Mircea Eliade Imagens e Símbolos Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso
Tradução SONIA CRISTINA TAMER Prefácio GEORGES DUMÉZIL
Martins Fontes São Paulo 2002
Título original: IMAGES ET SYMBOLES . Copyright © by Édirions Gallimard, 1952. Copyright © 1991, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.
I. edição de,embro de 1991
3. tiragem outubro de 2002
Tradução SONIA CRIST1NA7AMER
Revisão da tradução Aldo Monteiro
Preparação do original Savana Cobucci Leite
Revisão gráfica Marcelo Rondinelli Flora Maria de Campos Fernandes
Produção gráfica Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Dadas Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Eliade, Mircca, 1907-1986 Imagens e símbolos : ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso / Mircea Eliade ; prefácio Georges Dumézil ; [tradução Sonia Cristina Tameri. — São Paulo Martins Fontes, 1991. ISBN 85-336-0030-5 I. Simbolismo I. Título. II. Título: Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. CDD-306.4 -291.13
91.2936
Índices para catálogo sistemático: 1. Simbolismo Cultura : Sociologia 306.4 2. Simbolismo e mito religioso 291.13
Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ramalho. 3301340 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867 e-mail: inlógmartinsfontes.com.br http:Ilwww.martinsfontexcombr
SUMÁRIO PREFÁCIO DE GEORGES DUMÉZIL PREFÁCIO Redescoberta do simbolismo Simbolismo e psicanálise Perenidade das imagens O plano do livro Capítulo I — SIMBOLISMO DO "CENTRO" Psicologia e história das religiões História e arquétipos A Imagem do mundo Simbolismo do "Centro" Simbolismo da ascensão Construção de um "Centro" Capítulo II — SIMBOLISMOS INDIANOS DO TEMPO E DA ETERNIDADE Função dos mitos
Mitos indianos do Tempo A doutrina dos "yugas" Tempo cósmico e História
1 5 5 8 12 17 23 23 29 34 37 43 48
53 53 56 59 64
O "terror do Tempo" Simbolismo indiano da abolição do Tempo O "Ovo partido" A filosofia do Tempo no budismo Imagens e paradoxos Técnicas da "saída do Tempo"
68 70 74 75 79 82
Capítulo III — O "DEUS AMARRADOR" E O SIMBOLISMO DOS NÓS O Soberano Terrível O simbolismo de Varuna "Deuses amarradores" na Índia antiga Trácios, germanos, caucasianos Irã Paralelos etnográficos A magia dos nós Magia e religião Simbolismo das "situações-limite" Simbolismo e História
89 89 92 97 100 103 105 108 110 114 117
Capítulo IV — OBSERVAÇÕES SOBRE O SIMBOLISMO DAS CONCHAS A Lua e as Águas Simbolismo da fecundidade Funções rituais das conchas O papel das conchas nas crenças fúnebres A pérola na magia e na medicina O mito da pérola
123 123 126 131 133 143 146
Capítulo V — SIMBOLISMO E HISTÓRIA Batismo, dilúvio e simbolismos aquáticos Imagens arquetípicas e simbolismo cristão Símbolos e culturas Observações sobre o método
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PREFÁCIO Para compor este volume, Mircea Eliade teve apenas de escolher entre suas inúmeras meditações publicadas ou inéditas: o simbolismo está presente em todo o pensamento religioso, em todos os lugares do pensamento. No começo do século, na época em que os mestres dos estudos comparativos acreditavam ser mais sábio reparar as velas do que se lançar a novas aventuras, a própria noção de símbolo era mal vista. Os antigos cretenses colocavam sobre os seus muros um escudo bilobado, uma bipene, que pareciam flutuar no ar? Os romanos conservavam uma lança que vibrava sozinha na Casa do Rei? Eram apenas um escudo, um machado, uma lança sem nada de invisível por trás: hoplolatria. Os espartanos chamavam dióscuros duas vigas paralelas? O "verdadeiro" culto dirigia-se então "primitivamente" apenas a vigas, exploradas, desfiguradas "mais tarde" por uma concepção antropomórfica do "sagrado". Já não estamos mais nesse ponto e, se existe exagero, seria mais no outro sentido: estaríamos mais inclinados a reduzir o orçamento racional das religiões em beneficio da despesa simbólica. Eliade situa-se no exato meio-termo, graças a uma filologia rigorosa. Seus ensaios não são de teoria, mas de observações. Duas das monografias recolhidas aqui tratam das representações fundamentais, nas quais nenhuma ideologia é dispensada: o centro, com sua diversidade na terceira dimensão, o zênite, graças ao qual se ordenam e hierarquizam todas as divisões, todos os valores que interessam a uma sociedade; o laço que, antes de mais nada, exprime sensivelmente
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o fato de que toda vida fisiológica, coletiva, intelectual é um entrelaçamento de relações. No entanto, em poucas páginas, e servindo-se de um grande número de exemplos enraizados nos seus contextos, Eliade ilustra a riqueza das variações elaboradas sobre esses dois temas e torna perceptível sua unidade. O ensaio sobre o tempo, limitado — ousaríamos dizer — à imensa índia é filologia da melhor: a palavra kâla designa tanto o momento fugidio como a duração infinita ou cíclica, o destino, a morte. Ao mesmo tempo forma e conteúdo, conceito e a própria pessoa divina assimilada a diversos deuses, o Tempo é um dos reativos mais aptos a revelar as diretrizes dessas poderosas escolhas de pensamento: rápidos e documentados, os capítulos dessa investigação exploram e esclarecem todos os problemas por elas colocados. Aparentemente mais específico, o ensaio sobre a simbologia das conchas mostra a imaginação religiosa atuando não mais a partir de um conceito relacionado com diversos elementos concretos, mas sim a partir de um elemento material que ela vincula a diversos conceitos, de modo que o conjunto das analogias parece desta feita sair do pólo sensível da relação: figurantes à procura do drama. "Símbolo e história" explica enfim brevemente, com uma referência mais acentuada às grandes religiões vivas do Ocidente, por que as análises do presente livro e todas aquelas que compõem a obra de Eliade não são puros jogos do espírito, mas antes descobridoras dos pontos de apoio que permitem ao homem-indivíduo e aos grupos humanos equilibrar e assegurar seus pensamentos em meio aos movimentos da sua experiência. É gratificante que um grande público possa conhecer esta introdução a uma das pesquisas mais originais do nosso tempo, que nunca nos deixa esquecer que seu autor foi e continua sendo, antes de mais nada, um escritor e um poeta.
Georges Dumézil
Em memória de meu pai Ghéorghé Eliade (1870-1951)
PREFÁCIO Redescoberta do simbolismo A surpreendente voga da psicanálise fez a fortuna de certas palavras-chave: imagem, símbolo, simbolismo tornaram-se desde então uma constante. Por outro lado, as pesquisas sistemáticas sobre o mecanismo das "mentalidades primitivas" revelaram a importância do simbolismo para o pensamento arcaico e, ao mesmo tempo, o seu papel fundamental na vida de qualquer sociedade tradicional. À superação do "cientismo" na filosofia, o renascimento do interesse religioso após a Primeira Guerra Mundial, as múltiplas experiências poéticas e, sobretudo, as pesquisas do surrealismo (com a redescoberta do ocultismo, da literatura negra, do absurdo etc.) chamaram, em níveis diferentes e com resultados desiguais, a atenção do grande público sobre o símbolo como modo autônomo de conhecimento. A evolução em questão faz parte da reação contra o racionalismo, o positivismo e o cientismo do século XIX e já basta para caracterizar o segundo quarto do século XX. Mas essa conversão aos diversos simbolismos não é uma "descoberta" propriamente inédita, mérito do mundo moderno: este, ao restabelecer o símbolo enquanto instrumento do conhecimento, só fez retomar uma orientação que foi geral na Europa até o século XVIII e que é, além
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do mais, conatural às outras culturas extra-européias, sejam elas "históricas" (por exemplo, as da Ásia ou da América Central) ou arcaicas e "primitivas". Notemos que a invasão da Europa Ocidental pelo simbolismo coincide com o despontar da Ásia no horizonte da história, despontar que começou com a revolução de Sun Yat Sen e que se afirmou sobretudo no decorrer dos últimos anos. De maneira sincrônica, grupos étnicos que até então só tinham participado da História Maior furtivamente e por alusões (como os oceânicos, os africanos etc.) preparam-se, por sua vez, para entrar nas grandes correntes da história contemporânea, e já estão impacientes para fazê-lo. Não que exista uma relação causal entre o despertar do mundo "exótico" ou "arcaico" no horizonte da história e a retomada de prestígio do conhecimento simbólico constatada na Europa. Mas o fato é que esse sincronismo é particularmente feliz; perguntamo-nos como a Europa positivista e materialista do século XIX poderia ter sustentado um diálogo espiritual com as culturas "exóticas" que se diziam, sem exceção, escolas de pensamento diferentes do empirismo ou do positivismo. Eis, pelo menos, uma razão para esperar que a Europa não fique paralisada diante das imagens e dos símbolos que, no mundo exótico, tomam o lugar dos nossos conceitos ou que os veiculam e prolongam. É surpreendente que de toda a espiritualidade européia moderna somente duas mensagens interessem realmente aos mundos extra-europeus: o cristianismo e o comunismo. Ambos certamente de maneira diferente e em planos visivelmente opostos são soteriologias, doutrinas da salvação e, por isso, amalgamam os "símbolos" e os "mitos" em uma escala que só é comparável à da humanidade extra-europeia. 1. Simplificamos extremamente, pois isso diz respeito a um lado das coisas que nos é impossível abordar aqui. No que diz respeito aos mitos e símbolos soteriológicos comunistas, está claro que, com as devidas reservas à elite dirigente marxista e à sua ideologia, as massas simpatizantes são estimuladas e encorajadas por slogans tais como: libertação, liberdade, paz, resolução dos conflitos sociais, abolição do Estado explorador e das classes privilegiadas etc. — slogans cuja estrutura e função mítica não necessitam mais ser demonstradas.
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Como dizíamos, uma feliz conjunção temporal fez a Europa Ocidental redescobrir o valor cognitivo do símbolo no momento em que ela não é a única a "fazer história", e a cultura européia, a menos que se enclausure em um provincialismo esterilizante, é obrigada a contar com outras vias de conhecimento, com outras escalas de valores que não apenas as suas. Nesse sentido, todas as descobertas e vogas sucessivas relacionadas ao irracional, ao inconsciente, ao simbolismo, às experiências poéticas, às artes exóticas e não-figurativas etc., serviram indiretamente ao Ocidente, preparando-o para uma compreensão mais viva, logo, mais profunda dos valores extra-europeus e, definitivamente, para o diálogo com os povos não-europeus. Bastaria pensar na atitude do etnógrafo do século XX diante do seu "objeto" e sobretticlo nos resultados das suas pesquisas, para medir o gigantesco progresso realizado pela etnologia no decorrer desses últimos trinta anos. O etnólogo atual compreendeu ao mesmo tempo a importância do simbolismo para o pensamento arcaico, sua coerência intrínseca, sua validade, sua audácia especulativa, sua "nobreza". Melhor ainda. Começamos a compreender hoje algo que o século XIX não podia nem mesmo pressentir: que o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los. Valeria a pena estudar a sobrevivência dos grandes mitos durante o século XIX. Veríamos como, humildes, enfraquecidos, condenados a mudar incessantemente de emblema, eles resistiram a essa hibernação, graças sobretudo à literatura'. É assim que o mito do Paraíso Terrestre sobreviveu até hoje na forma adaptada do "paraíso oceânico"; há cento e cinqüenta anos, todas as grandes literaturas européias rivalizaram-se ao celebrar as ilhas paradisíacas do Grande Oceano, refúgio de todas as felicidades, quando 2. Que aventura excitante seria revelar o verdadeiro papel espiritual do romance do século XIX, que, não obstante todas as "fórmulas" científicas, realistas, sociais, foi o grande reservatório dos mitos degradados!
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a realidade era bem diferente: "paisagens planas e monótonas, clima insalubre, mulheres feias e obesas etc." Da mesma maneira a Imagem desse "paraíso oceânico" estava protegida de toda "realidade" geográfica ou outra qualquer. As realidades objetivas não tinham nada a ver com o "paraíso oceânico". Este último era de ordem teológica; ele havia recebido, assimilado e readaptado todas as imagens paradisíacas repelidas pelo positivismo e pelo cientismo. O Paraíso Terrestre, no qual acreditava ainda Cristóvão Colombo (ele não acreditava tê-lo descoberto!) tinha se tornado, no século XIX, uma ilha oceânica, mas sua função na economia da psique humana continuava a mesma: ali, na "ilha", no "Paraíso", a existência se passava fora do Tempo e da História; o homem era feliz, livre, não-condicionado; ele não tinha de trabalhar para viver; as mulheres eram belas, eternamente jovens, nenhuma "lei" pesava sobre seus amores. Até a nudez reencontrava, na ilha longínqua, seu sentido metafísico: condição do homem perfeito de Adão antes da queda?. A "realidade" geográfica poderia desmentir essa paisagem paradisíaca, mulheres feias e obesas poderiam desfilar diante dos viajantes: nada disso se via; cada um olhava somente a imagem que trazia consigo.
Simbolismo e psicanálise O pensamento simbólico não é uma área exclusiva da criança, do poeta ou do desequilibrado: ela é consubstanciai ao ser humano; precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspectos da realidade — os mais profundos —que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preen3. Dedicamos ao simbolismo da ilha e da nudez na obra de um dos maiores poetas do século XIX, Mihail Eminescu, um estudo publicado em 1938 (ver nossa Insula lui Euthanasius, Bucareste, 1943, pp. 5-18).
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chem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Por isso, seu estudo nos permite melhor conhecer o homem, "o homem simplesmente", aquele que ainda não se compôs com as condições da história. Cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História. Eis um ponto, por certo, que nunca foi esquecido, mesmo nos tempos mais inclementes do positivismo: quem melhor do que um positivista para saber que o homem é um "animal", definido e regido pelos mesmos instintos que seus irmãos animais? Constatação exata, mas parcial, que se serve de um plano exclusivamente de referências. Começamos a ver hoje que a parte a-histórica de todo ser humano são se perde, como se pensava no século XIX, no reino animal e, finalmente, na "Vida", mas, ao contrário, bifurca-se e eleva-se bem acima dela: essa parte a-histórica do ser humano traz, tal qual uma medalha, a marca da lembrança de uma existência mais rica, mais completa, quase beatificante. Quando um ser historicamente condicionado, por exemplo um ocidental dos dias de hoje, deixa-se invadir pela sua própria parte não-histórica (o que acontece com muito mais freqüência e bem mais radicalmente do que ele imagina), não é necessariamente para retroceder ao estado animal da humanidade, para descer às origens mais profundas da vida orgânica: inúmeras vezes, ele reintegra pelas imagens e símbolos que utiliza um estado paradisíaco do homem primordial (qualquer que seja a existência concreta deste último, pois esse "homem primordial" apresenta-se sobretudo como um arquétipo impossível de "realizar-se" plenamente em uma existência qualquer). Escapando à sua historicidade, o homem não abdica da qualidade de ser humano para se perder na "animalidade"; ele reencontra a linguagem e, às vezes, a experiência de um "paraíso perdido". Os sonhos, os devaneios, as imagens de suas nostalgias, de seus desejos, de seus entusiasmos etc., tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado em um mundo espiritual infinitamente mais rico que o mundo fechado do seu "momento histórico".
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Dizem os surrealistas que todo homem pode se tornar um poeta: é apenas uma questão de saber se abandonar à escrita automática. Essa técnica poética se justifica plenamente em uma psicologia sã. O "inconsciente", como é chamado, é muito mais "poético" — e, acrescentaríamos, mais "filosófico", mais "mítico" — que a vida consciente. Nem sempre é necessário conhecer a mitologia para viver os grandes temas míticos. Os psicólogos sabem muito bem que descobrem as mais belas mitologias nos "devaneios" ou nos sonhos de seus pacientes. Pois o inconsciente não é unicamente assombrado por monstros: ele é também a morada dos deuses, das deusas, dos heróis, das fadas; aliás, os monstros do inconsciente também são mitológicos, uma vez que continuam a preencher as mesmas funções que tiveram em todas as mitologias: em última análise, ajudar o homem a libertar-se, aperfeiçoar sua iniciação. A linguagem brutal de Freud e de seus discípulos mais ortodoxos irritou muitas vezes os leitores de bom senso. Na realidade, essa brutalidade de linguagem é o resultado de um mal-entendido: não era a sexualidade em si que irritava, mas sim a ideologia fundada por Freud sobre a sua "sexualidade pura". Fascinado por sua missão — ele se acreditava o Grande Freud Desperto, quando não passava do Último Positivista não podia se dar conta de que a sexualidade nunca foi "pura"; de que ela foi sempre e em toda a parte uma função polivalente, cuja valência primeira e talvez suprema era sua função cosmológica; de que traduzir uma situação psíquica em termos sexuais não é de forma alguma humilhá-la, pois, exceto para o mundo moderno, a sexualidade foi sempre e em toda a parte uma hierofania, e o ato sexual, um ato integral (logo, também um meio de conhecimento). A atração que sente o menino por sua mãe e seu corolário, o complexo de Édipo, só "chocam" quando traduzidos tais quais, em vez de serem apresentados, como se deve fazer, enquanto Imagens. Pois é a Imagem da Mãe que é verdadeira, e não a dessa ou daquela mãe, hic et nunc, como queria Freud. É a Imagem da Mãe que revela — e apenas ela pode revelar
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—sua realidade e suas funções ao mesmo tempo cosmológicas, antropológicas e psicológicas'. "Traduzir" as Imagens em termos concretos é uma operação vazia de sentido: certamente as Imagens englobam todas as alusões ao "concreto" descobertas por Freud, mas a realidade que elas tentam expressar não se esgota por tais referências ao "concreto". A "origem" das Imagens é igualmente um problema sem objeto: como se contestássemos a "verdade" matemática sob o pretexto de que a "descoberta histórica" da geometria saiu dos trabalhos feitos pelos egípcios para a canalização do Delta. Filosoficamente, estes problemas da "origem" e da "verdadeira tradução" das Imagens são desprovidos de objeto. Bastará lembrar que a atração maternal, interpretada no plano imediato e "concreto" — como o desejo de possuir a própria mãe —, não quer dizer nada mais do que isso. Ao contrário, se levarmos em conta que se trata da Imagem da Mãe, esse desejo quer dizer muitas coisas ao mesmo tempo, pois é o desejo de reintegrar a beatitude da Matéria viva ainda não "formada", com todos os seus desdobramentos possíveis, cosmológicos, antropológicos etc., a atração exercida sobre o "Espírito" pela "Matéria", a nostalgia da unidade primordial e, enfim, o desejo de abolir os opostos, as polaridades etc. Ora, como já dissemos e como mostraremos nas páginas seguintes, as Imagens são, por suas próprias estruturas, multivalentes. Se o espírito utiliza as Imagens para captar a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa realidade se manifesta de maneira contraditória, e conseqüentemente não poderia ser expressada por conceitos. (Sabemos dos esforços desesperados de diversas teologias e metafísicas, tanto orientais como ocidentais, para expressar por conceitos a coincidentia oppositorum, modo de ser facilmente, e aliás abundantemente, expressado por Imagens e símbolos.) É então a Imagem em si, en4. É o maior mérito de C. G. Jung ter ultrapassado a psicanálise freudiana partindo da própria psicologia e ter assim restaurado o significado espiritual da Imagem.
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quanto conjunto de significações, que é verdadeira, e não uma única das suas significações ou um único dos seus inúmeros planos de referências. Traduzir uma Imagem na sua terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais, é pior que mutilá-la, é aniquilá-la, anulá-la como instrumento de conhecimento. Não ignoramos que a psique em certos casos fixa uma Imagem sobre um único plano de referência, o plano "concreto"; mas isso já é uma prova de desequilíbrio psíquico. Sem dúvida, existem casos em que a Imagem da Mãe nada mais é do que o desejo incestuoso da própria mãe; mas os psicólogos concordam em ver em tal interpretação carnal de um símbolo o sinal de uma crise psíquica. No plano da dialética da Imagem, toda redução exclusiva é uma aberração. A história das religiões é abundante em interpretações unilaterais e, conseqüentemente, aberrantes de símbolos. Não encontraremos um único grande símbolo religioso cuja história não seja uma trágica sucessão de inúmeras "quedas". Não existe heresia monstruosa, orgia infernal, crueldade religiosa, loucura, absurdo ou insanidade mágico-religiosa que não seja "justificada", no seu próprio princípio, por uma falsa — porque parcial, incompleta — interpretação de um grandioso simbolismo'.
Perenidade das imagens Não é necessário utilizar as descobertas da psicologia profunda ou a técnica surrealista da escrita automática para provar a sobrevivência subconsciente, no homem moderno, de uma mitologia abundante e, na nossa opinião, de um valor espiritual superior à sua vida "consciente". Não precisamos dos poetas ou das psiques em crise para confirmar a atualidade e a força das Imagens e dos símbolos. A mais pálida das existências está repleta de símbolos, o homem mais "realista" 5. Ver nosso Traia d'histoire des religions, pp. 304 ss. e passim.
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vive de imagens. Repetindo, e conforme ficará abundantemente ilustrado pelo que se segue, os símbolos jamais desaparecem da atualidade psíquica: eles podem mudar de aspecto; sua função permanece a mesma. Temos apenas de levantar suas novas máscaras. A mais abjeta "nostalgia" esconde a "nostalgia do paraíso". Mencionamos as imagens do "paraíso oceânico" que assombram tanto o livro como o filme. (Quem disse que o cinema era a "fábrica de sonhos"?) Podemos também analisar as imagens liberadas subitamente por uma música qualquer, às vezes a mais vulgar romança. Constataremos que essas imagens invocam a nostalgia de um passado mitificado, transformado em arquétipo, que esse "passado" contém, além da saudade de um tempo que acabou, mil outros sentidos: ele expressa tudo que poderia ter sido, mas não foi, a tristeza de toda existência que só existe quando cessa de ser outra coisa, o pesar de não viver na paisagem e no tempo evocados pela música (quaisquer que sejam as cores locais ou históricas: "o bom velho tempo", a Rússia das balalaicas, o Oriente romântico, o Haiti dos filmes, os milionários americanos, os príncipes exóticos etc.); enfim, o desejo de algo completamente diferente do momento presente, definitivamente inacessível ou irremediavelmente perdido: o "Paraíso". O importante nessas imagens da "nostalgia do paraíso" é que elas expressam sempre muito mais do que a pessoa que as sente poderia fazê-lo por meio da palavra. Aliás, a maioria dos humanos seriam incapazes de expressá-las: não que sejam menos inteligentes que os outros, mas porque dão muito pouca importância à nossa linguagem analítica. E, no entanto, tais imagens aproximam os homens de uma maneira mais eficaz e real que a linguagem analítica. Na realidade, se existe uma solidariedade total do gênero humano, ela só pode ser sentida e "atuada" no nível das Imagens (não dizemos do subconsciente, pois nada nos prova que não exista também um transconsciente).
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Não demos a atenção devida a tais "nostalgias"; quisemos reconhecer nelas somente fragmentos psíquicos sem significação: concordávamos no máximo que elas podiam interessar a certos estudos sobre as formas de fuga psíquica. Ora, as nostalgias são, às vezes, repletas de significações que envolvem a própria situação do homem; dessa maneira, elas se impõem tanto ao filósofo como ao teólogo. Porém, não as levávamos a sério; acreditávamos que eram "frívolas": a imagem do Paraíso Perdido despertada subitamente pela música de um acordeão; que objeto de estudo comprometedor. É esquecer que a vida do homem moderno está cheia de mitos semi-esquecidos, de hierofanias decadentes, de símbolos abandonados. A dessacralização incessante do homem moderno alterou o conteúdo da sua vida espiritual; ela não rompeu com as matrizes da sua imaginação: todo um refugo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas. Aliás, a parte mais "nobre" da consciência do homem moderno é menos "espiritual" do que geralmente somos tentados a crer. Uma rápida análise revelaria nessa "nobre" e "alta" esfera da consciência algumas reminiscências livrescas, muitos preconceitos de diversas ordens (religiosos, morais, sociais, estéticos etc.), algumas idéias prontas sobre o "sentido da vida", "a realidade última" etc. Não tentaremos descobrir o que aconteceu, por exemplo, ao mito do Paraíso Perdido, à imagem do Homem perfeito, ao mistério da Mulher e do Amor etc. Tudo isso, entre muitas outras coisas, se encontra —quão secularizado, degradado e maquiado!... — no fluxo semiconsciente da mais material das existências: nos devaneios, nas melancolias, no jogo livre das imagens durante as "horas vazias" da consciência (na rua, no metrô etc.), nas distrações e nos passatempos de todos os tipos. Entretanto, repetindo, esse tesouro mítico aí repousa "laicizado" e "modernizado". Aconteceu a essas Imagens, como Freud mostrou, o mesmo que às alusões por demais cruas às realidades sexuais: elas mudaram de "forma". Para assegurar sua sobrevivência, as Imagens tornaram-se "familiares". No entanto, o interesse por elas não diminuiu. Pois essas imagens degradadas oferecem um possível ponto de partida para
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a renovação espiritual do homem moderno. Acreditamos que seja da maior importância redescobrir toda uma mitologia, se não uma teologia, escondida na vida mais "banal" de um homem moderno: dependerá dele subir novamente a correnteza e redescobrir o significado profundo de todas essas imagens envelhecidas e de todos esses mitos degradados. Que não nos digam que todo esse refugo não interessa mais ao homem moderno, que pertence a um "passado supersticioso", felizmente eliminado pelo século XIX; que só serve para os poetas, para as crianças, ou para as pessoas no metrô se saciarem de imagens e de nostalgias, mas que (por favor!) deixem as pessoas sérias continuarem a pensar, a "fazer a história": uma tal separação entre o que é "sério na vida" e os "sonhos" não corresponde à realidade. O homem ma derno é livre para menosprezar as mitologias e as teologias; isso não o impedirá de continuar a se alimentar dos mitos decadentes e das imagens degradadas. A mais terrível crise histórica do mundo moderno —a Segunda Guerra Mundial e tudo o que ela desencadeou, com ela e depois dela — mostrou suficientemente que a extirpação dos mitos e dos símbolos é ilusória. Mesmo na "situação histórica" mais desesperada (nas trincheiras de Stalingrado, nos campos de concentração nazistas e soviéticos), homens e mulheres cantaram romanças, escutaram histórias (a ponto de sacrificar uma parte de suas magras rações para obtê-las); essas histórias apenas substituíam os mitos, essas músicas estavam repletas de nostalgias. Toda essa porção essencial e imprescritível do homem — que se chama imaginação — está imersa em pleno simbolismo e continua a viver dos mitos e das teologias arcaicas6. 6. Ver as ricas e argutas análises de Gaston Bachelard em suas obras sobre "a imaginação da matéria": La psyhanalyse du feu, L'eau et les reves [A água e os sonhos, Martins Fontes], L'air et les songes [O ar e os sonhos, Martins Fontes], La terre et les rêveries [A terra e os devaneios da vontade, A terra e os devaneios do repouso, Martins Fontes 1990], 2 vols. (Paris, 1939-1948). G. Bachelard baseia-se sobretudo na poesia e nos sonhos, e subsidiariamente no folclore; mas mostraríamos facilmente como sonhos e imagens poéticas prolongam os símbolos sagrados e as mitologias arcaicas. Sobre as Imagens da Água e da Terra, como as que freqüentam os sonhos e as literaturas, cf capítulo sobre as "hierofanias" e os simbolismos aquáticos e telúricos no nosso Traité d'histoire des religions, pp. 168, ss., 211 ss.
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Depende apenas do homem moderno, dizíamos, "despertar" para esse inestimável tesouro de imagens que traz consigo; despertar as imagens para contemplá-las na sua virgindade e assimilar sua mensagem. A sabedoria popular muitas vezes exprimiu a importância da imaginação para a própria saúde do indivíduo, para o equilíbrio e a riqueza da sua vida interior. Certas línguas modernas continuam a lamentar aquele a quem "falta imaginação", como um ser limitado, medíocre, triste, infeliz. Os psicólogos, em primeiro lugar C. G. Jung, mostraram até que ponto os dramas do mundo moderno derivam de um desequilíbrio profundo da psique, tanto individual como coletivo, provocado em grande parte pela esterilização crescente da imaginação. "Ter imaginação" é gozar de uma riqueza interior, de um fluxo ininterrupto e espontâneo de imagens. Porém, espontaneidade não quer dizer invenção arbitrária. Etimologicamente, "imaginação" está ligada a imago, "representação", "imitação", a imitor, "imitar, reproduzir". Excepcionalmente, a etimologia responde tanto às realidades psicológicas como à verdade espiritual. A imaginação imita modelos exemplares — as Imagens —, reproduzindo-os, reatualizando-os, repetindo-os infinitamente. Ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade; pois as Imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. Isso explica a desgraça e a ruína do homem a quem "falta imaginação": ele é cortado da realidade profunda da vida e de sua própria alma. Lembrando esses princípios, quisemos mostrar que o estudo dos simbolismos não é um trabalho de erudição pura; que, pelo menos indiretamente, ele se interessa pelo conhecimento do homem em si; enfim, que ele tem sua opinião a dar quando falamos de um novo humanismo ou de uma nova antropologia. Sem dúvida, um tal estudo dos simbolismos não será realmente útil se não for feito em colaboração. A estética literária, a psicologia, a antropologia filosófica deveriam levar em consideração os resultados da história das religiões, da etnologia e do folclore. É sobretudo para os psicólogos e os críticos literá-
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rios que publicamos este livro. Melhor que ninguém, o historiador das religiões está qualificado para aprofundar o conhecimento dos símbolos: seus documentos são ao mesmo tempo mais completos e mais coerentes do que aqueles de que dispõem o psicólogo e o crítico literário; eles são tirados das próprias fontes do pensamento simbólico. É na história da religião que encontramos os "arquétipos"; os psicólogos e os críticos literários lidam com variantes aproximativas.
O plano do livro Os quatro primeiros capítulos do livro foram redigidos em épocas diferentes e para públicos variados'. Os capítulos I e II são acompanhados de um mínimo de notas; a documentação neles utilizada já fora estabelecida, nos nossos próprios trabalhos, ou nos de outros pesquisadores. Ao contrário, os capítulos III e IV contêm certo número de notas e de referências. Os materiais reunidos constituem em si monografias úteis, independentemente das interpretações que propomos. O último capítulo, que serve ao mesmo tempo como conclusão geral, apresenta-se igualmente com uma bibliografia reduzida. O tema abordado era vasto demais para permitir uma exposição que fosse ao mesmo tempo cuidadosamente documentada e extremamente concisa. Com exceção desse último capítulo, os diversos estudos que se seguem não foram compostos com a finalidade de constituir um livro: entretanto, cada um deles respondia, no pensamento do autor, a um único e mesmo problema, ou seja, a estrutura do simbolismo religioso. Cada capítulo apresenta 7. O quarto capítulo data de 1938 (ver Zalmoxis, tomo II, pp. 131 ss.);
o terceiro capítulo é de 1946 (ver Recue de l'histoire des religions, tomo CXXXIV, julho-dezembro, 1947-1948, pp. 5 ss). O conteúdo dos capítulos I e II foi objeto de nossas conferências de Ascona, 1950-1951 (cf. Eranos-Jahrbuch, t. XIX e XX), e um artigo no imanai de Psychologie.
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um simbolismo ou uma família de símbolos, ainda que a maneira de abordá-los possa variar de um para outro. O simbolismo do "Centro", estudado no primeiro capítulo, e que prolonga os resultados de outros estudos anteriores, é exposto sinteticamente, sem levar em conta os entrelaçamentos da "história". A primeira parte desse capítulo coloca justamente o problema da validade de uma tal apresentação geral do símbolo e esboça sumariamente as relações entre a psicologia e a história das religiões. O segundo capítulo analisa o simbolismo do Tempo e da "saída do Tempo" em uma mesma área cultural: a índia antiga. O terceiro capítulo aborda o simbolismo dos nós, em dois planos complementares: após ter-se restringido aos indo-europeus, utilizando sobretudo as pesquisas de Georges Dumézil, ele tenta comparar esses dados aos simbolismos paralelos de outras culturas arcaicas. É sobretudo nesse capítulo que mediremos as vantagens e limites tanto da investigação histórica como da análise morfológica e que compreenderemos melhor a necessidade de utilizarmos sucessivamente esses dois métodos complementares. O quarto capítulo, dedicado a um grupo de símbolos solidários (Lua — Água — Fertilidade etc.), constitui uma descrição do tipo morfológico, propondo-se a clarificação das estruturas. Enfim, o último capítulo retoma os resultados de todas essas investigações, regidas por diferentes pontos de vista, tendo como objetivo uma integração sistemática do simbolismo mágico-religioso. O psicólogo se interessará mais pelos dois primeiros capítulos e pelo último. O leitor apressado poderá dispensar-se de ler todas as análises e referências dos capítulos III e IV. Não julgamos oportuno suprimir essas notas. O perigo dos estudos sobre o simbolismo reside em uma generalização precipitada. Os profanos tendem a se contentar com os primeiros documentos que caem sob seus olhos e a construir audaciosas interpretações "gerais" sobre os simbolismos. Fizemos questão de apresentar pelo menos duas amostras de análises dos símbolos, para sublinhar o quanto as coisas são, na realidade,
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complexas e cheias de nuances. Por outro lado, quisemos colocar à disposição de psicólogos, críticos literários e filósofos algumas fontes de documentação abundantes, que, se necessário, poderão utilizar para seus próprios fins. Não é raro encontrar nos livros dos psicólogos e dos críticos literários uma documentação histórico-religiosa bastante insuficiente, francamente falível: os livros dos quais retiram seus materiais são, com freqüência, produto de amadores desprovidos de qualquer senso crítico, ou de "teóricos" isolados8. Os não-especialistas respondem, com razão, que não podem substituir os etnólogos e os historiadores das religiões, que não têm meios nem tempo para pesquisas prolongadas e que por isso são forçados a se contentar com as obras "gerais" que têm em mãos. O infortúnio faz com que, na maior parte do tempo, 8. Freud acreditou que poderia descobrir a "origem" das religiões no complexo de Édipo nascido de um parricídio primordial, parricídio ritualmente repetido nos "sacrifícios totêmicos". Ele elaborou sua teoria — que parece ter ainda a aprovação dos psicanalistas — em 1911-1912, utilizando a hipótese da "horda primordial" de Atkinson e a do "sacrifício-comunhão totêmico" de Robertson-Smith. No momento em que Freud elaborava sua explicação do sentimento religioso e acreditava ter achado a "origem" das religiões, as duas hipóteses citadas já não tinham crédito entre os etnólogos e historiadores das religiões competentes. Ainda que Freud tenha lido Frazer e conhecido as conclusões deste último, ou seja, a não-universalidade do totemismo como fenômeno sociorreligioso (pois é desconhecido em numerosas tribos "primitivas") e a extrema raridade dos "sacrifícios-comunhão totêmicos" (quatro casos somente — e ainda não muito bem verificados — para várias centenas de tribos totêmicas!), Totem und Tabu foi publicado em forma de livro em 1913 e é desde então reeditado continuamente e traduzido em várias línguas... (Poderíamos invocar para a defesa de Freud a publicação em 1912 do famoso livro de Emite Durkheim, As formas elementares da vida religiosa; livro precioso em vários aspectos, às vezes quase genial, mas infelizmente desprovido de base. Consideravelmente mais bem informado que Freud, Durkheim caiu no mesmo erro quanto ao método, esforçando-se em achar no totemismo a origem das religiões. Este mestre eminente teria ganho se tivesse levado em conta os trabalhos de seus colegas etnólogos e antropólogos 'que já tinham provado suficientemente que o totemismo não representa a mais antiga camada das religiões australianas e, mais ainda, que ele está ausente em inúmeras culturas arcaicas dispersas pelo mundo.)
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os não-especialistas dêem com as mais medíocres obras gerais; e, quando têm melhor sorte, acontece mais de uma vez lerem mal ou depressa demais. É por isso que resistimos à tentação de suprimir as referências bibliográficas: talvez certos não-especialistas sintam necessidade de entrar em contato pessoal com a massa de trabalhos da etnologia e da história das religiões, em vez de se alimentarem com as lamentáveis e antiquadas elucubrações dos diletantes ou dos "teóricos", que se preocuparam sobretudo em ilustrar suas próprias explicações gerais. A literatura psicológica, e especialmente a produção psicanalítica, familiarizou o leitor com as explicações prolixas de "casos" individuais. Muitas vezes consagram-se páginas inteiras a detalhar sonhos ou devaneios de certos pacientes. Foi publicado na Inglaterra um volume de setecentas páginas sobre a "mitologia dos sonhos" de um único indivíduo. Os psicólogos concordam em considerar indispensável a redação in extenso de todo "caso" particular e, quando se resignam a fazer cortes, fazem-no quase sempre contrariados: seu ideal seria publicar o material integralmente. Por razões ainda mais fortes, deveríamos fazer o mesmo com o estudo do simbolismo: deveríamos apresentá-lo em suas linhas gerais, mas também nas suas nuances, variações e hesitações. O problema central e mais árduo continua sendo, evidentemente, o da interpretação. Em princípio, podemos sempre nos perguntar sobre a validade da hermenêutica. Através de verificações múltiplas, por meio de afirmações claras (textos, ritos, monumentos figurados) e de alusões meio veladas, podemos demonstrar através de exemplos o que "quer dizer" tal ou tal símbolo. Podemos também colocar o problema de uma outra maneira: os que utilizam os símbolos estarão cientes de todas as implicações teóricas? Quando, por exemplo, estudando o simbolismo da Árvore cósmica, dizemos que essa Árvore se encontra no "Centro do Mundo", todos os indivíduos que pertencem às sociedades que conhecem essas Árvores cósmicas estarão igualmente conscientes do simbolismo integral
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do "Centro"? No entanto, a validade do símbolo enquanto forma de conhecimento não depende do grau de compreensão de tal ou tal indivíduo. Textos e monumentos figurados nos provam abundantemente que, pelo menos para certos indivíduos de uma sociedade arcaica, o simbolismo do "Centro" era transparente na sua totalidade. O resto da sociedade contentava-se em "participar" do simbolismo. E, aliás, é difícil precisar os limites de tal participação: ela varia em função de um número indeterminado de fatores. Tudo o que podemos dizer é que a atualização de um símbolo não é mecânica: ela está relacionada às tensões e às mudanças da vida social, e em último lugar aos ritmos cósmicos. Mas todos os eclipses ou as aberrações que um simbolismo pode sofrer, pelo próprio fato de ele ser vivido, não infirmam a validade da sua hermenêutica. Para emprestar um exemplo a uma outra ordem de realidade: seria indispensável, para julgar o simbolismo da Divina Comédia, perguntar o que os milhões de leitores espalhados pelo mundo compreendem ao ler esse livro difícil, ou então o que o próprio Dante sentiu e pensou ao escrevê-lo? Quando se trata de uma obra poética mais livre, quero dizer, que dependa mais diretamente da "inspiração" — por exemplo, os produtos do romantismo alemão —, não temos nem mesmo o direito de nos limitar ao que os autores pensavam de suas próprias criações para interpretar o simbolismo que elas implicam. É um fato que, na maioria das vezes, um autor não esgota o sentido da sua obra. Os simbolismos arcaicos reaparecem espontaneamente, mesmo nas obras de autores "realistas", que ignoram tudo de tais símbolos. Aliás, essa controvérsia em torno dos limites legítimos da hermenêutica dos simbolismos é inútil. Vimos que os mitos se degradam e os símbolos se secularizam, mas eles nunca desaparecem, mesmo na mais positivista das civilizações, a do século XIX. Os símbolos e os mitos vêm de longe: eles fazem parte do ser humano, e é impossível não os reencontrar em qualquer situação existencial do homem no Cosmos.
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Gostaríamos de agradecer aqui a nosso mestre e amigo Georges Dumézil, professor do Collège de France, que aceitou ler e corrigir uma primeira redação do terceiro capítulo, e particularmente a nosso caro amigo Dr. Jean Gouillard, que teve a amabilidade de corrigir o resto do manuscrito. Paris, maio de 1952
CAPÍTULO I
SIMBOLISMO DO "CENTRO" Psicologia e história das religiões Muitos leigos invejam a vocação do historiador das religiões. Que ocupação seria mais nobre e enriquecedora do que freqüentar os grandes místicos de todas as religiões, viver entre os símbolos e os mistérios, ler e compreender os mitos de todas as nações? Imaginam que um historiador das religiões se sente em casa tanto entre os mitos gregos e egípcios, como entre as mensagens autênticas do Buda, os mistérios taoístas e os ritos secretos de iniciação das sociedades arcaicas. Talvez os leigos não estejam inteiramente errados em imaginar o historiador das religiões solicitado pelos grandes e verdadeiros problemas, ocupado em decifrar os símbolos mais grandiosos e os mitos mais complexos e elevados da imensa massa de fatos que se oferece a ele. Na realidade, a situação é bem diferente. Muitos historiadores das religiões são tão absorvidos por sua própria especialidade que não conhecem muito mais sobre os mitos gregos ou egípcios, sobre a mensagem do Buda ou sobre as técnicas taoístas ou xamanistas do que um amador que soube orientar suas leituras. A maioria está familiarizada apenas com um pequeno setor do imenso campo da história das religiões. Infelizmente, mesmo esse modesto setor com freqüência é explorado superficialmente — decifração, edição
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e tradução de textos, ensaios cronológicos e estudos de influências, monografias históricas ou repertório de monumentos, e assim por diante. Confinado a um tema necessariamente limitado, o historiador das religiões tem muitas vezes o sentimento de ter sacrificado a bela carreira espiritual sonhada na juventude por um dever de probidade científica. Mas a excessiva probidade científica dessa produção acabou por aliená-lo do público instruído. Salvo raríssimas exceções, os historiadores das religiões não são lidos fora do círculo restrito de seus colegas e discípulos. O público já não lê seus livros, seja porque são técnicos demais, seja porque são fastidiosos; no fim das contas, eles não apresentam nenhum interesse espiritual. De tanto ouvir dizer — como o fez por exemplo sir James Frazer em cerca de vinte mil páginas — que tudo o que o homem das sociedades arcaicas pensou, imaginou ou desejou, todos os seus mitos e ritos, todos os seus deuses e experiências religiosas não passavam de um monstruoso acúmulo de insanidades, crueldades e superstições felizmente abolidas pelo progresso racional do homem, de tanto ouvir quase sempre a mesma coisa, o público acabou por convencer-se disso e desinteressou-se do estudo objetivo da história das religiões. Pelo menos uma parte desse público tenta satisfazer sua legítima curiosidade lendo obras de má qualidade sobre os mistérios das Pirâmides, os milagres da Ioga, as "revelações primordiais", ou sobre Atlântida — enfim, ela se interessa pela pavorosa literatura dos diletantes, dos neo-espiritualistas ou dos pseudo-ocultistas. De certa maneira, os responsáveis por isso encontram-se entre nós, historiadores das religiões. Quisemos a todo custo apresentar uma história objetiva das religiões, sem perceber que o que chamávamos objetividade seguia as modas do pensamento do nosso século. Há quase um século, esforçamo-nos para erigir a história das religiões em disciplina autônoma, em vão. A história das religiões, como se sabe, continua a ser confundida com a antropologia, a etnologia, a sociologia, a psicologia religiosa e até com o orientalismo. Desejando a
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todo custo obter o prestígio de uma "ciência", a história das religiões também sofreu todas as crises do espírito científico moderno: os historiadores das religiões foram sucessivamente, e alguns continuam sendo, positivistas, empiristas, racionalistas ou historicistas. Além do mais, nenhuma das "modas" que dominaram sucessivamente a história das religiões, nenhuma das explicações globais e sistemáticas dadas ao fenômeno religioso, foi obra de um historiador das religiões. Todas elas provieram de hipóteses propostas por eminentes lingüistas, antropólogos, sociólogos ou etnólogos e foram aceitas sucessivamente por todo o mundo, inclusive pelos historiadores das religiões. A situação apresenta-se atualmente da seguinte maneira: progresso considerável da informação, ao preço de uma especialização excessiva e mesmo do sacrifício parcial da nossa vocação (visto que a maioria dos historiadores das religiões tornaram-se orientalistas, classicistas ou etnólogos etc.); dependência dos métodos elaborados pela historiografia ou pela sociologia modernas (como se o estudo histórico de um rito ou de um mito fosse exatamente a mesma coisa que a história de certo país ou a monografia de certo povo primitivo). Em suma, negligenciamos um fato essencial: na expressão "história das religiões", a ênfase deve ser dada à palavra religião, e não à história. Pois, se existem várias maneiras de se praticar a história — desde a história das técnicas até a história do pensamento humano —, só existe uma maneira de se abordar a religião: atentar para os fatos religiosos. Antes de fazer a história de alguma coisa, é muito importante compreender bem essa coisa, em si mesma e por si mesma. Por isso devemos assinalar aqui a importância da obra do professor Van der Leeuw, que tanto fez pela fenomenologia da religião, e cujas publicações, inúmeras e brilhantes, suscitaram a renovação do interesse do público instruído pela história das religiões. De uma maneira indireta, esse mesmo interesse foi despertado pela descoberta da psicanálise e da psicologia profunda, primeiramente através da obra do professor Jung. Realmente,
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não se tardou a notar que o enorme campo da história das religiões constituía uma mina inesgotável de elementos de comparação com o comportamento da psique individual ou coletiva, comportamento esse estudado pelos psicólogos e analistas. Ninguém ignora que a utilização de tais documentos sociorreligiosos por psicólogos nem sempre teve a adesão dos historiadores das religiões. Examinaremos um pouco adiante as objeções feitas a tais comparações, que são com freqüência, de fato, arrojadas demais. Contudo, é preciso dizer desde já que, se os historiadores das religiões tivessem abordado seus objetos de estudo numa perspectiva mais espiritual, se tivessem se esforçado para penetrar mais profundamente no simbolismo religioso arcaico, inúmeras dessas interpretações psicológicas ou psicanalíticas, que parecem excessivamente superficiais aos olhos dos especialistas, não teriam sido formuladas. Os psicólogos encontram em nossos livros excelentes materiais, mas raramente explicações profundas — e foram obrigados a preencher essa lacuna tomando o lugar dos historiadores das religiões, propondo hipóteses gerais muitas vezes precipitadas. Em duas palavras, as dificuldades que devemos superar hoje são as seguintes: a) de um lado, tendo optado pelo prestígio de uma historiografia objetiva, "científica", a história das religiões vê-se obrigada a enfrentar as objeções dirigidas ao historicismo como tal; b) por outro lado, ela é obrigada também a responder ao desafio que acaba de lhe lançar a psicologia em geral, e em primeiro lugar a psicologia profunda, os materiais histórico-religiosos, propõe hipóteses de trabalho mais felizes, mais férteis ou, em todo o caso, mais prestigiosas que as hipóteses correntes entre os historiadores das religiões. Para melhor compreender essas dificuldades, falemos do objeto deste estudo: o simbolismo do "Centro". Um historiador das religiões teria o direito de nos perguntar: o que você entende por esses termos? De que símbolos se trata? De que povos e de que culturas? E o historiador das religiões poderia acrescentar: você não desconhece que a época de Ty-
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lor, de Mannhardt e de Frazer já acabou; hoje não temos mais o direito de falar dos mitos e dos ritos "em geral", da unidade das reações do homem primitivo diante da Natureza. Essas generalidades são abstrações, como o são as do "homem primitivo" em geral. O que é concreto é o fenômeno religioso manifestado na história e através da história. E, pelo simples fato de estar manifestado na história, ele é limitado, é condicionado pela história. Que sentido poderia ter então na história das religiões uma fórmula como, por exemplo, a abordagem ritual da imortalidade? É preciso definir imediatamente de qual imortalidade se trata. Pois não temos certeza, a priori, de que a humanidade como um todo tenha tido espontaneamente a intuição ou mesmo o desejo de imortalidade. Você fala do "simbolismo do Centro". Com que direito, enquanto historiador das religiões? Podemos generalizar tão superficialmente? Deveríamos, isto sim, começar por nos perguntar: em que cultura e depois de que acontecimentos históricos se cristalizou a noção religiosa do "Centro" ou a da imortalidade? Como se integram e se justificam essas noções no sistema orgânico de tal ou tal cultura? Como se espalharam, e através de que povos? Após ter respondido a todas essas questões preliminares, teremos o direito de generalizar e de sistematizar, de falar, em geral, dos ritos de imortalidade ou de símbolos do "Centro". Senão você está fazendo psicologia ou filosofia, até mesmo teologia — mas não história das religiões. Acho que todas essas objeções se justificam e, enquanto historiador das religiões, pretendo levá-las em consideração; mas não acho que sejam insuperáveis. Sei muito bem que estamos lidando com fenômenos religiosos e que, pelo simples fato de serem fenômenos, ou seja, de se manifestarem, de se revelarem a nós, são cunhados como uma medalha pelo momento histórico que os viu nascer. Não existe fato religioso "puro", fora da história, fora do tempo. A mais nobre mensagem religiosa, a mais universal experiência mística, o mais comum dos comportamentos humanos — como por exemplo o temor religioso, o rito, a prece — singularizam-se e delimi-
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tam-se à medida que se manifestam. Quando o Filho de Deus se encarnou e se tornou o Cristo, teve de falar o aramaico; ele só podia se comportar como um hebreu do seu tempo — e não como um iogue, um taoísta ou um xamã. Sua mensagem religiosa, por mais universal que fosse, estava condicionada pela história passada e contemporânea do povo hebreu. Se o Filho de Deus tivesse nascido na índia, sua mensagem oral teria sido obrigada a conformar-se à estrutura das línguas indianas, à tradição histórica e pré-histórica daquele conglomerado de povos. Reconhecemos nessa tomada de posição todo o progresso especulativo realizado desde Kant — que devemos considerar um precursor do historicismo —até os últimos filósofos historicistas ou existencialistas. O homem enquanto ser histórico, concreto, autêntico, é "situado". Sua existência concretiza-se na história, no tempo, no seu tempo — que não é o do seu pai. Tampouco é o tempo de seus contemporâneos de um outro continente, ou de um outro país. Nesse caso, em nome de que se pode falar do comportamento do homem em geral? Esse homem em geral não passa de uma abstração. Ele existe graças a um mal-entendido, devido à imperfeição da nossa linguagem. Não cabe abordar aqui a crítica filosófica do historicismo ou do existencialismo historicista. Essa crítica já foi feita, e por autores mais competentes que nós. Notemos porém, de passagem, que o condicionamento histórico da vida espiritual humana retoma, num outro nível e com outros meios dialéticos, as teorias hoje um pouco obsoletas dos condicionamentos geográficos, econômicos, sociais, até mesmo fisiológicos. Todos concordam que um fato espiritual, sendo um fato humano, é necessariamente condicionado por tudo aquilo que concorre para compor um homem, desde a anatomia e a fisiologia até a linguagem. Em outros termos, um fato espiritual pressupõe o ser humano integral, ou seja, a entidade fisiológica, o homem social, o homem econômico, e assim por diante. Todavia, todos esses condicionamentos não conseguem esgotar, por si sós, a vida espiritual.
