igreja; (2) não se deve fazer nada que não esteja em conformidade com a sua Palavra. Portanto, que os cristãos reunidos estejam comprometidos de só agir depois que o Senhor [da Igreja] seja invocado com toda sinceridade, rogando que sejam guiados por seu Espírito, e que todos seus planos sejam, por sua graça, dirigidos rumo a resultados benéficos. Para que se faça uma boa abertura, devem igualmente ‘consultar sua boca’, no dizer do profeta (Is 30.2); em outros termos, após consultar seus oráculos, devem entregar-se a si e a todos seus planos em completa obediência à sua vontade. Ao usar o termo “excomunhão”, ele afirma que essa “excomunhão é
uma ordenança de Deus mesmo, e não do homem; portanto, sempre que a usarmos, em que ponto devamos começar, senão em Deus?”. E, ao falar do poder de Deus com os crentes congregados, diz ele: “quão importante é a excomunhão legítima aos olhos de Deus, visto que ela depende do poder de dele”. Ele diz que os “excomungados” são entregues a Satanás, não porque lhe pertençam, mas para que sejam corrigidos por ele como um azorrague, e interpreta isto assim: “ entregar a Satanás é uma forma adequada de descrever a excomunhão; visto que, enquanto Cristo reina dentro da Igreja, Satanás reina fora dela”. Isto é, entregar a Satanás nada mais é que tirar do excomungado, temporariamente, a proteção dos muros da cidade santa, a Igreja. Ele cita Agostinho: “em virtude de sermos recebidos à comunhão da Igreja e de permanecermos nela na condição de que estamos sob a proteção e responsabilidade de Cristo, afirmo que a pessoa que é afastada da Igreja está, de certa forma, entregue a Satanás, porquanto se acha alienada e excluída do reino de Cristo”. Para a destruição da carne é adicionado à moda de mitigação.
Porquanto Paulo não pretende dizer que a pessoa, ao ser corrigida, está sendo entregue a Satanás para completa [definitiva ou sumária] destruição, ou que se fez escrava dele para sempre, mas que sua sentença é temporária e, ainda mais, que isso será para seu bem. Visto que, no que concerne ao espírito, tanto sua salvação quanto sua reprovação são eternas, ele toma a condenação da carne como sendo temporária. E parafraseia: “Nós o condenaremos por um período de tempo, neste mundo, a fim de que o Senhor o conserve em seu reino”. Isso elimina a calúnia de que Calvino era inclemente e inflexível; que ele sentia mais prazer em lançar no inferno do que no céu. Por todas as suas obras percebemos nitidamente seu espírito generoso, clemente, compassivo, perdoador, chegando a ser quase liberal demais, asseverando sempre que os crentes precisam ser compreendidos pelas autoridades da Igreja, principalmente pelo pastor. Dizendo que, se houver rigor demasiado na disciplina, ninguém se assentará à mesa do Senhor. E que, se passar um pente por demais fino na membresia da Igreja, ninguém entrará no céu. E que
aqueles que vivem de dedo em riste contra as falhas dos crentes não passam de fariseus. No púlpito, o pastor é um rigoroso arauto e profeta; no convívio com os cristãos, ele é um curador, um médico brando e amigo, rindo-se com os que riem; chorando com os que choram; sofrendo profundamente com e por seu rebanho. Quando é duro, o faz em razão de seu ofício; quando é brando, o faz em razão do perdão que emana do próprio Cristo, o supremo Pastor de seu rebanho; e também porque ele mesmo não é superior moralmente do que as próprias ovelhas. Amados irmãos e amigos pastores, que o Senhor da Igreja nos transforme em verdadeiros pastores de seu rebanho nestes dias de deformação e decadência; que ele transforme nossos púlpitos em tribuna de sua eterna salvação e de seus inexoráveis juízos, sim, mas também de uma genuína “comunhão dos santos”.
JOÃO CALVINO — O TEÓLOGO 1. Método de acomodação divina Um dos pontos na teologia de Calvino que mais trazem elucidação para uma boa compreensão da Santa Escritura, em minha opinião e experiência pessoal, é sua ênfase sobre o método divino de acomodação à capacidade e circunstâncias humanas enquanto se revela. Eu me valho principalmente da obra de Edward A. Dowey, Jr., a qual estou traduzindo, intitulada O conhecimento de Deus na teologia de Calvino. Depois que tomei posse desse aspecto da revelação divina, passei a compreender muito mais o modo de Deus revelar-se ao ser humano, especialmente a seu povo.
1.1. Definição de termos Diz Edward: “O termo acomodação se refere ao processo pelo qual Deus se reduz ou ajusta às capacidades humanas o que ele quer revelar dos mistérios infinitos de seu Ser, os quais, por sua própria natureza, estão [infinitamente] além dos poderes de a mente humana apreender”. [90] Depois da queda, perdendo o homem quase toda a imagem divina, ou ficando esta danificada pela corrupção de sua natureza, Deus continua querendo comunicar-se com ele, agora não só verbalmente, mas também
visivelmente, em razão de sua grande dificuldade em apreender o Ser e o agir de Deus. Calvino diz que a mente do homem tornou-se tão obtusa e indisposta para com Deus, que é impossível de, por si só, receber a manifestação divina. Aliás, em sua maioria, o homem está tão alienado do Senhor do universo que, se Deus não se lhe manifestar, ele não dará sequer um passo em direção ao Senhor, nem jamais entenderá quem está se manifestando; pensará ser Deus um mero fantasma. Mesmo seus filhos, crentes nele e em sua revelação, não têm a capacidade de ouvir Deus lhes falando de maneira bem direta. Lemos de patriarcas, profetas e apóstolos apavorados só porque viam uma leve manifestação do Ser divino. Young afirma com justeza que: Deus, o transcendente, incompreensível, usando linguagem retórica, se condescende, na Escritura, em acomodar-se a eles [aos crentes], o princípio de acomodação se torna profundamente importante para a interpretação apropriada dos textos bíblicos. Nossos exames dos casos em que Calvino apelou para este princípio deixará claro por que isto é assim. Nos comentários, nos sermões e nas Institutas, Calvino, reiteradamente, enfatiza o fato de que Deus se acomoda à nossa limitada capacidade, a fim de entendermos sua mensagem. Ele realçava constantemente que Deus, o Espírito Santo, ou os autores humanos da Escritura, particularmente Moisés, Davi ou os profetas, se acomodavam, nos atos e na linguagem, aos ouvintes ou leitores da Escritura. Calvino falava daquela acomodação como uma “condescendência”, “descida”, “adaptação”, “Deus se rebaixando de suas alturas”, ou “chegando mais perto das criaturas decaídas” que eram descritas variadamente como “multidão sem instrução”, “homens iletrados”, “rudes e broncos” ou “pessoas humildes e indoutas”, “infantes” ou “pequeninos”. Porque não passamos de criaturas broncas em comparação com o infinito Criador do céu e terra, somos uma plebe de capacidade limitada. Calvino falava assim de Deus ou dos escritores bíblicos como se acomodando à “capacidade dos homens”, “a capacidade da idade”, “a capacidade comum de cada pessoa em sua simplicidade”, “a
capacidade do povo”, “a capacidade dos indoutos”, “nossas frágeis capacidades”, “as capacidades mutáveis e diversificadas do homem”, “nossa capacidade”, “nossas ínfimas capacidades” ou “nossa limitada capacidade”.[91] Comentando Ezequiel 9.3, diz Calvino: “Deus não pode ser compreendido por nós exceto à medida que ele se acomoda ao nosso padrão”. [92]
Discorrendo sobre o livro do Gênesis, ele afirma, em 3.8: Pois, visto que em si mesmo é compreensível, ele assume, quando deseja manifestar-se aos homens, aquelas marcas pelas quais possa ser conhecido.[93] E, ao discorrer sobre Romanos 1.19, afirma que Isto subtende que não podemos conhecer plenamente a Deus, em toda sua grandeza, mas que há certos limites dentro dos quais os homens devem manter-se, embora Deus acomode à nossa tacanha capacidade toda declaração que ele faz de si mesmo. [94] E, em 1 Coríntios 2.7, ele afirma que “Deus se acomoda à nossa capacidade quando nos fala”.[95] Quando discorre sobre Êxodo 3.2, declara que: Era necessário que ele assumisse uma forma visível, para que fosse visto por Moisés, não como era em sua essência, mas como a fragilidade da mente humana pudesse compreender. Pois assim cremos que, sempre que Deus aparecia aos santos patriarcas, de alguma forma descia de sua santidade, para revelar-se enquanto fosse útil e o quanto a compreensão deles o permitisse.[96] Quando escreve a Timóteo (1Tm 6.16), Paulo apresenta três elementos na subsistência eterna de Deus: imortalidade, inacessibilidade e
invisibilidade. ... o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém. 1. “O único que possui imortalidade”, isto é, imortalidade essencial, eterna, não derivada, como o é a nossa; a dele é inerente à sua natureza infinita. Daí a expressão bíblica reiterada tantas vezes: “o Deus vivo”, “aquele que vive”, isto é, “aquele que vive para sempre” em si e por si mesmo. Aqui, Calvino afirma que “Paulo está preocupado em demonstrar que à parte de Deus não há felicidade real e perene, nem dignidade, nem excelência, nem vida. Ele então afirma que Deus é o único realmente imortal, e devemos saber que nós, bem como todas as criaturas, não possuímos vida inerente em nós mesmos, senão a que recebemos dele” como a fonte de vida real.[97] 2. “Habita em luz inacessível.” Muito embora Calvino diga que “ele [Paulo] tem em mente duas coisas: que Deus está oculto de nós, e, no entanto, a causa de sua obscuridade não está nele, como se estivesse envolto em trevas, mas em nós, em não podermos ter acesso à sua luz em virtude da debilidade de nossa percepção, ou, melhor, do embotamento de nossa mente”,[98] contudo cremos que, por sua própria natureza, mesmo o homem antes da queda não poderia deparar-se com essa inacessibilidade, porquanto a luz que recebemos dele não passa de chispas daquela luz suprema e infinita. Nesse sentido, nem mesmo os anjos a seu serviço têm pleno acesso a essa luz inacessível. Daí lermos em Isaías 6 que os serafins tinham três pares de asas: com um par voavam, com um par cobriam seus rostos e com o outro par cobriam seus pés. Significando que nem mesmo eles têm pleno acesso, de olhos nus, à glória inerente e plena de Deus, senão meramente à sua refulgência. À semelhança do sol: nenhum olho nu seria capaz de fitá-lo de perto. Ora, se este, uma coisa criada, possui tal natureza, o que dizer de seu Criador? Também nesse sentido cremos que nem mesmo após a ressurreição final teremos acesso a essa luz em sua plenitude. Se ele não descer a nós em termos de acomodação, como subiremos a ele? O que veremos de Deus será a forma humana que Cristo assumiu para sempre.
3. “A quem homem algum jamais viu .” Diz Calvino: “que os homens aprendam a contemplar, pela fé, àquele cuja face eles não podem ver com seus olhos carnais, ou mesmo com o discernimento de suas mentes”. [99] Embora esteja escrito em 1 João 3.2, “sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é”, todavia, por certo que isso se refere à vivência com seu esplendor externo, na pessoa de Jesus Cristo, e não à sua essência substancial e inerente, com a qual só as pessoas da Deidade podem ter plena comunhão. “Porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus” (1Co 2.10). “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Ninguém precisa preocupar-se por não conseguir mirar diretamente Deus em sua essência infinita. Eis as palavras de Calvino: “o conhecimento de Deus é a porta pela qual temos acesso ao usufruto de todas as bênçãos. Portanto, visto que Deus se nos revela exclusivamente por meio de Cristo, segue-se que temos de buscar todas as coisas somente em Cristo”.[100] Ele diz ainda que “tal expressão não deve ser entendida como uma referência à visão externa dos olhos físicos”. [101] Ele quer dizer, em termos gerais, que, já que Deus habita em luz inacessível (1Tm 6.16), ele não pode ser conhecido senão em Cristo, que é sua imagem viva.” No dizer do escritor da carta aos Hebreus: “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata de seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra de seu poder...” (Hb 1.3).
1.2. O paradoxo de infinito e finito Segundo Calvino, visto que a essência de Deus é desconhecida e inacessível a nós, toda e qualquer especulação sobre ela é blasfema. É impossível a mente finita apreender a essência infinita de Deus. Somente a Trindade se compreende, se discerne, se perscruta, se conhece e se comunica essencialmente. Daí ser impossível formar uma imagem visível ou concreta, mesmo conceitual, de Deus como se ele subsistisse nessa forma. Razão por que ele proibiu que se fizesse dele qualquer imagem ou forma visível. Nenhuma imaginação humana pode apreender a essência divina. Por isso mesmo ele diz a Moisés, quando pergunta sobre seu nome: “Eu Sou o que Sou”. Isto é, Eu Sou indescritível e aquele que existe por si mesmo. Nesse sentido, somente ele é ou existe. Tudo mais é feito; somente ele não foi feito.
A Confissão de fé de Westminster não pergunta Quem é Deus, pois ele, estritamente falando, é indescritível, e sim O que é Deus. Pois ele só pode ser conhecido através de seus atributos, e estes, mesmo assim, em atividade, quando e como manifestados. Pois ele nunca se manifestou através de um atributo plena e exaustivamente manifestado, pois todos os seus atributos são infinitos. Embora em Jesus Cristo tenhamos a manifestação máxima de seu amor, contudo este amor nunca se manifestou em toda sua inteireza; mesmo no Calvário, isso se deu de modo um tanto nebuloso, em relação a nós. Quando estivermos com ele em glória, esse amor continuará a revelar-se infinita e eternamente, sem jamais esgotar-se. Ele se desvendará a nós continuamente em seus atos de comunhão conosco. Jamais entendemos nem entenderemos a plenitude e infinitude do amor de Deus em Cristo.
1.3. Acomodação pela voz Deus é o Ser que se comunica vocalmente com suas criaturas especiais. Ele fala com elas; e fala usando o próprio idioma delas. Em toda a Escritura lemos: “Disse Deus”. O terceiro versículo de Gênesis registra justamente “Disse Deus”. E já que João registra que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, que “todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.1, 3), entendemos que é este Verbo que está em ação em Gênesis 1.3. Quando Calvino comenta este texto de Gênesis 1.3, fazendo menção de Serveto, diz: “Este imundo sofista assevera que o ponto de partida da existência da Palavra [Verbo] de Deus foi quando este ordenou que a luz viesse à existência; como se realmente a causa não fosse anterior ao efeito. Não obstante, já que pela Palavra de Deus as coisas que não existiam de repente vieram a existir, devemos antes inferir a eternidade de sua existência. Serveto imagina uma nova qualidade [ou atributo] em Deus, e sem a qual este amais poderia existir”.[102] Isto é, a Palavra, ou o Verbo, e Deus são um só, porque ela não poderia existir sem ele, e este não poderia existir sem aquela. E, comentando o texto de João, Calvino declara: O evangelista denomina o Filho de Deus de a Palavra [Sermo] simplesmente porque, primeiro, ele é a eterna Sabedoria e Vontade de Deus; e, segundo, porque ele é a imagem expressa
do propósito divino. Pois assim como no homem se denomina a linguagem como sendo “a expressão dos pensamentos”, então não é fora de propósito aplicar isso a Deus e dizer que ele nos é expresso por meio de sua Palavra [ou Verbo].[103] No capítulo dois de Gênesis, lemos que Deus criou o homem e falou com ele. No capítulo três houve aquele diálogo judicial, quando Deus julga o casal e a serpente, falando, expressando sua vontade e sentimento. Desde então ele sempre falou com seus servos, patriarcas, profetas, magistrados, reis, pessoas particulares, com os apóstolos e, especialmente, pelos lábios do Filho: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de diversas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hb 1.1, 2). Não sabemos em que idioma Deus falou ao homem e vice-versa, mas isso nos ensina que ele, não satisfeito com simplesmente exercer no homem a influência interior do Espírito Santo, quis manter colóquio pessoal e verbal com o homem. Seu interesse em manter colóquio com o homem é tão grande, que o autor de Hebreus disse que outrora ele falou, diversas vezes, aos pais (1) por meio dos profetas; agora, (2) por meio do próprio Filho (a Palavra ou Verbo eterno). Calvino bate firme e constantemente nesta tecla: sem a Palavra de Deus, tudo é morto. É esta Palavra que a tudo vivifica; é ela que nos dá vida dentre os mortos. Sem esta Palavra não existe evangelho, nem igreja, nem sacramentos, nem vida por vir. Em seu compêndio sobre a santa Ceia, ele discute com a Igreja de Roma acerca do sacramento da santa Ceia, e diz que a ceia romana é sem vida, porquanto não possui a Palavra que vivifica, mas simplesmente um cochicho do sacerdote sem qualquer sentido sacro e pedagógico, além de superstição pagã. Ali ninguém é vivificado, porquanto ninguém ouve a Palavra viva. Seja como for, o fato de Deus usar a voz para falar com a pessoa a quem se revela constitui uma figura ou símbolo, porquanto ele não precisa articular nenhuma palavra para revelar-se. Ele, porém, quer que tenhamos certeza de que falou conosco, para que não imaginemos que a influência subjetiva teria vindo de outra fonte, porquanto Satanás também nos fala ou nos influencia.
1.4. Acomodação pela Escritura
Além de Deus falar pessoalmente, seu Espírito quis dar, perene e inalteravelmente, sua Palavra escrita. Nela Deus nos fala, nos expõe sua vontade, nos dá diretrizes, nos aponta o futuro. Para que pudéssemos ter sua Palavra registrada, ele usou nossa própria linguagem, com suas deficiências, suas complexidades, suas ambiguidades, suas interpretações. Ele se valeu de figuras de linguagem, tais como hipérboles, metáforas, metonímias, sinédoques, anacolutos, pleonasmos, paralelismos, sinônimos, antíteses, sínteses, provérbios, poesias, prosas, parábolas, alegorias, símbolos, enigmas, ironias, prosopopeias, tipos etc., etc.
1.5. Uso de antropopatismo Do grego, antropopathos, “atribuição de características humanas a elementos da natureza, animais e divindades”. Segundo os teólogos, no caso bíblico significa atribuir a Deus características humanas. Ele se acomoda às volições, emoções e mutações humanas. Calvino bate nesta tecla, dizendo que os cristãos precisam precaver-se de não pensar que Deus realmente se arrepende, muda seus planos, se ira, se vinga como fazem os homens, é lançado para cá e para lá por nossas orações e vontades. Ele diz que Deus desce ao nosso nível para comunicar-se conosco. E diz ainda que isso denota uma profunda e infinita complacência divina em interessar-se por nós, míseros pecadores. Do contrário permaneceria eternamente recôndito e amais seria conhecido. Lembremo-nos: ele desce ao nosso nível a fim de comunicar-se conosco. Quando atende nossas orações, em vez de estar fazendo nossa própria vontade, na verdade tudo está concretizando sua própria e eterna vontade. Por isso, nossas orações devem acomodar-se à sua vontade, e não à nossa. “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu.”
1.6. Uso de antropomorfismo Do grego antropomorfos, “de forma humana”. Atribuição de formas humanas ao ser divino, ou a ideia de que Deus possui alguma espécie de formato, semelhante à anatomia humana. Ele tem boca, mãos, braços, pés, cabeça, cabelos brancos, olhos. Lemos que “Deus é Espírito”, é difícil
imaginar um espírito tendo formas ou membros humanos. De novo Calvino diz que Deus assim age para manter conosco companheirismo. Ele sempre chama isso de complacência divina.