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O que distingue o historiador das religiões de um simples historiador é que ele lida com fatos que, embora históricos, revelam um comportamento que vai muito além dos comportamentos históricos do ser humano. Se é verdade que o homem sempre se encontra inserido numa "situação", nem por isso essa situação é sempre histórica, ou seja, unicamente condicionada pelo momento histórico contemporâneo. O homem integral conhece outras situações além da sua condição histórica. Conhece, por exemplo, o estado de sonho, ou de devaneio, ou o da melancolia ou do desprendimento, ou da contemplação estética, ou da evasão etc. — e todos esses estados não são "históricos", embora sejam, para a existência humana, tão autênticos e importantes quanto a sua situação histórica. Aliás, o homem conhece vários ritmos temporais, e não somente o tempo histórico, ou seja, seu próprio tempo, a contemporaneidade histórica. Basta ele escutar uma bela música, ou apaixonar-se, ou rezar, para sair do presente histórico e reintegrar o presente eterno do amor e da religião. Basta ele abrir um romance ou assistir a um espetáculo dramático para encontrar um outro ritmo temporal — o que poderíamos chamar tempo adquirido — que, em todo o caso, não é o tempo histórico. Concluiu-se depressa demais que a autenticidade de uma existência depende unicamente da consciência de sua própria historicidade. Essa consciência histórica tem um papel bem modesto na consciência humana, sem falar das zonas do inconsciente que pertencem também ao ser humano integral. Quanto mais uma consciência estiver desperta, mais ela ultrapassará sua própria historicidade. Basta nos lembrarmos dos místicos e dos sábios de todos os tempos, e em primeiro lugar os do Oriente.
História e arquétipos Deixemos de lado as objeções que poderíamos fazer ao historicismo e ao existencialismo historicista e voltemos ao
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nosso problema, ou seja, os dilemas do historiador das religiões. Dizíamos que esse último esquece com muita freqüência que está diante de um comportamento humano arcaico e integral e que, conseqüentemente, seu papel não deveria se limitar ao registro das manifestações históricas desse comportamento. Ele deveria também se empenhar em compreender mais profundamente suas significações e articulações. Citemos um único exemplo. Sabemos hoje que certos mitos e símbolos circularam pelo mundo, propagados por certos tipos de cultura — ou seja, que esses mitos e símbolos não são descobertas espontâneas do homem arcaico, mas criações de um complexo cultural bem delimitado, elaborado e veiculado por certas sociedades humanas. Tais criações foram difundidas muito longe do seu núcleo original e foram assimiladas por povos e sociedades que de outra forma não as teriam conhecido. Acredito que, estudando do modo mais rigoroso possível as relações entre certos complexos religiosos e certas formas de cultura, e definindo as etapas da difusão desses complexos, o etnólogo tem o direito de se declarar satisfeito com os resultados das suas pesquisas. No entanto, esse não seria o caso do historiador das religiões. Uma vez aceitos e integrados os resultados da etnologia, o historiador das religiões deve se colocar outros problemas: por que tal mito ou tal símbolo puderam ser transmitidos? O que eles revelavam? Por que certos detalhes — mesmo muito importantes — se perderam durante essa difusão, enquanto outros sobreviveram? Afinal, a que respondem esses mitos e símbolos para terem uma tal difusão? Não se deve deixar essas perguntas para psicólogos, sociólogos e filósofos, pois ninguém está melhor preparado para respondê-las que o historiador das religiões. Basta termos o trabalho de estudar o problema para constatarmos que, difundidos ou descobertos espontaneamente, os símbolos, os mitos e os ritos revelam sempre uma situaçãolimite do homem, e não apenas uma situação histórica. Por situação-limite entendemos aquela que o homem descobre tomando consciência do seu lugar no Universo. É sobretudo
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esclarececendo essas situações-limite que o historiador das religiões cumpre sua missão e vai ao encontro das pesquisas da psicologia profunda e até da filosofia. Esse estudo é possível e, aliás, já foi iniciado. Ao chamar a atenção para a sobrevivência dos símbolos e temas míticos na psique do homem moderno, ao mostrar que a redescoberta espontânea dos arquétipos do simbolismo arcaico é comum a todos os seres humanos, sem diferença de raça ou de meio histórico, a psicologia profunda desvencilhou o historiador das religiões de suas últimas hesitações. Adiante daremos alguns exemplos de redescoberta espontânea de um simbolismo arcaico e veremos o que eles podem ensinar ao historiador das religiões. Mas já podemos imaginar as perspectivas que se abririam à história das religiões se ela soubesse aproveitar todas as suas descobertas e as da etnologia, da sociologia e da psicologia profunda. Encarando o estudo do homem não apenas enquanto ser histórico, mas também enquanto símbolo vivo, a história das religiões poderia tornar-se, que nos perdoem o termo, uma metapsicanálise. Pois ela nos conduziria a um despertar e a uma retomada de consciência dos símbolos e dos arquétipos arcaicos, vivos ou fossilizados nas tradições religiosas da humanidade inteira. Arriscamos o termo metapsicanálise, uma vez que se trata de uma técnica mais espiritual, utilizada principalmente para esclarecer o conteúdo teórico dos símbolos e dos arquétipos, para tornar transparente e coerente que é "alusivo", secreto ou fragmentário. Falaríamos também de uma nova maiêutica; assim como Sócrates, segundo Teeteto (149 ss., 161e), dava à luz o espírito dos pensamentos que ele continha sem saber, a história das religiões poderia dar à luz um novo homem, mais autêntico e mais completo. Pois, através do estudo das tradições religiosas, o homem moderno não somente reencontraria um comportamento arcaico como tomaria consciência da riqueza espiritual que tal comportamento implica. Essa maiêutica, realizada com a ajuda do simbolismo religioso, contribuiria também para desvencilhar o homem moderno do seu provincialismo cultural e sobretudo do relati-
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vismo historicista e existencialista, pois, como veremos, o homem se opõe à história mesmo quando se empenha em fazê-la e mesmo quando afirma não ser outra coisa que não "história". À medida que o homem transcende o seu momento histórico e dá livre curso ao seu desejo de reviver os arquétipos, ele se realiza como ser integral, universal. À medida que se opõe à história, o homem moderno redescobre as posições arquetípicas. Mesmo seu sono, mesmo suas tendências orgiásticas, são carregados de um significado espiritual. Pelo simples fato de reencontrar no fundo do seu ser os ritmos cósmicos — a alternância do dia e da noite, por exemplo, ou do inverno e do verão — ele alcança um conhecimento mais absoluto do seu destino e da sua significação. Sempre com a ajuda da história das religiões, o homem moderno poderia reencontrar o simbolismo do seu corpo, que é um antropocosmos. O que as diversas técnicas da imaginação, e especialmente as técnicas poéticas, realizaram nesse sentido não é quase nada diante das promessas da história das religiões. Todos esses dados ainda subsistem, mesmo no homem moderno; trata-se apenas de reanimá-los e trazê-los para o nível da consciência. Retomando consciência do seu próprio simbolismo antropocósmico — que é apenas uma variante do simbolismo arcaico —, o homem moderno obterá uma nova dimensão existencial, totalmente ignorada pelo existencialismo e pelo historicismo atual: um modo de ser autêntico e maior, que o defenderia do niilismo e do relativismo histórico sem por isso subtraí-lo da história. Pois a própria história poderia um dia encontrar seu verdadeiro sentido: o da epifania de uma condição humana gloriosa e absoluta. Basta lembrarmos o valor que o judeu-cristianismo deu à existência histórica para compreendermos como e em que sentido a história poderia tornar-se "gloriosa" e mesmo "absoluta". Não podemos pretender, evidentemente, que o estudo racional da história das religiões deva e possa substituir a própria experiência religiosa, e menos ainda a experiência da fé. Mas, mesmo para uma consciência cristã, a maiêutica, através da
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interpretação do simbolismo arcaico, trará seus frutos. O cristianismo herdou uma tradição religiosa muito antiga e complexa, cujas estruturas sobreviveram dentro da Igreja, embora os valores espirituais e a orientação teológica tenham mudado. De qualquer maneira, nada daquilo que através do Cosmos manifesta a Glória — para falarmos em termos cristãos — pode deixar um crente indiferente. Enfim, o estudo racional das religiões revelará um fato que não foi suficientemente assinalado até hoje: existe uma lógica do símbolo, ou seja, certos grupos de símbolos se mostram coerentes, logicamente encadeados entre si' — em suma, podemos formulá-los sistematicamente, traduzi-los em termos racionais. Essa lógica interna dos símbolos coloca um grande problema, carregado de conseqüências. Certas zonas do inconsciente individual ou coletivo são dominadas pelo logos, ou se trata de manifestações de um transconsciente? Este problema não poderia ser resolvido unicamente pela psicologia profunda, pois os simbolismos que decifram esta última são constituídos, na maior parte do tempo, de fragmentos esparsos e manifestações de uma psique em crise, se não em regressão patológica. Para captar as verdadeiras estruturas e funções dos símbolos, temos de nos referir ao inesgotável repertório da história das religiões. Mesmo assim, é preciso saber escolher, pois nossos documentos apresentam, muitas vezes, formas decadentes, aberrantes ou francamente medíocres. Se quisermos chegar a uma compreensão adequada do simbolismo religioso arcaico, seremos obrigados a fazer uma seleção — assim como, para termos uma idéia de uma literatura estrangeira, não poderemos pegar ao acaso os dez ou cem primeiros livros que acharmos numa biblioteca pública. Esperamos que um dia os historiadores das religiões façam o trabalho de hierarquizar seus documentos, levando em conta, como o fazem seus colegas historiadores das literaturas, seu valor e suas condições. Ainda assim, estamos apenas no começo. 1. Ver, mais adiante, o capítulo III: "O 'deus amarrador' e o simbolismo dos nós".
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A Imagem do mundo As sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo que as cerca como um microcosmo. Nos limites desse mundo fechado começa o domínio do desconhecido, do não-formado. De um lado, existe um espaço cosmicizado, uma vez que habitado e organizado. Do outro lado, fora desse espaço familiar, existe a região desconhecida e temível dos demônios, das larvas, dos mortos, dos estranhos — ou seja, o caos, a morte, a noite. Esta imagem de um microcosmo-mundo habitado, cercado de regiões desérticas identificadas ao caos e ao reino dos mortos, sobreviveu mesmo nas civilizações muito evoluídas, como as da China, da Mesopotâmia ou do Egito. Realmente, inúmeros textos identificam os adversários que atacavam o território nacional às larvas, aos demônios ou aos poderes do caos. Assim, os adversários do Faraó eram considerados "filhos da ruína, dos lobos, dos cães" etc. O Faraó era identificado aos deus Rá, vencedor do dragão Apófis, enquanto que seus inimigos eram identificados a esse dragão mítico'. Pelo fato de atacarem e colocarem em perigo o equilíbrio e a própria vida da cidade (ou de qualquer outro território habitado e organizado), os inimigos são identificados às forças demoníacas, pois tentam reintegrar esse microcosmo ao estado caótico, ou seja, suprimi-lo. A destruição de uma ordem estabelecida, a abolição de uma imagem arquetípica equivalia a uma regressão ao caos, ao pré-formal, ao estado não diferenciado que precedia a cosmogonia. Notemos que as mesmas imagens ainda são utilizadas atualmente quando se trata de definir os perigos que ameaçam um determinado tipo de civilização: falamos, particularmente, do "caos", da "desordem", das "trevas", que afundarão "nosso mundo". Vê-se bem que todas estas expressões significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura, e a reimersão em um estado fluido, amorfo, enfim, caótico. 2. Ver nosso livro Le mythe de l'éternel retour: archétypes et répétition (Gallimard, Paris, 1949), pp. 68 ss.
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A concepção do adversário sob a forma de um ser demoníaco, verdadeira encarnação das forças do mal, também sobreviveu até nossos dias. A psicanálise dessas imagens míticas que ainda agitam o mundo moderno poderá nos mostrar, talvez, até que ponto projetamos sobre nossos "inimigos" nossos próprios desejos destruidores. Mas este problema ultrapassa nossa competência. O que queremos esclarecer é que, para o mundo arcaico em geral, os inimigos que ameaçavam o microcosmo eram perigosos não tanto enquanto seres humanos (em si), mas porque encarnavam as forças hostis e destruidoras. É bem provável que as defesas dos lugares habitados e das cidades tenham começado como defesas mágicas; isto porque essas defesas — fossos, labirintos, muralhas etc. — eram dispostas para impedir muito mais a invasão dos maus espíritos do que o ataque dos humanos'. Até mais tarde na história, na Idade Média por exemplo, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa contra o Demônio, a doença e a morte. Aliás, o simbolismo arcaico não encontra nenhuma dificuldade em identificar o inimigo humano ao Demônio ou à Morte. Afinal, o resultado desses ataques, sejam eles demoníacos ou militares, é sempre o mesmo: a ruína, a desintegração, a morte. Todo microcosmo, toda região habitada, tem o que poderíamos chamar um "Centro", ou seja, um lugar sagrado por excelência. É nesse "Centro" que o sagrado se manifesta totalmente seja sob a forma de hierofanias elementares — como no caso dos "primitivos" (os centros totêmicos, por exemplo, as cavernas onde se enterram os tchuringas etc.) —, seja sob a forma mais evoluída de epifanias diretas dos deuses, como nas civilizações tradicionais. Mas não se deve considerar este simbolismo do Centro com as implicações geométricas do espírito científico ocidental. Para cada um desses microcosmos podem existir vários "centros". Como não tardaremos a ver, 3. Cf. W. J. Knight, Cumaean Gates (Oxford, 1936); Karl Kerényi, Labynnth-Studien (Amsterdã-Leipzig, 1941, Albae Vigilae, Heti XV).
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todas as civilizações orientais — Mesopotâmia, Índia, China etc. — conhecem um número ilimitado de "Centros". Mais ainda: cada um desses "Centros" é considerado e mesmo literalmente denominado "Centro do Mundo". Como se trata de um espaço sagrado, que é dado por uma hierofania ou construído ritualmente, e não de um espaço profano, homogêneo, geométrico, a pluralidade dos "Centros da Terra" dentro de uma única região habitada não cria nenhuma dificuldade'. Estamos em presença de uma geografia sagrada e mítica, a única efetivamente real, e não de uma geografia profana, "objetiva", de certa forma abstrata e não essencial, construção teórica de um espaço e de um mundo que não é habitado e que é por isso desconhecido. Na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência, pois, como se demonstrou recentemente', para o mundo arcaico o mito é real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o sagrado. É num tal espaço que tocamos diretamente o sagrado — quer seja ele materializado em certos objetos (tchuringas, representações da divindade etc.), ou manifestados nos símbolos hierocósmicos (Pilastra do Mundo, Árvore Cósmica etc.). Nas culturas que conhecem a concepção das três regiões cósmicas — Céu, Terra, Inferno — o "centro" constitui o ponto de intersecção dessas regiões. É aqui que é possível uma ruptura de nível e, ao mesmo tempo, uma comunicação entre essas três regiões. Temos razões para crer que a imagem dos três níveis cósmicos é bem arcaica; podemos encontrá-la, por exemplo, junto aos pigmeus Semang da península de Malaca; no centro do mundo ergue-se um enorme rochedo, Batu-Ribn; embaixo, encontra-se o Inferno. Antigamente, do Batu-Ribn um tronco de árvore elevava-se 4. Ver nosso Traia d'histoire des religions (Payot, Paris, 1949), pp. 315 ss. 5. Cf. R. Pettazzoni, Miti e leggende, 1 (Turim, 1948), p. v; id., "Verità del mito" (Studi e materiali di storia delle religioni, vol. XXI, 1947-1948, pp. 104-1 16); G. van der Leeuw, Die Bedeutung der Mythen (Festschrift FM- Alfred Bertholet, Tübingen, 1949, pp. 287-293); M. Eliade, Traité d'histoire des religions, pp. 350 ss.
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ao céu6. O inferno, o centro da terra e a "porta" do céu encontravam-se no mesmo eixo, e é por ele que se dava a passagem de uma região cósmica para outra. Hesitaríamos em acreditar na autenticidade desta teoria cosmológica junto aos pigmeus Semang se não tivéssemos de admitir que a mesma teoria já havia sido esboçada na época pré-histórica'. Os Semang dizem que antigamente um tronco de árvore ligava o alto da Montanha Cósmica, o Centro do Mundo, ao Céu. Isso é uma alusão a um tema mítico extremamente difundido: antigamente as comunicações com o Céu e as relações com a divindade eram fáceis e "naturais"; devido a um erro no ritual, essas comunicações foram interrompidas e os deuses se retiraram ainda mais para o alto nos céus. Somente os curandeiros, os xamãs, os sacerdotes e os heróis ou soberanos conseguiam restabelecer, de forma passageira e unicamente para uso próprio, as comunicações com o Céu8. O mito de um paraíso primordial perdido por causa de um erro qualquer é extremamente importante — mas, mesmo que ele se refira de certa forma ao nosso assunto, não podemos discuti-lo no momento.
Simbolismo do "Centro" Voltemos então à imagem das três regiões cósmicas unidas a um "Centro" por um eixo. É sobretudo nas civilizações paleorientais que encontramos esta imagem arquetípica. O nome dos santuários de Nippur, Larsa e Sippar era Dur-an-ki, "Vínculo entre o Céu e a Terra". Em Babilônia existiam múltiplos nomes, entre os quais "Casa da Base do Céu e da Terra", "Vínculo entre o Céu e a Terra". Mas é sobretudo em Babi6. P. Schebesta, Les pygmées (trad. fr., Paris, 1940), pp. 156 ss. 7. Cf., por exemplo, W. Gaerte, "Kosmische Vorstellungen im Bilde prãhistorischer Zeit: Erdberg, Himmelsberg, Erdnabel und Weltenstrome" (Anthropos, IX, 1914, pp. 956-979). 8. Cf. nosso Chamanisme et les techniques archaiques de l'extase (Payot, 1951).
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lônia que se dava a junção entre a Terra e as regiões inferiores, pois a cidade havia sido construída sobre bâbapsf, a "Porta de apsú" — apsii designando as águas do Caos anterior à Criação. Reencontramos esta mesma tradição entre os hebreus. O rochedo de Jerusalém penetrava profundamente nas águas subterrâneas (tehéjm). Está dito no Mishna que o Templo se encontra exatamente sobre o te/tom (equivalente hebraico de apsú). E, como em Babilônia existia a "Porta de apsii", o rochedo do Templo de Jerusalém fechava a "boca do teh6m". Encontramos tradições similares no mundo indo-europeu. Entre os romanos, por exemplo, o mundus constitui o ponto de encontro entre as regiões inferiores e o mundo terrestre. O templo itálico era a zona de intersecção dos mundos superior (divino), terrestre e subterrâneo (infernal; cf. Le mythe de l'éternel retour, pp. 32 ss.). Toda cidade oriental encontrava-se realmente no centro do mundo. Babilônia era um Ba-ildni, uma "porta dos deuses", pois era lá que os deuses desciam à Terra. A capital do soberano chinês perfeito encontrava-se perto da Árvore milagrosa "Madeira ereta", Kien-mou, lá onde se entrecruzavam as três regiões cósmicas: Céu, Terra e Inferno. E poderíamos acumular infinitamente os exemplos. Todas essas cidades, templos ou palácios considerados como Centros do Mundo não passam de réplicas, multiplicadas à vontade, de uma imagem arcaica: a Montanha Cósmica, a Árvore do Mundo ou o Pilar Central que sustentam os níveis cósmicos. O símbolo de uma Montanha, de uma Árvore ou de um Pilar situados no Centro do Mundo é extremamente difundido. Lembremo-nos do Monte Meru da tradição indiana, Haraberezaiti dos iranianos, Himingbjõr dos germanos, o "Monte dos Países" da tradição mesopotâmica, o Monte Thabor na Palestina (que poderia significar tabbur, ou seja, "umbigo", omphalos), o Monte Gerizim, sempre na Palestina, que é chamado literalmente "umbigo da Terra", o Gólgota, que para os cristãos se encontrava no centro do mundo etc. (cf. Traité, pp. 321 ss.; Le mythe de l'éternel retour, pp. 30 ss.). Pelo
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fato de o território, a cidade, o templo ou o palácio real se encontrarem no "Centro do Mundo", ou seja, no alto da Montanha Cósmica, eles eram considerados corno o lugar mais alto do mundo, o único que não foi submergido pelo dilúvio. "A terra de Israel não foi inundada pelo dilúvio", diz o texto rabínico. E, de acordo com a tradição islâmica, o lugar mais alto da Terra é a Kâ'aba, porque a "estrela polar testemunha que ela se encontra voltada para o centro do Céu" (cf. os textos em Le mythe de l'éternel retour, p. 33). O nome das torres e dos templos sagrados babilônicos testemunha a sua identificação à Montanha Cósmica, ou seja, ao Centro do Mundo: "Monte da Casa", "Casa do Monte de Todas as Terras", "Monte das Tempestades", "Vínculo entre o Céu e a Terra" etc. O ziqqurat era, na realidade, uma montanha cósmica, ou seja, uma imagem simbólica do Cosmos: os sete andares representavam os sete céus planetários; subindo, o sacerdote chegava ao cume do Universo. Esse mesmo simbolismo foi a base da enorme construção do templo de Barabudur: ele foi construído como uma montanha artificial. Sua ascensão equivalia a uma viagem extática ao Centro do Mundo; atingindo o andar superior, o peregrino realiza uma ruptura de nível; ele transcende o espaço profano e penetra na "região pura". Estamos em presença de um "rito do centro" (ver os textos no Traité, pp. 323 ss.). O cume da Montanha Cósmica não é apenas o ponto mais alto da Terra; ele é o umbigo da Terra, o ponto onde começou a criação. "O Todo Santo criou o mundo como um embrião", afirma um texto rabínico. "Da mesma forma que o embrião cresce a partir do umbigo, Deus começou a criar o mundo pelo umbigo e de lá ele se estendeu em todas as direções." "O mundo foi criado começando por Sion", diz um outro texto. O mesmo simbolismo existe na índia antiga: no Rig Veda, o Universo é concebido como se estendendo a partir de um ponto central (cf. Traité, p. 324; Le mythe, p. 36). A criação do homem, réplica da cosmologia, aconteceu igualmente em um ponto central, no Centro do Mundo. De acordo com a tradição mesopotâmica, o homem foi feito rio
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"umbigo da Terra", lá onde se encontra também Dur-an-ki, o "Vínculo entre o Céu e a Terra". Ohrmazd criou o homem primordial, Gajômard, no Centro do Mundo. O Paraíso onde Adão foi criado com o limo encontra-se, obviamente, no Centro do Cosmos. O Paraíso era o "umbigo da Terra", e, de acordo com a tradição síria, estava localizado "numa montanha mais alta que todas as outras". De acordo com o livro sírio A caverna dos tesouros, Adão foi criado no centro da Terra, no mesmo lugar onde, mais tarde, a cruz de Jesus se ergueria. As mesmas tradições foram conservadas pelo judaísmo. O apocalipse judaico e o midrash especificam que Adão foi feito em Jerusalém. Adão tendo sido enterrado no mesmo lugar onde foi criado, ou seja, no centro do mundo, sobre o Gólgota, o sangue do Senhor o perdoará também (ver Traité, pp. 323 ss.; Le mythe, pp. 32 ss.) A variante mais propagada do simbolismo do Centro é a da Árvore Cósmica que se encontra no meio do Universo e que sustenta como um eixo os três Mundos. A índia védica, a China antiga, a mitologia germânica, assim como as religiões "primitivas", conhecem, sob formas diferentes, essa Árvore Cósmica cujas raízes se prolongam até os Infernos e os galhos tocam o Céu. Nas mitologias centrais norte-asiáticas, seus sete ou nove galhos simbolizam os sete ou nove níveis celestes, ou seja, os 7 céus planetários. Não há lugar aqui para nos estendermos sobre o complexo simbolismo a Árvore do Mundo'. O que nos interessa é o seu papel nos "ritos do centro". Em geral, podemos dizer que a maioria das árvores sagradas e rituais que encontramos na história das religiões não passam de réplicas, de cópias imperfeitas deste arquétipo exemplar: a Árvore do Mundo. Ou seja, todas as árvores sagradas deveriam encontrar-se no Centro do Mundo e todas as árvores rituais ou troncos que são consagrados antes ou durante uma 9. Cf. nosso Traité, pp. 236 ss.; Le chamanisme, pp. 244 ss.; sobre o simbolismo cristão da Cruz = Árvore Cósmica, ver H. de Lubac, Aspects du bouddhisme (Paris, 1951), pp. 61 ss.
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cerimônia religiosa qualquer são projetadas magicamente no Centro do Mundo. Contentemo-nos com alguns exemplos. Na índia védica, o tronco sacrificai (yzipa) é feito de uma árvore que é identificada à Árvore Universal. Enquanto a derrubam, o sacerdote sacrificador dirige-lhe estas palavras: "Com teu cume não rasgues o Céu, com teu centro não machuques a atmosfera..." Vê-se bem que se trata aqui da Árvore do Mundo em si. Com a madeira dessa árvore, faz-se o tronco sacrificai e este se torna um tipo de sustentáculo cósmico: "Levanta-te, ó Senhor da floresta, ao cimo da terra!", assim invoca o Rig Veda III, 8, 3. "De teu cimo sustentas o Céu, de tua parte mediana enches os ares, de teu pé fortaleces a Terra", proclama o catapatha Bramana, III, 7, 1, 4. A instalação e a consagração do tronco sacrificai constituem um rito do Centro. Identificado à Arvore do Mundo, o tronco torna-se, por sua vez, o eixo que une as três regiões cósmicas. A comunicação entre o Céu e a Terra torna-se possível por intermédio desse sustentáculo. E, efetivamente, o sacrificador sobe ao céu, só ou com sua esposa, através desse tronco, transformado ritualmente em Eixo do Mundo. Colocando uma escada, o sacrificador dirige-se a sua mulher: "Venha, subamos ao Céu!" A mulher responde: "Subamos!" (Çat. Br., V, 2, 1, 9). E eles começam a subir a escada. No alto, tocando o cume, o sacrificador grita: "Alcançamos o Céu!" (Taittirfya Samhitd Çat. Br. etc.) Ou, subindo os degraus do tronco, ele estende as mãos (como um pássaro faz com as asas!) e, chegando do alto, grita: "Alcancei o Céu, ó deuses: tornei-me imortal!" (Taittiriya Samhitd, 1, 7, 9). "Na verdade, diz ainda o Taittiriya Samhitd (VI, 6, 4, 2), o sacrificador faz para si uma escada e uma ponte para alcançar o mundo celeste." A ponte ou a escada entre a Terra e o Céu eram possíveis porque elas se erigiam no Centro do Mundo, exatamente como a escada que Jacó viu em sonho e que tocava os céus. E "os anjos de Deus subiam e desciam ao longo dessa escada" (Gênese, 28, 11 ss.). O rito indiano faz também alusão à imortalidade que se obtém após a ascensão ao Céu. Como veremos
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logo mais, inúmeras outras interpretações rituais de um Centro equivalem à conquista da imortalidade. A identificação da árvore ritual à Árvore Cósmica é ainda mais transparente no xamanismo central e norte-asiático. A subida numa tal árvore, para o xamã tártaro, simboliza sua ascensão ao céu. Realmente, fazem-se sete ou nove talhos na árvore e, escalando-os, o xamã declara claramente que ele sobe ao céu. Ele descreve aos outros tudo o que vê em cada um dos níveis celestes que atravessa. No sexto céu ele venera a Lua, no sétimo céu, o Sol. Finalmente, no nono, ele se prosterna diante de Bai Ulgãn, o Ser Supremo, e lhe oferece a alma do cavalo sacrificado'''. A árvore xamânica não passa de uma réplica da Árvore do Mundo, que se ergue no meio do Universo, em cujo cume se encontra o Deus supremo ou o Deus solarizado. Os sete ou nove talhos da árvore xamânica simbolizam os sete ou nove galhos da Arvore Cósmica, ou seja, os sete ou nove céus. Aliás, o xamã sente-se solidário com essa Árvore do Mundo através de outras relações místicas. Nos seus sonhos iniciáticos, o futuro xamã deve se aproximar da Árvore Cósmica e receber das mãos do próprio Deus três galhos dessa árvore, que servirão para seus tambores". Conhecemos o papel capital desempenhado pelo tambor durante as sessões xamânicas; é sobretudo com a ajuda de seus tambores que os xamãs ascendem ao êxtase. Ora, se nos lembrarmos de que o tambor é feito da mesma madeira que a Árvore do Mundo, compreenderemos o simbolismo e o valor religioso do som do tambor xamânico: tocando-o, o xamã sente-se projetado, em êxtase, para perto da Arvore do Mundo12. 10. Cf. materiais e bibliografias no nosso livro Le chamanisme, pp. 171 ss. 11. A. A. Popov, Tavgijcy. Materialy po etnografii avamskich i vedeevskich tavgicev (Moscou-Leningrado, 1936), pp. 84 ss.; ver Le chamanisme et les techniques archaïques de l'extase, pp. 160 ss. 12. Cf. E. Emsheimer, "Schamanentrommel und Trommelbaum" (EMnos, vol. IV, 1946, pp. 166-181).
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Trata-se de uma viagem mística ao "Centro" e, em seguida, ao mais alto Céu. Assim, seja subindo em um tronco cerimonial de 7 ou 9 talhos, seja batendo no seu tambor, o xamã realiza sua viagem ao Céu. Mas ele só obtém a ruptura dos níveis cósmicos que lhe permitirá a ascensão ou o vôo extático através dos Céus por se encontrar no próprio Centro do Mundo; isto porque, como já vimos, é apenas em um tal Centro que a comunicação entre a Terra, o Céu e o Inferno é possível'.
Simbolismo da ascensão É muito provável que, pelo menos no caso das religiões centro-asiáticas e siberianas, esse simbolismo do Centro seja influenciado por esquemas cosmológicos indo-iranianos e, em última instância, mesopotâmicos. A importância do número sete, entre outros, parece prová-lo. Mas é importante distinguir bem entre o empréstimo de uma teoria cosmológica elaborada em torno do simbolismo do Centro — como seria, por exemplo, a concepção dos sete níveis celestes — e o simbolismo do centro em si. Já vimos que esse simbolismo é extremamente arcaico, que é conhecido pelos pigmeus da península de Malaca. E mesmo se suspeitarmos de uma antiga influência indiana sobre esses pigmeus Semang, restaria a explicar o simbolismo do Centro encontrado sobre os monumentos pré-históricos (Montanhas Cósmicas, os Quatros Rios, a Árvore e a Espiral etc.) Melhor ainda: mostrou-se que o simbolismo do eixo cósmico já era conhecido nas culturas arcaicas (as Urkulturen da escola Graebner-Schmidt) e antes ainda pelas populações árticas e norte-americanas. O tronco central da habitação desses povos é identificado ao Eixo Cósmico. E é na base desse tronco que se depositam as oferendas dirigidas às divindades celestes, 13. A ascensão iniciática de uma árvore cerimonial encontra-se também
no chamanismo indonesiano, sul-americano (araucano) e norte-americano (Pomo), cf. Le chamanisme, pp. 122 ss., 125 ss.
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pois é apenas através desse eixo que as oferendas podem subir ao céu'. Quando a forma da habitação muda, e a cabana é trocada pela iurta (como, por exemplo, entre os pastorescriadores da Ásia central), a função mítico-ritual do pilar central é assegurada pela abertura superior destinada à saída da fumaça. No momento dos sacrifícios, introduz-se na iurta uma árvore cujo cimo passará por essa abertura. Essa árvore sacrifical, com os seus sete galhos, simboliza as sete esferas celestes. Desta maneira, a casa é, por um lado, homologada ao Universo, e por outro, é vista como situada no Centro do Mundo, a abertura para a fumaça encontrando-se voltada para a estrela polar. Voltaremos mais adiante a esta identificação simbólica da habitação ao "Centro do Mundo", pois ela trai um dos comportamentos mais instrutivos do homem religioso arcaico. Por enquanto, detenhamo-nos nos ritos de ascensão que têm lugar em um "centro". Vimos que o xamã tártaro ou siberiano sobe em uma árvore e que o sacrificador védico sobe em uma escada. Os dois ritos têm o mesmo objetivo: a ascensão ao Céu. Um número considerável de mitos fala de uma árvore, de um cipó, uma corda, um fio de aranha ou de uma escada que ligam a Terra ao Céu, e através dos quais certos seres privilegiados sobem efetivamente ao Céu. Esses mitos têm, obviamente, suas correlações rituais — como, por exemplo, a árvore xamânica ou o tronco do sacrificador védico. A escada cerimonial desempenha igualmente um papel importante. Contentemo-nos com alguns exemplos: Polyaenus (Stratagematon, VII, 22) fala de Kosingas, sacerdote-rei de algumas populações da Trácia, que ameaçava abandonar seus discípulos, subindo em uma escada de madeira até a deusa Hera; o que prova que tal escada ritual existia e que ela deveria conduzir o sacerdote-rei até o Céu. A ascensão celeste através da subida cerimonial de uma escada provavelmente fazia parte de uma iniciação órfica. Em todo o caso, nós a reencontramos 14. Ver Le chamanisme, pp. 235 ss.
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na iniciação aos ritos de Mitra. Nos mistérios de Mitra, a escada cerimonial (climax) tinha sete degraus, cada um feito de um metal diferente. De acordo com Celso (Orígenes, Contra Celsum, VI, 22), o primeiro degrau era de chumbo e correspondia ao "céu" do planeta Saturno, o segundo de estanho (Vênus), o terceiro de bronze (Júpiter), o quarto de ferro (Mercúrio), o quinto de "ligas de moedas" (Marte), o sexto de prata (a Lua), o sétimo de ouro (o Sol). O oitavo degrau, diz Celso, representa a esfera das estrelas fixas'. Subindo essa escada cerimonial, o iniciado percorria efetivamente os sete céus, elevando-se assim até o Empíreo. Da mesma forma, subia-se ao último céu percorrendo os sete andares do ziqqurat babilônico ou atravessava-se as diferentes regiões cósmicas escalando os terraços do templo Barabudur, que constituía em si, como vimos, uma Montanha Cósmica e uma imago mundi. Compreende-se facilmente que a escada da iniciação aos mistérios de Mitra era um Eixo do Mundo e se encontrava no Centro do Universo; de outra forma, a ruptura dos níveis não teria sido possível. "Iniciação", como se sabe, quer dizer morte e ressurreição do neófito, ou, em outros contextos, descida aos Infernos seguida de ascensão ao Céu. A morte — iniciática ou não — é a ruptura de nível por excelência. É por isso que ela é simbolizada por uma escalada, e inúmeras vezes os rituais funerários utilizam escadas ou escadarias. A alma do morto percorre os caminhos de uma montanha ou sobe uma árvore, ou um cipó, até os céus. Esta concepção é encontrada quase no mundo inteiro, do Egito antigo à Austrália. A expressão habitual, em assírio, para o verbo "morrer" é: "pendurar-se à montanha". Da mesma forma, em egípcio, myny, "pendurar-se", é um eufemismo para "morrer". Na tradição mítica indiana, Yama, o primeiro morto, subiu a monta15. Cf. os materiais agrupados no nosso Chamanisme, pp. 248 ss.; para o simbolismo cristão da ascensão, ver Louis Beirnaert, "Le symbolisme ascensionnel dans la liturgie et la mystique chretiennes- (Eranos-Jahrbuch, XIX, Zurique, 1951, pp. 41-63).
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nha e percorreu "as altas trilhas" para mostrar "o caminho a muitos homens"; assim se exprime o Rig Veda (X, 14, I). O caminho dos mortos, nas crenças populares uralo-altaicas, sobe os montes; Bolot, herói Kara-Kirghiz, assim como Kesar, rei legendário dos mongóis, penetra no mundo do além por uma gruta situada no alto das montanhas, como forma de prova iniciática. A descida do xamã aos Infernos se dá igualmente através de uma gruta. Os egípcios conservaram em seus textos funerários a expressão asket pet (asket = degrau) para indicar que a escada que tinha Rá era uma escada real, que unia a Terra e o Céu. "Tenham instalada para mim a escada, para ver os deuses", diz o Livro dos Mortos. "Os deuses lhe fazem uma escada para que, servindo-se dela, ele suba ao Céu", diz ainda o Livro dos Mortos. Em inúmeras tumbas do templo das dinastias arcaicas e medievais, foram encontrados amuletos representando uma escada (maqet) ou uma escadaria. Aliás, o uso da escada funerária sobreviveu até nossos dias: várias populações asiáticas primitivas — como por exemplo, os lotos, os karens etc. — erguem sobre as tumbas escadas rituais, que servem aos mortos para subir aos Céus'. Como acabamos de ver, a escada contém um simbolismo extremamente rico, sem deixar de ser perfeitamente coerente: ela representa plasticamente a ruptura de nível que torna possível a passagem de um modo de ser a um outro; ou, colocando-nos sob o plano cosmológico, que torna possível a comunicação entre Céu, Terra e Inferno. É por isso que a escada e a escalada desempe-
nham um papel considerável tanto nos ritos e mitos de iniciação como nos ritos funerários, sem falar nos ritos de entronização real ou sacerdotal, ou nos ritos do casamento. Ora, sabese que o simbolismo da escalada e dos degraus encontra-se com freqüência na literatura psicanalítica, o que mostra que se trata de um comportamento arcaico da psique humana, e não de uma criação "histórica", uma inovação devida a 16. Ver Traité d'histoire des religions, pp. 96 ss. Le chamanisme et les techniques archaïques de l'extase, pp. 420 ss.
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certo momento histórico (por exemplo, o Egito arcaico, ou a índia védica etc.). Eu me contento com um único exemplo de redescoberta espontânea desse simbolismo primordial'. Julien Green anotou no seu Diário de 4 de abril de 1933: "Em todos os meus livros, a idéia de medo ou de qualquer outra emoção mais forte parece estar ligada de maneira inexplicável a uma escadaria. Percebi isto ontem, quando revia todos os romances que escrevi... (seguem as referências). Eu me pergunto como pude repetir tantas vezes esse fato sem perceber. Quando era criança, eu sonhava que me perseguiam numa escadaria. Minha mãe teve os mesmos medos na sua juventude; talvez tenha restado algo em mim..." Sabemos agora por que a idéia de medo estava ligada, para o escritor francês, à imagem de uma escadaria e por que todos os acontecimentos dramáticos que havia descrito nas suas obras — amor, morte, crime — haviam acontecido em uma escada. A escalada ou ascensão simbolizam o caminho rumo à realidade absoluta; e, na consciência profana, a compreensão dessa realidade provoca um sentimento ambíguo de medo e felicidade, de atração e repulsa etc. As idéias de santificação, de morte, de amor e de libertação estão implícitas no simbolismo da escada. Realmente, cada um desses modos de ser representa a abolição da condição humana profana, ou seja, uma ruptura de nível ontológico: através do amor, da morte, da santidade, do conhecimento metafisico, o homem passa, como diz a Brihadâranyaka Upanisad, do "irreal para a realidade". Porém, não se deve esquecer que a escada simboliza todas estas coisas porque ela existe em um "centro", porque ela torna possível a comunicação entre os diferentes níveis do ser; enfim, porque ela não passa de uma forma concreta da escada mítica, do cipó ou do fio de aranha, da Árvore Cósmica ou do Pilar Universal que unem as três regiões cósmicas. 17. Ver nosso estudo Durohdna and the "Waking Dream" (Art and thought, A volume in honour of the late Dr. Ananda K. Coomaraswamy, Londres, 1947, pp. 209 ss.)