1.7. Uso de teofanias Esse termo foi cunhado pelos teólogos para expressar “uma manifestação visível de Deus”. Particularmente, as teofanias constituem algo extraordinário em Deus. Ele apareceu a Abraão, em forma humana, comeu, bebeu, dialogou com ele. Bastaria que ele falasse a Abraão, mas preferiu, em sua complacência, falar pessoalmente em forma de homem. Era Deus discutindo com Abraão pessoalmente, porquanto, na opinião de Calvino, este de fato era o Senhor, ou seja, o Filho de Deus agindo como Mediador entre Deus e os homens. Neste caso, entre Abraão e o Deus que o chamou. De novo lemos que Deus agiu pessoalmente no caso de Jacó no Vale de Jaboque (Gn 32). “Ficando ele só; e lutava com ele um homem, até o romper do dia.” “Já não te chamarás Jacó, e sim Israel, pois como príncipe lutaste contra Deus...” “Vi a Deus face a face, e minha vida foi salva.” O que é que Calvino fala deste caso? Que aqui Moisés chame homem àquele de quem logo depois declara ser Deus é uma forma de linguagem suficientemente usual. Pois já que Deus apareceu sob a forma de homem, daí se pressupõe o nome; justamente como, em razão do símbolo visível, o Espírito é chamado pomba; e, por seu turno, o nome do Espírito é transferido para a pomba. [104] O Espírito de modo algum é pomba; ele se mostrou na forma de pomba; esta forma foi tomada momentaneamente por ele em sua complacência. Depois de a forma ser usada, ela desaparecia. Depois que o Senhor e os anjos usaram aqueles corpos em relação a Abraão e Ló, eles desapareceram. Moisés fala à maneira dos homens. Pois sabemos que Deus, quando desce de sua majestade a nós, costuma transferir para si as propriedades da natureza humana.[105]
Falando do propósito divino de fazer Jacó manco, Calvino diz: Por este sinal se faz manifesto a todos os fiéis que eles só podem sair-se vencedores em suas tentações, se forem prejudicados e feridos no conflito. Pois sabemos que o poder de Deus se aperfeiçoa em nossa fraqueza, a fim de que nossa exaltação esteja vinculada à humildade; pois se nossa própria força permanecesse inteira, e não se produzisse prejuízo e deslocamento, imediatamente a carne se tornaria arrogante, e nos esqueceríamos de que vencemos pelo auxílio de Deus. Mas a ferida recebida, e a fraqueza decorrente daí, nos compelem a sermos modestos. Falando daquele Anjo que apareceu a Josué (5.13-15), Calvino afirma: “As palavras, ao mesmo tempo, implicam que não estava ali um anjo ordinário, e sim um de excelência especial. Ele é indiscriminadamente chamado anjo, e distinguido pelo título de ‘o Deus eterno’. Deste fato Paulo é uma competente testemunha, que declara distintamente que ele [o Anjo] era Cristo (1Co 10.4)”.[106] E assim poderíamos estender-nos a muitos outros casos semelhantes, como Moisés no deserto, Isaías no templo, Daniel no palácio, Ezequiel no cativeiro e João na Ilha de Patmos. Em todos os casos veterotestamentários, ou neotestamentários, Deus se acomodava à fragilidade do ser humano, descendo de sua majestade aos homens a nivelar-se a eles para que o percebessem.
1.8. Uso de tipos Particularmente, os tipos, como meios de comunicação divina, ou, melhor, como antecipações da glória maior de Deus, principalmente em Cristo, foram usados amplamente para socorrer a obtusidade do homem, servindo de ilustração do que havia de suceder no futuro. Por exemplo, coisas como a arca de Noé, o Monte Sinai, a coluna de fogo de noite, a nuvem umbrosa de dia, o maná, e tantas outras coisas, serviram de tipos das coisas reais, porém invisíveis, que se manifestariam no
futuro. Pessoas como Noé, Moisés, Davi foram tipos de Cristo. Todos serviram de antecipação para a vinda da figura maior e real, Jesus Cristo. Era Deus se acomodando à nossa fragilidade, porquanto, como somos, e como ele é, a disparidade é tão incomensurável, que jamais o perceberíamos na totalidade de sua grandeza. Em consequência, ele continuaria recôndito para conosco. Calvino diria abscôndito ou absconso, isto é, escondido, invisível, secreto. A conclusão a que chegamos é que a complacência, a compaixão de Deus para com o homem caído, apostatado, alienado do Ser divino é incomensurável, insondável, inescrutável, infinita. Poderíamos viver eternamente tentando entender por que ele quis manter colóquio conosco, nos dando os patriarcas, os profetas, os apóstolos, a Igreja, o céu eterno, sobretudo seu próprio Filho, e jamais chegaríamos ao fundo de tal abismo. Por que Cristo nos foi dado, e ele mesmo se nos deu, é algo tão profundo, tão insondável, tão abismante, tão assustador, que nos deixa atônitos, pasmos, mudos, diluídos, confusos. Daí Pedro, sentindo-se fulminado diante da majestade e do poder de nosso Senhor, faz uma oração tão estranha à nossa imaginação: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou pecador”. Que essas poucas ponderações despertem nossa mente para que meditemos bem sobre a grandeza de Deus se manifestando à nossa pequenez. A única coisa que nos resta fazer é adorar, confessar, louvar agradecidos e esperar nele. A ele, honra e glória para todo o sempre.
2. Sua fidelidade à Bíblia Ele cumpriu o slogan da Reforma: “A Bíblia, e somente a Bíblia, é a religião dos protestantes”. Para ele, a Bíblia é o único fundamento sobre o qual se assenta o edifício da teologia bíblica. Ele diz que, “quando subimos ao púlpito, não levamos conosco nossos sonhos e nossas fantasias”.[107] Nesse mesmo sentido, ele afirma que “qualquer coisa que não estivesse alicerçada na Palavra de Deus era futilidade e ostentação efêmera; e o homem que não confiasse nas Escrituras deveria ser destituído de seu título de honra”. [108] Para ele, “a mensagem das Escrituras é soberana, soberana sobre a congregação e soberana sobre o pregador”.[109] Ele cria firmemente que, quando a Bíblia fala, Deus fala. [110]
Para ele, somente por meio da Santa Escritura é que os servos de Cristo possuem aquela autoridade que “edifica o corpo de Cristo, devasta o reino de Satanás, apascenta as ovelhas, mata os lobos, instrua e exorte os rebeldes, unta e separa, clama com veemência, se for necessário, mas que eles tudo façam de acordo com a Palavra de Deus”. [111] Para ele, os intérpretes da Bíblia possuem uma excelência única, porque “o que Deus tem a dizer ao homem é infinitamente mais importante do que as coisas que o homem tem a dizer a Deus”. [112] E ele faz isso através de sua Palavra escrita. Certamente existe uma igreja de Deus onde vemos sua Palavra ser pregada e ouvida com exatidão, e onde vemos os sacramentos serem administrados de acordo com o que Cristo estabeleceu. ... uma assembleia na qual não se ouve a pregação da doutrina sagrada não merece ser reconhecida como igreja. ... a exposição da Bíblia deveria ocupar o primeiro lugar no culto de adoração. ... A verdade de Deus é mantida pela pregação autêntica do evangelho. ... a igreja só pode ser edificada por meio da pregação do evangelho, o qual está repleto de um tipo de majestade sólida.[113] A elevada visão que Calvino possuía acerca da pregação era sustentada por uma visão elevada de Deus, uma visão elevada das Escrituras e uma visão correta do homem. [114] E, ao comentar a expressão “toda a Escritura”, em 2 Timóteo 3.16ss., afirma: “Ele agora explica mais plenamente sua breve recomendação. Primeiro, recomenda a Escritura por causa de sua autoridade; e, a seguir, por causa do benefício que dela advém. Para asseverar sua autoridade, ele ensina que ela é inspirada por Deus. Porque, se esse é o caso, então fica além de toda e qualquer dúvida que os homens devem recebê-la com reverência. Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes
aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como sua fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo.
3. Sua amplitude Foi Young que me chamou a atenção para a vasta extensão do pensamento de João Calvino, aliás, um precioso presente de um antigo amigo e ovelha, desde sua adolescência, Dr. Sandro Dutra e Silva. [115] O livro de Young é de grande valia para encontrar os comentários do Reformador que eu mesmo traduzi, mas que se acham esparsos por todas as suas obras, tornando meu trabalho penoso sem o auxílio desse precioso livro. Young chama a atenção para as abordagens que Calvino faz dos fenômenos da natureza, tais como: a forma de ambiente físico em que vivemos, as estrelas, o sol, a lua, a terra, o mar, as rochas, as pedras preciosas, os terremotos, os montes, as árvores, os frutos, as ceifas, a erva, as aves, os peixes, os leões, os ursos, os cães, as serpentes, as formigas, a música, as artes liberais, as descobertas científicas, a cultura em geral e daí por diante. Ele atribui tudo isso ao conhecimento humano, o maior dom de Deus dado ao homem.
3.1. Na esfera das ciências, das artes e da cultura : Suponhamos os homens revestidos, não só com profunda claridade mental, mas também com o conhecimento de todas as ciências; sejam filósofos, sejam médicos, sejam jurisconsultos, nada lhes faltando, exceto que não possuem o verdadeiro conhecimento da vida eterna — acaso não lhes seria preferível ser um animal irracional do que ser assim sábios, exercitando suas mentes por breve tempo sobre coisas evanescentes, e sabendo que todo o seu valiosíssimo tesouro perecerá com sua vida? Seguramente, ser assim sábio é muito mais miserável do que se os homens fossem totalmente destituídos de entendimento.[116] Guiado por sua razão, o homem não alcança ou não consegue ter acesso a Deus; e, assim, toda sua inteligência não prima a
direção alguma senão rumo à vaidade, onde se deduz que não há qualquer esperança para a salvação dos homens, a menos que Deus lhe proveja um novo recurso.[117] Por sabedoria, Paulo quer dizer, aqui, tudo quanto o homem pode compreender, não só por sua habilidade mental e natural, mas também pelo auxílio da experiência, escolaridade e conhecimento das artes.[118] Calvino tinha a plena convicção de que o conhecimento que os incrédulos possuem é um dom provindo de Deus, e cita outro autor de que Calvino cria que toda a investigação científica era dada por Deus para o uso e proveito do homem.[119] Ele ensinava que “qualquer conhecimento válido é revelatório”, e diz que “Cristo só condena aquela investigação que vai além dos limites da revelação de Deus”. [120] Ao citar Reid, ele insere “também Calvino, de que Deus dera o dom da ciência para nosso uso e proveito. As artes e as ciências são louváveis não simplesmente porque são dons de Deus, mas também porque são úteis e valiosas à vida humana. As ciências liberais geram ‘um grande número de produtos raros’”.[121]
3.2. O trabalho dos filósofos A admiração de Calvino pela ciência não se restringia a generalidades amplas. Ele não se assemelhava aos indivíduos de nossos dias que boquejam dizendo que prestam serviço à ciência e desejam ser tidos como pessoas de mente científica, enquanto aproveitam a oportunidade de anunciar que rejeitam as explicações teóricas fundamentais que têm se desenvolvido a duras penas pela comunidade científica. Naturalmente, não havia cientistas como temos hoje. O conhecimento era cotejado por estudiosos que demonstravam grande interesse nas amplas pesquisas científicas. Calvino e outros geralmente se referiam a estes estudiosos como os “filósofos”. [122] Muitos leitores de Calvino confundem sua adesão ao conhecimento
humano com sua severidade em não permitir que a ciência humana suplante ou seja o carro chefe da revelação de Deus, sujeitando esta àquela. Sua posição real é que “o primeiro efeito consiste em que não há ninguém que entenda”. O homem, em quem não há o conhecimento de Deus, seja qual for a cultura que venha ele de alguma forma possuir, será inútil; e até mesmo as próprias ciências e artes, as quais em si mesmas são boas, tornam-se vazias de conteúdo real quando lhes falta este fundamento”. [123] Ele segue em frente afirmando que, “como Paulo, Calvino advertia que o conhecimento natural era de nenhum valor quando deixa de adquirir a sabedoria espiritual”. [124] “Sem Cristo, as ciências, em cada departamento, são vãs; e ‘o homem que se acha bem fundado em cada aspecto da cultura, porém continua ignorante de Deus, nada possui’.”[125] Para Calvino, os filósofos não avançam mais em razão de sua incredulidade, porquanto pairam somente por sobre seu mundo filosófico contraditório. Eles se ensoberbecem em seu conhecimento descartando o supremo fundamento do mesmo, a saber, Deus. O verdadeiro filósofo ou cientista veneram o Filósofo dos filósofos e o Cientista dos cientistas — Deus! Removido esse fundamento, o conhecimento que os homens adquirem aqui, por mais invejável que seja, termina em fumaça. Calvino enaltece aquele conhecimento que tem seu ponto de partida verticalmente, e então horizontalmente. Aquele que busca o conhecimento de Deus passa a descobrir um mundo ignoto saturado de um conhecimento que começa com o próprio homem e continua com a criação divina; a saber, com tudo quanto o Eterno criou para o próprio homem. O pecado alienou o homem de Deus. E todo conhecimento à parte do Criador se converte em farelo. Todos os filósofos, cientistas, artistas e eruditos em cultura buscaram enaltecer primeiro a Deus e tiveram o ser humano como seu alvo a quem favorecer. Um cientista cético pode viver sua vida beneficiando a humanidade; mas não terá um vínculo vertical com o qual se relacionar, e sua vida termina aqui. Para Calvino, tudo quanto os seres humanos façam, devem eles fazer visando antes de tudo à glória do Criador; e, então, o bem do semelhante, mesmo fazendo-o visando a que o Eterno seja glorificado. Ele diz que a ciência por si só não pode conduzir a Deus. E ele está certo, porquanto parte do que os homens fazem visa somente ao aspecto horizontal. Nunca passa
disso. Deus, porém, em sua sabedoria, usa o que o cético faz para revertê-lo em benefício da raça humana. Nesse sentido é que todos os que labutam em prol do bem humano são ministros de Deus. Os governantes, os magistrados, os médicos, os cientistas, os filósofos, os gramáticos, os professores etc., etc. são todos servos de Deus, querendo ou não. Crendo ou não. Nisto jaz a soberania de Deus. Não pode haver profissão profana, exceto aquela que é feita à parte do bem público. Toda profissão benéfica é divina, mesma aquela exercida por céticos. Se não seguimos em frente sobre o tema, é devido à exiguidade de espaço. Em todas as suas obras ele toca de leve todas as esferas da vida cósmica. Todavia, até onde podemos ler nas Escrituras.
João Calvino — o escritor Com toda a certeza, Calvino possuiu um dos intelectos mais penetrantes e uma das penas mais poderosas entre as grandes mentes, sejam cristãs ou seculares, que já surgiram entre os homens, como os mais elevados picos dos grandes montes da sapiência humana, durante os séculos desta era da graça. [126] A muitos pode parecer exagero, porém não para aqueles que têm lidado com o Reformador, dentre os quais se contam homens e mulheres da mais fina erudição de nossa sociedade contemporânea. É verdade que entre os que o odeiam têm surgido muitos que têm feito tudo para denegri-lo, desde aqueles que o situam na esfera do estudo paleontológico até aqueles que o têm como um completo ignorante, cuja cultura foi forjada em algum canto de França.
1. Autodidata em teologia Os estudiosos que têm investigado a vida e obras do Reformador não se cansam de admirá-lo e de enaltecê-lo como um homem quase insuperável em sua habilidade e acuidade no manuseio e conhecimento dos grandes clássicos da cultura filosófica. Por capricho da ironia, a única ciência humana da qual ele foi tido como “autodidata” é a teologia. “Calvino estava se tornando um grande teólogo autodidata.”[127] Significa que ele não se doutorara numa faculdade de teologia. Nesta esfera, ele não teve “experiência acadêmica”, significando que ele nunca foi doutor em teologia e nem poderia fundar uma academia teológica, muito menos lecionar ali. A diferença entre ele e eu é que, em seu caso, ele era autodidata em teologia; e eu sou autodidata em tudo; e foi com muito esforço que consegui verter suas obras para o vernáculo, enquanto que ele escrevia com a máxima facilidade.
1.1. Irônico, porém verdadeiro Não é de fato irônico? O teólogo de todos os teólogos após os
apóstolos era “leigo” em teologia. E nem temos conhecimento de que ele tenha recebido um diploma de “Dr. Honoris Causa”. Em seu laicato em teologia, ele superou a todos os teólogos. No entanto, ele viria ser um dos escritores mais lidos do mundo e um mestre que seria procurado por alunos do mundo inteiro e em todos os tempos. Certamente, não estou pensando em literatura forjada numa oficina de “fundo de quintal”, como a minha, publicada aos milhares sem conteúdo sólido; isto é, literatura que visa às superficialidades e caprichos dos leitores de pouco nível cultural e que estão buscando alívio para seus estresses cotidianos. Falamos aqui de um dos teólogos mais profundos de todos os tempos. Ele não para de surpreender o mundo teológico. Querendo ou não, até mesmo quem o detesta se vê forçado a citá-lo em seus escritos.
1.2. Opinião de outros Phillip R. Johnson se expressou muito bem quando escreve: João Calvino foi excelente em todo o dever ministerial em que se envolvera. Ele se destacou em sua própria geração pelo evidente poder de sua pregação e seu admirável domínio das Escrituras. Sua habilidade como exegeta e comentador bíblico superou qualquer outro na história da igreja. Sua competência como professor de teologia também superou a todos os que vieram antes dele. Sua influência como discipulador de jovens produziu frutos que ainda se multiplicam em nossos dias. Ele era famoso por sua competência como líder eclesiástico, sua autoridade como apologista da verdade e sua notável capacidade de educar e motivar os outros. Nas palavras de William Cunningham, “Calvino foi o maior de todos os reformadores no que diz respeito aos talentos que possuía, à influência que exercia e aos serviços que prestou no estabelecimento e difusão de verdades importantes”. No entanto, de todos os dons extraordinários de Calvino, sua aptidão como escritor foi o que mais ampliou todos os outros e garantiu sua posição na história. [128]
2. O Senhor deu-me um privilégio singular Para mim, homem de poucos recursos mnemônicos e de poucas letras, de formação acadêmica mui deficitária, superficial e de auto-aquisição, sintome pasmo ante a grandeza desse homem a quem denomino de “misterioso”. O Senhor da Igreja deu-me a graça de lidar com os escritos desse gigante no reino de Jesus Cristo. Creio que, no Brasil, de todos os que lidam com o grande Reformador e seus escritos, devo ser o mais privilegiado dentre eles, porquanto recebi do alto a incumbência de verter para o vernáculo quase todas as obras que levam o nome de João Calvino. E garanto, por experiência pessoal, ser impossível exagerar neste respeito. Dei início à tradução das obras do Reformador no ano de 1995, isto é, 22 anos atrás, a verter as primeiras linhas da Epístola de Segunda aos Coríntios. Palavra após palavra, linha após linha, página após página, capítulo após capítulo, livro após livro; com aquela paciência que o Criador não quis dotar-me como um dom divino. Sou um homem impaciente, ansioso ao extremo, imediatista e nervoso — sim, muito nervoso! Quem me conhece nunca conseguiu entender como pude, durante tantos anos, realizar uma façanha humanamente incomensurável. Não foi um volume de duas mil páginas. Entre outras obras traduzidas por mim, creio que já abeira cinquenta mil páginas. Mais de trinta mil só do Reformador. Então, o que digo provém da própria e constante experiência com ele e seus escritos.
3. Ponto de partida em sua trajetória de escritor Ele tinha apenas 27 anos de idade quando publicou sua primeira versão das Institutas, em 1536.[129] Lemos ainda que “as obras de Calvino reunidas enchem 59 grandes volumes no Corpus Reformatorum... mais 12 volumes adicionais, sob o título Supplementa Calviniana”.[130]
3.1. O maciço de suas obras De todas essas obras, traduzi os 22 volumes de seus comentários bíblicos, com cerca de mil páginas cada volume. Traduzi ainda a primeira edição de suas Institutas publicadas em 1536, que constituem o gérmen da grande obra A instituição da religião cristã que temos hoje. Verti também sua
obra sobre a ceia do Senhor, anexando-lhe sua apologética em favor do verdadeiro conteúdo e verdadeira celebração da ceia, vindo a ser uma obra bem volumosa. Seus sermões sobre o rei Davi, sobre a vida e obra de nosso Senhor, sobre Jacó e Esaú, sobre a Epístola aos Efésios. Os pequenos tratados sobre A necessidade reformar a igreja, Réplica ao Cardeal Sadoleto, Psicopaniquia, A providência secreta de Deus e Catecismo e Confissão de fé de Genebra, publicados pela Editora Clire, em um só volume com o título: Obras Seletas de João Calvino. Estou trabalhando em seu Tratado sobre as relíquias, seus Sermões no Salmo 119, seus Sermões na Epístola aos Gálatas. Mas a última façanha que tanto aspiro concretizar é a tradução de seus Sermões no livro de Jó. Por enquanto, é uma obra em facsímile de 1574. Para realizar tal façanha terei que reaprender o idioma de Shakespeare; porém não desisti do sonho, mesmo em idade já avançada. Somos informados que “em seus anos mais prolíficos, Calvino publicou meio milhão de palavras”. [131] Ele mesmo faz uma declaração muito relevante: “Não tenho muito tempo para escrever, mas [um escriba] anota tudo à medida que eu dito e, depois, organiza-o em casa. Eu o leio, e, se há alguma coisa que ele não entendeu a respeito do que eu quis dizer, corrijo-o”. [132] Esse escriba era um taquígrafo que anotava os discursos do Reformador com os símbolos da arte e depois ele mesmo convertia para os caracteres normais e o Reformador lia e corrigia antes de ser publicado.
3.2. Sua obra prima Falando de suas Institutas, somos informados que “sua edição final, em latim, foi publicada em 1559 (cinco anos antes de sua morte), e sua própria tradução para o francês, no ano seguinte”. E aqui já não se trata de seu pequeno compêndio de 1536, e sim de uma obra volumosa e permanente. Neste ponto é oportuno afirmar que Calvino, quando escreveu sua primeira edição das Institutas, e descobriu assustado o impacto que a pequena obra causara na multidão de leitores, resolveu, ele mesmo, ampliar aquele primeiro material, sem alterá-lo, porém dando-lhe mais conteúdo, diversas vezes, até a última versão supramencionada, em 1559. E aqui aprendemos duas coisas. Primeiro, além dos sermões diários que pregava, dos tratados apologéticos, dos comentários bíblicos, das centenas de cartas que escrevia, ele encontrava tempo para dar maior corpo à sua obra prima — A instituição
da religião cristã. Segundo, ele mesmo traduzia esta obra do latim para o
francês, sua língua mãe; isto é, um trabalho dobrado, ou mais que dobrado. Com frequência, sou indagado sobre “como aquele homem franzino, enfermiço, com uma atividade enorme, ainda achava tempo para traduzir suas próprias obras para outros idiomas”. Minha resposta é: “Não sei!”. Uma coisa é indisputável: ao longo de minha lida com as obras do Reformador, sempre me senti um verme e não homem!
3.3. Seus sermões Falando de seus sermões, lemos o seguinte: “Os sermões de Calvino revelam a perfeita combinação de uma mente persuasiva e um coração pastoral”.[133] E sei, por experiência, que isto é um fato indiscutível. O poder persuasivo do Reformador era algo que chegava às raias do “mistério”. Seu coração pastoral, em seus sermões, era tão visível, que todos os ouvintes eram consolados por suas palavras repassadas de amor pastoral pelas ovelhas. Ele olhava para seu rebanho como que necessitado de profundo conforto, orientação e nutrição espiritual para suas vidas diárias. Além de verdadeiro pregador, ele era um genuíno pastor. Ele pastoreava seu rebanho não apenas do púlpito. Lemos que ele vivia com seu rebanho como um pastor de amor extremado e sempre presente. Isso fez de seus escritos, compêndios manuseados por milhões de pessoas pelo mundo inteiro, até hoje. Aliás, a tendência, hoje, é a intensificação da leitura de suas obras por pessoas que se acham exaustas e enfadadas com as bolotas dos pregadores, pastores e escritores de mentiras. Há um prospecto de que o mundo cristão está se volvendo outra vez para os pensamentos teológicos do Reformador genebrino.
4. O que Deus tem feito através de um jovem ferreiro Declaro sem qualquer laivo de presunção que ainda espero ver multidões deixando de anunciar e de crer em superficialidades e futilidades e buscando nos escritos do Reformador já em nosso idioma o alimento sólido de uma interpretação bíblica sem distorção, antes que chegue o grande Dia do Juízo Final. É preciso parar de brincar com a Bíblia. No espírito de humilde adoração, afirmo com toda convicção e experiência que os esforços daquele
ovem que empunhava um martelo, batendo forte numa bigorna, naquela modesta oficina em Tupaciguara, Triângulo Mineiro, têm produzido e ainda produzirão fruto na nova formação teológica de jovens cristãos e estudantes de teologia que cada vez mais se imbuem da riqueza teológica do grande Reformador João Calvino. Esses atuais e futuros pastores e teólogos manusearão incansavelmente os compêndios dos escritos do Reformador, sem se cansarem de tentar entender outro idioma para ter acesso ao seu pensamento teológico. Tenho visto vezes e mais vezes que aqueles que uma vez examinam os escritos de João Calvino não mais se detêm. Tenho dito que meu trabalho de verter os escritos do Reformador não visa a mudar alguém de sua denominação, mas que o mesmo fique lá e faça como tenho feito: “Amarrando feixes secos às caudas de raposas com o fim de semear fogo na seara dos filisteus como fez Sansão”. Que o desejo de todos os calvinistas seja este: que a verdade, uma vez confrontada com a falsidade, leve os eleitos do Eterno cada vez mais a buscarem purificar seus falsos conceitos teológicos e, inflamados de santo zelo, proclamem somente a sã doutrina. O coração do Reformador se inflamava dia e noite de zelo pelo Reino de nosso Senhor. Daí ele dedicar sua pena também dia e noite na interpretação profunda e séria do Santo Escrito de autoria do Espírito Santo. Com sua pena, ele veio a ser o intérprete dos intérpretes. E seu esforço valeu a pena.
5. Conclusão Quero fechar este capítulo pondo em cena os obstáculos externos que o Reformador enfrentava diariamente, dificultando assim sua tarefa de escrever acerca da fé pura e bíblica oriunda do Espírito de Deus. O Senhor não lhe deu uma vida sossegada e saudável, porém lhe deu a força irresistível do Espírito Santo e uma vontade inquebrantável de vencer na implantação da Reforma em um mundo saturado de vil superstição. Tenho sido interrogado com frequência como é possível que aquele homem enfermiço, ocupadíssimo, perseguido de diversas formas, pudesse pôr em prática um fenômeno tão estupendo de escrever tanto em tão pouco tempo. Minha resposta recorrente tem sido: não sei. De fato, não sei mesmo como isso foi possível.
5.1. Ocupações variadas Ele mesmo nos informa: “‘Mais de uma vez o que eu apresentava às 7 horas não estava pronto antes das 3 ou 5 horas’.” Em certa ocasião, ele até mesmo desmarcou uma aula porque não estava completamente preparado”. [134]
Além do mais, ele vivia seu dia a dia envolvido com os deveres e labores pastorais. Atendia constantemente sua própria igreja com aconselhamento, com orientação, com o alimento da Palavra. Dava assistência constante à faculdade que estabelecera em Genebra, como um de seus professores. Dava assistência aos refugiados vindos de outras partes fugindo da perseguição da “Santa Inquisição” romana. Tantos outros eram atingidos pela praga que grassava por toda aquela região. É em Thea que lemos o seguinte: Deus me dirigiu por tantas voltas e mudanças, que ele nunca permitiu que eu descansasse em qualquer lugar. [135] Significa que sua peregrinação era incansável, desde que assumira seu compromisso de seguir e servir ao glorioso Senhor da Igreja. Antes de seu compromisso de reformar Genebra, ele pregava e servia a Ceia primeiro em um bosque e mais tarde em uma caverna iluminada pela luz de archotes. [136] Depois que conheceu a fé bíblica e se embrenhou pelas veredas da reforma genebrina, Calvino nunca mais teve descanso. Além de todas as suas atividades na qualidade de pastor e reformador, ele passou a usar a pena incessantemente. Seu primeiro escrito foi Psicopaniquia. “Nesta obra Calvino escreveu contra aqueles que acreditavam que a alma dorme depois da morte até o último dia.” Neste escrito, Calvino afirma que “a alma está viva e acordada... embora tenha deixado o corpo”.[137] Desde então, ele não mais se deteve e sua pena não mais repousou. Ele cria que a reforma estava em grande medida na defesa da verdadeira fé por meio de escritos. Ele elaborava e pregava seus sermões do púlpito da Igreja de Pedro. Seus sermões outra coisa não eram senão sua bem programada exposição dos livros da Bíblia. Em todo o Hexateuto; em todos os Salmos; em todos os profetas maiores e menores, com a exceção de Ezequiel do capítulo 20 em diante; em todo o Novo Testamento, exceto 3 João e
Apocalipse. Ele queria que o povo estivesse em constante contato com as Santas Escrituras. Com seus 27 anos de idade, ele apresentou ao público o protótipo de sua grande obra A instituição da religião cristã. Quando percebeu seu êxito, ele mesmo a ampliou várias vezes e a traduziu do latim para o francês. Esta obra tinha inicialmente uma dupla função: apologética e educativa. Nela ele defendia a sã doutrina e instruía o povo nessa sã doutrina. Ele queria uma igreja solidamente radicada em toda a Santa Escritura.
5.2. Falta de recursos tecnológicos Fazendo uma comparação do tempo dos reformadores com o nosso, sentimo-nos abismados ante o fato de que produziram muito mais do que muitos de nós, hoje, produzimos, em questão de volume e qualidade. Eles não tinham nem mesmo máquina datilográfica. Com certeza usavam um tinteiro e pesa de ganso. Não tinham ao seu dispor as ferramentas que temos hoje, por exemplo: as chaves bíblicas tão completas que nos auxiliam a achar os textos por toda a Bíblia. Eles vasculhavam a Escritura para achar aqueles textos de que precisavam empregar com exatidão. Passa-se a ideia de que tinham a Bíblia sob seu pleno controle. Os interlineares que ajudam os estudantes e escritores a harmonizarem as referências com mais facilidade pelo uso do hebraico e grego. Os dicionários e enciclopédias que ajudam a definir a linguagem bíblica, passando-nos informações preciosas sobre os vários assuntos, como geografia, história, ciência, matemática, flora e fauna etc. Calvino cita toda a Bíblia não a esmo, mas de uma maneira plenamente concatenada. Perguntamos: como ele e os outros faziam isso? A imprensa acabava de ser inventada e ainda era muitíssima rústica e estava em processo de experiência. Seu método de pesquisa era muito rudimentar. Tinham que usar luz de vela ou candeia. É verdade que já havia aquele recurso que se denomina de taquigrafia. Enquanto pregava, um taquígrafo copiava seus sermões ou discursos pelo uso de sinais que depois eles mesmos convertiam nos caracteres normais. Mas é também verdade que Calvino não permitia que aquilo fosse impresso sem antes passar pelo pente fino de sua supervisão.
5.3. Perseguição Tinha que enfrentar a fúria da população genebrina, no que diz respeito aos libertinos. Ele enfrenta o próprio governo de Genebra que a princípio discordava dele em diversos assuntos. Sem falar na perseguição da população genebrina que instigava seus cães contra o Reformador e lhes punham por nome o próprio nome de Calvino. Significa que ele era alvo do ódio daqueles que se sentiam prejudicado com a administração severa do Reformador. Thea nos informa ainda que “o homem atarefado na rua do Canhão estava só. ‘Verdadeiramente, não é ordinária a minha dor’, escreveu a Viret uma semana depois. ‘Fui privado da melhor companhia da minha vida.’ Fala da viuvez. E a Farel: ‘Faço o possível para não ficar assoberbado pela tristeza. Meus amigos não deixam de fazer tudo que possam para contribuir para aliviar meu sofrimento mental... Que o Senhor Jesus... me sustente... nesta pesada aflição, a qual certamente me teria dominado se ele, que levanta os prostrados, fortalece os fracos, e reanima os fatigados, não tivesse estendido sua mão para mim”. [138] Ele enfrentava tudo sem desistir de compor seus escritos em prol da igreja. E nossa pergunta é: como é possível que alguém escreva nos moldes em que escreveu o Reformador João Calvino, com a mesma profundidade e amplitude? Valho-me de mim mesmo como exemplo: por muito menos, desligo o computador e desisto de continuar minhas composições literárias. Com a mente perturbada pelas turbulências da vida cotidiana, fica difícil manter o mesmo nível de meditação sobre qualquer assunto.
5.4. Exílio Foi expulso pelo Conselho. Teve que interromper seu programa de reforma em Genebra. Radicou-se em Estrasburgo. Enquanto em Estrasburgo, sua pena não teve descanso. Creio, pela própria experiência, ser difícil enfrentar o antagonismo de outras pessoas para com a nossa. Mas a expulsão deve ser muitíssimo mais terrível. Até hoje não experimentei essa terrível tentação. Extraio de Timothy George estes trechos daquele período atribulado de Calvino:
Em abril de 1538, Calvino e Farel foram expulsos da cidade. Após outra breve estada em Basiléia, Calvino foi persuadido a mudar-se para Estrasburgo. Calvino passou três anos em Estrasburgo, e sem dúvida aqueles dias foram os mais felizes de sua vida. Foram, também, talvez, os anos mais decisivos para seu desenvolvimento como reformador e teólogo.[139] E Timothy alinha cinco situações vitais na vida do Reformador durante aquele período: Primeiro, Calvino como pastor; segundo, Calvino como professor; terceiro, Calvino era um escritor; quarto, Calvino era um estadista da igreja; quinto, Calvino tornou-se um marido. [140] Significa que Calvino jamais descansava onde estivesse. Ele só tinha uma vida para gastar na tarefa predestinada pelo Senhor da Igreja. Aprendeu a esquivar-se de seus problemas e a dar sequência à sua obra de Reformador da igreja.
5.5. Suas correspondências Todas as suas correspondências ocupam cinco volumes massudos, sendo quase impossível para alguém lê-las todas. Aproveitava qualquer brecha para dirigir-se a alguém com suas cartas. Ele escrevia a todos, desde os reis até aos príncipes, rainhas e princesas; até os que jaziam nas masmorras por causa da perseguição contra os fiéis filhos e servos de Deus. Escreveu a amigos e até mesmo a inimigos, como Miguel Serveto. Não tinha descanso nem de dia nem de noite. Sua pena também não conheceu tréguas.
5.6. Acossado incessantemente pelos inimigos da fé Isso tem seu lado positivo e o negativo. O positivo é que os confrontos com os inimigos da fé ortodoxa produziram um vasto e precioso acervo de apologética. O negativo é que esses confrontos lhe traziam constante estresse
e angústia. Era como o pastor que não descuida de seu rebanho. Com a seguinte diferença: os lobos literais arrebatam uma ovelha e se vão; se forem pegos, são feridos ou mortos sem consequência. Enquanto que os lobos figurados nos inimigos da fé ortodoxa não deixam o rebanho enquanto não fizerem muito dano e causando transtornos aos que zelam pelo rebanho de Cristo. Calvino participou somente da morte de um deles — Miguel Serveto. Mais ainda, os lobos vorazes que buscam destruir os rebanhos são não apenas solertes, mas também muito bem preparados. Para vencê-los, é preciso maior astúcia e conhecimento. Haja visto o caso do cardeal Sadoleto. Quem lê sua enganosa carta dirigida à Igreja de Genebra fica encantado com a beleza e aparente procedência do argumento do grande cardeal. Ele não levou em conta que o calejado pastor de Genebra era muito mais habilidoso do que ele. Aliás, este escrito do Reformador é digno de sua fama. Além de traduzi-lo, já o li várias vezes e o lerei muito mais vezes doravante. E a grande diferença entre os dois era que o escrito do cardeal era enganoso e matreiro; o do Reformador era, além do mais, bafejado pelo Espírito do Senhor da Igreja. No caso da apologética, os inimigos propiciavam recursos de defesa escrita. Mesmo assim, esse redemoinho de intrigas causava terrível estresse nos Reformadores. Figurativamente, viviam insones, em constante vigilância e incansável desempenho de seu pastorado para que suas ovelhas não fossem arrebatadas.
5.7. Sofrimento físico e emocional Ele era atormentado dia e noite por todo tipo de doenças físicas. Infelizmente, tenho em minha biblioteca uma obra que descreve com minúcia um “rico” catálogo de doenças que aquele homem possuía e enfrentava, obra esta que se acha perdida entre meus livros. No entanto, lemos numa boa fonte: Bolsec também afirmou que a doença crônica de Calvino era castigo de Deus; o fato de “seu corpo inteiro estar sendo comido por piolhos e vermes” era a punição divina de sua heresia. [141] Assim também pensam hoje os defensores de doutrinas forjadas nos
cérebros dos que não conhecem o temor de Deus, os quais afirmam, não à luz da Santa Escritura, ser impossível que pessoas como o Reformador sejam abençoadas pelo Deus Eterno. Nem sequer se lembram da história que Jesus contou sobre um homem chamado Lázaro que era “coberto de chagas” e esmolava constantemente para obter o pão diário. Nem se lembram que o amaldiçoado não era Lázaro, e sim o pseudo-rico. Mas a indagação é: como é possível que aquele homem encontrasse alento e mente equilibrada para usar na composição literária, quando esta requeria a mais plena concentração. Sentimos que a vida daquele servo de Jesus Cristo foi posta no altar do sacrifício, oferecida a Deus como uma oferenda agradável. Seu empreendimento era o que mais lhe importava, por isso ele vencia toda tentação externa e desvanecimento interno. Em razão de suas doenças, ele teve morte prematura. Já no fim, ele era carregado por homens piedosos para o cumprimento de seus deveres e de volta à casa. Nada o fazia deter-se. Ele tinha somente aquela vida para gastar na obra do Senhor. Quero crer que as palavras finais do comentário ao Profeta Ezequiel foram inseridas pelo tradutor para a língua inglesa, Thomas Myers, como se encontra abaixo: Depois de concluir esta última preleção, aquele mui eminente homem, João Calvino, o teólogo, que previamente adoecera, então começou a ficar tão enfraquecido que se viu compelido a reclinar em um leito e não mais pôde prosseguir com a explanação de Ezequiel. Por esta conta, ele se deteve no final do capítulo vinte [faltando apenas os cinco versículos finais para concluí-lo], e não pôde terminar a obra tão auspiciosamente iniciada. Nada resta, bondoso leitor, senão que recebas mui favorável e graciosamente o que agora é apresentado ao mundo. Quero entender ainda que a oração com que ele encerra sua última preleção foi também uma de suas últimas orações antes de entregar o espírito: Ó Deus Onipotente, visto que já entramos na esperança, no limiar de nossa eterna herança, e sabemos que há para nós uma indubitável mansão no céu, depois que Cristo receber-nos ali, o
qual é nossa cabeça e as primícias de nossa salvação — oh! concede, rogo-te, que avancemos mais e mais no curso de tua santa vocação, até que, por fim, atinjamos o alvo, e então desfrutemos aquela eterna glória da qual nos propiciaste uma leve degustação neste mundo, pelo nome de Cristo, nosso Senhor. Amém.