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Construção de um "Centro" Vimos que não só os templos supostamente se encontravam no "Centro do Mundo", mas que todo lugar sagrado, todo lugar que manifestava uma inserção do sagrado no espaço profano, era também considerado como um "centro". Esses espaços sagrados também podiam ser construídos. Mas sua construção era, de certa forma, uma cosmogonia, uma criação do mundo; até aí, nada de anormal, pois, como vimos, o mundo foi criado a partir de um embrião, de um "centro". Assim, por exemplo, a construção do altar védico do fogo reproduzia a criação do mundo, e o altar era em si um microcosmo, uma imago mundi. A água na qual se faz a argila, nos diz Çatapatha Brdhmana (1, 9, 2, 29; VI, 5, 1 ss. etc.), é a Água primordial; a argila que serve de base ao altar é a Terra; as paredes laterais representam a Atmosfera etc. (Talvez fosse preciso acrescentar que esta construção implica igualmente uma construção do Tempo Cósmico, mas não temos espaço para abordar este problema aqui; cf. Le mythe de l'éternel retour, pp. 122 ss.) Seria então inútil insistir: a história das religiões conhece um número considerável de construções rituais de um "Centro". Notemos apenas uma coisa importante a nosso ver: à medida que os antigos lugares sagrados, templos, ou altares, perdem sua eficácia religiosa, descobrem-se e aplicam-se outras formas geomânticas, arquiteturais ou iconográficas, que, afinal, representam, às vezes de maneira bastante surpreendente, o mesmo simbolismo do "Centro". Daremos um único exemplo: a construção e a função da mandala' . Este termo quer dizer "círculo"; as traduções tibetanas o definem tanto como "centro" como por "o que rodeia". Na realidade, uma mandala representa toda uma série de círculos, concêntricos 18. Ver nosso livro Techniques du yoga (Gallimard, 1948), pp. 185 ss.; Giuseppe Tucci, Teoria e pratica dei mandala (Roma, 1949); sobre o simbolismo da mandala, ver C. G. Jung, Psychologie und Alchemie (Zurique, 1944), pp. 139 ss.; id., Gestaltungen des Unbewussten (Zurique, 1950), pp. 187 ss.
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ou não, inscritos em um quadrado; nesse diagrama, desenhado sobre a terra com fios coloridos ou pó de arroz colorido, posicionam-se as diferentes divindades do panteão tântrico. A mandala representa, desta forma, uma imago mundi e, ao mesmo tempo, um panteão simbólico. A iniciação do neófito consiste, entre outras coisas, em penetrar nas diferentes regiões e ascender aos diferentes níveis da mandala. Este rito de penetração pode ser considerado equivalente ao rito bem conhecido da caminhada em torno de um templo (pradakshina), ou da ascensão progressiva, de terraço em terraço, até as "terras puras" do plano superior do templo. Por outro lado, a inserção de um neófito em uma mandala pode ser homologada à iniciação pela entrada em um labirinto; certas mandalas têm, inclusive, um caráter claramente labiríntico. A função da mandala pode ser considerada pelo menos dupla, como a do labirinto. De um lado, a inserção em uma mandala desenhada sobre o solo equivale a um ritual de iniciação; por outro lado, a mandala "defende" o neófito de toda força exterior nociva e ajuda-o ao mesmo tempo a se concentrar, a achar o seu próprio "centro". Mas, visto do alto ou em projeção sobre um plano, qualquer templo indiano é uma mandala. Qualquer templo indiano é, como a ?nandaia, ao mesmo tempo um microcosmo e um panteão. Por que construir então uma mandala? Por que essa necessidade de um novo "Centro do Mundo"? Simplesmente porque, para certos devotos, que sentiam a necessidade de uma experiência religiosa mais autêntica e mais profunda, o ritual tradicional se achava fossilizado: a construção de um altar do fogo ou a ascensão dos terraços de um templo não mais lhes permitia reencontrar seu "Centro". Diferente do homem arcaico ou do homem védico, o homem tântrico tinha necessidade de uma experiência pessoal para reanimar na sua consciência certos símbolos primordiais. Aliás, é por isso que certas escolas tântricas renunciaram à mandala exterior e recorreram a mandalas interiorizadas. Estas podem ser de dois tipos: I?) uma construção puramente mental, que tem o papel de "suporte" de meditação; ou 2?) uma identificação da mandala
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em seu próprio corpo. No primeiro caso, o Togue se introduz mentalmente no interior da mandala e realiza então um ato de concentração e ao mesmo tempo de "defesa" contra as distrações e as tentações. A mandala "concentra": ela preserva da dispersão, da distração. A identificação da mandala em seu próprio corpo trai o desejo de identificar sua fisiologia mística a um microcosmo. Uma análise mais detalhada da penetração, através das técnicas iogues no interior do que poderíamos chamar seu "corpo místico", acabaria por nos distanciar demais. Basta dizer que a reanimação sucessiva dos cakras, dessas "rodas" (círculos), que são consideradas como tantos pontos de intersecção da vida cósmica e da vida mental, a reanimação dos cakras é homóloga da penetração iniciática no interior de uma mandala. O despertar da Kundalini equivale à ruptura do nível ontológico, ou seja, à realização plena e consciente do simbolismo do "Centro". Como acabamos de ver, a mandala pode ser ao mesmo tempo, ou sucessivamente, o suporte de um ritual concreto, ou de uma concentração espiritual, ou ainda de uma técnica de fisiologia mística. Essa polivalência, essa capacidade de se manifestar em planos múltiplos, ainda que correspondentes, é uma característica do simbolismo do Centro em geral. Isso é fácil de compreender: todo ser humano tende, mesmo inconscientemente, para o Centro e para seu próprio Centro, que lhe dará a realidade integral, a "sacralidade". Esse desejo profundamente enraizado no homem de encontrar-se no próprio coração do real, no Centro do Mundo, onde se dá a comunicação com o Céu, explica o uso imoderado dos "Centros do Mundo". Vimos anteriormente que a habitação humana era identificada ao Universo, sendo a lareira ou a abertura feita para a saída da fumaça identificada com o Centro do Mundo. Dessa forma, todas as casas — assim como todos os templos, os palácios, as cidades — estão situadas em um único e mesmo ponto comum, o Centro do Universo. Mas não há aqui uma certa contradição? Todo um conjunto de mitos, de símbolos e de rituais estão de acordo quanto
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à dificuldade que existe em penetrar em um centro; e, por outro lado, ao contrário, uma série de outros mitos e ritos estabelecem que esse Centro é acessível. Por exemplo, a peregrinação aos Lugares Santos é dificil, mas qualquer visita a uma igreja é uma peregrinação. A Árvore Cósmica é, por um lado, inacessível, mas, por outro lado, ela pode ser encontrada em toda iurta. O itinerário que conduz ao "Centro" está cheio de obstáculos, e no entanto cada cidade, cada templo, cada casa, encontra-se no Centro do Universo. Os sofrimentos e as "provações" vivenciados por Ulisses são fabulosos e, no entanto, qualquer volta ao lar "equivale" ao retorno de Ulisses a Ítaca. Tudo isso parece mostrar que o homem só pode viver em um espaço sagrado, no "Centro". Observa-se que um conjunto de tradições confirma o desejo do homem de se encontrar sem esforço no "Centro do Mundo", enquanto que um outro grupo insiste na dificuldade e em seguida no mérito que existe em poder ter ali penetrado. Não nos interessa aqui estabelecer a história de cada uma dessas tradições. O fato de que a primeira entre elas — a que permite a construção do "Centro" na própria casa do homem, a da "facilidade" — encontra-se em quase todo lugar, convida-nos a considerá-la como a mais significativa. Ela coloca em evidência certa situação humana que poderíamos chamar nostalgia do paraíso. Compreendemos por isso o desejo de se encontrar sempre e sem esforço no Centro do Mundo, no coração da realidade, e, enfim, de ultrapassar de uma maneira natural a condição humana e de reencontrar a condição divina. Um cristão diria: a condição anterior à queda i'. Não gostaríamos de terminar esta análise sem ter citado um mito europeu que, mesmo tratando de maneira indireta o simbolismo e os ritos do Centro, permite integrá-los em um simbolismo ainda mais vasto. Trata-se de um detalhe da lenda de Percival e do Rei Pescador". Lembramos a misteriosa doen19. Cf. Traia d'historie des religions, pp. 326 ss.; Le chamanisme, pp. 417, 428 ss. 20. Perceval, ed. Hucher, p. 466; Jessie L. Weston, From Ritual to Romance (Cambridge, 1920), pp. 12 ss.; o mesmo motivo mítico pode ser encontrado no ciclo de sir Gawain (Weston, ibid.).
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ça que paralisou o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás, ele não era o único que sofria; tudo em torno de si desabava, desmoronava: o palácio, as torres, os jardins; os animais não mais se reproduziam, as árvores não davam mais frutos, as fontes secavam. Inúmeros médicos tinham tentado tratar o Rei Pescador — sem o menor resultado. Dia e noite chegavam os cavaleiros, e todos começavam por perguntar as novidades sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro — pobre e desconhecido, até um pouco ridículo — permitiu-se ignorar o cerimonial e a cortesia. Seu nome era Percival. Sem levar em conta o cerimonial da corte, ele se dirige diretamente ao Rei e, aproximando-se dele, sem nenhum preâmbulo, pergunta-lhe: "Onde está o Graal?" No mesmo momento, tudo se transforma: o Rei levanta-se do seu leito de sofrimento, os rios e as fontes recomeçam a jorrar, a vegetação renasce, o castelo se restaura milagrosamente. As poucas palavras de Percival tinham sido suficientes para regenerar toda a Natureza. Mas essas poucas palavras constituíam a questão central, o único problema que podia interessar não só ao Rei Pescador mas também ao Cosmos inteiro: onde se achava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém havia pensado, antes de Percival, em formular esta pergunta central — e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e ausência de desejo do real. Este pequeno detalhe de um grandioso mito europeu revela-nos pelo menos um lado desconhecido do simbolismo do Centro: não só existe uma íntima solidariedade entre a vida universal e a salvação do homem, mas basta se colocar o problema da salvação, basta formular o problema central, ou seja, o problema, para que a vida cósmica se regenere para sempre.
CAPÍTULO II
SIMBOLISMOS INDIANOS DO TEMPO E DA ETERNIDADE Função dos mitos Os mitos indianos, antes de serem "indianos", são "mitos", ou seja, eles fazem parte de uma categoria particular de criações espirituais da humanidade arcaica; conseqüentemente, eles podem ser comparados a qualquer outro grupo de mitos tradicionais. Antes de apresentar a mitologia indiana do Tempo, é importante lembrarmos rapidamente as relações íntimas existentes entre o Mito em si, como forma original do espírito, e o Tempo, pois, além das funções específicas que cumpre nas sociedades arcaicas, e sobre as quais não há necessidade de nos atermos aqui, o mito é importante também pelas revelações que nos fornece sobre a estrutura do Tempo. Como se admite hoje, um mito narra os acontecimentos que se sucederam in principio, ou seja, "no começo", em um instante primordial e atemporal, num lapso de tempo sagrado. Esse tempo mítico ou sagrado é qualitativamente diferente do tempo profano, da contínua e irreversível duração na qual está inserida nossa existência cotidiana e dessacralizada. Ao narrar um mito, reatualizamos de certa forma o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos. (Aliás, é por isso que nas sociedades tradicionais não se podem narrar os
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mitos a qualquer hora, nem de qualquer maneira: pode-se narrá-los apenas durante os períodos sagrados, na mata e durante a noite, ou em torno do fogo antes ou depois dos rituais etc.) Em suma, supõe-se que o mito aconteça em um tempo — se nos permitem a expressão — intemporal, em um instante sem duração, como certos místicos e filósofos concebem a eternidade. Esta constatação é importante, pois dela resulta que a narração de um mito não é sem conseqüência para aquele que o recita ou para aqueles que o ouvem. Pelo simples fato da narração de um mito, o tempo profano é — pelo menos simbolicamente — abolido: narrador e auditório são projetados num tempo sagrado e mítico. Tentamos mostrar em um outro estudo que a abolição do tempo profano através da imitação de modelos exemplares e da reatualização dos acontecimentos míticos representa uma nota específica de toda sociedade tradicional, e que apenas esta nota já bastaria para diferenciar o mundo arcaico das nossas sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais, havia um esforço, consciente e voluntário, de abolir periodicamente o Tempo, apagar o passado e regenerar o Tempo por uma série de rituais que reatualizavam de certa forma a cosmogonia. Não vemos necessidade de entrar aqui em análises que nos afastariam muito do nosso tema. Contentemo-nos em lembrar que um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, "histórico" — e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o Tempo Sagrado. Pelo simples fato de ouvir um mito, o homem esquece sua condição profana, sua "situação histórica", como temos o háI. Ver Le mythe de l'éternel retour: archétypes et répétition (Paris, Gailimard, 1949), pp. 83 ss. e passim.
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bito de dizer atualmente. Não é absolutamente necessário fazer parte de uma civilização histórica para dizer que alguém se acha numa "situação histórica". O australiano que se alimenta de insetos e de raízes também se encontra em uma "situação histórica", ou seja, numa situação bem delimitada, expressada por uma certa ideologia e sustentada por um certo tipo de organização social e econômica. Neste caso, a existência do australiano representa muito provavelmente uma variante da situação histórica do homem paleolítico, pois a expressão "situação histórica" não implica necessariamente "a história" no sentido mais amplo do termo; ela implica apenas a condição humana em si, ou seja, uma condição regida por um certo sistema de comportamentos. Ora, tanto um australiano como um indivíduo pertencente a uma civilização muito mais evoluída, um chinês por exemplo, ou um hindu, ou um fazendeiro de um país europeu, ao ouvir um mito, esquecem de certa forma sua situação particular e são projetados em um outro mundo, em um Universo que não é mais seu pequeno e pobre Universo cotidiano. Lembremos que, para cada um desses indivíduos, tanto para o australiano como para o chinês, o hindu e o camponês europeu, os mitos são verdadeiros porque são sagrados, porque falam de Seres e de acontecimentos sagrados. Conseqüentemente, narrando ou ouvindo um mito, retomamos o contato com o sagrado e com a realidade, e dessa maneira ultrapassamos a condição profana, a "situação histórica". Em outros termos, ultrapassamos a condição temporal e a obtusa suficiência, que são o fardo de todo ser humano, pelo simples fato de ele ser "ignorante", ou seja, de identificar a si e ao Real com a sua própria situação particular. Pois a ignorância está em primeiro lugar nesta falsa identificação do Real com o que cada um de nós parece ser ou parece possuir. Um político acredita que a única e verdadeira realidade é o poder político, um milionário está convencido de que apenas a riqueza é real, um erudito pensa a mesma coisa de suas pesquisas, de seus livros, de seus laboratórios, e assim por diante. Encontra-se
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igualmente a mesma tendência nos menos civilizados, nos "primitivos" e nos "selvagens". Com a diferença de que para eles os mitos ainda estão vivos e, conseqüentemente, eles os impedem de se identificarem completa e continuamente com a não-realidade. A recitação periódica dos mitos derruba os muros construídos pelas ilusões da existência profana. O mito reatualiza continuamente o Grande Tempo e dessa forma projeta quem o ouve a um plano sobre-humano e sobre-histórico que, entre outras coisas, proporciona a abordagem de uma Realidade impossível de ser alcançada no plano da existência individual profana.
Mitos indianos do Tempo Certos mitos indianos ilustram de modo particularmente feliz esta função capital de "quebrar" o tempo individual e histórico e de atualizar o Grande Tempo mítico. Daremos um exemplo famoso, tirado do Brahmavaivarta Purâna, e que o falecido Heinrich Zimmer resumiu e comentou no seu livro Myths and Symbols in Indian Art and Civilization2 . Esse texto tem o mérito de introduzir o Grande Tempo como um instrumento do saber e também de libertação dos vínculos da Mâyâ. Após sua vitória sobre o dragão Vrtra, Indra decide refazer e embelezar a residência dos deuses. Viçvakarman, o artesão divino, consegue construir, após um ano de trabalho, um palácio magnífico. Porém, Indra não se mostra satisfeito: ele quer aumentar ainda mais a construção, torná-la mais majestosa, sem equivalente no mundo. Esgotado pelo esforço, Viçvakarman queixou-se a Brahma, o Deus Criador. Este promete ajudá-lo e intervém junto a Visnu, o Ser Supremo, do qual o 2. Ver Heinrich Zimmer, Myths and Symbols in Indian Art and Civilization (editado por Joseph Campbell, Nova York, 1946, The Bollingen Series, VI), pp. 3 ss.
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próprio Brahma era um simples instrumento. Visnu se encarrega de fazer Indra voltar à realidade. Um belo dia, Indra recebe em seu palácio a visita de um rapaz esfarrapado. Era Visnu, que tinha tomado esse aspecto para humilhar o Rei dos Deuses. Sem revelar-lhe a identidade, ele o chama "minha criança" e começa a falar-lhe dos inúmeros Indras que haviam povoado até então os inúmeros universos. "A vida e o reinado de um Indra, diz ele, duram 71 éons (um ciclo, um mahriyuga, compreende 12.000 anos divinos, ou seja, 4.320.000 anos); um dia e uma noite de Brahma equivalem a 28 existências de Indra. Mas a existência de um Brahma, medida em tais dias e noites de Brahma, seria de 108 anos. Um Brahma segue um outro Brahma; um se deita, o outro se levanta. Não podemos contá-los. Não há fim para o número desses Brahmas — sem falar dos Indras!... "Mas quem estimaria o número de universos, cada um possuindo seu Brahma e seu Indra? Além da mais longínqua visão, muito além de todo espaço imaginável, os universos nascem e desaparecem indefinidamente. Como embarcações ligeiras, esses universos flutuam sobre a água pura e sem fundo que forma o corpo de Visnu. De cada poro desse corpo um universo sobe um instante e explode. Teríeis a presunção de contá-los? Credes poder enumerar os deuses de todos esses universos — os universos presentes e os universos passados?..." Durante o discurso do rapaz, uma procissão de formigas aparecera na grande sala do palácio. Arrumadas numa coluna larga de dois metros, a massa de formigas desfilava sobre o chão. O rapaz as percebe, pára, e, tomado de surpresa, cai num riso espontâneo. "Por que estás rindo?", pergunta-lhe Indra. — "Vi formigas, Indra, desfilando em uma longa parada. Cada uma havia sido outrora um Indra. Como vós, pela virtude da piedade, cada uma subira outrora à posição de um Rei dos Deuses. Porém agora, múltiplas transmigrações, cada uma voltou a ser formiga. Esse exército de formigas é um exército de antigos Indras..."
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Após esta revelação, Indra compreende a futilidade do seu orgulho e de suas ambições. Ele chama o admirável arquiteto Viçvakarman, recompensa-o abundantemente e renuncia para sempre a aumentar o palácio dos deuses. A intenção desse mito é transparente. A evocação vertiginosa dos inumeráveis universos surgindo e desaparecendo do corpo de Visnu basta, em si, para despertar Indra: ou seja, forçá-lo a ultrapassar o horizonte limitado e estritamente condicionado de sua "situação" de Rei dos Deuses. Teríamos até a tentação de acrescentar: de sua "situação histórica", pois Indra é o Grande Chefe guerreiro dos deuses em certo momento histórico, em certa etapa do grandioso drama cósmico. Indra escuta da própria boca de Visnu uma história verdadeira: a verdadeira história da eterna criação e destruição dos mundos, ao lado da qual sua história e as inúmeras aventuras heróicas culminando nas vitórias sobre Vrtra parecem ser, de fato, "histórias falsas", ou seja, acontecimentos sem uma significação transcendente. A história verdadeira lhe revela o Grande Tempo, o tempo mítico, que é a verdadeira fonte de todo o ser e de todo acontecimento cósmico. Eis como ele consegue ultrapassar sua "situação" historicamente condicionada e rasgar o véu ilusório criado pelo tempo profano, ou seja, é por sua própria "história" que Indra é curado de seu orgulho e de sua ignorância; em termos cristãos, ele é "salvo". E esta função redentora do mito não é válida apenas para Indra, mas também para cada um dos humanos que ouve sua aventura. Transcender o tempo profano, reencontrar o Grande Tempo mítico, equivale a uma revelação da realidade última. Realidade estritamente metafísica, que não pode ser abordada de outra maneira senão através dos mitos e símbolos. Esse mito tem uma continuação, à qual voltaremos. Por enquanto, especifiquemos que a concepção do Tempo cíclico e infinito, apresentada de modo tão surpreendente por Visnu, é a concepção pan-indiana dos ciclos cósmicos. A crença na criação e na destruição periódicas do Universo encontra-se
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já na Atharva Veda (X, 8, 39-40). Aliás, ela pertence à Weltanschauung de todas as sociedades arcaicas.
A doutrina dos "yugas" A Índia elaborou, contudo, uma doutrina dos ciclos cósmicos ampliando em proporções cada vez mais aterradoras o número das criações e destruições periódicas do Universo. A menor unidade de medida do ciclo é o yuga, a "idade". Um yuga é precedido e seguido por uma "aurora" e um "crepúsculo" que ligam as "idades" entre si. Um ciclo completo ou mahayuga compõe-se de quatro "idades" de durações diferentes, a mais longa localizada no começo do ciclo e a mais curta em sua conclusão. Os nomes dessesyugas são tirados das designações dadas aos "lances" no jogo de dados. Krta yuga (do verbo kr, "fazer, realizar") quer dizer Y "idade realizada"; ou seja, no jogo de dados, o lance que ganha, aquele que tira o dado com quatro pontos, pois, na tradição indiana, o número quatro simboliza a totalidade, a plenitude e a perfeição. O krta yuga é a idade perfeita; por isso, é também chamado satya yuga, ou seja, a "idade real", a verdadeira, a autêntica, a perfeita. Sob todos os pontos de vista, é a idade de ouro, a época beatífica na qual reinam a justiça, a felicidade, a opulência. Durante o krta yuga, a ordem moral do Universo, o dharma, é respeitada na sua integridade. Além disso, ela é respeitada espontaneamente, sem constrangimento, por todos os seres, pois, durante o krta yuga, o dharma se identifica de certa forma à existência humana. O homem perfeito do krta yuga encarna a norma cósmica e conseqüentemente a lei moral. Sua existência é exemplar, arquetípica. Em outras tradições, extra-indianas, esta idade de ouro equivale à época paradisíaca primordial. A idade seguinte, o treta yuga, a "tríade", assim chamada por causa do dado de três pontos, já assinala uma regressão. Os humanos seguem apenas os três quartos do dharma. O tra-
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balho, o sofrimento e a morte são então o apanágio dos homens. O dever não é mais espontâneo, mas deve ser aprendido. Os modos de ser próprios às quatro castas começam a ser alterados. Com o dviipara yuga (a "idade" caracterizada por "dois"), sobre a terra subsiste apenas a metade do dharma. Os vícios e desgraças aumentam, a duração da vida humana diminui. No kali yuga, a "idade ruim", só resta um quarto do dharma. O termo kali significa o dado marcado por um único ponto, conseqüentemente o lance que perde (aliás personificado por um gênio mau); kali significa também "briga, discórdia", e, em geral, o pior de um grupo de seres ou de objetos. O homem e a sociedade alcançam, no kali yuga, seu ponto extremo de desintegração. De acordo com Visnu Purdna (IV, 24), reconhece-se a síndrome do kali yuga pelo fato de que durante essa época só a propriedade confere a posição social, a riqueza torna-se a única fonte de virtude, a paixão e a luxúria são os únicos laços entre os esposos, a falsidade e a mentira a única condição para o sucesso na vida, a sexualidade o único meio de prazer, e a religião exterior, unicamente ritualista, é confundida com a espiritualidade. Há vários milênios, vivemos, obviamente, no kali yuga. Os números 4, 3, 2 e 1 designam, ao mesmo tempo, a duração decrescente de cada yuga e a diminuição progressiva do dharma que subsiste, à qual corresponde uma diminuição da duração da vida humana, acompanhada, como vimos, de um relaxamento progressivo dos bons costumes e de um declínio contínuo da inteligência. Certa escola indiana, como o Pálicarâtra, relaciona à teoria dos ciclos uma doutrina da "queda do conhecimento" Viana bramça). Podemos calcular de diversas maneiras a duração relativa de cada um desses quatro yugas: tudo depende do valor que daillos aos anos, ou seja, se estamos tratando de anos humanos, ou de anos "divinos" que compreendem cada um 360 anos. Contentemo-nos com alguns exemplos. De acordo com certas fontes (Manu, I, 69 ss.; Mahâbhârata, 111, 12. 826), o krta yuga dura 4.000
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anos, mais 400 anos de "aurora" e o mesmo de "crepúsculo"; vêm em seguida tretâ yuga, de 3.000 anos; dvâpara, de 2.000; e kali yoga, de 1.000 anos (mais as "auroras" e os "crepúsculos" correspondentes, obviamente). Um ciclo completo, um mahâyuga, compreende, conseqüentemente, 12.000 anos. A passagem de umyuga a outro dá-se no decorrer de um "crepúsculo" que marca um decrescendo dentro de cadayuga, cada um deles terminando por uma etapa de trevas. À medida que nos aproximamos do fim do ciclo, ou seja, do quarto e último yuga, as "trevas" aumentam. O últimoyuga, esse em que nos encontramos atualmente, é considerado, aliás, a "idade das trevas" por excelência, pois, através de um jogo de palavras, foi posto em relação com a deusa Kâli, quer dizer, "a negra". Kâli é um dos múltiplos nomes da Grande Deusa, da Çakti, esposa do deus Çiva. Não podemos deixar de relacionar o nome da Grande Deusa do termo sânscrito kâla, "tempo": Kâli seria não apenas "a negra", mas também a personificação do Tempo'. Qualquer que seja essa etimologia, relação entre Mia, o "Tempo", a deusa Kâli e kali yoga é aceitável sob o plano da estrutura: o Tempo é "negro" porque é irracional, duro, sem piedade, e Kâli, como todas as outras Grandes Deusas, é a senhora do Tempo, dos destinos que forja e realiza. Um ciclo completo, um mahâyuga, termina por uma "dissolução", um pralaya, que se repete de forma mais radical (mahâpralaya, a "Grande Dissolução") no fim do milésimo ciclo. Pois a especulação posterior amplificou e reproduziu infinitamente o ritmo primordial: "criação-destruição-criação", projetando a unidade de medida, o yuga, em ciclos cada vez mais amplos. Os 12.000 anos de um mahâyuga foram considerados como "anos divinos", cada um deles durando 360 anos, o que dá um total de 4.320.000 anos para um único ciclo cósmico. Mil mahâyugas desse tipo constituem um kalpa ("forma"); 14 kalpas formam um manvantâra. (Nós o chamamos assim por3. Cf. J. Przyluski, "From the Great Goddess to Kâla" (Indian Historical Quarterly, 1938, pp. 267 ss.).
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que se supõe que cada manvantara é regido por um Manu, o Velho-Rei mítico.) Um kalpa equivale a um dia da vida de Brahma; um outro kalpa a uma noite. Cem desses "anos" de Brahma, ou seja, 311.000 bilhões de anos humanos, constituem a vida do deus. Mas esta duração considerável da vida de Brahma não consegue, mesmo assim, esgotar o Tempo, pois os deuses não são eternos e as criações e destruições cósmicas prosseguem ad infinitum. O que convém reter dessa avalancha de números é o caráter cíclico do tempo cósmico. Na realidade, assistimos à repetição infinita do mesmo fenômeno (criação-destruição-nova criação) pressentido em cadayuga ("aurora" e "crepúsculo"), mas completamente realizada por um mahdyuga. A vida de Brahma compreende assim 2.560.000 desses mahdyuga, cada um retomando as mesmas etapas (krta, treta', dvdpara, kali) e terminando por um pralaya, e por um ragnarõk (a destruição "definitiva", no sentido da dissolução total do Ovo Cósmico, acontecendo no fim de cada kalpa, no momento do mahopralaya. Assinalemos que o mahâpralaya implica a regressão de todas as "formas" de todos os modos de existência no prakrti original indiferenciado. No plano mítico, nada subsiste além do Oceano Primordial, sobre cuja superfície dorme o Grande Deus, Visnu). Além da depreciação metafísica da vida humana enquanto história' — que, proporcionalmente e pelo simples fato da sua duração, provoca uma erosão de todas as formas, esgotando sua substância ontológica — e além do mito da perfeição dos princípios, tradição universal que reencontramos também aqui (mito do paraíso que é gradualmente perdido, pelo simples fato de que ele se realiza, toma forma e perdura), o que merece reter nossa atenção nessa orgia de números é a eterna repetição do ritmo fundamental do Cosmos: sua destruição e sua re-criação periódicas. Desse ciclo sem começo nem fim, que é a manifestação cósmica de mâyd, o homem só pode se desprender 4. Sobre tudo isso, ver Le mythe de l'éternel retour, pp. 170 ss. e passim.
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através de um ato de liberdade espiritual (pois todas as soluções soteriológicas indianas se reduzem à libertação antes de mais nada da ilusão cósmica e à liberdade espiritual). As duas grandes heterodoxias, o budismo e o jainismo, aceitam em suas grandes linhas a mesma doutrina pan-indiana do tempo cíclico, e o comparam a uma roda de doze raios (esta imagem já é utilizada nos textos védicos; cf. Atharva Veda, X, 8, 4, Rig Veda, I, 164, 115 etc.). O budismo adota como unidade de medida dos ciclos cósmicos o kalpa (páli: kappa), dividido em um número variável do qúe os textos chamam de "incalculáveis" (asamkhyeya; páli asankheyya). As fontes pális falam em geral de quatro asankheyya e de cem mil kappa (cf., por exemplo, frilaka, I, p. 2). Na literatura maha:yana, o número de "incalculáveis" varia entre 3, 7 e 33, e são relacionados à carreira do Boddhisattva nos diferentes Cosmos. A decadência progressiva do homem é marcada na tradição budista por uma diminuição contínua da duração da vida humana. Assim, de acordo com Dighanikdya, II, 2-7, na época do primeiro Buda, Vipassi, que fez sua aparição há 91 kappa, a duração da vida humana era de 80.000 anos; na do segundo Buda, Sikhi (há 31 kappa), de 70.000 anos, e assim por diante. O sétimo Buda, Gautama, fez sua aparição quando a vida humana era apenas de cem anos, ou seja, reduzida a seu limite extremo. (Reencontraremos os mesmos temas nos apocalipses iranianos.) No entanto, para o budismo, como para a especulação indiana inteira, o tempo é ilimitado; e o Boddhisattva se encarnará, a fim de anunciar a boa nova da salvação a todos os seres, in aeternum. A única possibilidade de sair do tempo, de quebrar o círculo de ferro das existências, é a abolição da condição humana e a obtenção do Nirvana. Aliás, todos esses "incalculáveis" e todos esses éons sem-número têm também uma função soteriológica: a simples contemplação do seu panorama aterroriza o homem e o força a "compreender" que ele deve recomeçar milhares de vezes essa mesma existência efêmera e suportar os mesmos sofrimentos sem fim, o que tem por efeito exacerbar sua vontade de fuga, de incitá-lo a transcender definitivamente sua condição de "existente".
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Tempo cósmico e História Detenhamo-nos um instante sobre este ponto específico: a visão do Tempo infinito, do ciclo sem fim das criações e da destruição dos Universos, e, em último lugar, o mito do eterno retorno, valorizado como "instrumento de saber" e meio de libertação. Na perspectiva do Grande Tempo, toda existência é precária, efêmera, ilusória. Considerada no plano dos ritmos cósmicos maiores, ou seja, no plano dos mahdyuga, dos kalpa, dos manvantâra, não apenas a existência humana e a própria história — com todos os seus inúmeros impérios, dinastias, revoluções e contra-revoluções — mostram-se efémeros, de uma certa forma irreais, mas o Universo em si é vazio de realidade, pois, como vimos, os Universos nascem continuamente dos inumeráveis poros do corpo de Visnu e desaparecem rapidamente como uma bolha de ar que explode na superfície das águas. A existência no Tempo é ontologicamente uma inexistência, uma irrealidade. É neste sentido que se deve compreender a afirmação do idealismo indiano, e em primeiro lugar do Vedanta, de que o mundo é ilusório, de que lhe falta realidade, pois sua duração é limitada, e, na perspectiva do eterno retorno, é uma não-duração. Essa medida é irreal, não porque não exista no sentido próprio do termo, ou porque seja uma ilusão dos nossos sentidos; ela não é uma ilusão: neste momento preciso ela existe — mas é ilusória na medida em que não existirá mais daqui a dez ou cem mil anos. O mundo histórico, as sociedades e civilizações duramente construídas pelo esforço de milhares de gerações, tudo isso é ilusório, pois, no plano dos ritmos cósmicos, o mundo histórico dura o espaço de um instante. O vedanta, o budista, o rsi, o iogue, o sâdhu etc., tirando as conclusões lógicas da lição do Tempo Infinito e do Eterno Retorno, renunciam ao mundo e procuram a Realidade Absoluta, pois somente o conhecimento do Absoluto os ajuda a se libertar da ilusão, a rasgar o véu de Mâyâ.
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Mas a renúncia ao mundo não é a única conseqüência que um indiano pode tirar da descoberta do Tempo cíclico infinito. Como começamos a compreender melhor atualmente, a índia não conheceu unicamente a negação e a rejeição total do mundo. Sempre partindo do dogma da irrealidade essencial do Cosmos, a espiritualidade indiana elaborou também um caminho que não leva necessariamente à ascese e ao abandono do mundo. É, por exemplo, o caminho que ensina Krsna no Bhagavad-Gftd5: a phalatrsnavairdgya, ou seja, a "renúncia aos frutos de suas ações", aos benefícios que se pode tirar dessas ações, mas não à ação em si. É o caminho que nos esclarece a continuação do mito de Visnu e de Indra, cuja aventura narramos anteriormente. De fato, humilhado pela revelação de Visnu, Indra renuncia à sua vocação de deus guerreiro e se retira para as montanhas para praticar o mais terrível ascetismo. Em outros termos, ele se prepara para tirar o que lhe parece ser a única conclusão lógica da descoberta da irrealidade e da vaidade do mundo. Ele se encontra na mesma situação do príncipe Sidarta, logo após ter abandonado seu palácio e suas esposas em Kapilavastu e ter-se empenhado em suas duras mortificações. Porém, pode-se perguntar se um Rei dos Deuses, um esposo, tinha o direito de tirar tais conclusões de uma revelação de ordem metafísica, se sua renúncia e sua ascese não colocavam em perigo o equilíbrio do mundo. Realmente, pouco tempo depois, sua mulher, a rainha Çaci, desolada por ter sido abandonada, implora a ajuda de seu sacerdote-conselheiro, Brhaspati. Segurando-a pela mão, Brhaspati aproxima-se de Indra e lhe fala longamente, não apenas sobre as virtudes da vida contemplativa, mas também sobre a importância da vida ativa, da vida que encontra sua plenitude neste mundo. Indra recebe, dessa maneira, uma segunda revelação: ele compreende que cada um deve seguir seu próprio caminho e reali5. Cl, por exemplo, Bhagavad-Gird, IV, 20; ver nosso livro Techniques du _yoga (Paris, Gallimard, 1948), pp. 141 ss.
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zar sua vocação, ou seja, em suma, realizar o seu dever. Mas como sua vocação e seu dever eram de continuar a ser Indra, ele retoma sua identidade e prossegue suas aventuras heróicas, sem orgulho e sem presunção, pois ele compreendeu a futilidade de toda "situação", mesmo sendo ela a de Rei dos Deuses... Esta continuação do mito restabelece o equilíbrio: o importante não é sempre renunciar à sua situação histórica, esforçando-se inutilmente para alcançar o Ser Universal — mas guardar constantemente no espírito as perspectivas do Grande Tempo e, ao mesmo tempo, continuar a cumprir seu dever no tempo histórico. É exatamente a lição dada, no BhagavadGIM, por Krsna a Arjuna. Na índia, como em quase todos os lugares do mundo arcaico, essa abertura para o Grande Tempo, obtida por meio da recitação periódica dos mitos, permite prolongar indefinidamente certa ordem ao mesmo tempo metafísica, ética e social, ordem que não leva absolutamente à idolatria da história, pois a perspectiva do Tempo mítico torna ilusório qualquer fragmento do tempo histórico. Como acabamos de ver, o mito do Tempo cíclico e infinito, rasgando as ilusões tramadas pelos ritmos menores do Tempo, ou seja, pelo tempo histórico, revela-nos ao mesmo tempo a precariedade e, enfim, a irrealidade ontológica do Universo, e o caminho da nossa libertação. De fato, podemos nos salvar dos vínculos de Mâyâ, seja pelo caminho contemplativo, renunciando ao mundo e praticando a ascese e as técnicas místicas decorrentes, seja pela via ativa, permanecendo no mundo, porém sem mais gozar dos "frutos de suas ações" (phalatrsnavairagya). Tanto em um caso como no outro, o importante é não acreditar unicamente na realidade das formas que nascem e crescem no Tempo: não se pode perder de vista que tais formas só são "verdadeiras" dentro do seu próprio plano de referência e que, ontologicamente, elas são desprovidas de substância. Como dizíamos anteriormente, o Tempo pode tornar-se um instrumento de conhecimento, no sentido de que basta projetarmos uma coisa ou um ser no plano do Tempo cósmico para constatarmos imediatamente sua irrealidade. A
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função gnoseológica e soteriológica de tal mudança de perspectiva, obtida pela abertura para os ritmos maiores do tempo, é admiravelmente exposta por certos mitos relacionados à Mâyâ de Visnu. Eis aqui um desses mitos, na sua versão moderna e popular narrada por Sri Ramakrishna6. Um asceta ilustre chamado Nârada, tendo obtido a graça de Visnu por suas inúmeras austeridades, recebe a visita do deus, que lhe promete realizar qualquer desejo. "Mostra-me o poder mágico de tua mdyii", pede-lhe Nârada. Visnu concorda e pede a ele que o siga. Pouco tempo depois, encontrando-se num caminho deserto em pleno sol, e tendo sede, Visnu lhe pede que avance algumas centenas de metros, onde se pode avistar um vilarejo, e lhe traga água. Nârada precipita-se e bate à porta da primeira casa que encontra. Uma jovem muito bela abre-lhe a porta. O asceta a olha longamente, e esquece o porquê de sua ida. Ele entra na casa, e os pais da jovem o recebem com o respeito devido a um santo. O tempo passa. Nârada acaba por casar-se com a jovem e conhece a felicidade do casamento, assim como a dureza de uma vida no campo. Doze anos se passaram: Nârada tem agora três filhos e, após a morte do seu sogro, tornou-se o proprietário da fazenda. No entanto, no decorrer do décimo segundo ano, chuvas torrenciais acabaram por inundar a região. Em uma noite, os rebanhos se afogam, a casa desaba. Segurando em uma das mãos a esposa, na outra as duas crianças e levando o menor nas costas, Nârada abre com dificuldade um caminho através das águas. Mas a carga é pesada demais. Escorregando, o menor cai na água. Nârada deixa seus dois filhos e esforça-se para encontrá-lo, porém é tarde demais: a torrente o levara para longe. Enquanto procurava seu filho menor, as águas levaram os dois outros filhos e, pouco tempo depois, a mulher. O próprio Nârada cai, e a torrente o leva 6. The Sayings of Sri Ramakrishna (edição de Madras, 1938), Book IV, chapter 22. Ver a outra versão desse mito de acordo com Matsya Purána, contada por H. Zimmer, Myths and Symbols, pp. 27 ss.
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inconsciente, como um pedaço de madeira. Quando acorda, jogado sobre uma pedra, e se lembra de suas desgraças, ele desata a chorar. Mas de repente, ouve uma voz familiar: "Minha criança! Onde está a água que tu deverias ter me trazido? Estou te esperando há mais de meia hora!" Nârada vira a cabeça e olha. No lugar da torrente que havia destruído tudo, ele vê os campos desérticos, brilhando sob o sol. "Você compreende agora o segredo de minha maya?" , pergunta-lhe o deus. Evidentemente, Nârada não podia afirmar ter tudo compreendido; mas aprendera uma coisa essencial: ele agora sabia que a Mâyâ cósmica do Visnu se manifesta através do Tempo.
O "terror do Tempo" O mito do Tempo cíclico, ou seja, dos ciclos cósmicos que se repetem infinitamente, não é uma inovação da especulação indiana. Como já demonstramos', as sociedades tradicionais — cujas representações do Tempo são tão difíceis de discernir, justamente por se exprimirem por meio de símbolos e rituais cujo sentido profundo nos permanece às vezes inacessível — as sociedades tradicionais não apenas imaginam a existência temporal do homem como uma repetição ad infinitum de certos arquétipos e gestos exemplares, mas também como um eterno recomeço. De fato, simbólica e ritualmente, o mundo é re-criado periodicamente. Repete-se pelo menos uma vez por ano a cosmogonia — e o mito cosmogônico serve igualmente de modelo para um grande número de ações: o casamento, por exemplo, ou as curas. Qual é o sentido de todos esses mitos e de todos esses ritos? É que o mundo nasce, se esgota, morre e nasce novamente em um ritmo muito acelerado. O caos e o ato cosmogônico que acaba com o caos através de uma nova criação são reatualizados periodicamente. O ano — ou o que com7. Le mythe rèternel retour, passim.
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preendemos por esse termo — equivale à criação, à duração e à destruição de um mundo, de um Cosmos. No entanto, é muito provável que essa concepção da criação e da destruição periódicas do mundo, ainda que tenha sido reforçada pelo espetáculo da morte e da ressurreição periódicas da vegetação, não seja, por isso, uma criação de sociedades agrícolas. Ela se encontrava nos mitos das sociedades pré-agrícolas e é muito provavelmente uma concepção de estrutura lunar. A lua, de fato, mede as mais sensíveis periodicidades, e foram termos relativos à lua que primeiro serviram para expressar a medida do tempo. Os ritmos lunares sempre marcam uma "criação" (a lua nova) seguida de um crescimento (lua cheia), de um decrescimento e de uma "morte" (as três noites sem lua). Muito provavelmente, a imagem desse eterno nascimento e morte da lua ajudou a cristalizar as intuições dos primeiros homens sobre a periodicidade da Vida e da Morte e deu origem ao mito da criação e da destruição periódicas do mundo. Os mais antigos mitos do dilúvio mostram uma estrutura e uma origem lunar. Após cada dilúvio, um ancestral mítico cria uma nova humanidade. Ora, acontece com freqüência que esse Ancestral mítico tome o aspecto de um animal lunar. (Em etnologia, chama-se por esse nome os animais cuja vida mostra certa alternância de aparições e desaparecimentos periódicos.) Para o "primitivo", conseqüentemente, o Tempo é cíclico, o mundo é periodicamente criado e destruído, e o simbolismo lunar de "nascimento-morte-renascimento" é manifestado em um grande número de mitos e ritos. É a partir de tal herança imemorial que se elaborou a doutrina pan-indiana das idades do mundo e dos ciclos cósmicos. Obviamente, a imagem arquetípica dos eternos nascimento, morte e ressurreição lunares foi sensivelmente modificada pelo pensamento indiano. Quanto ao aspecto astronômico dos yugas, é provável que tenha sido influenciado pela especulação cosmológica e astrológica dos babilônios. Mas não deteremos aqui, nas eventuais influências históricas da Mesopotâmia sobre a índia. Importa-nos esclarecer o seguinte fato: aumentando sempre, cada
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vez mais audaciosamente, a duração e o número de ciclos cósmicos, o indiano tinha em vista um objetivo soteriológico. Assustado pelo número infinito dos nascimentos e dos renascimentos dos Universos, que eram acompanhados de um número também considerável de nascimentos e renascimentos humanos regidos pela lei do kanna, o indiano foi obrigado a buscar uma saída para essa roda cósmica e essas transmigrações infinitas. As doutrinas e técnicas místicas que são continuidade à libertação do homem da dor e do ciclo infernal "vida-morterenascimento" apropriam-se das imagens míticas dos ciclos cósmicos, amplificando-as e utilizando-as para seus fins de proselitismo. O eterno retorno equivale, para os indianos da época pós-védica, ou seja, para os indianos que tinham descoberto os "sofrimentos da existência", ao ciclo infinito da transmigração regido pelo karma. Esse mundo, ilusório e passageiro, o mundo do sâmsara, o mundo da dor e da ignorância, é o mundo que se desenvolve sob o signo do Tempo. A libertação desse mundo e a obtenção da Salvação equivalem a uma libertação do Tempo cósmico.
Simbolismo indiano da abolição do Tempo Em sânscrito, o termo kâla é empregado tanto no sentido de períodos de tempo, de durações infinitas, como no sentido de um determinado momento — da mesma maneira que nas línguas européias (por ex.: "What time is it now?). Nos textos mais antigos, acentua-se o caráter temporal de todos os Universos e de todas as existências possíveis: "O Tempo engendrou tudo o que foi e o que será" (Atharva Veda, XIX, 54, 3). Nos Upanisads, Brahman, o Espírito Universal, o Ser Absoluto, é concebido ao mesmo tempo como transcendendo o Tempo e como a fonte e o fundamento de tudo o que se manifesta no Tempo: "Senhor do que foi e do que será, ele é ao mesmo tempo hoje e amanhã" (Kena Up., IV, 13). E Krsna manifestando-se como Deus cósmico a Arjuna, declara: "Eu
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sou o Tempo que, avançando, destrói o mundo" (BhagavadGIM, XI, 32). Como se sabe, os Upanisads distinguem dois aspectos de Brahman, do Ser Universal: "o corporal e o incorporai, o mortal e o imortal, o fixo (sthita) e o móvel etc." BrhadâranyakaUpanisad, II, 3, 1). O que quer dizer que tanto o Universo, nos seus aspectos manifestos e não-manifestos, quanto o Espírito, em suas modalidades condicionadas e não-condicionadas, repousam no Único, Brahman, que contém todas as polaridades e oposições. Ora, a Maitri Upanisad (VII, 11, 8), especificando esta bipolaridade do Ser Universal no plano do Tempo, distingue as "duas formas" (dve ruge) de Brahman (ou seja, os aspectos das "duas naturezas" [dvaitibluiva] de uma única essência [tad ekan]), como "Tempo e Sem-Tempo" (kálaccdkalaç-ca). Em outros termos, tanto o Tempo como a Eternidade são os dois aspectos do mesmo Princípio: no Brahman, o nunc fluens e o nunc stans coincidem. A Maitri Upanisad continua: "o que precede o Sol é Sem-Tempo (akála) e não-dividido (akala), mas o que começa com o Sol é o Tempo que tem partes (sakala) e sua forma é o Ano..." A expressão "o que precede o Sol" poderia também ser compreendida no plano cosmológico como referente à época anterior à Criação — pois nos intervalos entre os mahdyuga ou os kalpa, durante as Grandes Noites Cósmicas, a duração não existe mais —, mas ela se aplica sobretudo ao plano metafísico e soteriológico, ou seja, ela indica a situação paradoxal daquele que obtém a iluminação, que se torna um jivanmukta, um "liberto na vida", e por isso mesmo ultrapassa o Tempo, no sentido de que não participa mais da duração. De fato, o Chfindogya-Upanisad (III, 11) afirma que para o sábio, para o iluminado, o Sol permanece imóvel. "Mas após ter-se elevado ao zênite, ele [o Sol] não nascerá nem se porá mais. Ele ficará sozinho no Centro (ekala eva madhyhe sthálá). Por isso este verso: "Jamais lá [ou seja, no mundo transcendental do Brahman] ele se pôs, jamais ele nasceu..." Ele não nasce nem se põe; de uma vez por todas (sakrt) ele está no céu para aquele que conhece a doutrina do Brahman."
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Trata-se aqui, obviamente, de uma imagem sensível da transcendência: no zênite, ou seja, no alto da abóbada celeste, no "Centro do mundo", onde são possíveis as rupturas dos níveis e a comunicação entre as três zonas cósmicas, o Sol ( = o Tempo) permanece imóvel para "aquele que sabe"; o nunc fluens transforma-se paradoxalmente em nunc stans. A iluminação, a compreensão, realiza o milagre da saída do Tempo. O instante paradoxal da iluminação é comparado nos textos védicos e upanixádicos a um relâmpago. Compreende-se Brahman subitamente, como um relâmpago (Kena Up., IV, 4, 4). "No relâmpago, a Verdade" (Kausitaki Up., IV, 2. Sabe-se que a mesma imagem relâmpago/iluminação espiritual se encontra na metafísica grega e na mística cristã). Detenhamo-nos um instante sobre essa imagem mítica: o zênite — que é ao mesmo tempo Cimo do Mundo e o "Centro" por excelência, o ponto infinitesimal por onde passa o Eixo Cósmico (Axis Mundi). Mostramos no capítulo anterior a importância desse simbolismo para o pensamento arcaico. Um "Centro" representa um ponto ideal, pertencente não a um espaço profano, geométrico, mas ao espaço sagrado, e no qual se pode realizar a comunicação com o Céu ou o Inferno; em outros termos, um "Centro" é o lugar paradoxal da ruptura dos níveis, o ponto em que o mundo sensível pode ser ultrapassado. Mas pelo fato de transcender o Universo, o mundo criado, transcende-se o tempo, a duração, e obtém-se a estase, o eterno presente intemporal. A solidariedade entre o ato de transcender o espaço e o de transcender o fluxo temporal é bem colocada por um mito que trata da Natividade do Buda. O Majjhima-Nik4ya (111, p.123) conta que, "assim que nasceu, o Boddhisattva pôs seus pés sobre o solo e, virado para o Norte, deu sete passadas, protegido por um guarda-sol branco. Ele observa em torno de si todas as regiões e fala com sua voz de touro: 'Eu sou o mais alto do mundo, eu sou o melhor do mundo, eu sou 8. Cf. acima pp. 37 ss.
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o primogênito do mundo; esse é meu último nascimento; para o futuro, não haverá mais para mim nova existência' ". Esse aspecto mítico da Natividade do Buda é retomado, com certas variantes, na literatura posterior dos Nikâya-Agama, dos Vinaya e nas biografias do Buda9. Os sapta padâni, os sete passos que levam o Buda ao cimo do mundo, foram até representados na arte e na iconografia budista. O simbolismo dos "Sete Passos" é bastante transparente'°. A expressão "eu sou o mais alto do mundo" (aggo'ham asmi lokassa) significa a transcendência espacial do Buda. De fato, ele alcançou "o cimo do mundo" (lokkagge), atravessando os sete andares cósmicos, aos quais correspondem, como se sabe, os sete céus planetários. E, por essa razão, ele transcende igualmente o tempo, pois, na cosmologia indiana, o ponto em que a criação começou é o cimo, sendo também o lugar mais "velho". É por isso que Buda exclama: "Eu sou o Primogênito do mundo" (jettho'ham asmi lokassa). Pois, atingindo o cimo cósmico, Buda torna-se contemporâneo do começo do mundo. Magicamente, ele elimina o tempo e a criação e encontra-se no instante temporal que precede a cosmogonia. A irreversibilidade do tempo cósmico, lei terrível para todos os que vivem na ilusão, não interessa mais a Buda. Para ele, o tempo é reversível e pode até mesmo ser conhecido antecipadamente: pois Buda não conhece apenas o passado, mas também o futuro. O que é importante notar é que Buda é capaz não só de abolir o tempo, mas também de percorrê-lo ao contrário (patiloman, em sânscrito pratiloman, "em sentido contrário"), e isso é válido igualmente para os monges budistas e os iogues, que, antes de obter o Nirvana ou o samâdhi, executam um "retorno ao passado" que lhes permite conhecer as existências anteriores. 9. Em uma longa nota da sua tradução de Mahoprajnaptiramitaçastra, de Nâgârjuna, M. Etienne Lamotte reuniu e agrupou os textos mais importantes; cf. Le traité de la Grande Vertu de Sagesse de Nâgârjuna, t. I (Louvain, 1944), pp. 6 ss. 10. Cf. Mircea Eliade, "Les sept Pas du Bouddha" (Pro Regno pro Sanctuario, Hommage Van der Leeuw, Nijkerk, 1950, pp. 169-175).
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O "Ovo partido" Ao lado dessa imagem de transcender o espaço e o tempo através da passagem pelos sete níveis cósmicos que projeta Buda ao "Centro" do mundo e ao mesmo tempo o reintegra ao momento atemporal que precede a criação do mundo, existe uma outra imagem que une de forma correta o simbolismo do espaço ao do tempo. Em uma tese notável, Paul Mus chamou a atenção para o texto do Suttavibhanga": "Quando uma galinha pôs os ovos, diz Buda, oito, dez ou doze, e se colocou sobre eles, abrigou-os e chocou-os suficientemente; quando então um dos pintinhos, o primeiro, com a ponta de suas garrinhas ou com seu bico, quebra a casca e consegue sair do ovo, como se chamará esse pintinho, o primogênito ou o mais jovem? — Ele se chamará o primogênito, venerável Gotama, pois é o mais velho dentre eles. — Da mesma forma, ó brâmane, entre os seres que vivem na ignorância e estão fechados e aprisionados num ovo, eu a quebrei, a casca da ignorância, e só no mundo obtive a feliz, a universal dignidade de Buda. Assim eu sou, ó brâmane, o primogênito, o mais nobre entre os seres." Como diz Paul Mus, "imagens de uma simplicidade enganadora. Para compreendê-las, devemos lembrar que a iniciação bramânica era considerada um segundo nascimento. O nome mais freqüente dos iniciados era dvija: 'nascido duas vezes, twice born' . Ora, os pássaros, as serpentes etc. também recebiam esse nome, uma vez que nasciam de um ovo. A postura deste último era identificada ao primeiro nascimento, ou seja, o nascimento natural do homem. Sua saída da casca correspondia ao nascimento sobrenatural da iniciação. Aliás, 11. Suttavibhanga, Pârâjika 1, I, 4; cf. H. Oldenberg, Le Bouddha (trad. fr. A. Foucher), pp. 364-365; Paul Mus, "La notion de temps réversible dans la mythologie bouddhique" (extraído de L'Annuaire de l'Ecole Pratique des Hautes Etudes, Section des Sciences Religieuses, 1938-1939, Melun, 1939), p. 13.
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os códigos bramânicos não deixam de estabelecer o princípio de que o iniciado é socialmente o superior, o primogênito do não-iniciado, quaisquer que sejam suas relações de idade física ou de parentesco" (Mus, op. cit., pp. 13-14). E podemos ir mais além. "Como poderíamos descrever, mesmo metaforicamente, o nascimento sobrenatural do Buda comparando-o à ruptura do ovo no qual se encontra, potencialmente, o 'Primogênito' (jyeshta) do Universo, sem que venha naturalmente ao pensamento dos ouvintes o 'ovo cósmico' das tradições bramânicas, de onde surge, na aurora dos tempos, o Deus primordial da criação, chamado diversamente o Embrião de Ouro (Hiranyagarbha), o Pai ou o Mestre dos Criadores (Prajâpati), Agni (Deus do fogo, e Fogo Ritual) ou o brahman (princípio sacrifical, 'prece', texto dos hinos etc., divinizado)?" (Mus, p. 14). Ora, sabemos que o "ovo cósmico" é "formalmente identificado ao Ano, expressão simbólica do Tempo cósmico: o samsdra, outra imagem da duração cíclica, voltando às suas causas, corresponderia então exatamente ao ovo mítico" (ibid., p. 14, nota 1). Assim, a ação de transcender o Tempo é formulada por meio de um simbolismo ao mesmo tempo cosmológico e espacial. Quebrar o invólucro do ovo equivale, na parábola do Buda, a quebrar o samsâra, a roda das existências, ou seja, transcender tanto o espaço cósmico como o Tempo cíclico. Nesse caso, também Buda utiliza imagens análogas às quais nos tinham habituado os Vedas e os Upanisads. O sol imóvel no zênite da Chdndogya Upanisad é um símbolo espacial que expressa o ato paradoxal da fuga do Cosmos com a mesma força expressada na imagem budista do ovo partido. Teremos a ocasião de reencontrar ainda tais imagens arquetípicas utilizadas para simbolizar a transcendência, apresentando certos aspectos das práticas ióguico-tântricas.
A filosofia do Tempo no budismo O simbolismo dos Sete Passos do Buda e do Ovo Cósmico implica a reversibilidade do tempo, e voltaremos a abordar esse
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processo paradoxal. Porém devemos primeiramente apresentar as grandes linhas da filosofia do tempo elaborado pelo budismo, especialmente pelo budismo Mahãyâna12. Para os budistas o tempo também é constituído por um fluxo contínuo (samtdna) e, pelo próprio fato da fluidez do tempo, toda "forma" que se manifesta no tempo não é apenas perecível, mas também ontologicamente irreal. Os filósofos do Mahâyâna discutiram abundantemente sobre o que se poderia chamar a instantaneidade do tempo, ou seja, sobre a fluidez e, em último lugar, a não-realidade do instante presente, que se transforma incessantemente em passado, em não-ser. Para o filósofo budista, escreve Stcherbatzky, "a existência e a não-existência não são as diferentes imagens de uma mesma coisa, mas a coisa em si". Como diz Çantaraksita, "a natureza de tudo o que existe é sua própria instantaneidade (feita de um número considerável) de estase e de destruições" (Tattvasangraha, p. 137; Stcherbatzky, Buddhist Logic, I, pp. 94 ss.). A destruição à qual se refere Çantaraksita não é a destruição empírica, por exemplo, de um vaso que se quebra quando cai ao chão, mas a aniquilação intrínseca e contínua de tudo o que existe e se encontra inserido no Tempo. É por esta razão que Vasubandhu escreveu: "porque a aniquilação é instantânea e ininterrupta, não existe movimento (real)"13. O movimento e, conseqüentemente, o tempo em si, a duração, é um postulado pragmático, da mesma forma que o Ego individual é, para o budismo, um postulado pragmático, mas enquanto conceito, o movimento não corresponde a uma realidade exte12. Encontraremos elementos nos dois volumes de Th. Stcherbatzky, Buddhist Logic (Leningrado, 1930-1932, "Bibliotheca Buddhica") e no rico
memorial de Louis de la Vallée-Poussin, "Documents d'Abhidharma: la Controverse du Temps" (Mélanges chinois et bouddhiques, V, Bruxelas, 1937, pp. 1-158). Ver também S. Schayer, Contributions to the Problem of Time in Indian Philosophy (Cracóvia, 1938) e Ananda K. Coomaraswamy, Time and Eternity (Ascona, 1947), pp. 30 ss. 13. Abhidharmakoça, IV, 1, citado por Coomaraswamy, op. cit., p. 58. Ver tradução comentada de Louis de la Vallée-Poussin, L'Abhidharmakoça de Vasubandhu, 5 vols. (Paris, 1923-1931).
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rior, pois ele é "alguma coisa" construída por nós mesmos. A fluidez e a instantaneidade do mundo sensível, sua contínua aniquilação, é a fórmula Mahâyâna por excelência para expressar a irrealidade do mundo temporal. Da concepção Mahâyâna do tempo, concluiu-se algumas vezes que, para o filósofo do Grande Veículo, o movimento é descontínuo, que "o movimento é constituído de uma série de imobilidades" (Stcherbatzky). Mas como nota judiciosamente Coomaraswamy (op. cit., p. 60), uma linha não é feita de uma série infinita de pontos, mas ela se apresenta como um continuum. O próprio Vasubandhu diz: "O curso dos momentos é ininterrupto" (nirantara-ksana-utpada). O termo samtana, que Stcherbatzky traduz como "série", etimologicamente significa "continuum". Tudo isto não é novidade. O que os lógicos e os metafisicos do Grande Veículo fizeram foi levar a seus limites extremos as intuições pan-indianas sobre a irrealidade ontológica de tudo o que existe no Tempo. A fluidez recobre a irrealidade. A única esperança e a única via de salvação é o Buda que revelou o Dharma (a realidade absoluta) e mostrou o caminho do Nirvâna. Os discursos do Buda retomam incessantemente o tema central da sua mensagem: tudo o que é condicionado é irreal; porém ele nunca se esquece de acrescentar: "isto não sou eu" (na me so attá). Pois ele, o Buda, é idêntico ao Dharma, e conseqüentemente é "simples, não composto" (asamkhata) e "atemporal, sem tempo" (alcaliko, como diz Anguttara Niká:ya, IV, 359-406). Inúmeras vezes o Buda lembra que ele "transcende os éons" (kappâtito... vipumatto), que ele "não é homem dos éons" (akkapiyo), ou seja, que não se encontra realmente inserido no fluxo cíclico do tempo, que ele ultrapassou o Tempo Cósmico'. Para ele, diz a Samyutta Nikálya (1, 141), "não existe nem passado, nem futuro" (na lassa paccha na purattham atthi). Para o Buda todos os tempos são transformados em presente ( Visuddhi Magga, 411), o que significa que ele elimina a irreversibilidade do tempo. 14. Sana Nipâta, 373, 860 etc., e outros textos compilados por Coomaraswamy,
op. cit.,
pp. 40 ss.
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O presente total, o eterno presente dos místicos, é a estase, a não-duração. Traduzida no simbolismo espacial, a não-duração, o eterno-presente é a imobilidade. E, de fato, para indicar o estado não-condicionado de Buda ou de liberto, o budismo — como também a Ioga — utiliza expressões referentes à imobilidade, à estase. "Aquele cujo pensamento é estável" (thilacitto; Dígha Nikiiya, II, 157), "aquele cujo espírito é estável" (thit'attá; ibid., I, 57 etc.), "estável, imóvel" etc. Não esqueçamos que a primeira e a mais simples definição da Ioga é a dada pelo próprio Patanjali no começo do seu Yoga-Slitra (I, 2): yogah cittavrttinirodhah, ou seja, "a Ioga é a supressão dos estados de consciência". Porém, essa supressão não é o objetivo final. O iogue começa por "parar", por "imobilizar" seus estados de consciência, seu fluxo psicomental. (Aliás, o sentido mais usual de nirodha é o de "restrição, obstrução", é o fato de fechar, murar etc.) Voltaremos a abordar as conseqüências dessa "parada", dessa "imobilidade" dos estados de consciência sobre a experiência do tempo dos iogues. Aquele "cujo pensamento é estável", e para o qual o tempo não passa mais, vive em um eterno presente, no nunc stans. O instante, o momento atual, o nunc diz-se em sânscrito ksana, e em páli khana' 5. É pelo ksana, pelo "momento", que se mede o tempo. Mas esse termo tem também o sentido de "momento favorável, opportunity", e para o Buda é através da interpretação de um tal "momento favorável" que se pode sair do tempo. De fato, Buda aconselha "não perder o momento", pois: "eles se lamentarão, aqueles que perderem o momento". Ele felicita os monges "que captaram seu momento" (khano vo patiladdho) e lastima aqueles "para quem o momento passou" (khanátitd; Samyuta Nikâya, IV, 126). O que quer dizer que, após o longo caminho percorrido no tempo cósmico, através das inúmeras existências, a iluminação é instantânea (eka15. Ver Louis de la Vallée-Poussin, "Notes sur le `moment' ou ksana des bouddhistes" (Rocznik Orientalistezny, vol. VIII, 1931, pp. 1-13); Coomaraswamy, op. cit., pp. 56 ss.
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ksana). "A iluminação instantânea" (eka-ksanâbhisambodhi), como a chamam os autores Mahâyâna, quer dizer que a compreensão da Realidade se faz subitamente, como um relâmpago.
É exatamente a imagem verbal, fundada no simbolismo do relâmpago, que já encontramos nos textos upanixádicos. Um momento qualquer, um ksana que seja, pode tornar-se o "momento favorável", o instante paradoxal que suspende a duração e projeta o monge budista no nunc stans, num eterno presente. Esse eterno presente não faz mais parte do tempo, da duração, ele é qualitativamente diferente do nosso "presente" profano, desse presente precário que surge fragilmente entre duas não-entidades — o passado e o futuro — e que terminará com a nossa morte. O "momento favorável" da iluminação pode ser comparado ao relâmpago que comunica a revelação ou com o êxtase místico, e que paradoxalmente se prolonga fora do tempo.
Imagens e paradoxos Notemos que essas imagens, através das quais se tenta expressar o ato paradoxal da "saída do tempo", são válidas também para expressar a passagem da ignorância para a iluminação (ou, em outros termos, da "morte" à "vida", do condicionado ao não-condicionado etc.). Grosso modo, podemos reuni-las em três classes: 1' as imagens que indicam a abolição do tempo e, a partir daí, a iluminação, pela ruptura dos níveis (o "Ovo partido", o Relâmpago, os Sete Passos do Buda etc.); 2' aquelas que exprimem uma situação inconcebível (a imobilidade do Sol no zênite, a estabilidade do fluxo dos estados de consciência, a parada completa da respiração na prática da Ioga etc.), e, enfim, 3' a imagem contraditória do "momento favorável", fragmento temporal transfigurado em "instante de iluminação". As duas últimas classes de imagens indicam também uma ruptura de níveis, pois esclarecem a paradoxal passagem de um estado "normal" no plano profano (o curso do Sol,
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o fluxo da consciência etc.) a um estado "paradoxal" (a imobilidade do Sol etc.) ou implicam a transubstanciação que ocorre no interior do próprio momento temporal. (Como sabemos, a passagem da duração profana ao tempo sagrado, realizada através de um ritual, obtém-se igualmente por uma "ruptura dos níveis": o tempo litúrgico não dá continuidade à duração profana na qual se insere, mas sim, paradoxalmente, ao tempo do último ritual realizado. Cf. nosso Traité d'histoire des religions, pp. 332 ss.) A estrutura dessas imagens não deve nos surpreender. Todo simbolismo da transcendência é paradoxal e impossível de se conceber no plano profano. O símbolo mais usado para expressar a ruptura dos níveis e a penetração no "outro mundo", no mundo supra-sensível (seja ele o reino dos mortos ou dos deuses), é a "passagem difícil", o fio da navalha. "É perigoso passar sobre a lâmina afiada de uma navalha, dizem os poetas para expressar as dificuldades do caminho (que leva à sabedoria suprema)", afirma a Katha Upanisad (III, 14). Lembremo-nos do texto do Evangelho: "Estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida, e como são poucos os que o encontram" (Mateus 7, 14). Aliás, a "porta estreita", o fio da navalha, a ponte estreita e perigosa não esgotam a riqueza desse simbolismo. Outras imagens apresentam uma situação aparentemente sem saída. O herói de um conto iniciático deve passar "onde a noite e o dia se encontram", ou achar uma porta em um muro que não existe, ou subir ao Céu por uma passagem que se abre apenas um instante, passar entre duas mós em movimento contínuo, entre duas pedras que se tocam a todo instante, ou ainda entre as mandíbulas de um monstro etc.' Todas essas imagens míticas expressam a necessi16. Sobre isso, ver A. B. Cook, Zeus, III, 2 (Cambridge, 1940), Appendix P: "Floating Islands" (pp. 975-1016); Ananda Coomaraswamy, "Symplegades" (Studies and Essays in the History of Science and Learning offered in Homage to George Sarton, Nova York, 1947, pp. 463-488); M. Eliade, Le chamanisme et les techniques archaïques de l'extase (Paris, 1951), pp. 419 ss. e passim.
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dade de transcender os contrários, de abolir a polaridade que caracteriza a condição humana, para alcançar a realidade última. Como diz A. Coomaraswamy, "aquele que quer se transportar deste mundo para o outro, ou voltar, deve fazê-lo no intervalo unidimensional e atemporal que separa forças aparentes, mas contrárias, através das quais só podemos passar instantaneamente" (Symplegades, pp. 486). De fato, se para o pensamento indiano a condição humana se define pela existência dos contrários, a libertação (ou seja, a abolição da condição humana) equivale a um estado nãocondicionado que ultrapassa os contrários ou, o que seria a mesma coisa, a um estado onde os contrários coincidem. Lembremos que a Maitri Upanisad, referindo-se aos aspectos manifestos e não-manifestos do Ser, distingue as "duas formas" de Brahman como "Tempo e Sem-Tempo". Para o Sábio, Brahman tem o papel do modelo exemplar: a libertação é uma "imitação do Brahman". O que significa, para "aquele que sabe" que, o "Tempo" e o "Sem-Tempo" perdem sua tensão de opostos: eles não são mais distintos um do outro. Para ilustrar essa situação paradoxal obtida pela abolição dos "pares opostos", o pensamento indiano, como todo pensamento arcaico, utiliza imagens cuja própria estrutura inclui a contradição (imagens do tipo: achar num muro uma porta inexistente). A coincidência dos opostos é ainda mais explícita na imagem do "instante" (ksana) que se transforma em "momento favorável". Aparentemente, nada distingue um fragmento qualquer do tempo profano do instante intemporal obtido pela iluminação. Para compreendermos bem a estrutura e a função de tal imagem, devemos nos remeter à dialética do sagrado: um objeto qualquer torna-se paradoxalmente uma hierofania, um receptáculo do sagrado, continuando a participar ao mesmo tempo do meio cósmico em torno de si (uma pedra sagrada permanece de qualquer maneira uma pedra qualquer etc.17). 17. Sobre a dialética do sagrado, ver nosso Traiu d'histoire des religions, pp. 15 ss.
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Desse ponto de vista, a imagem do "momento favorável" expressa o paradoxo da coincidência dos opostos com muito mais força do que o fazem as imagens das situações contraditórias (do tipo: imobilidade do Sol etc.).
Técnicas da "saída do Tempo" A iluminação instantânea, o paradoxal salto para fora do Tempo obtém-se após uma longa disciplina, que comporte tanto uma filosofia, quanto uma técnica mística. Lembremos algumas técnicas que têm como objetivo parar o fluxo temporal. A mais comum, e a realmente pan-indiana, é o prandydma, a ritmização da respiração. Antes de mais nada, queremos notar algo importante: ainda que seu objetivo final seja superar a condição humana, a prática da Ioga começa por restaurar e melhorar essa mesma condição humana, por lhe dar uma amplitude e uma majestade que parecem inacessíveis aos profanos. Não pensamos na Hatha-Yoga imediatamente, cujo objetivo preciso é chegar a um domínio absoluto do corpo e do psiquismo humano. Mas todas as formas da Ioga implicam uma transformação prévia do homem profano —fraco, disperso, escravo de seu corpo e incapaz de um verdadeiro esforço mental — em um Homem glorioso: com uma saúde física perfeita, mestre absoluto de seu corpo e de suà vida psicomental, capaz de se concentrar, consciente de si próprio. E tal homem perfeito que finalmente a Ioga esforça-se por superar, e não apenas o homem profano, o homem de todos os dias. Em termos cosmológicos (e para penetrar no pensamento indiano é preciso sempre utilizar essa chave), é a partir de um Cosmos perfeito que a Ioga se esforça por transcender a condição cósmica enquanto tal, e não a partir de um Caos. Ora, a fisiolo-
gia e a vida psicomental do homem profano assemelham-se muito a um caos. A prática da Ioga começa por organizar esse caos, por —digamos a palavra cosmicizá-lo. O pránayâma, a ritmização da respiração, transforma pouco a pouco o
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iogue num Cosmos': a respiração não é mais arrítmica, o pensamento não é mais disperso, a circulação das forças psicomentais não é mais anárquica. Ora, trabalhando dessa maneira sobre a respiração, o iogue trabalha diretamente sobre o tempo vivido. E não há adepto da Ioga que não tenha experimentado durante esses exercícios respiratórios uma outra qualidade de tempo. Tentou-se inutilmente descrever essa experiência do tempo vivido durante o pránáyáma; ela foi comparada ao tempo beatificante da audição da boa música, às alegrias do amor, à serenidade ou à plenitude da prece. É certo que, diminuindo progressivamente o ritmo respiratório, prolongando cada vez mais a expiração e a inspiração e deixando passar o maior intervalo possível entre esses dois momentos da respiração, o iogue vive em outro tempo que não o nosso'. 18. Cf. nosso "Cosmical homology and Yoga" (Journal of the Indian Society of Oriental Art, Calcutá, 1937, pp. 168-203). Sobre o prandyama, ver Techniques du yoga, pp. 75 ss. 19. Pode até ser que a ritmização da respiração tenha conseqüências consideráveis sobre a fisiologia do iogue. Não tenho nenhuma competência nesse campo, mas fiquei impressionado, em Rishikesh e em outros lugares no Himalaia, com o admirável estado físico dos iogues, mesmo se alimentando tão pouco. Um dos vizinhos do meu kutiar em Rishikesh era um naga, um asceta nu, que passava quase toda a noite a praticar o priiriáyáma e que não comia mais do que uma pequena ração de arroz. Ele tinha o corpo de um atleta perfeito: não demonstrava nenhum sinal de subnutrição ou cansaço. Eu me perguntava como acontecia que não tivesse nunca fome. "Eu só vivo durante o dia", respondeu-me. "Durante a noite, reduzo o número das minhas respirações a um décimo." Não tenho certeza de ter compreendido o que ele quis dizer, mas talvez isso significasse simplesmente que a duração vital é medida pelo número de inspirações e expirações, de modo que, durante a noite ele reduzia esse número a um décimo da normal, vivendo desta forma, em dez horas do nosso tempo, somente a sua décima parte, ou seja, uma hora. Contado em horas-respiração, um dia de vinte e quatro horas solares só tinha, para ele, de doze a treze horas-respiração, ou seja, seu corpo se desgastava e envelhecia mais lentamente que o nosso; assim, ele comia uma ração de arroz não a cada vinte e quatro horas, mas a cada doze ou treze horas. Isto não passa de uma hipótese, e não insistirei. Mas, pelo que sei, nunca se deu uma explicação satisfatória para a extraordinária juventude dos iogues.
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Dois pontos nos parecem importantes na prática do prânâyâma: 1°) o iogue começa por "cosmicizar" seu corpo e sua vida psicomental; 2°) através do prânâyâma, o iogue consegue inserir-se à vontade nos diferentes ritmos do tempo vivido. Patanjali recomenda, com sua maneira extremamente concisa, "o controle dos momentos e da sua continuidade" (Yoga Stitra, 3, 52). Os tratados ióguico-tântricos posteriores dão mais detalhes desse "controle" do tempo. Kálacakratantra, por exemplo, vai bem longe: ele relaciona a expiração e a inspiração com o dia e a noite, em seguida com as quinzenas, os meses, os anos, chegando progressivamente até os maiores ciclos cósmicos20. Quer dizer que, pelo seu próprio ritmo respiratório, o iogue, repete e de certa forma revive o Grande Tempo Cósmico, as criações e as destruições periódicas do Universo. O objetivo desse exercício duplo: por um lado, o iogue é levado a identificar seus próprios momentos respiratórios aos ritmos do Grande Tempo Cósmico, e ao fazê-lo, ele realiza a relatividade do tempo e, em última instância, sua irrealidade. Porém, por outro lado, ele obtém a reversibilidade do fluxo temporal (sâra), no sentido de que ele volta para trás, revive suas existências anteriores e "queima", como dizem os textos, as conseqüências de seus atos anteriores; ele anula esses atos, para escapar às suas conseqüências cármicas. Percebe-se em tal exercício de prânâyriza a vontade de reviver os ritmos do Grande Tempo Cósmico: é, de uma certa forma, a mesma experiência de Nârada que narramos anteriormente, experiência realizada, desta feita, voluntária e conscientemente. Uma prova de que isto é verdadeiro é a identificação das duas "veias místicas", ida e pingala, à Lua e ao
20. Kálacakra Tantra, citada por Mario E. Carelli, no prefácio de sua edição de Sekoddesatiká, pp. 16 ss.; ver Sekoddesatikii of Nadapâda being a Commentary of the Sekoddesa Section of the Kolacakra Tantra (Gaekwad Oriental Series, vol. XC, Baroda, 1941).
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Sol'. Sabe-se que na fisiologia mística da Ioga, ida e pingala são os dois canais através dos quais circula a energia psicovital no interior do corpo humano. A assimilação dessas duas veias místicas ao Sol e à Lua completa a operação que chamamos "cosmicização" do iogue. Seu corpo místico torna-se um microcosmo. Sua inspiração corresponde ao curso do Sol, ou seja, ao Dia; sua expiração à Lua, ou seja, à Noite. Por essa razão, o ritmo respiratório do iogue consegue integrar perfeitamente o ritmo do Grande Tempo Cósmico. Porém, esta integração no Grande Tempo Cósmico não elimina o Tempo em si; são apenas os ritmos que mudaram: o iogue vive um Tempo cósmico, embora continue a viver no Tempo. Ora, seu objetivo é sair do Tempo. É, de fato, o que acontece quando o iogue consegue unir as duas correntes de energia psicovital que circulam através da ida e da pingala. Por um processo por demais complexo para se explicar em poucas palavras, o iogue pára sua respiração e, unificando as duas correntes, ele as concentra forçando-as a circular através da terceira "veia" susumna, a veia que se encontra no "centro". Ora, diz Hathayoga-pradipikii (IV, 16-17), "Susumna devora o Tempo". Essa unificação paradoxal das duas veias místicas ida e pingala, das duas correntes polares, equivale à unificação do Sol e da Lua, ou seja, à abolição do Cosmos, à reintegração dos contrários, o que quer dizer que o iogue transcende ao mesmo tempo o Universo criado e o Tempo que o rege. Lembremo-nos da imagem mítica do ovo cuja casca é quebrada pelo Buda. É o que acontece ao iogue que "concentra" seu fôlego na susumna: ele quebra a casca do seu microcosmo, ele transcende o mundo condicionado que existe no tempo. Um número considerável de textos ióguicos e tântricos fazem alusão a esse estado não-condicionado e intemporal em que "não existe nem dia nem noite", 21. Ver textos compilados por P. C. Bagchi, "Some technical terms of the Tantras" (The Calcutta Orientai journal, 1, 2, novembro de 1934, pp. 75-88), espec. pp. 82 ss., e "Shashibhusan Dasgupta", Obscure Religious Cults (Calcutá, 1946), pp. 274 ss.
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em que "não há mais doença nem velhice", fórmulas ingênuas e aproximativas da "saída do Tempo". Transcender "o dia e a noite" quer dizer transcender os contrários; corresponde, no plano temporal, à passagem pela "porta estreita" no plano do espaço. Essa experiência ióguico-tântrica prepara e precipita o samâdhi, estado usualmente traduzido por "êxtase", mas que preferimos chamar "enstase". O iogue acaba por tornar-se um jivan-mukta, um "liberto na vida". Não podemos representar a sua existência, pois ela é paradoxal. Se devemos acreditar, o jivan-mukta não vive mais no Tempo, no nosso próprio tempo — mas num eterno presente, no nunc stans, termo com o qual Boécio definia a eternidade. Porém o processo ióguico-tântrico ao qual acabamos de nos referir não esgota a técnica indiana da "saída do Tempo". De certo ponto de vista, poderíamos até dizer que a Ioga, enquanto tal, prolonga a libertação da escravidão temporal. Todo exercício de concentração ou de meditação iogue "isola" o praticante, retira-o do fluxo da vida psicomental e conseqüentemente enfraquece a ação do Tempo. Ele faz mais: a "destruição do subconsciente", a "combustão" das vâsanâs feitas pelo iogue. Sabe-se da importância considerável que a Ioga dá a vida subliminar, designada pelo termo vásailli s. "Os vásanas têm sua origem na memória", escreve Vyâsa (comentário no Yoga Siara, IV, 9), mas não se trata apenas da memória individual, que para o hindu abrange tanto a lembrança da existência atual como os resíduos cármicos das inúmeras existências anteriores. Os imiscuir-is representam, além do mais, toda a memória coletiva que se transmite por meio da linguagem e das tradições: de certa forma, é o inconsciente coletivo do professor Jung. Ao esforçar-se por modificar o subconsciente e, finalmente, por "purificá-lo", "queimá-lo" e "destruí-lo" 22, o iogue esfor22. Uma tal presunção muito provavelmente pareceria vã, senão perigosa, aos olhos dos psicólogos ocidentais. Embora recusemo-nos a intervir no debate, gostaríamos de lembrar, por um lado, a extraordinária ciência psicológica dos iogues e dos espirituais hindus e, por outro lado, a ignorância dos sábios ocidentais quanto à realidade psicológica das experiências ióguicas.
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ça-se por libertar-se da memória, ou seja, abolir a obra do Tempo. Aliás, isso não é uma especialidade das técnicas indianas. Sabemos que um místico do valor de Mestre Eckardt não se cansa de repetir que "não existe obstáculo maior à União com Deus que o Tempo", que o Tempo impede o homem de conhecer Deus etc. E sobre isso não seria sem interesse lembrar que as sociedades arcaicas "destroem" periodicamente o mundo para poder "refazê-lo" e, conseqüentemente, para viver em um Universo "novo", sem "pecado", ou seja, sem "história", sem memória. Inúmeros rituais periódicos perseguem igualmente a "purgação" coletiva dos "pecados" (confissões públicas, o bode expiatório etc.) e, em última instância, a abolição do passado. Tudo isto prova, parece-nos, que não existe solução de continuidade entre o homem das sociedades arcaicas e o místico pertencente às grandes religiões históricas: tanto um como outro lutam com a mesma força, ainda que com meios diferentes, contra a memória e o Tempo. No entanto, esta depreciação metafísica do Tempo e esta luta contra a "memória" não esgotam a posição da espiritualidade indiana em relação ao Tempo e à História. Lembremo-nos da lição de Indra e de Nârada: a Mâyâ se manifesta através do Tempo, mas a Mâyâ em si é apenas força criativa, e sobretudo a força cosmogônica, do Ser Absoluto ( == Çiva; Visnu); ou seja, em última instância, a Grande Ilusão cósmica é uma hierofania. Esta verdade revelada, nos mitos, por uma série de imagens e de "histórias" foi abordada de modo mais sistemático pelos Upanisads23 e os filósofos posteriores: ou seja, que o fundamento último das coisas, o Grund, é constituído ao mesmo tempo pela Mâyâ e pelo Espírito Absoluto, pela Ilusão e pela Realidade, pelo Tempo e pela Eternidade. Identificando todos os "contrários" no mesmo e único Vazio Universal (çunya), certos filósofos Mahâyâna (por exemplo, Nâgârjuna) e sobretudo as diversas escolas tântricas, tanto budistas (Vajrayâna) como hinduístas, chegaram a conclusões simila23. Cf. acima, pp. 70 ss.
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res. Tudo isto não deveria nos surpreender, quando conhecemos a sede da espiritualidade indiana de ultrapassar os opostos e as tensões polares, de unificar o real, de reintegrar o Um primordial. Se o Tempo, enquanto Mâyâ, é, também ele, uma manifestação da Divindade, viver no Tempo não é, em si, uma "má ação": a "má ação" é acreditar que não existe nada fora do Tempo. Não somos devorados pelo Tempo porque vivemos no Tempo, mas porque acreditamos na realidade do Tempo e, assim esquecemos ou desprezamos a Eternidade. Essa conclusão não é sem importância; temos uma forte tendência de reduzir a espiritualidade indiana a suas posições extremas, fortemente "especializadas" e, por isso, acessíveis apenas aos Sábios e aos místicos, e esquecemos as posições pan-indianas, ilustradas sobretudo pelos mitos. De fato, a "saída do Tempo" obtida pelo jivan-mukta equivale a uma "enstase" ou a um êxtase inacessíveis à maioria dos humanos. Mas se a "saída do Tempo" continua sendo a via real para a libertação (lembremo-nos dos símbolos da iluminação instantânea etc.), isso não quer dizer que todos aqueles que não a conseguiram estejam implacavelmente condenados à ignorância e à escravidão. Como mostram os mitos de Indra e Nârada, basta conscientizar-se da irrealidade ontológica do Tempo e "realizar" os ritmos do Grande Tempo Cósmico para libertar-se da ilusão. Logo, resumindo, a índia não conhece apenas duas situações possíveis em relação ao Tempo: a do ignorante que vive exclusivamente na duração e na ilusão, e a do sábio ou do iogue que se esforçam por "sair do Tempo", mas também uma terceira situação, intermediária: a situação daquele que, embora continue a viver em seu próprio tempo (o tempo histórico), guarda uma abertura para o Grande Tempo sem nunca perder a consciência da irrealidade do tempo histórico. Esta situação, ilustrada por Indra após a segunda revelação, encontra-se amplamente explicitada no Bhagavad-Gild. Ela é encontrada sobretudo na literatura espiritual indiana utilizada pelos leigos e pelos mestres da Índia moderna. É interessante notar que esta última posição indiana prolonga, de certa forma, o comportamento do "homem primitivo" em relação ao Tempo.
CAPÍTULO III
O "DEUS AMARRADOR" E O SIMBOLISMO DOS NÓS O Soberano Terrível Sabemos o papel que Dumézil atribui ao Soberano Terrível das mitologias indo-européias: por um lado, no próprio interior da função da soberania, ele se opõe ao Soberano Jurista (Varuna opõe-se a Mitra, Júpiter a Fides); por outro lado, comparado aos deuses guerreiros que sempre combatem com meios militares, o Soberano Terrível tem, de certa maneira, o monopólio de outra arma, a magia. "Assim, não existem mitos de combates em torno de Varuna, que é no entanto o mais invencível dos deuses. Sua grande arma é sua `ndifii de Asura', sua magia de Soberano, criadora de formas e de prestígios, que lhe possibilita também administrar, equilibrar o mundo. Aliás, essa arma aparece mais freqüentemente sob a forma de amarra, nó, laços (MA), concretos ou figurados. Ao contrário, o deus guerreiro é Indra, deus combatente, deus manuseador do relâmpago, herói de inúmeros duelos, de riscos afrontados, de vitórias disputadas." A mesma oposição se observa na Grécia: enquanto Zeus combate e apóia as guerras difíceis, "Urano não luta, não há traço de luta na sua lenda, ainda que ele seja o mais terrível e o menos destronável dos deuses: por meio de uma preensão infalível, ele imobiliza, mais
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exatamente ele "amarra", acorrenta nos infernos seus eventuais rivais, mesmo os mais vigorosos". Nas mitologias nórdicas, "Odhinn é, sem dúvida, o patrão, o chefe dos guerreiros neste mundo e no outro. Mas nem no Edda em prosa, nem nos poemas édicos, ele próprio combate... Ele possui uma série de 'dons' mágicos, o dom da ubiqüidade ou pelo menos do transporte imediato, a arte do disfarce e o dom da metamorfose ilimitada, e, sobretudo, o dom de cegar, de ensurdecer, de paralisar seus adversários e de tirar toda a eficácia de suas armas..."1 Enfim, na tradição romana, aos procedimentos mágicos de Júpiter, que intervém na batalha como um feiticeiro todo-poderoso, opõem-se os meios normais, puramente militares, de Marte'. Oposição que, na Índia, às vezes se manifesta de uma maneira ainda mais clara: Indra, por exemplo, salva as vítimas "amarradas" por Varuna, "desamarrando-as'''. Como era de esperar, Dumézil prossegue a verificação dessa polaridade — "amarrador" — "desamarrador" — no campo mais concreto dos ritos e dos costumes. Rômulo, "tirano terrível e prestigioso, que amarra com laços todo-poderosos, mestre dos selvagens lupercos e dos frenéticos céleres" (Horace et les curiaces, 1942, p. 68) é, no plano "historicizado" da mitologia romana, o equivalente de Varuna, de Urano e de Júpiter. Toda a sua história e as instituições sociorreligiosas que supostamente fundou explicam-se a partir do arquétipo que de certa forma ele encarna: o Soberano Mágico indo-europeu, mestre das "amarras". Dumézil lembra um texto de Plutarco (Romulus, 26) onde se diz que diante de Rômulo marchavam sempre "homens munidos de varas, que afastavam a multidão e carregavam correias a fim de amarrar imediatamente aqueles que 1. Georges Dumézil, Mithes et dieux des germains (Paris, 1939), pp. 21 ss., 27 ss.; Jupiter, Mars, Quirinus (Paris, 1941), pp. 79 ss.; cf. Ouranós-Varuna (Paris, 1934), passim. 2. Dumézil, Mitra-Varuna (Paris, 1940) p. 33; jupiter, Mars, Quirinus, pp. 81 ss. 3. Dumézil, Flamen-Brahman (Paris, 1935), pp. 34 ss.; Mitra-Varuna, pp. 79 ss.
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Rômulo ordenasse'''. Os lupercos, confraria mágico-religiosa instituída por Rômulo, pertencem à ordem dos equites e, enquanto equites, usam um anel no dedo (Mitra-Varuna, p. 16). Ao contrário, o flâmen dialis, representante de uma religião grave, jurídica, estática, não pode andar a cavalo (equo dialem (laminem vehi religio est, Aulo-Gélio, X, 15), nem "usar anel, a menos que este tenha aberturas e seja oco" (item annulo uti, nisi pervio cassoque, fas non est). "Se um homem acorrentado entra (na casa de um fidmen dialis), ele deve ser libertado, suas amarras devem ser levadas para o telhado pelo implúvio, e, de lá, jogadas na rua. Ele (o flâmine) não usa nós no barrete, nem na cintura, ou em qualquer outra parte (nodum in apite negue in cinctu negue in alia parte ullum habet). Quando se conduz um homem que deve ser castigado com uma vara, e esse homem se joga aos pés do flâmine suplicando-lhe, é um sacrilégio bater-lhe nesse dia" (Aulo-Gélio, Noctes Atticae, X, 15, trad. fr. M. Mignon)'''. Não se trata de retomar aqui a documentação constituída e admiravelmente analisada por Dumézil. Nosso objetivo é bem diferente: queremos seguir, num plano comparativo ainda mais amplo, os motivos do "deus amarrador" e da magia do "amarrar", tentando extrair seus significados e também determinar suas funções em outros grupos religiosos que não os da soberania mágica indo-européia. Não pretendemos esgotar essa vasta matéria, que já foi objeto de
4. Mitra- Varuna, p. 72; cf. as observações de Jean Bayet, em Rev. hist. des religions, CXXIV, 1941, pp. 194 ss. Ainda de acordo com Plutarco, Questions romaines 67, até o nome dos "lictores" deriva de ligare, e Dumézil
não vê nenhuma razão para "rejeitar a relação que pressentiam os antigos entre lictor e ligare: lictor pode ser formado por um verbo de radical ligere, não documentado, que seria para ligare o que dicere é para dicare" (ibid., p. 72). 5. Cf. Servius, in Aen., III, 607; J. Heckenbach, De nuditate sacra sacrisque vinculis, (R.V.V., IX, 3, Giessen, 1911), pp. 69 ss.; Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 66 ss.
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várias monografias. Nossa intenção é muito mais de ordem metodológica: aproveitando, por um lado, os ricos repertórios de fatos acumulados pelos etnólogos e pelos historiadores das religiões e, por outro lado, os resultados das pesquisas feitas por Dumézil no campo específico da soberania mágica indo-européia, perguntaremos: 1:') em que sentido a noção do "soberano amarrador" é específica, característica do sistema religioso indo-europeu; 2:') qual é o conteúdo mágico-religioso de todos os mitos, ritos e superstições centrados no tema do "amarrar". Não ignoramos os perigos de um tal programa e, em primeiro lugar o "confusionismo" brilhantemente denunciado por Dumézil (Naissance de Rome, 1944, pp. 12 ss.). Mas, aqui, trata-se muito menos de explicar os fatos indo-europeus através de paralelos heteróclitos, do que de estabelecer sumariamente o mapa dos "complexos" mágico-religiosos do mesmo tipo e de determinar, na medida do possível, as relações do simbolismo indo-europeu do "amarrar" com sistemas morfologicamente similares. Poderemos, desta maneira, medir se uma tal confrontação pode apresentar algum interesse para a história geral das religiões e, sobretudo, para a história das religiões indo-européias.
O simbolismo de Varuna Após Bergaigne e Güntert, Dumézil lembrou o poder mágico de Varuna. Esse deus é um verdadeiro "mestre das amarras", e inúmeros hinos e cerimônias não têm outra finalidade 6. Citemos, após o decepcionante livro de Heckenbach, Frazer, Taboo and the perils of the Soul, pp. 296 ss. (trad. fr . por Henry Peyre, Tabou et les périls de Vátne, Paris, 1927, pp. 245 ss.); I. Scheftelowitz, Das Schlingen-und Netzmotiv im Glauben und Brauch der Velker (R.V.V., XII, 2, Giessen, 1912); id., Die altpersische Religion und das Judentum (Giessen, 1920), pp. 92 ss. e os estudos etnográficos e folclóricos citados por Dumézil, Ouranós-Varuna, p.
52, nota 1. Sobre o nexum romano, os nós mágicos e o direito penal, cf. Henri Decugis, Les étapes du dro t (2' edição, Paris, 1946), t. I. pp. 157-178.