5.8. Reta final Selecionei do livro de Thea A. van Halsema alguns trechos das palavras finais de sua vida: O homem togado de preto, caminhando pela rua estreita, parecia mais morto do que vivo, com exceção dos olhos que luziam tão brilhantemente quanto antes. O corpo estava meio morto, estropiado, protestando e recusando-se a fazer a sua vontade. Mas o Espírito invencível exigia que o corpo fizesse suas rondas diárias. A mente por detrás dos olhos penetrantes não havia perdido nada de sua vivacidade.[142] Sobre a porta pela qual deixou o prédio dos conselhos de representantes estava o lema no escudo de Genebra: Post Tenebras Lux: “Luz após trevas”. Mais do que qualquer outro homem, Calvino tinha tornado em realidade aquela legenda na cidade junto ao lago.[143] Era o domingo da páscoa, dia 2 de abril. Calvino foi carregado na sua cadeira de sua casa na Rua do Canhão e colocado perto do púlpito donde tinha pregado centenas de sermões. Beza pregava agora. Celebrou-se a Ceia do Senhor. Calvino recebeu os elementos das mãos de Beza. [144] A congregação ergueu-se para entoar o último hino. O uníssono comovente vibrou por todos os cantos da igreja. Calvino entoou também com júbilo em sua face. “Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, segundo a tua palavra.” — foi este o hino final. [145]
No dia 30 de abril, o Pequeno Conselho, togado em cortejo solene, veio à Rua do Canhão, agrupando-se ao redor do leito de
Calvino. Este agradeceu-lhes novamente por todas as suas demonstrações de bondade. Pediu-lhes perdão pelos seus momentos de raiva e pelos outros pecados cometidos durante os anos em que tinha servido. Aconselhou-os, advertindo e encorajando-os. “Lembrai-vos sempre”, falou-lhes, “que é Deus somente que dá forças a estados e cidades”. Deu a cada homem a destra de despedida. Os homens saíram do quarto, chorando como se tivessem recebido a derradeira bênção de um pai. Os ministros vieram no dia seguinte. [146] “Meus pecados sempre me desgostaram... Rogo-vos que me perdoeis o mal, e se porventura tenha havido algum bem, ... fazei dele um exemplo”. “Quanto à minha doutrina, ensinei com fidelidade, e Deus deu-me a graça de escrever... tão fielmente quanto estava em meu poder. Vivi nesta doutrina e nela quero morrer. Perseverai nela, todos vós. Amai-vos uns aos outros. Que não haja inveja”.[147] Calvino viveu até o dia 27 de maio. Orava continuamente, em voz alta ou silenciosamente, movimentando os lábios. Nos estertores, atribulado pela dor, clamava com frequência: “Por quanto tempo, ó Senhor?” Ou: “Senhor, tu me esmagas, mas eu me conformo do que seja a tua mão”. [148] Morreu em paz como alguém que pega no sono. Numa noite de sábado — o fim do dia, o fim da semana, o fim de uma vida. Um grande servo estava agora com o seu Mestre.[149] Calvino tinha pedido no seu testamento que “meu corpo... seja enterrado na maneira usual, para aguardar o dia da bendita ressurreição”. Não houve, por conseguinte, palavras junto à sepultura. Nenhuma pedra foi colocada para marcar o lugar. Em pouco tempo, ninguém sabia onde jazia o corpo de Calvino. A sepultura continua desconhecida até hoje.[150]
João Calvino — o Reformador Falar do Reformador João Calvino é reportar-se a Jesus Cristo, à Trindade Santíssima e à soberania absoluta de Deus. Porquanto em todos seus escritos vemos claramente o enaltecimento de Deus o Pai, de Deus o Filho e de Deus o Espírito Santo como sendo absolutamente unos. Falar de João Calvino é reportar-se à Santa Escritura e à interpretação bíblica mais detalhada, profunda e perfeita que qualquer outro fizesse depois dos apóstolos. “... a missão prioritária de Calvino era explicar e aplicar as Sagradas Escrituras”.[151] Ele jamais usou textos bíblicos para fundamentar seus próprios conceitos teológicos; isto é, ele nunca interpretou a Santa Escritura com o fim de negar alguma doutrina ou impor-lhe suas próprias ideias preconcebidas. Ele não tinha um a priori bíblico em sua mente; ele tinha o volume sagrado da Bíblia diante de si. Ele a interpretou com mente isenta. Só lhe importava uma coisa: descobrir nela a plenitude de sua verdade revelada. De fato, em certa medida, ele se escudou nos Pais da Igreja, mas somente com o intuito de encontrar neles o amparo da antiguidade e para que ninguém o acusasse de inventar doutrina nova. Tanto é que, quando necessário, ele se recusava a aceitar a interpretação deles que não se coadunasse com a Santa Escritura. Ele não buscava uma doutrina nova; ele queria, sim, descobrir nas santas páginas a antiga doutrina dos patriarcas, dos profetas e dos apóstolos e, assim, fazer a igreja retroceder à verdade eterna. Seu intuito era reformar a igreja, e não inventar uma nova igreja. Ao aceitar a tarefa de reformar religiosamente a igreja de Genebra, ele assumiu a responsabilidade de ser plenamente fiel ao conteúdo da Santa Escritura. Decidiu pagar o preço de uma reforma radical. Aliás, ele foi o reformador mais radical de todos os outros. E isso, de certo modo, lhe granjeou antipatia e muita perseguição. Pela ótica da incredulidade, ser fiel ao conteúdo da Bíblia é ser biblista, radical, fanático, exagerado, antipático. O mundo ama os moderados, equilibrados, conciliadores e pacificadores mesmo que negociem algumas verdades bíblicas. Calvino procurava ser pacificador na exposição da Santa Escritura; porém não negociava a verdade de Deus revelada nela.
1. Genebra e Calvino
Genebra não era diferente do resto da Europa com suas corrupções, evoluções e imposições principalmente da parte da Igreja de Roma. Lendo o valioso capítulo 5 de A vida de João Calvino, de Alister McGrath, ele nos informa que “falar de Calvino é falar de Genebra. Calvino iria influenciar e ser influenciado por Genebra”.[152] O mesmo escritor, no subtítulo do capítulo 5, Genebra antes de Calvino, nos traz muitas informações acerca daquela cidade que seria a arena da reforma de Calvino. Havia sido governada por bispos; sua prosperidade vinha das feiras que se centralizavam em Genebra, atraindo diversos países e cidades com seu movimento; seus negócios eram governados pelo ducado vizinho de Sabóia. Com a evolução das coisas, a Igreja de Roma foi aos poucos perdendo o controle da região, e com isso Genebra foi ganhando sua emancipação. De modo que já nos dias do Reformador ela era praticamente independente.[153] Ele segue nos informando que, de certo modo, Calvino copiou as administrações de Genebra e as aperfeiçoou para, depois, Genebra estabelecer o formato administrado criado por Calvino. [154]
2. O coração de Calvino posto em Genebra 2.1. Antes de Genebra, o altar de Deus Toda sua vida, depois de sua conversão, foi posta no altar divino da adoração do Deus Trino, do estudo e exposição da Santa Escritura, da oração, do bem geral do ser humano e do serviço prestado à causa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, o Senhor da Igreja. É ele mesmo, pela experiência pessoal, que afirma com plena convicção: “... é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo, até que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar a si próprio”. [155] Com isso ele põe o homem diante do trono de Deus para que comece a ter uma visão nítida de si e da glória de Deus. Encontramos essa mesma ideia em todos os seus comentários bíblicos, seus tratados, seus sermões e suas correspondências. É impossível extrair tudo o que ele fala sobre o assunto em todos os seus escritos.
2.2. Mas é preciso, antes, visualizar sua visão do próprio homem, a saber,
dele mesmo:
2.2.1. Calvino foi um
homem —
nem “santo” nem “diabo” .
Os extremos sempre prejudicam. Em se tratando de Deus, não há como exagerar; em se tratando do homem, corre-se o risco de exagerar para a direita ou para a esquerda. Sobre a pessoa de Calvino, os dois extremos têm estado sempre presentes e em evidência. Há quem o admira, quem o ignora e quem o odeia. Isso se dá com quase todos nós, mas com Calvino se tornou um ponto muito saliente em toda sua vida. O homem ou a mulher que queira servir sinceramente ao Senhor da Igreja não poderá escapar a esse drama existencial. Nosso Senhor mesmo foi amado, evitado e odiado. Quanto a Calvino, extraímos de Timothy George o seguinte: Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão supremamente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino. A maioria dos cristãos, dentre a qual grande parte dos protestantes, conhece apenas dois aspectos a respeito dele: acreditava na predestinação e ordenou que Serveto fosse queimado vivo. Desses dois fatos, ambos verdadeiros, emerge a caricatura usual de Calvino como o grande inquisidor do protestantismo, o tirano cruel de Genebra, uma figura rabugenta, rancorosa e completamente desumana.[156] ... quando os cônegos da Catedral de Noyon, cidade natal de Calvino, receberam a notícia da morte do reformador, comemoraram e deram graças a Deus por tirar aquele famoso herege de seu meio. A alegria durou pouco, entretanto, quando descobriram que os boatos acerca de sua morte haviam sido prematuros. Ainda teriam de suportar Calvino por mais treze anos![157] Com isso, através dos tempos, criaram-se dois conceitos extremados sobre a pessoa e obras de Calvino: a calvinofobia e a calvinolatria. E sabemos que qualquer extremo no tocante ao ser humano não é positivo, e sim negativo. Calvino, enfim, era homem falível em sua pessoa e em suas obras.
Este fato torna a figura de Calvino ainda mais bela e excitante. Lendo suas Institutas, seus comentários, seus tratados ou suas cartas, sua figura se sobressai com matizes impressionantes. Pela ótica de alguns, ele era odioso; de outros, era repelente; de outros, era atraente; ainda de outros, era fascinante. Sua ternura às vezes se choca com sua severidade; sua tolerância, com sua intolerância; sua humildade, com sua aspereza; sua exclusividade, com sua solidariedade; sua simplicidade, com sua profundidade. Ele era o que realmente era, porém visto e analisado pela ótica e conceito muito distintos. Então, o problema não estava propriamente nele, e sim na análise e ótica de cada um, até hoje. Enquanto você é maravilhoso para uns, é odioso para outros. Para uns, você é sábio; para outros, é ignorante e estúpido. A pessoa que se torna um vulto público é impossível ser de outro modo. A avaliação de um às vezes é totalmente discrepante com a de outro. Querendo ou não, estamos sendo constantemente avaliados pelas pessoas circundantes. Sintome amado por alguns que festejam o encontro; no entanto, sou detestado por outros, os quais viram-me as costas. Os dois grupos têm razão? Depende da perspectiva e da experiência.
2.2.2. Amava profundamente a Deus . Foi a partir da visão de Deus e do homem que Calvino estabeleceu, em seu pensamento teológico, a soberania de Deus e a miséria do homem. Antítese que satura todas as suas obras literárias. Estas duas faces da mesma moeda são chocantes. Enquanto esta ideia fascina uns, escandaliza outros. Por exemplo: ... o homem não é jamais tangido e afetado suficientemente pelo senso de sua indignidade, senão depois de comparar-se com a majestade de Deus.[158] Por isso ele diz ser impossível que o homem queira por si só a salvação eterna: ele não se regenera a si mesmo, não se converte, não se salva. Espiritualmente, está morto, perdido, confuso, vive alienado da glória e majestade de Deus. Isso choca a muitos como a expressão do exagero. Os que veem o ser humano como inerentemente bom, justo, merecedor da atenção positiva de Deus se enojam do conceito do grande Reformador genebrino.
Para compreendê-lo, é preciso ir à própria raiz da natureza humana. À luz da santidade e justiça de Deus, o homem é um ser nauseante. Por isso, Deus decidiu salvar o homem com base exclusivamente em seu amor isento e soberano. A vontade de Deus é a fonte de nossa eleição; Cristo é o fundamento; o amor é a força propulsora; em nós Deus não viu absolutamente nada que o movesse a salvar-nos. Para quem vê o homem como um ser maravilhoso, na superfície, Calvino foi um homem paranóico; mas se analisarmos o ser humano na profundidade de seu ser, descobriremos que o Reformador é que estava certo: o ser humano, na realidade, é muito pior do que se possa imaginar. Por exemplo, quem concordaria com ele ao descrever a realidade do ser humano, nestes termos? Não há nada em nós, exceto podridão; nada, senão pecado e morte. Então, permitamos que o Deus vivo, a fonte da vida, a glória eterna e o infinito poder, venha e se aproxime de nossa miséria, infelicidade e fragilidade, bem como deste profundo abismo de toda iniquidade — o homem; permitamos não somente que a majestade se aproxime deste homem, mas também se torne um com ele, na pessoa de Jesus Cristo. [159]
2.2.3. Temia profundamente a Deus Calvino temia a Deus e tremia de Deus, não movido por superstição, mas por lúcido conhecimento. Quanto mais conhecemos a Deus, mais o tememos, mais o amamos, mais o adoramos, mais o servimos, mais desejamos ser dele de forma incondicional. Daí, o conteúdo da questão inicial do Breve catecismo permear todas as obras de Calvino — a glória de Deus: “... quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). O grande profeta Daniel diz que ao homem pertence “o corar de vergonha” (Dn 9.7-9); a Deus pertence a glória inerente e a glorificação rendida por toda a criação. Daí sua tão bela e sucinta expressão acerca de Deus: Eu o recebo nestes termos: não só que uma vez ele criou este mundo e de tal forma o sustém por seu imenso poder; o regula por sua sabedoria; o preserva por sua bondade; rege-o com sua justiça e equidade, especialmente ao gênero humano; suporta-o
em sua misericórdia; guarda-o em sua proteção; mas, ainda que em parte alguma se achará uma gota ou de sua sabedoria e de sua luz, ou de sua justiça, ou de poder, ou de retidão, ou de genuína verdade, que dele não emane e de que não seja ele próprio a causa; e, após recebidas, a atribuir-lhas com ações de graças.[160] Ao confrontar a grandeza de Deus com a baixeza do homem, ele exclama com espanto: Portanto, a humildade deve conquistar nossa mente e transformar nosso coração, surgindo de nosso estudo da majestade de Deus em sua Palavra magnífica. [161]
2.2.4. Via Deus como absolutamente soberano Deus é o único a quem devemos glorificar. Ele é absolutamente perfeito, eterno, infinito. Em nada depende do que criou para ser absolutamente feliz. Calvino não suportaria ouvir o que escreveu um teólogo contemporâneo: “Deus jamais seria feliz sem o homem”. Ele não suportaria que a glória de Deus fosse ofuscada pela figura humana. Ele não suportaria que sua soberania absoluta fosse tocada por algo ou alguém fora dele. Tudo é mutável, menos ele; tudo o que foi criado é perecível, menos ele que é o Criador de tudo. Ele é o único “Eu Sou”; nós viemos a ser por seu poder criativo. Não existe no universo nada que possa frustrar sua vontade soberana. Isaías interpretou bem a vontade absoluta de Deus: “Agindo eu, quem me impedirá?” (Is 43.13). A ideia de que Deus não pode salvar alguém se este não quiser é algo profundamente abominável. Faz a vontade de Deus subserviente à vontade humana. É impossível que a vontade do homem alienado de Deus e totalmente corrompido, aliás, morto, seja maior que a de Deus. Aliás, a vontade divina é irresistível. Deus deixa à sua própria sorte a pessoa que resiste à ação do Espírito Santo. Quando chama alguém para a salvação ou para seu serviço, esse alguém vai a ele querendo ou não. Na verdade, é ele mesmo que faz com que o pecador o queira. Deixado à sua própria vontade, nenhum pecador jamais escolheria Deus. Portanto, a visão calvinista do conteúdo da Bíblia, no tocante a Deus e ao homem, é tão real e justa, que
causa repugnância no ser humano. Daí a sociedade humana preferir um deus de sua escolha, de sua invenção, fruto de suas maquinações, em vez do Deus real, criador e mantenedor de tudo quanto existe, o Deus descoberto por João Calvino. Ele preferiria que toda a humanidade perecesse no inferno eterno do que ser Deus ofendido em sua glória e majestade. Sem transformação, o homem segue seu curso não querendo a Deus nem o céu. O que precede não é a fé do homem, e sim a mudança que o Espírito Santo causa no interior do homem. Daí a verdadeira fé ser dom do Espírito. A fé natural do gênero humano não pode levá-lo a parte alguma exceto ao inferno eterno. Calvino e o calvinismo glorificam o Eterno e põem o homem em seu próprio lugar. Certo dia, Calvino me inspirou a orar assim: “Senhor, se me salvas, isso provém tão somente de tua mercê e graça; se me condenas ao inferno eterno, e lá me lanças, isso provém de tua perfeita justiça, pois é justamente isto que eu de fato mereço em razão de minhas misérias”. Se me levas para o céu, lá te adorarei para sempre com ações de graças; se me lanças no inferno, de lá ainda te adorarei como Deus justo e de lá te louvarei como Senhor do céu e do inferno. Pois leio no Santo Livro que “diante do nome de Jesus, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que ele é Senhor para a glória de Deus Pai” (Fp 2.10,11). Dou-te graças, ó Senhor, porque a justiça perfeita de teu Filho Jesus Cristo se tornou minha ante o teu justíssimo tribunal. Por isso me tornei justo nele, mediante a fé. A certeza de que não vou morar no inferno, e sim eternamente no céu com o Senhor, se baseia no que ele declarou no Gólgota: “Está consumado” (Jo 19.30). Sim, seu sacrifício expiatório estava consumado com validade também para mim. Em Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, já não devo nada, absolutamente nada à ustiça do Eterno. Esta é a suma de minha profissão de fé. É nisto que está posta minha confiança incondicional. No tocante à salvação eterna, não ficou para eu fazer absolutamente nada! O que me tocou fazer é em decorrência da salvação absolutamente gratuita. A salvação é gratuita, no entanto, essa salvação gratuita tem um preço a ser pago, não da vida eterna, mas da vida aqui e agora, para a glória do Senhor que salva. A vida cristã é caríssima, se quisermos agradar àquele que nos salva gratuitamente.
3. Amava profundamente a Bíblia
“Calvino era um cristão que, antes e acima de tudo, vivia e respirava a Palavra de Deus.”[162]
3.1. Ela é a expressão da absoluta vontade divina “Ele cria firmemente que, quando a Bíblia fala, Deus fala.” [163] “... quando a Palavra é pregada, o próprio Deus está, de fato, presente.”[164] “Onde quer que seja pregado o evangelho, é como se o próprio Deus viesse para o meio de nós.” [165] Os pastores extraem toda sua autoridade ministerial da Santa Bíblia: Que os pastores enfrentem todas as coisas sem medo, por meio da Palavra de Deus, da qual foram constituídos administradores. Que eles reúnam todo o poder, toda a glória e excelência do mundo a fim de conferir a primazia à divina majestade desta Palavra. Que, por meio dela, comandem a todos, desde a pessoa mais notável até a mais simples. Que edifiquem o corpo de Cristo. Que devastem o reino de Satanás. Que apascentem as ovelhas, matem os lobos, instruam e exortem os rebeldes. Que juntem e separem, que clamem com veemência, se for necessário, mas que façam todas as coisas de acordo com a Palavra de Deus.[166] “Quando nos aproximamos da Bíblia, devemos crer que ela nos foi comunicada pelo Espírito Santo.” “A Bíblia é a cartilha de Deus para seu povo.” “Somos alunos da escola de Deus para o conhecimento de sua plena vontade na Bíblia.” Estas são expressões recorrentes em todos os seus escritos. Ora, a não ser que a pessoa seja eleita, jamais crerá nestes conceitos genuinamente bíblicos. É impossível que o incrédulo creia em tais afirmações. No entanto, elas são a suma da verdade revelada na Santa Escritura. Lawson segue afirmando as palavras do próprio Calvino: Certamente existe uma igreja de Deus onde vemos a Palavra ser pregada e ouvida com exatidão, e onde vemos os sacramentos
serem administrados de acordo com o que Cristo estabeleceu... uma assembleia na qual não se ouve a pregação da doutrina sagrada não merece ser reconhecida como igreja... a exposição da Bíblia deveria ocupar o primeiro lugar no culto de adoração… A verdade de Deus é mantida pela pregação autêntica do evangelho.[167] Sobre a natureza do Escrito Sagrado, Calvino não elaborou nenhum tratado específico, pois sempre seguiu os Pais da Igreja neste aspecto da teologia cristã. Ele se refere à Santa Escritura como a palavra inspirada do Deus Eterno. Ele nunca creu que a Bíblia contenha a revelação de Deus; ele sempre creu e ensinou que ela é a Palavra de Deus escrita. Muitos têm ensinado que Calvino nunca creu nem ensinou a inspiração gráfica e literal da Bíblia. [168] O conteúdo de todos os seus escritos desmente isso. Ele faz contínua menção de “Deus lhe ditou as palavras da profecia”. Em todas as suas obras lemos que ele cria e ensinava a inspiração verbal da Santa Escritura. É ele mesmo quem declara: Toda a Escritura, ou a totalidade da Escritura, embora não faça nenhuma diferença no sentido. Ele agora explica mais plenamente sua breve recomendação. Primeiro, recomenda a Escritura por causa de sua autoridade; e, a seguir, por causa do benefício que dela advém. Para asseverar sua autoridade, ele ensina que ela é inspirada por Deus. Porque, se esse é o caso, então fica além de toda e qualquer dúvida que os homens devem recebê-la com reverência. Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes aceitar isto como o princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como sua fonte, mas que foram ditados pelo Espírito Santo.[169]
Ela nos foi transmitida, infalivelmente, pela instrumentalidade de homens falíveis. O Espírito Santo, em sua soberania, nos deu a Bíblia através daqueles homens a quem ele inspirou para que escrevessem sua vontade revelada, sem erro, ainda que fossem homens como nós. Sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo (2Pe 1.20,21). E aqui Calvino tece o seguinte comentário: ... a Escritura não veio de homem, ou através das sugestões humanas. Pois você nunca se chegará bem preparado para lê-la, a não ser que venha com reverência, obediência e docilidade; mas tal reverência só existe quando nos convencemos de que Deus nos fala, e não homens mortais. Então Pedro nos convida especialmente a crer nas profecias como os oráculos indubitáveis de Deus, porque não emanaram das sugestões particulares dos próprios homens.[170]
3.2. Acomodação divina Deus, para nos alcançar em nossa pobreza, acomodou-se à nossa capacidade
(ou incapacidade?). Calvino dizia que Deus desceu de sua excelsitude para estar conosco em nosso trevoso abismo. Ele se condescendeu de nossa miséria, nos falando por seu Espírito em sua Palavra escrita. (Num capítulo próprio e específico ampliaremos esta ideia.)
3.3. Não ir além nem ficar aquém Ninguém deve ir além do que está escrito, e nem ficar aquém. Devemos contentar-nos com o que está escrito. Daí ser absurdo acusá-lo de inventar doutrina, como, por exemplo, a predestinação, porquanto ele tinha aversão à especulação humana. E diz que “toda e qualquer novidade em questão de religião é falsa.”