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senão proteger ou liberar o homem dos "laços de Varuna" (por ex., Rig Veda, I, 24, 15; VI, 74, 4; VII, 65, 3; X, 85, 24 etc.). Sâyana, comentando o verso RV, I, 89, 3, explica o nome de Varuna pelo fato de que este "envolve, ou seja, aprisiona os malvados nos seus laços" (vrnoti, pdpakrtah svakiyaih paçair civrnoti). "Que tu libertes de tuas amarras aqueles que estão amarrados!" (bandhán muncâsi baddhakam, Atharva Veda, VI, 121, 4). Os laços de Varuna são também atribuídos a Mitra e Varuna considerados conjuntamente (RV, VII, 65, 3: "eles possuem muitos laços..." etc.) e mesmo ao grupo inteiro dos Adityas (por ex., RV, II, 27, 16: "vossos laços abertos para os traidores, para os enganadores..."). Mas é sobretudo Varuna que tem o poder mágico de amarrar os homens à distância e desamarrá-los7; tanto isto é verdade que seu nome foi explicado por essa faculdade; pois, renunciando à etimologia tradicional (varvrnoti, "cobrir", "encerrar"), que colocava em evidência seu caráter uraniano, hoje aceita-se muito mais a interpretação proposta por H. Petersson e aceita por Güntert (op. cit., p. 144) e Dumézil (Ouranós-Varuna, p. 49), que recorre a uma outra raiz indo-européia *uer, "amarrar" (em sânscrito, varatrd, "correia, corda"; em letão, weru, wert, "enfiar, relaçar", em russo, verenica, "linha ininterrupta")8. Varuna é representado com uma corda na mão' e, nas cerimônias, tudo o que amarra, começando pelos nós, é chamado varunianol°. Dumézil justifica este prestígio mágico do mestre amarrador pela soberania de Varuna. "Os laços de Varuna 7. A. Bergaigne, La religion védique d'après les hymnes du Rig-Veda, III (Paris, 1883), pp. 114, 157 ss.; H. Güntert, Der arische Weltkani g und Heiland (Halle, 1923), pp. 120 ss.; Dumézil, Ouranós- Varuna, p. 50. Mesmo atributo nos Bramanas ver SilvaM Lévi, La doctrine du sacrifice dans les Brahmanas (Paris, 1898), pp. 153 ss. 8. Cf. Walde-Pokorny, Vergleichendes Worterbuch der indogermanischen Sprachen, I (1930), p. 263. 9. Bergaigne, op. cit., III, p. 114; S. Lévi, op. cit., p. 153; E. W. Hopkins, Epic Mythology (Strasbourg, 1920), pp. 116 ss. 10. S. Levi, p. 153; Dumézil, Ouranós- Varuna, p. 51, nota 1.
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são também mágicos, como é mágica a própria Soberania em si; eles são o símbolo dessas forças místicas possuídas pelo chefe e que se chamam: justiça, administração, segurança real e pública, todos os 'poderes'. Cetro e laços, danda e paca, dividem o privilégio de representar tudo isso na índia como em outros lugares." (Ouranós-Varuna, p. 53) Sem dúvida, isso é exato. Mas o lado "soberano", e mesmo "soberano-mágico", não esgota a natureza complexa que Varuna apresenta desde os mais antigos textos védicos. Se não podemos classificá-lo exclusivamente entre os "deuses do Céu", não deixa de ser verdade que ele possui traços próprios das divindades uranianas. Ele é viçva-darçata, "visível em todos os lugares" (RV, VIII, 41, 3), ele "separou os dois mundos (VII, 86, 1), o vento é seu sopro (VII, 87, 2), Mitra e ele são venerados como "os dois deuses poderosos e sublimes mestres do Céu", que, "com as nuvens diferentemente coloridas, mostram-se no primeiro rugido do trovão e fazem chover o Céu por um milagre divino" (V, 63, 2-5) etc. Essa estrutura cósmica permitiu-lhe adquirir bem cedo características lunares" e de chuva, a ponto de ter se tornado, com o tempo, uma divindade do Oceano'. Essa mesma estrutura cósmicouraniana explica as outras funções e prestígios de Varuna: sua onisciência, por exemplo (A V, IV, 16, 2-7 etc.), e sua infalibilidade (RV, I, 35, 7 ss.). Ele é sahasrâksa, "de mil olhos" (RV, VII, 34, 10), fórmula mítica que faz referência às estrelas e que só pode designar, pelo menos a princípio, uma divindade uraniana13 . Os prestígios da soberania aumentaram e multiplicaram os prestígios celestes: Varuna vê e sabe tudo, pois de sua morada sideral ele domina o Universo; e, ao mesmo tempo, pode tudo, uma vez que é cosmocrata e que pune os que infrinIII. Hillebrand, Vedische Mythologie (Breslau, 1902), III, pp. 1 ss. 12. S. Levi, op. cit., pp. 158 ss.; J. J. Meyer, Trilogie altindischer Machie und Peste der Vegetation Zurique-Leipzig, 1937), III, pp. 206 ss., 269 ss. 13. Raflàele Pettazzoni, "Le corps parsemé d'veux" (em Zalmoxis, I, 1938, pp. 1 ss.)
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gem a lei "amarrando-os" (ou seja, através da doença, da impotência), pois ele é o guardião da ordem universal. Existe assim uma notável simetria entre o que poderíamos chamar de "camada celeste" e a "camada real" de Varuna, camadas que se correspondem e se completam uma à outra: o Céu é transcendente e único, exatamente como o é o Soberano Universal; a tendência à passividade, manifesta em todos os deuses supremos do Céu'', responde bem aos prestígios "mágicos" dos deuses soberanos, que "agem sem agir", que operam diretamente pelo "poder do espírito". A estrutura de Varuna é complexa, mas existe sempre uma estrutura, ou seja, existe uma coerência íntima entre suas diferentes modalidades. Cosmocrata ou uraniano, ele é sempre onividente, todo-poderoso e, se necessário, "amarrador" por seu "poder espiritual", pela magia. Mas seu aspecto cósmico é ainda mais importante: ele não é apenas, como vimos, um deus celeste, mas também um deus lunar e aquático. Existiu em Varuna, e talvez bem cedo, certa dominante "noturna", que Bergaigne e, recentemente, Ananda Coomaraswamy'5, não deixaram de notar. Bergaigne destacou (op. cit., III, p. 213) o comentador de Taittiriya Samhitâ, 1, 8, 16, 1, segundo o qual Varuna designa "o que envolve como a escuridão". Esse lado "noturno" de Varuna não se deixa interpretar exclusivamente no sentido uraniano de "Céu noturno", mas também num sentido mais amplo, realmente cosmológico e até metafísico. A Noite também é virtualidade, germes, não-manifestação', e é justamente essa modalidade "noturna" de Varuna que lhe permitiu tornar-se um deus das Águas (Bergaigne, III, p. 128) e abriu o caminho para a sua identificação com 14. Ver nosso Traité d'histoire des religions (Paris, Payot, 1949), pp. 47 ss. 15. Sobretudo em "The darker side of the Dawn" (Smithsonian Miscellaneous Collections, vol. 94, r.' 1, Washington, 1935) e Spiritual Authority and Temporal Power in the Indian Theory of Government (American Oriental Society, New Haven, 1942). 16. Cf. Coomaraswamy, Spiritual Authority, especialmente pp. 29 ss.
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o "demônio" Vrtra. Não cabe aqui abordar o problema "VrtraVaruna", e nos contentaremos em lembrar que existe, entre as duas entidades, mais de um traço em comum. Mesmo não levando em conta o provável parentesco etimológico de seus nomes (Bergaigne, III, p. 115 etc.; Coomaraswamy, pp. 29 ss.), é importante notar que ambos estão em relação com as Aguas, e em primeiro lugar com as "Aguas retidas" ("o grande Varuna escondeu o mar...", RV, IX, 73, 3), e que Vrtra, como Varuna, é às vezes chamado mâyin, "mágico" (por ex., II, 11, 10)17 . De certa perspectiva, estas diversas assimilações de Vrtra e de Varuna, aliás, como todas as outras modalidades e funções de Varuna, correspondem-se e justificam-se umas à outras. A Noite (o não-manifestado), as Águas (o virtual, os germes), a "transparência" e o "não-agir" (características dos deuses celestes e soberanos) têm uma solidariedade ao mesmo tempo mística e metafísica com os "laços" de todos os tipos, por um lado, e, por outro, com o Vrtra que "reteve", "parou" ou "aprisionou" as Águas'. No plano cósmico, Vrtra é, também ele, um "amarrador". Como todos os grandes mitos, o mito de Vrtra é polivalente, e a interpretação não se esgota em um único sentido. Podemos até dizer que uma das principais funções do mito é unificar os níveis do real, que revelam múltiplos e heterogêneos, tanto para a consciência imediata como para a reflexão. Assim, no mito de Vrtra, ao lado de outras valências, nota-se a de um retorno ao não-manifestado, de uma "parada", de uma "amarra", que impedem o desabrochar das "formas", ou seja, da Vida cósmica. Evidentemente, não temos o direito de avançar muito na comparação entre Vrtra e Varuna. Porém, não se pode negar o paren17. Cf. [E. Benveniste-J L. Renou, Vrtra et Vrthragna (Paris, 1934), pp. 140-141, que está errado quando afirma que na maior parte das passagens "a magia de Vrtra corresponde e deriva da de Indra". A priori, a magia é muito mais um atributo desses seres ofidianos — Vrtra é um deles por excelência — do que um atributo dos deuses-heróis. Voltaremos adiante à magia de Indra. 18. Cf. a análise do motivo das Águas em Renou, op. cit., pp. 141 ss.
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tesco estrutural entre o "noturno", o "não-agente", o "mágico" Varuna, que "amarra" à distância os culpados'', e o Vrtra que "aprisiona" as Águas. A ação tanto de um como do outro tem como efeito "deter" a vida, trazer a morte — em um caso, no plano individual, e no outro, no plano cósmico.
"Deuses amarradores" na Índia antiga Na índia védica, Varuna não é o único deus "amarrador". Entre os que utilizam essa arma mágica, notemos Indra, Yama, Nirrtri. De Indra, por exemplo, diz-se que ele trouxe uma amarra (sina) para Vrtra (RV, II, 30, 2) e que o amarrou sem se servir de cordas (II, 13, 9). Mas Bergaigne, que analisa esses textos (op. cit., III, p. 115, nota 1), observa que, "evidentemente isso não passa de um desenvolvimento secundário do mito, cujo sentido é que Indra voltou contra o demônio suas próprias astúcias". Pois não só Varuna e Vrtra possuem suas májás; outros seres divinos também as possuem, como os Maruts (RV, V, 53, 6), Tvashtr (X, 53, 9), Agni (I, 144, 1 etc.), Soma (IX, 73, 5 etc.) e mesmo os Açvins (V, 78, 6 etc.; cf. Bergaigne, III, pp. 80 ss.). Mas lidamos aqui, por um lado, com seres religiosos ambivalentes, no sentido de que um elemento demoníaco coexiste neles com elementos divinos (Tvashtr, Maruts); por outro lado, o atributo de "mágico" não é específico, e só é dado às personalidades divinas como um acréscimo às homenagens: o prestígio do mayin é tal que sentimos a necessidade de atribuí-lo a qualquer divindade que queiramos honrar. É um fenômeno bem conhecido na história das religiões, e especialmente das religiões indianas, a tendência "imperialista" que leva uma forma religiosa vitoriosa a 19. Seríamos tentados a ver nesse modo de castigo uma extensão, um aprofundamento do mesmo tipo de Varuna, no sentido de que ele força o culpado a uma "regressão ao virtual, à imobilidade", estado que de uma certa maneira ele próprio representa.
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assimilar quaisquer outros atributos divinos e a estender sua dominação sobre as diversas regiões do sagrado. No caso que nos interessa, essa tendência à anexação dos prestígios e dos poderes estranhos à própria esfera do deus é ainda mais interessante, pois se trata de uma estrutura religiosa arcaica, a saber, o prestígio do "mágico". E quem mais usufruiu disso foi Indra. "Ele triunfou sobre os mâyin por meio das mâyâ": tal é o leitmotin de inúmeros textos (Bergaigne, III, p. 82). Entre as "magias" de Indra aparece em primeiro lugar seu poder de transformação"; mas talvez convenha distinguir entre suas múltiplas epifanias particulares, homologadas (touro etc.), e o poder mágico indefinido que permite a um ser qualquer (divino, demoníaco, humano) revestir-se de uma forma animal qualquer. Obviamente, entre a esfera da epifania mítico-religiosa e a da metamorfose há interferências, empréstimos, confusões e, num campo tão instável quanto o da mitologia védica, nem sempre é fácil distinguir o que pertence a uma ou à outra. Mas é justamente esta imprecisão e esta instabilidade que são interessantes do ponto de vista fenomenológico, pois elas desvendam a tendência das "formas" religiosas a se interpenetrarem e a absorverem umas às outras. Esta perspectiva dialética só pode ajudar a compreender os fenômenos religiosos arcaicos. Voltemos a Indra. Em certos casos, ele não é apenas um "mágico": ele também "amarra", como Varuna e como Vrtra. A atmosfera é seu laço, e é com esse laço que ele envolve seus adversários, (AV, VIII, 8, 5-8 etc). Seu equivalente iraniano, Verethragna, amarra as mãos do adversário ( Yasht, 14, 63). Mas estes são traços secundários que talvez se expliquem pela autêntica utilização pré-histórica do laço como uma arma'. É verdade que, para o pensamento arcaico, uma arma 20. Ver Jarl Charpentier, Kleine Beitrage zur indoiranischen Mythologie (Uppsala, 1911), pp. 34 ss.; id., Brahman (Uppsala, 1932), p. 49, nota 1; L. Renou, op. cit., p. 141. 21. Ver Kurt Lindner, La chasse préhistorique (trad. fr., Paris, 1940), pp. 53 ss. e passim.
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é sempre um meio. mágico; mas isso não impede que um deus propriamente guerreiro, como Indra, utilize esse meio mágico em verdadeiros combates, enquanto Varuna se serve de suas "amarras" sem combater, sem agir, magicamente'. Mais esclarecedor é o exemplo de outros deuses amarradores, Nirrti e Yama, ambos divindades da morte. As amarras de Yama (yamasya padbfça, AV, VI, 96, 2; VIII, 7, 28) são geralmente chamadas "amarras da morte" (mrtyupoçah, AV, VII, 112, 2; VIII, 2, 2 etc.; cf. Scheftelowitz, p. 6). Nirrti prende aqueles que ela quer destruir (AV, VI, 63, 1-2; Taitt. Sam., V, 2, 4, 3; Çatapatha Bráhmana, VII, 2, 1, 15), e rezamos aos deuses para afastar "as amarras de Nirrti" (AV, I, 31, 2), da mesma maneira como o homem implora a Varuna para que ele o salve de suas "amarras". Da mesma forma que, em certos casos, Agni, Soma ou Rudra (Güntert, p. 122) são invocados para soltar as "amarras de Varuna", supõe-se que Indra possa soltar não só as "amarras de Varuna", como também as "amarras" dos demônios da morte (por ex., AV, IX, 3, 2-3, onde se trata de cortar as amarras da demoníaca Viçvavâra com a ajuda de Indra etc.). As doenças são os "laços", e a morte é apenas a "amarra" suprema. Isto explica que, em relação a Yama e Nirrti, esses atributos não sejam apenas importantes, mas verdadeiramente constitutivos. Doença e morte: são estes dois elementos do complexo mágico-religioso do "amarrar" que, quase em todos os lugares do mundo, gozaram da maior popularidade, e conviria procurarmos saber se sua difusão não poderia esclarecer certos aspectos do problema de que nos ocupamos. Mas, antes de deixar o campo indiano, tentemos esquematizar os conjuntos mais importantes que observamos: 1?) Varuna, o Grande Asura, amarra magicamente os culpados, e ele é invocado tanto para amarrar como para desamarrar; 2?) Vrtra aprisiona as 22. Sobre o rojanya amarrado pelos deuses desde o ventre de sua mãe ("o rajanya nasceu laçado", Taitt. Samhita, II, 4, 13, 1), cf. Dumézil, FlamenBrahman, pp. 27 ss.
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Águas, e certos aspectos do seu mito correspondem ao lado noturno, lunar, aquático, de Varuna, na medida em que essas modalidades do grande Deus expressam o "não-manifesto" e o "bloqueado"; 3?) Indra, como Agni, e Soma, liberta os homens das amarras de Varuna e das correntes das divindades funerárias: ele "corta" ou "rompe" essas "amarras" exatamente como, no mito, ele corta, desmembra etc. o corpo de Vrtra. Logo, ao lado dos meios guerreiros que lhe são próprios, e até exclusivos, ele emprega também, para triunfar sobre o mágico Vrtra, "meios mágicos"; as "amarras", que, em todo o caso, não constituem um traço fundamental seu, embora o laço deva ser considerado uma de suas armas; 4?) ao contrário, laços, cordas, nós caracterizam as divindades da morte (Yama, Nirrti) e os demônios das diversas doenças; 5?) enfim, nas partes "populares" dos livros védicos, os encantos dirigidos contra as amarras desses demônios não são menos numerosos do que os sortilégios "amarradores" dirigidos contra os inimigos humanos. Notamos que, mesmo resumidas desta maneira, as coisas não são simples. No entanto, certos traços essenciais se definem: no plano mítico das façanhas divinas, de um lado o "nãoagir" mágico de Varuna e de Vrtra, do outro a ação de Indra; no plano humano, as doenças e a morte, a importância dos laços e dos nós entre as divindades funerárias ou entre os demônios, e a utilização mágica do "amarrar" tanto na medicina popular como nos sortilégios. Assim, desde os tempos védicos, o complexo do "amarrar", permanecendo característico e constitutivo da zona da soberania mágica, ultrapassa-a, por cima (no nível cosmológico: Vrtra) e por baixo (no nível funerário: Yama, Nirrti; nível "feitiçaria"). Tentemos estabelecer quais elementos novos uma comparação com outros setores indo-europeus pode acrescentar a este quadro.
Trácios, germanos, caucasianos É provável, como demonstrou Güntert (op. cit., p. 154), que o nome do deus trácio Darzales, confirmado pelos textos,
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se explique pelo radical que contém a noção de "amarrar" (av. darazeiti, "amarrar", daraz, "corda, laço", mas ignoramos quase tudo a respeito desse deus'''. A mesma etimologia vale sem dúvida também para o nome do deus geto-trácio Derzélates, bem conhecido em Odessos24, onde se celebravam as darzaleia destinadas a favorecer as colheitas'', e identificado também em Tomis aos anéis que levam a inscrição Derzo", e ainda para aqueles da deusa trácio-frígia Bendis27, do lituano Bentis' e do ilírico Bindus'. Infelizmente, sabemos pouco sobre estes dois últimos; o sacrificio humano praticado pelos ilíricos teria sido oferecido a Bindus? Mais reveladores são os rituais conservados tanto no domínio germânico como na região trácio-frígia e caucasiana. Falando da grande festa religiosa anual dos sêmnones, Tácito (Germania, 39) acrescenta que os assistentes só podiam participar após terem sido amarrados (nemo nisi vinculo ligatus ingreditur). Closs (pp. 564 ss., 609 ss., 643, 668), que comentou abundantemente esse rito e citou inúmeros paralelos, considera-o um testemunho da submissão à divindade nacional (p. 566), enquanto Pettazzoni" coloca-o muito mais entre os ordálios. 23. Darzales foi identificada, na região pôntica (Sinope), a Sarapis; cf. O. Weinreich, Neue Urkunden zur Sarapis-Religion (Tübingen, 1919), p.7, relatando os estudos de Rostovtzeff. Cf. Stig Wikander, Vayu, I (Lund-Leipzig, 1941), pp. 43 ss. 24. Moedas e inscrições estudadas por Vasile Pârvan, Gerusia (Mémoires de l'Académie Roumaine, Section littéraire, 1919-1920, Bucareste, 1924), pp. 9, 23 etc. 25. Documentação na revista lstros (publicada em língua francesa em Bucareste), I, 1934, pp. 118 ss. 26. R. Vulpe, "Histoire ancienne de la Dobroudja" (no volume coletivo La Dobroudja, editado pela Academia Romena, Bucareste, 1938, pp. 35-454), pp. 233, 237. Cf. também Kazarow, em Pauly-Wissowa, XV, pp. 227 ss. 27. Assimilada a Artêmis (Heródoto, IV, 33), a Cibele e, nos hinos órficos, a Perséfone; cf. Güntert, p. 115, nota 1; considerado orgiástico por Estrabão, X, p. 470. 28. H. Usener, Giitternamen (reimpressão, Bonn, 1929), p. 80. 29. A. Closs, "Die Religion des Semnonenstammes" ( Wiener Beitrãge zur Kulturgeschichte und Linguistik, IV, Salzburg-Leipzig, 1936, pp. 549-673), p. 619. 30. R. Pettazzoni, "Regnator omnium deus" (em Studi e materiali di Storia delle Religioni, XIX-XX, 1943-1946, pp. 142-156), p. 155.
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De qualquer forma, somos tentados a compará-lo às cerimônias mitriáticas de iniciação, em que o iniciado (mysta) tinha as mãos amarradas atrás das costas com uma corda". Pensa-se também no anel de ferro que os Chatti usavam "como uma corrente", até que tivessem matado seu primeiro adversário (Germania, 31), no acorrentamento ritual entre os albaneses (Estrabão, XI, 503), do mesmo modo que nas correntes usadas pelos devotos georgianos do "Georges Blanc"', aos rituais em torno do "amarrar" dos reis armênios (Tácito, Annales, XII, 45; Closs, p. 619) e em certos costumes albaneses contemporâneos". Em todos esses ritos destaca-se uma atitude servil, o crente apresentando-se como um escravo ou um cativo diante de seu patrão. O "amarrar" concretiza-se dessa forma numa espécie de marca de vassalagem". Closs (p. 620) talvez tenha 31. F. Cumont, Les religions orientales dans le paganisme romain (,,k ed., Paris, 1929), prancha XIII; corda que foi feita de intestinis pullinis de acordo com Ps. — Augustin, Quaest., V (Cumont, Textes et monuments relatifs aux mysteres de Mithra [Bruxelas, 1894-1900], II, pp. 7-8). 32. Closs, p. 566; ibid., p. 643, citando O. G. Wesendonk, "Ueber georgisches Heidentum" (em Caucasica, fasc. I, Leipzig, 1924), pp. 54 ss., 99, 101. G. Dumézil, "Turvós" (em Rev. Hist. Relig., t. CXI, 1935, pp. 66-89), pp. 69 ss., estudos de fontes georgianas os "escravos de Georges Blanc": "Qualquer pessoa que queira honrar ou apaziguar Georges Blanc, tornando-se seu escravo, pegue uma dessas correntes, coloque-ano pescoço e dê assim, seja a peou de joelhos, a volta completa na igreja." Cf. também Sergi Makalathia, "Einige ethnographisch-archãologische Parallelen aus Georgien" (em Mitteilungen Anthropolog. Gesellschaft Wien, 60, 1930, pp. 361-365). 33. Durante um julgamento de vendetta, o culpado deve apresentar-se diante do "tribunal" com as mãos amarradas (Closs, op. cit., 600). 34. Basta comparar com o complexo germano-ilirico-caucasiano as cerimônias de "ligação pelo sangue" (o blood-brotherhood) praticadas praticamente por toda a parte na Europa, para tomarmos consciência da distância entre as amarras "patrão-escravo" e os laços entre os "irmãos de cruz" (a expressão é romena,fratia de cruce); cf., sobre as fraternidades pelo sangue, A. Dieterich, Mutter Erde (3 ed., Leipzig-Berlim, 1925), pp. 130 ss.; o livro clássico de H. C. Trumbull, The Blood Covenant (Londres, 1887), e Stith Thompson, Motif Index ofFolk-Literature, II (Helsinque, 1935), p. 125. Estaríamos tentados a assimilar essas formas de fraternidade às relações religiosas existentes entre os humanos e Mitra —diante das relações bastante duras entre Varuna e seus devotos. O que não implica de forma alguma — muito pelo contrário—que o valor religioso de Varuna seja "pobre"!
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razão ao atribuir o ritual dos sêmnones à influência ilíria, e ao considerá-lo pertencente a um nível cultural lunar-ctônico, tendo seu centro nas regiões do sul35. Mas, além desse ritual, encontramos junto aos germanos outros elementos que se integram ainda no mesmo complexo do "amarrar": por exemplo, a morte ritual por enforcamento explica o epíteto de Odhinn, "deus da corda" (Haptagud, Closs, p. 609); da mesma forma, as deusas funerárias germânicas puxam os mortos com uma corda36 e as deusas guerreiras (do antigo escandinavo Disir, do antigo-alto-alemão Idisi) amarram aqueles que elas querem derrubar'. Deve-se atentar para essas características; elas lembram a técnica de Yama e de Nirrti e, aliás, serão esclarecidas por fatos que citaremos.
Irã Os princípios iranianos são de dois tipos: 1?) algumas alusões ao demônio Astôvidhôtush que também amarra o homem destinado a morrer38; 2?) os gestos dos deuses guerreiros e
35. A. Closs, op. cit., pp. 643, 668. De acordo com o mesmo autor (p. 567), o amarrar da vítima ritual seria um complexo das culturas megalíticas e da Ásia sul-oriental. 36.J. Grimm, Deutsche Mythologie, II, 705, IV, 254; Scheftelowitz, op. cit., p. 7. 37. R. H. Meyer Altgermanische Religionsgeschichte (1910), pp. 158, 160. Mas a personalidade dessas deusas é mais complexa; cf. Jan de Vries, Altgermanische Religionsgeschichte, II (Berlim, 1937), pp. 375 ss. 38. Ele amarra os feridos com suas "amarras da morte" (derezê mata ithyaosh, Yasna 53, 8; Scheftelowitz, Die altpersische Religion, p. 92). "É Astovidhôtush quem o amarra, e Vayu quem o leva amarrado", Vendidad, 5, 8; H. S. Nyberg, "Questions de cosmogonie et de cosmologie mazdeennes", II (em Journal Asiatique, outubro-dezembro de 1931, pp. 193-244), p. 205; G. Dumézil, Tarpeia (Paris, 1947), p. 73. Cf. Ménoke Khrat 2, 115; G. Widengren, Hochgottglaube im alten Iran (Uppsala, 1938), p. 196.
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dos heróis iranianos: Fredim, por exemplo, amarra o demônio Azdahâk e o acorrenta ao monte Dimâvand (Dinkard, IX, 21, 103), o deus Tishtrya amarra as feiticeiras Pairika com duas ou três cordas (Yasht, 8, 55); Verethragna, como vimos, prende os braços do adversário (Yasht, 14, 63); em certos episódios do Shah Nameh, como observou Scheftelowitz39, Ahriman segura um laço; e fala-se também das amarras do deus do destino. A ausência de um Soberano amarrador, como réplica iraniana de Varuna, não é inexplicável: quer o lugar de Varuna, como se pensa geralmente, seja ocupado apenas pelo deus supremo Ahura Mazdâh, quer seja ele ocupado também, como sugere Dumézil (Naissance d'archanges, 1945, pp. 82 ss., 100 ss.), pela amesha spenta Asha, trata-se, nos dois casos, de entidades purificadas, moralizadas pela reforma zoroástrica, em cuja natureza seria inconcebível encontrar a "magia" de Varuna. Os elementos "soberanos" que sobrevivem em Ahura Mazdâh (Widengren, op. cit., pp. 259 ss.) não deixam mais aparecer uma "soberania terrível", e se ele é às vezes deus do destino (Yasna, 1, 1; trad. pehlevi, Widengren, p. 253), esta é uma característica por demais comum dos deuses supremos e uranianos para que disto se possa tirar qualquer conclusão. Mas, por ignorarmos quase tudo do que era o equivalente iraniano do Varuna védico antes da reforma zoroástrica, seria imprudente, e certamente falso, concluir que o caráter "amarrador" de Varuna seja devido, na índia, a uma influência anariana. De fato, o grego Urano também amarra seus rivais e, como dedemonstrou Dumézil (Ourános-Váruna, passim), existem razões para se buscar no mito de Urano e dos Uranidos os traços de um esquema já indo-europeu. De qualquer forma, os fatos iranianos confirmados referem-se apenas a dois dos temas que abordamos no conjunto indiano: 1?) o deus ou o herói amarrador de demônios; 2r:) o demônio funerário que amarra o homem antes de levá-lo para a ponte Cinvat. Em conseqüência, talvez, da reforma zoroástrica, os dois outros temas impor39. Das Schlingen - und Netzmotiv, p. 9; Die altpersische Religion, p. 92.
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tantes do conjunto indiano —a "magia" de Varuna e o "amarrar" cosmológico — não mais aparecem.
Paralelos etnográficos Seria inútil formular qualquer conclusão geral sobre os fatos indo-europeus antes de termos ampliado, como anunciamos, nossa perspectiva histórica e cultural e termos integrado o complexo do "amarrar" a um grupo mais vasto de simbolismos análogos ou idênticos. Porém, desde agora, podemos assinalar alguns paralelos etnográficos ao grupo indo-europeus dos deuses e dos demônios funerários que "amarram" os mortos. A imagem mais próxima do casal iraniano VayuAstôvidhôtush não é outra senão a do deus chinês do vento e da rede, Pauhi, que se encontra em estreita relação com a deusa-serpente Nakura, o que prova que ele pertence a um nível cultural ctônico-lunar'. Quanto às cordas de Yama, de Nirrti, de Astôvidhôtush e das deusas germânicas, suas réplicas mais exatas encontram-se na região do Pacífico. Entre os arandas da Austrália, os demônios tjimbarkna atam durante a noite as almas dos humanos e os matam apertando fortemente a corda". Nas ilhas Danger, o deus da morte, Vaerua, amarra os defuntos com cordas e os arrasta assim ao país dos mortos'. Nas ilhas Hervey, a alma do defunto, descendo ao inferno por uma árvore milagrosa, vê a rede de deus Akaanga que o espera, e da qual ele não pode escapar'. Em San Cristobal, 40. Inone, citado por Closs, p. 643, nota 44. Cf. a lenda dos dois espíritos, Shen-t'u e Yü-lei, que amarram as almas dos mortos no fundo de uma caverna; C. Hentze, Die Sakralbronzen und ihre Bedeutung in den friihchinesischen Kulturen (Antuérpia, 1941), p. 23. 41. Carl Strehlow, Die Aranda-und Loritja-Stãmme in Zentral-Australien, I (Frankfurt a. M., 1907), p. 11. 42. W. Wyatt Gill, Life in the Southern Isles (Londres, 1876), pp. 181 ss. 43. W. Wyatt Gill, Myths and songs from the South Pacific (Londres, 1876), pp. 161 ss.; cf. também E. S. C. Handy, Polynesian Religion (Honolulu, 1927), p. 73. Ver M. Walleser, "Religiõse Anschaungen u. Gebrãuche der Bewohner von Jap" (Anthropos, VIII, 1913, pp. 607-629, pp. 612-613).
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o "Fisher of Soul", sentado sobre um rochedo, pesca as almas'. Nas ilhas Salomão, são os parentes que pescam a alma do defunto para colocá-la em uma caixa com uma relíquia corporal (crânio, maxilar, dente etc.)'. Os feiticeiros das ilhas Hervey possuem armadilhas mágicas com as quais capturam as almas daqueles que querem perder'. Encontramos o mesmo costume em outras zonas culturais', mas é importante ressaltar quanto, na Melanésia, a maneira pela qual o deus da morte "pesca" e "amarra" as almas é análoga à técnica mortífera dos feiticeiros. Esta solidariedade entre as duas magias contribui para esclarecer o problema do "amarrar". Vimos que, entre os indo-europeus, os motivos dos laços, dos nós e das cordas dividem-se em vários grupos distintos: entre certos deuses, heróis ou demônios, certos rituais, certos costumes. O aspecto que o mesmo problema apresenta no mundo semítico é completamente diferente: todos os tipos de amarras mágicas são um prestígio divino (e demoníaco) quase universal. Existem deuses soberanos como Enlil e sua esposa Ninkhursag ( = Ninlil), ou então os deuses lunares como Enzu ( = Sin), que apanham em suas redes aqueles que são culpados de perjúrio". Mas Shamash, o deus solar, está também 44. Dr. C. E. Fox. The Threshold of the Paczfic (Londres, 1924), pp. 234 ss. 45. W. G. Ivens, The Melanesians of the S. E. Solomon Islands (Londres, 1927), p. 178; mesmo costume no Havaí, cf. E. S. Craighill Handy, op. cit., p. 92. pp. 180 ss.; Mythes..., p. 171. 46. W. Wyatt Gill, 47. O xamã tungus utiliza um laço para resgatar a alma fugitiva de um doente; S. Shirokogorow, The psychomental complex of the Tungus (XangaiLondres, 1935), p. 290. O xamã imita, aliás, a técnica dos espíritos; ibid. p. 178. Existe o mesmo complexo cultural entre os Tchouktches. Sobre este problema, ver nosso livro Le chamanisque et les rechniques archaïques de l'extase (Paris, 1951). 48. L. W. King, History of Sumer and Akkad (Londres, 1910), pp. 128 ss., G. Furlani, La religione babilonese-assira, I (Bolonha, 1928), p. 159; E. Dhorme, Les religions de Babylonie et d'Assyrie (Collection "Mana", II, Paris, 1945), pp. 28, 49; E. Douglas Van Buren, Symbols of the Gods in Mesopotamian Art (Roma, 1945, Analecta Orientalia, 23), pp. 11-12.
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armado com laços e cordas, e pede-se a ele para libertar aquele que foi amarrado; a deusa Nisaba amarra os demônios das doenças; por sua vez, os demônios têm seus laços, especialmente os demônios das doenças (invoca-se o demônio da peste dizendo: "Com a rede, prende e aniquila os babilônios!""). Diz-se a Bel ( = Enlil): "Pai Bel, lança os laços, e que cada laço seja um laço hostil"°. Tammuz é chamado "Senhor dos laços'', mas, no mito, ele próprio é "amarrado" e pede para ser libertado'. Pede-se a Marduk para que ele o liberte das correntes e dos laços, pois ele também é um mestre amarrador. Como Indra, ele utiliza o laço e as cordas como um deus campeão, à maneira "heróica". No poema da Criação, Enuma Elish, distinguem-se duas espécies de "amarrar" que lembram o díptico védico Varuna-Indra. Ea, o deus das Águas e da sabedoria, não luta "heroicamente" com os monstros primordiais Apsil e Mummu: ele os "amarra" através de encantos mágicos para matá-los em seguida (Enuma Elish, 1, 60-74). Marduk, após ter sido investido pela assembléia dos deuses das prerrogativas da soberania absoluta (que pertencia até então ao deus celeste Anu, IV, 4 e 7), e após ter recebido o cetro, o trono e o "pâlu" (IV, 29), tenta combater o monstro marinho Tiamat e, dessa vez, assistimos realmente a uma luta "heróica"; mas a principal arma de Marduk continua sendo a "rede", "dom de seu pai Anu"". Marduk "amarra" Tiamat (IV, 95), "acorrenta-o" e tira-lhe a vida (IV, 104). Em seguida 49. Scheftelowitz, Das Schlingen- und Netzmotiv, pp. 4 ss. 50. M. Jastrow, Die Religion Babyloniens und Assyriens, vol. II (Giessen, 1912), p. 15. 51. Scheftelowitz, op. cit., p. 4 52. M. Witzel, Tammuz-Liturgien und Veru'andtes (Roma, 1937, Analecta Orientalia, 10), p. 140; Geo Widengren, Mesopotamian Elements in Manichaeism (Uppsala, 1946), p. 80. 53. Ibid., IV, 49. Na prancha I, 83, Marduk é o filho de Ea, mas, qualquer que seja o sentido desta filiação, ela se origina essencialmente da soberania mágica. Seguimos a tradução francesa de R. Labat, Le poème babylonien de la Création (Paris, 1935).
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ele acorrenta todos os deuses e demônios que haviam ajudado Tiamat, e, diz o poema, "foram jogados nas redes, permaneceram nas nassas, foram postos nas cavernas" (IV, 111-114, 117, 120). Marduk obtém a soberania por sua luta heróica, mas conserva também as prerrogativas da soberania mágica. Levando-se em conta também o valor mágico das cordas, dos nós e dos laços na feitiçaria e na medicina popular (ver mais adiante), a impressão geral que se tem desta rápida exploração do domínio mesopotâmico é a de uma confusão quase total. O "amarrar" parece ser um prestígio mágico-religioso igualmente incorporado por todas as "formas" religiosas. Seria interessante que um especialista das religiões mesopotâmicas retomasse o problema para determinar se, por trás desta confusão, se pode reconstituir uma "história".
A magia dos nós Consideremos agora, no seu conjunto, a morfologia das amarras e dos nós na prática mágica. Podemos classificar os fatos mais importantes sob duas rubricas: 1.) as "amarras" mágicas utilizadas contra os adversários humanos (na guerra, na feitiçaria), com a operação inversa do "corte das amarras"; 2?) os nós e as amarras benéficas, meios de defesa contra os animais selvagens, contra as doenças e os feitiços, contra os demônios e a morte. Contentemo-nos com alguns exemplos. Podemos citar, na primeira categoria, os laços mágicos dirigidos contra os adversários (Atharva Veda, II, 12, 2; VI, 104; VIII, 8, 6), as cordas jogadas pelo príncipe sobre o caminho das tropas inimigas (Kauçitaki Samhitâ, XVI, 6), a corda enterrada perto da casa de um inimigo ou ainda escondida no seu barco para fazê-lo afundar', enfim, os nós que provocam todo 54. Kamitaki Samhitii, XLVIII, 4-5: Caland, Altindische Zauberritual (Amsterdã, 1900), p. 167; V. Henry, La mag e dans linde antique (Paris, 1903), p. 229; Scheftelowitz, p. 12.
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tipo de mal, tanto na magia antiga" como nas superstições modernas'. Quanto ao "corte das amarras, ele já é utilizado pelo Atharva Veda (por ex. VI, 14, 2 ss.); e, na mesma ordem de idéias, como meio preventivo, lê-se freqüentemente na literatura etnográfica que os homens não devem usar sobre si nenhum nó em certos períodos críticos (nos nascimentos, no casamento, na morte)'. Na segunda categoria, podemos classificar todos os costumes que atribuem aos nós e às amarras uma função de cura, de defesa contra os demônios, de conservação da força mágicovital. Já na Antiguidade'', amarrava-se, para curar, a parte doente do corpo, e a mesma técnica é ainda utilizada atual55. Ezequiel, 13,18-21; C. Fossey, La magie assyrienne (Paris, 1902), p. 83; M. Jastrow, The Religion of Babylonia and Assyria (Boston, 1898), pp. 280 ss. etc. 56. W. Crooke, Me Popular Religion and Folklore of Northern India (Westminster, 1896), II, pp. 46 ss.; S. Seligmann, Der Use Blick (Berlim, 1910), I, pp. 262, 328 ss.; Scheftelowitz, p. 14; Frazer, Taboo, pp. 301 ss. (trad. fr., pp. 251 ss.); G. L. Kittredge, Witchcraft in Old and New England (Cambridge, Mass., 1929), pp. 201 ss.; cf. Handworterbuch des deulschen Aberglaubens, s. v. Schlinge, Netz etc.; no folclore, Stith Thompson, Motif lndex, vol. II, p. 313. 57. Tudo deve ser aberto e desfeito para facilitar o parto, Frazer, op. pp. 296 ss. (trad. fr., pp. 247 ss.); mas cf. a rede como defesa contra os demônios durante o parto entre os calmucos, Frazer, Folklore in the Old Testament, III (Londres, 1919), p. 473. A consumação de um casamento podia ser impedida pela magia das cordas e dos nós, Frazer, Taboo, pp. 299 ss. (trad. fr., p. 249). Não se poderá morrer enquanto houver fechaduras trancadas e ferrolhos na casa (ibid., p. 309; trad. fr., p. 257), e em certos lugares desatam-se as cordas do sudário para assegurar o repouso da alma (ibid., p. 310; trad. fr., p. 258). Em compensação, para se defender contra as almas dos defuntos, as viúvas usam, na Nova Guiné, redes como sinal de luto (Frazer, The Belief in Immortality, I [Londres, 1913], pp. 241, 249, 260, 274, 293). É ainda como defesa contra os espíritos dos mortos que se amarram os cadáveres (Frazer, La crainte des mores, trad. fr., série, Paris, 1935, pp. 53 ss.), ainda que o significado desse costume seja bem mais complexo. 58. Kauçitaki-Sam. XXXII, 3, Caland, Altindische Zauberritual, p. 104; R. C. Thompson, Semitic magie, its origins and development (Londres, 1908), pp. 165 ss.
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mente na medicina popular'. Mais disseminado ainda é o costume de defender-se contra as doenças e os demônios com a ajuda de nós, barbantes e cordas', especialmente durante o parto'. Em todos os lugares do mundo, os nós são usados como amuletos'. É um fato interessante a utilização dos nós e dos barbantes no ritual das núpcias, para proteger os recémcasados', quando se sabe que são eles, justamente, que podem impedir a consumação do casamento. Mas esta ambivalência é a mesma que observamos em todas as utilizações mágico-religiosas dos nós e das amarras. Os nós provocam a doença e também a afas-
tam ou curam o doente; as redes e os nós enfeitiçam e também protegem contra o feitiço; eles impedem o parto e também o facilitam; preservam os recém-nascidos e também fazem com que adoeçam; trazem a morte e também a afastam. Em suma, o essencial em todos estes ritos mágicos e mágico-medicinais é a orientação que se dá à força existente em qualquer "amarração", em toda ação de "amarrar". Ora, a orientação pode ser positiva ou negativa, quer consideremos esta oposição no sentido "benéfico" ou "maléfico", ou no sentido de "defesa" ou "ataque".
Magia e religião Certamente, todas essas crenças e todos esses ritos nos conduzem ao campo da mentalidade mágica. Mas, pelo fato de essas práticas populares originarem-se da magia, ter-se-ia o direito de considerar o simbolismo geral do "amarrar" como 59. Scheftelowitz, p. 29, notas 1, 31; Frazer, Taboo, p. 301 ss. (trad. fr., pp. 252 ss.). 60. Assíria: Thompson, op. cit., p. 171; Furlani, La religione babiloneseassira, II (Bolonha, 1929), p. 166; China, Índia: Scheftelowitz, p. 38. 61. Índia: W. Crooke, op cit., II, p. 36; Todas etc.: Scheftelowitz, p. 39; África: ibid, p. 41. 62. Frazer, Taboo, pp. 308 ss. (trad. fr ., pp. 255 ss.); Scheftelowitz, p. 41. 63. Scheftelowitz, pp. 52 ss.
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uma criação exclusiva da mentalidade mágica? Não cremos nisso. Mesmo que os ritos e os símbolos do "amarrar" entre os indo-europeus encerrassem elementos ctônicos-lunares, e conseqüentemente traíssem as fortes influências mágicas — o que não é certo —, restaria a explicar outros documentos que exprimem não apenas uma experiência religiosa autêntica, mas também uma concepção geral do homem e do mundo que é verdadeiramente religiosa, e não mágica. As características mesopotâmicas que vimos anteriormente, por exemplo, não podem ser reduzidas na sua totalidade a uma interpretação mágica. Entre os hebreus, as coisas são ainda mais claras: é verdade que a Bíblia fala das "redes da morte" (por exemplo, "as cordas da Casa dos Mortos me rodearam, as redes da morte me surpreenderam", 2 Samuel 22, 6; cf. Salmos 18, 6; "os laços da morte me rodearam, as angústias da Casa dos Mortos me tomaram, estava oprimido pelo sofrimento e pela dor; invoquei então o nome do Eterno. Oh! Eterno, liberta minha alma!" (Salmos 116, 3-4). Porém, o terrível mestre dessas amarras é o próprio Yahweh, e os Profetas o representam com as redes nas mãos para punir os culpados: "Por onde andarem, lançarei sobre eles a minha rede, eu os abaterei como pássaros do céu" (Oséias 7,12); "Estenderei sobre ele minha rede, de modo que seja apanhado nas minhas malhas, e o conduzirei para Babilônia" (Ezequiel, 12, 13; cf 17, 20); "Estenderei sobre ti minha rede" (ibid., 32, 3). E a experiência religiosa de Jó, tão profunda e autêntica, retoma a mesma imagem para expressar a onipotência de Deus: "Pois sabei que foi Deus quem me transtornou, envolvendo-me em suas redes!" (Jó, 19, 6). Os judeu-cristãos, que sabiam também que é o demônio que "amarra" os doentes (por exemplo Lucas 13, 16), falavam porém do Deus Supremo como "Mestre das Amarras". Assim, encontramos no mesmo povo uma multivalência mágico-religiosa de "amarras": amarras da morte, da doença, da feitiçaria — e também laços de Deus". "Uma rede 64. Conseqüentemente, podemos supor que certas alusões védicas ao laço de Varuna expressem também uma experiência religiosa comparável à de Jó.
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é estendida sobre todos os seres vivos", escrevia o rabi Aqiba (Pirqê Abêt, 3, 20; Scheftelowitz, p. 11). É uma feliz formulação,
pois expressa não apenas uma visão exclusivamente "mágica" ou "religiosa" da vida — mas, em toda a sua complexidade, a própria situação do homem do mundo; para utilizar uma terminologia que está na moda, ela expressa a condição do próprio existente. Realmente, o "fio da vida" simboliza em inúmeros países o destino humano. "O fio de sua vida (lit.: a corda de sua tenda) foi rompido!", exclama Jó (4, 21; cf. 7, 6). Aquiles, como todos os mortais, "sofrerá o que, no seu nascimento, o destino fiou para ele com o linho, no momento em que sua mãe deu à luz" (Ilíada, 20, 128; cf. 24, 210). As deusas do destino tecem o fio da vida humana: "Nós o deixaremos sofrer o destino que as tristes Fiandeiras colocam em seus fusos na hora em que de sua mãe ele recebeu a luz... (Odisséia, 7, 198, trad. fr . V. Bérard)'. E ainda: o próprio Cosmos é concebido como um tecido, como uma enorme "rede". Na especulação indiana, por exemplo, o ar (vâyu), "teceu" o Universo, ligando, como que por um fio, este mundo ao outro mundo e todos os seres (Brhadâranyaka Up., III, 7, 2), da mesma forma que um sopro (grana) "teceu" a vida humana. ("Quem teceu nele o sopro?", Atharva Veda, X, 2, 13). Resulta daí que um simbolismo tão denso exprime duas coisas essenciais: por um lado, que, no Cosmos como na vida humana, tudo está ligado através de uma textura invisível; por outro, que certas divindades' são as mestras desses "fios" que, em última análise, constituem uma vasta "amarração" cósmica. É raro que a etimologia forneça um argumento decisivo para problemas tão delicados quanto os que dizem respeito à "origem" da religião e da magia; mas ela é freqüentemente 65. Cf. vitae fila, Ovídio, Herodes, 15, 82. Ver o capítulo sobre rituais e mitologias lunares no nosso Traité d'Histoire des religions, pp. 142 ss. 66. A maioria das vezes — mas não sempre — divindades lunares, às vezes ctônico-lunares.
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esclarecedora. Scheftelowitz e Güntert lembraram que, em inúmeras famílias lingüísticas, as palavras que designam a ação de "amarrar" servem igualmente para expressar o enfeitiçamento: por exemplo, em turco-tártaro, bag, baj, boj significa ao mesmo tempo "feitiçaria" e "amarra", "corda"67; o grego xarotSéco significa "amarrar firmemente" e também "amarrar por um encanto mágico, fazendo um nó" (de onde vem xaroz8so-'Los, "corda, enfeitiçar", Inscr. Graec., 111, 3, p. V; Scheftelowitz, p. 17); o latim fascinum, "encanto, eficio", tem parentesco com fascia, "faixa, ligadura", com fascis, "liga"; ligâre, "atar", ligatara, "ação de amarrar", significam também "encantar" e "encanto" (cE o romano legatura, "ação de amarrar" e "enfeitiçar"); o sânscrito yukti, propriamente "atar, ligar", toma o sentido de "meios mágicos", e os poderes da ioga são interpretados às vezes como um feitiço por "amarração'''. Todas estas etimologias confirmam que a ação de amarrar é essencialmente mágica. Trata-se aqui de uma "especialização" extrema: enfeitiçar, amarrar pela magia, fascinar etc. Etimologicamente, religio significa também uma forma de "vinculação" à divindade, mas seria imprudente (como o faz Güntert, p. 130) compreender religio no sentido de "feitiçaria". Pois, como dissemos, tanto a religião como a magia encerram em sua própria essência o elemento "amarrar", ainda que, evidentemente, com outra intensidade e sobretudo com uma orientação oposta. 67. H. Vambéry, Die primitive Kultur des turko-tatarischen Volkes (Leipzig, 1879), p. 246. A noção de "desenfeitiçar" exprime-se pela expressão "libertar dos laços"; entre os Yoruba, a palavra edi, "laço", tem também o sentido de "magia", e a palavra Ewe vôsesa, "amuleto", significa "desatar" (A. B. Ellis, Yoruba-spealcing peoples, [Londres, 1894] p. 118). 68. Por exemplo, Mahablzárata, XIII, 41, 3 ss., onde vipulâ "tinha subjugado os sentidos (de Ruci) através das amarras da ioga" (babandha yogabandhdiç ca tasyáh sarvendriyáni sah; cf. meu Yoga. Essai sus les origines de la mystique indienne, [Paris-Bucareste, 1936], p. 151). Ver também Ananda K. Coomaraswamy, "Spiritual paternity" and the "Puppet-Complex" (em Psychiatry, VIII, n? 3, agosto de 1945, pp. 25-35), especialmente pp. 29 ss.
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Simbolismo das "situações-limite" Vários outros complexos simbólicos caracterizam, quase com as mesmas fórmulas, a estrutura do Cosmos e a "situação" do homem no mundo. A palavra babilônica markasu, "ligadura, corda", designa na mitologia "o princípio cósmico que une todas as coisas" e também "o suporte, o poder e a lei divina que mantêm unido o Universo'''. Da mesma forma, Chuang Tse (capítulo VI) fala do too como da "corrente da criação inteira'', o que lembra a terminologia cosmológica indiana. Por outro lado, o labirinto é concebido, às vezes, como um "nó" que deve ser "desatado", e esta noção se encaixa em um conjunto metafísico-ritual que abrange as idéias de dificuldade, perigo, morte e iniciação'. Em outro plano, o do conhecimento e da sabedoria, encontramos expressões si69. S. Langdon, Semitic Mythology (Boston, 1931), p. 109. Vários templos babilônico são chamados markas sharnê u irshiti, "ligação entre o Céu e a Terra", cf. E. Burrows, "Some cosmological patterns in babylonian religion" (no volume Labvrinth, editado por S. H. Hook, Londres, 1935, pp. 45-70), pp. 47-48, nota 2. Um antigo nome sumeriano do templo é "dimgal da região". Burrows (p. 47, nota 7) propõe a tradução "Great binding post"; dim "post" etc. e também "rope"; provavelmente dim = "to bind, thing to bind to, thing to bind with". O simbolismo do "amarrar" encontra-se aqui integrado em um contexto mais vasto, que poderíamos chamar o "simbolismo do Centro"; cf. mais acima, pp. 23 ss. 70. "The link of all Creation", trad. fr. Hughes (em Everyman's Library, p. 193). O caráter traduzido por "link" é hsi (Giles 4062), cujos sentidos são "dependence, fastening, tie, link, nexus, chain, lineage etc.", cf. A. K. Coomaraswamy, "The iconography of Dürer's `knots' and Leonardo's `concatenation' " (em The Art Quarterly, Spring, 1944, pp. 109-128), p. 127, nota 19. 71. Cf. os labirintos em forma de nós nos rituais e crenças funerárias em Malekula; A. Bernard Deacon, "Geometrical Drawings frorn Malekula and other Islands of the New Hebrides" (em journal of Me Anthropological Institute, vol. LXVI, 1934, pp. 129-175); id., Malekula. A vanishing people of the New Hebrides (Londres, 1934), especialmente pp. 552 ss.; John Layard, "Totenfahrt auf Malekula" (em Eranos-Jahrbuch, 1937, Zurique, 1938), pp. 242-291; id., Stone Men of Malekula (Londres, 1942), pp. 340 ss.; 649 ss., Interpretações comparativas, W. F. Jackson Knight, Cu,naean Gates (Oxford, 1936); Karl Kerényi, Labyrinth-Studien (Albae Vigiliae, XV, Amsterdá-Leipzig, 1941).
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milares: fala-se da "libertação" das ilusões (que na Índia leva o mesmo nome que a magia de Varuna, máyâ); procura-se "rasgar" os véus da irrealidade, "desatar" os "nós" da existência etc. Isto dá a impressão de que a situação do homem no mundo, qualquer que seja a perspectiva que consideremos, expressa-se sempre através de palavras-chave que contêm a idéia de "atar, acorrentar, amarrar" etc. No plano mágico, o homem serve-se de nós-amuletos para defender-se contra as amarras dos demônios e dos feiticeiros; no plano religioso, ele se sente "amarrado" por Deus, preso no seu "laço"; mas a morte também o "amarra", concretamente (o cadáver é "amarrado") ou metaforicamente (os demônios "amarram" a alma do defunto). Ainda melhor: a própria vida é um "tecido" (às vezes um tecido mágico, de proporções cósmicas, mdyn), ou um "fio" que sustém a vida de cada um dos mortais. Essas diversas perspectivas têm certos pontos em comum: em todos os lugares, o objetivo final do homem é libertar-se das "amarras": a iniciação mística do labirinto, durante a qual se aprende a desatar o nó labiríntico a fim de poder desatá-lo quando a alma o encontrar após a morte, corresponde à iniciação filosófica, metafísica, cuja intenção é "rasgar" o véu da ignorância e libertar a alma das correntes da existência. Sabe-se que o pensamento indiano é dominado por esta sede de libertação, e que sua terminologia mais característica se reduz a formulações polares, tais como "acorrentar-libertar", "amarradodesamarrado", "ligado-desligado" etc'. As mesmas formulações estão presentes na filosofia grega: na caverna de Platão, os homens são presos por correntes que os impedem de se mexer e de virar a cabeça (Rep., VII, 514 a ss.). A alma, "após sua queda, foi presa, foi acorrentada...; ela está, dizem, num túmulo e numa caverna; porém, voltando-se para os pen72. Ver nosso livro Techniques du Yoga, passim. No seu artigo The iconography of Ditrer's "knots", A. K. Coomaraswamy estudou os valores metafísicos dos nós e sua sobrevivência na arte popular como entre certos artistas da Idade Média e da Renascença.
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sarnentos, ela se libertará dos seus laços..." (Plotino, Enéadas, IV, 8, 4; cf. IV, 8, 1: "A caminhada em direção à inteligência é, para a alma, a libertação das suas amarras.") Essa polivalência do complexo do "amarrar" — que acabamos de observar nos planos cosmológico, mágico, religioso, iniciático, metafisico, soteriológico — vem provavelmente do fato de que o homem reconhece nesse complexo uma espécie de arquétipo da sua própria situação no mundo. Com isso, ele contribui em primeiro lugar para levantar um problema de antropologia filosófica a partir do qual o estudo propriamente filosófico ganharia muito se não negligenciasse esses documentos relativos a certas "situações-limite" do homem arcaico; pois, se o pensamento contemporâneo se orgulha de ter redescoberto o homem concreto, não deixa de ser verdade que essas análises tratam sobretudo da condição do ocidental moderno e que ela peca, assim, pela falta de universalismo, por um tipo de "provincialismo" humano definitivamente monótono e estéril. O complexo do "amarrar" coloca, por outro lado, ou melhor, constitui um problema que interessa no mais alto grau à história das religiões, não somente pelas relações que estabelece entre a magia e a religião, mas sobretudo porque nos revela o que poderíamos chamar de proliferação das formas mágico-religiosas e a "fisiologia" dessas formas: temos a impressão de assistir a um "amarrar" arquetípico que tenta se concretizar tanto nos diversos planos da vida mágico-religiosa (cosmologia, mitologia, feitiçaria etc.) como nas diferentes etapas de cada um desses planos (por exemplo, a grande magia e a pequena magia; a feitiçaria ofensiva e a feitiçaria defensiva etc.). De certo modo, poderíamos até dizer que, se o "soberano terrível" histórico ou historicizado esforça-se por imitar o seu protótipo divino, o "deus amarrados", qualquer feiticeiro imita, por sua vez, o soberano terrível e seu modelo transcendente. Morfologicamente,
não há solução de continuidade entre Vrtra que "aprisiona" as Águas, Varuna que "amarra" os culpados, os demônios que prendem os mortos em suas "redes" e os feiticeiros que amarram magicamente o adversário ou desamarram as víti-
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mas de outros feiticeiros. A estrutura de todas estas operações é a mesma. No estado atual dos nossos conhecimentos, é difícil determinar se esta uniformidade emana da imitação, de empréstimos "históricos" (no sentido que dá a esta palavra a escola histórico-cultural), ou se ela se explica pelo fato de todas essas operações emanarem da própria situação do homem no mundo, ou seja, são as variantes de um mesmo arquétipo que se realiza sucessivamente em múltiplos planos e em áreas culturais diferentes. Parece certo que, pelo menos no caso de alguns complexos (o da soberania mágica indo-européia, por exemplo), trata-se de conjuntos míticos-rituais que são historicamente solidários. Mas a realidade histórica do complexo indo-europeu do "amarrar" não implica necessariamente que todos os outros costumes e crenças mágico-religiosos, espalhados pelo mundo e relativos a um complexo similar, sejam também "históricos" (ou seja, derivem de um mesmo elemento ancestral, ou resultem de influências diretas ou indiretas, de empréstimos etc.). Para deixar claro nosso pensamento acrescentamos que se o caso particular indo-europeu não implica necessariamente esta conclusão, ele também não a exclui, e, até por prudência, o problema deve permanecer aberto.
Simbolismo e história A título de comparação, poderíamos citar um caso análogo: o complexo da ascensão ritual e do vôo mágico. Se por um lado podem ser estabelecidas certas relações históricas (filiação, empréstimos) entre as diversas crenças e sistemas (rituais, místicas etc.) que compreendem a ascensão como um de seus elementos essenciais', por outro a morfologia da ascensão e do simbolismo do vôo ultrapassa muito essas relações históricas. Mesmo que se consiga identificar a fonte histórica 73. Ver nosso livro Le chamanisme et les techniques archaïques de l'extase, pp. 137 ss., 296 ss., 362 ss., 423 ss., e passim.
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responsável por todos os rituais e simbolismos sociais da ascensão, mesmo que estejamos, por conseguinte, em condições de definir o mecanismo e as etapas da sua difusão, ainda restará a explicar o simbolismo do sonho ascensional, dos devaneios e das visões estéticas, que não são apenas centradas em torno do complexo da ascensão e do vôo, mas apresentam esse mesmo complexo já organizado e carregado dos mesmos valores que revelam os rituais, os mitos e os philosophoumena da ascensão. Definimos anteriormente os caminhos de um tal estudo comparativo'. Contentemo-nos em concluir que estamos tratando de expressões não-históricas de um mesmo simbolismo arquetípico, que se manifesta de maneira coerente e sistemática tanto no plano do "inconsciente" (sonho, alucinação, devaneio) como no do "transconsciente" e do consciente (visão estética, rituais, mitologia, philosophoumena). Notemos de passagem que as manifestações do inconsciente e do subconsciente apresentam uma estrutura e valores que combinam perfeitamente com os das manifestações conscientes; e, como estas últimas são "racionais", no sentido de que seus valores se justificam logicamente, poder-se-ia falar de uma "lógica" sub ou transconsciente que não seria sempre heterogênea com relação à lógica "normal" (ou seja, à lógica clássica, ou do bom senso). Provisoriamente, aceitemos a hipótese de que pelo menos uma certa região do subconsciente é dominada pelos mesmos arquétipos que dominam e organizam igualmente as experiências conscientes e transconscientes. Por esta razão, teremos o direito de considerar as múltiplas variantes de um complexo simbólico (em nossos exemplos, o complexo da "ascensão" ou do "amarrar") como uma continuidade infinita de "formas" que, nos diferentes planos do sonho, do mito, do rito, da teologia, da mística, da metafísica etc., tentam "realizar" o arquétipo. 74. "Durohâna and the `waking dream'", em Art and Thought (A Volume
in Honour of the late Dr. Ananda K. Coomaraswarny, Londres, 1947), pp. 209-213.
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Certamente, todas essas "formas" não são espontâneas, nem dependem diretamente do arquétipo ideal; grande número delas são "históricas", no sentido de que são o resultado da evolução ou da imitação de uma forma já existente. Certas variantes da feitiçaria do "amarrar" apresentam um aspecto simiesco bastante desconcertante; tem-se a impressão de que foram copiadas, no seu plano limitado, das "formas históricas" já existentes da soberania mágica ou da mitologia funerária. Mas é preciso ter prudência, pois em geral as variantes patológicas dos complexos religiosos apresentam também um lado simiesco. O que parece mais certo é a tendência de qualquer "forma histórica" a aproximar-se o máximo possível de seu arquétipo, mesmo quando ela se realiza num plano secundário, insignificante: este fenômeno se verifica por toda a parte, ao longo da história religiosa da humanidade. Qualquer deusa local tende a se tornar a Grande Deusa; qualquer vilarejo é o "Centro do Mundo"; qualquer feiticeiro se diz, no mais forte do seus ritos, o Soberano Universal. É a mesma tendência ao arquétipo e à restauração da forma perfeita — da qual qualquer rito, mito ou divindade são apenas pálidas variantes — que torna possível a história das religiões. Sem ela, a experiência mágico-religiosa criaria continuamente formas fulgurantes ou evanescentes de deuses, mitos, dogmas etc., e o observador se encontraria diante de uma fusão de tipos incessantemente novos, que não permitiriam nenhuma organização. Mas, uma vez "realizada", "historicizada", a forma religiosa tende a separar-se das condições de tempo e de lugar e a tornar-se universal, a reencontrar o arquétipo. Enfim, o "imperialismo" das formas religiosas vitoriosas explica-se também por esta tendência de qualquer hierofania ou teofania a tornar-se "Tudo", ou seja, a esgotar, sozinha, a manifestação do sagrado, a incorporar-se à imensa morfologia do sagrado'. Sejam, quais forem essas visões gerais, é provável que o complexo mágico-religioso do "amarrar" corresponda a um arque75. Ver Traité d'histoire des religions, pp. 392 ss.
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tipo ou a uma constelação de arquétipos (citamos alguns: o tecer do Cosmos, o fio do destino humano, o labirinto, a corrente da existência etc.). A ambivalência e a heterogeneidade dos elementos do "amarrar" e dos nós, assim como da "libertação das amarras", confirmam quanto são múltiplos e diversos os planos nos quais os arquétipos se "realizaram". Isto não quer dizer, obviamente, que nessa enorme massa de fatos relativos aos complexos mágico-religiosos analisados não se possam distinguir certos conjuntos historicamente solidários, e que não se tenha o direito de considerá-los como dependentes uns dos outros ou como originários de uma fonte comum. É o que Güntert, Dumézil e A. Closs fizeram, sob diferentes perspectivas, no campo indo-europeu. Hesitaríamos em seguir Closs quando esse estudioso, fiel aos princípios da escola histórico-cultural de Viena', tenta explicar tal rito ou mito americano ou melanésio do "amarrar", como historicamente dependente da mesma fonte que deu origem às formas indo-européias. Mais plausível é a hipótese da origem caucasiana (p. 643) do complexo do "amarrar" como ritual indo-europeu: os fino-úgricos e os turco-tártaros ignoram tanto os ritos como os mitos do "amarrar", o que parece indicar que a origem do complexo deve ser procurada nos países do Sul. Realmente, os paralelos mais próximos do rito georgiano das correntes de "Georges Blanc" (ver acima) encontram-se na índia: por um lado, o anel de ferro que o feiticeiro (Panda) dos Bondes" 76. A escola histórico-cultural de W. Schmidt e W. Koppers prestou até hoje importantes serviços à história das religiões, mas suas teses, levadas ao extremo, acabam em uma tal "historicização" do homem, que praticamente toda espontaneidade espiritual é eliminada. Se concebemos o homem apenas enquanto ser histórico, não deixa de ser verdade que, por sua própria natureza, ele se opõe à história e esforça-se por aboli-la e reencontrar, por todos os meios, um "paraíso" intemporal, onde sua situação seria menos uma "situação histórica" do que uma "situação antropológica" (ver nosso livro Le mythe de l'éternel retour). 77. Cf. W. Koppers, "Zentralindische Fruchtbarkeitsriten und ihre Beziehungen zur Induskultur" (em Geographica Helvetica, 1, 1946, Heft 2, pp. 165-177), pp. 168 ss.
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usa em torno do pescoço durante os nove dias da festa de Káli-Dürga (festa essa que é chamada entre os gondes de zvard, palavra derivada do hindi javárá, "aveia", o que prova sua origem agrária); por outro, os anéis de ferro em torno do pescoço de um ídolo feminino e do "Proto-Shiva" encontrados em Mohenjo-Daro78. Obviamente, seria imprudente supormos uma derivação direta do rito atual dos gondes a partir da cultura proto-histórica dos hindus, mas a relação estabelecida por W. Koppers entre os fatos não deixa de ser interessante'. No entanto, ainda resta explicar a freqüência dos elementos do "amarrar", dos "nós" etc., nas camadas arcaicas das religiões mesopotâmicas. Seria ela uma variante paralela que, diversamente do que se passou entre os indo-europeus, não conseguiu organizar-se num sistema teológico e ritual e imporse ao conjunto da vida religiosa, multiplicando-se então infinitamente, transformada em prestígio, tanto divino como demoníaco, e anexada por todas as divindades e utilizada por todos os feiticeiros? O certo é que apenas entre os indo-europeus o complexo do "amarrar" se encontra organicamente integrado na própria estrutura da soberania terrível, divina ou humana, e é somente entre os indo-europeus — como mostraram sobretudo as pesquisas de Dumézil — que estamos diante de um sistema coerente e de aplicação geral aos planos ritual, mitológico, teológico etc. Mas, mesmo entre os indo-europeus, esse sistema, centrado na concepção do Soberano Terrível, não conseguiu esgotar o poder criativo das formas mágico-religiosas e dos simbolismos relativos ao "amarrar", como as páginas 78. Cl: J. Marshall, Mohenjo-Daro and the Indus civilization (Londres, 1931), t. I, prancha XII, 8, 17. 79. Quanto à função ritual dos nós nas religiões egéias (Arthur Evans, The palace of Mines, I, pp. 430 ss.), ela ainda não foi elucidada: negada por M. P. Nilsson, que a reduziu a um valor decorativo (Minoan-Mycenaean Religion, Lund, 1927, pp. 137 ss., 349 ss.), esta função ritual foi recentemente confirmada por Axel W. Persson, The religion of greece in Prehistoric times (Berkeley e Los Angeles, 1942), pp. 38 e 68. Cf. também Charles Picard, Les religions préhelléniques. Crête et Mycènes (Paris, 1948), pp. 194-195.
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anteriores tentaram demonstrar, e procuramos até encontrar uma explicação para este fato no plano da magia, da mitologia e da religião em si: ele seria o resultado da própria situação do homem no mundo ("origem" espontânea), ou da imitação mais ou menos servil das formas já existentes ("gênese" histórica). Qualquer que seja a explicação que se prefira, a complexidade da concepção indo-européia do deus Soberano Terrível é certa. Começamos a entrever a pré-história, e estamos preparados para identificar os eventuais empréstimos das tradições religiosas estrangeiras. Talvez seja impróprio definir esta concepção como sendo uma concepção exclusivamente mágica, ainda que sua estrutura freqüentemente nos convide a qualificá-la como tal: por um lado, ressaltamos, na própria índia, os valores cosmogônicos e metafísicos do "amarrar" de Varuna e Vrtra; por outro, as experiências religiosas provocadas, entre os hebreus, pelo mesmo complexo provam que uma vida religiosa muito pura e muito profunda pode buscar alimento nos próprios "laços" de um Deus aparentemente terrível e "amarrador".
CAPÍTULO IV
OBSERVAÇÕES SOBRE O SIMBOLISMO DAS CONCHAS A lua e as águas As ostras, os mariscos, o caracol, a pérola são solidários tanto das cosmologias aquáticas como do simbolismo sexual. Realmente, todos participam dos poderes sagrados concentrados nas Águas, na Lua, na Mulher; além disso, eles são emblemas dessas forças por diversas razões: a semelhança entre as conchas dos mariscos e os órgãos genitais da mulher, as relações unindo as ostras, as águas e a lua, enfim, o simbolismo ginecológico e embriológico da pérola, formada na ostra. A crença nas virtudes mágicas das ostras e das conchas é encontrada no mundo inteiro, da pré-história aos tempos modernos'. O simbolismo que está na origem de tais concepções 1. G. F. Kunz e Charles Hugh Stevenson, The Book of the Pearl (Londres, 1908), recolheram um considerável material documentário sobre a difusão das pérolas; J. W. Jackson, "The geographical distribution of the use of pearls and pearl-shells" (53 pp., Manchester, 1916; relatório republicado no volume Shells as Evidence of the Mi gration of Early Culture, Manchester, 1917), completa as informações de Kunz e Stevenson. Encontraremos o essencial da enorme bibliografia sobre a função mágica das conchas no artigo de W. L. Hildburgh, "Cowrie-shell as amulets in Europe" (Folk-Lore, vol. 53-54, 1942,1943, pp. 178-195). Cf. também as diversas contribuições ao problema
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pertence muito provavelmente a uma camada profunda do pensamento "primitivo". Porém, esse simbolismo conheceu diversas "atuações" e interpretações variadas: encontramos a presença das ostras e das conchas nos ritos agrários, nupciais ou fúnebres, na ornamentação das vestimentas ou em certos motivos decorativos, embora com freqüência seus significados mágico-religiosos pareçam estar parcialmente perdidos ou descaracterizados. Entre certos povos, as conchas continuam a fornecer um motivo decorativo, muito embora o seu valor mágico nem seja mais lembrado. A pérola, antigamente emblema da força geradora ou símbolo de uma realidade transcendental, conservou no Ocidente apenas o valor de "pedra preciosa". A degradação ininterrupta do simbolismo aparecerá mais claramente ao fim de nossa exposição. O conjunto iconográfico Água-Ostras é abundantemente verificado na América pré-colombiana. O "Tula relief ' de Malinche Hill representa uma divindade cercada pelas Águas, dentro das quais se banham ostras, espirais, círculos duplos'. No Codex Nuttall predomina o complexo iconográfico AguaPeixe-Serpente-Caranguejo-Ostra. O Codex Dresdensis representa a Água jorrando das conchas, das ostras e como enchenpublicadas na revista Man: outubro de 1939, ri': 165, p. 167 (M. A. Murray, The Meaning of Cowrie-shell, acredita que o valor mágico do cauri provém de sua semelhança com um olho semifechado); janeiro de 1940, n: 20 (Murray, respondendo a Sheppard); rf: 61, pp. 50-53 (Dr. Kurt Singer, Cowrie and Baubo in Early Japan, publica uma estatueta neolítica japonesa que demonstra a assimilação da concha à vulva); ri: 78 (C. K. Meek, Cowrie in Nigeria); 79 (M. D. W. Jeffreys, Cowrie Shells in British Cameroun: contra a hipótese de Murray); ri: 101 (Bálcãs); ri': 102 (J. H. Huttons; Naga Hills); ri: 187 (Grigson; Central Provinces, índia); 1941, ri: 36 (C. K. Meek; Nigéria); n: 71 (M. D. W. Jeffreys: Cowry, Vulva, Eye). 37 (Fidji, Egito, Saxões); 1942, 2. Pefiafiel, Monumentos del arte mexicano antiguo, p. 154, reproduzido por Leo Wiener, Mayan and Mexican Origins (Cambridge, 1926), na prancha IV, fig. 8. 3. Wiener, ibid., prancha IV, fig. 13; prancha VII, fig. 14, reproduzindo o Codex Nuttall, pp. 16, 36, 43, 49.
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do vasos formados de serpentes enroladas'. O deus mexicano da tempestade usava uma corrente de ouro ornamentada com pequenas conchas marinhas'; o deus da lua tinha como símbolo um grande caramujo marinho'. Na China antiga, o simbolismo da ostra está ainda mais conservado: as conchas fazem parte da simbologia sacra da Lua e, ao mesmo tempo, representam um prolongamento dos poderes aquáticos. No tratado LU shi ch'un ts'iu (século III a.C.) lê-se: "A lua é a raiz de tudo o que é yin; na lua cheia as ostras pang e ko estão cheias, e todas as coisas yin tornam-se abundantes; quando a lua escurece (última noite do ciclo lunar), as ostras estão vazias, e todas as coisas yin começam a faltai-7 ." Mo-tsï (século V a.C.), após ter observado que a ostra produtora de pérolas pang nasce sem a participação do macho, acrescenta: "Conseqüentemente, se pang pode ter como fruto uma pérola, é porque ela concentra toda a sua força. "A lua", escreve Lion Ngan (século II a.C.), "é a fonte do yin. É por isso que o cérebro dos peixes diminui quando ela está vazia, e que as conchas univalves espiróides não estão cheias das partes carnudas quando a lua está morta." O mesmo autor acrescenta, em outro capítulo: "Os bivalves, os caranguejos, as pérolas e as tartarugas crescem e decrescem com a lua."9 4. Codex Dresdensis, p. 34 etc., reproduzido por Wiener, figs. 112-116. 5. B. de Sahagun, Historia general de las cosas de Nueva Esparia (México, 1896), vol. I, cap. 5; Wiener, p. 68; cf. fig. 75. 6.J. W. Jackson, "The Aztec Moon-cult and its relation to the Chankcult of India" (Manchester Memoirs, Manchester, 1916; vol. 60, 5), p. 2. 7. Trad. B. Karlgren, "Some fecundity symbols in ancient China" (The Bulletin of the Museum of Far Eastern Antiquities, 2, Estocolmo, 1930, pp. 1-54), p. 36. 8. Karlgren, ibid. Cf. relações pérolas (conchas) — Lua em Granet, Danses et legendes de la Chine ancienne (Paris, 1926), pp. 480, 514 etc. 9. J. J. de Groot, Les fites annuellement célébrées à Emoui. Etude concernant la religion populaire des Chinois (Paris, 1886), vol. II, p. 491. Relações entre a lua e a água, ibid., pp. 488 ss. Influência da lua sobre as pérolas, pp. 490 ss.
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O yin representa, entre outras coisas, a energia cósmica feminina, lunar, "úmida". Assim, do excesso do yin ativo em uma determinada região pode exasperar o instinto sexual feminino e fazer com que "as mulheres lascivas pervertam os homens" (I Chou shu, cap. 54, citado por Karlgren, op. cit., p. 38). Existe, realmente, uma correspondência mística entre os dois princípios,yin eyang, e a sociedade humana. A carruagem do rei era ornada de jade (rico em yang), e a da rainha, de penas de pavão e conchas, emblemas do yin. Os ritmos da vida cósmica seguem seu curso normal, enquanto a circulação desses dois princípios opostos e complementares prossegue sem barreiras. Sün-tsï escreve: "Se existe jade na montanha, as árvores dessa montanha darão frutos; se as águas profundas produzem as pérolas, a vegetação desse rio não secará" (Karlgren, ibid., p. 40). Veremos mais adiante a mesma polaridade simbólica jade-pérola reaparecer nos costumes fúnebres chineses. Luna alit ostrea et implet echinos, muribus fibras et jecur addit,
dizia Lucilius: "A lua alimenta as ostras, enche os ouriçosdo-mar, dá força e vigor aos mexilhões." Plínio (Hist. Nat., II, 41, 3), Aulo. Gebo (Nocus Atticae, XX, 8), assim como vários outros escritores, acreditavam ter constatado fenômenos semelhantes. Essa tradição paracientífica, herança de um simbolismo antigo cuja função não mais se compreendia, perpetuou-se na Europa até o século XVIII'.
Simbolismo da fecundidade Mais do que a origem aquática e o simbolismo lunar das ostras e dos mariscos, sua semelhança com a vulva contribuiu muito provavelmente para propagar a crença nas suas virtudes 10. P. Saintyves, L'astrologie populaire, étudiée spécialement dans les doctrines et les traditions relances à l'influence de la lune (Paris, 1937), pp. 231 ss.
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mágicas". Aliás, às vezes a analogia está nos próprios termos que servem para designar certos moluscos bivalves, como testemunha o antigo nome dinamarquês para ostra, kudefisk (kude = vulva; cf. Karlgren, p. 34, nota). A identificação da concha com o órgão genital feminino é igualmente atestada no Japão'. Os mariscos e as ostras participam da mesma maneira dos poderes mágicos da matriz. Nelas estão presentes e se exercem as forças criadoras que jorram, como uma fonte inesgotável, de todo emblema do princípio feminino. Da mesma forma, usar sobre a pele, como amuleto ou como ornamento, ostras, conchas marinhas e pérolas impregna a mulher de uma energia favorável à fecundidade, ao mesmo tempo em que a preserva das forças nocivas e do mau agouro. As mulheres Akamba usam cintos ornados de ostras, que abandonam após o nascimento do primeiro filho'. Em outros lugares, as ostras constituem o presente de casamento mais apropriado. Na tn11. Ver Aigremont, "Muschel und Schnecke als Symbol der Vulva einst und jetzt" (Anthropophyteia, 1909, VI, pp. 35-50); J. J. Meyer, Trilogie altindischer Miichte und Feste der Vegetation (Zürick, 1937), vol. I, p. 233. Cf. também a revista Man, 1939-1942. 12. Cf. Andersson, Children of the yellow Earth. Studies in prehistoric China (Londres, 1934), p. 305. O ídolo feminino neolítico publicado pelo Dr. Kurt Singer (Cowrie and Baubo in Early Japan, p. 51) apresenta uma vulva monstruosa que não é outra coisa senão uma concha gigante suspensa por uma corda. A concha bivalve representa também um papel nos mitos do renascimento de O-Kuninushi. De acordo com Kurt Singer, o ídolo poderia representar Ama-no-Uzume-no-Mikoto, "a Terrível Mulher do Céu", que dança com o vestido levantado usque ad partes privatas (como diz Chamberlain), e que, pelo riso que provoca, força a Deusa-Sol, Amaterasu, a sair da caverna onde havia se escondido. Os naturalistas do século XVIII fundamentavam inclusive suas classificações conquiliológicas a partir das semelhanças com a vulva. G. Elliot Smith, em The Evolution of the Dragon (Manchester, 1919), cita as seguintes frases da Histoire naturelle du Sénégal (séc. XVIII) de Adamson: "Concha Venerea sic dicta guia partem foemineam quodam modo repraesentat: externe quidem per labiorum fissuram, interne vero propter cavitatem uterum mentientem". 13. Andersson, Children of the Yellow Earth, p. 304. Ver também C. K. Meek, Man, 1940, n? 78.
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dia meridional, as meninas usam colares de conchas marinhas'', e a moderna terapêutica hindu utiliza o pó de pérola por suas qualidades revigorantes e afrodisíacas': uma aplicação "científica" a mais, no plano concreto, imediato, de um simbolismo arcaico que compreendemos apenas parcialmente. A função cosmológica e o valor mágico da pérola eram conhecidos desde os tempos védicos. Um hino do Atharva Veda (IV, 10), a exalta desta forma: "Nascida do vento, do ar, do relâmpago, da luz, possa a concha nascida do ouro, a pérola, defender-nos do medo! Com a concha nascida do oceano, a primeira de todas as coisas luminosas, matamos os demônios (raksas) e triunfamos sobre os (demônios) devoradores. Com a concha, (nós triunfamos) sobre a doença, sobre a pobreza... A concha é nosso remédio universal; a pérola nos preserva do medo. Nascida do céu, do mar, trazida por Sindhu, essa concha, nascida do ouro, é para nós a jóia (mani) que prolonga a vida. Jóia nascida do mar, sol nascido das nuvens, que ela nos proteja das flechas dos deuses e dos Asuras. Tu és um dos ouros (a "pérola" é um dos nomes do ouro), tu és nascida da lua (Sônia), tu ornamentas as carruagens, tu resplandeces sobre os carcás. Prolonga nossas vidas! O osso dos deuses é feito de pérola; ele nasce e se forma no seio das águas. Retenho-te pela vida, e o vigor e a força, pela longa vida, a vida de cem outonos. Que a pérola te proteja!" Por sua vez, a medicina chinesa considera a pérola uma excelente droga, por suas virtudes fertilizadoras e ginecológicas'. De acordo com uma crença japonesa, certos mexilhões ajudam no parto; de onde vem o seu nome de "mexilhões 14. Andersson, ibid., p. 304. As jovens moças Tiagy usam a concha de um molusco como símbolo da virgindade; perdendo-a, elas devem renunciar à utilização da concha. 15. Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, p. 309, citando Sourindro Mohan Tagore, Mani-Malii ora Treatise on Gems (Calcutá, 1881). 16. Cf. J. W. Jackson, Shells as evidence of the Migrations of Early Culture, p. 101; De Groot, The Religious System of China, vol. 1 (Leiden, 1898), pp. 217, 277.
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parto fácil" (Andersson, Children of the Yellow Earth, p. 304). Na China, recomenda-se não se dar às mulheres grávidas certos tipos de ostras que têm a propriedade de adiantar o parto (Karlgren, p. 36). As ostras, que contêm exclusivamente o princípioyin, são favoráveis ao parto, e às vezes o precipitam. Aliás, a semelhança entre a pérola que se desenvolve na ostra e o feto é citada por autores chineses. No Pei ya (século XI) diz-se da ostra pang que, "grávida da pérola, ela é como (a mulher) que traz o feto no ventre, por isso pang se chama `o ventre da pérola' " (Karlgren, p. 36). Para o gregos, a pérola era o emblema do amor e do casamento'. Aliás, desde os tempos pré-helênicos, as conchas estiveram em estreita relação com as Grandes Deusas'. Consagraram-se conchas a Afrodite em Chipre, para onde a deusa havia sido conduzida após seu nascimento da espuma do mar (Plínio, Hist. Nat., IX, 30; XXXII, 5). O mito de Afrodite nascida de uma concha foi provavelmente propagado no mundo mediterrâneo. Plauto — que traduziu o verso de Difilo — conhece a tradição: Te ex concha natam esse autumnant I9 . Na Síria, a deusa era chamada de "Senhora das pérolas"; em Antioquia, Margaritô20. O complexo Afrodite-conchas é confirmado, ainda, por numerosas gravuras de conchas (Déonna, op. cit., p. 402). A assimilação da concha marinha ao órgão genital feminino era, sem dúvida, conhecida dos gregos. O nascimento de Afrodite em uma concha ilustrava esse laço místico entre a deusa e seu princípio. É este simbolismo do 17. Kunz e Stevenson, op. cit., pp. 307 ss. 18. Cf. Charles Picard, Les religions préhelléniques, pp. 60, 80 etc. 19. W. Déonna, "Afrodite à la coquille" (Recue Archéologique, novembrodezembro de 1917, pp. 312-416), p. 399. 20. Déonna, art. cit., p. 400. Hugo Winckler defende a origem babilônica da palavra grega margarites, que ele faz derivar de már-gallittu, translbrmando o / em r (como em Diglat-Trigis); cf. Winckler, Himmels- und Weltenbild der
Babylonier, 2' ed. (Leipzig, 1903), p. 58, nota 1. Ver o estudo das hipóteses sobre a origem da palavra margarites em Theologisches Wórterbuch zum Neuen Testament (G. Kittel), t. IV, p. 476.
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nascimento e da regeneração que inspira a função ritual das conchas21. É graças à sua força criadora — enquanto emblema da matriz universal — que as conchas encontram seu lugar nos ritos fúnebres. Tal simbolismo da regeneração não se elimina facilmente: as conchas que simbolizam a ressurreição em inúmeros monumentos fúnebres romanos passaram à arte cristã (Déonna, p. 408). Aliás, muitas vezes a morte é identificada a Vênus: ela é representada sobre o sarcófago, o busto nu, tendo a seus pés a pomba (ibid., p. 409); através dessa identificação com o arquétipo da vida em perpétua renovação, a morte assegura sua ressurreição. Em todos os lugares, os mariscos, as pérolas, o caranguejo encontram-se entre os emblemas do amor e do casamento. A estátua de Kâmadeva é ornada com conchas'. Na índia, anuncia-se a cerimônia nupcial soprando-se um grande búzio'. Aliás, essa mesma concha (Turbinella pyrum) é um dos dois principais símbolos de Visnu. Uma oração ilustra o seu valor religioso: "Na boca desta concha está o deus da Lua, a seu lado permanece Varuna, às suas costas Prajapati, em seu topo o Ganges, o Sarasvati e todos os outros rios sagrados dos três mundos, onde, de acordo com o mandamento de Vâsudeva, fazem-se as abluções. Nesta concha está o chefe dos brâmanes. Assim, adoremos esta concha santa. Glória a ti, concha sagrada, abençoada sejas por todos os deuses, ó tu nascida do mar e que Visnu segura em suas mãos. Nós adora21. Cf. Dictionnaire des antiquités, s. v. Bucina; Forrer em Reallexikon, s. v. Muschelschmuck; Pauly-Wissova, s. v. Margaritai; Déonna, p. 406; G. Bellucci, Parallèles ethnographiques (Perúgia, 1915), pp. 25-27; U. Pestallozza, "Sulla rappresentazione di un pithos arcaico-beotico" (Studi e materiali di storia delle religioni, vol. XIV, 1938, pp. 12-32), pp. 14 ss.; Hoernes-Menghin, Urgeschichte der bildenden Kunst in Europa (Viena, 1925), p. 319, figs. 1-4 (figuras em forma de conchas provenientes da Traria). 22. J. J. Meyer, Trilogie altindischer Máchte und Peste der Vegetation ( Zurique, 1937), vol. I, p. 29. 23. J. W. Jackson, "Shell-Trumpets and their distribution in the Old and New World" (Manchester Memoirs, 1916, n .8), p. 7.
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mos a concha sagrada, nós meditamos sobre ela. Exaltemo-nos na alegria!"' Entre os astecas, o caramujo simbolizava freqüentemente a concepção, a gravidez, o parto'. Em relação à prancha XXVI do Codex Vaticanus, Kingsborough transcreve a explicação dada pelos indígenas da associação entre os moluscos (sea-snail) e o parto: "...da mesma forma que esse animal marinho sai da sua concha, o homem nasce do ventre de sua mãe"'. Mesma interpretação autóctone da prancha XI do Codex Telleriano-Remensis (ibid. VI, p. 122).
Funções rituais das conchas A partir disso, explica-se facilmente pelo mesmo simbolismo a presença de mariscos, ostras e pérolas em inúmeros ritos religiosos, nas cerimônias agrárias e iniciáticas. As ostras e as pérolas, que favorecem a fecundação e o parto, exercem também uma influência benéfica sobre a colheita. A força representada por um símbolo da fertilidade manifesta-se em todos os níveis cósmicos. Na índia, fazia-se soar um búzio não apenas durante as cerimônias que se realizavam nos templos, mas também por ocasião das cerimônias agrícolas, nupciais e fúnebres (ver as inúmeras referências reunidas por Jackson, Shell-Trumpets, p.3). No Sião, os sacerdotes faziam soar o búzio no começo da semeadura (Jackson, The Aztec Moon-Cult, p. 3). Na região do Malabar, quando da colheita dos primeiros frutos, o sacerdote saía do templo precedido por um homem soprando um 24. Hornell, The sacred Chank of índia (Madras Fisheries Publications, 1914), citado por Jackson, The Aztec Moon-Cult, pp. 2-3. Cf. também Arnould Locard, "Les coquilles sacrées dans les religions indiennes" (Annales du Musée Guimet, t. VII, pp. 292-306). 25. Jackson, The Aztec Moon-Cult, passim. 26. Kingsborough, Antiquities of Mexico (Londres, 1831-1848), vol. VI,
p. 203.
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búzio (ibid., p. 3). A mesma função ritual é encontrada entre os astecas: certos manuscritos representam o deus das Flores e do Alimento levado em procissão, precedido por um sacerdote tocando um búzio (ibid., p. 4). Vimos com que precisão as conchas marinhas e as ostras expressam o simbolismo do nascimento e do renascimento. As cerimônias de iniciação compreendem uma morte e uma ressurreição simbólicas; a concha pode significar o ato do renascimento espiritual (ressurreição) com tanta eficácia que ela assegura e facilita o nascimento carnal. Daí o rito que consiste, em certas tribos algonquianas, em bater no neófito com uma concha durante a cerimônia de iniciação e mostrar-lhe uma enquanto os mitos cosmológicos e as tradições da tribo lhe são contados27. Aliás, as conchas ocupam um lugar importante na vida religiosa e nas práticas mágicas de numerosas tribos da América (cf. Jackson, Shell-Trumpets, pp. 17 ss.). Nas cerimônias iniciáticas da "Sociedade Grande-Medicina" dos Ojibwa e do "Medecine-Rite" dos Winnebago, as conchas intervêm como elemento indispensável: a morte e a ressurreição rituais do candidato acontecem pelo contato com as conchas mágicas conservadas em sacos feitos de pele de lontra". Os mesmos laços místicos que relacionam as conchas às cerimônias de iniciação e, de um modo geral, aos diversos ritos religiosos, encontram-se na Indonésia, na Melanésia, na Oceania'. A entrada das aldeias do Togo é decorada com ídolos cujos olhos são feitos de conchas e diante dos quais se empilham oferendas de conchas (Andersson, Children of the Yellow Earth, p. 306). Aliás, as conchas são oferecidas aos rios, 27. J. W. Jackson, "The Money-Cowry (Cypraea moneta, L.) as a 4, sacred object among American Indians" (Manchester Memoirs, vol. 60, 1916), pp. 5 ss. 28. Ver nosso Chamanisme, pp. 286 ss. 29. Jackson, Shell-Trumpets, pp. 8, I1, 90; W. H. R. Rivers, The History of Melanesian Society (Cambridge, 1914), vol. I, pp. 69, 98, 186; vol. II, pp. 459, 535.
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às fontes, às árvores (ibid., p. 312). As virtudes mágico-religosas das conchas explicam igualmente sua presença na administração da justiça (ibid., p. 307). Como na sociedade chinesa, nas sociedades "primitivas" o emblema que encarna um dos princípios cósmicos assegura a justa aplicação da lei; enquanto símbolo da Vida cósmica, a concha tem o poder de descobrir qualquer infração da norma, qualquer crime contrário aos ritmos e, implicitamente, à ordem da sociedade. Por causa de sua semelhança com a vulva, acredita-se que os mexilhões e inúmeras outras espécies de moluscos providos de concha possam preservar de toda magia, da jettatura ou do mal'occhio. Os colares de conchas, w braceletes, os amuletos ornados com conchas marinhas ou mesmo a simples imagem destas defendem mulheres, crianças e animais da má sorte, das doenças, da esterilidade etc.'. O mesmo simbolismo — da assimilação à própria fonte da Vida universal — alimenta a diversificada eficiência da concha, que trata de perpetuar as normas da vida cósmica ou social, de proporcionar um estado de bem-estar e a fecundidade, de assegurar um parto fácil à mulher que dá à luz ou o "renascimento" espiritual do neófito durante uma cerimônia de iniciação.
O papel das conchas nas crenças fúnebres O simbolismo sexual e ginecológico das conchas marinhas e das ostras implica, lembremo-nos, uma significação espiritual: o "segundo nascimento" realizado pela iniciação é possível graças à mesma fonte inesgotável que sustenta a vida cósmica. Daí também a missão das conchas e das pérolas nos costumes fúnebres; o defunto não se separa da força cósmica que alimentou e regeu sua vida. Da mesma forma, nos túmulos chineses, acha-se o jade; impregnado de yang — o princípio 30. Cf. os inúmeros exemplos em S. Seligmann, Der bãse Blick (Berlim, 1910), vol. II, pp. 126 ss., 204 ss.