3.4. Não se deve negligenciá-la Negligenciar a Bíblia, tendo-a ao alcance da mão, é negar a própria salvação. Possuir a Bíblia em casa e nunca compendiá-la é declarar a própria incredulidade em Deus e em tudo o que provém de Deus. Significa possuir ao seu alcance o tesouro celestial sem jamais usufruir-se dele. Esta é a miséria de todas as misérias. Tal pessoa declara em silêncio sua máxima estupidez e merece ser execrada para sempre. Como é possível que tal pessoa habite eternamente com o Deus da Bíblia, no céu, se ela desdenha de seu santo ensino, o qual ele nos deu como a vereda para a eternidade feliz? Assemelha-se àquele homem que viveu a vida inteira mendigando assentado sobre uma grande pedra. Ao falecer, o povo do lugar decidiu remover também aquela pedra para não servir de uma nauseante lembrança. E qual foi a surpresa de todos? Debaixo da pedra jazia ao longo de tanto tempo um verdadeiro tesouro, enquanto aquele homem, ignorando a verdade, morreu na mais plena miséria. Muitos homens e mulheres, jovens e idosos, estão perecendo na mais profunda miséria espiritual, perdidos, enquanto a luz divina se encontra ao alcance de sua mão! Esta é a miséria de todas as misérias. Morrer com a Bíblia ao alcance de sua mão, sem nunca a haver compendiado, é encontrar-se com Deus na mais profunda miséria espiritual, nas trevas mais densas que o ser humano possa experimentar. Significa morrer sem haver degustado a coisa muitíssimo mais doce que o mel (Sl 19.10). É como ter o desejo de comer sua fruta preferida estando a árvore ao alcance de sua mão.
3.5. Não torcer nem negar Ninguém tem o direito de torcer nem de negar a Bíblia. Devemos aceitá-la, não questioná-la. Esse foi o constante ensino do Reformador genebrino. Ela nos foi dada pelo Espírito Santo a fim de a conhecermos e crermos nela de todo o coração e de ensiná-la a outros. Nosso dever é nos determos em suas santas páginas. A santificação é impossível sem a assimilação do conteúdo do Santo Escrito. Foi justamente isso que Calvino passou à comunidade genebrina e ao mundo. Ele reformou Genebra com a Bíblia aberta, não só nas mãos, mas, sobretudo, em seu coração inflamado de amor pela verdade divina.
3.6. Ela nos leva ao conhecimento de Deus e de nós mesmos Esse conhecimento de Deus e de nós mesmos só se encontra na Bíblia. A natureza não nos transmite isso. Ele começa suas Institutas com estas palavras: Quase toda a soma de nosso conhecimento, que de fato se deva julgar como verdadeiro e sólido conhecimento, consta de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos. Como, porém, se entrelaçam com muitos elos, não é fácil, entretanto, discernir qual deles precede ao outro, e ao outro origina.[171] João Calvino se apropriou do mais sólido conhecimento da Santa Escritura e dos Pais da Igreja para estabelecer sua reforma genebrina. Ele morreu sem ter plena noção da grandeza de sua teologia e o vigor que ela exerceria na reforma em outros países, inclusive nosso Brasil, embora tardiamente, pois creio que, se a evangelização de nossa pátria fosse acompanhada da substância dos escritos do Reformador, teríamos hoje igrejas realmente evangélicas. Em consequência da negligência, hoje temos uma repulsiva colcha de retalhos com o título “povo evangélico”, quando, na verdade, não é evangélico, senão um doloroso arremedo da religião de nosso Senhor. Pessoalmente, dou graças a Deus pelo homem João Calvino, não só porque ele reformou a igreja de nosso Senhor, mas também porque me deu o privilégio de conhecer profunda e profusamente esse maravilhoso homem e servo de Jesus Cristo através de seus escritos. As igrejas brasileiras, realmente reformadas e, portanto, evangélicas, deveriam sentir-se honradas e agradecidas por ter João Calvino como seu mentor na correta interpretação da Bíblia e de propiciar à igreja um sistema perfeito de governo. E hoje temos tudo isso em nosso idioma.
4. Seu propósito quanto à vida da Igreja Calvino olhava não só ao seu redor, em seu viver cotidiano, senão que seus olhos contemplavam o mundo inteiro cedendo à operação do Espírito
Santo para uma plena reforma da vida. Ele queria que a sociedade humana fosse transformada de dentro para fora.
4.1. Integridade de vida Mark R. Talbot faz uma curiosa afirmação sobre a imagem divina no homem afetada pela queda. Descrever nosso mundo como um palco quebrado é iluminador. Por causa da desobediência de Adão e Eva, a vida humana até o eschaton [o fim da história] é sempre encenada em um palco quebrado, um palco coberto com os destroços de pecado e de sofrimento.[172] Dr. Herminsten Maia, em seu livro Calvino de A a Z , citando o Livro dos Santos (Sl 100) e as Institutas II.5, afirma sobre a imagem divina no homem: Por meio da regeneração, Deus “cria de novo sua imagem em seus eleitos”. Definindo arrependimento, Calvino escreve: “o arrependimento é uma regeneração espiritual cujo objetivo é que a imagem de Deus, obscurecida e quase apagada em nós pela transgressão de Adão, seja restaurada [...] Assim, pois, mediante essa regeneração, somos restabelecidos na justiça de Deus, da qual tínhamos sido despojados por Adão. Pois a Deus agrada restabelecer integralmente todos os que ele adota na herança da vida eterna”.[173] Calvino buscou viver uma vida íntegra, porquanto ele cria e ensinava que todo o ensino da Santa Escritura só tem validade quando aplicado à vida cotidiana. Todo seu ensino sobre a vida cristã está pautado num viver responsável. E tudo isso só se consegue tendo como ponto de partida uma vida em comunhão com Deus. “Somente aqueles que têm acesso a Deus, e que vivem uma vida santa, é que são seus genuínos servos.”[174] E ele diz que nossa vida inteira tem de ser de progresso contínuo na santificação: “Como na presente vida não atingiremos pleno e completo
vigor, é indispensável que façamos progresso até a morte”. [175]
4.2. Influência sobre a sociedade A visão que Calvino tinha da Bíblia e como a interpretou, se posta em prática pela igreja atual, no seio da sociedade, traria profundas mudanças em todos os setores dessa sociedade. Por exemplo, a visão teológica do pecado no ser humano desde seu nascimento, da sociedade brasileira, é inteiramente pelagiana, isto é, ao nascer, a pessoa não é pecadora, ou seja, nasce como se fosse um anjo. Aliás, quase todos denominam uma criancinha de “anjinho”. Em que sentido? É que a criancinha não tem ainda o germe do mal em seu ser. Só não sabem explicar por que ninguém nunca conseguiu criar um filho ou filha sem se contaminar pela prática do pecado. Ninguém sabe explicar por que o pecado é tão universal que todos, a uma, são viciados pelo pecado desde a mais tenra idade. A Bíblia ensina, e Calvino interpretou corretamente, que desde a gestação a criança recebe do pai e da mãe o germe do pecado. Nesse sentido, a criança já é pecadora; não que cometa pecado, mas que já está pronta para cometê-lo. A corrupção é uma herança natural. É impossível que a criança nasça de pais corrompidos sem herdar deles essa natureza. Se ela herda dos pais tudo o que natureza humana contém, então ela herda também dos pais a natureza pecaminosa. O ditado, “filho de peixe, peixe é”, se aplica ao ser humano: “filho de homem e mulher, é homem ou mulher” na íntegra. A corrupção moral é inerente, e não acidental. Quando os educadores criam leis contra a disciplina paterna aplicada em seus filhos, estes querem dizer que a criança, por si só, tem condição de ser boa. Como disse certo papa: “A pessoa é inerentemente boa”. No entanto, a Bíblia afirma que a pessoa é inerentemente má. Ora, a própria experiência da sociedade desmente esse ilusório pelagianismo. É nesse sentido que o autor do livro de Provérbios preceitua: “A vara e a disciplina dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma vem a envergonhar a sua mãe” (Pv 29.15). Aqui, a vara e a disciplina não significam “pancadaria”, maus tratos, violência contra o corpo de uma criança. O autor de Provérbios cria que a criança já nasce propensa ao mal, e não ao bem. Este tem que ser ensinado, imposto, a grande custo; aquele é natural e se desenvolve naturalmente.
Ora, é muito diferente nosso trato com a criança: se cremos ser ela um “anjinho”, ou se cremos ser uma “pecadora”. Toda a educação da sociedade sofreria uma radical reversão. O sistema educacional brasileiro não está criando seres humanos decentes, tementes a Deus, respeitosos para com os superiores e iguais. É só indagar dos professores e professoras sobre o comportamento de seus alunos criados como se fossem totalmente livres e bons. Pergunta-se: onde foi parar o respeito, o bom senso, o trato social, a obediência aos pais e às autoridades etc.? O que foi feito da honestidade, da retidão, da seriedade, do idealismo, do compromisso, da responsabilidade etc.? Ainda hoje, um lar governado pelo prisma do ensino bíblico calvinista, com seriedade, com responsabilidade, conduzindo os filhos ao ensino da Escritura desde cedo, ensinando aqueles princípios que devem reger a sociedade, nos mínimos detalhes, sem dúvida é um lar diferenciado. Daí promana bons cidadãos, bons líderes nacionais, bons profissionais, bons cristãos. Estarrece ver e ouvir de membros de igrejas cristãs que agem com a máxima conspurcação em todas as esferas, desde o alto escalão até o proletariado. Sem dizer o quanto estarrece ver e ouvir de presídios aglomerados por falta de espaço; ver homens e mulheres a quem chamam de “menores” depredando, violentando, roubando, matando com fúria máxima. Estarrece-nos ver a devastadora impunidade em razão da distorção do conceito de pecado no ser humano desde sua gestação. Consterna-nos ouvir as opiniões da maioria dos educadores que não têm uma ideia definida do que está acontecendo com e na sociedade humana. Nunca vão diretamente à fonte do problema. Formam circunlóquio que nunca chega ao núcleo da questão. Sem o ensino bíblico, a sociedade está fadada ao caos. É muito notório a todos o provérbio: “o conhecimento se adquire na escola; mas a educação se adquire no lar”; “a educação do berço” é uma frase repetida quase que diariamente. Isso só é possível se a sociedade humana mudar seus conceitos de mal e bem. Dentre as denominações realmente cristãs, o calvinismo brasileiro ainda é dos mais respeitáveis e respeitados. Não é melhor porque o calvinismo, hoje, se deformou muitíssimo. O fato é que os princípios oriundos da visão reformada da Bíblia, praticados com seriedade, ainda pode e deve produzir seres humanos dignos de redirecionar os múltiplos setores da sociedade brasileira. Grande parte dos cristãos modernos prefere seguir os compêndios de
sociologia, antropologia, psicologia, direitos humanos, do que seguir os princípios bíblicos na educação de seus filhos. A psicologia bíblica é supremamente a melhor, porquanto ela provém da Santa Escritura que nos foi dada pelo sapientíssimo Espírito Santo. É preciso haver uma mudança radical na educação da família. Mas, que família? Se nos deixarmos levar pelo pessimismo (ou realismo?), que família haverá amanhã? O único órgão da sociedade que tem validade para produzir bons cidadãos e bons cristãos é a família. Destruída esta, que nos sobrará para o futuro? E uma família digna de honra é aquela que se compõe de um homem digno de ser “chefe” da família; de uma mulher bem preparada e digna de ser mãe dos filhos brasileiros. Somente um homem bom e uma mulher boa é que podem gerar novos e bons filhos para o Brasil! Fora disso, temos uma sociedade descarrilada. Se o calvinismo brasileiro se soerguer como outrora, com força pujante, com a dignidade da verdadeira religião de Jesus, para implantar lares perenes, bem fundados nas páginas da Santa Bíblia, então teremos novas gerações para um mundo melhor. Então, ficará para trás a era em que os homens espancam as impotentes mulheres de maneira covarde, vergonhosa e criminosa, de filhos despudorados que contribuem para a destruição dos lares, das escolas, da sociedade como um todo; filhos sem regras, sem disciplina, depredadores, cuja liberdade é mais bem traduzida como “libertinagem”. O fato é que a nova geração humana se compõe de libertinos irresponsáveis e perversos, que tiram a liberdade e roubam o direito dos trabalhadores, idealistas. Pior, fazem isso impunemente. Que a Providência nos proveja de sabedoria para o surgimento de uma nova sociedade e uma nova igreja. O calvinismo implementa o temor de Deus nas vidas, nos lares, nos vários setores da sociedade. Quando este elemento fundamental desaparece, com ele desaparece o resto da imagem divina no homem. Temor não é propriamente medo, pavor; temor é respeito, reverência, restrição, dignidade para com Deus e nossos semelhantes. Eu temo a Deus, temo a lei, temo as autoridades como superiores a mim. Sem este princípio, a sociedade não tem como suportar a carga das consequências nocivas e destruidoras. Tomemos como exemplo o esporte. É possível conceber o esporte como que destituído de regras, de normas, de princípios, de fundamentos? É possível imaginar um lar sem esses mesmos fundamentos? É possível
imaginar uma sociedade boa e ordeira sem tais princípios e fundamentos? “Minha liberdade só vai até onde começa a liberdade do próximo.” Então minha liberdade é regulada. Meus direitos não podem surrupiar os direitos de meu próximo. Isso nunca dará certo! Deus produz pessoas boas com sua religião correta; esta religião correta produz lares bem constituídos; e esses lares bem constituídos produzem indivíduos dignos de confiança. O calvinismo prático faz isso com sua visão da soberania absoluta de Deus, com sua visão de lares que disciplinam e corrigem corretamente os filhos; com sua visão de uma sociedade íntegra que conduz bem os negócios do país. Pois o calvinismo ensina que todos os departamentos de um país pertencem a Deus. O governo é ministro de Deus; os magistrados são ministros de Deus; todas as autoridades são ministras de Deus; os cientistas são ministros de Deus; os educadores são ministros de Deus. Deus é o Senhor absoluto de tudo e de todos e a tudo governa para um propósito predeterminado. O respeito procede de Deus; o desrespeito procede do maligno. A disciplina procede de Deus; a indisciplina procede do maligno. Quando digo “maligno”, quero dizer tanto a ação diabólica direta ou indiretamente, quanto aos efeitos destrutivos da má natureza com que nascem todos os seres humanos. A natureza pecaminosa que constitui o ser humano á nasce pronta a exercer sua força destruidora. Nenhum pai ou mãe precisa ensinar a criança a praticar o mal; ela o pratica naturalmente. Ambos têm que ensinar seus filhos, e com muito empenho, a praticar o bem. É só observar atentamente esta dolorosa realidade. Como é difícil implantar o bem na criança! Deixada à sua vontade, ela procurará normalmente fazer dano aos outros. A educação mundial precisa adotar os princípios calvinistas do ensino bíblico. E se verá que funcionam bem e melhorarão radicalmente a sociedade.
4.3. Reforma do mundo através de missões Calvino é tido como um homem completamente destituído do espírito missionário. Quase a mesma censura lhe é lançada de não aprovar a música na igreja. Prova-se, através de suas obras literárias e teológicas, que lhe são lançadas muitas acusações falsas. Justamente como ele metrificou muitos
salmos para serem entoados como louvor ao Deus Supremo, também se pode provar que ele nutria o espírito missionário. Talvez não com a mesma intensidade que se pode detectar nos outros reformadores, pelo menos na aparência. J. Vanden Berg alega que isso se deve porque “não encontramos em Calvino uma doutrina específica sobre missões”. Mas prossegue que encontramo-la esparsa em todas as suas obras. [176] Ele diz ainda que “Calvino não foi cego nem surdo às necessidades de um mundo pagão”. [177] Lemos ainda que “em suas obras descobrimos que Calvino considerou a conversão das nações e a expansão do reino de Deus no mundo inteiro”. [178] “Calvino reconhece”, diz ele, “o caráter universal do chamado do evangelho e dirige seus olhos para o estabelecimento de uma igreja universal, a qual reúne todas as nações e estabelece o reino de Deus sobre toda a amplitude do mundo, e sabe que a igreja tem que exercer uma parte ativa na grande tarefa de fazer deste mundo o palco da glória de Deus”.[179] Para o Reformador, o mundo tem de ser o palco e teatro do reino de Deus triunfando através do evangelho.
NONA PARTE: DE REGRESSO A GOIÂNIA
Vale lembrar que foi em Goiânia que minha vida tomou outro rumo. Aqui foi onde fui ordenado e minha vida, definida. Agora, eis-nos de volta, provavelmente até o final da vida terrena. Ordenado em 1975, pastorado em Paraíso de 1975 a 1977 e em Ceres de 1978 a 1986. Nossa peregrinação na grande São Paulo foi de 1987 a 2004. Desse período em diante, residimos em Aparecida de Goiânia e agora estamos residindo em Goiânia. Saímos de Goiás ainda jovens, ainda cheios vigor e idealismo, e agora sabemos pela própria experiência o que significa o peso dos anos; não a “melhor idade”, como muitos a chamam, o que não passa de fantasia. Em termos experienciais, o idoso enfrenta a fase final de sua peregrinação terrena. E essa fase nem sempre é recoberta de saúde e vigor. Há uma infinidade de idosos que vivem os piores momentos de sua vida. Quanto a nós, porém, ainda nos resta vigor e disposição. É na velhice que ainda tenho realizado o máximo de minha vida. No dizer do salmista: “Na velhice darão ainda fruto” (Sl 92.14). Depois que Cremilda se aposentou e deixou o Instituto Mackenzie, eu me desvencilhei do terrível problema gerado por Edições Parakletos; estando meus sogros já em estado senil e muito doentes, percebendo que poderíamos mudar-nos para Aparecida de Goiânia onde eles moravam, sem que houvesse alteração forçada, então lhe sugeri a seguinte solução: Já que seus pais necessitam de cuidados especiais, e você, dentre os filhos, é filha única, e seus irmãos não podem estar com eles, e eu posso continuar minhas traduções e composições literárias em qualquer lugar, vamos para a grande Goiânia; seus pais precisam de você.
1. Novo impacto de cosmovisão Com parte do dinheiro que recebera dos acertos finais com o Instituto Mackenzie, Cremilda comprou uma casa modesta nas proximidades da residência de seus pais; então mudamo-nos para Aparecida de Goiânia. E assim ela assumiu o papel de “mãe” dos velhos pais. Mal sabíamos que aquela seria uma trajetória cheia de percalços e sem volta. Não houve um choque de cosmovisões tão forte como aquele de quando saímos de Goiás, porque já havíamos morado em Goiânia e no estado em tempos passados. Mesmo assim, já adaptados na capital paulista, houve certa dificuldade de adaptação e no enfrentamento de preconceitos da parte das igrejas da grande Goiânia. Foi assim que ela deixou as lidas escolares e passou à convivência com os pais já idosos e de temperamento dificílimo. E ela fez isso dia e noite. Enquanto eu trabalhava em minha “oficina”, ela ia e vinha, sem cessar; e assim cumpriu cabalmente o que lhe competia como filha.
2. Tentativas inglórias Assim que chegamos, das primeiras coisas que cogitamos foi de nos filiarmos à igreja que ficava a duas quadras de nossa casa. A princípio, queríamos simplesmente estar presentes nos cultos. Logo descobriríamos com profundo pesar que não seria fácil. Tentamos de imediato enturmar-nos com aqueles irmãos, alguns já conhecidos, mas houve relutância e resistência da parte da maioria deles. Havia uma grande e forte barreira gerada pelo preconceito que obstruía nossa afinidade em Cristo. Era a igreja de meus sogros. Havia tudo para ser também a nossa. Insistimos um pouco mais. O pastor me convidou a dar um curso de liderança para uma classe seleta. Consegui fazer isso durante aquele primeiro ano. Então, percebendo que se esquivavam de mim e da metodologia de meu ensino, declarando que não precisavam da cultura paulistana, acabei desistindo. Alguns diziam: “Não adianta; temos nossos próprios costumes, e cremos que são melhores e suficientes. Não precisamos de nada vindo de fora”. Com isso passei a frequentar outra igreja mais distante, mas também não fui recebido de braços abertos. Praticamente, estava sem igreja; aquele era um mundo estranho e eu era um silencioso proscrito. Descobri que em Goiânia eu era desconhecido até mesmo de muitos colegas de ministério. Creio que minhas idiossincrasias colaboraram muito para esse infeliz impacto. Daí deglutir a seco a realidade sem condenar a ninguém. Punha-me no lugar de todos e compreendia que no lugar deles talvez eu fizesse o mesmo. Conclusão: O problema está radicado em mim mesmo. E assim percebi que Goiânia seria meu longo exílio.