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masculino, solar, "seco" —, o jade, por sua própria natureza, opõe-se à decomposição. "Se obstruirmos com ouro e jade os nove orifícios do cadáver, ele será preservado da putrefação", escreveu o alquimista Ko Hune. E no tratado T'ao Hung-Ching (século V) encontram-se as seguintes precisões: "Se na abertura de um antigo túmulo o cadáver parecer estar vivo dentro, saibam que ele tem dentro e fora do corpo uma grande quantidade de ouro e de jade. Segundo as regras da dinastia Han, os príncipes e os senhores eram enterrados com suas roupas ornadas de pérolas e com estojos de jade destinados a preservar o corpo da decomposição."' Escavações recentes confirmaram a afirmação de Ko Hung sobre o jade que "obstrui os nove orifícios do cadáver", afirmação esta que parecera suspeita a mais de um autor". O jade e as conchas contribuem para criar um destino excelente no além; se o primeiro preserva o cadáver da decomposição, as pérolas e as conchas preparam o morto para um novo nascimento. De acordo com Li Ki, o caixão era ornado com "cinco camadas de conchas preciosas" e de "barras de jade". Além da ostra pei, o culto fúnebre chinês utilizava ainda o maior e o mais fino dos mexilhões, shen. Mexilhões e conchas bivalves eram colocados no fundo do túmulo (Karlgren, Some Fecundity Symbols, p. 41). Cheng Hüan comenta desta forma esse costume: "Antes de descer o caixão, deve-se recobrir de shen o fundo do túmulo a fim de impedir a umidade" 31. B. Laufer, Jade, a Study in Chinese Archaeology and Religion (Field Museum, Chicago, 1912), p. 299, nota. 32. Laufer, op. cit., p. 299. Cf. também Karlgren, Some Fecundity Symbols, pp. 22 ss.; Giseler, "Les symboles de jade dans le taoïsme" (Recue d'Histoire des Religions, 1932, t. 105, pp. 158-181). 33. C. Hentze, Les figurines de la céramique fiméraire (Dresden, 1928), p. V. Ver também C. Hentze, "Les jades archaïques en Chine" (Artibus Asiae, III, 1928-1929, pp. 96-110); id., "Les jades Pi et les symboles solaires" (ibid., pp. 199-216; t. IV, pp. 35-41). 34. S. Couvreur, Li Ki, t. II (Ho Kien Fou, 2^. ed., 1913), p. 252. Cf. também Couvreur, Tso tchouan, trad., t. I, p. 259.
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(ibid.). Colocavam-se pérolas na boca do morto, e o ritual fúnebre para os soberanos da dinastia Han especifica que "suas bocas devem ser enchidas de arroz, pérolas e jade, como indica o costume há muito tempo estabelecido para essas cerimônias'''. Foram achados cauris até nos sítios pré-históricos de Pu-Chao36. Como veremos, a cerâmica chinesa proto-histórica foi também fortemente marcada pelo simbolismo da concha. As conchas não deixam de representar um papel importante nas cerimônias fúnebres da índia. Toca-se um búzio e semeiam-se conchas no caminho que vai da casa do morto ao cemitério. Em certas províncias, enche-se a boca do morto com pérolas (Andersson, p. 299). Reencontramos o mesmo costume em Bornéu, onde a influência hindu aparentemente atuou sobre um rito autóctone'. Na África, estende-se uma camada de conchas no fundo do túmulo38 . Este costume era freqüente entre inúmeras populações antigas americanas (ver abaixo). Encontraram-se vários tipos de conchas marinhas e ostras, pérolas naturais ou artificiais em uma quantidade considerável nos sítios pré-históricos, mais freqüentemente nos túmulos. Na caverna paleolítica de Laugérie (vale do Vézére, na Dordonha), as escavações descobriram inúmeras espécies de conchas mediterrâneas, Cypraea pyrum e C. lurida. Sobre o esqueleto, as conchas estavam dispostas simetricamente, em pares: quatro sobre a testa, uma sobre cada mão, duas sobre cada pé, quatro perto dos joelhos e dos tornozelos. A gruta de Cavillon continha perto de oito mil conchas marinhas, a maioria pintadas de vermelho, e das quais um décimo estavam perfuradas". Por sua vez, Cro-Magnon forneceu mais de tre35. De Groot, Religious System of China (1892), I, p. 277. 36. Andersson, op. cit., p. 323. Os cauris foram encontrados já nos túmulos do fim do paleolítico; ver K. Singer, op. cit., p. 50. 37. Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, p. 310. 38. Cf. Robert Hertz, Mélanges de sociologie religieuse et de folklore (Paris, 1928), p. 10. 39. Déchelette, Manuel d'archeologie préhistorique celtique et gallo-romaine, ed. (Paris, 1924), t. 1, p. 208.
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zentas conchas de Littorina littorea perfuradas (Déchelette, op. cit., p. 208). Mais adiante, um esqueleto de mulher, coberto de conchas, foi encontrado perto do de um homem, usando ornamentos e uma coroa feita de conchas perfuradas. O homem de Cambe-Capelle estava igualmente ornamentado com uma corrente de conchas perfuradas'. O que levou Mainage a se perguntar: "Por que o esqueleto de Laugérie-Basse (Dordonha) tinha um colar formado de conchas mediterrâneas e o esqueleto de Cro-Magnon um ornamento confeccionado com conchas oceânicas? Por que em Grimaldi (Côte d'Azur), os jazigos mostraram conchas pescadas nas costas do Atlântico? Como pode ser que em Pont-à-Lesse, na Bélgica, foram achadas conchas do terciário recolhidas nos arredores de Reims?"41 Apenas o nomadismo do quaternário provavelmente basta para explicar esses fatos; mas é uma prova a mais da importância mágico-religiosa das conchas entre os povos pré-históricos. Também foram encontradas conchas nos túmulos do Egito pré-dinástico. As conchas do Mar Vermelho forneceram amuletos aos egípcios durante muito tempo'. As escavações de Creta revelaram uma quantidade análoga de vários tipos de conchas. Em Faísto foram encontradas, em um depósito neolítico, ao lado de uma imagem feminina de argila, conchas de pe/uncu/us; não temos dúvida sobre seu significado religioso'. As escavações de Sir Arthur Evans permitiram definir mais claramente o valor mágico e a função cultural das conchas (cf. Palace of Minas, I, pp. 517 ss.). Aliás, os desenhos com motivos de conchas eram freqüentes, e sua constância deve-se menos ao valor decorativo do que ao seu simbolismo (ibid., p. 519, figs. 377, 378). Uma notável descoberta, deste ponto de vista, e que, segundo a opinião autorizada de Andersson, assegurou a transição entre o ciclo cultural euro-africano e 40. Cf. Osborn, Men of the Old Stone age, pp. 304, 305. 41. Th. Mainage, Les religions de la préhistoire.1. L'age paléolithique (Paris, 1921), pp. 96-97. 42. Sir E. Wallis Budge, Amulets and Superstitions (Oxford, 1930), p. 73. 43. Sir Arthur Evans, The Palace of Minos, vol. I (Londres, 1921), p. 37.
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a Ásia oriental, foi feita por Pumpelly em Anu (Andersson, p. 298). Por sua vez, Andersson achou conchas em Yang Chao Thun, em Sha Ching (no deserto de Chen Fu), ou seja, nos sítios pré-históricos onde as urnas funerárias comportam desenhos tão característicos que receberam o nome de "death pattern" e "cowrie pattern" e cujo simbolismo morte-renascimento não mais pode ser questionado (Andersson, ibid., pp. 322 ss.). Um antiquíssimo costume japonês explica-se através de crenças similares: besuntando o próprio corpo com o pó das conchas, assegura-se o renascimento (Kurt Singer, op. cit., p. 51). O papel fúnebre das pérolas e das conchas parece ter tido uma importância decisiva entre as populações autóctones das duas Américas. A documentação recolhida por Jackson é, neste sentido, suficientemente eloqüente. Sobre os índios da Flórida, Streeter escreveu que, "como no Egito do tempo de Cleópatra, na Flórida os túmulos dos reis eram ornados de pérolas. Os soldados de Soto, em um dos grandes templos, encontraram caixões de madeira onde jaziam, embalsamados, os mortos; perto deles havia pequenos cestos repletos de pérolas. O templo de Tolomecco era o mais rico em pérolas: as altas muralhas e o teto eram de madrepérola, colares de pérolas e de plumas pendiam dos muros; sobre os caixões dos reis estavam seus escudos ornados de pérolas, e no meio do templo encontravam-se vasos cheios de pérolas preciosas'''. Willoughby já demonstrou o papel essencial das pérolas nas cerimônias fúnebres, descrevendo as solenidades de mumificação dos reais índios da Virgínia'. Zelia Nuttall descobriu, no alto de uma pirâmide do México, uma espessa camada de conchas, 44. Jackson, "The geographical distribution of the use of Pearls and Pearl-shells", republicado em Shells as Evidente of the Migrai ons of Early Culture, pp. 72 ss. Cf. pp. 112 ss. 45. Jackson, Shells, pp. 116-117. 46. C. C. Willoughby, "The Virgínia Indians in the seventeenth century". (The American Anthropologist, vol. IX, n: 1, jan. 1907, pp. 57-86), pp. 61, 62.
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no meio da qual estavam os túmulos'. E estes são apenas alguns documentos no que diz respeito aos ameríndios". A presença em certas regiões (Yucatan, por ex.) de pedaços de ferro" ao lado de pérolas e de conchas prova que se queria aproximar o defunto de todas as fontes de energia mágica de que se dispunha, pois o ferro tinha, como em Creta, o papel atribuído na China ao jade e ao ouro'. Na caverna de Mahaxay (Laos), Madeleine Colani descobriu machados, cristais de rocha e numerosas conchas de Cypraea' e conseguiu ao mesmo tempo demonstrar o caráter fúnebre e a função mágica dos machados'. Todos esses objetos estavam colocados em um túmulo a fim de assegurar ao defunto a melhor condição possível no além. Importantes depósitos de cascas de ostras e conchas marinhas foram encontrados em inúmeros sítios préhistóricos bastante distantes uns dos outros. Por exemplo, foram descobertas Cypraea moneta na famosa necrópole de Kouban, ao norte do Cáucaso (século XIV a.C.); outras conchas nos túmulos citas nas proximidades de Kiev, que pertenciam à civilização Ananino do Ural ocidental. Depósitos análogos foram constatados na Bósnia, na França, na Inglaterra, na Alemanha, sobretudo na costa báltica, onde os antigos já procuravam o âmbar'. 47. Cf. W. J. Perry, The Children of the Sun, p. 66. Os índios que vivem às margens do golfo da Califórnia e cuja cultura permanece extremamente primitiva cobrem seus mortos com uma carapaça de tartaruga, ibid., p. 250. Realmente, a tartaruga, por sua natureza de animal aquático, relaciona-se estreitamente com as águas e a lua. 48. Cf. Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, pp. 485 ss. 49. Stephens, Incidents of Travel in Yucatan, t. II, p. 344, citado por Andree, Die Metalle bei den Naturvolkers (Leipzig, 1884), p. 136. 50. Cf. nosso Metallurgy, Magic and Alchemy, p. 12 (Zalmoxis, I, p. 94). 51. Madeleine Colani, "Haches et bijoux. Republique de l'Équateur, Insulinde, Eurasie" (B. E. F. E. O., XXXV, 1935, fasc. 2, pp. 313-362), p. 347. 52. Cf. também Hanna Rydh, "On Symbolism in mortuary ceramics" (Bull. of Museum of Far Eastern Antiquities, ri? 1, Estocolmo, 1929, pp. 71-121), pp. 114 ss. 53. Andersson, op. cit., pp. 299 ss. Jackson, The geographical distribu Jon, passim.
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O papel fundamental das pérolas na elaboração dos diferentes rituais mortuários mede-se também pela presença de pérolas artificiais. Nieuwenhuis estudou estas últimas —feitas de pedra ou porcelana —, das quais se servem freqüentemente os habitantes de Bornéu. As origens das mais antigas permanecem incertas; as mais recentes vêm de Cingapura, mas são com freqüência fabricadas na Europa, em Gablonz (Boêmia), Birmingham, Murano54. Madeleine Colani explica o papel dessas pérolas nas sociedades agrícolas, nos sacrifícios ou nas cerimônias fúnebres do Laos: "Os mortos são munidos de pérolas para a vida celeste; elas são postas nos orifícios naturais do cadáver. Hoje em dia, os mortos são enterrados com cintos, chapéus e roupas ornadas de pérolas. Após a deterioração do corpo, as pérolas se desprendem..."" A mesma autora encontrou enterrada perto de megalites do Tran Ninh uma quantidade dessas pequenas jóias de vidro, às vezes centenas delas: "Essas pérolas antigas, segundo todas as probabilidades, tinham um papel importante na vida do povo dos jarros. As que descobrimos tinham sido enterradas no solo para servir aos mortos. Elas são bem mais simples que as apresentadas por Nieuwenhuis. Teriam apenas uma atribuição funerária? Não o sabemos" (op. cit., p. 199). Perto dessas pérolas arcaicas do Alto-Laos, havia guizos de bronze. Aliás, à associação metal-pérolas (conchas etc.), é freqüente; ela se manteve em certas regiões do Pacífico. Madeleine Colani lembra que "em Bornéu, atualmente as mulheres daiaques usam colares com inúmeros guizos" (ibid., p. 199, fig. 24). O caso das pérolas artificiais é, de certa maneira, um exemplo da degradação do sentido metafísico original e de sua transferência para um sentido secundário, exclusivamente má54. Nieuwenhuis, "Kunstperlen und ihre kulturelle Bedeutung" (Internat. Archio f. Ethnographie, Bd. 16, pp. 135-153). 55. Madeleine Colani, "Essai d'ethnographie comparée" (B. E. F. E. O., vol. XXXVI, 1936, pp. 197-280), pp. 198 ss.
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gico. O poder sagrado das pérolas provém de sua origem marinha e de um simbolismo ginecológico. É pouco provável que todas as populações que tenham usado pérolas e conchas em suas cerimônias mágicas e fúnebres tenham tido consciência desse simbolismo. Supondo que tenha havido uma consciência dessas relações, esta ter-se-ia limitado a alguns membros da sociedade: esse conhecimento não foi conservado sempre intacto. Seja porque elas tenham emprestado a noção mágica da pérola às populações de cultura superior com as quais estiveram em contato, seja porque sua própria noção tenha sofrido, com o tempo, deturpações pela intervenção de elementos estranhos — o fato é que certas populações introduziram em suas cerimônias objetos artificiais cujo objetivo era assemelhar-se aos "modelos sagrados". O caso não é único. Conhece-se o valor cosmológico do lápis-lazúli na Mesopotâmia. O azul dessa pedra é o mesmo azul do céu estrelado, e ela participa de sua força sagrada". Aliás, encontra-se uma concepção análoga na América pré-colombiana. Em alguns túmulos antigos de uma ilha do Equador, encontraram-se vinte e oito pedaços de lápis-lazúli talhados em forma de cilindro e com um belíssimo polimento. Mas foi provado depois que esses pedaços de lápis-lazúli não pertenciam aos aborígines da ilha; muito provavelmente, eles foram deixados por visitantes do continente que vieram à ilha para realizar certos ritos ou cerimônias sagradas'. É importante notar que na África ocidental dá-se igualmente um valor excepcional às pedras azuis artificiais. Wiener recolheu sobre isso uma documentação bastante rica". É certo 56. Ernst Darmstaedter, "Der babylonisch-assyrische Lasurstein"; (em Studien fiir Geschichle der Chemie, Festgabe Ed. von Lippmann, Berlim, 1927, pp. 1-8). Cf. nosso livro Cosmologie si alchimie babiloniana, pp. 51 ss. 57. George F. Kunz, The Magic °limeis and Charms (Filadélfia-Londres,
1915), p. 308. 58. Leon Wiener, Africa and the Discovery of America (Filadélfia, 1920-1922), vol. II, pp. 237-248; cf. nosso Cosmologie si alchimie babiloniana, pp. 56 ss.
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que o simbolismo e o valor religioso dessas pedras acham sua explicação na idéia da força sagrada de que participam, em virtude da sua cor celeste. Esta idéia é freqüentemente ignorada, mal compreendida, ou "degradada" por certos elementos dessas populações, que inúmeras vezes tomaram emprestado o objeto de culto ou o símbolo de uma cultura avançada, sem adotar sua significação normal, na maioria das vezes inacessível a eles. Pode-se, assim, supor que as célebres falsas gemas coloridas que do Egito, da Mesopotâmia, do Oriente romano penetraram até o Extremo-Oriente, tiveram em um dado momento uma significação mágica, derivada sem dúvida alguma do seu modelo natural ou do simbolismo geométrico que elas implicam59. A virtude sagrada das conchas se transmite tanto à sua imagem como aos motivos decorativos que têm a espiral como elemento essencial. Foram encontradas no Kansou (período Ma Chang) inúmeras urnas funerárias ornadas com o "cowrie-pattern"60. Por outro lado, Andersson interpreta a figura predominante nas urnas de P'an Shan como um jogo de quatro magníficas espirais'. Fato digno de ser notado, pois esse motivo é reservado quase exclusivamente às urnas fúnebres; ele não aparece nunca nos objetos de uso profano'. O valor metafísico e ritual do "cowrie-pattern" ("death-pattern") encontra-se, desta forma, bem estabelecido. O motivo de decoração, particular à olaria chinesa, tem um papel ativo no culto dos mortos. A imagem da concha ou dos elementos geométricos 59. C. G. Seligmann and H. C. Beck, "Far eastern glass: some western origins" (Bulletin of the Museum of Far Eastern Antiquities, n? 10, Estocolmo, 1938, pp. 1-64). 60. Andersson, Children of the yellow earth, p. 323; "On symbolism in the prehistoric painted ceramics of China" (Bulletin of the Museum of Far Eastern Antiquities, vol. 1, 1929, pp. 66 ss.). 61. Children of the yellow earth, p. 324. 62. Andersson, On Symbolism in the Prehistoric Painted Ceramics, passim; Hanna Rydh, Symbolism in Mortuary Ceramics, pp. 81 ss. Cf. Carl Hentze, Mythes et symboles lunaires (Anvers, 1932), pp. 118 ss.
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derivados da representação esquematizada da concha colocam o defunto em comunicação com as forças cósmicas que comandam a fertilidade, o nascimento e a vida; pois o valor religioso está no simbolismo da concha: a imagem é em si eficiente no culto dos mortos, quer seja representada pela concha, quer atue simplesmente através do motivo ornamental da espiral ou do "cowrie-pattern". O que explica a presença nos sítios pré-históricos chineses tanto de conchas como de urnas funerá63 rias decoradas com o "cowrie-pattern" . Aliás, a função deste motivo decorativo fúnebre não se verifica apenas na China. Hanna Rydh observou as semelhanças entre o "death-pattern" da cerâmica pré-histórica chinesa e os desenhos incrustados nas urnas da cultura megalítica escandinava. Por outro lado, Andersson notou certas analogias entre as urnas de Kansou e a olaria pintada da Rússia do Sul (Tripolje), analogias que foram igualmente estudadas pelo professor Bogajevsky. Aliás, encontramos também este motivo da espiral em inúmeros pontos da Europa, da América, da Ásia". Devemos acrescentar, no entanto, que o simbolismo da espiral é bastante complexo, e que sua "origem" é ainda mais incerta'. Ao menos, podemos provisoriamente nos ater à polivalência simbólica da espiral, suas relações com a Lua, o relâmpago, as águas, a fecundidade, o nascimento, a vida no além. Inclusive, como lembramos, a concha não se vincula apenas ao culto dos mortos. Ela aparece em todos os atos essenciais da vida do homem e da coletividade: nascimento, iniciação, casamento, morte, cerimônias agrícolas, cerimônias religiosas etc. 63. Andersson, Children of the yellow Earth, pp. 323 ss. 64. Symbolism in Mortuary Ceramics, especialmente pp. 72 ss. 65. Madeleine Colani, Raches et bijoux, pp. 351 ss. 66. Cf. as obras de Andersson e Hentze. Ver também L. Siret, Origine et signification du décor spiralé (XV Congrès Intern. d'Anthropologie, Portugal, 1930, pp. 465-482: explicação racionalista). Sobre o simbolismo da concha marinha na teologia e na arte hindu, cf. A. Coomaraswamy, Elements of Buddhist lconography (Cambridge, 1935), pp. 77-78; A New approach to the Vedas (Londres, 1933), p. 91, nota 67.
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A pérola na magia e na medicina
A história da pérola é mais um testemunho do fenômeno de degradação de um sentido metafísico inicial. O que num dado momento foi símbolo cosmológico, objeto rico em forças sagradas benéficas, torna-se, com o tempo, um elemento de ornamentação, do qual se apreciam as qualidades estéticas e o valor econômico. Mas da pérola-emblema da realidade absoluta à atual pérola-"objeto de valor" a mudança se fez em várias etapas. Na medicina, por exemplo, tanto oriental como ocidental, a pérola desempenhou um papel importante. Takkur analisa em detalhes as qualidades medicinais da pérola, que é utilizada contra as hemorragias e a icterícia, que cura as pessoas possuídas pelo demônio e a loucura67. Aliás, o autor hindu não faz senão continuar uma longa tradição médica: ilustres médicos como Caraka e Suçruta já recomendavam o uso da pérola'. Narahari, médico de Kashmir (por volta de 1240), no seu tratado Rájanigantu (varga XIII), escreveu que a pérola cura os males dos olhos, é um antídoto eficaz nos casos de envenenamento, cura a tuberculose, enfim, que ela assegura força e saúde'. Está escrito no Kathâsaritsâgara que a pérola — como os elixires da alquimia — "afasta o veneno, os demônios, a velhice e a doença". A Harshacarita lembra que a pérola nasceu das lágrimas do deus da Lua e que sua origem lunar — sendo a Lua "fonte da ambrosia que cura eternamente" — faz dela o antídoto para todos os venenos'. Na China, a medicina utilizava unicamente a "pérola virgem", não perfurada, que tinha a fama de curar todas
67. Kunz e Stevenson, op. cit., p. 209; Jackson, Shells as Evidence of the Migrations of Early Culture, p. 92. 68. Kunz, ibid., p. 308.
69. R. Garbe, Die Indische Mineralien (Leipzig, 1882), p. 74. 70. Harshacarita, trad. fr. Cowell e Thomas, pp. 251 ss.
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as doenças dos olhos. A medicina árabe reconhece na pérola virtudes idênticas'. A partir do século VIII, a utilização medicinal da pérola propaga-se também na medicina européia, e logo se constata uma grande procura dessa pedra preciosa (Kunz e Stevenson, op. cit., p. 18). Albertus Magnus recomenda o seu uso (ibid., p. 311). Malachias Geiger, em sua Margaritologia (1637), preocupa-se exclusivamente com o uso medicinal da pérola, afirmando tê-la utilizado com sucesso no tratamento da epilepsia, da loucura e da melancolia (ibid., p. 312). Um outro autor ressalta a eficácia da pérola para fortalecer o coração e tratar p. 312). Francis Bacon qualifica a pérola a melancolia entre as drogas para se obter a longevidade (ibid., p. 313). É evidente que o papel da pérola na medicina em tantas civilizações diferentes apenas sucedeu a importância que ela teve anteriormente na religião e na magia. Por ter sido emblema da força aquática e geradora, a pérola tornou-se — numa época posterior — tônico geral, afrodisíaco e ao mesmo tempo remédio contra a loucura e a melancolia, duas doenças de influência lunar72 , logo sensíveis à ação de todo emblema da Mulher, da Água, do Erotismo. Seu papel na cura das doenças dos olhos e como antídoto contra venenos é uma herança das relações místicas entre a pérola e a serpente. Em várias regiões, acreditava-se que as pedras preciosas caíam das cabeças das serpentes ou encontravam-se na garganta dos dragões". Na 7L Leclerc, Traité des simples, vol. III, p. 248 (Ibn el-Beithar cita Ibn Massa, e Ishak Ibn Amriin limita-se no entanto unicamente ao uso medicinal); Julius Ruska, Das Steinbuch des Aristoteles (Heidelberg, 1912), p. 133; nas crenças populares da Índia e da Árabia: cf. Penzer, Ocean of Story (Londres, 1924 ss.), vol. I, pp. 212, 213 (o pó da pérola, remédio para as doenças dos olhos etc.). 72. P. Saintyves, L'astrologie populaire, pp. 181 ss. 73. Cf. nosso Traité d'histoire des religions, pp. 377, 389 (bibliografia). O essencial encontra-se no estudo de W. R. Halliday, "Of snakestones" (republicado em Folklore Studies, Londres, 1924, pp. 132-155). Ver também M. O. W. Jeffreys, "Snake Stones" (Journal of the Royal African Society, LXI, 1942, ri: 165).
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China, acreditava-se que a cabeça do dragão escondia sempre uma pérola ou qualquer outra pedra preciosa', e mais de uma obra de arte representa um dragão com uma pérola na boca'. Este motivo iconográfico deriva de um simbolismo muito antigo e bastante complexo, que nos levaria longe demais". Enfim, é significativo o valor da longevidade que Francis Bacon atribui à pérola. Esta é justamente uma das virtudes primordiais dessa pedra preciosa. Sua presença, como aliás a da concha, sobre o corpo do homem, projeta-o às próprias fontes da energia, da fecundidade e da fertilidade universais. Quando essa imagem interior deixou de corresponder ao novo Cosmos descoberto pelo homem, ou quando sua memória, por outras razões, corrompeu-se, o objeto outrora sagrado conservou seu valor, mas este valor em si definiu-se em outro nível. Nos limites da magia e da medicina, a pérola cumpre o papel ambíguo do talismã"; o que anteriormente proporcionava fertilidade e assegurava um destino ideal post-mortem torna-se pouco a pouco uma constante fonte de prosperidade'. Na índia, esta concepção conservou-se até bem tarde. "A pérola deve ser sempre usada como amuleto por aqueles que 74. Cf., por exemplo, De Groot, Les fites annuellement célébrées à Emouï, vol. II, pp. 369, 385; Gieseler, "Le mythe du dragon en Chine" (Recue Archéologique, 5^ série, t. VI, 1917, pp. 104-170), passim. 75. Cf. Josef Zykan, "Drache und Perle" (Artibus Asiae, VI, 1-2, 1936, pp. 5-16), p. 9, fig. 1 etc. 76. Cf. Alfred Salmony, "The magic bali and the golden fruit in ancient Chinese art" (Art and Thought, Hommage à Coomaraswamy, Londres, 1947, pp. 105-109); ver também nosso Traité d'histoire des religions, pp. 250 ss. O estudo de Marc R. Sauter, "Essai sur l'histoire de la perle à ailette" (lahrbuch der Schweizerischen Gesellschaft fiir Urgeschichte, XXXV, Frauenfeld, 1945), não nos foi acessível. 77. S. Seligmann, Der base Blick, II, pp. 126, 209; id., Die magische Heilund Schutzmittel, p. 199. 78. A pérola protege das epidemias, dá coragem a quem a usa etc.; cf. M. Gaster, "The hebrew version of the Secretum Secretorum" (republicado em Studies and Texts, vol. II, Londres, 1925-1928), p. 812.
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almejam a prosperidade", disse Buddhabatta'. A prova de que a pérola penetrou na medicina por ter tido primeiro um papel na magia e no simbolismo erótico-fúnebre é que, em certas regiões, as conchas têm propriedades medicinais. Na China, elas são tão familiares ao médico quanto preciosas ao mágico". O mesmo acontece em certas tribos da América'. Além do valor que magia e medicina lhes conferem, diversos tipos de conchas foram freqüentemente utilizados como moedas. As informações fornecidas neste sentido por Jackson e alguns outros autores são suficientes para prová-lo". Karlgren, que demonstrou o emprego monetário das conchas na China, acredita que o costume de colocar uma moeda sobre a testa é apenas uma reminiscência dos tempos em que as conchas eram ainda comumente usadas como amuleto". O valor sagrado simbólico da concha e da pérola tornou-se, aos poucos, profano. Mas a natureza preciosa do objeto não foi atingida por este deslocamento de valor. Nele se concentrou, em todos os momentos, o poder; ele é força e substância; enfim, ele permanece constantemente ligado à "realidade", à vida e à fertilidade.
O mito da pérola As imagens arquetípicas conservam intactas suas valências metafísicas, apesar das eventuais valorizações "concretas": o 79. Louis Finot, Les lapidaires indiens, p. 16; Kunz, op. cit., p. 316. 80. Karlgren, op. cit., p. 36. 81. Jackson, The Money Cowry (Cypraea monta, L.) as a Sacred Object among American Indians, pp. 3 ss. 82. Cf. "The Use of Cowry-shells for the purposes of currency, amulets and charms" (Manch. Mem., 1916, n: 13); Shells, pp. 123-194; Leo Wiener, Africa and the Discovery of America, pp. 203 ss; Helmut Petri, "llie Geldformen der Südsee" (Anthropos, 31, 1936, pp. 187-212; 509-554), pp. 193 ss., 509 ss. (cauri como moeda), 208 ss. (a pérola como moeda). O estudo de M. J. M. Faddegon, "Notice sur les cauris", não pôde ser utilizado (Tijdschrift san het Kon. Ned. Genootschap voor Munt-en Penningkunde, 1905; cf. Isis, vol. 19, 1933, p. 603). 83. Karlgren, op. cit., p. 34.
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valor econômico da pérola não elimina de maneira alguma seu simbolismo religioso; este último é continuamente redescoberto, reintegrado, enriquecido. Com efeito, lembremos o papel considerável que tem a pérola na especulação iraniana, no cristianismo e na gnose. Uma tradição de origem oriental explica o nascimento da pérola como o fruto de um raio que penetrou num marisco": a pérola seria o resultado da união entre o Fogo e a Água. Santo Efrém utilizou este mito antigo para ilustrar tanto a Imaculada Conceição como o nascimento espiritual do Cristo no batismo de fogo'. Por outro lado, Stig Wikander mostrou que a pérola era o símbolo iraniano por excelência do Salvador'. A identificação da pérola com o "Salvador salvo" tornou possível um duplo simbolismo: a pérola poderia representar tanto o Cristo como a alma humana. Orígenes retoma a identificação do Cristo com a pérola e será seguido por inúmeros autores (Edsman, Le baptême de feu, pp. 192 ss.). Em um texto do PseudoMacário, a pérola simboliza por um lado o Cristo-Rei e, por outro, o descendente do Rei, o cristão: "A Pérola, grande, preciosa e real, pertencente ao diadema real, convém apenas ao rei. Só o rei pode usar essa pérola. Não é permitido a nenhum outro usar tal pérola. Assim, um homem que não nasceu do espírito real e divino, que não se tornou membro da raça celeste e real e que não é um filho de Deus — como está escrito: 'Mas a todos aqueles que a receberam ela deu o poder de se tornarem filhos de Deus' (João I, 12) — não pode usar a preciosa pérola celeste, imagem da indizível Luz que é o 84. Cf. Pauly-Wissowa, s. v. Margaritai, col. 1692. 85. H. Usener, "Die Perle. Aus der Geschichte eines Bildes" (em Theologische Abhandlungen C. von Weizsãcker... gewidmet, Freiburg i. Breisgau, 1892, pp. 201-213); Carl-Martin Edsman, Le baptême de feu (Leipzig-Uppsala, 1940), pp. 190 ss. 86. Resumo do livro de Edsman, Svensk Teologisk Kvartalskrift., vol. 17, 1945, pp. 228-233; cf. Geo Widengren, Mesopotamian elements in Manicheism (Uppsala, 1946), p. 119; id., "Der iranische Hintergrund der Gnosis" (Zeitschrifi fiir Religions-und Geistesgeschichte, IV, 1952, pp. 97-114), p. 113.
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Senhor. Pois não se tornou um filho de rei. Os que usam e possuem a pérola vivem e governam com o Cristo por toda a eternidade" (Homélie, XXIII, 1; texto citado e traduzido por Edsman; op. cit., pp, 192-193). No famoso texto gnóstico Atos de Tomás, a procura da pérola simboliza o drama espiritual da queda do homem e da sua salvação: um Príncipe do Oriente chega ao Egito para procurar a Pérola defendida por monstruosas serpentes. O Príncipe deve vencer inúmeras provas iniciáticas para obtê-la, e não o conseguirá sem a ajuda de seu pai, o Rei dos Reis, imagem gnóstica do Pai celeste'. O simbolismo desse texto é bastante complexo: a Pérola representa por um lado a alma humana vencida no mundo das trevas, e, por outro, o próprio "Salvador salvo". Reencontramos a identificação do homem à pérola em inúmeros textos maniqueus e mandeus. O Espírito Vivo "tira o Primeiro Homem fora da luta como uma pedra tirada do mar" (Kephalaia, p. 85, citado por Edsman, op. cit., p. 195). Santo Efrém compara os mistérios do batismo a uma pérola que nunca mais pode ser readquirida: "o mergulhador também tira a pérola do mar. Mergulha (batiza-te), tira da água a pureza que se encontra escondida, a pérola de onde saiu a coroa da divindade" (citado por Edsman, p. 197). Em uma outra ocasião, discorrendo sobre os ascetas e os monges, Santo Efrém compara a ascese a um "segundo batismo". Da mesma forma que o caçador de pérolas deve mergulhar nu no oceano e abrir caminho entre os monstros marinhos, os ascetas devem penetrar nus entre os "homens deste mundo" (Edsman, p. 198). Além do simbolismo da nudez, podemos decifrar nesse texto uma alusão aos monstros marinhos que espreitam o catecúmeno durante sua imersão batismal (ver capítulo seguinte, pp. 151 ss.). A gnose está "escondida" e 87. A. Hilgenfeld, "Der Kõnigssohn und die Perle" (Zeitschrift for wissensDas iranische chafiliche Theologie, vol. 47, 1904, pp. 219-249); R. Reitzenstein,
op. cit., Erlósungsmysterium (Bonn, 1921), pp. 72 ss. (obra capital); Edsman, p. 193, nota 4; Widengrem Der iranische Hintergrund der Gnosis, pp. 105 ss.
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é difícil obtê-la; o caminho da salvação é cheio de obstáculos. A pérola simboliza tudo isto e outras coisas mais; sua aparição nesse mundo dos fenômenos é milagrosa, sua presença entre os seres vencidos é paradoxal. A pérola significa o mistério do transcendente que se tornou sensível, a manifestação do deus no Cosmos. Graças ao gnosticismo e à teologia cristã, este antigo símbolo da Realidade e da Vida-sem-Morte ganha novos significados: a alma imortal, o "Salvador salvo", o Cristo-Rei. Sublinhemos mais uma vez a continuidade dos diversos significados da pérola, dos mais arcaicos e elementares aos mais complexos simbolismos elaborados pela especulação gnóstica e ortodoxa.
CAPÍTULO V
SIMBOLISMO E HISTÓRIA Batismo, dilúvio e simbolismos aquáticos Entre os poucos grupos de símbolos solidários do simbolismo aquático que acabamos de apresentar, este último é de longe o mais vasto e o mais complexo. Tentamos determinar sua estrutura em um trabalho anterior, que recomendamos ao leitor (cf. Traité d'histoire des religions, pp. 168 ss.); ali se encontram as peças essenciais para uma documentação das hierofanias aquáticas e uma análise do simbolismo que as valoriza. Vamos nos contentar aqui em dar alguns de seus traços mais importantes. As águas simbolizam a soma universal das virtualidades; elas são fons e origo, e reservatório de todas as possibilidades de existência; elas precedem toda forma e sustentam toda criação. A imagem exemplar de toda criação é a Ilha que subitamente se "manifesta" em meio às águas. Por outro lado, a imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete o gesto cosmogônico da manifestação formal; a imersão equivale a uma dissolução das formas. É por isso que o simbolismo das Aguas implica tanto a Morte como o Renascimento. O contato com a água supõe sempre uma regeneração: de um lado, porque a dissolução é seguida de um "novo nascimento";
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de outro, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial de vida. À cosmogonia aquática correspondem — no nível antropológico — as hilogenias, as crenças segundo as quais o gênero humano nasceu das Águas. Ao dilúvio ou à submersão periódica dos continentes (mitos do tipo "Atlântida") corresponde, no nível humano, a "segunda morte" da alma (a "umidade" e leimon dos Infernos etc.) ou a morte iniciática pelo batismo. Mas, tanto no plano cosmológico como no plano antropológico, a imersão nas Aguas equivale não a uma extinção definitiva, mas a uma reintegração passageira no indistinto, seguida de uma nova criação, de uma nova vida ou de um homem novo, segundo se trate de um momento cósmico, biológico ou soteriológico. Do ponto de vista da estrutura, o "dilúvio" é comparável ao "batismo", e a libação fúnebre às lustrações dos recém-nascidos ou aos banhos rituais primaveris que buscam saúde e fertilidade. Em qualquer grupo religioso que se encontrem, as Águas conservam invariavelmente sua função: elas desintegram, eliminam as formas, "lavam os pecados", são ao mesmo tempo purificadoras e regeneradoras. Seu destino é o de preceder a Criação e de reabsorvê-la, incapazes que são de ultrapassar sua própria modalidade, ou seja, de manifestar-se em formas. As Aguas não podem transcender a condição do virtual, dos germes e dos estados latentes. Tudo o que é forma se manifesta acima das Águas, desprendendo-se delas. No entanto, a partir do momento em que se desprendeu das Águas, que cessou de ser virtual, toda "forma" está sujeita à lei do Tempo e da Vida; ela adquire limites, participa do destino universal, insere-se na história, corrompe-se e acaba por esvaziar-se da sua substância, a menos que ela se regenere através de imersões periódicas nas Águas, e repita o "dilúvio" com seu corolário "cosmogônico". As lustrações e as purificações rituais com água têm como objetivo a atualização fulgurante do momento intemporal (in illo tempore) em que aconteceu a criação; elas são a repetição simbólica do nascimento dos mundos ou do "homem novo".
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Um fator é aqui essencial: a sacralidade das Águas e a estrutura das cosmologias e dos apocalipses aquáticos só poderiam se revelar integralmente através do simbolismo aquático, que é o único "sistema" capaz de integrar todas as revelações particulares das inúmeras hierofanias (ver nosso Traité, p. 383). Esta lei é, aliás, a de todo simbolismo: é o conjunto simbólico que valoriza (e corrige!) as diversas significações das hierofanias. As "Águas da Morte", por exemplo, só revelam seu sentido profundo à medida que se conhece a estrutura do simbolismo aquático. Esta particularidade do simbolismo não deixa de ser relevante para a "experiência" ou a "história" de um símbolo qualquer. Lembrando as principais linhas do simbolismo aquático, tínhamos em vista justamente um ponto preciso: ou seja, a nova valorização religiosa das Águas instaurada pelo cristianismo. Os Padres da Igreja não deixaram de explorar certos valores pré-cristãos e universais do simbolismo aquático, enriquecendo-os até mesmo de significados inéditos, relacionando-os ao drama histórico do Cristo. Aliás, havíamos citado (Traité, p. 175) dois textos patrísticos relativos aos valores soteriológicos da água e ao simbolismo batismal morte-renascimento. Para Tertuliano (De baptismo, III-V), a água foi a primeira a ser "a sede do Espírito divino, que a preferiu, então, a todos os outros elementos... foi à água, antes de todos, que ele ordenou que produzisse as criaturas vivas... foi a água, antes de todos, que produziu o que tem vida, a fim de que nossa surpresa acabe quando um dia ela der a vida no batismo. Na formação do homem em si, Deus utilizará a água para acabar a sua obra... Toda água natural adquire logo, pela antiga prerrogativa com a qual ela foi honrada na sua origem, a virtude da santificação no sacramento, quando Deus é invocado para tanto. Assim que as palavras são pronunciadas, o Espírito Santo, que desceu dos céus, pára sobre as águas santificando-as por sua fecundidade; as águas, assim santificadas, impregnam-se por sua vez da virtude santificante... O que curava antes o corpo cura hoje a alma; o que procurava a saúde no tempo procura a salvação na eternidade..."
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O "velho homem" morre pela imersão na água e dá origem a um novo ser, regenerado. Este simbolismo é admiravelmente expresso por João Crisóstomo (Homil. in joh., XXV, 2), que, falando da multivalência simbólica do batismo, escreve: "Ele representa a morte e a sepultura, a vida e a ressurreição... Quando mergulhamos nossa cabeça na água como em um sepulcro, o velho homem é imerso sepultado inteiramente; quando saímos da água, o novo homem surge simultaneamente." Como podemos ver, as interpretações dadas por Tertuliano e João Crisóstomo harmonizam-se perfeitamente com a estrutura do simbolismo aquático. No entanto, intervêm nessa valorização cristã das Águas certos elementos novos, ligados a uma "história", no caso, a História santa. Trabalhos recentes de P. Lundberg, Jean Daniélou e Louis Beirnaert mostraram amplamente até que ponto o simbolismo batismal está saturado de alusões bíblicas . Antes de mais nada, existe a valorização do batismo como uma descida ao abismo das Águas para um duelo com o monstro marinho. Esta descida tem um modelo: a de Cristo no Jordão, que foi ao mesmo tempo uma descida às Águas da Morte. Cirilo de Jerusalém mostra-nos, de fato, a descida na piscina batismal como a descida nas águas da morte, habitadas pelo dragão do mar, à imagem do Cristo descendo no Jordão no momento de seu batismo para quebrar o poder do dragão ali escondido: "O dragão Behemoth, de acordo com Jó", escreve Cirilo, "estava nas águas e recebia o Jordão em sua boca. Ora, como tinha de quebrar as cabeças do dragão, Jesus, tendo descido nas águas, prendeu-o fortemente, para que pudéssemos adquirir 1. P. Lundberg, La typologie baptismale dans l'ancienne Église (UppsalaLeipzig, 1942); Jean Daniélou, S. J., Sacramentum _fitturi. Etudes sur les origines de la typologie biblique (Paris, 1950), pp. 13-20, 55-85 e passim.; id., Bible et liturgie (Paris, 1951), pp. 29-173; Louis Beirnaert, S. J., "La dimension mythique dans le sacramentalisme chrétien" (Eranosjahrburch, 1949, Bd XVII, Zurique, 1950, pp. 255-286). Os belos livros de Lundberg e J. Daniélou contêm, além disso, inúmeras indicações bibliográficas.
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o poder de andar sobre os escorpiões e as serpentes. Etc."2 É Cirilo ainda quem adverte o catacúmeno: "O dragão encontra-se à beira da estrada observando os que passam, toma cuidado para que ele não te morda! Vai ao Pai dos espíritos, mas tens de passar por esse dragão" (cit. Beirnaert, p. 272). Como veremos logo mais, esta descida e esta luta com o monstro marinho constituem uma prova iniciática que acontece também em outras religiões. Vem em seguida a valorização do batismo como antitypos do dilúvio. O Cristo, novo Noé, saiu vitorioso das Águas e tornou-se o chefe de uma outra raça Uustino, citado por Daniélou, Sacramentum fitturi, p. 74). Assim, o dilúvio representa tão bem a descida às profundezas marinhas quanto o batismo. De acordo com Ireneu, ele é a imagem da salvação pelo Cristo e do julgamento dos pecadores (Daniélou, Sacramentum fitturi, p. 72). "O dilúvio era então uma imagem que o batismo acaba por completar... Da mesma forma que Noé enfrentara o mar da morte, no qual a humanidade pecadora havia sido exterminada, e emergira, o recém-batizado desce na piscina batismal para enfrentar o dragão do mar em um combate supremo e sair vencedor..." (ibid., p. 65) Ainda com referência ao rito batismal, o Cristo é também comparado a Adão. O paralelo Adão-Cristo já toma um lugar considerável na teologia de S. Paulo. "Pelo batismo", afirma Tertuliano, "o homem recupera sua semelhança com Deus" (De bapt., V), Para S. Cirilo, "o batismo não é apenas a purificação dos pecados e graça da adoção, mas também o antítipo da Paixão do Cristo" (citado por Daniélou, Bible et liturgie, p. 61). A nudez batismal também comporta ao mesmo tempo uma significação ritual e metafísica: é o abandono da "velha roupa da corrupção e do pecado que o batismo despe por causa de Cristo. A mesma que Adão havia vestido após o pecado" (Daniélou, p. 55), e igualmente o retorno à inocência 2. J. Daniélou, Bible et liturgie, pp. 58-59; ver também Sacramentam _Atari, pp. 58 ss.; Lundberg, op. cit., pp. 148 ss.)
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primitiva, à condição de Adão antes da queda, "Oh, coisa admirável!", escreve Cirilo. "Estáveis nus diante do olhar de todos sem sentir vergonha. É que na verdade possuís em vós a imagem do primeiro Adão, que estava nu no Paraíso, sem sentir vergonha" (citado por Daniélou, op. cit., p. 56). O simbolismo batismal não limita aqui a riqueza de suas referências bíblicas e sobretudo de suas reminiscências paradisíacas, mas esses poucos textos são suficientes para nosso objetivo. Visamos menos uma exposição do simbolismo batismal que um quadro das inovações traduzidas pelo cristianismo. Os padres da Igreja primitiva viam o simbolismo quase unicamente como uma tipologia: eles se preocupavam em descobrir as correspondências entre os dois Testamentos'. Os autores modernos estão inclinados a seguir esse exemplo: em vez de recolocar o simbolismo cristão no contexto do simbolismo "geral", universalmente confirmado pelas religiões do mundo 3. Lembremos o sentido e o fundamento da tipologia. Seu ponto de partida encontra-se no próprio Antigo Testamento. De fato, os Profetas anunciaram ao povo de Israel, na época de seu cativeiro, que Deus realizaria para eles, no futuro, obras análogas, e ainda maiores, às que havia realizado no passado. Assim, haveria um novo dilúvio, que acabaria com o mundo pecador e em que um resto seria preservado para inaugurar uma nova humanidade; haveria um novo Êxodo, em que Deus libertaria com seu poder a humanidade prisioneira dos ídolos; haveria um novo Paraíso, onde Deus introduziria seu povo liberto. Isto constitui uma primeira tipologia, que podemos chamar de escotologia, pois os acontecimentos futuros são, para os projetas, os do fim dos tempos. Logo, o Novo Testamento não inventou a tipologia. Ele apenas mostrou que ela seria realizada na pessoa de Jesus de Nazaré. De fato, com Jesus os acontecimentos do fim, da plenitude dos tempos, são realizados. Ele é o Novo Adão com quem vieram os tempos do Paraíso futuro. Nele já se realizou a destruição do mundo pecador que representava o dilúvio. Nele foi realizado o verdadeiro Êxodo, que liberta o povo de Deus da tirania do demônio. A pregação apostólica utilizou a tipologia como argumento para estabelecer a verdade de sua mensagem, mostrando que o Cristo continua e ultrapassa o Antigo Testamento: "Essas coisas aconteceram figurativamente (typikôs) e foram escritas para a nossa instrução" (I Cor., X, 11). É o que S. Paulo chama de consolatio Scripturarum" (J. Daniélou, Bible et liturgie, pp. 9-10).
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não-cristão, eles insistem em remetê-lo unicamente ao Antigo Testamento. De acordo com esses autores, não seria o sentido geral e imediato que apareceria no simbolismo cristão, mas a sua valorização bíblica. Essa atitude se explica perfeitamente. O desenvolvimento dos estudos bíblicos e tipológicos, no decorrer do último quarto de século, mostra uma reação contra a tendência de se explicar o cristianismo através dos mistérios e das gnoses sincretistas, uma reação igualmente contra o "confusionismo" de certas escolas comparativas. A liturgia e o simbolismo cristãos referem-se diretamente ao judaísmo. O cristianismo é uma religião histórica, que tem raízes profundas em outra religião histórica, a dos judeus. Conseqüentemente, para explicar ou compreender melhor certos sacramentos e certos simbolismos, temos apenas de procurar suas "figuras" no Antigo Testamento. Na perspectiva historicista do cristianismo, nada mais natural: a revelação teve uma história; a revelação primitiva, ocorrida no começo dos tempos, sobrevive ainda entre as nações, mas está em parte esquecida, mutilada, corrompida; a única via de acesso passa pela história de Israel; a revelação só está plenamente conservada nos livros santos do Antigo Testamento. Como veremos melhor mais adiante, o judeu-cristianismo esforça-se por não perder o contato com a história santa que, diferentemente da "história" de todas as outras nações, é a única real e a única que tem uma significação: pois foi o próprio Deus quem a fez. Preocupados antes de tudo em se incorporar a uma história que era ao mesmo tempo uma revelação, atentos para não serem confundidos com os "iniciados" das diversas religiões de mistérios e das múltiplas gnoses que pululavam no fim da Antiguidade, os Padres da Igreja foram obrigados a isolar-se nesta posição polêmica: a negação de todo "paganismo" era indispensável ao triunfo da mensagem do Cristo. Podemos nos perguntar se esta atitude polêmica continua a existir com tanto rigor atualmente. Não falemos enquanto teólogos: não temos nem a responsabilidade, nem a competência. Mas para al-
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guém que não se sente responsável pela fé dos seus semelhantes é evidente que o simbolismo judeu-cristão do batismo não contradiz em nada o simbolismo aquático universalmente disseminado. Tudo está presente: Noé e o dilúvio têm como semelhança, em inúmeras tradições, o cataclismo que pôs fim a uma "humanidade" ("sociedade"), à exceção de um único homem que se tornará o Ancestral mítico de uma nova humanidade. As "Águas da Morte" são um leitmotiv de mitologias paleorientais, asiáticas e oceânicas. A Água "mata" por excelência: ela dissolve, ela elimina toda forma. É justamente por isso que ela é rica em "germes", criadora. O simbolismo da nudez batismal não é somente o privilégio da tradição judeucristã. A nudez ritual equivale à integridade e à plenitude; o "Paraíso" implica a ausência de "roupas", ou seja, a ausência da "usura" (imagem arquetípica do Tempo). Quanto à nostalgia do Paraíso, ela é universal, ainda que suas manifestações variem quase indefinidamente (cf. também Traité, pp. 327 ss.) Toda nudez ritual implica um modelo intemporal, uma imagem paradisíaca. Reencontramos os monstros do abismo em inúmeras tradições: os Heróis, os Iniciados, descem ao fundo do abismo para enfrentar os monstros marinhos; eis uma prova tipicamente iniciática. Certamente, são abundantes as variações: às vezes os dragões guardam um "tesouro", imagem sensível do sagrado, da realidade absoluta; a vitória ritual ( = iniciática) contra o monstro-guardião equivale à conquista da imortalidade (cf. Traité, pp. 182 ss., 252 ss.). O batismo é, para o cristão, um sacramento porque foi instituído por Cristo. Mas ele retoma da mesma forma o ritual iniciático da prova ( = luta contra o monstro) da morte e da ressurreição simbólicas ( = nascimento do homem novo). Não estamos dizendo que o judaísmo ou o cristianismo "tomaram emprestado" tais mitos e tais símbolos das religiões dos povos vizinhos; não era necessário: o judaísmo era herdeiro de uma pré-história e de uma longa história religiosa em que todas essas coisas já existiam. Não era nem mesmo necessário que tal ou tal símbolo fosse conser-
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vado "vivo", em sua integridade, pelo judaísmo; era suficiente que um grupo de imagens sobrevivesse, mesmo que obscuramente, desde os tempos pré-mosaicos: tais imagens seriam capazes de readquirir, a qualquer momento, uma forte atualidade religiosa. Certos Padres da Igreja primitiva determinaram o interesse da correspondência entre as imagens arquetípicas propostas pelo cristianismo e as Imagens que são o bem comum da humanidade. "Uma das suas preocupações mais constantes é precisamente manifestar aos incrédulos a correspondência entre os grandes símbolos imediatamente expressivos e persuasivos para a psique, e os dogmas da nova religião. Para aqueles que negam a ressurreição dos mortos, Teófilo de Antioquia faz referências aos indícios (rExp...imma) que Deus põe à sua disposição nos grandes fenômenos da natureza: começo e fim das estações, dos dias e das noites. Ele chega a dizer: `Não haveria uma ressurreição para as sementes e os frutos?' Para Clemente de Roma, 'o dia e a noite nos mostram a ressurreição: a noite se põe, o dia nasce; o dia parte, a noite chega' " (Beirnaert, op. cit., p. 275). Para os apologistas cristãos as Imagens estavam carregadas de sinais e de mensagens; elas mostravam o sagrado através da interpretação dos ritmos cósmicos. A revelação trazida pela fé não destruía as significações "primárias" das Imagens: elas lhe acrescentavam simplesmente um novo valor. Certamente para o crente, essa nova significação encobria as outras: ela sozinha valorizava a Imagem, transfigurando-a em revelação. Era a ressurreição do Cristo que importava, e não os indícios que se podiam ler na natureza. Na maioria dos casos, só se compreendia os "sinais" após haver encontrado, no fundo da alma, a fé. Mas o mistério da fé interessa à experiência cristã, à teologia e à psicologia religiosa, e ultrapassa nosso estudo. Na perspectiva que escolhemos, uma única coisa importa: que toda nova valorização foi sempre condicionada pela própria estrutura da Imagem,
a ponto de poder-se dizer que uma Imagem espera o cumprimento do seu sentido.
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Procedendo a uma análise das Imagens batismais, o Rev. Pe. Beirnaert reconhece "uma relação entre as representações dogmáticas, o Rev. Pe. Beirnaert reconhece "uma relação entre as representações dogmáticas, as simbolizações da religião cristã e os arquétipos ativados pelos símbolos naturais. Aliás, como os candidatos ao batismo poderiam compreender as imagens simbólicas que lhes são apresentadas se elas não correspondessem às suas esperanças obscuras?" (op. cit., p. 276). O autor não estranha que "muitos católicos tenham reencontrado o caminho da fé através de tais experiências" (ibid.). Obviamente, continua o Pe. Beirnaert, a experiência dos arquétipos não elimina a experiência da fé: "Podemos nos reencontrar num reconhecimento comum da relação dos símbolos religiosos com a psique e nos classificarmos, no entanto, como crentes e descrentes. Logo, a fé é outra coisa além desse reconhecimento (...) O ato de fé opera, então, no mundo das representações arquetípicas, uma separação. A partir daí, a serpente, o dragão, as trevas, Satã, designam tudo aquilo a que renunciamos. Reconhecemos como únicas representações capazes de mediatizar a salvação aquelas propostas como tais pela comunidade histórica" (ibid., p. 277).
Imagens arquetípicas e simbolismo cristão E, no entanto, o Pe. Beirnaert reconhece que, mesmo se as imagens e o simbolismo do sacramentalismo cristão não enviam o crédulo "antes de tudo a mitos e arquétipos imanentes, e sim à intervenção do Poder divino na história, esse sentido novo não deve impedir o conhecimento da permanência do sentido antigo. Retornando as grandes figuras e simbolizações do homem religioso natural, o cristianismo retoma também suas virtualidades e seus poderes sobre a psique profunda. A dimensão mítica e arquetípica, por ser subordinada a partir de então a uma outra, não deixa, no entanto, de ser real. O cristão pode muito bem ser um homem que renunciou a encon-
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trar sua salvação espiritual nos mitos e na única experiência dos arquétipos imanentes; ele não renunciou, no entanto, a tudo o que significam e efetuam os mitos e as simbolizações para o homem psíquico, para o microcosmo (...). A retomada pelo Cristo e pela Igreja das grandes imagens que são o sol, a lua, a madeira, a água, o mar etc. significa uma evangelização dos poderes afetivos designados por eles. Não se deve reduzir a Encarnação apenas ao seu aspecto carnal. Deus interveio até no inconsciente coletivo para salvá-lo e realizá-lo. O Cristo desceu aos infernos. Como poderia essa salvação alcançar nosso inconsciente se não falasse sua língua, se não retomasse suas categorias?" (L. Beirnaert, pp. 284-285). Esse texto nos traz precisões importantes quanto às relações existentes entre os simbolismos "imanentes" e a fé. Como dissemos, o problema da fé é estranho às presentes considerações. No entanto, um de seus aspectos nos interessa: a fé cristã é sustentada por uma revelação histórica: é a manifestação de Deus no Tempo que assegura, aos olhos do cristão, a validade das Imagens e dos símbolos. Nós demonstramos que o simbolismo aquático "imanente" e universal não foi abolido nem desarticulado após as interpretações locais e históricas judeu-cristãs do simbolismo batismal. Para expressar de uma maneira um pouco simplista: a história não conseguiu modificar radicalmente a estrutura de um simbolismo "imanente". A história acrescenta continuamente novos significados, sem que estes últimos destruam a estrutura do símbolo. Veremos mais adiante as conseqüências que resultam disso para o problema da filosofia da história e da morfologia da cultura. Por enquanto, fiquemos apenas com alguns exemplos. Falamos (pp. 40 ss.) do simbolismo da Árvore do Mundo. O cristianismo utilizou, interpretou, ampliou esse símbolo. A Cruz, feita da madeira da Árvore do Bem e do Mal, toma o lugar da Árvore Cósmica; o próprio Cristo é descrito como uma Árvore (Orígenes). Uma homilia do pseudo-Crisóstomo evoca a Cruz como uma árvore que "sobe da terra aos céus. Planta imortal, ela se ergue no centro do céu e da terra: firme
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sustentáculo do universo, laço de todas as coisas, suporte de toda a terra habitada, entrelaçamento cósmico que compreende em si toda a gama da natureza humana..." "E a liturgia bizantina canta ainda atualmente, no dia da exaltação da Santa Cruz, a árvore da vida plantada no Calvário, a árvore sobre a qual o Rei dos séculos realizou nossa salvação", a árvore que, "saindo das profundezas da Terra, ergueu-se no centro da Terra e santificou até os confins do universo'''. A Imagem da Árvore Cósmica conservou-se surpreendentemente pura. Muito provavelmente, o protótipo deve ser procurado na Sabedoria que, de acordo com os Provérbios, III, 18, "é árvore da vida para aqueles que a compreendem". Esta Sabedoria, comenta o padre Lubac (op. cit., p. 71), "para os judeus, seria a Lei; para os cristãos, seria o Filho de Deus". Outro protótipo provável seria a árvore vista em sonho por Nabucodonosor (Daniel, IV, 7-15): "Eu vi no meio da terra uma árvore cuja altura era imensa etc..." O padre Lubac reconhece que, da mesma forma que o símbolo da Árvore Cósmica das tradições indianas, a imagem da Cruz = Árvore do Mundo prolonga, no cristianismo, um "antigo mito universal" (op. cit., p. 75). Mas ele coloca rapidamente em evidência as inovações trazidas pelo cristianismo. Vê-se, por exemplo, na continuação da homilia do pseudo-Crisóstomo, que o Universo é a Igreja: "ela é o novo macrocosmo, do qual a alma cristã é a analogia em miniatura" (ibid., p. 77). E quantas outras diferenças nos saltam aos olhos entre o Buda e o Cristo, entre o pilar de Sanchi e a Cruz (ibid., pp. 77 ss.). Mesmo estando convencido de que a utilização pelo budismo e pelo cristianismo de uma tal Imagem "não passa finalmente de um problema de linguagem" (p. 76), o eminente teólogo parece exagerar a importância das especifi4. Henri de Lubac, Aspects du Bouddhisme (Paris, 1951), pp. 57, 66-67. Sobre este problema, ver R. Bauerreiss, Arbor Vitae. "Lebensbaum" und seine Verwendung in Liturgie, Kunst und Brauchtum des Abendlandes (Munique, 1938, Abhandlungen der Bayerischen Benediktiner-Akademie, III).
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cidades históricas: "Mas todo o problema é saber quais são, em cada caso, o gênero e o grau de originalidade da 'versão particular' " (ibid., p. 169, nota 101). Seria essa toda a questão? Estaríamos efetivamente condenados a nos contentar apenas com uma análise exaustiva das "versões particulares", que representam, no fim das contas, uma história local? Não teríamos nenhum meio de abordar a Imagem, o símbolo, o arquétipo em suas próprias estruturas, nessa totalidade que abrange todas as "histórias" sem entretanto confundi-las? Inúmeros textos patrísticos e litúrgicos comparam a Cruz a uma escada, a uma coluna ou a uma montanha (Lubac, pp. 64-68). Lembremo-nos de que essas imagens são fórmulas universalmente reconhecidas do "Centro do Mundo". Foi enquanto símbolo do Centro do Mundo que a Cruz foi assimilada à Árvore Cósmica. É a prova de 9ue a Imagem do Centro se impôs naturalmente ao espírito cristão. E através da Cruz ( = Centro) que acontece a comunicação com o Céu e, ao mesmo tempo, que todo o Universo é "salvo" (ver acima, pp. 40 ss.). Ora, a noção de "salvação" apenas retoma e completa as noções de renovação perpétua e de regeneração cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de realidade absoluta e, finalmente, de imortalidade, todas noções que coexistem no simbolismo da Arvore do Mundo (cf. nosso Traité, pp. 234 ss.). Que nos compreendam bem: não contestamos a importância da história e, no caso do judeu-cristianismo, da fé, para julgar no seu justo valor tal ou tal símbolo ou como ele era compreendido e vivido numa cultura específica; insistiremos sobre isto mais adiante. Todavia, não é "situando" um símbolo na sua própria história que se resolverá o problema essencial, ou seja: o que nos revela não uma "versão particular" de um símbolo, mas a totalidade de um simbolismo. Constatamos que as diversas significações de um símbolo encadeiam-se, são solidárias como um sistema. As contradições que se podem perceber entre as diversas versões particulares são, na maior parte do tempo, apenas aparentes: elas se resolvem a partir do momento que se considera o simbolismo como um todo, que se
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define sua estrutura. Toda nova valorização de uma Imagem arquetípica coroa e completa as antigas: a "salvação" revelada pela Cruz não anula os valores pré-cristãos da Árvore do Mundo, símbolo por excelência da renovatio integral; ao contrário, a Cruz vem coroar todas as outras valências e significações'. Observemos mais uma vez que esta nova valorização trazida pela analogia Árvore Cósmica = Cruz tem lugar na história e através de um acontecimento histórico: a Paixão do Cristo. Como veremos logo mais: a grande originalidade do judeucristinianismo foi a transfiguração da História em teofania. Eis outro exemplo. Sabemos que o xamã desce aos Infernos para procurar e trazer de volta a alma do doente, que foi roubada pelos demônios'. Orfeu também desce aos Infernos para trazer de volta sua esposa Eurídice, que acabara de morrer. Mitos análogos existem em outros lugares: na Polinésia, na América do Norte, na Ásia central (ali, o mito era parte integrante de uma literatura oral de estrutura xamanista), con5. O simbolismo é reforçado pelo fato de que a Árvore da Vida convive, nas ornamentações dos batistérios, com o Cervo, ainda uma imagem arcaica da renovação cíclica (cf Henri-Charles Puech, "Le Cerfet le Serpent", Cahiers archéologiques, IV, 1949, pp. 17-60, especialmente pp. 29 ss.) Ora, na China proto-histórica, no Altai, em certas culturas da América Central e do Norte (sobretudo entre os maias e os pueblos), o cervo é um dos símbolos da criação contínua e da renovatio, justamente por causa da renovação periódica dos seus chifres; cf. C. Hentze, "Comment il faut lire l'iconographie d'un vase en bronze chinois de la période Chang" (Conferente I. S. M. E. O., vol. I, Roma, 1951, pp. 1-60), pp. 24 ss.; id., Bronzegerizt, Kultbauten, Religion im altesten China der Shang-Zeit (Antuérpia, 1951), pp. 210 ss. Nas tradições gregas, o cervo renova-se comendo serpentes e bebendo sem demora nas águas de uma fonte: a galhada cai e o cervo rejuvenesce por cinqüenta ou quinhentos anos (ver referências em Puech, p. 29). A inimizade do cervo e da serpente é de ordem cosmológica: o cervo está em relação com o fogo e a aurora (China, Altai, América etc.), a serpente é uma das Imagens da Noite e da vida larvar, subterrânea. Mas a serpente é também um símbolo da renovação periódica, ainda que em um outro nível. Na realidade, a oposição cervo (ou águia) e serpente é muito mais a imagem dinâmica de um "par de opostos" que devem reintegrar-se. 6. Para tudo isso, ver nosso livro Le Chamanisme et les techniques archaïques de l'extase (Paris, 1951).
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ta-se que um herói desceu aos Infernos para recuperar a alma de sua esposa morta. Nos mitos polinésios e centro-asiáticos, ele é bem-sucedido; nos mitos norte-americanos, ele conhece a mesma derrota que Orfeu. Não nos apressemos em tirar qualquer conclusão. Registremos simplesmente um detalhe: Orfeu é o cantor domador dos animais, o médico, o poeta e o civilizador; em suma, ele reúne exatamente as funções que são dadas ao xamã das "sociedades primitivas". Este último é mais que um curandeiro e o especialista das técnicas extáticas, ele é também o amigo e o mestre dos animais, ele imita suas vozes, transforma-se em animal; é, além disso, cantor, poeta, civilizador. Notemos, enfim, que Jesus também desce aos Infernos para salvar Adão, para restaurar a integridade do homem derrotado pelo pecado (e uma das conseqüências do fracasso do homem foi justamente a perda do seu domínio sobre os animais). Teríamos o direito de considerar Orfeu um "xamã" e de comparar a descida de Cristo aos Infernos às descidas similares dos xamãs no êxtase? Tudo se opõe a isto: nas diversas culturas e religiões — siberiana ou norte-americana, grega, judeu-cristã — essas descidas são valorizadas de maneira muito diferentes. É inútil insistir sobre essas diferenças, pois elas são por demais evidentes. Mas um elemento permanece imutável, e não devemos perdê-lo de vista: a persistência do motivo da descida aos Infernos que é realizada para a salvação de uma alma; pouco importa por enquanto que seja a alma de um doente qualquer (xamanismo stricto sensu), da esposa (mitos gregos, norte-americanos, polinésios, centro-asiáticos), ou da humanidade inteira (o Cristo). A descida, desta feita, não é apenas iniciática e realizada com um intuito pessoal; ela tem um objetivo "salvífico": "morre-se" e "ressuscita-se" não mais para concluir uma iniciação já começada, mas para salvar uma alma. Uma nova nota caracteriza o arquétipo da iniciação: a morte simbólica não serve apenas para a sua própria perfeição espiritual (definitivamente, a conquista da imortalidade), mas ela se realiza para a salvação dos outros.
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Não pretendemos de modo algum ver no xamã primitivo ou no Orfeu norte-americano ou polinésio a prefiguração do Cristo. Constatamos apenas que o arquétipo da iniciação contém também esta valência da "morte" ( = descida aos Infernos) para o proveito de um outro. (Notemos de passagem que o ritual xamanista, durante o qual acontece a "descida aos Infernos", equivale a uma experiência mística; o xamã está "fora de si", sua alma deixou o corpo.) Uma outra experiência xamanista fundamental é a da ascensão celeste: através da Árvore Cósmica, plantada no "Centro do Mundo", o xamã penetra no Céu e encontra o deus supremo. Todos os místicos, como se sabe, utilizam o simbolismo da ascensão para representar a própria elevação da alma humana e a união com Deus. Nada permite identificar a ascensão celeste do xamã às ascensões do Buda, de Maomé ou do Cristo: o próprio conteúdo das respectivas experiências extáticas é diferente. Isto não impede que a noção de transcendência se expresse universalmente por uma Imagem de elevação, e que a experiência mística, qualquer que seja o berço religioso, implique sempre uma ascensão celeste. Melhor ainda: certos êxtases xamanísticos fazem intervir experiências fóticas que se assemelham a ponto de poderem ser confundidas com experiências similares dos grandes místicos históricos (índia, Extremo Oriente, mundo mediterrâneo, cristianismo). De acordo com os Padres da Igreja, a vida mística consiste em um retorno ao Paraíso7 . Uma das características da restauração paradisíaca seria justamente o domínio sobre os animais, que constitui já um privilégio dos xamãs e de Orfeu. Ora, encontramos a reintegração do Paraíso nos místicos arcaicos e primitivos reunidos habitualmente sob o nome de xamanismo. Demonstramos, aliás, que o transe xamanístico 7. Ver Dom Stolz, Théologie de la mystique; J. Daniélou, Sacramentam fuluri. Trata-se muito mais de uma antecipação, pois a plenitude da reintegração do Paraíso só será realizada após a morte.
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leva à situação do homem primordial: durante seu transe, o xamã revive a existência paradisíaca dos Primeiros Humanos, que não estavam separados de Deus. De fato, as tradições nos falam de um tempo místico em que o homem se comunicava diretamente com os deuses celestes; subindo numa montanha, numa árvore, num cipó etc., os primeiros Homens podiam elevar-se, realmente e sem esforço, ao Céu. Os Deuses, por sua vez, desciam regularmente à terra para misturar-se aos humanos. Devido a um acontecimento mítico qualquer (geralmente uma falta ritual), as comunicações entre o Céu e a Terra foram rompidas (a Árvore, o cipó foram cortados etc.), e o Deus retirou-se para o fundo do céu. (Em inúmeras tradições, esta retirada do deus celeste traduziu-se pela transformação posterior em deus otiosus.) Mas o xamã, através de uma técnica de que só ele tem o segredo, consegue restabelecer — provisoriamente e apenas para seu próprio uso — as comunicações com o Céu e retomar o diálogo com Deus. Em outros termos, ele consegue abolir a história (todo o tempo que se passou após a "queda", após a ruptura das comunicações diretas entre o Céu e a Terra); ele volta para trás e reintegra a condição paradisíaca primordial. Esta reintegração de um illud tem pus mítico realiza-se no êxtase: o êxtase xamanístico pode ser considerado seja como a condição, seja como a conseqüência do redescobrimento da condição paradisíaca. Em todo o caso, fica claro que a experiência mística dos "primitivos" se relaciona também à reintegração extática do "Paraíso'''. Não se trata de explicar a mística judeu-cristã através do xamanismo, nem de identificar os "elementos xamanísticos" no cristianismo. Mas existe um ponto cuja importância não 8. Evidentemente, não podemos reduzir a experiência extática do xamanismo a este "retorno ao Paraíso": lá se encontram inúmeros outros elementos. Tendo dedicado um livro a este problema extremamente complexo, não acreditamos ser necessário retomar mais uma vez a discussão. Observemos, entretanto, que a iniciação xamanista consiste em uma experiência extática de morte e de ressurreição, experiência decisiva que encontramos em todos os místicos históricos, inclusive na mística cristã.
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pode escapar a ninguém: a experiência mística dos "primitivos", da mesma forma que a vida mística dos cristãos, implica a redescoberta da condição paradisíaca primordial. Logo, a equivalência vida mística = retorno ao Paraíso não é um hápax judeu-cristão, criado pela intervenção de Deus na história; é um "elemento" humano universal de uma incontestável antiguidade.
Notemos ainda que a "intervenção de Deus na história", ou seja, a revelação divina feita no Tempo, retoma e reforça uma "situação atemporal". A revelação que o judeu-cristianismo recebeu unicamente em um tempo histórico, que não se repete mais, e que o levou a fazer uma história em sentido único, a humanidade arcaica a conserva nos mitos; entretanto, tanto a experiência mística dos "primitivos" como a vida mística dos cristãos traduzem-se pelo mesmo arquético: a reintegração do Paraíso original. Vê-se bem que a história — no caso a História Sagrada — não inovou em nada: tanto entre os primitivos como entre os cristãos, é sempre um retorno paradoxal in illud tempus, um "salto para trás" abolindo o tempo e a história, que constitui a reintegração mística do Paraíso. Conseqüentemente, o simbolismo bíblico e cristão, ainda que carregado de um conteúdo histórico no fim das contas "provincial" — pois toda a história local é provincial diante da história universal considerada como um todo — permanece, no entanto, universal como todo símbolo coerente. Poderíamos até nos perguntar se a "acessibilidade" do cristianismo não é tributária em grande parte do seu simbolismo; se as Imagens universais que ele retoma por sua vez não facilitam consideravelmente a difusão de sua mensagem. Isto porque uma questão preocupa à primeira vista o não-cristão: como uma história local — a história do povo judeu e das primeiras comunidades judeu-cristãs — pôde se tornar modelo de toda manifestação divina no Tempo concreto, histórico? Acreditamos ter o começo de uma resposta: a história sagrada, mesmo sendo uma história local, aos olhos de um observador externo é igualmente uma história exemplar, uma vez que ela retoma e aperfeiçoa as Imagens transtemporais.
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De onde vem, então, essa impressão irresistível, experimentada sobretudo pelos não-cristãos, de que o cristianismo inovou em relação à religiosidade anterior? Para um hindu simpatizante do cristianismo, a inovação mais espetacular (se deixamos de lado a mensagem ou a divindade do Cristo) consiste na valorização do Tempo, em última análise, na salvação do Tempo e da História'. Renuncia-se à reversibilidade do Tempo cíclico, impõe-se um Tempo irreversível, pois desta feita as hierofanias manifestadas pelo Tempo não mais podem ser repetidas: o Cristo viveu, foi crucificado e ressuscitou uma única vez. Daí vem uma plenitude do instante, a ontologização do Tempo: o Tempo consegue ser, o que quer dizer que ele pára de tornar-se, que se transforma em eternidade. Notemos imediatamente que não é qualquer momento temporal que invade a eternidade, mas somente o "momento favorável", o instante transfigurado por uma revelação (quer chamemos ou não este "momento favorável" de káiros). O Tempo torna-se um valor na medida em que Deus se manifesta através dele, conferindo-lhe um significado trans-histórico e uma intenção soteriológica: pois em cada nova intervenção de Deus na história não se tratava sempre da salvação do homem, ou seja, de algo que não tinha nada a ver com a história? O Tempo torna-se plenitude pelo próprio fato da reencarnação do Verbo divino; porém, este mesmo fato transfigura a história. Como poderia ser inútil e vazio o Tempo que viu Jesus nascer, sofrer, morrer e ressuscitar? Como poderia ser reversível e repetir-se ad infinitum? Do ponto de vista da história das religiões, o judeu-cristianismo nos apresenta a hierofania suprema: a transfiguração do acontecimento histórico em hierofania. Trata-se de algo mais do que a hierofanização do Tempo, pois o Tempo sagrado é fami9. Ver a conferência de Henri-Charles Puech, "Temps, Histoire et Mythe dans le christianisme des premiers siècles" (em Proceedings of the VI rh Congress for the History of Religions, Amsterdã, 1951, pp. 33-52); cf também nosso Mythe de Péternel retour, pp. 152 ss. e Karl Ltiwith, Meaning in History (Chicago, 1949).
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liar a todas as religiões. Desta vez é o acontecimento histórico em si que revela o máximo de trans-historicidade: Deus não intervém apenas na História, como foi o caso do judaísmo; ele se encarna num ser histórico para sofrer a existência historicamente condicionada; aparentemente, Jesus de Nazaré não se diferencia em nada de seus contemporâneos da Palestina. Na aparência, o divino é totalmente oculto na história: nada deixa entrever na fisiologia, na psicologia ou na "cultura" de Jesus, o Deus Pai em si; Jesus come, digere, sente sede ou calor como qualquer outro judeu da Palestina. Mas, na realidade, esse "acontecimento histórico" que constitui a existência de Jesus é uma teofania total; há ali uma espécie de audacioso esforço para salvar o acontecimento histórico em si, dando-lhe o máximo de ser. Apesar do valor dado ao Tempo e sà. História, o judeu-cristianismo não termina no historicismo, mas numa teologia da História. Não é por si mesmo que o acontecimento é valorizado; é apenas pela revelação que ele comporta, revelação esta que o precede e o transcende. O historicismo como tal é um produto da decomposição do cristianismo; ele só pôde existir na medida em que se havia perdido a fé na trans-historicidade do acontecimento histórico. No entanto, um fato permanece: o cristianismo se esforça por salvar a história; primeiro porque ele dá um valor ao tempo histórico, em seguida porque, para o cristão, o acontecimento histórico, mesmo permanecendo o que é, torna-se capaz de transmitir uma mensagem trans-histórica: todo o problema consiste em decifrar essa mensagem. Pois, após a encarnação do Cristo, supõe-se que o cristão deva procurar as intervenções de Deus não apenas no Cosmos (com a ajuda das hierofanias cósmicas, das Imagens e dos Símbolos), mas também nos acontecimentos históricos. A empresa nem sempre é fácil; decifra-se sem muita dificuldade os "sinais" da presença divina no Cosmos, mas na História estão também escondidos sinais similares. De fato, o cristão admite que após a Encarnação o milagre não é tão facilmente reconhecível; o maior "milagre" tendo
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sido justamente o da Encarnação, tudo o que se manifestara como milagre antes de Jesus Cristo não tem mais sentido nem utilidade após a vinda do Cristo. Existe, obviamente, uma série ininterrupta de milagres aceitos pela Igreja, mas todos foram validados enquanto dependentes de Cristo, e não por causa de sua qualidade intrínseca de "milagre". (Sabe-se que a Igreja diferencia cuidadosamente os milagres devidos à "magia" e ao "demônio" dos concedidos pela graça.) A existência e a validade dos milagres aceitos pela Igreja deixam, entretanto, aberto o grande problema da irreconhecibilidade do maravilhoso no mundo cristão, pois podemos nos encontrar bem perto do Cristo, imitá-lo, sem manifestar nenhum sinal visível: pode-se imitar o Cristo vivendo sua vida histórica, aquela que aparentemente se assemelha à existência de todo o mundo. Em suma, o cristão é levado a aproximar-se de todo acontecimento histórico com "medo e temor"; pois, a seus olhos, o acontecimento histórico mais banal, mesmo continuando a ser verdadeiro (ou seja: historicamente condicionado), pode esconder uma nova intervenção de Deus na História; em todo o caso, esse acontecimento pode ter uma significação trans-histórica, pode portar uma mensagem. Conseqüentemente, para o cristão, a vida histórica em si pode tornar-se gloriosa: a vida de Cristo e dos santos o testemunha. Com o cristianismo, o Cosmos e as Imagens não são mais os únicos responsáveis pela representação e pela revelação — há, além deles, a História, sobretudo a "pequena história", aquela que é constituída pelos acontecimentos aparentemente desprovidos de significações'°. 10. As expressões "história" e "histórica" podem dar margem a muita confusão: elas indicam, por um lado, tudo o que é concreto e autêntico em uma existência humana, em oposição à existência não-autêntica, constituída por evasões e automatismos diversos. Por outro lado, nas diversas correntes historicistas e existencialistas, as expressões "história" e "histórica" parecem supor que a existência humana só é autêntica quando se reduz à tomada de consciência de seu momento histórico. É a esta última significação, totalitária, da história que nos referimos quando nos opomos aos "historicismos". De fato, parece-nos que a autenticidade de uma existência não pode se limitar
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Sem dúvida, não se deve perder de vista que o cristianismo intervém na História para aboli-la; a maior esperança do cristão é a segunda vinda do Cristo, que terminará com toda História. De certo ponto de vista, para cada cristão, individualmente, esse fim é a eternidade que se seguirá, o paraíso reencontrado, podendo acontecer a partir de agora. Esse tempo anunciado pelo Cristo é já acessível e, para aquele que o recuperou, a história parou de existir. A transformação do Tempo em Eternidade começou com os primeiros crentes. Mas esta paradoxal transformação do Tempo em Eternidade não é propriedade exclusiva do cristianismo. Reencontramos a mesma concepção e o mesmo simbolismo na índia (ver "A filosofia do Tempo no budismo". À ksana corresponde o kdiros: tanto um como outro pode tornar o "momento favorável", pelo qual se "sai do tempo", para reencontrar a eternidade... Em última análise, pede-se ao cristão que se torne o contemporâneo do Cristo: o que implica tanto uma existência concreta, na História, como a contemporaneidade da pregação, da agonia e da ressurreição do Cristo.
Símbolos e culturas A história de um simbolismo é um estudo apaixonante e aliás completamente justificado, pois é a melhor introdução ao que chamamos de filosofia da cultura. As Imagens, os arquétipos, os símbolos são diversamente vividos e valorizados: o produto dessas múltiplas atualizações constitui em grande parte os "estilos culturais". Em Ceram, nas ilhas Molucas, à consciência de sua própria historicidade: não se pode considerar como "evasão" e "inautenticidade" as experiências fundamentais do amor, da angústia, do sagrado, da emoção estética, da contemplação, da alegria, da melancolia etc., cada uma delas utilizando um ritmo temporal que lhe é próprio, e todas concorrendo para formar o que poderíamos chamar de homem integral, que não se recusa ao seu momento histórico, mas também não se deixa identificar com ele.
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e em Elêusis, encontramos as aventuras míticas de uma jovem primordial: Hainuwele e Kore Perséfone' I . Do ponto de vista da estrutura, seus mitos se assemelham: e, no entanto, que diferença entre as culturas da Grécia e de Geram! A morfologia da cultura, a filosofia dos estilos terão interesse sobretudo nas formas particulares adotadas pela Imagem da Jovem na Grécia e nas ilhas Molucas. Porém, enquanto formações históricas, essas culturas não são mais intercambiáveis; estando já constituídas em seus próprios estilos, elas podem ser comparadas no nível das Imagens e dos símbolos. São justamente esta perenidade e esta universalidade dos arquétipos que "salvam", em última análise, as culturas e, ao mesmo tempo, tornam possível uma filosofia da cultura que seja mais do que uma morfologia ou uma história dos estilos. Toda cultura é uma "queda na História"; ela é, ao mesmo tempo, limitada. Não nos deixemos enganar pela incomparável beleza, pela nobreza e perfeição da cultura grega; ela também não é universalmente válida enquanto fenômeno histórico: tentemos, por exemplo, revelar a cultura grega a um africano ou a um indonésio. Não será o admirável "estilo" grego que lhes transmitirá a mensagem, mas as Imagens que o africano ou o indonésio redescobriram nas estátuas ou nas obras de arte da literatura clássica. O que, para um ocidental, é belo e verdadeiro nas manifestações históricas da cultura antiga não tem valor para um oceânico; pois, ao se manifestarem nas estruturas e nos estilos condicionados pela história, as culturas se limitaram. Porém, as Imagens que as precederam e as informaram permanecem eternamente vivas e universalmente acessíveis. Um europeu dificilmente admitirá que o valor espiritual geralmente humano e a mensagem profunda de uma obra de arte grega, a Vênus de Milo, por exemplo, não reside, para os três quartos da huma11. Ver Ad. E. Jensen, Hainuwele. Volkserzãhlungen von der Molukken-Insel Geram (Frankfurt-a-Mein, 1939); id., Die drei Stróme (Leipzig, 1948), pp. 277 ss.; C. G. Jung e Karl Kerényi, "Das gottliche Mãdchen" (Albae Vigilae, Hefte, 8-9, Amsterdã, 1941).
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nidade, na perfeição formal da estátua, mas sim na Imagem da Mulher que ela revela. E, no entanto, se não conseguirmos tomar consciência desta simples verdade, não há nenhuma esperança de se tentar um diálogo útil com um não-europeu. Em suma, é a presença das Imagens e dos símbolos que conserva as culturas "abertas": a partir de qualquer cultura, tanto a australiana como a ateniense, as situações-limite do homem são perfeitamente reveladas graças aos símbolos que sustentam essas culturas. Se negligenciarmos esse fundamento espiritual único dos diversos estilos culturais, a filosofia da cultura estará condenada a permanecer um estudo morfológico e histórico, sem nenhuma validade para a condição humana como tal. Se as Imagens não fossem ao mesmo tempo uma "abertura" para o transcendente, acabaríamos por sufocar qualquer cultura, por maior e admirável que a supuséssemos. A partir de toda criação espiritual estilística e historicamente condicionada, podemos reencontrar o arquétipo: Kore Perséfone e Hainuwele revelam-nos o mesmo destino patético, mas fecundo, da Jovem. As Imagens constituem "aberturas" para um mundo trans-histórico. Não é, entretanto, seu menor mérito: graças a elas, as diversas "histórias" podem se comunicar. Falou-se muito da unificação da Europa medieval pelo cristianismo. Isto é sobretudo verdadeiro se pensarmos na homologação das tradições religiosas populares. Foi através da hagiografia cristã que os cultos locais — da Trácia até a Escandinávia e do Tejo até o Dnieper — foram reduzidos a um "denominador comum". Graças à sua cristianização, os deuses e os lugares de culto de toda a Europa não receberam apenas nomes comuns, mas reencontraram, de uma certa maneira, seus próprios arquétipos e, conseqüentemente, suas valências universais: uma fonte da Gália, considerada sagrada pela presença de uma figura divina local ou regional, tornou-se santa para a cristandade inteira, após sua consagração à Virgem Maria. Todos os caçadores de dragão foram assimilados a S. Jorge ou a um outro herói cristão, todos os deuses da tempestade
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a Sto. Elias. De regional e provincial, a mitologia popular torna-se ecumênica. É sobretudo através da criação de uma nova linguagem mitológica comum às populações que permaneceram ligadas a suas terras, e conseqüentemente com maior risco de se isolar em suas próprias tradições ancestrais, que o papel civilizador do cristianismo é considerável; pois, ao cristianizar a antiga herança religiosa européia, ele não apenas a purificou, mas fez passar para uma nova etapa espiritual da humanidade tudo o que merecia ser "salvo" das velhas práticas, crenças e esperanças do homem pré-cristão. Ainda sobrevivem hoje, no cristianismo popular, os ritos e as crenças do neolítico: por exemplo, o mingau de grãos em honra dos mortos (a colina da Europa oriental e do Mar Egeu). A cristianização das -camadas populares da Europa fez-se sobretudo graças às Imagens: elas podiam ser reconhecidas em todos os lugares; bastava apenas revalorizá-las, reintegrá-las e darlhes nomes novos. Não esperemos para amanhã um fenômeno análogo que possa ser repetido em escala, planetária. Ao contrário, a entrada dos povos exóticos na história terá como conseqüência, em todos os lugares, um crescimento do prestígio das religiões autóctones. Como dissemos, o ocidente se vê atualmente forçado a um diálogo com as outras culturas "exóticas" e "primitivas". Seria lamentável que ele começasse sem ter tirado nenhuma lição de todas as revelações trazidas pelo estudo dos simbolismos.
Observações sobre o método Após o que acabamos de dizer, vê-se em que sentido foi ultrapassada a posição "confusionista" de um Tylor ou de um Frazer, que em suas pesquisas antropológicas e etnológicas, acumularam exemplos desprovidos de qualquer contigüidade geográfica ou histórica, citando um mito australiano ao lado de um mito siberiano, africano ou norte-americano,
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persuadidos de que se tratava sempre e em todos os lugares
da mesma "reação uniforme do espírito humano diante dos fenômenos da Natureza". Em relação a essa posição, tão parecida com a de um naturalista da época darwiniana, a escola histórico-cultural de Graebner-Schmidt e as outras escolas historicistas assinalaram um incontestável progresso. É importante, entretanto, não nos deixarmos imobilizar pela perspectiva histórico-cultural, e perguntarmo-nos se além da sua própria história um símbolo, um mito, um ritual podem nos revelar a condição humana, enquanto modo de existência próprio em um Universo. É o que tentamos fazer aqui e em várias de nossas recentes publicações'. Como bons positivistas, Tylor ou Frazer consideravam a vida mágico-religiosa da humanidade arcaica um amontoado de "superstições" pueris: fruto de medos ancestrais ou da estupidez "primitiva". Mas esse julgamento de valor contradiz os fatos. O comportamento mágico-religioso da humanidade arcaica revela uma tomada de consciência existencial do homem em relação ao Cosmos e a si mesmo. Onde um Frazer via apenas uma "superstição" já se encontrava implícita uma metafisica, mesmo que ela se expressasse pela interpretação dos símbolos, mais que por sobreposições de conceitos: uma metafísica, ou seja, uma concepção global e coerente da Realidade, e não uma série de gestos instintivos regidos pela mesma e fundamental "reação do animal humano diante da Natureza". Assim, quando, abstraindo a "história" que os separa, nós comparamos um símbolo oceânico a um símbolo da Ásia s qtrional, julgamo-nos no direito de fazê-lo não porque tanto um como o outro sejam o produto de uma mesma "mentalidade infantil", mas porque o símbolo, em si, expressa o conhecimento de uma situação-limite. Tentamos explicar a origem dos "símbolos" através da impressão sensível, exercida diretamente sobre o córtex cere- - — 12. Este problema será abundantemente discutido no segundo tomo do nosso Traia d'histoire des religions.
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bral, pelos grandes ritmos cósmicos (o curso do sol, por exemplo). Não nos cabe discutir essa hipótese. Mas o problema da própria "origem" parece-nos ser um problema mal colocado (ver "Simbolismo e História"). O símbolo não pode ser o reflexo dos ritmos cósmicos enquanto fenômenos naturais, porque um símbolo sempre revela alguma coisa a mais, além do aspecto da vida cósmica que deve representar. Os simbolismos e os mitos solares, por exemplo, revelam-nos também um lado "noturno", "mau" e "fúnebre" do Sol, o que não é evidente à primeira vista no fenômeno solar como tal. Este lado de um certo modo negativo, não percebido no Sol enquanto fenômeno cósmico, é constitutivo do simbolismo solar; o que prova que, desde o começo, o símbolo aparece como uma criação da psique. Isto se torna ainda mais evidente quando lembramos que a função de um símbolo é justamente revelar uma realidade total, inacessível aos outros meios de conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão abundantemente e simplesmente expressada pelos símbolos, não é visível em nenhum lugar do Cosmos e não é acessível à experiência imediata do homem, nem ao pensamento discursivo. Entretanto, evitemos acreditar que o simbolismo se refere apenas às realidades "espirituais". Para o pensamento arcaico, uma tal separação entre o "espiritual" e o "material" não tem sentido: os dois planos são complementares. Pelo fato de supostamente encontrar-se no Centro do Mundo, uma habitação não deixa de ser um instrumento que responde às necessidades precisas e é condicionada pelo clima, pela estrutura econômica da sociedade e pela tradição arquitetural. Ainda recentemente, a velha discussão entre os "simbolistas" e "realistas" manifestou-se novamente a propósito da arquitetura religiosa do antigo Egito. As duas posições são apenas em aparência irreconciliáveis: no horizonte da mentalidade arcaica, levar em conta as "realidades imediatas" não significa de modo algum ignorar ou menosprezar suas implicações simbólicas, e vice-versa. Não se deve crer que a implicação simbólica anula o valor concreto e específico de um objeto ou de uma operação: quando a enxa-
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da é denominada phalus (como acontece em certas línguas austro-asiáticas), e a semeadura é assimilada ao ato sexual (como aconteceu em quase todos os lugares do mundo), isto não significa que o agricultor "primitivo" ignora a função específica de seu trabalho e o valor concreto, imediato, de seu instrumento. O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ação, sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Aplicado a um objeto ou a uma ação, o simbolismo os torna "abertos". O pensamento simbólico faz "explodir" a realidade imediata, mas sem diminuí-la ou desvalorizá-la; na sua perspectiva, o universo não é fechado, nenhum objeto é isolado em sua própria existencialidade: tudo permanece junto, através de um sistema preciso de correspondências e assimilações'. O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si mesmo em um "mundo aberto" e rico de significados. Resta saber se essas "aberturas" são meios de fuga ou se, ao contrário, constituem a única possibilidade de alcançar a verdadeira realidade do mundo.
13. Para se compreender bem a transformação do mundo pelo símbolo, basta lembrar a dialética da hierofania: um objeto torna-se sagrado mesmo permanecendo ele próprio (ver acima, pp. 79 ss.).