3. Presbitério Sudoeste de Goiânia Viemos para a grande Goiânia sendo eu membro do Presbitério Unido de São Paulo e auxiliar do pastor da Igreja Presbiteriana Unida, Rev. Carlos Aranha. Já que nos mudamos definitivamente, então tinha que procurar o presbitério da mesma região em que viemos morar. E assim me apresentei ao Presbitério Sudoeste de Goiânia para que este viesse a ser doravante o meu concílio. Já era conhecido de alguns. Boa parte do concílio me olhava de viés e à distância. Saíra de Goiás bem mais jovem, e agora enfrentava as mudanças
naturais da idade. Até que ponto de fato eu mudei? — perguntava a mim mesmo. Eu não queria ser diferente. Tentava mostrar que eu era o mesmo de outrora. Ninguém conseguia ver e sentir a dimensão de minha crise existencial. Cremilda fez o mesmo no âmbito do trabalho feminino. Tentou de todos os modos para entrosar-se e foi “evitada” ou recebida com muita restrição. Eu de um lado e ela do outro enfrentando cada um seus próprios revezes. Parecia que esta não era de fato nossa antiga e amada Igreja Presbiteriana. É terrível quando nos sentimos rejeitados pelos de casa. Ela nasceu e cresceu na igreja e procurou servi-la bem; eu renasci nela e me preparei para servi-la o máximo que pude. No entanto, a sensação nítida era de repúdio. Sentíamos pessoas desagradáveis e não bem vindas. Aumentava nosso senso de exilados. Fui convidado a pregar na abertura de uma das reuniões do Presbitério. Sabia que era um teste. Depois de pregar nunca indaguei se fui ou não bemsucedido. Faço o que faço em nome do Senhor Jesus e busco esquecer. Nunca mais se repetiu. Nunca mais quiseram me ouvir. Nunca perguntei a alguém o porquê da rejeição e afastamento. Não estranhei muito por ter a nítida consciência de não ser orador. Quem me ouve uma vez dificilmente quererá ouvir-me outra vez. Com certa angústia no coração, percebi que não passei no teste. Chegava em casa e dizia para Cremilda que não mais voltaria às reuniões. Sentia-me humilhado e discriminado. Eles não me envolviam em suas discussões. Desde então, tornei-me um homem alijado do convívio com os “irmãos em Cristo”, com pequena exceção. Segundo o provérbio popular, eu “era um peixe fora d’água”. O aquário deveria ser também meu, mas me “empurraram” para fora dele. De início, fui integrado na Comissão de Legislação e Justiça. Esta foi a única vez. Nas reuniões seguintes me davam, inclusive, livro de atas dos Conselhos para examinar. Nunca me deram a tutoria de algum candidato à ordenação; nunca me deram uma monografia para ler e avaliar. Era como se quisessem dizer-me: “Aqui sabemos fazer perfeitamente bem essas coisas; não precisamos de você”. Ou: “Descobrimos que sua cultura é muito pobre”. Por fim, eu era deixado a perambular pelos corredores sem nenhuma tarefa. É difícil uma atitude mais dura de suportar do que o descaso. Hoje, olhando para trás, creio que o concílio nunca percebeu que agia assim para comigo. Nunca percebeu que me discriminava e me magoava e ainda o faz.
Passei a sentir-me o pior dentre eles. Cheguei a pensar em entregar ao Presbitério minha carteira de ministro e solicitar minha exclusão do rol de ministros e da membresia da Igreja Presbiteriana do Brasil e viver no anonimato, como apenas membro da Igreja celestial. Esta é uma confissão muito forte e dolorosa. Com certeza, todos os membros do concílio dirão que estou equivocado e imaginando coisas inexistentes; que nunca agiram assim para comigo. Os que fazem o mal costumam não perceber; só percebe quem o recebe. Enfim, eu não fiz o que pretendera e continuei vertendo as obras de João Calvino para nosso idioma como um homem destituído de apreço, à margem do caminho, quase um proscrito. Então resolvi ser de fato um proscrito. Enfurnei-me em minha “oficina” e desisti de procurar igreja para frequentar. Que o meu concílio perdoe minha confissão franca, mas foi justamente assim que me senti tratado — o membro mais indesejado entre eles. Cheguei ao ponto de não mais querer frequentar as reuniões. Tanto é que depois de jubilado não mais quis estar presente. Hoje vivo no isolamento. Só me vê quem decide vir à nossa casa. Mais tarde, alguns resolveram aproximar-se e tentar conhecer-me melhor — e deu certo. Creio que esses descobriram que não sou o que pensavam e criam. Mas tenho que confessar ainda que nunca recebi de meu concílio qualquer incentivo para fazer o que faço durante os últimos anos de minha vida. Não me lembro de um deles falar-me: “Muito bem, continue firme. Nós precisamos de sua contribuição”. Penso até que meus antigos colegas não possuem nenhuma obra de Calvino em suas estantes. Por natureza, sou de espírito arredio, naturalmente propenso à reclusão. Isso contrabalançou minha dura experiência. No entanto, o Senhor me deu um rico depósito de conhecimento durante aquele tempo em São Paulo. Todavia, eu estava fadado a guardar isso comigo sem ter como gastá-lo — ainda que de graça. Nesses quatorze anos em Goiânia, poucas igrejas solicitaram minhas pregações. Onde mais preguei foi na igreja do Ipê. Seu pastor, Rev. Rosalvo Maciel, permitiu que eu prestasse ali uma boa colaboração. No entanto, aprendi a administrar esse estado psicológico através dos tempos e sempre venci. Firmei bem em minha mente que desta vez também venceria.
4. Minha “Oficina” — Testemunha ocular
Minha “oficina” viria a ser testemunha ocular de meu intenso labor e palco de alegria vendo-me dia a dia dando curso às traduções de dezenas e mais dezenas de livros, de Calvino e de outros; bem como de superação dos conflitos íntimos. Isso foi muito bom. Os livros sempre foram meus amigos íntimos. E foi em Goiânia que traduzi o maior volume de obras. Nunca me vi ocioso. Cheguei a trabalhar para a Editora Os Puritanos, a Editora Academia Cristã, a Editora Hagnos, a Editora Primícias, a Editora PES (Publicações Evangélicas Selecionadas) e a Editora Fiel. Por muito tempo depois que deixei seu recinto, prestei serviços de tradução à Editora Cultura Cristã. Mas chegou o dia em que fui excluído definitivamente. Quanto mais servia às igrejas com o melhor da literatura, mais sozinho me sentia. Por isso esta “oficina” veio a ser também testemunha ocular e palco de profunda crise existencial. Cremilda se exaurindo com seus pais, com bem pouca colaboração da família; e eu enfurnado em um canto desconhecido até mesmo dos conhecidos. Com música suave de fundo, mergulhava cada vez mais em minhas traduções que substituíam os amigos ausentes. Como gostaria de partilhar com alguém o teor daquelas obras tão grandiosas. Como gostaria de discutir teologia com teólogos de mais conhecimento e experiência do que eu, para aprender com eles aquilo que ainda me faltava. Alguém da família insinuou que eu falo demais quando encontro alguém de ouvidos aparentemente dispostos. A própria família não compreende que essa atitude vem da necessidade existencial de partilhar o que aprendo sozinho da sã doutrina bíblica. Significa que mesmo os membros íntimos de minha própria família não gostam de me ouvir. Essa sensação negativa ainda me esmaga. Quando você descobre um universo de conhecimento, então necessita partilhar isto com alguém. Se não acha ninguém que o ouça, sua alma se definha e sente que já não se encontra entre seres humanos iguais. É como se estivesse sendo asfixiado e fosse morrendo sem ar nos pulmões. É muito difícil sentir-se desagradável e evitado. Até mesmo meus amigos de outrora desapareceram. No dizer de Davi: “Até meu amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o calcanhar” (Sl 41.9). Muitos homens e mulheres na história escreveram livros de confissão pessoal. Eu também gostaria de escrever o meu. No entanto, quem o leria? Particularmente, eu aprecio muito ler biografias. A gente aprende com a vida
de outros. No tocante a mim, quem aprenderia comigo? Se escrevo estas coisas, meu intuito é que os leitores aprendam que não há neste mundo ninguém isento de aflição em sua trajetória peregrina. Aprendi que o grande compositor Beethoven era um homem totalmente isolado de tudo e de todos; aprendi ainda que o grande teólogo François Turretini vivia sozinho, e que seu presbitério não o suportava. Era tão perfeccionista em sua teologia reformada, e seu presbitério já estava eivado de uma teologia viciosa, que ninguém queria sua amizade. Eu me somo a esses.
5. Cremilda e seus pais Meus sogros já estavam bastante debilitados. A rotina de Cremilda era intensa, tentando apaziguar a impertinência dos velhos pais e ela mesma sem aquela saúde que a tarefa demandava. A doença degenerativa de meu sogro se agravou. Paulatinamente, foi se definhando. Foi preciso instalar em nossa casa um quarto hospitalar para assistência noturna e diurna. Durante seis meses ele foi assistido por Cremilda e um terapeuta. Quando era minha vez de ficar com ele, olhava-o e ponderava que a vida terrena, sem aquela visão celestial dos propósitos do Eterno, não passa de uma peça teatral. Como a vida daquele homem terminava depois de uma história cheia de aventura! É difícil de explicar, e nem quero explicar, em que estado deprimente aquele homem despediu-se da vida terrena. Certamente, para ele a velhice não foi a “melhor idade”. Em meio a todo esse torvelinho, consegui administrar a assistência à minha esposa e ao trabalho na oficina. Tinha que sair com ela para as devidas providências. Depois de seis meses nesse estado, ele veio a falecer nos recessos de nossa casa. Desde então, minha sogra não mais conseguiu viver; 67 anos juntos, sua vida a dois foi longa demais. Ela já não sabia viver sem o companheiro. E assim foi se definhando até que também entregou a alma ao Senhor Eterno. Foi nesse período, mais que em qualquer outro, que aprendi a realidade da miséria humana. Focando bem meu sogro naquele leito, passei a contemplar as pessoas que vivem dia e noite cuidando da beleza estética e se esquecem de cultivar a verdadeira beleza da alma, a qual deveria estar acima da do corpo físico. Foi nesse sentido que um filósofo se expressou de uma maneira mui abrupta e rude: “A beleza é um cadáver bem vestido”. Que
expressão mais derrotista! — dirá alguém. Mas quando prestamos atenção com mais vagar em seu conteúdo e atentamos para a realidade terrena do ser humano, então nos vemos obrigados a concordar com o filósofo. Porque uma pessoa, querendo ou não, não passa de um esqueleto revestido de carne e pele e recoberto com vestes belas e todo tipo de cosmético. É só prestar atenção em uma tomografia. Nela nos vemos tais como realmente somos. Se cada um de nós meditasse seriamente nesse fato, haveria de precaver-se da imbecil vaidade humana que nada mais faz senão cuidar de seu exterior. Obviamente, devemos cuidar bem desse cadáver ainda bem vestido; é um dom de Deus; cabe-nos velar da saúde e boa estética, o quanto possamos, sem viver em função dessas coisas que são tão fugazes. Hoje sou um jovem de bela aparência, e amanhã já me vejo envelhecido. “Fui moço e já agora sou velho...” (Sl 37.25). Você quer envelhecer? — é a pergunta que costumo fazer. Nunca encontrei alguém que dissesse: “Não!”. Ao chegar aqui, armei minha “tenda” de trabalho em um cômodo bem apertado, como sempre o fora. Desde então, continuo trabalhando para a educação teológica do povo de Jesus Cristo, ainda peregrino neste mundo. E, uma vez em Goiânia, consegui delinear a meta de trabalho com o seguinte resultado:
6. Dezenas de traduções Consegui traduzir de Calvino os sermões sobre o Rei Davi, sobre Jesus Cristo e suas obras, sobre Jacó e Esaú (Eleição e reprovação) e em Efésios; verti ainda Breve tratado sobre a santa Ceia, Psicopaniquia, Providência secreta de Deus, Confissão de fé e Catecismo de Genebra, A necessidade reformar a igreja e Réplica ao Cardeal Sadoleto; os comentários sobre Gênesis (2 volumes), Harmonia da Lei (4 volumes), Josué , o Profeta Isaías (4 volumes), o Profeta Jeremias (5 volumes), o Profeta Ezequiel (2 volumes) e os Profetas Menores: Oseias, Amós, Joel, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias; a Harmonia dos Evangelistas (3 volumes), o Evangelho de João (2 volumes), Atos dos Apóstolos (2 volumes), Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses, Tiago, Pedro, João e Judas. Dos já editados, alguns estão reeditados: Romanos, Coríntios, Pastorais, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, os três volumes dos Salmos; a Fiel editou o quarto volume dos Salmos. Se eu
não fizera nada mais, além da tradução dessa obra dos Salmos, já me daria por satisfeito e teria prestado ao reino de Deus uma grande contribuição. Creio que não há nada em português que sobrepuje a essa obra tão magnífica. Louvo a Deus por isso! Mais recentemente traduzi as Institutas em sua primeira edição de 1536 a qual já acha editada e em circulação. Além de tudo isso, Deus me deu a graça de traduzir obras para várias editoras. Para a Editora Candeia, Descobrindo a Bíblia; para a Editora Fiel, Apocalipse e o dom supremo, Expiação definida, Espiritualidade reformada, Caridade e seus frutos, Pilares da graça; para a Editora Hagnos, Teologia sistemática de Charles Hodge; para a PES, a teologia de LoydJones: Deus Pai e Deus Filho, Deus Espírito Santo e A Igreja e as últimas coisas; para a Editora Cultura Cristã, além daqueles livros que eu mesmo deixei editados previamente, traduzi ainda Gênesis, Salmos, Isaías (2 volumes), Ezequiel (1º volume) e Compêndio de teologia apologética de François Turretini (3 volumes). Para a Editora Os Puritanos traduzi o Comentário à Confissão de fé , A palavra final , Reforma hoje , Santa ceia, O Espírito Santo, Batismo infantil; para a Editora Academia Cristã, os Quatro Evangelhos de William Barclay (4 volumes) e o Evangelho de João de Raymond Brown (2 volumes). Revisei muitos outros livros, cujos títulos deixo de citar. Apenas reitero o grande trabalho feito nas Institutas traduzidas pelo Rev. Dr. Waldir Carvalho Luz. Se alguém prestar detida atenção, perceberá que não traduzi nem traduzo obras que não sejam de convicção reformada, com pequena exceção. Daí acreditar que eu tenha dado ao povo evangélico de língua portuguesa boa contribuição na área teológico-educativa. Um volume que considero “especial” é Calvinismo e arminianismo, de John L. Girardeau, obra preciosíssima, lindamente prefaciada pelo erudito Dr. Hermisten Maia, a qual tem direcionado muitos crentes e pastores para a sã doutrina bíblica como focalizada pela fé reformada. O original me foi presenteado pelo grande amigo e fiel teólogo da Igreja, Rev. Prof. Salvador Moisés da Fonseca, professor no Instituto Bíblico Eduardo Lane. Era uma relíquia em sua vasta biblioteca. O livro me fascinou de tal modo que o traduzi em menos de 60 dias, o original com 574 páginas. E hoje temos esta preciosidade em circulação, já na biblioteca de muitos pastores e prometendo ser uma obra de valor perene em nosso Brasil pagão e saturado de seitas as mais heréticas e estranhas que se possa imaginar e não imaginar.
Causou-me alegria profunda ver editados os livros pela Clire: Obras de João Calvino, primeiro volume, e o primeiro volume de Gênesis; e pela Fiel o mui esperado volume de As Institutas em sua primeira edição de 1536.
7. O Livro da Vida Registro ainda que o Senhor me deu a bênção de deixar meu próprio pensamento teológico na forma de livro: O Livro da Vida (2ª edição ampliada). Ali deixo calcada indelevelmente minha convicção teológica no tocante a algumas das doutrinas da graça. Livro modesto, direcionado para o povo leigo conhecer a coisa mais espantosa que se possa imaginar: na eternidade, Deus fez escrever um livro onde deixou na forma inapagável o registro do nome de cada eleito. Este registro se encontra nos arquivos celestiais onde nada nem ninguém penetrará para rabiscar, ou rasurar, ou apagar o nome de quem uma vez foi contemplado pela graça divina. Apocalipse afirma que este é o Livro da Vida do Cordeiro, e que o nome dos incrédulos e profanos não se acha registrado nele, pois ele é especificamente o livro de registro de todos os eleitos de Deus em Cristo e que aspiram o reino celestial (Ap 3.5; 13.8; 17.8; 20.15; 20.27; cf. Lc 10.20; Fp 4.3). Deixo registrado ainda que fomento em meu coração o ideal de ainda ver editado meu segundo livro: Caminhos da Providência, ou João Calvino no Brasil. Quero deixar para meu povo cristão a história de um homem que pode, legitimamente, afirmar com o profeta Amós: “Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boieiro e colhedor de sicômoros” (Am 7.14). E não me vejo enquadrado em nenhuma outra figura e situação. Se eu tiver que ser conhecido, prefiro sê-lo na qualidade de servidor braçal de Jesus Cristo em sua Igreja. Com certeza, não vou receber nenhum laurel ou título honorífico por isso. Não me cansa contar do jovem que há mais de cinquenta anos deixou aquela humilde ferraria, depôs o martelo na bigorna e saiu para aprender teologia no IBEL. Penso comigo: Se eu mesmo não escrever, acaso esta história não ficará no esquecimento quando escoar o tempo de minha passagem daqui para o além? Alguém se interessará em resgatar uma história “descabida”, sem nexo, até mesmo absurda, história esta que fala de uma das façanhas mais “incríveis” que se possa imaginar? Meu intuito, porém, não visa à minha pessoa em particular, a qual é quase de nenhum valor. Meu
intuito, sim, é mostrar como o Senhor da Igreja lança mão de pessoas sem a menor condição de servi-lo numa pequena obra, muito menos numa grande obra como esta que realizo: “o homem que fez João Calvino falar português”.
8. Datas curiosas É aqui em Goiânia, no ano de 2009, que celebro quatro datas magistrais em minha vida peregrina: 70 anos de vida consumida modestamente no serviço de Jesus Cristo, desde 1939; 50 anos de profissão de fé, em 1959; 150 anos de minha querida denominação, desde 1859, em cujo seio tenho servido ao Senhor da Igreja; 500 anos da vida daquele célebre vulto que encheu a história com seu singular exemplo de como vale a pena viver integralmente para a honra e glória do Senhor Jesus Cristo, João Calvino, nascido em 1509, e cujas obras o Senhor me incumbiu de verter para nosso idioma. Creio ser o único a poder associar essas datas tão preciosas. E faço este registro para perpetuar fatos históricos que só poderiam ser lembrados e associados por mim. É assim que me vejo no universo do Criador, como um indivíduo específico que veio à existência com um propósito também específico de servir ao Eterno em algo mui específico.
9. O ápice de minhas traduções Informo ainda que, com profunda e incontrolável emoção, foi aqui em Goiânia que concluí toda a coleção de Comentários Bíblicos do Reformador genebrino, 22 volumes, contendo cada um cerca de mil páginas, numa somatória de cerca de 22 mil páginas só esta coletânea, sem falar de tantos outros milhares de páginas de algumas dezenas de outros livros. Guardarei no coração, perenemente, aquele dia tão significativo em que terminei a última página: 12 de dezembro de 2016. Caí sobre os joelhos e rendi graças ao Eterno por sua infinita graça — para comigo, em usar-me; para com a igreja, em dar-lhe tão rico tesouro. Ninguém, além dele, teria condição de acompanhar-me passo a passo nessa gigantesca trajetória. É uma história de anos a fio, nos recônditos isolados de minha humilde “oficina”, entre esperança e desesperança; entre estímulo e desestímulo; entre a palavra de algum amigo e o silêncio de quase todos; entre a alegria interior e o
assombro; entre o amor e a indignação; entre o sorriso e as lágrimas; entre a força e a fraqueza; entre a coragem e o medo — a tudo superando pela graça! Meu pesar é que não poderei ver concretizado, na forma de livro físico, todo esse gigantesco trabalho, mas espero ver tudo o que tenho feito na internet. As editoras não conseguirão editar tudo em tempo hábil, para que eu possa manusear com emoção o fruto de meu labor. Como gostaria de fazer isso! Mas creio que o Senhor não satisfará minha ambição. Se Moisés não entrou em Canaã por punição divina, que esperança tenho eu que o Senhor me satisfaça mais que a Moisés? Todos sabem quem foi o grande Moisés. Quanto a mim, quem sou eu?! Horizontalmente, sou um anônimo entre a multidão. Sou um exilado como que em terra estranha.
10. Música e labuta Todas as traduções que fiz até então foram acompanhadas pelas músicas belas e suaves que ouço baixinho durante o trabalho. Ao longo dos anos, acumulei um grande acervo de CDs e vinis, cujo conteúdo me projeta como que no espaço vazio e infinito de um mundo ignoto enquanto assimilo o conteúdo das grandes obras que vou aos poucos vertendo para o vernáculo ou elaborando meus próprios escritos. Essas belas músicas amenizam a aspereza do trabalho propriamente dito e das lutas atinentes ao viver diário com sua complexidade e fazem parte de minha história. A beleza das músicas associada à profundidade do pensamento dos autores se combina muito bem para tornar-me um homem imensamente abençoado no que faço, a despeito de mim mesmo e de Deus ter que me abençoar com o freio de mão puxado.
11. Assistência divina nas fraquezas O Senhor sempre me assistiu mesmo quando o pecado se assenhoreia de meu ser. Sempre senti sua compaixão e perdão durante o tempo de mais fraqueza. Sempre senti que ele me impelia para frente, mesmo quando o desânimo me jungia com tentáculos poderosos. Sempre encontrei amigos (bem poucos, porém bons amigos) que tiveram uma palavra de ânimo e apreço. A Palavra de Deus, analisada e explanada em minhas traduções, sempre foi meu profundo lenitivo. Muitas vezes me detenho, profundamente
emocionado, em alguma palavra direta da Santa Bíblia ou escrita por algum autor em sua exposição bíblica, para reflexão e comunhão com o Espírito que nos doou este Livro único da revelação divina escrita, para bradar ao céu: Aleluia! Posso dizer com Paulo: “O Senhor sempre esteve comigo”.
12. Colaboração com igrejas Nesse ínterim, dei minha pequena colaboração com estudos bíblicos na Igreja Presbiteriana Peniel, a convite de meu querido colega Rev. Cláudio César de Melo; na Igreja Presbiteriana do Setor Bueno, cujo pastor, Rev. Rosalvo Maciel, concedeu-me uma grande oportunidade de ali gastar precioso tempo com uma classe grande e atenta. Na primeira demorei pouco em razão de minhas idiossincrasias; mas, na segunda, permaneci quase quatro anos ministrando cursos bíblicos a uma classe de adultos, terminando com o livro do Apocalipse. Poucas vezes fui convidado a subir aos púlpitos das igrejas. Esse detalhe me faz sentir que de fato pertenço ao rol dos piores pregadores que a igreja tem ou das pessoas de relacionamento extremamente difícil. Durante estes últimos anos, o Senhor me deu um rico depósito de conhecimento bíblico e teológico, e gostaria de gastá-lo no ensino ministrado a alguma igreja; mas, baldado, tenho tido pouca chance de fazer isso. À medida que a idade avança, vai ficando cada vez pior. Mas quero que todos saibam que não condeno a ninguém. Sinto-me ilibado de qualquer rancor contra alguém. Ao longo dos anos, o Senhor me ensinou que estou a serviço dele; e que ninguém é culpado pelos revezes que ele permite que me sobrevenham. Não sinto nenhum rancor contra o Supremo Concílio que nunca expressou sequer uma vírgula em apreço ao que faço para o bem da própria igreja. Simplesmente sinto que minha querida igreja que veio a ser minha mãe se afasta de mim cada vez mais.
13. Colaboração com o Seminário Uma entidade que me tem recebido de braços abertos, até mesmo solicitando meus modestos serviços e sermões, é nosso Seminário Presbiteriano Brasil Central, em Goiânia. Seu diretor, Rev. Dr. Saulo Pereira de Carvalho, e seu deão, Rev. Aurino Cezar Lima Filho, decidiram ser meus amigos incondicionais e me abriram as portas da instituição. Pela informação
do deão, os alunos gostam de ouvir as experiências e exposições deste velho pastor. Abro com eles a Palavra, não como teólogo e nem como exegeta habilidoso, mas como um pastor mais experiente. Conto hoje com a amizade de boa parte de seu corpo docente. Alguns são arredios, porém já estou calejado por esse comportamento acerca de minha pessoa. E os alunos e formandos vão para seus campos levando os volumes de João Calvino para fazerem parte de seu ministério. Esses novos e jovens pastores fazem parte desta imensa história. Espero que amanhã eles conheçam também a história dessa gigantesca epopeia: um homem sem diploma acadêmico, e que foi “doutorado” na universidade da vida literária prática, principalmente em fazer falar em nosso idioma um dos homens mais eruditos da história da Igreja de nosso Senhor em sua peregrinação terrena. Um leigo entre os doutores, sem se misturar com eles, porém sem se desvencilhar deles, porquanto se associou a eles quando escrevem seus livros citando as obras traduzidas por um humilde autodidata cuja ambição é simplesmente doar o melhor que existe para o engrandecimento do reino de nosso Senhor.
14. Empréstimo do nome a uma turma de formandos Mais um registro não pode esconder-se por entre as sombras: a turma de formandos do Seminário Presbiteriano Brasil Central, de 2014, solicitou licença para fazer uso de meu nome: Turma Valter Graciano Martins. Ao querer saber o porquê de tal solicitação, a resposta foi que tenho somado à educação teológica um serviço de muita relevância. São estas as gratificações de uma vida em constante exercício no reino de nosso Senhor Jesus Cristo. De vez em quando as surpresas batem à porta. Não tenho recebido muita honra, e sei que não vou receber nada pelo que faço; mas, as que recebo, deposito diante do Trono da Graça.
15. Perene desconhecido e evitado É muito difícil assimilar a grandeza das igrejas reformadas de outrora e ver as igrejas tidas como reformadas caminhando tão longe daquelas igrejas poderosas. Na verdade, a igreja moderna se acha um tanto desfigurada, em razão de os cristãos crerem que as coisas antigas devem ceder lugar às coisas modernas. E assim eu contemplo o empobrecimento das igrejas outrora
fortes e bem modeladas pela fé reformada. Enquanto pensarmos e crermos que as coisas antigas são ultrapassadas e já perderam a validade, a duras penas descobriremos, talvez tardiamente, que a modernidade está consumindo a própria sociedade humana, muito mais a Igreja de nosso Senhor. Nosso sacro dever é louvar o “Deus dos Antigos”. Se nossa fé não for a mesma daqueles descritos na Epístola aos Hebreus 11, então descobriremos tarde demais que a fé moderna não pode conduzir-nos ao céu, eterna morada dos santos.
16. A igreja modernizada Reiterando, sinto um profundo mal-estar vendo os cristãos renegar as coisas antigas da igreja de nosso Senhor como sendo já ultrapassadas. “A igreja tem que se modernizar”; ou, “isso é coisa muito antiga” — é o que ouço com muita frequência. E, ao tentar “modernizar” a igreja de nosso Senhor, com isso ela perde seu eterno conteúdo revelado pelo Espírito Santo. Foi com essa mesma tendência que a igreja judaica apostatou do Deus imutável, aderindo às novidades das religiões pagãs de Canaã. Os profetas eram enviados com o intuito de reconduzir o povo à eterna e imutável verdade de Deus. A igreja pode e deve valer-se da nova metodologia, fazer uso da nova tecnologia em sua aplicação didática de ensinar essa eterna e imutável verdade de Deus. Mas ela não tem a liberdade nem o direito de modificar o conteúdo da Santa Escritura para agradar a intelectualidade da sociedade moderna. Sinto haver bem pouco temor de Deus hoje no seio das igrejas e no rol dos ministros da Palavra. Onde o temor de Deus diminui ou desaparece, também desaparecem os escrúpulos, e assim deixamos de levar em conta os ensinos éticos da Santa Escritura. Que o Senhor se apiede de todos nós, componentes da Igreja, seu próprio corpo.
17. Fascinação profana Outro grande mal nos cristãos modernos é sua fascinação por grandes pregadores ou grandes cantores. “Vamos ouvir a pregação do Rev. Fulano de Tal; ele fala com eloquência e com linguagem perfeita e transmite a cultura moderna. Vale a pena ouvir um pregador assim. Vamos levar conosco pessoas cultas para que ouçam também uma verdadeira pregação que
comunica cultura.” Quantas vezes esses cristãos se veem impactados por esses grandes oradores, enquanto os mesmos revelam que não foram chamados por Deus. Aliás, os falsos profetas não teriam sucesso se não fossem eloquentes e atraentes. A falsa doutrina se dissimula bem em belos invólucros. Quem iria ver e ouvir um pregador como o profeta Amós? Ele diz de si mesmo: “Não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boieiro e colhedor de sicômoros” (Am 7.14). Isto é, vaqueiro e lavrador. Alguém sairia de casa para ouvir um pregador boiadeiro e colhedor de frutas? Não surpreende que as igrejas estejam carentes da genuína pregação do evangelho e explanação da palavra de Deus para a edificação na plena verdade. A ciência retórica é bela e, quando usada legitimamente, faz bem à mente e à alma. A retórica associada à unção do Espírito é gloriosa. Mas a retórica em si mesma só edifica a mente, deixando a alma empobrecida e sedenta da verdade de Deus. Particularmente, eu gostaria que todos os pregadores fossem eloquentes e convincentes, pois a história da igreja nos fala deles. E, graças ao Senhor da Igreja, temos hoje grandes pregadores que são verdadeiros servos de Jesus Cristo, cuja eloquência tem arrebatado a atenção de multidões. Pessoalmente, gosto de ouvir uma oratória de primeira grandeza. Mas sempre me pergunto: os ouvintes estão sendo edificados? No tocante aos grandes cantores sacros, isso é também belo e salutar quando associado a uma vida realmente cristã. Amo e aprecio muito a música na igreja. No entanto, muitos desses cantores nem mesmo têm compromisso com a verdade divina. São profissionais. Possuem voz encantadora e tiram disso proveito pessoal. Sair de uma igreja onde se ensina genuinamente o conteúdo da Sagrada Escritura para ouvir um “show evangélico” é uma temeridade, para não dizer uma porta aberta à apostasia. Tenho grande dúvida dos ajuntamentos para “shows de louvores a Deus”. Não tenho como duvidar de todos eles, pois não sou juiz infalível. Falo em termos gerais. A pergunta que faço, com base no conteúdo da Santa Escritura, é se Deus realmente está sendo louvado nesses conclaves, ou se os que se reúnem ali buscam meramente satisfazer sua natureza carnal e atrair multidões para si. Os que têm o dom da música precisam meditar constantemente em Apocalipse 4 e 5 a fim de aprenderem da liturgia celestial, pois nossos louvores terrenos têm de se harmonizar, de antemão, aos louvores angelicais e do povo redimido. A música é sumamente importante na igreja, mas tem de ser música sacra, e não profana.
Eu mesmo usei da música sacra quando pastor em Minas e Goiás. Já fui apelidado de “pastor musicista”, pois entremeava minhas pregações cantando duetos com Cremilda, minha incansável companheira; e fizemos isso no tempo em que não havia ainda a parafernália eletrônica nas igrejas do interior; era só na garganta. Mas sempre tivemos o cuidado de entoar músicas que faziam diferença entre o sacro e o profano. Misturar música de louvor a Deus com música de louvor ao mundo, crendo que assim convocamos mais facilmente os incrédulos a crerem no evangelho, é uma tremenda temeridade. Minha conclusão é que fazer isso equivale a cometer um grande equívoco e comprometer o reino de Cristo com o reino deste mundo. Quem ler isto certamente me odiará; no entanto, sempre digo que o pregador do evangelho faz isso na qualidade de profeta de Deus. É preciso ter sempre em mente que o temor de Deus tem desaparecido quase totalmente. Vemos uma Bíblia adulterada pelos “russelitas”; uma Bíblia adulterada pelos homossexuais — “Graça sobre Graça”; e Bíblias parafraseadas que distorcem o sentido genuíno das línguas originais. Estes eliminam textos e alteram termos para combinar sua pseudo-fé cristã com sua prática contrária ao conteúdo da Bíblia verdadeira. Vemos a galopante teologia da prosperidade enganando os incautos e danificando a Seara do Senhor. Quando o temor de Deus está ausente das vidas individuais, e da sociedade como um todo, cremos que o dia do último Juízo já não está longe, quando o Supremo Juiz dividirá para sempre os que são realmente dele daqueles que nunca foram dele. “Apartai-vos de mim os que praticais a iniquidade”; “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Isto é sério demais para não se levar em conta. Não resolve absolutamente nada alguém tentar forçar Deus a aceitar o que ele abomina; negar aquilo que ele mesmo manda que obedeçamos e acatemos. Nossa negação, ou nossa imposição, de nada valem. O que vai prevalecer no fim é o que ele nos mandou fazer e fizemos ou deixamos de fazer. Sua verdade jamais poderá ser adulterada. Seus verdadeiros filhos e filhas são aqueles que fazem a sua vontade, ainda que imperfeitamente. Reiteremos: nossa negação não invalida a verdade de Deus revelada na Santa Escritura. Tentar fazer isso é intensificar nossa culpa diante dele como o Supremo Juiz. Ele quer que o sigamos, mesmo que imperfeitamente. Ora, termino indagando: quem terá prazer em ouvir a pregação de um homem como eu? Quem suportará ler as páginas deste livro? Como é
possível que a juventude crente tenha prazer em conhecer e ouvir um homem que não sabe falar-lhes uma palavra mais açucarada, uma palavra que deleite seus conceitos modernos de igreja? Mas os quebrantados iam a João Batista para serem batizados, depois de ouvirem sua palavra fulminante. Ao mesmo tempo, grande parte da igreja fugia dele. E nosso Senhor ficou sozinho depois de pregar um sermão que bombardeou os discípulos, ficando ele sozinho com os doze, dizendo-lhes: Porventura vocês querem ir embora também? Pedro, representando os onze, respondeu: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus” (Jo 6.68, 69). Eu também me dirijo a essa classe de pessoas — os que querem ouvir a Palavra do Senhor.
PÓS-ESCRITO
1. Jubileu ministerial Eu afirmei que em 2009 se deu minha jubilação compulsória, porém não a cerimonial. Esta ocorreu este ano de 2010, promovida pelo Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana na pessoa de sua Comissão Executiva. Seu presidente, Rev. Dr. Roberto Brasileiro, me fez o convite para ser o orador da ocasião, em culto solene, na capela do Mackenzie do Tamboré, na noite do dia 24 de março de 2010, com mais duas dezenas de colegas também se jubilando. Para mim, particularmente, foi um momento de profunda inspiração e comoção. Creio que nunca havia pregado como fiz naquela noite. O tema versou sobre o Reverendo Moisés deixando a Igreja no sopé do monte Nebo, delegando poderes ao Presbítero Josué para que fosse seu substituto na condução da igreja rumo a Canaã. Estritamente falando, o tema foi UM ENCONTRO NO MONTE. Houve um grande reboliço naquele plenário em decorrência de meu discurso. Com isso muitos vieram ao meu encontro para fotos e declaração do desejo de me conhecerem. Recebi meu “diploma” de jubilação, com uma medalha de “honra” para Cremilda, minha esposa, e minha carteira de ministro com a última rubrica do Supremo: Está encerrada. Ninguém mais pode anotar algo nela. Meu impulso é tecer alguns comentários sobre esse “diploma” e essa “medalha”; mas prefiro poupar o leitor das lamúrias que já enchem este livro.
2. Contribuição histórica Minha jubilação, pois, se dá num período de grande celebração nacional, num ano em que João Calvino se torna uma célebre figura não só no seio de todo o povo realmente evangélico, mas também no próprio país que abre as portas a recebê-lo, mesmo sem ter consciência de tal fato. De suas Institutas, temos hoje três lindas versões: duas da Editora Cultura Cristã e uma da Unesp, cujo texto estou lendo, e cujo primeiro volume já se esgotou. De fato, este é o ano de João Calvino no Brasil, e me emociona poder, humildemente, fazer parte dessa gloriosa história, mesmo quando quase ninguém o reconheça. Creio que nas muitas celebrações pelo Brasil a fora, meu nome nem sequer foi cogitado como o maior contribuinte para a fé
reformada em nossa pátria. Sinceramente, desejo que um dia, antes de minha partida para a companhia de Jesus Cristo, o povo realmente evangélico perceba que Valter Graciano Martins lhe fez uma das mais esplêndidas contribuições: João Calvino na língua do povo brasileiro. Esse arroubo aparenta auto-glorificação. No dizer de alguém: “Já que ninguém fala de mim, então eu mesmo falarei de mim”. No entanto, eu vejo diferente: estou registrando meu próprio testemunho de que, por meu intermédio, Deus está abençoando a Igreja, pois esta é a plena verdade dos fatos.
3. Celebração do jubileu Meu presbitério, juntamente com o Sínodo Brasil Central, combinaram em celebrar minha jubilação na Igreja Presbiteriana de Campinas, Goiânia, a convite desta. É muito difícil descrever a beleza e conjunção daquele evento. O templo lotado, corais participando da celebração com hinos bem escolhidos, sabendo que eram os de minha predileção. O pregador, Rev. Dr. Saulo Pereira de Carvalho, enunciou uma mensagem candente e oportuna. No final, a igreja ofereceu um verdadeiro banquete a todos os presentes. Sou perenemente grato por essas manifestações que, para mim, são mui raras em minha vida peregrina. Este registro parece contradizer minha confissão anterior, de que o Presbitério Sudoeste de Goiânia recebeu-me com reserva e indiferença. Não sei bem o que aconteceu nos bastidores, mas o fato incontestável é que ele se manifestou diferentemente quando de minha jubilação. Mas vale dizer que talvez a maioria dos pastores não esteve presente naquela celebração.
4. Declaração de fé Sou adepto confesso da fé reformada ou calvinista, e creio ser esta a única interpretação abrangente e fiel da Santa Escritura e a resposta equitativa que faz plena justiça à Santa Bíblia, não só outrora, mas agora e para sempre. Por isso digo que todos quantos amam a sã doutrina, de todas as denominações cristãs sérias, que levam a sério todo o conteúdo do Santo Livro, são meus irmãos e irmãs. Meu coração está ligado à Igreja real, invisível, composta de todos os eleitos de Deus em Cristo. Deixo este legado, isto é, todas as grandes obras que tenho traduzido, quer de Calvino, quer de
outros autores calvinistas, a este santo povo ainda espalhado por todo o orbe, o qual um dia será arrebanhado pelo Supremo Pastor para que esteja com ele para todo o sempre. A mim, particularmente, cabe o dever, como trabalhador braçal, de, na surdina, terminada a obra e minha trajetória, receber a palavra final e pessoal unicamente do Supremo Juiz: “Bem está servo bom e fiel”. Se é bom e fiel, porém continua sendo servo, enquanto ele continua sendo o Senhor de todos. Aprendi com o grande Reformador João Calvino que tudo o que ele empreendeu em sua vida fugaz visava à edificação da Igreja de nosso Senhor. Na verdade, meu amor e serviço são direcionados àquela Igreja plena e celestial que no dia eterno entoará, sem cessar, aleluia àquele que a comprou com seu próprio sangue, e a ele pertence a glória para todo o sempre. Ali já não haverá divisas eclesiásticas, nem inimizades, nem discórdias, nem desacordos, nem espírito de retaliação, nem amargura. Todos nós estaremos irmanados ao redor do único Senhor — o Senhor da glória. É nisso que vale a pena pensar. É nisso que sempre pensei e quero pensar. É por isso que vale a pena lutar. Não me glorio na carne por tudo o que o Senhor da Igreja tem feito por meu intermédio, pois sempre trago na lembrança aquela humilde ferraria, aquela bigorna e aquele martelo para os quais virei as costas, porém nunca se apagaram de minha memória. Alegorizando, desde então, tenho empunhado outro martelo ao lado de outra bigorna, em outra oficina: o martelo é a Palavra, a bigorna é o púlpito e a oficina é a Igreja da qual ecoa a proclamação da Palavra que esmiúça a penha (Jr 23.28). Amém.
5. Gratidão Hoje estou jubilado com o seguinte saldo: Dizem que por detrás de um grande homem há uma grande mulher. Meu único reparo a esse dito é que adiante de mim, pequeno servidor de Jesus Cristo, de fato vai uma grande mulher sempre abrindo picada. Mesmo assim, o adágio procede, visto que sempre tive o respaldo desta grande mulher: esposa e mãe extremada, muito mais crente que eu, competente auxiliadora em todo o trabalho da igreja. Cremilda, de fato, tem sido uma verdadeira heroína ao meu lado. Depois de casada, estudou e alcançou uma vasta gama de conhecimento e experiência, como profissional cristã, sempre competente e zelosa. Deixou seu nome em
escolas de Goiás e no grande Instituto Mackenzie de São Paulo. Hoje, além de cuidar de um marido velho e ranzinza, cuidou do pai e da mãe até a morte, também se preocupa dia e noite com os filhos espalhados por aí. Chegou a ser presidente da Sinodal Feminina do Sínodo Brasil Central, além de trabalhar muito na igreja na qual é membro, na qualidade de mestra competente da santa Bíblia. Sovada e calejada, comigo, nas lidas da Igreja, de vez em quando recebe por salário injúrias e tratos violentos da parte não do mundo, e sim de pessoas do seio da própria igreja. Mas aprendemos de Jesus, dos apóstolos e da história da igreja que às vezes as perseguições nem sempre vêm das pessoas às quais qualificamos de descrentes, e sim de membros da igreja aos quais denominamos de crentes e à qual amamos e servimos. No dizer de Jesus: “Os inimigos do homem são os de sua própria casa”. Através dela, pela divina Providência, o Senhor me deu filhos e netos mui queridos: Sóstenes (promotor de eventos), o primogênito, amplamente conhecido pela alcunha “Tote”, Valéria, Calebe e Nilo; Wânia (professora), Ronaldo, Henrique e Guilherme; Simonton (administrador de empresa), Regiane, Lucas e Ana Clara; Eline (bibliotecária) e Maria Luiza; Wander, Claudia, Jéssica, Amanda, Énzio (neto dele e bisneto nosso) e Manoela. Consideramos os cônjuges de nossos filhos como igualmente nossos filhos; nossos netos são joias preciosas da divina clemência. A despeito de todos os percalços, podemos afirmar com verdade que somos hoje uma grande família. Esperamos no Senhor que ele vá eliminando as imperfeições individuais e familiais, aumentando e sazonando as virtudes. Sou impelido a mencionar, com profunda alegria, o que meu filho primogênito, Sóstenes (Tote para os íntimos), tem feito na esfera de eventos cristãos, ao lado de sua esposa, Valéria, e seus dois filhos, Calebe e Nilo; os quais se esforçam conjuntamente no exercício de um ministério gigantesco, não só em Goiânia e Goiás, mas também em muitas partes do Brasil, com aulas e práticas recreativas salutares para a infância e juventude. Eles são conhecidos por toda parte como cristãos confessos, e o que ensinam está perenemente associado ao ensino da Palavra de Deus. O foco deles é a expansão do reino de Jesus Cristo e a salvação e instrução das pessoas de seu relacionamento por meio desse abençoado ministério. Por seu intermédio, milhares de pessoas têm encontrado o caminho do viver cristão na sociedade onde se acham inseridos. Creio que os outros filhos não ficarão ofendidos
comigo por esta deferência especial, visto que, conosco, reconhecem também a grandeza do ministério de seu irmão mais velho. Olho para trás e percebo nitidamente o quanto a Providência é grandiosa, graciosa e misteriosa. Considero-me vinculado àquele grandioso pensamento do apóstolo: “visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na resença de Deus” (1Co 1.26-29). E que este humilde ministério seja suficiente para deixar-lhe um rastro de glória nos rincões de nossa amada pátria Brasil, bem como em todos os países de língua portuguesa, apesar de ter sido exercido por intermédio de um vaso de barro, mas cujo conteúdo é do mais excelente valor. Devo tudo isso àquela Providência que tem em seu poder o leme de nosso barco.
6. Tributo Há um último ato que tenho de deixar registrado indelevelmente ao encerrar este livro. No final de 2016 fui surpreendido por um telefonema vindo de Palmas, capital do Tocantins, da parte do Presbítero Gilberto, que é também o presidente do Presbitério do Tocantins. Este querido irmão e colega falou comigo em termos incisivos acerca de algo que jazia esquecido em um canto de meu cérebro; a saber, há trinta anos fiz parte de uma comissão do Presbitério de Ceres para o desdobramento deste Presbitério e a organização de um novo, cujo título ficou sendo Presbitério do Tocantins. Isso se deu em janeiro de 1987, e a composição da comissão ficou assim: os Revs. José Umbelino dos Anjos (de saudosa memória), Celso Soares de Oliveira, Serafim da Rocha Barbosa, Osmar Dias da Silva e eu. A surpresa é ustificável porque durante todo o curso de minha vida não recebi manifestações de apreço, com raras exceções. Aquele Presbitério organizou uma festa comemorativa de alto nível, com o fim de homenagear-nos por aquele evento. Estava presente ainda o Presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, Rev. Dr. Roberto Brasileiro. Ele foi o orador da abertura do evento. Meu coração ainda
se expande pela rica manifestação de carinho das pessoas daquele grande Presbitério. Todos os seus membros me fizeram saber e sentir que vale a pena viver para Cristo e sua Igreja. Registro ainda que as igrejas daquela região são robustas e comprometidas com a fé reformada. São calorosas e dinâmicas. Durante aquele breve momento ali, senti algo que carecia sentir há muito tempo: o amor fraternal que aquece a Igreja de nosso Senhor. Que a divina Providência seja reconhecida por todos e em todos os lugares do orbe.
Atualização Quero incluir no final deste livro um histórico recente que se concretiza de um modo curioso e, ao mesmo tempo, grandioso. Minha vida com a Editora Fiel foi marcada com a expectativa do fundador da Editora, Dr. Richard Denhan, de trabalharmos juntos, eu e a Editora Fiel, na publicação das obras de João Calvino. Ele almejava essa colaboração conjunta. Certo dia, isso se concretizou. De modo semelhante, o editor da Editora Clire, Waldemir Magalhães, também aspirava pela oportunidade de trabalharmos untos nas publicações do Reformador. Depois de certo tempo, ele pressionou e deu certo. Recentemente, descobri que o editor da Editora Monergismo, Presb. Felipe Sabino, há cinco anos esperava que fizéssemos a mesma parceria. De repente, encarando-nos pelo Facebook, marcamos um encontro em nossa casa e de novo deu certo. No mês de julho do ano em curso, recebi a visita do Presb. Felipe Sabino, ladeado pela esposa Aguimar. Aquele foi um momento de grande expectativa e esperança de minha parte. Havia separado de meu acervo de obras traduzidas algumas pepitas valiosíssimas que nunca havia oferecido a nenhuma editora, inclusive o livro de minha autoria: João Calvino no Brasil. O Presb. Felipe Sabino descobriu obras que eu nunca ouvira que existissem: Sermões em Tito; Cânticos da Natividade; Sermões em Atos do capítulo 1 ao 7; e o que mais estremeceu foi a novidade de encontrar os Sermões em Jó numa linguagem atualizada. Senti-me profundamente aturdido com aquela preciosa visita que, tudo indica, vai produzir frutos perenes. Após a partida do casal, meu coração fremia de emoção ante a providência do Eterno. Ele tem sido liberal para comigo, pois de duas
editoras agora somam três, todas elas com o mesmo propósito comigo de publicar todas as obras de João Calvino: Editora Clire, Editora Fiel e Editora Monergismo. Este será um ano de boa safra: já circulam pelas mãos dos leitores as Institutas, 1ª edição de 1536, obra editada pela Editora Fiel; fui informado que a Harmonia dos Evangelhos e Tessalonicenses, também pela Fiel, já estão seguindo para a gráfica; o 1º volume de Gênesis e o 1º volume de As obras de João Calvino – A necessidade reformar a igreja e Psicopaniquia, pela Editora Clire; o segundo volume desta obra e o 2º volume de Gênesis ― devem sair ainda este ano; a Editora Monergismo já está concluindo o Sumário de doutrina cristã, de Berkhof, e os Sermões sobre eleição e reprovação de João Calvino. Ele me informou que este meu segundo livro ― João Calvino no Brasil ― está em andamento. De repente, tudo isso me deixa meu espírito profundamente dinamizado. Resultado, quando cheguei a crer que não havia nada mais para traduzir, hoje me vejo assoberbado com umas cinco mil páginas para verter em nosso idioma. No entanto, trabalho com grande expectativa de gastar o resto de minha modesta vida no serviço do Senhor. Eterno Pai, minha perene gratidão! E assim me disponho a render perenes graças ao Eterno por sua bondade para comigo. Tenho rogado que ele “estique” um pouco minha velhice para poder ver com meus próprios olhos tudo de Calvino editado antes de ser recolhido, pela infinita graça, ao descanso provisório do Senhor; pois o definitivo só virá com a ressurreição do corpo no Juízo Final. Ao Deus Eterno somente toda a glória, hoje e para todo o sempre!
SOBRE O AUTOR Valter Graciano Martins é Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil desde 1964, tendo sido jubilado em 2009. Renomado tradutor, já verteu para vernáculo dezenas de títulos, incluindo a Teologia Sistemática de Charles Hodge e o Compêndio de Teologia Apologética de François Turretini. Contudo, é mais conhecido em seu trabalho por ter sido o precursor e de fato o grande realizador da tradução das obras do grande reformador João Calvino para o português. [1]
Republicada em 2010 pela Editora Monergismo. [N. do R.] [2] No lugar próprio frisarei mais detidamente este belo e desafiante texto da Santa Escritura. [3] Frank L. Arnold, Uma longa jornada missionária (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2012), p. 153-154. [4] Wilson Castro Ferreira, Pequena história da Missão Oeste do Brasil (Patrocínio, MG: CEIBEL, 1996), p. 53. [5] Idem, p. 51. [6] Viviane Ribeiro, Do ideário protestante à finalidade do trabalho: Os presbiterianos no contexto educacional de Lagamar-MG (1957-1966) . 2002. 56 f. Monografia apresentada para conclusão do curso Pedagogia do Centro Universitário de Patos de Minas. [7] Wilson Castro Ferreira, Pequena história da Missão Oeste do Brasil , 1ª edição, julho de 1996. [8] Branquinho, João, Dias abençoados. [9] Wilson Castro Ferreira, Pequena história da Missão Oeste do Brasil , p. 63. [10] Valter Melo, Um ceresino, 1ª edição (Goiânia, Goiás), p. 13. [11] Ibid., p. 17. [12] Boletim da Igreja de 18/19/2016, entrevista feita pelo pastor da Igreja, Rev. Edson S. Gonçalves, ao Prof. Walter Marques Dourado. [13] Ibid. [14] Frank L. Arnold, Uma longa jornada missionária (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2012), p. 153. [15] Infelizmente, este livro se esgotou e não mais foi editado. [16] Wilson Castro Ferreira, Pequena história da Missão Oeste do Brasil , p. 51. [17] Ibid., p. 74. [18] Arnold, L. Frank, Uma longa jornada missionária (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), p. 189. [19]
Revista editada no período do Centenário do Presbiterianismo no Brasil, à página 153. [20] Este pequeno, porém precioso, histórico foi elaborado pelo Rev. Edson, atual pastor da IP de Ceres, um autêntico ceresino, nascido e criado nesta cidade e nesta grande Igreja. Foi em meu pastorado aqui que ele, juntamente com outro ceresino, Júlio César Dourado, ambos foram enviados ao seminário e
ambos meus tutelados todo o tempo ali. [21] Ibid., p. 63. [22] Minha gratidão à maravilhosa contribuição do Rev. Edson de Souza Gonçalves por grande parte dos dados inclusos neste capítulo. [23] Cândido Jucá Filho, Dicionário escolar das dificuldades da língua portuguesa, verbete “Política”. [24] Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001), verbete “corolário”. [25] Dicionário escolar das dificuldades da língua portuguesa, Cândido Jucá (filho), verbete “fanatismo”. [26] A glória da graça de Deus, editado por Franklin Ferreira (São José dos Campos, SP: Fiel, 2010), p. 42. [27] Idem, p. 44. [28] Idem , p. 13-15. [29] Manoel B. de Souza, Por que somos presbiterianos (São Paulo, SP: Casa Editora Presbiteriana, 1959), p. 45, 46. [30] Ibid. [31] C. H. Irwin, Juan Calvino – su vida y su obra (Viladecavalls, Barcelona: Editorial Clie, 1991), p. 7. [32] João Calvino, A necessidade reformar a igreja… [33] João Calvino, Réplica ao Cardeal Sadoleto.... [34] Thea B. van Halsema, João Calvino era assim (São Paulo, SP: Editora Vida Evangélica, 1968), p.
11. [35] C. H. Irwin, Juan Calvino – su vida y su obra , p. 15. [36] Ibid. [37]
Alister McGrath, A vida de João Calvino (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2004), p. 49. [38] Wilson Castro Ferreira, Calvino: vida, influência e teologia (Campinas, SP: Luz para o Caminho, 1985), p. 39, 40. [39] Thea B. van Halsema, João Calvino era assim , p. 25. [40] Ibid., p. 17. [41] João Calvino, O livro dos Salmos, vol. 1 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009), p. 31. [42] Ibid., p. 33. [43] João Calvino, O livro dos Salmos, vol. 1 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009), p. 31. [44] João Calvino, As institutas da religião cristã, edição clássica, I.II.1. [45] Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 49. [46] Ibid. [47] Ibid.
, p. 49, 50. [48] Início ao Comentário sobre Ezequiel . [49] Isso consta em seu Catecismo de 1538. [50] Institutas, 3.7.1
[51] João Calvino, Comentários sobre o Profeta Jeremias , vol. III, p. 312, 313. [52] João Calvino, Comentário sobre o Profeta Ezequiel , vol. II, p. 61. [53] Ibid., p. 61. [54] Pierre Marcel, Juan Calvino, Profeta Contemporaneo , capítulo “La Humildad del Profeta”
(Viladecavalls, Barcelona: Editorial Clie, 1973), p. 23. [55] Calvino citado em João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010), p. 101. [56] João Calvino, Comentário de Jeremias sobre o capítulo 25. [57] Comentários sobre O livro dos Salmos , vol. 1, p. 33. [58] Ibid. , p. 52. [59] Ibid., p. 55. [60] Ibid., p. 43. [61] Ibid., p. 103. [62] O profeta Jeremias, 3º volume, p. 14. [63] Thea B. van Halsema, João Calvino era assim (São Paulo, SP: Editora Vida Evangélica, 1968), p. 173. [64] Cartas de João Calvino (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2009), p. 21. [65] Timothy George, Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1994), p. 163. [66] Cartas de João Calvino (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2009), p. 20. [67] Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2003), p. 144. [68] João Calvino, Epístola aos Romanos (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2013), p. 568. [69] Harry L. Reeder, “O clérigo da Reforma”, em João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010), p. 83, 84. [70] O livro dos Salmos , vol. 1 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009), p. 31. [71] Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 35. [72] Ibid., p. 39. [73] Abdias Nobre, Manual do pregador (São Paulo, SP: Casa Editora Presbiteriana, 1955), p. 8. [74] Ibid., p. 9. [75] Ibid. , p. 10. [76] Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 11. [77] Ibid. [78] Ibid., p. 12. [79] Ibid. [80] Ibid., p. 17. [81] Ibid., p. 35. [82] Ibid., p. 34.
[83] Ibid., p. 35. [84] Ibid. [85] Ibid., p. 36. [86] Ibid. [87] Ibid. [88] John Calvin, Commentaries on The Prophet Ezekiel . [89]
Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino, p. 28. [90] Edward A. Dowey, Jr., The Knowledge of God in Calvin’s Theology , cap. I (Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1994). [91] Davis A. Young, John Calvin and the Natural World , cap. 7 (United Kingdom: University Press of America, Inc., 2007). [92] John Calvin, Commentaries on The Prophet Ezekiel . [93] John Calvin, Commentaries on Genesis. [94] João Calvino, Romanos (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2014), p. 72, 73. [95] João Calvino, 1 Coríntios (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2013), p. 96. [96] John Calvin, Commentaries The Four Books of Moses. [97] João Calvino, As pastorais, 1Tm 6.16 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009), p. 177. [98] Ibid. [99] Ibid. [100] João Calvino, O Evangelho segundo João , vol. 1 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2015),
p. 57, 58. [101] Ibid. [102] John Calvin, Commentaries of The Book of First Book of Moses Called Genesis . [103] João Calvino, O Evangelho segundo João , vol. 1 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2015),
p. 30. [104] John Calvin, Commentaries of The First Book of Moses Called Genesis . [105] Ibid. [106] John Calvin, Commentaries of The Book of Joshua . [107]
Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 35. [108] Ibid. [109] Ibid., p. 36. [110] Ibid. [111] Ibid., p. 38 [112] Ibid. [113] Ibid., p. 39. [114] Ibid., p. 42. [115]
Davis A. Young, John Calvin and the Natural World (United Kingdom: University Press, of America, 2007).
[116] João Calvino, Oseias, 14.9. [117] João Calvino, O Evangelho segundo João , vol. 1 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2015),
p. 37, 38. [118] João Calvino, 1 Coríntios (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2013), p. 70. [119] Davis A. Young, John Calvin and the Natural World (United Kingdom: University Press, of America, 2007), p. 6-7. [120] Ibid, p. 9. [121] Ibid., citando 1 Coríntios 1.20: “Por sabedoria, Paulo quer dizer, aqui, tudo quanto o homem pode compreender, não só por sua própria habilidade mental e natural, mas também pelo auxílio da experiência, escolaridade e conhecimento das artes. Porquanto, ele contrasta a sabedoria do mundo com a sabedoria do Espírito”. [122] Davis A. Young, John Calvin and the Natural World , p. 12-13. E cita suas próprias palavras em The Four Sermons in Job 38. [123] João Calvino, Romanos 3.11, citado por Davis A. Young na p. 136 em abono de sua tese. [124] Ibid. , p. 14. [125] Ibid. [126] Philip Edgcume Hughes, Juan Calvino, Profeta Contemporaneo, capítulo “La Pluma del Profeta”
(Viladecavalls, Barcelona: Editorial Clie, 1973). [127] Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 22. [128] Phillip R. Johnson, “Escritor para o Povo de Deus”, em João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010), p. 117, 118. [129] Ibid., p. 118. [130] Ibid., p. 118, 119. [131] Ibid., p. 119. [132] Ibid., p. 121. [133] Ibid. , p. 126. [134] Timothy George, Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1994), p. 165. [135] Thea B. van Halsema, João Calvino era assim (São Paulo, SP: Editora Vida Evangélica, 1968), p. 38. [136] Ibid., p. 39. [137] Ibid. [138] Ibid., p. 146. [139] Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 180. [140] Ibid., p. 180, 183. [141] Timothy George, Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1994), p. 167. [142]
Thea B. van Halsema, João Calvino era assim (São Paulo, SP: Editora Vida Evangélica, 1968), p.
198. [143] Ibid., p. 201. [144] Ibid.
[145] Ibid., p. 202. [146] Ibid., p. 203. [147] Ibid., p. 203, 204. [148] Ibid., p. 205. [149] Ibid. [150] Ibid., p. 205, 206. [151]
Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 18. [152] Alister McGrath, A vida de João Calvino (São Paulo: Cultura Cristã, 2004), p. 99. [153] Ibid., p. 107. [154] Ibid., p. 99. [155] João Calvino, As institutas da religião cristã, edição clássica, I.I.2. [156] Timothy George, Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1994), p. 167. [157] Ibid., p. 167. [158] João Calvino, As institutas da religião cristã, edição clássica, I.I.3. [159] Calvino citado em João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010), p. 33. [160] João Calvino, As institutas da religião cristã, edição clássica, I.2.1. [161] Burk Parsons, “A humildade do calvinismo de Calvino”, em João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010), p. 40. [162] Burk Parsons, “A humildade do calvinismo de Calvino”, em João Calvino: Amor à devoção, doutrina e glória de Deus (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010), p. 30. [163] Steven Lawson, A arte expositiva de João Calvino (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2008), p. 36. [164] Ibid., p. 36. [165] Ibid., p. 37. [166] Ibid., p. 37, 38. [167] Ibid., p. 38, 39. [168] A. D. R. Polman, Juan Calvino, Profeta Contemporaneo (Viladecavalls, Barcelona: Editorial Clie, 1973), p. 99. [169] João Calvino, Pastorais (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009), p. 262, 263. [170] João Calvino, Epístolas gerais (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2015), p. 315. [171] João Calvino, As institutas da religião cristã, edição clássica, I.I.1. [172] John Piper e David Mathis, Com Calvino no teatro de Deus (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2011), p. 46. [173] Hermisten Costa, Calvino de A a Z (São Paulo, SP: Editora Vida, 2006), p. 161. [174] João Calvino, O livro dos Salmos (Sl 15). [175] João Calvino, 1 Coríntios (3.3). [176] J. Vanden Berg, Juan Calvino, Profeta Contemporaneo , capítulo “Calvino y las Missiones”